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plikeriana —- sem dúvida porque o tratamento dado às crianças mais velhas traz novos e diferentes problemas. Os bebês com deficiência e os doentes mentais reforçam, me parece, a ambivalência dos cuidadores e, por esse motivo, pedem práticas específicas às quais a atmosfera terapêutica de Lóczy pode contribuir enormemente através de remanejamentos e modificações particulares. A partir daí, em situações novas, o cuidado pikleriano não seria mais uma finalidade em si, mas um elemento constituinte de uma prática mais vasta. Talvez seja a mesma coisa quando se deve levar em conta a presença dos pais, como nos cuidados dados aos bebês em cre- che e não mais em instituições de acolhimento, o que evidente- mente representa um dos desafios atualmente colocado para as equipes do Instituto Pikler. E para concluir... Antes de tudo é importante não se deprimir. Sejam quais forem as dificuldades, internas ou externas, an- tes de tudo é importante não se deixar deprimir. Com efeito, lembremos o que dizia Myriam David: “Um bebê carente ou deprimido não brinca com os seus objetos. Ou ele não faz nada ou os quebra.” Da mesma maneira, se nos deprimimos, prejudicamos nossos conceitos, ou não fa- zemos nada. Daí vem a importância do reconhecimento in- ternacional dos trabalhos do Instituto Pikler que não cessa de progredir. Em seguida é importante tomar consciência de que a prática de Lóczy oferece um modelo único e exemplar para uma teoria do cuidado. O que acontece em Lóczy representa um modelo exemplar da profissionalização dos cuidados e a dialética incansável, que se desenrola entre a observação e a teorização leva, verdadeiramen- te, a uma admiração. Digitalizado com CamScanner A observação de crianças é o correspondente da escuta dos adultos, como diz tão bem Myriam David, e a modelização é um desdobramento que se segue. A experiência de Loczy nos estimula, fundamentalmente, partir dos fatos clínicos antes de teorizar, e nós devemos nos lembrar que no grego antigo, observar se dizia theorein, o que significa que só há teoria viva possível se a clínica vier antes. Este é o mérito de Lóczy de nos ajudar a manter essa direção. É importante por fim admitir profundamente que os bebês não podem e não devem ser a nossa única e última utopia. Isso seria muito pesado para eles carregarem. O mundo não é totalmente cor de rosa, tampouco totalmente preto. Devemos falar com eles sobre um mundo que lhes dê von- tade de crescer e fazer do bebê nossa única esperança representa finalmente uma espécie de agressividade indireta contra ele, que viria materializar brutalmente nossa ambivalência em relação à infância da qual tive a ocasião de falar. Os bebês possuem esse imenso poder de serem capazes de nos tornar bons ou maus de acordo com o caso. Cabe a nós imperati- vamente respeitar os bebês, nem que seja apenas para respeitar a si mesmo e ao bebê que permanece escondido no fundo de cada um de nós. Eis aqui, me parece, a grande lição de ética que Lóczy nos oferece atualmente. Finalmente, Lóczy não mudará o mundo, mas pode ajudar a mudar alguns bebês e são eles que mudarão o mundo. Essa frase me vem por analogia a uma proposição que escutei, há alguns anos, no Brasil à respeito da escola. Ela contém evidentemente algo um pouco místico, mas te- nho vontade de concluir com ela, para dizer sobre tudo isso que Lóczy nos traz e tudo sobre o qual, em tempos difíceis, devemos acreditar. Estou, portanto, feliz que esse livro maravilhoso Lóczy ou a maternagem insólita, possa ser novamente reeditado. Tenho — oecryerpe Prefácio à nova edição 3 Digitalizado com CamScanner certeza de que ele será tão precioso para esses MOVOS leitores, quanto é para aqueles que já O conhecem e cujo trabalho, DG: vezes, foi literalmente revolucionado por esse encontro com uma prática e uma reflexão que, mais de sessenta anos após o seu estabelecimento permanecem absolutamente pioneiras E tantas vezes, na contracorrente dos nossos modos de fazer ha. bituais com os bebês! 32 Maternagem Insólita Digitalizado com CamScanner 1 —— — — Prefácio da primeira edição Emi Pikler este prefácio, gostaria antes de tudo agradecer as autoras desse belo trabalho, nos quais elas analisaram os princípios diretores de nossa atividade e os aspectos fundamentais do fun- cionamento do nosso Instituto. A visita de especialistas competentes nos é sempre muito valiosa. Ao mostrar-lhes nosso Instituto, ao expor nossas con- cepções, aproveitando as críticas que nos são feitas, nosso saber enriquece e nos sentimos apoiados em nossos esforços para pro- gredir. Desse ponto de vista, merece destaque a visita da senho- rita Geneviêve Appell e da Dra. Myriam David. Durante a estadia de duas semanas, elas permaneceram em nosso Instituto em tempo integral, observando o nosso cotidiano, o nosso trabalho. A cada dois dias, nós nos reuníamos para discutir o que elas haviam observado, o que haviam anotado e acrescen- távamos respostas e comentários às questões que nos eram colo- cadas. A cada etapa, numerosas e novas questões eram colocadas. À partir desse momento, tive a impressão, e já assinalei isso, de que o trabalho complexo de nosso Instituto era observado, avaliado e sintetizado pelas autoras, de um ponto de vista que nós mesmos ainda não havíamos feito. Agora, ao ler esses rela- tórios, essa impressão se torna uma certeza. A apresentação, a primeira sobre a rotina do nosso Instituto, contribui para elabo- rar uma síntese sobre o nosso trabalho que ainda não havia sido feita. Isso ainda mais por tratar-se de um balanço crítico e obje- tivo, feito por especialistas que são ao mesmo tempo capazes de observar o conjunto e os detalhes, de examiná-los sob o ângulo de suas correlações e de resumi-los. Quanto às questões formuladas pelas autoras sobre a eficácia do nosso sistema, compartilhamos com elas. Que tipo de indiví- Apre Prefácio da primeira edição 33 «TT Digitalizado com CamScanner duos nossas crianças se tornarão? Estarão preparadas para o que a vida espera delas? Em geral uma vida “acidentada”? Sabemos e afirmamos que o calmo e tranquilo universo fa- miliar, a mãe que afetuosamente oferece cuidados ao seu jovem bebê não podem ser substituídos. Não esperamos que nossas crianças formem mais tarde uma das mais excelentes popula- ções de adultos, esperamos, no entanto, que elas não venham a pertencer ao grupo daqueles que Bowlby caracterizou por uma síndrome clássica. Essa esperança se sustenta nos resultados de estudos catamnésticos efetuados com a ajuda da Organização Mundial de Saúde, entre 1968 e 1970. No quadro dessa investigação, examinamos 100 pessoas que viveram em nosso instituto quando eram crianças bem peque- nas, para depois se instalarem em seus núcleos familiares. No momento dessa pesquisa elas tinham entre 14 e 23 anos. À análi- se dos dados está em curso. Ainda que a maioria das crianças te- nha crescido em famílias incompletas, com apenas um dos pais tendo casado novamente ou não, nenhuma apresenta sintomas flagrantes de desordens de personalidade características de uma primeira infância passada em uma instituição. Entre outros, Bowlby assinala o fato de que pessoas que vi- veram em instituições quando crianças pequenas são inclinadas a ter relações sexuais indiscriminadas. As mulheres têm filhos dos quais elas se preocupam tão pouco quanto seus pais se preo- cuparam com elas. Dessa maneira, elas aumentam o número de crianças abandonadas. Dentre os 158 ex-institucionalizados con- tatados!, nenhuma das 73 jovens mulheres teve filho fora do ca- samento; cinco se casaram e tiveram filho, e uma delas já foi mãe duas vezes. Todas tiveram acesso à assistência maternidade, ou seja, a um auxílio mensal modesto que a mãe assalariada recebe até que seu filho atinja a idade de 3 anos, caso decida ficar em casapara educá-lo, além das vinte semanas da licença maternidade. Nenhuma deixou seu filho com babá e não tinha intenção de deixá-lo. Portanto, enquanto mães, elas se comportavam como 1 Nesse número não estão compreendidas as crianças que não fizeram parte da pesquisa da OMS. 34 Matrernagem Insólita Digitalizado com CamScanner aquelas que passaram sua infância no seio de suas famílias. Den- tre as 100 pessoas envolvidas no estudo não havia nem vadia- gem, nem recusa de trabalho, nem criminalidade, no momento , da pesquisa. Agradeço ain Myriam David por esse es da interpretação delas que O balho do nosso Instituto. da à senhorita Geneviêve Appell e à Dra. tudo. Fico contente que seja através leitor francês tenha acesso ao tra- Novembro de 1972 Prefácio da primeira edição 35 ) “<a e ma am Digitalizado com CamScanner Digitalizado com CamScanner ; Prefácio da edição brasileira Sylvia Nabinger uando fui chamada a apresentar esta obra e por conseguin- te suas autoras, Myriam David e Geneviêve Appell pionei- ras no estudo da psiquiatria, psicologia e psicanálise de crianças, defini que muito mais do que orientar a leitura e pinçar alguns dos inúmeros elementos vitais desta obra, faria um prefácio de agradecimento, não somente pela trajetória inequívoca de am- bas, mas também pela imensa importância da história delas na minha história. Geneviêve e Myriam deixaram publicada uma obra rica, his- tórica e ímpar, além de inúmeras pesquisas e dados usados até hoje ao redor do mundo. As estudiosas, minhas professoras por três anos no curso sobre Intervenções Precoces Mãe Bebê da Fa- culdade de Medicina da Universidade Paris-Norte, se dedicaram a evitar o sofrimento do bebê onde ele estivesse, fosse no contex- to da família, das instituições de acolhimento ou dos hospitais. Ambas buscaram, durante décadas de prática clínica, pesquisar sobre o bem-estar da criança pequena, utilizando conceitos e narrativas de pensamento apoiadas e com base nas investigações que aconteciam naquela mesma época no Instituto Pikler Lóczy em Budapeste. As autoras, depois de uma visita a Lóczy, ficaram impactadas com o bem-estar das crianças, sua tranquilidade e confiança nos adultos. Na volta à França, fizeram o relatório da viagem e das vivências, relato que originou o presente livro. Mais tarde funda- ram a Associação Pikler Lóczy França, que funciona até hoje. A originalidade do trabalho realizado pela Dra. Emmi Pikler, reside no fato de que a carência emocional que tantos prejuízos traz às crianças que vivem em ambientes coletivos, sem a presença dos pais, parece não existir. Isto foi chamado de maternagem insóli- ta, mudando completamente, desde então, o olhar sobre o bebê. Prefácio da edição brasileira 37 Digitalizado com CamScanner A partir daí a tônica do trabalho, inter e multidisciplinar, foi estimular a formação das pessoas que de longe ou de perto tomam contato com o bebê, o estruturam subjetivamente c o inserem no meio social, influenciando toda a vida do mesmo. Por isso, não apenas a área da saúde mental se beneficiou de sua obra, mas também pediatras, enfermeiras, educadoras, assisten- tes sociais, auxiliares de creches, gestores de políticas públicas, etc. Outro ponto que mereceu atenção incansável das autoras e nesta obra em especial foi o tema da separação do bebê de sua família de origem, assim como a recepção e chegada às famílias acolhedoras e às instituições de acolhimento. Por tudo isso não posso deixar de lembrar que este livro deve ser presença obriga- tória na biblioteca de todos os admiradores das ideias de Emmi Pikler como também na cabeceira de todos os que se interessam pelo tema do bebê, da família e da primeira infância. Materna- gem Insólita, esta publicação que muito me honra prefaciar, nes- te momento de tantas incertezas que estamos vivendo e diante da pandemia mundial que nos assola, vem preencher uma la- cuna importante na bibliografia brasileira sobre o tema do bom trato às crianças pequenas e dos cuidados essenciais ao bebê nas instituições coletivas, mas também vêm nos trazer reflexões es- senciais sobre o que desejamos para o nosso futuro enquanto sociedade e o que almejamos enquanto humanidade. Boa leitura. Porto Alegre, agosto de 2020. Sylvia Nabinger Presidente da Associação Pikler Brasil 38 Maternagem Insólita Digitalizado com CamScanner