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O princípio da desigualdade Aristóteles afirmava o predomínio natural da cida- de sobre os indivíduos. O filósofo argumentava que, assim como os pés e as mãos só se realizam plena- mente no conjunto do corpo, um homem só se rea- lizaria plenamente como parte de uma comunidade política, pois ninguém é absolutamente autossuficien- te. Fora da polis, um indivíduo isolado era como um animal, incapaz de associar-se a outros, ou como um deus, que não precisa de ninguém além de si mesmo. Por isso, o senhor e o escravo dependeriam um do outro e partilhariam de interesses comuns, o que para Aristóteles era naturalmente reconhecido pelo senso comum dos helenos, isto é, dos gregos. O mes- mo não ocorreria entre os chamados bárbaros, isto é, todos os povos que não falavam a língua grega. Para estes últimos, não haveria comandantes naturais, mu- lheres e escravos não seriam diferentes e serviriam aos mesmos propósitos. Como os helenos estabeleciam distinções e hierarquias já no interior da família, pode- riam se considerar naturalmente superiores e, portan- to, “senhores” dos bárbaros. Gaio, jurisconsulto romano do século II, modificou um pouco tal ideia, talvez pensando no extenso do- mínio romano. Segundo Gaio, o domínio do senhor sobre os escravos era aceito naturalmente por todos os povos, ou seja, em toda parte havia se- nhores e escravos. Bem, você pode estar se perguntando: será que Aristóteles e Gaio se consideravam racionais e previ- dentes ou impulsivos e providentes? Como será que as pessoas escravizadas pelos gregos e romanos enten- diam a si mesmas: senhores ou escravos? Ainda que com ligeiras modificações, o princípio da desigualdade se manteve na história. No direito feudal, ele aparece na ideia de que a ordem social pressupõe um só corpo, espiritual e político, unindo o reino de Deus à cidade dos homens. jurisconsulto: consultor e estudioso das questões do direito; jurista. Mosaico de gladiadores do século IV encontrado na Torre Nova, próximo a Roma (Itália), em 1834. Os gladiadores, na sua maioria escravos, eram obrigados a lutar uns contra os outros até a morte em exibições públicas. No século I a.C., Espártaco, ex-escravo, gladiador, liderou a maior rebelião de escravizados da história até a Revolução do Haiti. Lex e Jus O que significa ter direitos? Quem tem um direito pode fa- zer o que quiser? E as leis, por que devem ser obedecidas? Essas perguntas evidenciam a diferença entre legitimidade e legalidade: nem toda lei é legítima, quer dizer, justificada. Há leis, de fato, que podem ser muito injustas. Esse debate tem sido recorrente, mas foi interpretado de diversas maneiras ao longo da história. No Império Romano, amadureceu o entendimento de que uma lei (lex) escrita devia expressar as normas impostas pelo povo reunido ou por um magistrado, para limitar a ação individual. A lei, por- tanto, proibia ou limitava e o direito ( jus) permitia. Na tradição escolástica-cristã da Idade Média, a ordem su- perior era a da lei de Deus. Tomás de Aquino (1225-1274), em sua Suma teológica, definia o direito ( jus) como “a par- ticipação humana na lei (lex) eterna de Deus”. Quer dizer, se os direitos das pessoas se baseavam em uma ordem objeti- va, não era possível modificá-los e nem lícito contrariá-los. A partir do final da Idade Média, tornou-se mais nítida a distinção entre direito objetivo e subjetivo, quer dizer, o di- reito que um sujeito alegava em seu favor pessoal, como o direito à legítima defesa, por exemplo. Thomas Hobbes (1588-1679) exprimiu essa ideia ao definir o direito natural como a capacidade de agir, e a lei natural como uma regra da razão que dita como agir: a lei continuava restringindo o direito, mas, agora, apenas como norma de racionalidade. A busca por uma fonte para as leis que seja legítima e in- questionável é persistente. Mas, se os códigos e as legisla- ções mudam conforme as épocas e culturas, o que poderia ser permanente, universal e comum a toda a humanidade na definição do direito? Conceito A lin a ri A rc h iv e s /C o rb is /G e tt y I m a g e s 69 V4_Cie_HUM_Igor_g21Sc_Cap3_064-087.indd 69V4_Cie_HUM_Igor_g21Sc_Cap3_064-087.indd 69 14/09/2020 11:4714/09/2020 11:47 a servidão. Assim, ao menos na cristandade europeia, to- dos eram filhos do mesmo pai, criaturas da mesma divin- dade, mas com capacidades desiguais. Segundo o direito feudal, se o cultivo da terra era permitido aos plebeus em nome da sobrevivência, não havia “medalha sem rever- so”, como dizia o ditado medieval. O servo, sua família e todos os seus descendentes permaneciam vinculados à gleba por toda a vida, sem direito de se afastar dela, podendo inclusive ser negociados e transferidos junto com a escritura a outro proprietário. A igualdade universal dos filhos de Deus só se reali- zaria, então, no reino dos céus. Se não eram considera- dos escravos, os servos não deixavam de estar obriga- dos a possibilitar bens materiais e tempo livre aos seus senhores. Mesmo depois do fim da Idade Média, du- rante séculos, aqueles que se diziam cristãos repetiram com os povos americanos, africanos e asiáticos o mes- mo que foi feito pelos romanos aos primeiros cristãos. Na cidade dos homens, todos seriam filhos de Deus, mas com funções diferentes: uns cuidariam da vida espiritual (o clero), outros zelariam pela segurança (a nobreza), outros trabalhariam (os servos). Em princí- pio, não deveria haver separação social, todos viveriam juntos como cristãos e as atividades de cada casta pos- sibilitariam as das outras. No entanto, apenas a Igreja e os senhores feudais podiam praticar certos atos, ao passo que os plebeus deviam obrigatoriamente prati- car outros. Por exemplo, em 1075, em plena Alta Idade Média, a Reforma Gregoriana estabelecia que só o bis- po de Roma tinha o direito de depor e investir bispos, depor imperadores e desobrigar os súditos de ser leais a senhores injustos, mas apenas os súditos deviam traba- lhar, isto é: aos desiguais, atribuições desiguais. Revela-se, então, o problema principal da sociedade feudal: a propriedade privada da terra era direito exclusi- vo da Igreja e dos senhores feudais, mas o trabalho nela era obrigatório às pessoas comuns, a quem cabia apenas eito: grande extensão de terra agrícola. ancho: amplo, espaçoso. gleba: domínio territorial ao qual o servo estava ligado; feudo. 1. Na Constituição brasileira estão presentes direitos objetivos e direitos subjeti- vos. Os direitos fundamentais do cidadão são considerados direitos objetivos, como o direito à livre expressão, à honra (Art. 5o), à propriedade e à defesa do consumidor, por exemplo. Já os direitos subjetivos baseiam-se na norma co- nhecida como da liberdade: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Art. 5o, §2). Pesquise a diferença entre direito objetivo e direito subjetivo e identifique outros pontos da Constituição federal que os exprimem. 2. A partir de seus conhecimentos e dos conceitos adquiridos neste Tema, analise os versos a seguir, extraídos do poema de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), “Morte e vida severina”, publicado pela primeira vez em 1955. ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO — Essa cova em que estás, / com palmos medida, / é a conta menor / que tiraste em vida. — É de bom tamanho, / nem largo nem fundo, / é a parte que te cabe / deste latifúndio. — Não é cova grande, / é cova medida, / é a terra que querias / ver dividida. — É uma cova grande / para teu pouco defunto, / mas estarás mais ancho que estavas no mundo. MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 59. Explorando Professor, no Manual você encontra orientações sobre estas atividades. NÃO ESCREVANO LIVRO Dica Conheça uma adapta- ção do poema “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto, feita pelo cartunista Miguel Falcão (1963-). Preservando o texto original, a animação dá vida e movimento aos personagens. Morte e vida severina. TV Escola. Brasil, 2012 (55 min 17 s). Dispo nível em: https://youtu.beclKn AG2Ygyw. Acesso em: 29 jun. 2020. 70 V4_Cie_HUM_Igor_g21Sc_Cap3_064-087.indd 70V4_Cie_HUM_Igor_g21Sc_Cap3_064-087.indd 70 14/09/2020 11:4714/09/2020 11:47