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SEMIÓTICA APLICADA AO DESIGN AULA 3 Prof.ª Suzie Ferreira do Nascimento 2 CONVERSA INICIAL Anteriormente, nosso esforço foi convencê-lo(a) de que é importante para o desempenho da sua profissão entender as maneiras como nós, humanos, substituímos coisas. Nesta abordagem, insistimos na ideia de que artefatos, produtos e serviços grávidos de possibilidades significativas dão ao usuário maiores possibilidades de experimentar a si mesmo, estendendo a sua própria realidade. A partir deste conteúdo, queremos instrumentalizá-lo(a) para que possa, de fato, desenvolver produtos e serviços generosos em possibilidades sígneas. CONTEXTUALIZANDO Embora nós, humanos, sejamos pródigos na arte da significação, isso não quer dizer que fazemos isso sempre da mesma maneira. É importante fazer essa ressalva, já no início, para que você entenda o motivo pelo qual é necessário dar tantas voltas antes de chegar ao ponto que interessa, que é aprender como inserir significado nas coisas. Logo no início do nosso estudo, vimos que um dos pilares da aplicabilidade da Semiótica na prática do Design é o americano Charles Sanders Peirce (1839-1914). De fato, alguns conceitos de Peirce são de grande valia para nós, designers, mas é preciso manter a humildade e reconhecer que outros tempos, e outras culturas, relacionam-se com suas coisas de outros modos. Por isso, antes de apresentar a tríade Peirceana, com a qual esperamos que você se familiarize, investirei algumas páginas diferenciando a visão de mundo para a qual o pensamento de Peirce é singularmente importante. TEMA 1 – DE KANT ATÉ A TRÍADE PEIRCEANA Para o tema que nos interessa, é importante saber que Peirce foi bastante influenciado pelo pensamento de Kant. Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo germânico que viveu no século XVIII durante o Iluminismo, nome dado a um conjunto de ideias que caracterizou a vida intelectual da Europa no século XVIII, cuja característica mais conhecida é o grande valor dado à racionalidade humana. 3 Saiba mais Para saber mais sobre o Iluminismo, leia os tópicos 5.1 e 5.1.1 de LOURENÇO, V. H. Construção do pensamento filosófico na modernidade. Do ponto de vista do nosso conteúdo, é importante considerar que a Filosofia de Kant dialoga com um grupo social que atribuía grande valor às conquistas da razão humana. Como pretendemos demonstrar, isso tem consequências profundas na maneira como se significam as coisas. Analise comigo, por exemplo, as representações da Figura 1, na qual comparo três representações do homem. Agrupei, da esquerda para a direita, o Kouros, que é típico do período Arcaico Grego, depois, uma cópia romana de uma escultura atribuída ao grego Fídias e, por último, um detalhe de uma pintura do renascentista Rubens, de 1598. Cada um dos artistas quis representar, ou criar um signo, para o homem. Observe que a pintura de Rubens busca representar um homem mais real, mais próximo daquilo que seria uma pessoa comum. Isso é um indicativo de que, desde o Renascimento1, a Europa nutria certa convicção de que era importante representar as coisas como são, fato que se desdobrou, depois, no Iluminismo. Figura 1 – Comparativo da representação do homem em três tempos Crédito: Lefteris Papaulakis/Shutterstock; Museu Nacional Romano do Palazzo Altemps-CC/PD; Pedro Paulo Rubens-CC/PD. Talvez você já tenha visto isso acontecer com algum herói seu. Atualmente, existe a tendência em representar heróis do passado de maneira 1 Chama-se Renascimento o movimento artístico e cultural ocorrido na Europa entre os séculos XIV e XVI, cuja característica foi a experimentação e a ambição de romper com ideais considerados medievais. Considera-se que o Renascimento é o início da Modernidade. https://www.shutterstock.com/pt/g/lefpap https://www.shutterstock.com/pt/g/lefpap https://www.shutterstock.com/pt/g/lefpap https://en.wikipedia.org/wiki/en:Peter_Paul_Rubens 4 mais humanizada, ou seja, mais frágeis, alguns mais até corruptos. O estratagema é similar: pega-se um signo ideal e se insere nele atributos que o façam parecer mais real, mais próximo da maneira como nós, modernos, vemos a nós mesmos. Subjaz a esse artifício a expectativa de que o signo possa revelar alguma verdade nesse herói desconstruído. A Filosofia de Kant não teria sido tão importante se não houvesse, antes dela, uma verdadeira obsessão com as possibilidades de a razão revelar a verdade sobre tudo. O problema é que Kant foi tão sagaz no estudo do funcionamento da razão que acabou descobrindo, e revelando, seus limites (Kant, 2012). Ou seja, sua Filosofia mostrou aos modernos que as coisas não são verdadeiras em si mesmas, mas, sim, produto da interação entre a coisa observada e o observador. Com Kant, aprende-se que esse herói desconstruído não pode ser apontado como verdadeiro, afinal, ele existe somente porque nós, seus observadores, o queremos assim. Mas atenção: como designer criador de signos, você deve ter em mente que querer, nesse caso, não é o querer que a sua razão reconhece e domina. Por exemplo, você pode olhar para uma cadeira, ver uma cadeira e dizer: “esta é uma cadeira, porque tem este e aquele atributo e eu e meus amigos decidimos chamá-la assim”. Essa é uma decisão baseada em um querer que foi determinado pela sua razão. Kant, Peirce e outros como eles estão interessados no querer ao qual a razão serve. O que, afinal, levou você a se interessar pela cadeira? Ou ainda, o que levou uma geração a querer descontruir os heróis do passado? É esse querer profundo e poderoso que os artistas e designers devem ambicionar acessar. O propósito deste estudo é apresentar algumas ferramentas com as quais você poderá tentar persuadir seu cliente a querer “profundamente” aquilo que o seu produto tem a oferecer. Mais precisamente, maneiras pelas quais você poderá colocar o querer do cliente no seu produto, por meio de signos. É quase como se todas as vezes que um cliente se aproximasse de você dizendo o que “quer”, você intimamente estivesse se perguntando “o que é que ele quer de fato e não está me dizendo?” Se você prestou atenção nos conteúdos anteriores, lembrará que em vários momentos frisamos que os signos são legitimados pelo interpretante. Essa é uma consequência da revolução causada pelas reflexões de Kant, ou seja, o reconhecimento de que cada indivíduo se relaciona com as coisas de 5 maneira particular. À época de Kant, isso gerou um problema para os estudos sobre o belo. O filósofo havia demonstrado, e seus contemporâneos tiveram de aceitar, que a verdade sobre uma coisa se baseava em interpretação individual. Mas, se isso é certo, como é que nós, humanos, nos entendemos por meio de signos? Kant, e outros que o seguiram, demonstraram que nós, humanos, embora individuais, somos dotados do mesmo mecanismo de apreensão das coisas. Sem isso, não nos comunicaríamos. Mecanismo tão complexo que centenas de anos ainda não esgotaram o que se pode estudar sobre ele. A ciência moderna da Semiótica certamente é um dos frutos desse estudo. A Semiótica nos ajuda a entender porque determinados signos são tão coletivos. Em outros termos, o quê, no signo, pode ser comunicado. Daí termos citado, em conteúdos anteriores, as frases de Nietzsche: “prazer comunicado é arte, e o artista é um inventor de signos”. É o teor artístico do que você fará que tornará seu produto um canal de comunicação. Os teóricos do Design já há algum tempo optaram pela Semiótica de Peirce, que foi estudioso de Kant, como sendo a ferramenta mais adequada para estudar maneiras de incutir significado em produtos. Peirce foi um cientista americano que viveu na virada do século XIX. As características mais marcantes da sua produção teórica são a multiplicidade de temas tratados e a quantidade de textos. Aos 16 anos, jásabia de memória algumas das obras de Kant, e era conhecedor do que havia de melhor entre os gregos, ingleses e germânicos. Na sua época, nenhuma universidade sabia exatamente onde enquadrá-lo, e somente depois da sua morte foi reconhecido como filósofo. Hoje, já se sabe que Peirce passou as últimas três décadas da sua vida estudando 16 horas por dia, o que gerou um legado de 80 mil manuscritos, para além das 12 mil páginas publicadas em vida (Santaella, 1983, p .3-4). Devido ao trabalho incansável de pesquisadoras como Lúcia Santaella, que tem uma infinidade de publicações sobre Semiótica, inclusive o clássico O que é semiótica, publicado pela Brasiliense em 1983 na coleção Primeiros Passos, e Lucy Niemayer, que, em 2003, publicou seu Elementos de semiótica aplicados ao design, a aproximação entre Design e Semiótica, no Brasil, tem sido feita por meio de Peirce, ainda que a maior parte dos seus escritos originais não tenha sido organizada. Todavia, como ambicionei evidenciar nos parágrafos anteriores, é preciso considerar que Peirce, muito provavelmente por influência 6 de Kant, não está voltado para o que as coisas são, mas, sim, para as suas múltiplas significâncias e modos de comunicação. Mas Santaella alerta, no seu livro O que é Semiótica (Santaella, 1983, p. 8), que ele estava mais interessado na consciência do que na razão. Aprende-se com Santaella que Peirce buscou por muitos anos um sistema lógico, triádico, que pudesse ser aplicado a absolutamente tudo (Santaella, 2019, p. 216). “Tudo” inclui Design, mas certamente não se limita a ele. É importante que você compreenda que as ferramentas que o Design foi buscar em Peirce não foram concebidas, prioritariamente, para dizer o que um artefato é, nem mesmo para o que ele serve, e sim para dizer o que ele significa. Assim, sempre que você se angustiar porque o sistema de Peirce não é tão objetivo quanto gostaria, lembre-se de que a Semiótica peirceana é devedora do pensamento de Kant, tendo como objeto o homem moderno, que já não aceita respostas simples sobre as coisas. Nosso propósito, no início desta abordagem, foi que você, entendendo um pouco de Kant, estivesse mais preparado para utilizar a Semiótica de Peirce. Resumo esse meu intento em três aspectos que considero particularmente relevantes: • As coisas não são verdadeiras em si mesmas; • Para que alguma coisa seja signo, deve gerar uma ação interpretativa; • Não há uma causa determinada para a ação interpretativa. De certa maneira, já vimos isso nos conteúdos anteriores. Lembre-se do exemplo da bola Wilson. Com base no que ocorre no filme O Náufrago, não é possível dizer que a bola é, de fato, uma bola, porque ela pode ser uma pessoa. Se aquele artefato, desenvolvido incialmente para ser um ferramental esportivo, tornou-se o signo de uma pessoa, ou seja, substituiu uma pessoa, isso quer dizer que ele gerou uma ação interpretativa. E o fato de essa ação não ter sido prevista pelo desenvolvedor da bola quer dizer que ela não foi determinada por ninguém, exceto pelo interpretante. Peirce resume isso bem em um dos seus mais conhecidos conceitos: signo é o que substitui alguma coisa para alguém. A partir desse conceito geral, fica exposto o sistema triádico composto de alguém, que é o interpretante, mais o alguma coisa, ou objeto, que é substituído em um terceiro momento pelo signo. 7 Figura 2 – Semiótica peirceana aplicada ao Design Fonte: Nascimento, 2024. Saiba mais Para iniciar seus estudos sobre a aplicabilidade da Semiótica de Peirce, leia as páginas 68 a 69 do livro Semiótica, dos autores CORDEIRO, R. Q. F.; CAMPOS, C. R P.; ARAÚJO, A. C S. O mais difícil costuma ser o fato de que nem signo, tampouco interpretante ou objeto são coisas ou pessoas em si mesmas. No sistema de Peirce, nenhum deles subsiste de modo isolado. O signo não existe sem objeto e interpretante, e o interpretante só existe quando interpreta um signo. Nas próximas páginas, veremos um pouco mais sobre cada um deles, sempre no sentido que melhor se aplica à nossa prática, como designers. Começarei definindo o que é objeto, seguido do interpretante e, por último, discorrerei sobre o signo propriamente dito. TEMA 2 – O OBJETO A julgar pela minha experiência com alunos, o vértice que mais causa confusão é o que corresponde a objeto. Por questões idiomáticas, objeto, para nós brasileiros, é a coisa, o artefato, e raramente uma pessoa ou sentimento. Você precisa superar esse obstáculo. No sistema peirceano, objeto é sempre, e unicamente, aquilo que o signo substitui. Se liga Objeto é aquilo que o signo substitui. Agora, observe o seguinte discurso: Uma das cenas mais memoráveis da minha vida ocorria quando eu, segurando a mão da minha mãe, aguardava o ônibus que me levava para a 8 escola. Hoje, em uma vitrine, vi uma mochila que me trouxe lembranças agradáveis. Não resisti, entrei e comprei. No discurso escrito, a palavra mochila significa a mochila verdadeira, que é seu objeto. Veja no diagrama: Figura 3 – Diagrama objeto e signo. Diagrama do professor Crédito: maximmmmum/Shutterstock. Analisando o discurso mais detalhadamente e à luz do que você aprendeu nos conteúdos anteriores, a mochila verdadeira, a que foi vista na vitrine, tem atributos formais e de cor que levaram o observador a pensar no ônibus da escola. Ou seja, a mochila significou o ônibus verdadeiro e, por isso, passou a ser signo do ônibus, que passa a ser seu objeto. Veja no próximo diagrama. Figura 4 – Diagrama objeto e signo. Diagrama do professor Crédito: maximmmmum/Shutterstock; Prostock-studio/Shutterstock, Conforme você viu, a mochila, que era objeto, passou a ser signo. Por que? Porque objeto é aquilo que o signo substitui. No exemplo, tanto a mochila, quanto a palavra ônibus estão substituindo o ônibus real significado na foto (é bom lembrar que a foto de um ônibus é signo, e não o ônibus de verdade). Então, para esse exemplo, o ônibus real é um objeto substituído pelo signo mochila e pela palavra, que também é signo. https://www.shutterstock.com/g/maximmmmum https://www.shutterstock.com/g/maximmmmum https://www.shutterstock.com/g/prostock_studio 9 Mas o principal, o que realmente fará a diferença na sua atividade como designer criador de signos é o que vem representado no diagrama a seguir: Figura 5 – Diagrama objeto e signo. Diagrama do professor Crédito: maximmmmum/Shutterstock. Infelizmente, é aqui que a maioria se confunde, justamente porque esquece a definição: objeto é aquilo que o signo substitui. Tentei convencê- lo, nos conteúdos anteriores, que terá maiores chances de sucesso se seus produtos forem grávidos de significado. Eles precisam significar alguma coisa para alguém. Essa alguma coisa geralmente são sentimentos, sensações e desejos. Aquele querer sobre o qual falei há pouco. No discurso que apresentei, a pessoa não resistiu ao apelo da vitrine porque a mochila, naquele momento, significou uma série de sentimentos importantes para ela. Logo, o objeto mais relevante naquele caso são os sentimentos, e não a mochila ou o ônibus. Mas o que merece destaque no exemplo dado é a significação do ônibus na mochila. Este é o trabalho do designer como criador de signos: encontrar maneiras de colocar nos seus artefatos ou serviços atributos de outras coisas, fortes o suficiente para sensibilizar o observador por meio dos seus desejos. O exemplo também ajuda a fazer a distinção entre o querer racional e o querer ao qual a razão serve. A pessoa que comprou a mochila tomou uma decisão racional ao comprá- la. Mas a racionalidade que foi posta em ação no ato da compra serviu, ou esteve a serviço, de uma série de outros desejos. Dica O filme iraniano A Separação, de Asghar Farhadi, significa a dor da saída da personagem Simin da casa, pela saída difícil do piano. O filme não temmúsica, porque a personagem que toca o piano é a que se ausenta. O esforço https://www.shutterstock.com/g/maximmmmum 10 dos carregadores levando o piano escada abaixo significa a dificuldade que foi, para a personagem, abandonar o marido e a filha. Nesse caso, a dor é o objeto, e o piano funciona como signo dessa dor (Nascimento, 2017). Dica Em conteúdos anteriores, você aprendeu que a origem da palavra está no grego, Semeiotiké, e que essa palavra teria alguma coisa a ver com identificação de problemas de saúde por meio de sintomas, manchas amarelas na pele, por exemplo. Na ocasião, sugerimos que você pensasse a atividade do designer como uma atividade às avessas, ou seja, como se coubesse ao designer encontrar os sinais visíveis para alguma coisa interna. Ao aprender a definição do objeto, você agora já pode concluir que os artefatos criados pelos designers estão ancorados em sensações, emoções e desejos internos, sendo assim, seus sinais visíveis. No próximo tópico, veremos os conceitos básicos que você precisa saber para identificar o interpretante. TEMA 3 – INTERPRETANTE Também nesse caso, é muito importante memorizar o conceito fundamental: interpretante de um signo é aquilo que o legitima. No nosso linguajar prático, será quase sempre quem o legitima. Se legítimo é o que é amparado por uma lei, então Peirce almejou fazer com que, na sua tríade, a lei fosse dada por aquilo ou aquele que interpreta o signo. Nos próximos conteúdos, você aprenderá que há leis, ou convenções, que facilitam o seu trabalho como inventor de signos. Mas não é disso que se trata aqui. O que Peirce parece ter em mente é que o caráter legítimo do signo é dado sempre, e somente, pelo seu interpretante. Essa é uma influência kantiana, pois Kant revelou que a verdade sobre alguma coisa é produto dessa coisa com seu observador. No exemplo da mochila que parece ônibus exposta na vitrine, o interpretante mais óbvio é a pessoa, porque é ela quem entende o signo e acessa seu objeto [sentimentos e desejos] por meio dele. É ela quem declara, figuradamente, que aquela mochila, de fato, significa toda aquela emoção guardada na memória. Existem maneiras mais complexas de pensar o papel do interpretante, mas essa atende aos objetivos deste estudo: pense no 11 interpretante como aquela pessoa para a qual o seu artefato deve significar alguma coisa. Ou melhor, pessoa sem a qual o seu artefato será insignificante. Você aprendeu, nos conteúdos anteriores, que não conseguirá dominar completamente essa relação. Suas melhores chances estão na consistência significativa. É preciso ser persuasivo. Dica Ser persuasivo é utilizar recursos emocionais e simbólicos para fins de comunicação. Este é um bom momento para retornar à sétima arte. O cinema, como você sabe, é uma arte cara, que não pode ser tão individualista. Alguns diretores, é verdade, fazem obras muito subjetivas e, assim, comprometem parte da sua comunicação. Outros, no afã de trazer muitos espectadores às salas de cinema, fazem obras tão popularescas que são esquecidas na semana seguinte. Em qualquer caso, o destino dessas obras é selado pela audiência, ou seja, pelo interpretante. Mas há alguns motivos pelos quais o cinema é uma Arte a ser continuamente estudada. Fazer cinema é dar vida à pintura ou fotografia. É do movimento que vem a palavra2. Saiba mais Para saber mais sobre como a imagem adquiriu movimento no cinema, leia o tópico “Periodização” no livro História do cinema mundial, de Fernando Mascarello. Uma fotografia tem razoável poder persuasivo, mas o sentido humano prioritariamente envolvido é a visão. No cinema, a imagem ganha primeiro o movimento, depois a cor e, finalmente, a audição entra em ação. A vida que o cinema ambiciona apresentar é capturada pelos sentidos do interpretante. Ele vê o herói lutando, o cavalo correndo com crinas ao vento, e as folhas oscilando. Ele entende que aquelas imagens em movimento, unidas aos sons, são signos, ou seja, substituem coisas reais. Claro, nem tudo no cinema é representação do real, afinal, não existem unicórnios reais, habitantes reais do planeta Vulcano, e assim por diante. O que importa é que o interpretante 2 Cinematógrafo é uma palavra que vem do francês cinématographie. A origem está no grego: kínēma, que tem a ver com movimento e pôr em movimento, unido à graphein, que diz respeito à ação genérica de gravar (https://etimologia.com.br/cinema/). Acesso em: 25 mar. 2024. 12 reconheça a proposta do signo. Importa também você observar que, geralmente, quanto mais sentidos estiverem envolvidos na experiência, mais persuasão. Tenha em mente que o trabalho de interpretação do signo pelo interpretante é bastante complexo, afinal, o observador só tem os sentidos (olhos, ouvidos, nariz, paladar, tato) para captar as informações, e o restante do trabalho é mental. É a mente que tem de ser criativa no embaralhar e desembaralhar das informações recebidas. Paralelo ao trabalho da mente, está a consulta à memória, às emoções, ao inconsciente. Portanto, o interpretante é refém do seu próprio repertório de informações e experiências, conforme você já aprendeu nos conteúdos anteriores. Nem todo mundo saberá quem são os Klingons ou os Vulcanos. Da mesma maneira, seria injusto exigir de alguém da minha geração que saiba quem é Son Goku de Dragon Ball. Essas são questões de repertório geracional. Existem também repertórios culturais. Brasileiros, europeus, africanos e asiáticos têm repertórios próprios, e isso, de alguma maneira e em certa medida, influencia em seus gostos. Exemplarmente, tenho um acervo razoável de séries asiáticas assistidas. Meu enxuto repertório de filmes ocidentais ricos em recursos semióticos me permite dizer que o cinema asiático não significa da mesma maneira que o ocidental. Tive oportunidade de assistir trabalhos asiáticos primorosos em termos de composição formal e uso das cores, mas não me lembro de ter visto algum em que o amarelo significasse perigo, ou o vermelho identificasse, para o espectador, quem seria assassinado. Para retomar o exemplo do significado da água, nas séries asiáticas, geralmente cabe ao personagem masculino proteger o personagem feminino da chuva com um infalível guarda-chuva que está sempre à mão. A ênfase está no cuidado, na proteção. Nos filmes ocidentais, geralmente os personagens não se protegem da chuva, eles se molham prazerosamente, pois molhar-se significa se deixar penetrar pela emoção. 13 Figura 6 – Menino de capa e guarda-chuva Crédito: Olesia Bilkei/Shutterstock. Exemplos como esses mostram que, embora todos os humanos capturem as informações com os mesmos sentidos, e assim entendido, quanto mais sentidos envolvidos melhor, você, como criador de signos, precisa considerar que existem outros fatores envolvidos, tais como as diferenças culturais. Grandes empresas investem bastante no estudo das diferentes maneiras pelas quais seu público interpreta os signos. Um exemplo didático pode ser visto no mercado de luxo do Oriente Médio. As casas de moda vendem seus produtos para milionárias, sejam elas ocidentais cristianizadas ou muçulmanas árabes. A diferença, em geral, aparece na maneira pela qual esses produtos são oferecidos, em outras palavras, nos diferentes signos que aquela cultura aceita e entende. Compare as Figuras 7 e 8. Figuras 7 e 8 – Modelos femininas posando com bolsa de alça longa Crédito: Victoria Fox/Shutterstock; Robert Fowler/Shutterstock. No geral, as grandes marcas respeitam certos códigos aos quais os interpretantes são mais sensíveis. Essa é uma linguagem que fica muito definida https://www.shutterstock.com/g/olesiabilkei https://www.shutterstock.com/g/Victoria_Fox https://www.shutterstock.com/g/RobRu 14 nas poses das modelos. Conforme você pode observar na figura à esquerda, parainterpretantes ocidentais cristianizados, a modelo aparece com os braços e pernas afastados do corpo, como uma figura aberta, e o olhar se dirige, sem barreiras, diretamente para o observador. Se o produto for oferecido para mulheres islâmicas de países mais fechados, os membros se aproximam do corpo, e o olhar é desviado. A modelo não enfrenta nem desafia o observador, e sua figura é fechada, inclusive com as vestes, como se vê na figura à direita. Repito, esses são estratagemas de venda. Na maioria das vezes, o artefato mesmo não varia. Isso quer dizer que os designers que trabalham com luxo têm o cuidado de inserir atributos reconhecíveis por ambas as culturas. Em algum nível, os dois consumidores, ocidental cristianizado e islâmico, encontram naquele artefato o signo para seus desejos. Voltando aos exemplos do repertório, mesmo quem não sabe quem é Son Goku ou os Klingons está perfeitamente habilitado a sentir paixão, medo, frustração, alegria. A experiência tem me mostrado que quanto mais básicas forem as emoções consideradas como objeto a ser significado, mais interpretantes o reconhecem. Resta, ainda, escrever algumas palavras sobre o que seria signo, considerando o que você aprendeu sobre objeto e interpretante. TEMA 4 – SIGNO Os estudiosos dos escritos de Peirce já concluíram que ele tentou várias definições para o que seria signo, sendo que cada definição vinha acompanhada de uma série de consequências. Isso porque Peirce, conforme vimos anteriormente, morreu sem terminar ou sistematizar todos os seus estudos. Todavia, do ponto de vista que nos interessa, é possível assumir o conceito geral de que signo é aquilo que está no lugar do objeto para um interpretante (Santaella, 2019, p. 216). Se liga Uma maneira de definir signo é afirmar que ele é aquilo que significa alguma coisa para alguém. Essas são definições derivadas da definição de objeto (aquilo que o signo substitui) e de interpretante (aquele que legitima o signo). Lembrando do 15 exemplo do início desta abordagem, a mochila amarela é signo de uma série de emoções que a pessoa sentiu ao vê-la na vitrine. Nesse caso, escolhi o exemplo porque a mochila deixa entrever quais foram os atributos que o designer utilizou para inserir naquele artefato os indícios do ônibus. Já no clássico exemplo da bola Wilson, a situação é diferente, porque quem desenvolveu a bola não o fez pensando no personagem Sr. Wilson. Ainda assim, foi esse o signo que o interpretante encontrou. Observe o diagrama. Figura 9 – Diagrama signo e objeto Crédito: Paolo Ponga/Shutterstock. A bola, para o náufrago, é signo das sensações de saudade e solidão. É também signo do desejo de ter companhia. As sensações e desejos são o objeto, ou seja, aquilo que o signo substitui. E somente para o náufrago, de quem vem a lei que o interpreta. Quem desenhou a bola não pensou em saudade. Foi alguém, da produção do filme, que percebeu o potencial humanizável da sua forma. Afinal, se uma criança pode substituir uma cabeça humana por um círculo, uma pessoa desesperadamente só poderia substituir uma pessoa por uma bola. Claro que o exemplo da bola Wilson é didático, mas, convenhamos, ele não estimula muito nossa atividade, pois deixa quem desenvolveu o artefato de fora do circuito. Prefiro pensar no designer como aquele que, por inventar signos, cria pontes. Veja o diagrama a seguir. https://www.shutterstock.com/g/Paolo+Ponga 16 Figura 10 – Diagrama representando o signo como ponte Crédito: inimalGraphic/Shutterstock. Penso que uma maneira mais proveitosa de aplicar a tríade peirceana na atividade do Design é pensar que aquilo que o designer faz deve servir de ponte entre o interpretante e o seu objeto. É o caso da mochila, na narrativa que criamos. Ali, o designer que desenvolveu a mochila construiu também uma ponte entre aquele cliente e suas lembranças do passado, permitiu que fossem revividas sensações, que fossem alcançados desejos. Um joalheiro que produz um anel de noivado está, na verdade, ambicionando criar uma ponte entre a noiva e todas as sensações e desejos que ela projeta no casamento. No terreno das joias, talvez a cena mais emblemática seja a abertura do filme “Bonequinha de luxo”. O espectador vê um táxi estacionar e dele desce uma moça, vestida sedutoramente. Ele deduz que é de manhã, porque a rua está vazia, a personagem come um croissant e, com a outra mão, segura um copo de café. Ali ela passa alguns segundos perdida em pensamentos olhando para a vitrine de uma famosa loja de joias. Nem uma palavra é dita, mas os signos estão lá, e o espectador entende que ela passou a noite fora, está sozinha, e deseja encontrar um marido rico. https://www.shutterstock.com/g/DGuzhanin 17 Figura 11 – Diagrama alusivo à Bonequinha de luxo Crédito: Svetography/Shutterstock; chuhastock/Shutterstock. A pose, a roupa, o croissant e o café são signos suficientemente claros para que o espectador antecipe todo o drama do filme. Isso não seria possível se a loja famosa na qual está a joia não significasse um objeto (sentimento) muito específico. TEMA 5 – EXPLORANDO TODOS OS SENTIDOS Sem dúvida, a maioria dos signos são produzidos por vias visuais, ou seja, quase sempre os artefatos se tornam signos pelo que apresentam aos olhos do interpretante. Mas o designer deve manter em mente que as pessoas têm cinco sentidos. Como vimos, quanto mais sentidos estiverem envolvidos em uma experiência, maior a sua comunicabilidade. Dica A inserção da terceira dimensão em um signo altera consideravelmente a ação dos sentidos. Exemplarmente, Gilda de Mello, no livro O espírito das roupas, refere-se ao costureiro como artista, e não menciona o ilustrador ou desenhista (Nascimento, 2014a). O paralelo que a autora pretendia fazer não se aplicaria aos desenhistas justamente porque eles não costumam manipular materiais ou experimentar volumes, já que sua prática acontece na bidimensionalidade. Um jeans rasgado pode significar muitas coisas para quem vê. Mas é somente vestindo e tocando que se sente a trama, a entrada do ar, a liberdade dos movimentos. https://www.shutterstock.com/g/svetography https://www.shutterstock.com/g/chuhastock 18 Figura 12 – Jeans rasgado Crédito: benjamas11/Shutterstock. O mesmo vale para uma roupa cheia de alfinetes. Existe, claro, um discurso acessível aos olhos, mas ele só vale porque as pessoas sabem a dor que se sentiria se aqueles alfinetes acidentalmente abrissem. Figura 13 – Modelo com jaqueta e alfinetes Crédito: Juliana Astra/Shutterstock. Quem trabalha com interiores deve ficar atento. Nenhuma foto ou representação gráfica é capaz de significar para o olho aquilo que o tato seria capaz de detectar. Figura 14 – Representação de mobiliário em materiais diversos Crédito: YKvisual/Shutterstock. https://www.shutterstock.com/g/benjamas11 https://www.shutterstock.com/g/Juliana+Astra https://www.shutterstock.com/g/YKvisual 19 Indo mais adiante, quem compra um apartamento na planta, compra uma ideia, uma expectativa, porque não há como saber o que será estar dentro daquele imóvel. A dificuldade aumenta se você, como profissional, não tem acesso a experiências mais sensoriais, que ultrapassem a manipulação de programas de computador. Não é uma coisa fácil conseguir se imaginar dentro de um ambiente que não existe. E se não puder imaginá-lo, não poderá mostrá- lo convincentemente ao seu cliente. Experiência Valiosa Adolf Loos foi um importante arquiteto e decorador austríaco que viveu na virada do século XIX para o XX. Além de excelente decorador, era muito bom ensaísta. Seu mais famoso ensaio é Ornamento e Delito. Loos costumava dirigir-se aos seus colegas arquitetos como “artistas gráficos”, porque estavam se especializando em representações bidimensionais. Loos deixou poucos projetosfinalizados em desenho. A maioria dos seus ambientes foi elaborada mentalmente e com croquis em perspectiva solta. TROCANDO IDEIAS Escolha um dos cômodos da sua casa e faça uma lista dos materiais mais relevantes. Depois, procure atribuir a eles significados, com base em alguns dos seus atributos. Por exemplo, se você escolheu a cozinha e ali há um fogão a lenha, identifique os atributos daquele fogão que podem significar alguma coisa para você. O mesmo pode ser feito para o interior do seu carro, ou uma peça de roupa preferida. Estude-os atentamente, identifique materiais e formas, e tente justificar a sua significação. Leve seus exemplos para o fórum e veja se seus colegas têm alguma observação a fazer. NA PRÁTICA Este ano encomendei, da minha sobrinha de 13 anos, uma pintura em tela. Deixei o tema livre, e ela, olhando para minhas coisas, sugeriu uma cena de quarto, semelhante à de um quadro de um pintor famoso que ela não lembrava o nome. Tratava-se de O quarto em Artes, de Vincent van Gogh. Apenas pedi que ela incluísse um gato, alusivo ao meu gato de verdade. 20 Conforme você pode conferir na Figura 15, meu exemplar de van Gogh veio com gato. Sob o ponto de vista da significação, há alguns aspectos que valem sua observação. A pintura da minha sobrinha não pretendeu estar no lugar ou significar o quadro de van Gogh, que não tinha gato, tampouco tapete preto. Mas o gato foi significado de diversas maneiras. Ele é visto saindo debaixo da cama, a caixa de areia e os potinhos de água e ração são azuis, como os verdadeiros e, caso ainda restasse alguma dúvida, o retrato do gato na parede veio acompanhado das palavras Gato e Cat, uma vez que o meu gato não tem nome. Não duvido que o tapete preto esteja ali significando os pelos pretos que ele deixa pela casa. Figura 15 – Quadro familiar, Van Gogh com gato Fonte: Larissa. O que a minha sobrinha de 13 anos fez foi “significar” de diversas maneiras o gato. Esse é um exercício que você pode praticar inúmeras vezes e de diversas maneiras. Pense que deseja comunicar seu afeto para alguém, sem o recurso das palavras. Como você faria? 21 FINALIZANDO Nesta abordagem, você conheceu o contexto a partir do qual a Semiótica de Peirce ganha relevância. Entendeu que o estudioso propositadamente desenvolveu um sistema triádico no qual nenhuma parte subsiste sem a outra. Aprendeu também que objeto, em Semiótica, não quer dizer, necessariamente, um artefato concreto. Na maioria das vezes, para nós, designers, o objeto são abstrações, como sentimentos e desejos de um possível cliente. Finalmente, procurei fazê-lo compreender a sua atividade como uma espécie de ponte, por meio da qual o interpretante pode acessar seu objeto. Mais adiante, apresentaremos maneiras pelas quais essas pontes são construídas. 22 REFERÊNCIAS KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valerio Rodhen e António Marques. 3. ed. Rio de Janeiro: Forence Universitária, 2012. NASCIMENTO, S. F. O criador de roupas enquanto artista. Modapalavra, Florianópolis, v. 7, n. 13, jan./jun. 2014. Disponível em: <https://revistas.udesc.br/index.php/modapalavra/article/view/5127/3314>. Acesso em: 25 mar. 2024. NASCIMENTO, S. F. El discurso de la arquitectura en a separation, de Asghar Farhadi. Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, 2017. Disponível em: <http://www.semeiosis.com.br/?p=2461>. Acesso em: 25 mar. 2024. NIETZSCHE, F. A visão dionisíaca do mundo. Tradução de Marcos SP Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2005. SANTAELLA, L. O que é Semiótica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. (Coleção Primeiros Passos). SANTAELLA, L. Estética e semiótica. Curitiba: Intersaberes. Conversa inicial Contextualizando Trocando ideias Na prática FINALIZANDO REFERÊNCIAS