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349 Lúpus eritematoso sistêmico Bevra Hannahs Hahn DEFINIÇÃO E PREVALÊNCIA O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença autoimune na qual órgãos e células sofrem algum dano inicialmente mediado por autoanticorpos e imunocomplexos ligados aos tecidos. Na maioria dos pacientes, os autoanticorpos já estão presentes há alguns anos quando surgem os primeiros sintomas clínicos. Noventa por cento dos pacientes são mulheres em idade fértil; pessoas de todos os gêneros, idades e grupos étnicos são suscetíveis. A prevalência do LES nos Estados Unidos é de 20 a 150 por 100.000, dependendo da raça e do gênero; a prevalência mais alta é observada em mulheres afro- americanas e afro-caribenhas, e a mais baixa, em homens brancos. PATOGÊNESE E ETIOLOGIA Os mecanismos patogênicos propostos para o LES estão ilustrados na Figura 34 9-1. As respostas imunes subjacentes ao LES podem ser definidas de forma resumida como respostas que levam à produção de quantidades aumentadas e de formas imunogênicas de ácidos nucleicos, de suas proteínas acompanhantes e de outros autoantígenos. O processo pode começar com a ativação de imunidade inata indutora de autoimunidade, em parte via ligação de DNA/RNA/proteínas por receptores semelhantes ao Toll presentes nas células envolvidas. As alterações incluem células dendríticas produtoras de α-interferona (α-IFN); macrófagos ativadores produtores de citocinas/quimiocinas inflamatórias, como as interleucinas (p. ex., IL-12), o fator de necrose tumoral α (TNF-α) e o fator de maturação/sobrevida da célula B (BLys/BAFF); neutrófilos liberadores de redes contendo DNA/proteína; e células natural killer (NK) incapazes de destruir células B e T autorreativas ou de produzir o fator de crescimento transformador β (TGF-β), necessário ao desenvolvimento de células T reguladoras. A regulação positiva de genes induzida pelas IFNs é uma “assinatura” genética nas células do sangue periférico de 50 a 80% dos pacientes com LES. O sistema imune inato interage com as células B e T da imunidade adaptativa, o que impulsiona ainda mais as respostas autoimunes. Os linfócitos T têm metabolismo alterado (anomalias no transporte de elétrons mitocondrial, no potencial de membrana e no estresse oxidativo), utilização aumentada da glicose, produção aumentada de piruvato, ativação de mTOR e autofagia aumentada. As células T e B são ativadas e conduzidas à apoptose com mais facilidade do que as células normais, provavelmente devido à sua ligação aos autoanticorpos e, adicionalmente, à sinalização anormal após o envolvimento de moléculas de superfície, resultando em uma produção anormalmente baixa de IL-2 (necessária para a sobrevida da célula T). As células B apresentam antígeno e secretam IL-6 e IL-10, promovendo a sobrevida de células B autorreativas (que também é favorecida pelo estrogênio). As células fagocíticas do lúpus têm capacidade reduzida de eliminar imunocomplexos, células apoptóticas, bem como as bolhas de superfície contendo fosfolipídeos e DNA/RNA/Ro/La. O resultado é a persistência de grandes quantidades de autoantígenos e as consequentes quantidades aumentadas de autoanticorpos com números ampliados de células B ativadas e plasmoblastos/plasmócitos, bem como de células T autorreativas que mudam de populações reguladoras para células TH1, TH17 e TFH numérica e funcionalmente aumentadas, as quais promovem síntese de autoanticorpos e lesão tecidual. Essa lesão começa com a deposição de autoanticorpos e/ou imunocomplexos, seguida pela destruição mediada por ativação do complemento e pela liberação de citocinas/quimiocinas. Células não imunes fixas nos tecidos são, então, ativadas para produzirem mais inflamação e lesão – como se observa com as células basais na derme, os fibroblastos sinoviais, as células mesangiais renais, os podócitos e o epitélio tubular, bem como com as células endoteliais no corpo inteiro. Enquanto isso, o ataque imune inicial atrai para os tecidos-alvo mais células B e T, monócitos/macrófagos, células dendríticas e plasmócitos. A inflamação também causa liberação de peptídeos vasoativos, lesão oxidativa, além de liberação de fatores de crescimento e fatores fibrosantes. Pode ocorrer esclerose/fibrose com dano tecidual irreversível em múltiplos tecidos, incluindo rins, pulmões, vasos sanguíneos e pele. Cada um desses processos depende da constituição genética do indivíduo, das influências ambientais e da epigenética. Os autoanticorpos do LES são referidos na Figura 349-1 e descritos na Tabela 3 49-1. FIGURA 349-1 Patogênese do lúpus eritematoso sistêmico (LES). A patogênese está relacionada em grande parte à produção de quantidades aumentadas e formas imunogênicas de ácidos nucleicos e outros autoantígenos, os quais direcionam a ativação autoimune-indutora da imunidade inata, dos autoanticorpos e das células T. Interações entre genes, ambiente e alterações epigenéticas levam à intensificação da autofagia, à apresentação de Ag, à netose de neutrófilos, à formação de autoanticorpos com plasmócitos aumentados e à produção de células T efetoras patogênicas em subpopulações de células TH1, TH17 e TFH, com redes regulatórias inefetivas. Os genes confirmados em mais de uma análise de associação genômica ampla em múltiplos grupos raciais que aumentam a suscetibilidade ao LES ou à nefrite lúpica (RR ≥ 1,5) são listados (revisado em Teruel M, Alarcon-Riquelme ME: The genetic basis of systemic lupus erythematosus: What are the risk factors and what have we learned. J Autoimmun 74:161, 2016; e Iwamoto T, Niewold TB: Genetics of human lupus nephritis. Clin Immunol 2016. Epub antes da impressão). A epigenética é revisada em Long H et al: The critical role of epigenetics in systemic lupus erythematosus and autoimmunity, J Autoimmun 2016. Epub antes da impressão. Interações gene-ambiente (revisadas em Barbhaiya M, Costenbader KH: Environmental exposures and the development of systemic lupus erythematosus. Curr Opin Rheumatol 2016. Epub antes da impressão) resultam em respostas imunes geradoras de autoanticorpos patogênicos e imunocomplexos que se depositam nos tecidos, ativam o complemento, induzem a liberação de citocinas e quimiocinas, causando inflamação, e, com o passar do tempo, acarretam danos irreversíveis em órgãos (revisado em Anders HJ, Rovin B: A pathophysiology- based approach to the diagnosis and treatment of lupus nephritis. Kidney Int 90:493, 2016; and Hahn BH: Pathogenesis of SLE, in Dubois Lupus Erythematosus, 8th ed, DJ Wallace, BH Hahn, (eds). Philadelphia, Elsevier, 2013). Ag, antígeno; C1q, sistema complemento; C3, componente do complemento; SNC, sistema nervoso central; DC, célula dendrítica; EBV, vírus Epstein-Barr; HLA, antígeno leucocitário humano; FcR, receptor de ligação da porção Fc da imunoglobulina; IL, interleucina; MCP, proteína quimiotática de monócitos; PTPN, fosfotirosina-fosfatase; UV, ultravioleta; AVC, acidente vascular cerebral. TABELA 349-1 ■ Autoanticorpos no lúpus eritematoso sistêmico (LES) Anticorpos Prevalência (%) Antígeno reconhecido Utilidade clínica Fatores (anticorpos) antinucleares 98 Nuclear múltiplo O melhor teste de rastreamento; testes repetidamente negativos tornam o LES improvável Anti-dsDNA 70 DNA (de fita dupla) Os altos títulos são específicos do LES e, em alguns pacientes, correlacionam-se com a atividade da doença, a nefrite, a vasculite. A imunofluorescência por Crithidia é mais específica para LES do que os métodos de ELISA Anti-Sm 25 Proteína forma complexos com seis espécies do U1 RNA nuclear Específico para LES; sem correlações clínicas definidas; a maioria dos pacientes tem também anti-RNP; mais comum em pessoas negrase asiáticas do que em brancas Anti-RNP 40 Proteína forma complexos com U1 RNA Inespecífico para LES; altos títulos associados a síndromes de sobreposição que mostram características superpostas a várias síndromes reumáticas, incluindo o LES; mais comum em negros do que em brancos; correlacionado com assinatura genética induzida por altos níveis de IFN Anti-Ro (SS-A) 30 Proteína forma complexos com hY RNA, primariamente de 60 kDa e 52 kDa Inespecífico para LES; associado à síndrome “sicca”, predispõe ao lúpus cutâneo subagudo e ao lúpus neonatal com bloqueio cardíaco congênito; associado a menor risco de nefrite Anti-La (SS-B) 10 Proteína de 47 kDa que forma complexos com hY RNA Associado, em geral, ao anti-Ro; associado a menor risco de nefrite Anti-histona 70 Histonas associadas com DNA (em nucleossomo, cromatina) Mais frequente no lúpus fármaco-induzido do que no LES Antifosfolipídeo 50 Fosfolipídeos, cofator da β2- glicoproteína 1 (β2G1), protrombina Três testes disponíveis: ELISAs para a cardiolipina e a β2G1, tempo de protrombina sensível (TVVRD) para o anticoagulante lúpico; predispõe à coagulação, à perda fetal, à trombocitopenia Antieritrócito 60 Membrana dos eritrócitos Medido como teste de Coombs direto; uma pequena proporção desenvolve hemólise evidente Antiplaquetário 30 Antígenos de superfície e citoplasmáticos alterados nas plaquetas Associado à trombocitopenia, porém a sensibilidade e a especificidade são inadequadas; não se trata de um teste clínico útil Antineuronal (inclui receptor antiglutamato 2) 60 Antígenos neuronais e de superfície de linfócito Em algumas séries, um teste positivo com LCS está correlacionado com lúpus ativo no SNC Antirribossomal P 20 Proteína nos ribossomos Em algumas séries, um teste positivo no soro correlaciona-se com depressão ou psicose, devido ao lúpus no SNC Siglas: SNC, sistema nervoso central; LCS, líquido cerebrospinal; TVVRD, teste do veneno de víbora de Russel diluído; ELISA, ensaio imunoabsorvente ligado à enzima; IFN, interferona. O LES é uma doença multigênica. Raros defeitos monogênicos conferem alto risco relativo (RRs) de lesão por LES (5-25), incluindo deficiências homozigotas de componentes iniciais da via do complemento (C1q,r,s; C2; C4) e uma mutação em TREX1 (codificador de DNAase) no cromossomo X. Na maioria dos indivíduos geneticamente suscetíveis, cada um dos alelos normais de múltiplos genes contribui um pouco para as respostas anormais do sistema imune, inflamatórias e de lesão tecidual; se variações suficientes que conferem predisposição estiverem presentes, a doença ocorrerá. Cerca de 60 genes com alelos de risco crescente de LES e/ou nefrite lúpica (exemplos listados na Fig. 34 9-1, que inclui a maioria com RR ≥ 1,5) foram identificados em estudos recentes de associação genômica ampla em diferentes grupos raciais. Individualmente, eles conferem uma RR de LES de 1,5 a 3 e, mesmo em combinação, contribuem para apenas 18% da suscetibilidade à doença, sugerindo que as exposições ambientais e a epigenética têm papéis importantes. As moléculas de antígenos leucocitários humanos (HLAs) apresentadoras de antígeno que conferem predisposição são mais comumente encontradas em múltiplos grupos étnicos (HLA-DRB1 *0301 e *1501 e DR3), bem como em múltiplos genes na região de 120 genes do complexo de histocompatibilidade principal (MHC, de major histocompatibility complex). Os fatores genéticos não HLA são listados na Figur a 349-1 e incluem polimorfismos que afetam as vias de imunidade inata e adaptativa. Observe o amplo número de fatores que influenciam a produção de IFN – o padrão de expressão gênica mais característico de pacientes com LES. Outros genes afetam a eliminação de células apoptóticas ou imunocomplexos, influenciam a aderência dos neutrófilos (ITGAM) e o reparo do DNA (TREX-1). Alguns polimorfismos influenciam as manifestações clínicas, como os polimorfismos de nucleotídeo único (SNPs, de single nucleotide polymorphisms) de STAT4 que estão associados à doença grave, ao anti-DNA, à nefrite e à síndrome antifosfolipídeo (SAF) e um alelo de FCGRIIA codificador de um receptor que se liga fracamente aos imunocomplexos e predispõe à nefrite. Alguns efeitos dos genes são em regiões promotoras (p. ex., IL-10) e outros são conferidos pelo número de cópias (p. ex., C4A, TLR7). Além disso, múltiplas alterações epigenéticas caracterizam o LES, incluindo a hipometilação do DNA em células T CD4+, em células B e em monócitos, incluindo genes que controlam a produção de interferonas tipo 1, além de modificações em histonas. Algumas dessas alterações são mediadas por micro-RNAs associados ao LES, incluindo aqueles que controlam as DNA-metiltransferases (DNMTs), como mIR-146a, que controlam a metilação de DNA em células T CD4+ e a produção de IFN. Alguns polimorfismos gênicos contribuem para diversas doenças autoimunes, como em STAT4 e CTLA4. Todas essas combinações gênicas epigenéticas/transcricionais/polimórficas influenciam as respostas imunes aos ambientes externo e interno; quando tais respostas são excessivamente altas e/ou excessivamente prolongadas e/ou inadequadamente reguladas, a doença autoimune é favorecida. O LES é mais frequente no sexo feminino, com um papel evidente dos efeitos hormonais, dos genes no cromossomo X e das diferenças epigenéticas entre os gêneros. Em muitas espécies de mamíferos, as fêmeas produzem respostas de anticorpos mais altas do que os machos. As mulheres expostas a contraceptivos orais que contêm estrogênio ou que recebem reposição hormonal apresentam risco maior de desenvolvimento de LES (RR 1,2-2). O estradiol liga- se a receptores presentes nos linfócitos T e B, aumentando a ativação e a sobrevida dessas células (especialmente as autorreativas), favorecendo, assim, a ocorrência de respostas imunes prolongadas. Os genes do cromossomo X que influenciam o LES, como o TREX-1, podem desempenhar um papel na predisposição do gênero feminino, possivelmente porque alguns genes localizados no segundo cromossomo X das mulheres não estão silenciados. Indivíduos com cariótipo XXY (síndrome de Klinefelter) apresentam risco significativamente elevado de terem LES. Vários estímulos ambientais podem influenciar o LES (Fig. 349-1). A exposição à luz ultravioleta provoca exacerbações do LES em cerca de 70% dos pacientes, possivelmente por aumentar a apoptose nas células cutâneas ou alterar o DNA e as proteínas intracelulares, de forma a torná-las antigênicas. Algumas infecções e fármacos indutores de lúpus ativam as células T e B autorreativas; se essas células não forem devidamente reguladas, ocorre produção prolongada de autoanticorpos. A maioria dos pacientes com LES apresenta autoanticorpos por pelo menos 3 anos antes do surgimento dos primeiros sintomas de doença, sugerindo que a regulação controla o grau de autoimunidade por vários anos antes das quantidades e das qualidades dos autoanticorpos, das células B e T patogênicas e das células residentes teciduais (p. ex., macrófagos) causarem doença clínica. O vírus Epstein-Barr (EBV) pode ser um agente infeccioso capaz de desencadear LES em indivíduos suscetíveis. Crianças e adultos com LES são mais suscetíveis à infecção pelo EBV do que os indivíduos controles de idade, gênero e etnia equivalentes. O EBV contém sequências de aminoácidos que simulam as sequências observadas nos espliceossomas humanos (antígenos RNA/proteína), frequentemente reconhecidos por autoanticorpos em indivíduos com LES. O tabagismo aumenta o risco de LES (RR 1,5). A exposição ocupacional prolongada à sílica cristalina (p. ex., inalação da poeira de sabão em pó ou do soloem atividades rurais) eleva o risco (RR 4,3) em mulheres negras. O consumo de bebida alcoólica (2 taças de vinho por semana ou meia dose de uma bebida alcoólica qualquer diariamente) diminui o risco de LES. Assim, a interação entre suscetibilidade genética, ambiente, gênero, raça e respostas imunes anormais resulta em autoimunidade (Cap. 348). PATOLOGIA No LES, as biópsias da pele afetada mostram deposição de imunoglobulina (Ig) na junção derme-epiderme (JDE), lesão dos queratinócitos basais e inflamação dominada pelos linfócitos T na JDE e ao redor dos vasos sanguíneos e dos apêndices dérmicos. A pele clinicamente não afetada também pode mostrar deposição de Ig na JDE. Esses padrões são inespecíficos para LES dermatológico, ainda que altamente sugestivos. Nas biópsias renais, o padrão e a gravidade da lesão são importantes para estabelecer o diagnóstico e escolher a melhor terapia. Estudos clínicos mais recentes sobre nefrite lúpica adotaram a classificação da International Society of Nephrology (ISN)/Renal Pathology Society (RPS) (Tab. 349-2). Na classificação ISN/RPS, a adição de um “a”, indicando “ativo”, e de um “c”, indicando “alterações crônicas”, fornece aos médicos informação sobre a potencial reversibilidade da doença. O sistema enfoca a doença glomerular, embora a presença de doença intersticial tubular e vascular e o escore de cronicidade, tanto nos glomérulos como no interstício, sejam importantes para prever os desfechos clínicos. Em geral, a doença de classes III e IV, assim como de classe V acompanhada por doença III ou IV, deve ser tratada sempre que possível com imunossupressão agressiva, dado o alto risco de doença renal em estágio terminal (DRET) em pacientes não tratados ou tratados de maneira insuficiente. Por outro lado, o tratamento para nefrite lúpica não é recomendado para pacientes com doença de classe I ou II ou com alterações extensas e irreversíveis. Nos critérios recentes de classificação do LES da Systemic Lupus International Collaborating Clinic (SLICC), um diagnóstico pode ser estabelecido com base na histologia renal em presença de autoanticorpos lúpicos, dispensando o atendimento a 4 critérios (Tab. 349-3). TABELA 349-2 ■ Classificação da nefrite lúpica (International Society of Nephrology e Renal Pathology Society) Classe I: nefrite lúpica mesangial mínima Glomérulos normais por microscopia óptica, porém imunodepósitos mesangiais detectados por imunofluorescência. Classe II: nefrite lúpica proliferativa mesangial Hipercelularidade puramente mesangial de qualquer grau ou expansão da matriz mesangial à microscopia óptica, com imunodepósitos mesangiais. Alguns depósitos subepiteliais ou subendoteliais isolados podem ser visualizados por imunofluorescência ou microscopia eletrônica, porém não pela microscopia óptica. Classe III: nefrite lúpica focal Glomerulonefrite focal ativa ou inativa, endo ou extracapilar segmentar ou global que acomete ≤ 50% de todos os glomérulos, com imunodepósitos subendoteliais focais, com ou sem alterações mesangiais. Classe III (A): lesões ativas – nefrite lúpica focal proliferativa Classe III (A/C): lesões ativas e crônicas – nefrite lúpica focal proliferativa e esclerosante Classe III (C): lesões crônicas inativas com cicatrizes glomerulares – nefrite lúpica focal esclerosante Classe IV: nefrite lúpica difusa Glomerulonefrite difusa ativa ou inativa, endo ou extracapilar segmentar ou global que acomete ≥ 50% de todos os glomérulos, com imunodepósitos subendoteliais difusos, com ou sem alterações mesangiais. Essa classe é dividida em nefrite lúpica segmentar difusa (IV-S), quando ≥ 50% dos glomérulos acometidos exibem lesões segmentares, e nefrite lúpica global difusa (IV-G), quando ≥ 50% dos glomérulos afetados exibem lesões globais. Segmentar define-se como lesão glomerular que acomete menos da metade do tufo glomerular. Essa classe inclui os casos com depósitos difusos nas alças, porém com pouca ou nenhuma proliferação glomerular. Classe IV-S (A): lesões ativas – nefrite lúpica proliferativa segmentar difusa Classe IV-G (A): lesões ativas – nefrite lúpica proliferativa global difusa Classe IV-S (A/C): lesões ativas e crônicas – nefrite lúpica segmentar difusa proliferativa e esclerosante Classe IV-G (A/C): lesões ativas e crônicas – nefrite lúpica global difusa proliferativa e esclerosante Classe IV-S (C): lesões crônicas inativas com cicatrizes – nefrite lúpica segmentar difusa esclerosante Classe IV-G (C): lesões crônicas inativas com cicatrizes – nefrite lúpica global difusa esclerosante Classe V: nefrite lúpica membranosa Imunodepósitos subepiteliais globais ou segmentares, ou suas sequelas morfológicas, visualizados por microscopia óptica e por imunofluorescência ou microscopia eletrônica, com ou sem alterações mesangiais. A nefrite lúpica de classe V pode ocorrer em combinação com as classes III ou IV, caso em que ambas serão diagnosticadas. A nefrite lúpica de classe V pode mostrar esclerose avançada. Classe VI: nefrite lúpica esclerótica avançada ≥ 90% dos glomérulos globalmente esclerosados sem atividade residual. Nota: indicar e classificar (leve, moderada, grave) a atrofia tubular, a inflamação e a fibrose intersticial, bem como a gravidade da aterosclerose ou de outras lesões vasculares. Fonte: JJ Weening et al.: Kidney Int 65:521, 2004. Reimpressa, com permissão, de Macmillan Publishers Ltd., Copyright 2004. As anormalidades histológicas dos vasos sanguíneos também podem determinar a terapia. Os padrões de vasculite são inespecíficos para LES, mas podem indicar doença ativa: a vasculite leucocitoclástica é mais comum (Cap. 3 56). As biópsias de linfonodos, em geral, são realizadas para descartar a presença de infecção ou de malignidades. No LES, elas apresentam inflamação crônica difusa e inespecífica. DIAGNÓSTICO O diagnóstico de LES baseia-se em elementos clínicos e autoanticorpos característicos. Os critérios atuais de classificação estão listados na Tabela 349- 3, e um algoritmo para o diagnóstico e a terapia inicial são mostrados na Figura 349-2. Os critérios têm por finalidade confirmar o diagnóstico de LES nos pacientes incluídos nos estudos; o autor os aplica a determinados pacientes para estimar a probabilidade de que a doença seja o LES. Qualquer combinação de quatro ou mais critérios, com pelo menos um na categoria clínica e um na imunológica, bem documentados em qualquer período ao longo da história do indivíduo, torna provável que o paciente tenha LES. (A especificidade e a sensibilidade são de cerca de 93 e 92%, respectivamente.) Em muitos pacientes, o número de critérios aumenta com o passar do tempo. Os anticorpos ou fatores antinucleares (FANs) são positivos em mais de 98% dos pacientes no decorrer da evolução da doença; testes repetidamente negativos com métodos de imunofluorescência sugerem que o diagnóstico não é LES, exceto se outros autoanticorpos estiverem presentes (Fig. 349-2). Os anticorpos IgG em altos títulos para o DNA de fita dupla e os anticorpos para o antígeno Sm são específicos de LES e, portanto, favorecem o diagnóstico na presença de manifestações clínicas compatíveis. A presença de múltiplos autoanticorpos em um indivíduo sem sintomas clínicos não deve ser considerada diagnóstica para o LES, porém esse indivíduo apresenta maior risco. FIGURA 349-2 Algoritmo para diagnóstico e terapia inicial do lúpus eritematoso sistêmico (LES). Para diretrizes sobre o tratamento do lúpus e da nefrite lúpica, ver Hahn BH et al.: Arthritis Care Res (Hoboken) 64:797, 2012; Bertsias GK et al: Ann Rheum Dis 71:1771, 2012; Anders HJ, Rovin B: Kidney Int 2016; Sep; 90 (3):493-501. Para detalhes sobre as terapias de manutenção e indução com micofenolatoe ciclofosfamida, ver Henderson L et al.: Cochrane Database Syst Rev 12:CD002922, 2012; Ginzler EM et al: Arthritis Rheum 62:211, 2010; Houssiau FA et al: Ann Rheum Dis 69:61, 2010; e Dooley MA et al: N Engl J Med 365:1886, 2011. Para saber sobre o uso de belimumabe no tratamento, ver Bruce IN et al: Long term organ damage accumulation and safety in patients with SLE treated with belimumab plus standard of care. Lupus 25:699, 2016; Hahn BH: N Eng J Med 368:1528, 2013. Para saber sobre o rituximabe, ver Lightstone L: Lupus 22:390, 2013 e Rovin BH et al: Arthritis Rheum 64:1215, 2012. Sobre o tacrolimo, ver Liu Z et al: Multitarget therapy for induction treatment of lupus nephritis: A randomized trial. Ann Intern Med 162:18, 2015. FAN, fator antinuclear. TABELA 349-3 ■ Critérios da Systemic Lupus International Collaborating Clinic para classificação do lúpus eritematoso sistêmico Manifestações clínicas Manifestações imunológicas Cutâneas LE cutâneo subagudo, agudo (fotossensível, malar, maculopapular, bolhoso) LE cutâneo crônico (lúpus discoide, paniculite, líquen plano-símile, verrucoso hipertrófico, pérnio) Úlceras orais ou nasais Alopécia não cicatricial Sinovite envolvendo ≥ 2 articulações Serosite (pleurisia, pericardite) Renais Prot/Cr ≥ 0,5 Cilindros hemáticos Biópsiaa Neurológicas Convulsões, psicose, mononeurite, mielite, neuropatia periférica ou craniana, estado confusional agudo Anemia hemolítica Leucopenia (< 4.000/μL) ou linfopenia (< 1.000/μL) Trombocitopenia (< 100.000/μL) FAN > valor negativo de referência Anti-dsDNA > referência, quando 2× referência no ELISA Anti-Sm Antifosfolipídeo (qualquer um entre o anticoagulante lúpico, a RPR falso- positiva, a anticardiolipina e a anti-β-glicoproteína I) Complemento sérico baixo (C3, C4 ou CH50) Teste de Coombs direto positivo na ausência de anemia hemolítica aA biópsia renal lida como lúpus sistêmico qualifica para classificação como LES, desde que em presença de qualquer autoanticorpo lúpico, mesmo que menos de 4 critérios sejam atendidos no total. Interpretação: a presença de 4 critérios quaisquer (é necessário pelo menos 1 de cada categoria) qualifica o paciente para ser classificado como tendo LES, com 93% de especificidade e 92% de sensibilidade. O American College of Rheumatology está desenvolvendo novos critérios para o LES. Veja a atualização no website Rheumatology.org. Siglas: FAN, fator antinuclear; Cr, creatinina; LE, lúpus eritematoso; Prot, proteína; RPR, reagina plasmática rápida. Fonte: M Petri et al.: Arthritis Rheum 64:2677, 2012. Como estes critérios são relativamente novos, alguns estudos clínicos atualmente em curso adotam os critérios anteriores do American College of Rheumatology; ver EM Tan et al.: Arthritis Rheum 25:1271, 1982; atualizado por MC Hochberg: Arthritis Rheum 40:1725, 1997. INTERPRETAÇÃO DAS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Quando o diagnóstico de LES é estabelecido, é importante determinar a gravidade e a potencial reversibilidade da enfermidade, assim como estimar as possíveis consequências das várias intervenções terapêuticas. Nos parágrafos seguintes, as descrições de algumas manifestações da doença começam com problemas relativamente leves e progridem para os que representam maior ameaça à vida. VISÃO GERAL E MANIFESTAÇÕES SISTÊMICAS No início, o LES pode acometer um ou vários sistemas orgânicos; com o passar do tempo, podem ocorrer manifestações adicionais (Tabs. 349-3 e 349-4). A maioria dos autoanticorpos característicos de cada pessoa está presente na época em que aparecem as manifestações clínicas (Tabs. 349-1 e 349-3). A gravidade do LES varia de leve e intermitente a grave e fulminante. Cerca de 85% dos pacientes apresentam doença ativa contínua (com o tratamento corrente) ou um ou mais surtos de doença ativa anualmente. Remissões completas permanentes (ausência de sintomas sem tratamento) são raras; no entanto, um baixo nível de atividade da doença na vigência de tratamentos como hidroxicloroquina e/ou dose baixa de prednisona pode ser alcançado em cerca de 35% dos pacientes. Os sintomas sistêmicos, em particular fadiga e mialgias/artralgias, estão presentes na maior parte do tempo. A enfermidade sistêmica grave que torna necessária a terapia com altas doses de glicocorticoides pode ocorrer com febre, prostração, perda de peso e anemia com ou sem outras manifestações dos órgãos-alvo. TABELA 349-4 ■ Manifestações clínicas do LES e prevalência ao longo de todo o curso da doençaa Manifestações Prevalência (%) Sistêmicas: fadiga, mal-estar, febre, anorexia, perda de peso 95 Musculoesqueléticas 95 Artralgias/mialgias 95 Poliartrite não erosiva 60 Deformidade das mãos 10 Miopatia/miosite 25/5 Necrose isquêmica do osso 15 Cutâneas 80 Fotossensibilidade 70 Exantema malar 50 Úlceras orais 40 Alopécia 40 Exantema discoide 20 Erupção de vasculite 20 Outras (p. ex., urticária, lúpus cutâneo subagudo) 15 Hematológicas 85 Anemia (doença crônica) 70 Leucopenia (< 4.000/μL) 65 Linfopenia (< 1.500/μL) 50 Trombocitopenia (< 100.000/μL) 15 Linfadenopatia 15 Esplenomegalia 15 Anemia hemolítica 10 Neurológicas 60 Transtorno cognitivo 50 Transtorno do humor 40 Depressão 25 Cefaleia 25 Convulsões 20 Mono e polineuropatia 15 AVC, AIT 10 Estado de confusão agudo ou distúrbio do movimento 2-5 Meningite asséptica, mielopatia < 1 Cardiopulmonares 60 Pleurisia, pericardite, efusões 30-50 Miocardite, endocardite 10 Pneumonite lúpica 10 Doença arterial coronariana (DAC) 10 Fibrose intersticial 5 Hipertensão pulmonar, SARA, hemorragia < 5 Síndrome de contração pulmonar < 5 Renais 30-50 Proteinúria ≥ 500 mg/24 h, cilindros celulares 30-60 Síndrome nefrótica 25 Doença renal em estágio terminal 5-10 Gastrintestinais 40 Inespecíficas (náuseas, dor leve, diarreia) 30 Enzimas hepáticas anormais 40 Vasculite 5 Trombose 15 Venosa 10 Arterial 5 Oculares 15 Síndrome “sicca” 15 Conjuntivite, episclerite 10 Vasculite 5 aOs números indicam a porcentagem de pacientes que exibe as manifestações em algum momento no decorrer do curso da enfermidade. Siglas: SARA, síndrome da angústia respiratória aguda; LES, lúpus eritematoso sistêmico; AIT, ataque isquêmico transitório; AVC, acidente vascular cerebral. MANIFESTAÇÕES MUSCULOESQUELÉTICAS A maioria das pessoas com LES sofre de poliartrite intermitente, que varia de leve a incapacitante, caracterizada por edema dos tecidos moles e hipersensibilidade nas articulações e/ou nos tendões, mais comumente nas mãos, nos punhos e nos joelhos. As deformidades articulares (mãos e pés) desenvolvem-se em apenas 10%. As observações radiográficas de erosões nas articulações são raras, mas podem ser identificadas por ultrassonografia em 10 a 50% dos pacientes. Alguns indivíduos apresentam artrite do tipo reumatoide com erosões e atendem aos critérios tanto de artrite reumatoide como de LES (“rhupus”). A dor articular é o motivo que mais comumente leva os pacientes a aumentar a dose de glicocorticoides. Se a dor persiste em uma única articulação, como o joelho, o ombro ou o quadril, deve ser aventado o diagnóstico de osteonecrose isquêmica (ONI), em particular na ausência de outras manifestações de LES ativo, uma vez que a prevalência de ONI é aumentada no LES, sobretudo em pacientes tratados com glicocorticoides sistêmicos. Miosite com fraqueza muscular clínica, níveis elevados de creatina-cinase, imagem de ressonância magnética (RM) positiva, bem como necrose muscular e inflamação à biópsia, também podem ocorrer, apesar de a maioria dos pacientes ter mialgias sem miosite franca. As terapias com glicocorticoides (comumente) e as terapias antimaláricas (raramente) podem causar fraquezas musculares; esses efeitos adversos devem ser diferenciados da doença inflamatória ativa. MANIFESTAÇÕES CUTÂNEAS A dermatite lúpica pode ser classificada como aguda, subaguda oucrônica, e existem muitos tipos diferentes de lesões inseridas nesses grupos. O lúpus eritematoso discoide (LED) é a dermatite crônica mais comum no lúpus; as lesões são aproximadamente circulares, com margens eritematosas hiperpigmentadas e escamosas ligeiramente elevadas e centros atróficos despigmentados, nos quais todos os apêndices dérmicos estão permanentemente destruídos. As lesões podem ser desfigurantes, em particular na face e no couro cabeludo. O tratamento consiste principalmente em glicocorticoides tópicos ou injetados localmente e antimaláricos sistêmicos. Apenas 5% das pessoas com LED têm LES (apesar da metade apresentar FAN positivo); no entanto, entre os indivíduos com LES, até 20% têm LED. A erupção cutânea aguda mais comum do LES é um eritema fotossensível ligeiramente elevado, ocasionalmente escamoso, na face (em particular nas bochechas e no nariz – a erupção cutânea em “borboleta”), nas orelhas, no queixo, na região em “V” do pescoço e do tórax, na parte superior do dorso e nas superfícies extensoras dos braços. A piora desse exantema com frequência acompanha uma exacerbação da doença sistêmica. O lúpus eritematoso cutâneo subagudo (LECS) consiste em manchas vermelhas e escamosas semelhantes à psoríase ou em lesões circulares com bordas avermelhadas planas. Os pacientes com essas manifestações são extremamente fotossensíveis e a maioria tem anticorpos anti-Ro (SS-A). Outros exantemas do LES incluem urticária recorrente, dermatite semelhante ao líquen plano, bolhas e paniculite (“lúpus profundo”). As erupções cutâneas podem ser insignificantes ou graves, podendo representar a principal manifestação da doença. Pequenas ulcerações nas mucosas oral ou nasal são comuns no LES; as lesões assemelham-se a úlceras aftosas, podendo ou não ser dolorosas. MANIFESTAÇÕES RENAIS A nefrite costuma ser a manifestação mais grave do LES, em particular porque a nefrite e a infecção são as principais causas de mortalidade na primeira década da doença. Levando-se em consideração que a nefrite é assintomática na maioria dos pacientes com lúpus, um exame de urina deve ser solicitado sempre que houver suspeita de LES. A classificação da nefrite lúpica é principalmente histológica (ver “Patologia”, anteriormente, e Tab. 349-2). A biópsia renal é recomendada para todos os paciente com LES que apresentem qualquer evidência clínica de nefrite; os resultados são usados para planejar terapias em curso e de um futuro próximo. Os pacientes com as formas proliferativas danosas de lesão glomerular (III e IV da ISN) costumam demonstrar hematúria microscópica e proteinúria (> 500 mg por 24 h); cerca de metade desenvolve síndrome nefrótica e a maioria desenvolve hipertensão. Quando a glomerulonefrite proliferativa difusa (GNPD) não é tratada, praticamente todos os pacientes desenvolvem DRET em 2 anos após o diagnóstico. Por isso, é indicada a imunossupressão agressiva (em geral, glicocorticoides sistêmicos mais outro agente imunossupressor), a menos que a lesão seja irreversível (Fig. 3 49-2 e Tab. 349-5). Os negros são mais propensos a desenvolver DRET do que os brancos, mesmo com as terapias mais atualizadas. De modo geral, nos Estados Unidos, cerca de 20% dos indivíduos com GNPD lúpica morrem ou desenvolvem DRET em 10 anos após o diagnóstico. Esses indivíduos necessitam de um controle agressivo do LES e das complicações da doença renal e da terapia. Cerca de 20% dos pacientes que têm LES com proteinúria (em geral, nefrótica) mostram alterações glomerulares membranosas sem alterações proliferativas na biópsia renal. Seu prognóstico é melhor do que o daqueles com GNPD; entretanto, os pacientes com classe V e proteinúria na faixa nefrótica deverão ser tratados da mesma forma que aqueles com doença proliferativa das classes III ou IV. A nefrite lúpica tende a ser uma doença persistente, com exacerbações que requerem um tratamento novo ou intensificado durante muitos anos. Na maioria das pessoas com nefrite lúpica, a aterosclerose acelerada torna- se importante após vários anos de doença; deve-se dar atenção ao controle da inflamação sistêmica, da pressão arterial, da hiperlipidemia e da hiperglicemia. TABELA 349-5 ■ Medicamentos para tratamento do LES Medicamento Faixa da dose Interações medicamentosas Efeitos adversos graves ou comuns AINEs, salicilatos (ácido acetilsalicílicoa) Em geral, são necessárias doses próximas do limite superior da dosagem recomendada A2R/inibidores da ECA, glicocorticoides, fluconazol, metotrexato, tiazídicos AINEs: incidências mais altas de meningite asséptica, enzimas hepáticas elevadas, função renal reduzida, vasculite da pele; a classe inteira, sobretudo os inibidores específicos de COX-2, pode elevar o risco de infarto agudo do miocárdio Salicilatos: ototoxicidade, zumbidos Ambos: eventos e sintomas GI, reações alérgicas, dermatite, vertigem, insuficiência renal aguda, edema, hipertensão Glicocorticoides tópicos Potência média para a face; potência média a alta para outras áreas Nenhuma conhecida Atrofia da pele, dermatite de contato, foliculite, hipopigmentação, infecção Protetores solares tópicos Pelo menos FPS 15; é preferido 30+ Nenhuma conhecida Dermatite de contato Hidroxicloroquinaa (a quinacrina pode ser acrescentada ou substituída) 200-400 mg 1 vez/dia (100 mg 1 vez/dia); não exceder 6,5 mg/kg de peso seco Nenhuma conhecida Lesão de retina, agranulocitose, anemia aplásica, ataxia, miocardiopatia, vertigem, miopatia, ototoxicidade, neuropatia periférica, pigmentação da pele, convulsões, trombocitopenia; a quinacrina geralmente produz uma coloração amarelada difusa na pele DHEA (desidroepiandrosterona) 200 mg, 1 vez/dia Indeterminadas Acne, irregularidades menstruais, altos níveis séricos de testosterona Metotrexato (para dermatite, artrite) 10-25 mg, 1 vez/semana, VO ou SC, com ácido fólico; reduzir a dose quando CrCl < 60 mL/min Acitretina, leflunomida, AINEs e salicilatos, penicilina, probenecida, sulfonamidas, trimetoprima Anemia, supressão da medula óssea, leucopenia, trombocitopenia, hepatotoxicidade, nefrotoxicidade, infecções, neurotoxicidade, fibrose pulmonar, pneumonite, dermatite grave, convulsões, pseudolinfoma Glicocorticoides oraisa (várias marcas específicas foram aprovadas pela FDA para utilização no LES) Prednisona, prednisolona: 0,5-1 mg/kg/dia para LES grave; 0,07- 0,3 mg/kg/dia ou em dias alternados para a doença mais leve A2R/antagonistas da ECA, antiarrítmicos de classe III, ciclosporina, AINEs e Infecção, infecção pelo VZV, hipertensão, hiperglicemia, hipopotassemia, acne, reações alérgicas, ansiedade, osteonecrose asséptica, alterações cushingoides, ICC, pele frágil, insônia, irregularidades menstruais, oscilações do humor, osteoporose, psicose salicilatos, fenotiazinas, fenitoínas, quinolonas, rifampicina, risperidona, tiazídicos, sulfonilureias, varfarina Succinato sódico de metilprednisolona, IVa (aprovado pela FDA para a nefrite lúpica) Para doença grave, 0,5-1 g/dia, IV, por 3 dias Iguais às dos glicocorticoides orais Iguais aos dos glicocorticoides orais (se utilizado repetidamente); anafilaxia Ciclofosfamidab IV Dose baixa (para pessoas brancas com origem na Europa Setentrional): 500 mg a cada 2 semanas em 6 doses; depois disso, iniciar a manutenção com MFM ou AZA Dose alta: 7-25 mg/kg/uma vez ao mês, por 6 meses; considerar a administração de mesna com cada dose Alopurinol, supressores da medula óssea, fatores estimuladores de colônias, doxorrubicina, rituximabe, succinilcolina, zidovudina Infecção, infecção pelo VZV, supressão da medula óssea, leucopenia, anemia, trombocitopenia, cistite hemorrágica (menos comum com administração IV), carcinoma de bexiga, alopécia, náuseas, diarreia, mal-estar, malignidade, insuficiênciasovariana e testicular. A insuficiência ovariana provavelmente não é um problema com baixa dose Oral 1,5-3 mg/kg/dia; reduzir a dose quando CrCl < 25 mL/min Micofenolato de mofetila (MFM)b ou ácido micofenólico (MPA) MFM: 2-3 g/dia, VO, total administrado 2×/dia na terapia de indução; 1-2 g/dia, total administrado 2×/dia na terapia de manutenção; máx. 1 g, 2×/dia, se CrCl < 25 mL/min. Começar com dose baixa e aumentar a cada 1-2 semanas para minimizar os efeitos colaterais GI. Iniciar o tratamento com 0,5 g 2×/dia. MPA: 360-1.080 mg, 2×/dia; cautela quando CrCl < 25 mL/min Aciclovir, antiácidos, azatioprina, resinas ligadoras de ácidos biliares, ganciclovir, ferro, sais, probenecida, contraceptivos orais Infecção, leucopenia, anemia, trombocitopenia, linfoma, distúrbios linfoproliferativos, malignidade, alopécia, tosse, diarreia, febre, sintomas GIs, cefaleia, hipertensão, hipercolesterolemia, hipopotassemia, insônia, edema periférico, enzimas hepáticas elevadas, tremores, erupção cutânea. O prazo limitado sugere que os asiáticos devem iniciar o tratamento com doses que não excedam 2 g por dia para minimizar os eventos adversos Azatioprina (AZA)b 2-3 mg/kg/dia VO na indução; 1-2 mg/kg/dia na manutenção; reduzir frequência da dose se CrCl < 50 mL/min Inibidores da ECA, alopurinol, supressores da medula óssea, interferonas, micofenolato de mofetila, rituximabe, varfarina, zidovudina Infecção, infecção pelo VZV, supressão da medula óssea, leucopenia, anemia, trombocitopenia, pancreatite, hepatotoxicidade, malignidade, alopécia, febre, enfermidade semelhante à gripe, sintomas GIs Belimumabe 10 mg/kg, IV, nas semanas 0, 2 e 4, em seguida, mensalmente, OU 200 mg/semana por via SC IgIV Reações infusionais, alergia, infecções, cefaleia e dores difusas pelo corpo Rituximabe (para pacientes resistentes aos tratamentos acima) 375 mg/m2 por semana × 4 ou 1 g a cada 2 semanas × 2 IgIV Infecção (incluindo LEMP), reações de infusão, cefaleia, arritmias, respostas alérgicas Tacrolimo O nível mínimo no sangue não deve ultrapassar 5,5 ng/mL para minimizar a toxicidade. Iniciar a dose em 2 mg 2×/dia Infecção, nefrotoxicidade, toxicidade neural aIndica que a medicação foi aprovada para ser utilizada no LES pela Food and Drug Administration dos Estados Unidos. bIndica que a medicação foi usada com glicocorticoides nos ensaios que demonstram eficácia. Siglas: A2R, receptor da angiotensina II; ECA, enzima conversora da angiotensina; ICC, insuficiência cardíaca congestiva; CrCl, depuração da creatinina; FDA, Food and Drug Administration; GI, gastrintestinal; IgIV, imunoglobulina intravenosa; AINEs, anti-inflamatórios não esteroides; LEMP, leucoencefalopatia multifocal progressiva; LES, lúpus eritematoso sistêmico; FPS, fator de proteção solar; VZV, vírus varicela-zóster. MANIFESTAÇÕES DO SISTEMA NERVOSO Existem muitas manifestações do LES relacionadas com o sistema nervoso central (SNC) e o sistema nervoso periférico; em alguns pacientes, estas são a principal causa de morbidade e mortalidade. É útil abordar esse aspecto de maneira diagnóstica, perguntando-se primeiro se os sintomas resultam do LES ou de outra condição (como infecção em indivíduos imunossuprimidos ou efeitos colaterais de terapias). Se os sintomas estiverem relacionados com o LES, será preciso determinar se a sua causa é um processo difuso (necessitando de imunossupressão) ou uma doença oclusiva vascular (necessitando de anticoagulação). A manifestação difusa mais comum de lúpus no SNC é a disfunção cognitiva, incluindo dificuldades de memória e raciocínio. As cefaleias também são comuns. Quando lancinantes, frequentemente indicam uma exacerbação do LES; quando mais leves, mostram-se difíceis de diferenciar da enxaqueca ou das cefaleias tipo tensionais. Convulsões de qualquer tipo podem ser causadas pelo lúpus; seu tratamento muito comumente requer terapias anticonvulsivas e imunossupressoras. A psicose pode ser a manifestação dominante do LES e deve ser diferenciada da psicose induzida por glicocorticoides. Esta última, em geral, ocorre nas primeiras semanas de terapia com glicocorticoides, com doses diárias ≥ 40 mg de prednisona ou equivalente; a psicose regride ao longo de vários dias após a redução ou a suspensão dos glicocorticoides. A mielopatia não é rara e, com bastante frequência, mostra-se incapacitante; a iniciação rápida de terapia imunossupressora com doses altas de glicocorticoides constitui o padrão de tratamento. OBSTRUÇÕES VASCULARES – INCLUINDO ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL E INFARTOS AGUDOS DO MIOCÁRDIO A prevalência de ataques isquêmicos transitórios, AVCs e infarto agudo do miocárdio está aumentada em pacientes com LES. Esses eventos vasculares estão aumentados em (porém, não são exclusivos de) pacientes com LES que têm anticorpos contra fosfolipídeos (anticorpos antifosfolipídeos), que estão associados a eventos trombóticos agudos e de hipercoagulabilidade (Cap. 350). A isquemia cerebral pode ser causada por oclusão focal (não inflamatória ou associada à vasculite), por embolização a partir de uma placa na artéria carótida ou, ainda, a partir de vegetações fibrinosas da endocardite de Libman-Sacks. Para esses pacientes, testes apropriados para anticorpos antifosfolipídeos (ver adiante) e para fontes de êmbolos devem ser solicitados com o intuito de estimar a necessidade, a intensidade e a duração das terapias anti-inflamatórias e/ou anticoagulantes. Quando é mais provável que um evento cerebral resulte de um fenômeno de coagulação, a anticoagulação continuada constitui a terapia de escolha. Dois processos podem ocorrer ao mesmo tempo – vasculite e oclusões vasculares leves –, caso em que pode ser apropriado realizar tratamento com anticoagulação aliada à imunossupressão. No LES, os infartos agudos do miocárdio são manifestações primariamente de aterosclerose acelerada. De modo geral, o risco aumentado para eventos vasculares é 3 a 10 vezes maior, e é ainda mais alto em mulheres com < 49 anos. As características associadas ao risco aumentado de aterosclerose são sexo masculino, idade avançada, hipertensão, dislipidemia, diabetes, lipoproteínas de alta densidade disfuncionais pró-inflamatórias, escores altos repetidos para atividade da doença, altas doses cumulativas ou diárias de glicocorticoides e altos níveis séricos de homocisteína e leptina. As terapias com estatina reduzem os níveis de lipoproteínas de baixa densidade (LDLs, de low-density lipoproteins) em pacientes com LES; uma redução significativa de eventos cardíacos pelas estatinas foi demostrada em pacientes com LES submetidos a transplantes renais e recentemente em um estudo epidemiológico envolvendo um grande número de pacientes em Taiwan. MANIFESTAÇÕES PULMONARES A manifestação pulmonar mais comum do LES é a pleurite com ou sem derrame pleural. Essa manifestação, quando leve, pode responder ao tratamento com medicamentos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs); quando mais grave, os pacientes necessitarão de um curso breve de terapia com glicocorticoides. Os infiltrados pulmonares também ocorrem como manifestação do LES ativo, sendo difíceis de distinguir de uma infecção nos exames de imagem. As manifestações pulmonares que ameaçam a vida consistem em inflamação intersticial que evolui para fibrose, síndrome do pulmão encolhido e hemorragia intra-alveolar; todas essas condições provavelmente exigem uma terapia imunossupressora agressiva precoce, assim como tratamento de suporte. A hipertensão de artéria pulmonar ocorre em uma pequena proporção de pacientes com LES e deve ser tratada da mesma forma que a hipertensão pulmonar idiopática. MANIFESTAÇÕES CARDÍACAS A pericardite é a manifestação cardíaca mais frequente; em geral, ela responde à terapia anti-inflamatóriae raramente resulta em tamponamento. As manifestações cardíacas mais graves são a miocardite e a endocardite fibrinosa de Libman-Sacks. O acometimento endocárdico pode resultar em insuficiência valvar, mais comumente das valvas mitral ou aórtica, ou em eventos embólicos. Ainda não foi comprovado se as terapias com glicocorticoides ou outras terapias imunossupressoras levam à melhora da miocardite lúpica ou da endocardite lúpica, porém é conduta habitual administrar doses altas de esteroides combinadas a uma terapia de suporte apropriada para insuficiência cardíaca, arritmia ou eventos embólicos. Como discutido anteriormente, os pacientes com LES apresentam risco aumentado de infarto agudo do miocárdio, em geral devido à aterosclerose acelerada resultante, provavelmente, de ataque imune, inflamação crônica e/ou lesão oxidativa às artérias. MANIFESTAÇÕES HEMATOLÓGICAS A manifestação hematológica mais frequente do LES é a anemia, em geral normocrômica normocítica, que reflete uma enfermidade crônica. A hemólise pode ser de início rápido e grave, tornando necessária a terapia com altas doses de glicocorticoides, eficaz para a maioria dos pacientes. A leucopenia também é comum e quase sempre consiste em linfopenia, mas não em granulocitopenia; a linfopenia raramente predispõe ao surgimento de infecções e, por si só, não costuma necessitar de terapia. A trombocitopenia pode ser um problema recorrente. Se a contagem de plaquetas for > 40.000/μL e não houver sangramento anormal, a terapia poderá não ser necessária. A terapia com altas doses de glicocorticoides (p. ex., 1 mg/kg/dia de prednisona ou equivalente) costuma ser efetiva para os primeiros episódios de trombocitopenia grave. A trombocitopenia ou a anemia hemolítica recorrente ou prolongada, ou ainda outra doença que requeira doses diárias inaceitavelmente altas de glicocorticoides, devem ser tratadas com estratégias adicionais, como rituximabe, fatores de crescimento de plaquetas e/ou esplenectomia (ver “Manejo do lúpus eritematoso sistêmico” adiante). MANIFESTAÇÕES GASTRINTESTINAIS Náuseas, às vezes com vômitos, e diarreia podem ser manifestações de uma exacerbação do LES, assim como dor abdominal difusa provavelmente causada por peritonite autoimune e/ou vasculite intestinal. Os aumentos nos níveis séricos de aspartato-aminotransferase (AST) e alanina-aminotransferase (ALT) são comuns quando o LES é ativo. Em geral, essas manifestações melhoram prontamente durante a terapia sistêmica com glicocorticoides. A vasculite que acomete o intestino pode ser fatal; perfuração, isquemia, sangramento e sepse são complicações frequentes. A terapia imunossupressora agressiva com altas doses de glicocorticoides é recomendada para o controle em curto prazo; a evidência de recidiva constitui uma indicação à adoção de terapias adicionais. MANIFESTAÇÕES OCULARES A síndrome “sicca” (síndrome de Sjögren; Cap. 354) e a conjuntivite inespecífica são comuns no LES, mas raramente ameaçam a visão. Em contrapartida, a vasculite retiniana e a neurite óptica são manifestações sérias: a cegueira pode manifestar-se ao longo de dias a semanas. Recomenda-se a imunossupressão agressiva, apesar de não existirem ensaios controlados capazes de comprovar sua eficácia. As complicações da terapia com glicocorticoides intraorbital e sistêmica incluem cataratas (comuns) e glaucoma. EXAMES LABORATORIAIS Os exames de laboratório servem para (1) estabelecer ou excluir o diagnóstico; (2) acompanhar a evolução da doença, em particular para sugerir a ocorrência de exacerbação ou desenvolvimento de lesão em um órgão; e (3) identificar os efeitos adversos das terapias. TESTES PARA AUTOANTICORPOS (TABS. 349-1 E 349-3) Do ponto de vista diagnóstico, os autoanticorpos mais importantes a serem identificados são os FANs, visto que o teste é positivo em > 95% dos pacientes, em geral no início dos sintomas. Alguns pacientes desenvolvem FAN em até 1 ano após o início dos sintomas; assim, a repetição dos testes pode ser útil. Os testes de FAN utilizando métodos de imunofluorescência são mais confiáveis do que os ensaios imunoabsorventes ligados à enzima (ELISAs, de enzyme-linked immunosorbent assays) e/ou os ensaios beads, que apresentam menos especificidade. O lúpus FAN-negativo existe, porém é raro em adultos e, em geral, está associado a outros autoanticorpos (anti-Ro ou anti-DNA). Os altos títulos dos anticorpos IgG para o DNA de fita dupla (dsDNA, de double- stranded DNA) (porém não para o DNA de fita simples) são específicos para LES. As reações no ELISA e na imunofluorescência do soro com o dsDNA do flagelado Crithidia luciliae apresentam sensibilidade aproximada de 60% para LES. Os títulos de anti-dsDNA variam com o passar do tempo. Em alguns pacientes, os aumentos nas quantidades de anti-dsDNA prenunciam uma exacerbação, em particular da nefrite ou da vasculite, principalmente quando associados a níveis reduzidos dos complementos C3 ou C4. Anticorpos anti-Sm também são específicos para o LES e auxiliam no diagnóstico; anticorpos anti- Sm em geral não se correlacionam com a atividade da doença ou com as manifestações clínicas. Os anticorpos antifosfolipídeos são inespecíficos para LES, porém sua presença atende a um critério de classificação e identifica pacientes que apresentam risco aumentado de coagulação venosa ou arterial, trombocitopenia e perda fetal. Existem três testes amplamente aceitos que medem diferentes anticorpos (anticardiolipina, anti-β2-glicoproteína e anticoagulante lúpico). O ELISA é usado para anticardiolipina e anti-β2- glicoproteína (ambos padronizados internacionalmente com boa reprodutibilidade); um tempo de protrombina ativada sensível baseado em fosfolipídeo, como o teste do veneno de víbora de Russel, é usado para identificar o anticoagulante lúpico. Quanto mais altos os títulos de IgG anticardiolipina (> 40 UI é um valor considerado alto) e quanto maior o número de diferentes anticorpos antifosfolipídeos detectados, maior será o risco de um possível episódio clínico de trombose. As quantidades de anticorpos antifosfolipídeos podem variar acentuadamente com o passar do tempo; repetir os testes é justificável quando aparecem as manifestações clínicas da SAF (Cap. 350). Para classificar um paciente com SAF, com ou sem LES, de acordo com os critérios internacionais, é necessária a ocorrência de perdas fetais repetidas e/ou um ou mais episódios de trombose, além de pelo menos dois testes positivos para anticorpos antifosfolipídeos, com um intervalo mínimo de 12 semanas; entretanto, muitos pacientes com SAF não se encaixam nesses critérios rigorosos, que são destinados à inclusão de pacientes nos estudos. Um teste adicional de autoanticorpos com valor preditivo (não usado para fazer o diagnóstico) detecta anti-Ro/SS-A, indicativo de risco aumentado de lúpus neonatal, síndrome “sicca” e LECS. Mulheres em idade fértil com LES devem passar por triagem para anticorpos antifosfolipídeos e anti-Ro, uma vez que ambos são potenciais causadores de lesão fetal. TESTES PADRONIZADOS PARA O DIAGNÓSTICO Os testes de rastreamento para hemograma completo, contagem de plaquetas e exame de urina podem identificar as anormalidades que contribuem para o diagnóstico e influenciam as decisões terapêuticas. TESTES PARA ACOMPANHAR A EVOLUÇÃO DA DOENÇA É útil acompanhar os testes que indicam o estado de envolvimento orgânico que comprovadamente ocorre durante as exacerbações do LES. Isso inclui a urinálise para detecção dehematúria e proteinúria, determinação dos níveis de hemoglobina, contagem de plaquetas e determinação dos níveis séricos de creatinina ou albumina. Existe um grande interesse na identificação de marcadores adicionais de atividade da doença. São candidatos os níveis de anticorpos anti-DNA e anti-C1q, vários componentes do complemento (o C3 é o mais amplamente disponível), os produtos do complemento ativados (um ensaio disponível comercialmente que mede a ligação ao receptor C4d nos eritrócitos e nas células B), a expressão gênica induzida por IFN em células sanguíneas periféricas, os níveis séricos de BLyS (estimulador de linfócito B, também chamado BAFF) e os níveis urinários de indutor fraco de apoptose TNF-símile (TWEAK), a lipocalina associada à gelatinase neutrofílica (NGAL, de neutrophil gelatinase-associated lipocalin) ou a proteína quimiotática de monócitos 1 (MCP-1). Não existe concordância uniforme acerca de um indicador confiável de exacerbação ou resposta às intervenções terapêuticas. É provável que um painel de múltiplas proteínas e produtos nucleares (e, possivelmente, dos níveis de miRNAs selecionados e dos perfis de metilação de DNA) seja desenvolvido para prever tanto uma exacerbação iminente como uma resposta às terapias recém-instituídas. As quantidades aumentadas de plasmócitos e a expressão aumentada de suas assinaturas genéticas no sangue total estão associadas com a doença ativa e as exacerbações, porém não há determinações quantitativas disponíveis comercialmente. Atualmente, o médico tem de determinar para cada paciente se certas alterações detectadas por exames laboratoriais são preditivas de exacerbação (queda do complemento, elevação de anti-DNA, proteinúria aumentada, piora da anemia, etc.). Em caso afirmativo, foi mostrado que pode ser aconselhável uma alteração na terapia em resposta a essas modificações (foi demonstrado que 30 mg de prednisona/dia por 2 semanas previne exacerbações em pacientes com elevação no anti-DNA com redução no complemento). Além disso, diante da maior prevalência da aterosclerose no LES, é aconselhável obedecer às recomendações do National Cholesterol Education Program para os testes e o tratamento, incluindo os escores do LES como um fator de risco independente, à semelhança do que é feito para o diabetes melito. MANEJO DO LÚPUS ERITEMATOSO SISTÊMICO Não existe cura para o LES, e as remissões completas persistentes são raras. Esforços internacionais são empreendidos no sentido de encorajar profissionais e pacientes a terem como alvo um baixo nível de atividade da doença (sintomas leves com as menores doses possíveis de medicações), que pode ser alcançado durante pelo menos um ano por 30 a 50% dos pacientes com LES. Por isso, o médico deve planejar induzir as remissões de surtos agudos e, então, manter as melhoras com estratégias que suprimam os sintomas a um nível aceitável e evitem a lesão dos órgãos. As escolhas terapêuticas dependem de (1) se as manifestações da doença ameaçam a vida ou comportam a probabilidade de acarretar lesão aos órgãos, justificando as terapias agressivas; (2) se as manifestações são potencialmente reversíveis; e (3) se são as melhores abordagens para prevenir as complicações da doença e de seus tratamentos. As terapias, as doses e os efeitos adversos estão listados na Tabela 349-5. TERAPIAS CONSERVADORAS PARA O TRATAMENTO DA DOENÇA NÃO POTENCIALMENTE FATAL Entre os pacientes com fadiga, dor e autoanticorpos indicativos de LES, porém sem comprometimento significativo de órgãos, o tratamento pode ter como meta a supressão dos sintomas. Os analgésicos e os antimaláricos são elementos fundamentais. Os AINEs são analgésicos/anti-inflamatórios úteis, em particular para artrite/artralgias. Todavia, dois problemas importantes apontam a necessidade de cautela ao se utilizar os AINEs. Primeiro, os pacientes com LES, em comparação com a população geral, apresentam maior risco de meningite asséptica induzida por AINEs, de transaminases séricas elevadas, de hipertensão e de disfunção renal. Segundo, todos os AINEs, em particular os que inibem especificamente a cicloxigenase 2, podem elevar o risco de infarto agudo do miocárdio. O paracetamol, usado para o controle da dor, pode ser uma boa estratégia, porém os AINEs são mais efetivos em alguns pacientes. Seus riscos relativos, em comparação com a terapia com pequenas doses de glicocorticoides, ainda não foram estabelecidos. Os antimaláricos (hidroxicloroquina, cloroquina e quinacrina) costumam reduzir a dermatite, a artrite e a fadiga. Um ensaio prospectivo randomizado controlado por placebo mostrou que a suspensão da hidroxicloroquina leva a um maior número de episódios de exacerbação da doença; a hidroxicloroquina também reduz a quantidade de lesão tecidual, incluindo lesão renal, ao longo do tempo. Alguns especialistas recomendam níveis sanguíneos de hidroxicloroquina ≥ 750 ng/mL para otimizar respostas no LES; após alcançar as respostas, as doses devem ser diminuídas. Devido à potencial toxicidade retiniana (que ocorre em 6% dos pacientes após o recebimento de doses cumulativas de 1.000 g, com aproximadamente 5 anos de terapia contínua), os pacientes que recebem antimaláricos devem passar por exames oftalmológicos anuais. Um estudo prospectivo controlado por placebo sugere que a administração de desidroepiandrosterona pode reduzir a atividade da doença. Se a qualidade de vida for inadequada, apesar dessas medidas conservadoras, será necessário recorrer ao tratamento com pequenas doses de glicocorticoides sistêmicos. Belimumabe é efetivo para 50% dos pacientes com fadiga, erupção e/ou artrite do LES; ele é caro, portanto seu uso somente deve ser considerado após outras abordagens terem fracassado ou não terem sido toleradas. Pacientes com LES com maior propensão a responder ao belimumabe apresentam intensa atividade clínica (escore do Índice de Atividade do Lúpus Eritematoso Sistêmico [SLEDAI, de Systemic Lupus Erythematosus Disease Activity Index] ≥ 10), anti-DNA reagente e níveis séricos baixos de complemento. O SLEDAI é uma medida amplamente utilizada de atividade do LES; valores > 3 refletem uma doença clinicamente ativa. A dermatite lúpica deverá ser tratada com filtros solares tópicos, antimaláricos, glicocorticoides tópicos e/ou tacrolimo; em casos graves ou na ausência de resposta, o tratamento é feito com glicocorticoides sistêmicos com ou sem micofenolato de mofetila, azatioprina ou belimumabe. LES POTENCIALMENTE FATAL: FORMAS PROLIFERATIVAS DE NEFRITE LÚPICA Normas para o tratamento da nefrite lúpica foram publicadas recentemente pelo American College of Rheumatology e pela European League Against Rheumatism (mostradas e referenciadas na Fig. 349-2 e na Tab. 349-5). A base do tratamento para quaisquer manifestações inflamatórias do LES ameaçadoras à vida ou a um órgão são os glicocorticoides sistêmicos (0,5-1 mg/kg/dia por VO ou 500-1.000 mg de succinato sódico de metilprednisolona IV, diariamente, por 3 dias, seguidos de 0,5-1 mg/kg/dia de prednisona ou equivalente). A evidência de que a terapia com glicocorticoides salva vidas é dada por estudos retrospectivos realizados na pré-diálise; a sobrevida foi significativamente maior em indivíduos com GNPD tratados com altas doses diárias de glicocorticoides (40-60 mg de prednisona, diariamente, durante 4-6 meses) versus doses menores. Atualmente, as altas doses são recomendadas por períodos muito mais curtos; estudos recentes sobre as intervenções para LES grave utilizam 0,5 a 1 mg/kg/dia de prednisona ou equivalente por 4 a 6 semanas. Daí emdiante, as doses devem ser reduzidas rapidamente, conforme a situação clínica permitir, em geral até uma dose de manutenção que varia de 5 a 10 mg de prednisona ou equivalente ao dia. A maioria dos pacientes com um episódio de LES grave necessita de muitos anos de terapia de manutenção com doses baixas de glicocorticoides, que podem ser aumentadas para prevenir ou tratar as exacerbações da doença. São recomendadas tentativas frequentes de reduzir gradualmente a necessidade de glicocorticoides, uma vez que quase todos os pacientes desenvolvem efeitos adversos significativos (Tab. 349-5). Não há estudos clínicos de alta qualidade sobre o início da terapia para LES grave ativo com pulsos IV de doses altas de glicocorticoides. Ensaios clínicos mais recentes em nefrite lúpica classe IV iniciaram a terapia com pulsos IV de dose alta de glicocorticoides (500-1.000 mg/dia por 3-5 dias). Essa abordagem deve ser balanceada por considerações acerca da segurança, tais como a presença de condições que são afetadas negativamente por glicocorticoides (p. ex., infecção, hiperglicemia, hipertensão, osteoporose). Um estudo clínico em andamento está avaliando o uso combinado de micofenolato de mofetila com rituximabe sem glicocorticoides diários de manutenção no tratamento da nefrite lúpica: se os resultados forem positivos, o paradigma para o manejo em longo e curto prazos do LES provavelmente mudará. Os agentes citotóxicos/imunossupressores acrescentados aos glicocorticoides são recomendados para tratar o LES grave. Quase todos os ensaios controlados prospectivos no LES envolvendo agentes citotóxicos foram conduzidos em combinação com os glicocorticoides em pacientes com nefrite lúpica. Por isso, as recomendações a seguir se aplicam ao tratamento da nefrite. Tanto a ciclofosfamida (um agente alquilante) quanto o micofenolato de mofetila (um inibidor da inosina-monofosfatase relativamente específico para linfócitos e, portanto, também um inibidor da síntese das purinas) representam uma escolha aceitável para induzir a melhora de pacientes gravemente enfermos; a azatioprina (um análogo das purinas e antimetabólito específico do ciclo das purinas) pode ser eficaz, porém está associada a um número maior de surtos. Nos pacientes cujas biópsias renais mostram doença de grau III ou IV da ISN, o tratamento precoce com combinações de glicocorticoides e ciclofosfamida reduz a progressão para DRET e morte. Estudos de curto prazo com glicocorticoides mais micofenolato de mofetila (estudos randomizados prospectivos de 6 meses, com acompanhamento de 5 anos) mostram que esse regime é semelhante à ciclofosfamida para alcançar uma melhora. As comparações são complicadas pelos efeitos étnicos, já que maiores proporções de negros (e outras raças não asiáticas e não brancas) respondem melhor ao micofenolato do que à ciclofosfamida, ao passo que brancos e asiáticos respondem de maneira semelhante a cada fármaco. Em relação à toxicidade, diarreia é mais comum com o uso de micofenolato de mofetila; amenorreia, leucopenia e náuseas são mais comuns com doses altas de ciclofosfamida. É importante mencionar que as taxas de infecções graves e de morte são semelhantes nas metanálises. Dois diferentes regimes de administração IV de ciclofosfamida estão disponíveis. No caso dos pacientes brancos com origem na Europa Setentrional, doses baixas de ciclofosfamida (500 mg a cada 2 semanas, em um total de 6 doses, seguidas de manutenção com azatioprina ou micofenolato) são tão eficazes quanto as altas doses-padrão, com menos toxicidade. Um seguimento de 10 anos mostrou que não há diferenças entre os grupos tratados com doses altas e os tratados com doses baixas (morte ou DRET em 9-20% dos pacientes em cada grupo). Não está claro se os dados se aplicam a populações dos Estados Unidos, em particular a negros e hispânicos. A administração de doses altas de ciclofosfamida (500- 1.000 mg/m2 de área de superfície corporal, administradas mensalmente por via IV, durante 6 meses, seguidas de manutenção com azatioprina ou micofenolato) é uma abordagem aceitável para pacientes com nefrite grave (p. ex., múltiplos crescentes celulares e/ou necrose fibrinoide na biópsia renal ou glomerulonefrite de progressão rápida). As respostas à ciclofosfamida e ao micofenolato iniciam- se em 3 a 16 semanas após o início do tratamento, ao passo que as respostas aos glicocorticoides podem surgir em 24 horas. Para a terapia de manutenção, o micofenolato e a azatioprina provavelmente são semelhantes em eficácia e toxicidade; ambos são mais seguros que a ciclofosfamida. Em um estudo multicêntrico recentemente publicado, o micofenolato foi superior à azatioprina na manutenção da função renal e da sobrevida de pacientes que responderam à terapia de indução com ciclofosfamida ou micofenolato. A incidência de insuficiência ovariana, efeito comum da terapia com dose alta de ciclofosfamida (que provavelmente não ocorre na terapia com dose baixa), pode ser reduzida pelo tratamento com agonista de hormônio liberador de gonadotrofina (p. ex., 3,75 mg de leuprolida por via intramuscular) antes de cada dose mensal de ciclofosfamida. Os pacientes com altos níveis séricos de creatinina (p. ex., ≥ 265 μmol/L [≥ 3,0 mg/dL]) com duração de muitos meses e altos escores de cronicidade nas biópsias renais provavelmente não responderão a nenhuma dessas terapias. Em geral, pode ser mais interessante induzir a melhora em um paciente negro ou hispânico com glomerulonefrite proliferativa usando micofenolato de mofetila (2-3 g/dia), em vez de ciclofosfamida, com a opção de alterar o tratamento caso não seja detectada nenhuma evidência de resposta após 3 a 6 meses. No caso de brancos e asiáticos, a indução tanto com micofenolato de mofetila como com ciclofosfamida é aceitável. A ciclofosfamida poderá ser interrompida quando estiver claro que o paciente está melhorando. O número de exacerbações de LES é reduzido pela terapia de manutenção com micofenolato de mofetila (1,5-2 g/dia) ou azatioprina (1-2,5 mg/kg/dia). Tanto a ciclofosfamida quanto o micofenolato de mofetila são potencialmente teratogênicos; as pacientes deverão ter a medicação interrompida por pelo menos 3 meses antes de tentar engravidar. A azatioprina poderá ser usada quando necessário para controlar o LES ativo em pacientes grávidas. Se a azatioprina for utilizada para terapia de indução ou manutenção, as pacientes devem passar por uma pré-triagem para deficiência homozigótica da enzima TPMT (necessária para metabolizar o produto da azatioprina, a 6-mercaptopurina), visto que apresentam risco aumentado de supressão da medula óssea. Ocorre melhora significativa em cerca de 80% dos pacientes com nefrite lúpica que recebem ciclofosfamida ou micofenolato em 1 a 2 anos de seguimento. No entanto, em alguns estudos, pelo menos 50% desses indivíduos exibem exacerbações da nefrite dentro dos 5 anos seguintes, tornando necessário repetir o tratamento; esses indivíduos são mais propensos a progredir para DRET. O prognóstico de longo prazo da nefrite lúpica é melhor para as pessoas brancas do que para as negras. O metotrexato (um antagonista do ácido folínico) pode ter um papel no tratamento da artrite e da dermatite, mas é provável que esse efeito não seja observado na nefrite ou em outra doença que represente ameaça à vida. Pequenos estudos controlados (na Ásia) com leflunomida, um antagonista de pirimidina relativamente específico para linfócitos licenciado para ser utilizado na artrite reumatoide, sugeriram que essefármaco pode suprimir a atividade da doença em alguns pacientes com LES. A ciclosporina e o tacrolimo, que inibem o fluxo de cálcio e, consequentemente, a produção de IL-2 e as funções dos linfócitos T, não foram avaliados em estudos controlados prospectivos sobre LES nos Estados Unidos; vários estudos conduzidos na Ásia mostraram que ambos são efetivos na nefrite lúpica. Um recente estudo conduzido na China mostrou que uma combinação de dose baixa de micofenolato de mofetila (1 g/dia) mais tacrolimo (4 mg/dia) mais prednisona (pulso seguido de 0,6 mg/kg/dia) promoveu uma taxa de resposta mais satisfatória do que o uso de uma dose alta de ciclofosfamida. Como os bloqueadores de calcineurina têm potencial nefrotoxicidade e produzem pouca toxicidade sobre a medula óssea, o autor os utiliza apenas por períodos de poucos meses em pacientes com as citopenias esteroide-resistentes do LES, em pacientes com resistência aos esteroides que desenvolveram supressão da medula óssea a partir de agentes citotóxicos padrão ou, ainda, em pacientes com LES ativo mesmo sob tratamento com micofenolato ou ciclofosfamida. A maioria dos pacientes com LES de qualquer tipo deve ser tratada com hidroxicloroquina, uma vez que esse fármaco previne o dano à pele e aos rins, além de diminuir os escores gerais de lesão. Pacientes com proteinúria > 500 mg/dia devem receber inibidores de ECA ou BRAs, que minimizam a probabilidade de DRET. O uso de agentes biológicos contra as células B para o LES ativo está sob intensa investigação. O uso de anti-CD20 (rituximabe), em particular em pacientes com LES resistentes às terapias combinadas padronizadas, discutidas anteriormente, é controverso. Alguns estudos abertos demonstraram eficácia na maioria desses pacientes, tanto para nefrite quanto para lúpus extrarrenal. Entretanto, recentemente, ensaios randomizados prospectivos controlados com placebo, um sobre LES renal e outro sobre LES não renal, falharam em mostrar diferença entre os grupos tratados com anti-CD20 e os tratados com placebo em adição às terapias combinadas padronizadas. O belimumabe, cujo uso foi aprovado pela FDA para LES na ausência de doença renal ativa (em que a indicação consiste em LES sorologicamente positivo que falhou em responder aos tratamentos-padrão), está sendo investigado em estudos clínicos para nefrite lúpica ativa. Fármacos que destroem plasmócitos, usados no mieloma múltiplo, estão sendo estudados no LES, assim como moléculas e anticorpos que previnem a ativação de celulas B e/ou T, como os inibidores de Jak/Stat. CONDIÇÕES ESPECIAIS NO LES QUE PODEM EXIGIR TERAPIAS ADICIONAIS OU DISTINTAS Nefrite lúpica crescente A presença de crescentes celulares ou fibróticos nos glomérulos com glomerulonefrite proliferativa indica um prognóstico pior do que o de pacientes sem essa característica. Não existem ensaios controlados prospectivos multinacionais amplos mostrando eficácia de ciclofosfamida, micofenolato, ciclosporina ou tacrolimo nesses casos. A maioria das autoridades recomenda o uso de dose alta de ciclofosfamida como terapia de indução de escolha; há evidências de que o micofenolato de mofetila em dose alta é igualmente efetivo. Nefrite lúpica membranosa A maioria dos pacientes com LES e nefrite membranosa (INS-V) também apresenta alterações proliferativas e deve receber tratamento para doença proliferativa. Entretanto, alguns apresentam alterações membranosas puras. O tratamento para esse grupo é menos definido. Algumas autoridades somente recomendam imunossupressão para casos em que a proteinúria esteja na faixa nefrótica (embora seja recomendado o tratamento com inibidores da enzima conversora da angiotensina ou com bloqueadores do receptor da angiotensina II). Nesses pacientes, estudos recentes controlados prospectivos sugerem que o uso em dias alternados de glicocorticoides mais ciclofosfamida ou micofenolato de mofetila ou ciclosporina seja eficaz na redução da proteinúria para a maioria dos pacientes. Existem mais controvérsias quanto a esses agentes preservarem ou não a função renal em longo prazo. Gravidez e lúpus As taxas de fertilidade de homens e mulheres com LES provavelmente são normais. No entanto, a taxa de perda fetal é aumentada (cerca de 2-3 vezes) em mulheres com LES. A morte fetal é mais alta em mães com alta atividade da doença, anticorpos antifosfolipídeos (sobretudo anticoagulante lúpico), hipertensão e/ou nefrite ativa. A supressão da atividade da doença pode ser conseguida pela administração de glicocorticoides sistêmicos. Uma enzima placentária, a 11-β-desidrogenase 2, desativa os glicocorticoides e é mais eficaz para desativar a prednisona e a prednisolona do que os glicocorticoides fluorados dexametasona e betametasona. Os glicocorticoides são listados pela FDA como categoria A para a gravidez (nenhuma evidência de teratogenicidade em estudos com seres humanos); a ciclosporina, o tacrolimo e o rituximabe são listados como categoria C (podem ser teratogênicos em animais, porém não há evidências comprovadas em seres humanos); a azatioprina, a hidroxicloroquina, o micofenolato de mofetila e a ciclofosfamida são da categoria D (existem evidências de teratogenicidade em seres humanos, porém os benefícios poderão suplantar os riscos em algumas situações); e o metotrexato é da categoria X (os riscos ultrapassam os benefícios). Por isso, o LES ativo em mulheres grávidas deverá ser controlado com hidroxicloroquina e, quando necessário, prednisona/prednisolona nas menores doses efetivas pelo menor período necessário. A azatioprina pode ser adicionada quando esses tratamentos não suprimirem a atividade da doença. Os efeitos adversos sobre o feto da exposição pré-natal a um glicocorticoide (principalmente da betametasona, que não é recomendada) podem incluir peso baixo ao nascer, anormalidades de desenvolvimento no SNC e certa tendência pela síndrome metabólica na idade adulta. É provável que cada um desses glicocorticoides e medicamentos imunossupressores penetre no leite materno, pelo menos em baixos níveis; as pacientes devem considerar a possibilidade de não amamentar, caso precisem de tratamento para LES. Estudos prospectivos controlados demonstraram que em pacientes com LES com anticorpos antifosfolipídeos que tenham perda fetal prévia, o tratamento com heparina (em geral, de baixo peso molecular) combinado com ácido acetilsalicílico em dose baixa aumenta significativamente a proporção de nascimentos vivos. O ácido acetilsalicílico pode ser usado de modo isolado, embora, na maioria dos casos, seja considerado o uso combinado de heparina mais ácido acetilsalicílico. A varfarina é teratogênica. Estudos usando inibidores da trombina e do fator Xa, por via oral, estão sendo conduzidos para SAFs; contudo, seu papel na prevenção da perda fetal é indeterminado. Outro possível problema adicional para o feto é a presença de anticorpos anti-Ro, às vezes associados ao lúpus neonatal, consistindo em erupções cutâneas e bloqueio cardíaco congênito com ou sem miocardiopatia. As manifestações cardíacas podem ser fatais; por isso, a presença de anti-Ro torna necessário o monitoramento cuidadoso da frequência cardíaca fetal, com intervenção imediata (indução do parto, se possível) em caso de sofrimento fetal. Evidências recentes mostram que, em uma mãe positiva para anti-Ro cujo bebê desenvolve bloqueio cardíaco congênito, o tratamento com hidroxicloroquina reduz significativamente a probabilidade de os fetos subsequentes desenvolverem bloqueio cardíaco. Existemalgumas evidências de que o tratamento com dexametasona de uma mãe que teve bloqueio cardíaco fetal de primeiro ou segundo grau detectado in utero ocasionalmente previne a progressão do bloqueio cardíaco. As mulheres com LES costumam tolerar a gestação sem exacerbações da doença. No entanto, uma pequena proporção desenvolve exacerbações graves, que levam à necessidade de terapia agressiva com glicocorticoides ou de indução prematura do parto. Lúpus e síndrome antifosfolipídeo Pacientes com LES que sofrem trombose venosa ou arterial e/ou perdas fetais repetidas e têm pelo menos dois testes positivos para anticorpos antifosfolipídeos apresentam síndrome antofosfolipídeo (SAF) e devem ser tratados com anticoagulação prolongada (C ap. 350). Com a varfarina, uma razão normalizada internacional (INR, de international normalized ratio)-alvo de 2,0 a 2,5 é recomendada para pacientes com um episódio de trombose venosa; uma INR de 3,0 a 3,5 é recomendada para pacientes com tromboses recorrentes ou arterial, em particular no SNC. As recomendações baseiam-se em estudos tanto retrospectivos quanto prospectivos de eventos de coagulação pós-tratamento e efeitos adversos da anticoagulação. Os inibidores de trombina e de fator Xa estão sendo estudados. Crise trombótica microvascular (púrpura trombocitopênica trombótica, síndrome hemolítico-urêmica) Esta síndrome de hemólise, trombocitopenia e trombose microvascular nos rins, no cérebro e em outros tecidos está associada a uma alta taxa de mortalidade, ocorrendo mais comumente em indivíduos jovens com nefrite lúpica. Os exames de laboratório mais úteis são a identificação de esquisócitos nos esfregaços de sangue periférico, os níveis séricos elevados de lactato-desidrogenase e os anticorpos anti-ADAMS13. A troca de plasma ou uma plasmaférese extensa, em geral, salvam vidas; a maioria das autoridades recomenda a terapia concomitante com glicocorticoides; não existe evidência de que os medicamentos citotóxicos sejam eficazes. Dermatite lúpica Os pacientes com qualquer forma de dermatite lúpica devem minimizar a exposição à luz ultravioleta, vestindo roupas apropriadas e utilizando protetores solares com um fator de proteção de pelo menos 30. Os glicocorticoides tópicos e os antimaláricos (como a hidroxicloroquina) são efetivos na redução da gravidade das lesões na maioria dos pacientes e são relativamente seguros. O tratamento sistêmico com ácido retinoico constitui uma estratégia útil para os pacientes com melhora inadequada induzida por glicocorticoides e antimaláricos tópicos; os efeitos adversos são potencialmente graves (em particular as anormalidades fetais), e existem estritas exigências para sua utilização nos Estados Unidos. As dermatites extensas, pruriginosas, bolhosas ou ulcerativas costumam melhorar prontamente após a instituição dos glicocorticoides sistêmicos; a redução progressiva da posologia pode ser acompanhada por exacerbação das lesões, o que torna necessária a utilização de uma segunda medicação, como a hidroxicloroquina, os retinoides ou o belimumabe. Medicações citotóxicas, como o metotrexato, a azatioprina ou o micofenolato de mofetila, também podem ser efetivas. Sobre a dermatite lúpica resistente à terapia, há relatos de sucesso com tacrolimo tópico (convém ter cautela, dado o possível risco aumentado de malignidades) ou com dapsona ou talidomida sistêmicas (o extremo perigo de deformidades fetais causadas pela talidomida leva à necessidade de permissão e supervisão por parte do fornecedor; a neuropatia periférica também é comum). TERAPIAS PREVENTIVAS A prevenção das complicações do LES e de sua terapia consiste na realização de vacinações apropriadas (a administração de vacinas contra influenza e pneumococos foi estudada em pacientes com LES; as taxas de exacerbação são semelhantes àquelas observadas em receptores de placebo) e na supressão de infecções recorrentes do trato urinário. Em pacientes que recebem glicocorticoides, quanto maior for a dose diária, menor será a resposta imune à vacinação; entretanto, a grande maioria dos pacientes alcança níveis protetores. A vacinação com vírus vivos atenuados geralmente é desencorajada para pacientes imunossuprimidos; no entanto, um estudo recente sobre vacinação com zostavax de um pequeno número de pacientes com LES apresentou segurança e eficácia. As estratégias destinadas a prevenir a osteoporose devem ser iniciadas na maioria dos pacientes com probabilidade de necessitar de terapia com glicocorticoides em longo prazo e/ou com outros fatores predisponentes. Mulheres na pós-menopausa podem ser parcialmente protegidas da osteoporose induzida por esteroides com suplementação de cálcio, vitamina D e bisfosfonatos ou denosumabe. A segurança do uso prolongado dessas estratégias em mulheres que ainda não chegaram à menopausa não está bem estabelecida. São recomendados o controle da hipertensão e estratégias preventivas apropriadas para aterosclerose, como o monitoramento e o tratamento das dislipidemias, além do controle da hiperglicemia e da obesidade. Há evidências crescentes de que as terapias à base de estatina podem diminuir o número de mortes por eventos cardíacos em pacientes com LES. Por fim, o médico deve ter em mente que a incidência de alguns cânceres é aumentada em pacientes com LES, incluindo linfomas não Hodgkin e cânceres de tireoide, pulmão, fígado e tecidos vulvo-vaginais. TERAPIAS EXPERIMENTAIS Estudos sobre terapias experimentais altamente direcionadas para o LES estão em andamento. Entre essas terapias, estão: (1) a inibição da α-IFN, que se mostrou promissora em estudos clínicos de fase II; (2) a inibição da sinalização de IL-12 e IL-23; (3) a inibição de IL-17; (4) a inibição de IL-6; (5) a eliminação de plasmócitos; (6) a inibição da coativação por sinal secundário de células B/T com CTLA-Ig ou anti-CD40L; (7) a inibição da imunoativação inata via TLR7 ou TLR7 e 9; (8) a indução de células T reguladoras com peptídeos de imunoglobulinas ou autoantígenos, ou com doses baixas, no caso da IL-2; e (9) a inibição da ativação do linfócito pelo bloqueio de Jak/Stat. Alguns estudos utilizaram uma imunossupressão vigorosa não direcionada com altas doses de ciclofosfamida mais estratégias anticélulas T, com resgate pelo transplante de células-tronco hematopoiéticas autólogas para o tratamento do LES grave e refratário. Um relato nos Estados Unidos mostrou uma taxa de mortalidade em 5 anos estimada de 15% e uma remissão sustentada em 50% dos casos. Espera-se que, na próxima edição desta obra, sejamos capazes de recomendar abordagens mais efetivas e menos tóxicas em relação ao tratamento do LES com base em algumas dessas estratégias. DESFECHO, PROGNÓSTICO E SOBREVIDA DOS PACIENTES A sobrevida dos pacientes com LES nos Estados Unidos, no Canadá, na Europa e na China é de cerca de 95% em 5 anos, 90% em 10 anos e 78% em 20 anos. Nos Estados Unidos, as pessoas negras e de origem hispânica com herança mestiça apresentam um prognóstico menos favorável do que os brancos; entretanto, isso não ocorre com os africanos na África, nem com os hispano- americanos de origem porto-riquenha. A importância relativa das misturas gênicas e as diferenças ambientais responsáveis pelas diferenças étnicas é desconhecida. Um prognóstico ruim (cerca de 50% de mortalidade em 10 anos) na maioria das séries está associado (no momento do diagnóstico) a níveis séricos elevados de creatinina (> 124 μmol/L [> 1,4 mg/dL]), hipertensão, síndrome nefrótica (excreção de proteína na urina de 24 h > 2,6 g), anemia (hemoglobina< 124 g/L [< 12,4 g/dL]), hipoalbuminemia, hipocomplementemia, anticorpos antifosfolipídeos, sexo masculino, etnia (negros, hispânicos de herança mestiça) e baixo nível socioeconômico. Os dados acerca dos pacientes de LES com transplantes renais mostram resultados mistos: algumas séries evidenciam um aumento de duas vezes na rejeição do enxerto em comparação aos pacientes com outras causas de DRET, ao passo que outras séries não mostram diferenças. A sobrevida geral dos pacientes é comparável (85% em 2 anos). A nefrite lúpica ocorre em cerca de 5% dos rins transplantados. A incapacitação nos pacientes com LES é comum devido, primariamente, a fadiga crônica, artrite e dor, bem como à doença renal. Até 30 a 50% dos pacientes podem alcançar uma baixa atividade de doença (definida como uma atividade leve com o uso de hidroxicloroquina com ou sem doses baixas de glicocorticoides); menos de 10% dos casos sofrem remissão (definida pela ausência de atividade da doença sem o uso de medicações). Essas duas condições podem persistir durante alguns anos, mas, em geral, não são permanentes, dada a ocorrência de exacerbações do LES. As principais causas de morte na primeira década da doença são atividade da doença sistêmica, insuficiência renal e infecções; subsequentemente, os eventos tromboembólicos passam a constituir as causas cada vez mais frequentes de mortalidade. LÚPUS INDUZIDO POR FÁRMACOS Trata-se de uma síndrome de FAN positivo associada a sintomas como febre, mal-estar, artrite ou intensas artralgias/mialgias, serosite e/ou erupções. A síndrome aparece durante a terapia com certas medicações e agentes biológicos, é predominante em pessoas brancas, demonstra menor predileção pelas mulheres do que o LES, raramente acomete os rins ou o cérebro, raramente está associada ao anti-dsDNA, porém está frequentemente associada a anticorpos anti-histonas e costuma regredir ao longo de várias semanas após a interrupção da medicação que a produziu. A lista de substâncias que podem induzir doença semelhante ao lúpus é longa. Entre as mais frequentes estão os antiarrítmicos procainamida, disopiramida e propafenona; o anti-hipertensivo hidralazina; vários inibidores da enzima conversora da angiotensina e beta-bloqueadores; o antitireoidiano propiltiouracila; os antipsicóticos clorpromazina e lítio; os anticonvulsivantes carbamazepina e fenitoína; os antibióticos isoniazida, minociclina e nitrofurantoína; o antirreumático sulfassalazina; o diurético hidroclorotiazida; e os anti-hiperlipidêmicos lovastatina e sinvastatina. Os agentes biológicos que podem causar lúpus induzido por fármaco (LIF) incluem os inibidores de IFNs e TNF. Em geral, o FAN aparece antes dos sintomas; no entanto, muitas das medicações mencionadas induzem FAN em pacientes que nunca desenvolverão sintomas de LIF. É apropriado realizar testes para detecção de FAN ao primeiro indício de sintomas relevantes e utilizar os resultados dos testes para ajudar a decidir se o agente suspeito deve ou não ser interrompido. LEITURAS ADICIONAIS Anders HJ, Rovin B: A pathophysiology-based approach to the diagnosis and treatment of lupus nephritis. Kidney Int 90:493, 2016. Hahn BH et al: American College of Rheumatology guidelines for screening, treatment, and management of lupus nephritis. Arthritis Care Res (Hoboken) 64:797, 2012. Hahn BH: Pathogenesis of SLE, in Dubois Lupus Erythematosus, 9th ed, DJ Wallace, BH Hahn, (eds). Philadelphia, Elsevier, 2018. Narain S, Furie R: Update on clinical trials in systemic lupus erythematosus. Curr Opin Rheumatol 28:477, 2016. Teruel M, Alarcon-Riquelme ME: The genetic basis of systemic lupus erythematosus: What are the risk factors and what have we learned. J Autoimmun 74:161, 2016. 351 Artrite reumatoide Ankoor Shah, E. William St. Clair INTRODUÇÃO A artrite reumatoide (AR) é uma doença inflamatória crônica de etiologia desconhecida caracterizada por poliartrite simétrica, que é a forma mais comum de artrite inflamatória crônica. Como a AR persistentemente ativa muitas vezes resulta em destruição óssea e da cartilagem articular, bem como em incapacitação funcional, é essencial diagnosticar e tratar essa doença precocemente e de maneira agressiva antes que a lesão ocorra. Sendo uma doença sistêmica, a AR também pode levar a uma variedade de manifestações extra-articulares, incluindo fadiga, nódulos subcutâneos, envolvimento pulmonar, pericardite, neuropatia periférica, vasculite e anormalidades hematológicas, as quais devem ser tratadas conforme a necessidade. Conhecimentos obtidos a partir de grandes avanços nas pesquisas básica e clínica durante as últimas duas décadas revolucionaram os paradigmas contemporâneos para o diagnóstico e o tratamento da AR. Anticorpos séricos contra peptídeos cíclicos citrulinados (anti-CCPs) são rotineiramente incluídos junto com o fator reumatoide na avaliação diagnóstica de pacientes com suspeita de AR e são biomarcadores importantes no prognóstico. Os avanços ocorridos nas modalidades de imagem têm auxiliado na tomada de decisão clínica, aprimorando a detecção da inflamação e da lesão articular. A ciência da AR avançou significativamente ao trazer à luz novos genes e interações ambientais relacionadas com doenças, bem como ao elucidar de forma mais detalhada os componentes moleculares e as vias de patogênese da doença. A relativa contribuição desses componentes e vias moleculares foi adicionalmente esclarecida pelos notórios benefícios proporcionados pelas terapias com moléculas pequenas e agentes biológicos alvos. Apesar desse progresso, o conhecimento incompleto acerca dos eventos iniciadores de AR e dos fatores perpetuadores da resposta inflamatória crônica continua sendo uma barreira considerável à cura e à prevenção dessa condição. As últimas duas décadas testemunharam uma melhora marcante nos desfechos da AR. A artrite deformante do passado tornou-se muito menos frequente nos dias de hoje. Muito desse progresso pode ser evidenciado pelo armamento terapêutico expandido e pela adoção de intervenção precoce no tratamento. A mudança na estratégia de tratamento impõe uma nova mentalidade para os profissionais de atenção primária – isto é, uma que exige o encaminhamento precoce de pacientes com artrite inflamatória para um reumatologista, para que seja feito um diagnóstico imediato e o início do tratamento. Somente dessa forma os pacientes alcançarão seus melhores desfechos. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS A incidência da AR aumenta entre os 25 e os 55 anos, atingindo, em seguida, um platô até os 75 anos e, então, diminuindo. Os sintomas iniciais da AR em geral resultam da inflamação das articulações, dos tendões e das bursas. Os pacientes costumam se queixar de uma rigidez matinal nas articulações que dura mais de 1 hora e melhora com a atividade física. As articulações inicialmente envolvidas são as pequenas articulações das mãos e dos pés. O padrão inicial do envolvimento articular pode ser monoarticular, oligoarticular (≤ 4 articulações) ou poliarticular (> 5 articulações), em geral em uma distribuição simétrica. Alguns pacientes com artrite inflamatória apresentarão um número muito pequeno de articulações afetadas para serem diagnosticados com AR – a chamada artrite inflamatória indiferenciada. Aqueles com artrite indiferenciada que posteriormente serão diagnosticados com AR apresentam um número maior de articulações edemaciadas e dolorosas, teste positivo para o fator reumatoide (FR) sérico ou os anticorpos anti-CCP e altos escores para incapacidade física. Uma vez estabelecido o processopatológico de AR, os punhos e as articulações metacarpofalângicas (MCFs) e interfalângicas proximais (IFPs) destacam-se como as articulações mais frequentemente envolvidas (Fig. 351-1). O envolvimento da articulação interfalângica distal (IFD) pode ocorrer na AR, porém costuma ser uma manifestação da osteoartrite concomitante. A tenossinovite do tendão flexor é uma característica frequente da AR e leva a uma redução na amplitude de movimento e na força de preensão, bem como aos dedos “em gatilho”. A destruição progressiva das articulações e dos tecidos moles leva a deformidades crônicas irreversíveis. O desvio ulnar resulta da subluxação das articulações MCF, com subluxação ou deslocamento parcial da falange proximal para o lado volar da mão. A hiperextensão da articulação IFP com flexão da articulação IFD (“deformidade em pescoço de cisne”), a flexão da articulação IFP com hiperextensão da articulação IFD (“deformidade de boutonnière”) e a subluxação da primeira articulação MCF com hiperextensão da primeira articulação interfalângica (IF) (“deformidade em Z”) também podem resultar da lesão dos tendões, da cápsula articular e de outros tecidos moles nessas pequenas articulações. A inflamação em torno do processo estiloide ulnar e a tenossinovite do extensor ulnar do carpo podem causar subluxação da ulna distal, resultando em um “movimento de teclado” do estiloide ulnar. Embora o envolvimento das articulações metatarsofalângicas (MTF) nos pés seja uma característica precoce da doença, a inflamação crônica do tornozelo e das regiões mediotarsais, em geral, aparece mais tarde e pode levar aos pes planovalgus (“pés chatos”). As articulações maiores, incluindo joelhos e ombros, em geral são afetadas na doença estabelecida, embora essas articulações possam permanecer assintomáticas por muitos anos após o aparecimento da doença. FIGURA 351-1 Edema articular interfalângico proximal e metacarpofalângico na artrite reumatoide. (© 2018 American College of Rheumatology. Utilizada com permissão.) O envolvimento atlantoaxial da coluna cervical é clinicamente significativo devido ao seu potencial de causar mielopatia compressiva e disfunção neurológica. Manifestações neurológicas raramente são sinais ou sintomas iniciais da doença atlantoaxial, mas poderão evoluir ao longo do tempo com instabilidade progressiva de C1 sobre C2. A prevalência de subluxação atlantoaxial vem diminuindo nos últimos anos e, atualmente, ocorre em menos de 10% dos pacientes. Ao contrário da espondiloartrite (Cap. 355), a AR raramente afeta a coluna torácica e lombar. As anormalidades radiográficas da articulação temporomandibular ocorrem comumente em pacientes com AR, porém, em geral, não estão associadas a sintomas significativos ou comprometimento funcional. Manifestações extra-articulares podem se desenvolver durante a evolução clínica da AR em até 40% dos pacientes, mesmo antes do aparecimento da artrite (Fig. 351-2). Os pacientes com maior tendência a desenvolver doença extra- articular têm história de tabagismo e exibem aparecimento precoce de incapacidade física significante, além de teste positivo para FR sérico e anticorpos anti-CCP. Nódulos subcutâneos, síndrome de Sjögren secundária, doença pulmonar intersticial (DPI), nódulos pulmonares e anemia estão entre as manifestações extra-articulares mais frequentemente observadas. Estudos recentes mostraram uma redução na incidência e na gravidade de pelo menos algumas das manifestações extra-articulares, em particular a síndrome de Felty e a vasculite. FIGURA 351-2 Manifestações extra-articulares da artrite reumatoide. As manifestações extra-articulares e sistêmicas mais comuns da AR estão descritas em mais detalhes nas seções a seguir. CONSTITUCIONAIS Estes sinais e sintomas incluem perda de peso, febre, fadiga, mal-estar, depressão e, nos casos mais graves, caquexia; normalmente, refletem um alto grau de inflamação e podem até preceder o aparecimento de sintomas articulares. Em geral, a presença de febre > 38,3°C em qualquer momento no decorrer da evolução clínica deverá aumentar a suspeita de vasculite sistêmica (ver adiante) ou infecção. NÓDULOS Os nódulos subcutâneos são reportados em 30 a 40% dos pacientes e são mais comuns naqueles com níveis mais altos de atividade da doença, epítopo compartilhado (EC) relacionado com a doença (ver a seguir), teste positivo para FR sérico e evidência radiográfica de erosões articulares. Todavia, estudos de coorte mais recentes sugerem uma prevalência em declínio dos nódulos subcutâneos, talvez relacionada a uma terapia modificadora de doença mais agressiva. À palpação, os nódulos, em geral, são firmes, indolores e aderentes ao periósteo, aos tendões ou às bursas, desenvolvendo-se em áreas do esqueleto sujeitas a eventos repetidos de traumatismo ou irritação, como antebraço, proeminências sacrais e tendão de Aquiles. Também podem ocorrer nos pulmões, na pleura, no pericárdio e no peritônio. Os nódulos geralmente são benignos, embora possam estar associados com infecção, ulceração e gangrena. SÍNDROME DE SJÖGREN A síndrome de Sjögren secundária (Cap. 354) é definida pela presença de ceratoconjuntivite seca (olhos secos) ou de xerostomia (boca seca) associada a outra doença do tecido conectivo, como a AR. Cerca de 10% dos pacientes com AR apresentam síndrome de Sjögren secundária. PULMONARES A pleurite, a manifestação pulmonar mais comum da AR, pode produzir dor torácica pleurítica e dispneia, assim como atrito e derrame pleural. Os derrames pleurais tendem a ser exsudativos, com contagens elevadas de monócitos e neutrófilos. A DPI também pode ocorrer em pacientes com AR e é anunciada por sintomas de tosse seca e falta de ar progressiva. A DPI pode estar associada ao tabagismo e, em geral, é observada em pacientes com maior atividade da doença, embora possa ser diagnosticada em até 3,5% dos pacientes antes do aparecimento de sintomas articulares. Estudos recentes demonstraram uma prevalência geral de DPI na AR de até 12%. O diagnóstico é estabelecido prontamente por tomografia computadorizada (TC) de alta resolução, a qual mostra opacificação infiltrativa na periferia de ambos os pulmões. A pneumonia intersticial usual (PIU) e a pneumonia intersticial não especificada (PINE) são os principais padrões histológicos e radiológicos da DPI. A PIU causa a progressiva cicatrização dos pulmões, com consequente produção de alterações em forma de favo de mel nas porções periférica e inferior dos pulmões, visualizadas na TC do tórax. Em contrapartida, as alterações radiográficas mais comuns na PINE são opacidades em vidro fosco bilaterais relativamente simétricas acompanhadas de reticulações finas associadas, com perda de volume e bronquiectasia de tração. Em ambos os casos, a prova de função pulmonar mostra um padrão restritivo (p. ex., capacidade pulmonar total reduzida) com capacidade reduzida de difusão pulmonar de monóxido de carbono (DCO). A presença de DPI confere um prognóstico desfavorável, que, uma vez existente, está associado a um aumento de 10% na mortalidade. O prognóstico da DPI na AR não é tão pobre quanto o da fibrose pulmonar idiopática (p. ex., pneumonite intersticial usual). A DPI secundária à AR responde à terapia imunossupressora de maneira mais favorável do que a DPI idiopática (Cap. 287). Os nódulos pulmonares também são comuns em pacientes com AR, podendo ser solitários ou múltiplos. A síndrome de Caplan consiste em um raro subgrupo de nodulose pulmonar, caracterizado pelo desenvolvimento de nódulos e pneumoconiose após a exposição à sílica.A bronquiolite respiratória e a bronquiectasia são outros distúrbios pulmonares menos comuns associados à AR. CARDÍACAS O sítio mais frequente de envolvimento cardíaco na AR é o pericárdio. Entretanto, manifestações clínicas de pericardite ocorrem em menos de 10% dos pacientes com AR, ainda que o envolvimento pericárdico possa ser detectado em quase metade desses pacientes por ecocardiograma ou exames de necrópsia. A miocardiopatia, outra manifestação clinicamente importante da AR, poderá advir de miocardite granulomatosa ou necrotizante, doença arterial coronária ou disfunção diastólica. Esse envolvimento também pode ser subclínico e identificado apenas por ecocardiografia ou ressonância magnética (RM) cardíaca. Raramente, o miocárdio poderá conter nódulos reumatoides ou infiltração amiloide. A insuficiência mitral é a anormalidade valvular mais comum da AR, ocorrendo em maior frequência do que na população geral. VASCULITE A vasculite reumatoide (Cap. 356) normalmente ocorre em pacientes com doença prolongada, hipocomplementemia e teste positivo para FR sérico ou anticorpos anti-CCP. A incidência geral diminuiu de modo significativo ao longo da última década, caindo para menos de 1% dos pacientes. Os sinais cutâneos variam e incluem petéquias, púrpura, infartos digitais, gangrena, livedo reticular e, nos casos mais graves, grandes ulcerações dolorosas nos membros inferiores. Úlceras vasculíticas, que podem ser difíceis de serem distinguidas daquelas causadas por insuficiência venosa, podem ser tratadas com sucesso usando agentes imunossupressores (necessitando de tratamento citotóxico em casos graves), bem como enxerto de pele. As polineuropatias sensitivomotoras, como a mononeurite múltipla, podem ocorrer em associação com a vasculite reumatoide sistêmica. HEMATOLÓGICAS Uma anemia normocítica normocrômica, em geral, se desenvolve em pacientes com AR e é a anormalidade hematológica mais comum. O grau de anemia tem relação direta com o grau de inflamação, correlacionando-se com os níveis séricos de proteína C-reativa e com a velocidade de hemossedimentação (VHS). A contagem de plaquetas também pode estar elevada na AR, como uma reação de fase aguda. A trombocitopenia imunomediada é rara nessa doença. A síndrome de Felty é definida pela tríade clínica de neutropenia, esplenomegalia e AR nodular, sendo encontrada em menos de 1% dos pacientes, embora sua incidência pareça estar diminuindo em face de tratamentos mais agressivos da doença articular. A condição normalmente ocorre nos estágios finais da AR grave e é mais comum em pessoas brancas do que em outros grupos étnicos. A leucemia de grandes linfócitos granulosos de células T (T- GLG) pode mostrar uma apresentação clínica semelhante e normalmente ocorre em associação à AR. A T-GLG é caracterizada por um crescimento clonal indolente crônico de células GLGs, levando a neutropenia e esplenomegalia. Ao contrário do que ocorre na síndrome de Felty, a T-GLG pode se desenvolver no início do curso da AR. A leucopenia à parte desses distúrbios é incomum e mais frequentemente um efeito colateral de farmacoterapia. LINFOMA Amplos estudos em coortes mostraram um aumento de 2 a 4 vezes no risco de linfoma em pacientes com AR quando comparados com a população geral. O tipo histopatológico mais comum de linfoma é o linfoma difuso de grandes células B. O risco de desenvolvimento de linfoma aumenta quando o paciente apresenta níveis elevados da atividade da doença ou a síndrome de Felty. CONDIÇÕES ASSOCIADAS Além das manifestações extra-articulares, diversas condições associadas à AR contribuem para as taxas de morbidade e mortalidade da doença. É importante mencioná-las, pois afetam o manejo da doença crônica. Doença cardiovascular A causa mais comum de morte em pacientes com AR é a doença cardiovascular. A incidência de doença arterial coronariana e aterosclerose da carótida é mais elevada em pacientes com AR do que na população geral, mesmo quando controlada para os fatores de risco cardíacos tradicionais, como hipertensão, obesidade, hipercolesterolemia, diabetes e tabagismo. Além disso, a insuficiência cardíaca congestiva (incluindo tanto a disfunção sistólica como a diastólica) ocorre em uma taxa aproximadamente duas vezes maior na AR do que na população geral. A presença de marcadores inflamatórios séricos elevados parece conferir um risco aumentado de doença cardiovascular nessa população. Osteoporose A osteoporose é mais comum em pacientes com AR do que em uma população-controle de idade e sexo semelhantes, com taxas de prevalência de 20 a 30%. O ambiente inflamatório da articulação provavelmente dissemina- se para o resto do corpo e promove perda óssea generalizada por meio da ativação dos osteoclastos. O uso crônico de glicocorticoides e a imobilidade relacionada com a incapacidade também contribuem para a osteoporose. A ocorrência de fraturas no quadril é mais provável em pacientes com AR e predispõe significativamente ao aumento da incapacidade e da taxa de mortalidade nessa doença. Hipoandrogenismo Homens e mulheres em período pós-menopausa com AR apresentam níveis médios inferiores de testosterona sérica, hormônio luteinizante (LH, de luteinizing hormone) e desidroepiandrosterona (DHEA, de dehydroepiandrosterone) do que as populações-controle. Portanto, estabeleceu- se a hipótese de que o hipoandrogenismo possa desempenhar um papel na patogênese da AR ou surgir em consequência da resposta inflamatória crônica. Também é importante saber que os pacientes que recebem terapia crônica com glicocorticoides poderão desenvolver hipoandrogenismo devido à inibição da secreção de LH e de hormônio folículo-estimulante (FSH, de follicle-stimulating hormone) pela glândula hipofisária. Como baixos níveis de testosterona podem levar à osteoporose, os homens com hipoandrogenismo deverão ser considerados para terapia de reposição com androgênio. EPIDEMIOLOGIA A AR afeta cerca de 0,5 a 1% da população mundial de adultos. Há evidências de que a incidência total de AR diminuiu nas últimas décadas, ao passo que a prevalência foi conservada, visto que os indivíduos com AR estão vivendo mais. A incidência e a prevalência de AR variam de acordo com a localização geográfica, tanto globalmente quanto entre certos grupos étnicos de um país (Fig . 351-3). Por exemplo, as tribos Yakima, Pima e Chippewa, nativas da América do Norte, mostraram taxas de prevalência em alguns estudos de quase 7%. Em contrapartida, diversos estudos populacionais da África e da Ásia mostraram taxas de prevalência inferiores para AR, na faixa de 0,2 a 0,4%. FIGURA 351-3 Taxas de prevalência global da artrite reumatoide (AR) com associações genéticas. Estão listados os principais alelos genéticos associados à AR. Embora as mutações no HLA- DRB1 ocorram globalmente, alguns alelos têm sido associados à AR em apenas determinados grupos étnicos. HLA, antígeno leucocitário humano. Como muitas outras doenças autoimunes, a AR ocorre mais comumente em mulheres do que em homens, em uma proporção de 2-3:1. É interessante mencionar que estudos da AR em alguns países da América Latina e da África mostram uma predominância ainda maior da doença em mulheres do que em homens, com proporções de 6-8:1. Considerando essa preponderância feminina, várias teorias têm sido propostas para explicar o possível papel do estrogênio na patogênese da doença. A maior parte das teorias concentra-se no papel dos estrogênios em aumentar a resposta imune. Por exemplo, alguns estudos experimentais mostraram que o estrogênio pode estimular a produçãodo fator de necrose tumoral α (TNF-α, de tumor necrosis factor α), uma citocina importante na patogênese da AR. CONSIDERAÇÕES GENÉTICAS Sabe-se, há 30 anos, que fatores genéticos contribuem para a ocorrência da AR, assim como para sua gravidade. A probabilidade de um parente de primeiro grau de um paciente compartilhar o diagnóstico de AR é 2 a 10 vezes maior do que na população geral. Entretanto, ainda permanece uma incerteza sobre a extensão do papel da genética nos mecanismos causadores da AR. As estimativas de hereditariedade variam de 40 a 50% e são aproximadamente as mesmas para indivíduos positivos e negativos para autoanticorpo. A estimativa da influência genética pode variar entre os estudos realizados devido às interações gene-ambiente. Os alelos conhecidos como responsáveis pelo maior risco de AR estão localizados no complexo de histocompatibilidade principal (MHC). Foi estimado que cerca de 13% do risco genético de AR reside nesse locus. A maior parte do risco, porém provavelmente não todo, está associada à variação alélica no gene HLA-DRB1, que codifica a cadeia β da molécula do MHC de classe II. Os alelos HLA-DRB1 associados à doença compartilham uma sequência de aminoácidos nas posições 70 a 74 na terceira região hipervariável da cadeia β do HLA-DR, chamada de epítopo compartilhado (EC). A portabilidade de alelos do EC está associada à produção de anticorpos anti-CCP e aos piores desfechos da doença. Alguns desses alelos HLA-DRB1 são responsáveis por um alto risco da doença (*0401), ao passo que outros conferem um risco mais moderado (*0101, *0404, *1001 e *0901). Adicionalmente, existe uma variação regional. Na Grécia, por exemplo, onde a AR tende a ser mais leve do que nos países da Europa Ocidental, a suscetibilidade à AR tem sido associada ao alelo EC *0101. Em comparação, os alelos *0401 ou *0404 são encontrados em cerca de 50 a 70% das pessoas na Europa Setentrional e representam os alelos predominantes de risco nesse grupo. Os alelos de EC que mais comumente conferem suscetibilidade à doença nos asiáticos, ou seja, em japoneses, coreanos e chineses, são *0405 e *0901. Por fim, a suscetibilidade à doença na população norte-americana nativa, como nos indígenas das tribos Pima e Tlingit, nos quais a prevalência de AR pode chegar a 7%, está associada ao alelo de EC *1042. O risco para AR conferido por esses alelos de EC é menor entre os negros e os hispânicos do que entre os indivíduos de descendência europeia. Estudos de associação genômica ampla (GWAS, de genome-wide association studies) tornaram possível a identificação de diversos genes não relacionados ao MHC que contribuem para a suscetibilidade à AR. Os GWAS têm como base a detecção de polimorfismos de nucleotídeo único (SNPs, de single-nucleotide polymorphisms), que permitem o exame da arquitetura genética de doenças complexas, como a AR. Existem cerca de 10 milhões de SNPs comuns dentro de um genoma humano, constituído de 3 bilhões de pares de bases. Como regra, os GWAS identificam apenas variantes comuns, isto é, aquelas com frequência > 5% na população geral. No total, surgiram diversos temas a partir dos GWAS na AR. Em primeiro lugar, os mais de 100 loci não MHC identificados como alelos de risco para AR apresentaram apenas um efeito modesto sobre o risco; eles também contribuem para o risco de desenvolvimento de outras doenças autoimunes, como o diabetes melito tipo 1, o lúpus eritematoso sistêmico e a esclerose múltipla. Em segundo lugar, embora a maioria das associações não HLA seja descrita em pacientes com doença positiva para o anticorpo anti-CCP, existem vários loci de risco que são exclusivos da doença negativa para o anticorpo anti-CCP. Em terceiro lugar, os alelos de risco variam entre os grupos étnicos. Por fim, os loci de risco encontram-se, em sua maior parte, nos genes que codificam proteínas envolvidas na regulação da resposta imune. Entretanto, os alelos de risco identificados pelos GWAS contribuem atualmente para apenas 5% do risco genético, sugerindo que variantes raras ou outras classes de variantes do DNA, como as variantes em número de cópias, poderão ainda ser descobertas como contribuintes significativas para o modelo de risco completo. Recentemente, a imputação de dados de SNP de uma metanálise de GWAS evidenciou que as substituições de aminoácidos no locus do MHC associadas de forma independente ao risco de AR se encontram nas posições 11, 71 e 74 do HLA-DRβ1, na posição 9 do HLA-B e na posição 9 do HLA-DPβ1. Os aminoácidos nas posições 11, 71 e 74 estão localizados na fenda de ligação ao antígeno da molécula HLA-DRβ1, destacando as posições 71 e 74 que formam parte do EC original. Entre os melhores exemplos dos genes não MHC que contribuem para o risco de AR está o gene que codifica a proteína tirosina-fosfatase 22 não receptora (PTPN22, de protein tyrosine phosphatase non-receptor 22). A frequência desse gene varia entre os pacientes de diferentes partes da Europa (p. ex., 3-10%), porém ele está ausente em pacientes com descendência do Leste Asiático. A PTPN22 codifica uma tirosina-fosfatase linfoide, uma proteína que regula a função das células T e B. A herança do alelo de risco para PTPN22 produz um ganho de função na proteína que se acredita levar à seleção tímica anormal das células T e B autorreativas e parece estar associada exclusivamente à doença positiva para o anticorpo anti-CCP. O gene codificador da peptidil- arginina-deiminase tipo IV (PADI4) é outro alelo de risco que codifica uma enzima envolvida na conversão da arginina à citrulina e é considerado importante para o desenvolvimento de anticorpos contra antígenos citrulinados. Um polimorfismo em PADI4 foi associado à AR apenas em populações asiáticas. Recentemente, foram demonstrados polimorfismos na apolipoproteína M (APOM) em uma população do Leste Asiático, os quais conferem um risco aumentado de AR bem como um risco de dislipidemia, independentemente da atividade da doença da AR. A epigenética é o estudo de traços hereditários que afetam a expressão gênica, mas não modificam a sequência de DNA. Esse estudo pode proporcionar uma ligação entre a exposição ambiental e a predisposição à doença. Os mecanismos mais bem estudados incluem as modificações pós-traducionais na histona e a metilação do DNA. Embora os estudos de fenômenos epigenéticos sejam limitados, mostrou-se que os padrões de metilação do DNA diferem entre os pacientes com AR e os controles saudáveis, assim como entre os pacientes com osteoartrite. Os micro-RNAs, que são RNAs não codificadores que atuam como reguladores pós-transcricionais da expressão gênica, representam um mecanismo epigenético adicional que, potencialmente, pode influenciar as respostas celulares. Muitos micro-RNAs foram identificados como contribuidores para o fenótipo ativado de fibroblastos sinoviais, como miR146a ou miR155. FATORES AMBIENTAIS Além da predisposição genética, uma gama de fatores ambientais foram implicados na patogênese da AR. O mais reprodutível deles é o tabagismo. Diversos estudos em coortes e casos-controle mostraram que o tabagismo confere um risco relativo de 1,5 a 3,5 de desenvolvimento da AR. Em particular, mulheres que fumam cigarros apresentam um risco de AR quase 2,5 vezes maior, que persiste mesmo até 15 anos após o abandono do hábito de fumar. Um gêmeo fumante apresentará um risco significativamente mais elevado de AR do que seu irmão gêmeo monozigótico não fumante, teoricamente portador do mesmo risco genético. É interessante mencionar que o tabagismo está quase exclusivamente relacionadoà doença positiva para FR e anticorpo anti-CCP. Entretanto, não foi mostrado que a cessação do tabagismo, embora traga muitos benefícios para a saúde, melhore a atividade da doença. Os pesquisadores começaram a procurar agressivamente uma etiologia infecciosa para a AR após o descobrimento, em 1931, de que o soro dos pacientes com a doença poderia aglutinar cepas de estreptococos. Certos vírus, como o Epstein-Barr (EBV), foram alvo de maior interesse durante os últimos 30 anos, devido à sua ubiquidade, à capacidade de permanecer por muitos anos no hospedeiro e à frequente associação com queixas de artrite. Por exemplo, os títulos de anticorpos IgG contra antígenos do EBV no sangue periférico e na saliva são significativamente mais elevados em pacientes com AR do que na população geral. O DNA de EBV também foi encontrado no líquido sinovial e em células sinoviais de pacientes com AR. Como as evidências com essas ligações são amplamente circunstanciais, não foi possível implicar diretamente a infecção como um fator causador da AR. Estudos recentes sugerem que a periodontite pode exercer algum papel na patogênese da AR. Múltiplos estudos fornecem evidência da existência de uma ligação entre a AR positiva para anti-CCP e o tabagismo, a doença periodontal e o microbioma oral, em particular Porphyromonas gingivalis. Foi proposto que a resposta imune ao P. gingivalis pode deflagrar o desenvolvimento de AR e que a indução de anticorpos anti-CCP resulta da citrulinação de resíduos de arginina nos tecidos humanos pela enzima peptidil-arginina-deiminase (PAD). Notavelmente, P. gingivalis é a única espécie de bactéria oral que contém essa enzima. Alguns estudos demonstraram uma relação entre os anticorpos citrulinados contra P. gingivalis e a AR, bem como entre esses anticorpos e os parentes de primeiro grau com risco de desenvolver a doença. PATOLOGIA A AR afeta o tecido sinovial, a cartilagem e o osso adjacentes. A membrana sinovial, que cobre a maioria das superfícies articulares, das bainhas tendinosas e das bursas, normalmente é uma fina camada de tecido conectivo. Nas articulações, essa membrana recobre o osso e a cartilagem, ligando as superfícies ósseas opostas e se inserindo nas regiões periósteas próximas à cartilagem articular. Ela consiste primariamente em dois tipos celulares – sinoviócitos tipo A (derivados de macrófagos) e sinoviócitos tipo B (derivados de fibroblastos). Os fibroblastos sinoviais são os mais abundantes e produzem os componentes estruturais das articulações, incluindo colágeno, fibronectina e laminina, bem como outros constituintes extracelulares da matriz sinovial. A camada subjacente é constituída de vasos sanguíneos e uma esparsa população de células mononucleares dentro de uma frouxa rede de tecido conectivo. O líquido sinovial, um ultrafiltrado do sangue, difunde-se pelo tecido de revestimento subsinovial através da membrana sinovial e para o interior da cavidade articular. Seus principais constituintes são a hialuronana e a lubricina. A hialuronana é uma glicosaminoglicana que contribui para a natureza viscosa do líquido sinovial e que, em conjunto com a lubricina, lubrifica a superfície da cartilagem articular. As manifestações patológicas da AR são a inflamação e a proliferação sinovial, as erosões ósseas focais e o afinamento da cartilagem articular. A inflamação crônica leva à hiperplasia da camada sinovial e à formação de pannus, uma membrana celular espessa contendo sinoviócitos semelhantes ao fibroblasto e tecido fibrovascular granuloso-reativo que invade a cartilagem e o osso adjacentes. O infiltrado inflamatório é constituído de nada menos que seis tipos celulares: células T, células B, plasmócitos, células dendríticas, mastócitos e, em menor grau, granulócitos. As células T compreendem 30 a 50% do infiltrado, com as outras células representando o restante. A organização topográfica dessas células é complexa e pode variar entre os indivíduos com AR. Com mais frequência, os linfócitos encontram-se difusamente organizados entre as células residentes teciduais; entretanto, em alguns casos, as células B, as células T e as células dendríticas formam níveis mais elevados de organização, como os folículos linfoides e as estruturas similares aos centros germinativos. Os fatores de crescimento secretados por fibroblastos e macrófagos sinoviais promovem a formação de novos vasos sanguíneos na subcamada de revestimento sinovial, que supre as crescentes demandas de oxigenação e nutrição dos leucócitos infiltrantes e do tecido sinovial em expansão. A lesão estrutural à cartilagem mineralizada e ao osso subcondral é mediada pelo osteoclasto. Os osteoclastos são células gigantes multinucleadas que podem ser identificadas por sua expressão de CD68, fosfatase ácida resistente ao tartrato, catepsina K e receptor de calcitonina. Eles surgem na interface pannus- osso, onde acabam formando lacunas de reabsorção. Essas lesões localizam-se onde a membrana sinovial se insere na superfície do periósteo, nas margens de ossos próximos à borda da cartilagem articular e nos sítios de inserção de ligamentos e bainhas tendinosas. Esse processo provavelmente explica por que as erosões ósseas normalmente se desenvolvem nos sítios radiais das juntas MCF justapostas aos sítios de inserção dos tendões, dos ligamentos colaterais e da membrana sinovial. Outra forma de perda óssea é a osteopenia periarticular que ocorre nas articulações com inflamação ativa. Ela está associada a um afinamento substancial das trabéculas ósseas ao longo das metáfises dos ossos e provavelmente resulta da inflamação da cavidade da medula óssea. Essas lesões podem ser visualizadas em varreduras de RM, onde aparecem como alterações de sinal na medula óssea adjacente às articulações inflamadas. Suas características de sinal mostram que são ricas em conteúdo aquoso com um baixo conteúdo de gordura e são consistentes com tecido inflamatório altamente vascularizado. Essas lesões da medula óssea frequentemente são os primórdios das erosões ósseas. A camada de osso cortical que separa a medula óssea do pannus invasor é relativamente fina e suscetível à penetração pela sinóvia inflamada. As lesões de medula óssea observadas por RM estão associadas a uma resposta óssea endosteal caracterizada pelo acúmulo de osteoblastos e pela deposição de osteoide. Portanto, nos últimos anos, o conceito da patologia articular na AR foi ampliado para incluir a cavidade da medula óssea. Por fim, a osteoporose generalizada, que leva ao afilamento do osso trabecular no corpo inteiro, é a terceira forma de perda óssea observada em pacientes com AR. A cartilagem articular é um tecido avascular constituído de uma matriz especializada de colágenos, proteoglicanas e outras proteínas. É organizada em quatro regiões distintas (zonas superficial, média, profunda e cartilaginosa calcificada) – os condrócitos constituem o único componente celular dessas camadas. Originalmente, a cartilagem foi considerada um tecido inerte, porém, atualmente, sabe-se que é um tecido altamente responsivo reativo aos mediadores inflamatórios e aos fatores mecânicos, que, por sua vez, alteram o equilíbrio entre o anabolismo e o catabolismo da cartilagem. Na AR, as áreas iniciais de degradação da cartilagem são justapostas ao pannus sinovial. A matriz da cartilagem é caracterizada por uma perda generalizada de proteoglicana, mais evidente nas zonas superficiais adjacentes ao líquido sinovial. A degradação da cartilagem também pode ocorrer na zona pericondrocítica e nas regiões adjacentes ao osso subcondral.PATOGÊNESE Os mecanismos patogênicos da inflamação sinovial são provavelmente resultantes de uma complexa interação entre fatores genéticos, ambientais e imunológicos que desregulam o sistema imune e levam a uma quebra da autotolerância (Fig. 351-4). O que precisamente desencadeia esses eventos iniciais e que fatores genéticos e ambientais alteram o sistema imune ainda permanecem um mistério. Entretanto, um quadro molecular detalhado está emergindo dos mecanismos responsáveis pela resposta inflamatória crônica e pela destruição da cartilagem articular e do osso. FIGURA 351-4 Mecanismos fisiopatológicos de inflamação e destruição articular. A predisposição genética em conjunto com os fatores ambientais pode levar ao desenvolvimento de artrite reumatoide (AR), com subsequente ativação da célula T sinovial. As células T CD4+ são ativadas pelas células apresentadoras de antígeno (APCs) por interações entre o receptor da célula T e o complexo de histocompatibilidade principal de classe II (MHC)-antígeno peptídico (sinal 1) com coestimulação pela via de CD28-CD80/86, bem como por outras vias (sinal 2). Em teoria, os ligantes que interagem com o receptor semelhante ao Toll (TLR, de Toll-like receptor) posteriormente podem estimular a ativação de APCs no interior das articulações. Células T sinoviais CD4+ diferenciam-se em células TH1 e TH17, cada uma com seu perfil distinto de citocinas. As células TH CD4+, por sua vez, ativam as células B, algumas das quais são destinadas a se diferenciar em plasmócitos produtores de anticorpos. Imunocomplexos, possivelmente constituídos por fatores reumatoides (FRs) e anticorpos antipeptídeos citrulinados cíclicos (anti-CCP), podem se formar no interior das articulações, ativando a via do complemento e amplificando a inflamação. As células T efetoras estimulam os macrófagos (M) e os fibroblastos sinoviais (FS) a secretar mediadores pró-inflamatórios, entre os quais está o fator de necrose tumoral α (TNF-α). O TNF-α regula positivamente as moléculas de adesão em células endoteliais, promovendo o influxo de leucócitos para a articulação. Além disso, ele estimula a produção de outros mediadores inflamatórios, como a interleucina 1 (IL-1), a IL-6 e o fator estimulador das colônias de granulócitos-macrófagos (GM-CSF, de granulocyte-macrophage colony- stimulating factor). O TNF-α tem uma função criticamente importante na regulação do equilíbrio entre destruição e formação óssea. Ele regula positivamente a expressão de dickkopf 1 (DKK-1), que, então, pode internalizar os receptores Wnt dos precursores dos osteoblastos. O Wnt é um mediador solúvel que promove a osteoblastogênese e a formação óssea. Na AR, a formação óssea é inibida pela via do Wnt, provavelmente devido à ação de níveis elevados de DKK-1. Além de inibir a formação óssea, o TNF-α estimula a osteoclastogênese. Entretanto, a estimulação proporcionada apenas pelo TNF-α é insuficiente para induzir a diferenciação de precursores de osteoclastos (Pré-OC) a osteoclastos ativados capazes de degradar os ossos. A diferenciação de osteoclastos requer a presença do fator estimulador de colônia de macrófagos (M-CSF, de macrophage colony-stimulating factor) e do ligante (RANKL) do ativador do receptor do fator nuclear κB (RANK, de receptor activator of nuclear factor-κB), que se liga ao RANK na superfície dos Pré-OC. No interior da articulação, RANKL é principalmente derivado de células estromais, fibroblastos sinoviais e células T. A osteoprotegerina (OPG) atua como um receptor decoy (isca) para RANKL, inibindo, dessa forma, a osteoclastogênese e a perda óssea. FGF, fator de crescimento do fibroblasto; IFN, interferona; TGF, fator de crescimento transformador. Na AR, o estágio pré-clínico parece ser caracterizado pela quebra da autotolerância. Essa ideia é sustentada pelo achado de que autoanticorpos, como o FR e os anticorpos anti-CCP, podem ser encontrados no soro de pacientes muitos anos antes da manifestação inicial da doença clínica. Entretanto, os alvos antigênicos dos anticorpos anti-CCP e do FR não estão restritos à articulação, e seu papel na patogênese da doença permanece especulativo. Anticorpos anti- CCP são dirigidos contra peptídeos deaminados, que resultam da modificação pós-traducional pela enzima PADI4. Esses anticorpos reconhecem regiões contendo citrulina em diversas proteínas diferentes da matriz, incluindo filagrina, queratina, fibrinogênio e vimentina, e estão presentes em níveis mais elevados no líquido articular em comparação com o soro. Outros autoanticorpos foram encontrados em uma minoria de pacientes com AR, mas também ocorrem em outros tipos de artrite. Esses anticorpos se ligam a uma gama diversa de autoantígenos, incluindo colágeno do tipo II, gp-39 da cartilagem humana, agrecana, calpastatina, proteína de ligação da imunoglobulina (BiP, de immunoglobulin binding protein) e isomerase glicose-6-fosfato. Em teoria, estimulantes ambientais podem atuar em conjunto com outros fatores para ocasionar a inflamação na AR. Os fumantes apresentam proteínas com maior grau de citrulinação no líquido broncoalveolar do que os indivíduos que não fumam. Portanto, tem sido especulado que a exposição prolongada ao tabaco poderia induzir a citrulinação de proteínas celulares no pulmão e estimular a expressão de um neoepítopo capaz de induzir autorreatividade, que, por sua vez, leva à formação de imunocomplexos e à inflamação articular. A exposição à poeira de silicone e ao óleo mineral, que tem efeitos adjuvantes, também tem sido ligada a um maior risco de AR positiva para o anticorpo anti- CCP. De modo similar, patógenos periodontais, como o P. gingivalis, podem ter papel patogênico e contribuir para a citrulinação de proteínas na cavidade oral. Além da possível ligação existente entre o microbioma oral e a AR, pesquisadores estão voltando a atenção para a microbiota intestinal e para a possibilidade de que a alteração da sua composição predisponha à doença. Como podem os microrganismos e seus produtos estarem envolvidos nos eventos iniciadores da AR? O sistema imune é alertado sobre a presença de infecções microbianas pelos TLRs. Nos seres humanos, existem 10 TLRs que reconhecem diversos produtos microbianos, incluindo lipopolissacarídeos da superfície celular de bactérias e proteínas do choque térmico (TLR4), lipoproteínas (TLR2), vírus de RNA de fita dupla (TLR3) e DNA CpG não metilado de bactérias (TLR9). Os TLRs 2, 3 e 4, expressos intensamente em fibroblastos sinoviais na AR, quando associados a seus ligantes, aumentam a produção de citocinas pró-inflamatórias. Embora os ligantes de TLRs, teoricamente, possam amplificar as vias inflamatórias na AR, seu papel específico na patogênese da doença ainda é indeterminado. A patogênese da AR tem como base o conceito de que as células T autorreativas desencadeiam a resposta inflamatória crônica. Na teoria, as células T autorreativas poderiam surgir na AR a partir de uma seleção central (tímica) anormal ou de defeitos intrínsecos que diminuam o limiar para ativação da célula T na periferia. Qualquer um desses mecanismos poderia resultar na expansão anômala do repertório de células T autorreativas e na quebra da tolerância da célula T. O suporte para essas teorias vem principalmente de estudos da artrite em modelos murinos. Não foi mostrado que pacientes com AR apresentam seleção tímica anormal das células T ou vias apoptóticas deficientes regulando a morte celular. No mínimo, é provável que ocorra algumaestimulação no interior da articulação, devido ao fato de que as células T na sinóvia expressam fenótipo de superfície celular, indicando exposição anterior ao antígeno e mostrando evidências de expansão clonal. É interessante mencionar que as células T do sangue periférico de pacientes com AR mostram uma impressão de envelhecimento prematuro que afeta principalmente as células T naive inexperientes. Nesses estudos, os achados mais flagrantes foram a perda de sequências teloméricas e uma redução na saída de novas células T do timo. Embora intrigante, não está claro como as anormalidades generalizadas da célula T poderiam provocar uma doença sistêmica com predominância de sinovite. Existem evidências substanciais sustentando uma função para as células T CD4+ na patogênese da AR. Em primeiro lugar, o correceptor CD4 na superfície das células T liga-se a sítios invariáveis nas moléculas de MHC de classe II, estabilizando o complexo MHC-peptídeo-receptor de célula T durante a ativação da célula T. Como o EC nas moléculas de MHC de classe II representa um fator de risco para a AR, conclui-se que a ativação da célula T CD4+ possa desempenhar um papel na patogênese dessa doença. Em segundo lugar, o tecido sinovial de pacientes com AR é rico em células T CD4+ de memória que podem ser consideradas “culpadas por tabela”. Em terceiro lugar, as células T CD4+ mostraram ser importantes na iniciação da artrite em modelos animais. Por fim, algumas terapias dirigidas à célula T mostraram eficácia clínica nessa doença. Em conjunto, essas linhas de evidência sugerem que as células T CD4+ desempenham um importante papel na orquestração da resposta inflamatória crônica na AR. Entretanto, outros tipos celulares, como as células T CD8+, as células natural killer (NK) e as células B, estão presentes no tecido sinovial e também podem influenciar as respostas patogênicas. Na articulação reumatoide, por mecanismos de contato célula a célula e liberação de mediadores solúveis, as células T ativadas estimulam os sinoviócitos derivados de macrófagos e fibroblastos a produzir mediadores pró- inflamatórios e proteases que causam a resposta inflamatória sinovial e destroem a cartilagem e o osso. A ativação da célula T CD4+ é dependente de dois sinais: (1) ligação do receptor de célula T ao complexo peptídeo-MHC nas células apresentadoras de antígeno; e (2) ligação do CD28 ao CD80/86 nas células apresentadoras de antígeno. As células T CD4+ também auxiliam as células B, que, por sua vez, produzem anticorpos que podem promover mais inflamação na articulação. O antigo modelo de patogênese da AR focado na célula T baseava- se em um paradigma TH1-dirigido, originário de estudos que indicaram que as células T auxiliares (TH) CD4+ diferenciam-se em subpopulações TH1 e TH2, cada qual com perfis distintos de citocinas. Descobriu-se que as células TH1 produzem principalmente γ-interferona (γ-IFN), linfotoxina β e TNF-α, ao passo que as células TH2 secretam predominantemente interleucina (IL)-4, IL-5, IL-6, IL-10 e IL-13. A recente descoberta de outra subpopulação de células TH, conhecida como linhagem TH17, revolucionou nossos conceitos em relação à patogênese da AR. Em seres humanos, as células T naive são induzidas a se diferenciar em células TH17 por exposição ao fator de crescimento transformador β (TGF-β), à IL-1, à IL-6 e à IL-23. Sob ativação, as células TH17 secretam uma variedade de mediadores pró-inflamatórios, como IL-17, IL-21, IL-22, TNF-α, IL-26, IL-6 e fator estimulador de colônias de granulócitos- macrófagos (GM-CSF). Atualmente, há evidências substanciais fornecidas por estudos em modelos animais e humanos de que a IL-17 desempenha um importante papel não apenas na promoção da inflamação articular, como também na destruição da cartilagem e do osso subcondral. Ainda assim, o secuquinumabe, um anticorpo anti-receptor de IL-17, falhou em mostrar benefício clínico significativo em um estudo de fase II envolvendo pacientes com AR, levantando novas dúvidas quanto à importância da IL-17 na perpetuação da inflamação articular nessa doença. O sistema imune desenvolveu mecanismos para contrabalançar as respostas inflamatórias imunomediadas potencialmente nocivas provocadas por agentes infecciosos e outros agentes etiológicos. Entre esses reguladores negativos estão as células T reguladoras (Treg), produzidas no timo e induzidas na periferia para suprimir a inflamação imunomediada. Essas células se caracterizam pela expressão de CD25 na superfície, pela expressão de fator de transcrição forkhead box P3 (FOXP3, de transcription factor forkhead box P3) e pela ausência de CD127 (receptor de IL-7). As Treg orquestram a tolerância dominante via contato com outras células imunes e secreção de citocinas inibidoras, como TGF-β, IL- 10 e IL-35. Elas são heterogêneas e capazes de suprimir classes distintas (TH1, TH2, TH17) da resposta imune. Os dados mostrando números deficientes de Treg na AR em comparação ao observado em controles saudáveis normais são contraditórios e inconclusivos. Embora algumas evidências experimentais sugiram que a atividade supressora de Treg seja perdida devido à expressão disfuncional do linfócito T citotóxico, antígeno 4 (CTLA-4, de cytotoxic T lymphocyte antigen 4), a natureza dos defeitos de Treg na AR e o seu papel nos mecanismos da doença continuam indeterminados. As citocinas, as quimiocinas, os anticorpos e os sinais endógenos de perigo ligam-se a receptores na superfície das células imunes e estimulam uma cascata de eventos sinalizadores intracelulares que podem amplificar a resposta inflamatória. As moléculas sinalizadoras e as suas parceiras de ligação nessas vias constituem o alvo de fármacos de pequenas moléculas, projetados para interferir na transdução de sinal e bloquear essas alças inflamatórias amplificadoras (ou “de reforço”). Exemplos de moléculas sinalizadoras que atuam nessas vias inflamatórias fundamentais incluem a Janus-cinase (JAK)/transdutores de sinal e ativadores da transcrição (STAT, de signal transducer and activator of transcription), a tirosina-cinase do baço (Syk, de spleen tyrosine kinase), as proteína-cinases ativadas por mitógeno (MAPKs, de mitogen-activated protein kinases) e o fator nuclear κB (NF-κB). Essas vias exibem significativa interação e são encontradas em muitos tipos celulares. Alguns transdutores de sinal, como a JAK3, são expressos primariamente em células hematopoiéticas e desempenham um importante papel na resposta inflamatória da AR. As células B ativadas também são importantes na resposta inflamatória crônica. Elas dão origem aos plasmócitos, que, por sua vez, produzem anticorpos, incluindo FR e anticorpos anti-CCP. Os FRs podem formar grandes imunocomplexos no interior da articulação, os quais contribuem para o processo patogênico, fixando complemento e promovendo a liberação de quimiocinas e citocinas pró-inflamatórias. Em modelos murinos de artrite, os imunocomplexos contendo FR e os imunocomplexos contendo anti-CCP atuam em conjunto com outros mecanismos para exacerbar a resposta inflamatória sinovial. A AR, em geral, é considerada uma doença macrófago-dirigida, já que esse tipo celular é a fonte predominante de citocinas pró-inflamatórias no interior da articulação. As citocinas pró-inflamatórias importantes liberadas pelos macrófagos sinoviais incluem TNF-α, IL-1, IL-6, IL-12, IL-15, IL-18 e IL-23. Os fibroblastos sinoviais, o outro tipo celular importante nesse microambiente, produz as citocinas IL-1 e IL-6, assim como o TNF-α. O TNF-αé uma citocina essencial na patobiologia da inflamação sinovial. Ele regula positivamente as moléculas de adesão nas células endoteliais, promovendo o influxo de leucócitos para o microambiente sinovial; ativa os fibroblastos sinoviais; estimula a angiogênese; promove as vias sensibilizantes do receptor de dor; e modula a osteoclastogênese. Os fibroblastos secretam metaloproteinases matriciais (MPMs, de matrix metalloproteinases), assim como outras proteases que são as principais responsáveis pela degradação da cartilagem articular. A ativação do osteoclasto no sítio do pannus está intimamente ligada à presença de erosão óssea focal. O ligante do ativador do receptor do NF-κB (RANKL) é expresso em células estromais, fibroblastos sinoviais e células T. Após ligar-se a seu receptor RANK nos progenitores do osteoclasto, o RANKL estimula a sua diferenciação e a reabsorção óssea. A atividade de RANKL é regulada pela osteoprotegerina (OPG), um receptor decoy de RANKL que bloqueia a formação de osteoclastos. As células monocíticas da sinóvia servem como precursoras de osteoclastos e, quando expostas ao fator estimulador de colônias de macrófagos (M-CSF) e ao RANKL, fundem-se para formar policarions, denominados pré-osteoclastos. Essas células precursoras sofrem posterior diferenciação em osteoclastos, com sua membrana pregueada característica. Citocinas como TNF-α, IL-1, IL-6 e IL-17 aumentam a expressão de RANKL na articulação e, portanto, promovem a osteoclastogênese. Os osteoclastos também secretam catepsina K, uma cisteína-protease que degrada a matriz óssea, clivando o colágeno. A estimulação de osteoclastos também contribui para a perda óssea generalizada e a osteoporose. O aumento da perda óssea é apenas parte da história da AR, já que a redução da formação óssea desempenha um papel crucial no remodelamento dos ossos nos sítios de inflamação. Evidências recentes mostram que a inflamação suprime a formação óssea. A citocina pró-inflamatória TNF-α desempenha um importante papel na supressão ativa da formação do osso, aumentando a expressão de dickkopf 1 (DKK-1). O DKK-1 é um importante inibidor da via de Wnt, que age promovendo a diferenciação do osteoblasto e a formação do osso. O sistema Wnt é uma família de glicoproteínas solúveis que se liga aos receptores da superfície celular conhecidos como frizzled (fz) e às proteínas relacionadas ao receptor da lipoproteína de baixa densidade (LDL) (LRPs) e promove o crescimento celular. Em modelos animais, níveis elevados de DKK-1 estão associados à formação óssea reduzida, ao passo que a inibição de DKK-1 protege contra a lesão estrutural da articulação. As proteínas Wnt também induzem a formação de OPG e, portanto, interrompem a reabsorção óssea, enfatizando seu importante papel na regulação estreita do equilíbrio entre a reabsorção e a formação óssea. DIAGNÓSTICO O diagnóstico clínico da AR baseia-se, em grande parte, nos sinais e sintomas de artrite inflamatória crônica, com os resultados laboratoriais e radiográficos fornecendo importantes informações suplementares. Em 2010, um esforço colaborativo entre o American College of Rheumatology (ACR) e a European League Against Rheumatism (EULAR) revisou os critérios de classificação da ACR de 1987 para a AR em uma tentativa de melhorar o diagnóstico precoce, com o objetivo de identificar pacientes que se beneficiariam da introdução precoce de terapia modificadora da doença (Tab. 351-1). A aplicação dos critérios recém-revisados gera um escore de 0 a 10, com escores ≥ 6 atendendo aos requisitos de AR definida. Os novos critérios de classificação diferem em vários aspectos em relação aos critérios antigos. Os novos critérios incluem um teste positivo para os anticorpos séricos anti-CCP (também chamados ACPAs, anticorpos antipeptídeos citrulinados) como um item de maior especificidade para o diagnóstico da AR, comparativamente a um teste positivo para FR. Os critérios mais recentes de classificação também não levam em consideração se o paciente apresenta nódulos reumatoides ou lesão articular radiográfica, pois esses achados raramente estão presentes no início da AR. É importante enfatizar que os novos critérios da ACR-EULAR de 2010 são “critérios de classificação”, em vez de “critérios diagnósticos”, e servem para identificar os pacientes no início da doença que apresentam uma alta probabilidade de evolução para uma doença crônica com sinovite persistente e lesão articular. A presença de erosões articulares radiográficas ou nódulos subcutâneos pode indicar o diagnóstico nos estágios tardios da doença. TABELA 351-1 ■ Critérios de classificação para artrite reumatoide Escore Envolvimento articular 1 grande articulação (ombro, cotovelo, quadril, joelho, tornozelo) 0 2-10 grandes articulações 1 1-3 pequenas articulações (MCF, IFP, IF do polegar, MTF, punhos) 2 4-10 pequenas articulações 3 > 10 articulações (pelo menos uma pequena articulação) 5 Sorologia FR negativo e ACPA negativo 0 FR fracamente positivo ou anticorpos anti-CCP fracamente positivos (≤ 3 vezes ULN) 2 FR fortemente positivo ou anticorpos anti-CCP fortemente positivos (> 3 vezes ULN) 3 Reagentes de fase aguda PCR normal e VHS normal PCR anormal ou VHS anormal 0 1 Duração dos sintomas < 6 semanas 0 ≥ 6 semanas 1 Nota: Esses critérios são usados para a classificação de pacientes em sua primeira apresentação, com pelo menos uma articulação com sinovite clínica definida que não seja mais bem explicada por outra doença. Um escore ≥ 6 preenche os requisitos para definir a AR. Siglas: ACPA, anticorpo antipeptídeo citrulinado; CCP, peptídeo citrulinado cíclico; PCR, proteína C-reativa; VHS, velocidade de hemossedimentação; IF, articulação interfalângica; MCF, articulação metacarpofalângica; MTF, articulação metatarsofalângica; IFP, articulação interfalângica proximal; FR, fator reumatoide; ULN, limite superior de normalidade. Fonte: D Aletaha et al.: Arthritis Rheum 62:2569, 2010. MANIFESTAÇÕES LABORATORIAIS Os pacientes com doenças inflamatórias sistêmicas como a AR frequentemente apresentam marcadores inflamatórios inespecíficos elevados, como VHS e proteína C-reativa. A detecção de FR e de anticorpos anti-CCP no soro é importante na diferenciação entre AR e outras doenças poliarticulares, embora o FR não apresente especificidade diagnóstica e possa ser encontrado em associação com outras doenças inflamatórias crônicas nas quais a artrite faça parte das manifestações clínicas. Os isotipos IgM, IgG e IgA do FR ocorrem no soro de pacientes com AR, embora o isotipo IgM seja o mais frequentemente avaliado pelos laboratórios comerciais. O FR IgM sérico tem sido encontrado em 75 a 80% dos pacientes com AR; portanto, um resultado negativo não exclui a presença da doença. Ele também é encontrado em outras doenças do tecido conectivo, como a síndrome de Sjögren primária, o lúpus eritematoso sistêmico e a crioglobulinemia essencial mista do tipo II, bem como em infecções crônicas, como a endocardite bacteriana subaguda e as hepatites B e C. O FR sérico também pode ser detectado em 1 a 5% da população saudável. A presença de anticorpos séricos anti-CCP tem aproximadamente a mesma sensibilidade que o FR sérico para o diagnóstico de AR. Entretanto, sua especificidade diagnóstica se aproxima de 95%, de modo que um teste positivo para os anticorpos anti-CCP no contexto de uma artrite inflamatória precoce é útil para distinguir a AR de outras formas de artrite. Existe certo valor adicional em se testar a presença de ambos os marcadores, FR e anti-CCP, já que alguns pacientes com AR são positivos para FR, porém negativos para anti-CCP,e vice- versa. A presença de FR ou de anticorpos anti-CCP também possui significado prognóstico, com os anticorpos anti-CCP mostrando maior valor para a previsão dos piores prognósticos. ANÁLISE DO LÍQUIDO SINOVIAL Em geral, a composição do líquido sinovial de pacientes com AR reflete um estado inflamatório agudo. As contagens de leucócitos do líquido sinovial podem variar amplamente, porém, em geral, oscilam entre 5.000 e 50.000 leucócitos/μL, comparados com < 2.000 leucócitos/μL em uma condição não inflamatória, como a osteoartrite. Em contraste com o tecido sinovial, o principal tipo celular do líquido sinovial é o neutrófilo. Clinicamente, a análise desse líquido é mais útil para confirmar uma artrite inflamatória (em contraposição à osteoartrite), ao mesmo tempo que também exclui infecção ou uma artrite induzida por cristal, como a gota ou a pseudogota (Cap. 365). AVALIAÇÃO DA ARTICULAÇÃO POR IMAGEM Os exames de imagem articular são uma ferramenta valiosa não somente para o diagnóstico da AR, como também para acompanhar a progressão de qualquer lesão articular. O raio X simples é a modalidade mais comum de avaliação por imagem, porém é limitado à visualização das estruturas ósseas e a inferências a respeito do estado da cartilagem articular com base no nível de estreitamento do espaço articular. As técnicas de RM e ultrassonografia proporcionam o valor adicional da detecção de alterações nos tecidos moles, como sinovite, tenossinovite e derrames, bem como maior sensibilidade para identificar anormalidades ósseas. As radiografias simples normalmente são utilizadas na prática clínica com o propósito de diagnosticar e monitorar as articulações afetadas. Entretanto, em casos especiais, a RM e a ultrassonografia podem fornecer informações diagnósticas adicionais que poderão guiar a tomada de decisão clínica. A ultrassonografia musculoesquelética com power Doppler está sendo cada vez mais usada na prática clínica da reumatologia para detectar sinovite e erosão óssea. Radiografia simples Classicamente, o achado radiográfico inicial na AR é a osteopenia periarticular. Entretanto, de modo prático, esse achado é difícil de ser observado nas radiografias simples e, particularmente, nos modernos raios X digitalizados. Outros achados nas radiografias simples incluem edema dos tecidos moles, perda simétrica do espaço articular e erosões subcondrais, com mais frequência nos punhos e nas mãos (MCFs e IFPs) e nos pés (MTFs). Nos pés, a face lateral da quinta MTF em geral é comprometida primeiro, porém outras articulações MTFs podem estar simultaneamente envolvidas. A imagem de raio X da AR avançada pode revelar sinais de destruição grave, incluindo subluxação e colapso articulares (Fig. 351-5). FIGURA 351-5 Raio X demonstrando progressão de erosões da articulação interfalângica proximal. (© 2018 American College of Rheumatology. Utilizada com permissão.) RM A RM oferece a maior sensibilidade para detectar a sinovite e os derrames articulares, bem como as alterações iniciais do osso e da medula óssea. Essas anormalidades dos tecidos moles com frequência ocorrem antes que as alterações ósseas sejam observadas nos raios X. A presença de edema na medula óssea foi reconhecida como um sinal precoce da artropatia inflamatória e pode prever o desenvolvimento subsequente de erosões em radiografias simples, bem como na RM. O custo e a disponibilidade da RM são os principais fatores limitantes de seu uso clínico rotineiro. Ultrassonografia A ultrassonografia, incluindo o power Doppler colorido, tem a capacidade de detectar mais erosões do que a radiografia simples, em particular nas articulações de fácil acesso. Ela também pode detectar a sinovite de forma confiável, incluindo o aumento da vascularização articular, indicativo de inflamação. A utilidade da ultrassonografia é dependente da experiência do técnico; entretanto, ela oferece as vantagens de portabilidade, ausência de radiação e baixo custo em relação à RM – fatores que a tornam atraente como ferramenta clínica. EVOLUÇÃO CLÍNICA A história natural da AR é complexa e afetada por diversos fatores, incluindo idade no momento do aparecimento, gênero, genótipo, fenótipo (i.e., manifestações extra-articulares ou variantes da AR) e comorbidades, que contribuem para uma doença verdadeiramente heterogênea. Não existe uma forma simples de prever sua evolução clínica. É importante saber que cerca de 10% dos pacientes com artrite inflamatória enquadrados nos critérios de classificação da ACR para AR evoluirão para remissão espontânea em 6 meses (em particular os soronegativos). Entretanto, a grande maioria dos pacientes apresentará um padrão de atividade da doença persistente e progressivo, com períodos de maior ou menor intensidade ao longo do tempo. Uma minoria dos pacientes apresentará ataques explosivos intermitentes e recorrentes de artrite inflamatória intercalados com períodos de doença quiescente. Por fim, uma forma agressiva de AR pode ocorrer em uns poucos desafortunados, com progressão inexorável de uma artropatia erosiva grave, embora esse curso altamente destrutivo seja menos comum na moderna era de tratamentos. Quando avaliada pelo Health Assessment Questionnaire (HAQ), a incapacidade piora gradualmente ao longo do tempo em face da atividade da doença mal controlada e da sua progressão. A incapacitação pode advir de um componente relacionado com a atividade da doença, potencialmente reversível com terapia, e de um componente relacionado com a lesão articular devido aos efeitos cumulativos e amplamente irreversíveis da lesão de tecidos moles, cartilagens e ossos. No início da doença, a extensão da inflamação articular é o determinante primário da incapacidade, ao passo que, nos estágios mais tardios, o fator contribuinte dominante é a extensão da lesão articular. Estudos prévios mostraram que mais da metade dos pacientes com AR estão incapacitados para o trabalho decorridos 10 anos do aparecimento da doença; entretanto, uma maior empregabilidade e um menor absenteísmo do trabalho foram registrados recentemente com o uso de terapias mais novas e a adoção de intervenção terapêutica precoce. A taxa de mortalidade total da AR é duas vezes maior do que a da população geral, com a cardiopatia isquêmica sendo a causa de morte mais comum, seguida pela infecção. A expectativa de vida média é reduzida em cerca de 7 anos para os homens e 3 anos para as mulheres, quando comparada à observada nas populações-controle. Os pacientes com maior risco de redução da sobrevida são aqueles que apresentam envolvimento extra-articular sistêmico, baixa capacidade funcional, condição socioeconômica baixa, nível de instrução baixo e uso crônico de prednisona. TRATAMENTO Artrite reumatoide A quantidade de atividade da doença clínica em pacientes com AR reflete a carga total de inflamação e é a variável que mais influencia nas decisões terapêuticas. A inflamação articular é o principal causador da lesão articular e é a causa mais importante da incapacidade funcional nos estágios iniciais da doença. Foram desenvolvidos diversos índices compostos para avaliar a atividade clínica da doença. Os critérios de melhora da ACR 20, 50 e 70 (que correspondem a uma melhora de 20, 50 e 70%, respectivamente, nas contagens das articulações, na avaliação da severidade da doença pelo médico-paciente, na escala de dor, nos níveis séricos de reagentes da fase aguda [VHS e proteína C-reativa] e na avaliação funcional da incapacidade usando um questionário autoadministradopelo paciente) representam um índice composto com uma variável de resposta dicotomizada. Os critérios de melhora da ACR são comumente utilizados em ensaios clínicos como meta para comparar a proporção de respondedores entre os grupos de tratamento. Em contrapartida, o Escore da Atividade da Doença (DAS), o Índice Simplificado de Atividade da Doença (SDAI), o Índice Clínico de Atividade da Doença (CDAI) e a Avaliação de Rotina dos Dados do Índice do Paciente 3 (RAPID3) são medidas contínuas da atividade. Essas escalas são cada vez mais usadas na prática clínica para avaliar o estado da doença e, em particular, para documentar a resposta ao tratamento. Diversos avanços durante as últimas duas décadas alteraram o panorama terapêutico da AR. Entre eles, estão: (1) a emergência do metotrexato como fármaco antirreumático modificador da doença (DMARD, de disease-modifying antirheumatic drug) de primeira escolha para o tratamento da AR precoce; (2) o desenvolvimento de novos agentes biológicos altamente eficazes que podem ser usados isoladamente ou em combinação com o metotrexato; e (3) a superioridade comprovada da combinação de regimes de DMARDs sobre o uso do metotrexato isolado. As medicações usadas para o tratamento da AR podem ser divididas em amplas categorias: fármacos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs); glicocorticoides, como a prednisona e a metilprednisolona; DMARDs convencionais; e DMARDs biológicos (Tab. 351-2). Embora a doença em alguns pacientes com AR seja controlada adequadamente com um único DMARD, como o metotrexato, na maioria dos casos, a situação exige um regime de combinação de DMARDs que poderá variar seus componentes durante o curso do tratamento, dependendo das flutuações na atividade da doença e do aparecimento de toxicidades e comorbidades relacionadas aos fármacos. TABELA 351-2 ■ DMARDs usados no tratamento da artrite reumatoide Fármaco ou substância Dosagem Toxicidades graves Outros efeitos colaterais comuns Avaliação inicial Monitoramento Hidroxicloroquina 200-400 mg/dia por via oral (≤ 5 mg/kg) Lesão irreversível da retina Cardiotoxicidade Discrasia sanguínea Náuseas Diarreia Cefaleia Exantema Exame ocular para pacientes com idade > 40 anos ou com doença ocular prévia Tomografia de coerência óptica e teste de campo visual a cada 12 meses Sulfassalazina Inicial: 500 mg por via oral, 2×/dia Manutenção: 1.000-1.500 mg, 2×/dia Granulocitopenia Anemia hemolítica (com Náuseas Diarreia Cefaleia Hemograma completo, PFHs Hemograma completo a cada 2-4 semanas durante os deficiência de G6PD) Nível de G6PD primeiros 3 meses e, subsequentemente, a cada 3 meses Metotrexato 10-25 mg/semana, por via oral ou SC Ácido fólico 1 mg/dia para reduzir toxicidades Hepatotoxicidade Mielossupressão Infecção Pneumonite intersticial Categoria X para gravidez Náuseas Diarreia Estomatite/ úlceras de boca Alopécia Fadiga Hemograma completo, PFHs Painel de hepatite virala Radiografia de tórax Hemograma completo, creatinina, PFHs a cada 2-3 meses Leflunomida 10-20 mg/dia Hepatotoxicidade Mielossupressão Infecção Categoria X para gravidez Alopécia Diarreia Hemograma completo, PFHs Painel de hepatite virala Hemograma completo, creatinina, PFHs a cada 2-3 meses Inibidores de TNF-α Infliximabe: 3 mg/kg IV nas semanas 0, 2, 6 e, então, a cada 8 semanas. A dose pode ser aumentada para até 10 mg/kg a cada 4 semanas ↑ Risco de infecções bacterianas e fúngicas Reativação de TB latente ↑ Risco de linfoma (controverso) Lúpus induzido por fármacos Déficit neurológico Reação à infusão ↑ PFHs Teste PPD cutâneo PFHs periodicamente Etanercepte: 50 mg SC por semana ou 25 mg SC 2× por semana Como acima Reação no local da injeção Teste PPD cutâneo Monitorar as reações no local da injeção Adalimumabe: 40 mg SC a cada 2 semanas Como acima Reação no local da injeção Teste PPD cutâneo Monitorar as reações no local da injeção Golimumabe: 50 mg SC por mês Como acima Reação no local da injeção Teste PPD cutâneo Monitorar as reações no local da injeção Certolizumabe: 400 mg SC nas semanas 0, 2, 4 e, em seguida, 200 mg a cada 2 semanas Como acima Reação no local da injeção Teste PPD cutâneo Monitorar as reações no local da injeção Abatacepte Com base no peso: < 60 kg: 500 mg 60-100 kg: 750 mg > 100 kg: 1.000 mg Dose IV nas semanas 0, 2 e 4 e, em seguida, a cada 4 semanas OU 125 mg SC por semana ↑ Risco de infecções bacterianas e virais Cefaleia Náuseas Teste PPD cutâneo Monitorar as reações à infusão Anacinra 100 mg/dia, SC ↑ Risco de infecções bacterianas e virais Reativação de TB latente Neutropenia Reação no local da injeção Cefaleia Teste PPD cutâneo Hemograma completo com diferencial Hemograma completo mensal por 3 meses e, subsequentemente, a cada 4 meses por 1 ano Monitorar as reações no local da injeção Rituximabe 1.000 mg IV 2× nos dias 0 e 14 Pode-se repetir o curso a cada 24 semanas ou mais ↑ Risco de infecções Erupção Febre Hemograma completo Hemograma completo em intervalos regulares Pré-medicar com 100 mg de metilprednisolona para reduzir a reação à infusão bacterianas e virais Reação à infusão Citopenia Reativação da hepatite B Painel de hepatite virala Tocilizumabe 4-8 mg/kg 4-8 mg/kg IV por mês OU 162 mg SC a cada 2 semanas (< 100 kg de peso) 162 mg SC por semana (≥ 100 kg de peso) Risco de infecção Reação à infusão Elevação das PFHs Dislipidemia Citopenias Teste PPD cutâneo Hemograma completo e PFHs em intervalos regulares Tofacitinibe 5 mg por via oral, 2×/dia OU 11 mg por via oral por dia Risco de infecção Elevação das PFHs Dislipidemia Neutropenia Infecções das vias aéreas superiores Diarreia Cefaleia Nasofaringite Teste PPD cutâneo Hemograma completo, PFHs e lipídeos em intervalos regulares aPainel de hepatite viral: antígeno de superfície da hepatite B, anticorpo antivírus da hepatite C. Siglas: DMARDs, fármacos antirreumáticos modificadores da doença; G6PD, glicose-6-fosfato-desidrogenase; IV, intravenoso; PFHs, provas de função hepática; PPD, derivado proteico purificado; SC, subcutâneo; TB, tuberculose. AINEs Os AINEs foram considerados o centro de todas as terapias para AR, entretanto, hoje, são considerados agentes adjuvantes para o controle dos sintomas não controlados por outras medidas. Os AINEs exibem tanto propriedades analgésicas como anti-inflamatórias. Os efeitos anti-inflamatórios dos AINEs derivam de sua habilidade de inibir não seletivamente as cicloxigenases (COXs) 1 e 2. Embora os resultados de ensaios clínicos sugiram que os AINEs são, a grosso modo, equivalentes em sua eficácia, a experiência sugere que alguns indivíduos podem reagir preferencialmente a um AINE em particular. O uso crônico deve ser minimizado, devido à possibilidade de efeitos colaterais, incluindo gastrite e úlcera péptica, bem como comprometimento da função renal. GLICOCORTICOIDES Os glicocorticoides podem atuar de várias formas para controlar a atividade da doença na AR. Em primeiro lugar, podem ser administrados em doses baixas a moderadas para alcançar o rápido controle da doença antes do estabelecimento da terapia eficiente com DMARD, que, em geral, demora algumas semanas ou até meses. Em segundo lugar, pode ser prescrita uma carga de glicocorticoides por 1 a 2 semanas para o controle dos picos de doença aguda, com a dose e a duração sendo guiadas pela gravidade da exacerbação. A administração crônica de baixas doses (5-10 mg/dia) de prednisona (ou seu equivalente) pode também ser indicada para controlar a atividade da doença em pacientes com uma resposta inadequada à terapia por DMARD. Tem sido mostrado, em estudos prospectivos, que a terapia com baixas doses de prednisona retarda a progressão radiográfica da doença articular; entretanto, os benefícios dessa estratégia devem ser cuidadosamente considerados em relação aos riscos. As melhores práticas minimizamo uso crônico da terapia de prednisona em baixas doses devido ao risco de osteoporose e outras complicações em longo prazo; entretanto, o uso da terapia crônica com prednisona é inevitável em alguns casos. Altas doses de glicocorticoides poderão ser necessárias para o tratamento de manifestações extra-articulares graves da AR, como a DPI. Por fim, se o paciente apresentar uma ou poucas articulações ativamente inflamadas, o médico poderá considerar a injeção intra-articular de um glicocorticoide de ação intermediária, como a triancinolona acetonida. Essa estratégia pode permitir o rápido controle da inflamação em um número limitado de articulações afetadas. Deve-se ter cuidado para excluir apropriadamente a infecção articular, pois, em geral, ela mimetiza um surto de AR. A osteoporose é considerada uma importante complicação do uso crônico da prednisona. Com base nos fatores de risco de um paciente – incluindo a dosagem total de prednisona, a duração do tratamento, o sexo, a etnia e a densidade óssea –, o tratamento com bisfosfonatos pode ser apropriado para a prevenção primária da osteoporose induzida por glicocorticoide. Outros agentes, incluindo teriparatida e denosumabe, foram aprovados para uso no tratamento de osteoporose e podem ser indicados em certos casos. Embora seja comprovado que o uso de prednisona aumenta o risco de úlcera péptica, sobretudo com o uso concomitante de AINEs, nenhuma recomendação com base em evidências foi publicada a respeito do uso de profilaxia para a úlcera gastrintestinal nessa situação. DMARDs Os DMARDs são assim chamados devido à sua habilidade em retardar ou impedir a progressão estrutural da AR. Os DMARDs convencionais incluem a hidroxicloroquina, a sulfassalazina, o metotrexato e a leflunomida; eles exibem um atraso no início de suas atividades de cerca de 6 a 12 semanas. O metotrexato é o DMARD de escolha usado no tratamento da AR e é o fármaco-âncora para a maior parte das terapias combinadas. Seu uso foi aprovado para o tratamento da AR em 1988 e permanece como a referência de eficácia e segurança para novas terapias modificadoras da doença. Nas dosagens utilizadas para o tratamento da AR, demonstrou-se que o metotrexato estimula a liberação de adenosina das células, produzindo um efeito anti-inflamatório. A eficácia clínica da leflunomida, um inibidor da síntese de pirimidina, parece ser semelhante à do metotrexato. Em ensaios bem delineados, esse agente se mostrou eficaz para o tratamento da AR como monoterapia ou em combinação com o metotrexato e outros DMARDs. Embora semelhante aos outros DMARDs em sua forma lenta de ação, a hidroxicloroquina não se mostrou eficiente em retardar a progressão radiográfica da doença, portanto não é considerada um DMARD verdadeiro. Na prática clínica, a hidroxicloroquina, em geral, é utilizada para o tratamento da doença precoce leve ou como terapia adjuvante em combinação com outros DMARDs. A sulfassalazina é utilizada de forma semelhante e foi mostrado em estudos controlados randomizados que ela reduz a progressão radiográfica da doença. Minociclina, sais de ouro, penicilamina, azatioprina e ciclosporina foram todos utilizados no tratamento da AR, com graus variáveis de sucesso; entretanto, são usados atualmente de forma esparsa devido à sua eficácia clínica inconsistente ou ao seu perfil desfavorável de toxicidade. AGENTES BIOLÓGICOS Os DMARDs biológicos revolucionaram o tratamento da AR durante a última década (Tab. 351-2). São proteínas terapêuticas que têm como alvo principal as citocinas e as moléculas da superfície celular. Os inibidores de TNF foram os primeiros agentes biológicos aprovados para o tratamento da AR. A anacinra, um antagonista do receptor de IL-1, foi aprovada logo em seguida; entretanto, seus benefícios se mostraram relativamente modestos comparados aos outros agentes biológicos, e a anacinra raramente é utilizada para o tratamento da AR em caso de disponibilidade de outros agentes mais eficazes. Abatacepte, rituximabe e tocilizumabe são os mais novos membros dessa classe. Agentes anti-TNF O desenvolvimento de inibidores de TNF foi originalmente estimulado pelo achado experimental de que o TNF é um mediador crítico da inflamação articular. Atualmente, cinco agentes que inibem o TNF-α foram aprovados para o tratamento da AR. Existem três diferentes anticorpos monoclonais anti-TNF. O infliximabe é um anticorpo monoclonal quimérico (parte murino e parte humano), ao passo que o adalimumabe e o golimumabe são anticorpos monoclonais humanizados. O certolizumabe pegol é um fragmento peguilado de um anticorpo monoclonal humanizado sem a porção Fc com especificidade de ligação para o TNF-α. Por fim, o etanercepte é uma proteína de fusão solúvel constituída pelo receptor de TNF 2 em ligação covalente com a porção Fc de IgG1. Estudos clínicos controlados randomizados mostraram que todos os inibidores de TNF reduzem os sinais e os sintomas da AR, reduzem a progressão radiográfica do dano articular e melhoram a função física e a qualidade de vida. Fármacos anti-TNF são usados em combinação com terapia de fundo com metotrexato. Esse regime de combinação, que alcança o benefício máximo em muitos casos, em geral é o próximo passo para o tratamento de pacientes com resposta inadequada à terapia com metotrexato. Etanercepte, adalimumabe, certolizumabe pegol e golimumabe também foram aprovados para o uso como monoterapias. Os agentes anti-TNF devem ser evitados em pacientes com infecção ativa ou com história de hipersensibilidade a esses agentes e são contraindicados em pacientes com infecção crônica de hepatite B ou com insuficiência cardíaca congestiva de classe III/IV. A preocupação mais importante é o risco aumentado de infecção, incluindo infecções bacterianas graves, infecções fúngicas oportunísticas e a reativação da tuberculose latente. Por essa razão, todos os pacientes são investigados para tuberculose latente de acordo com as diretrizes nacionais dos Estados Unidos antes de iniciar a terapia com anti-TNF (C ap. 173). Nos Estados Unidos, os pacientes passam por teste cutâneo usando uma injeção intradérmica de derivado proteico purificado (PPD, de purified protein derivative); indivíduos com reações cutâneas maiores que 5 mm são considerados previamente expostos à tuberculose, avaliados quanto à presença da doença ativa e tratados de acordo. O uso de um ensaio de liberação de γ-IFN também pode ser apropriado para triagem, uma vez que dados sugerem uma baixa taxa de resultados falso-negativos e falso-positivos com esse teste em comparação aos testes cutâneos com PPD em pacientes tratados com corticosteroides. Embora uma combinação do teste cutâneo com PPD com o ensaio de liberação de γ-IFN possa oferecer a sensibilidade mais alta para fins de triagem, não há diretrizes de consenso. Anacinra A anacinra é a forma recombinante do antagonista do receptor de IL-1 que existe naturalmente. Apesar do uso restrito no tratamento da AR, esse agente tem desfrutado de um ressurgimento tardio como uma terapia eficaz de algumas síndromes hereditárias raras dependentes da produção de IL-1, incluindo doença multissistêmica inflamatória de início neonatal, síndrome de Muckle-Wells, urticária familiar ao frio, além de artrite idiopática juvenil sistêmica e doença de Still do adulto. A anacinra não deve ser combinada com um fármaco anti-TNF devido à alta taxa de infecções graves observada com esse regime em um estudo clínico. Abatacepte O abatacepte é uma proteína de fusão solúvel constituída pelo domínio extracelular do CTLA-4 humano ligado à porção modificada da IgG humana.Ele inibe a coestimulação de células T, bloqueando as interações CD28-CD80/86 e pode também inibir a função das células apresentadoras de antígeno por sinalização reversa via CD80 e CD86. Foi demonstrado em ensaios clínicos que o abatacepte diminui a atividade da doença, reduz a progressão radiográfica da lesão e melhora a incapacidade funcional. Muitos pacientes recebem abatacepte combinado com metotrexato ou outro DMARD, como a leflunomida. A terapia com abatacepte foi associada a um risco aumentado de infecção. Rituximabe O rituximabe é um anticorpo monoclonal quimérico dirigido contra o CD20, uma molécula de superfície celular expressa na maioria dos linfócitos B maduros. Ele atua depletando as células B, que, por sua vez, levam a uma redução na resposta inflamatória por mecanismos desconhecidos. Esses mecanismos podem incluir uma redução nos autoanticorpos, uma inibição de ativação da célula T e uma alteração da produção de citocinas. O rituximabe foi aprovado para uso combinado com metotrexato no tratamento da AR refratária, sendo mais eficaz no caso de pacientes soropositivos do que para aqueles com doença soronegativa. A terapia com rituximabe tem sido associada a reações infusionais leves a moderadas, bem como a um risco aumentado de infecção. Notavelmente, houve raros relatos isolados de um distúrbio cerebral potencialmente letal, a leucoencefalopatia multifocal progressiva (LEMP), em associação à terapia com rituximabe, embora o risco absoluto dessa complicação pareça ser muito baixo em pacientes com AR. A maioria desses casos ocorreu em um contexto de exposição prévia ou atual a outros fármacos imunossupressores potentes. Tocilizumabe O tocilizumabe é um anticorpo monoclonal humanizado direcionado contra as formas de membrana e solúveis do receptor de IL-6. A IL-6 é uma citocina pró-inflamatória implicada na patogênese da AR, com efeitos tanto na inflamação quanto na lesão articular. A ligação da IL-6 a seu receptor ativa as vias de sinalização intracelular, que afetam a resposta de fase aguda, a produção de citocinas e a ativação de osteoclastos. Ensaios clínicos atestam a eficácia clínica na terapia da AR com tocilizumabe, tanto como monoterapia quanto em combinação com metotrexato e outros DMARDs. O tocilizumabe tem sido associado a um risco aumentado de infecção, neutropenia e trombocitopenia; entretanto, as anormalidades hematológicas parecem ser reversíveis após a interrupção do fármaco. Em adição, foi comprovado que esse agente eleva os níveis de LDL colesterol. Entretanto, não se sabe se esse efeito sobre os níveis de lipídeos aumenta o risco de desenvolvimento de doença aterosclerótica. INIBIDORES DE PEQUENAS MOLÉCULAS Como alguns pacientes não respondem adequadamente à terapia convencional com DMARDs ou biológica, outros alvos terapêuticos foram investigados para preencher esse intervalo. Recentemente, o desenvolvimento de fármacos na AR focalizou a atenção nas vias de sinalização intracelulares que transduzem sinais positivos de citocinas e outros mediadores inflamatórios que criam alças de feedback positivo na resposta imune. Esses DMARDs sintéticos almejam proporcionar a mesma eficácia das terapias biológicas em uma formulação oral. Tofacitinibe O tofacitinibe é um inibidor de pequenas moléculas que inibe primariamente JAK1 e JAK3, que medeiam a sinalização dos receptores de citocinas relacionadas à cadeia γ comum, IL-2, IL-4, IL-7, IL- 9, IL-15 e IL-21, assim como γ-IFN e IL-6. Todas essas citocinas desempenham papéis na promoção da ativação das células T e B, assim como na inflamação. Em ensaios clínicos randomizados controlados por placebo, foi demonstrado que o tofacitinibe, um agente oral, melhora significativamente os sinais e os sintomas da AR quando comparado ao placebo. Os possíveis eventos adversos incluem transaminases séricas elevadas indicativas de lesão hepática, neutropenia, níveis de colesterol aumentados e elevação da creatinina sérica. Seu uso também está associado ao aumento do risco de infecções. O tofacitinibe pode ser usado como monoterapia ou em combinação com o metotrexato. TRATAMENTO DE MANIFESTAÇÕES EXTRA- ARTICULARES De modo geral, o tratamento da AR subjacente modifica favoravelmente as manifestações extra-articulares, sendo que o manejo agressivo da doença inicial aparentemente tem o potencial de prevenir a ocorrência dessas manifestações. A AR associada à doença pulmonar intersticial (AR-DPI), todavia, pode ser particularmente desafiadora para se tratar, uma vez que alguns DMARDs usados no tratamento da AR estão associados à toxicidade pulmonar, como ocorre com o metotrexato e a leflunomida. Doses altas de corticosteroides e agentes imunossupressores adjuntos, como azatioprina, micofenolato de mofetila e rituximabe, foram usadas no tratamento da AR-DPI. ABORDAGEM AO PACIENTE Artrite reumatoide A pirâmide de tratamento original da AR atualmente é considerada obsoleta e evoluiu para uma nova estratégia centralizada em diversos objetivos: (1) tratamento agressivo precoce para prevenir a lesão articular e a incapacidade; (2) modificação frequente da terapia com utilização da terapia de combinação, quando apropriada; (3) individualização da terapia na tentativa de maximizar a resposta e minimizar os efeitos colaterais; e (4) remissão, sempre que possível, da atividade da doença clínica. Uma quantidade considerável de evidências sustenta essa abordagem de tratamento intensivo. Como mencionado anteriormente, o metotrexato é o DMARD de primeira escolha para o tratamento inicial da AR moderada a grave. A falha no alcance da melhora adequada com a terapia com metotrexato indica uma alteração na terapia com DMARD, em geral alterando-se para um regime de combinação eficaz. Combinações eficazes incluem: metotrexato, sulfassalazina e hidroxicloroquina (terapia tripla oral); metotrexato e leflunomida; e metotrexato mais um agente biológico. Em ensaios controlados randomizados, foi demonstrado que a combinação de metotrexato com um agente anti-TNF, por exemplo, é superior ao uso do metotrexato isolado não apenas para reduzir os sinais e os sintomas da doença, como também para retardar a progressão do dano articular estrutural. Predizer quais pacientes têm maior risco de desenvolver lesão articular radiológica é, na melhor das hipóteses, impreciso, embora alguns fatores, como o nível sérico elevado de reagentes de fase aguda, a inflamação articular grave e a presença de doença erosiva, estejam associados a uma maior probabilidade de se desenvolver lesão estrutural. Em 2015, o American College of Rheumatology atualizou e publicou suas diretrizes para o tratamento da AR. Essas diretrizes fazem uma distinção no tratamento dos pacientes com doença ainda inicial (duração < 6 meses) e dos com doença estabelecida, destacando o uso de uma abordagem “tratamento-alvo” e a necessidade de trocar ou adicionar terapias destinadas a uma piora da doença ou a uma doença com atividade persistentemente moderada/alta. Exemplificando, em pacientes com AR inicial com atividade de doença persistentemente moderada/alta sob terapia com DMARD em monoterapia, os profissionais devem considerar o escalonamento para terapia de combinação com DMARD ou a troca para um anti-TNF +/– metotrexato ou agente biológico não TNF +/– metotrexato. Uma vez que foi demonstrado que uma abordagem inicial mais intensiva (p. ex., terapia combinada com DMARD) produz desfechos em longo prazo superiores aos daqueles obtidos apenas com metotrexato inicial, a abordagem usual consiste em adotar primeiro o metotrexato e, então, seguir de forma rápida (p. ex., após 3-6 meses)e escalonada para a terapia combinada com DMARD ou um agente anti-TNF ou um agente biológico não TNF na ausência de resposta terapêutica adequada. Alguns pacientes poderão ser intolerantes aos efeitos colaterais de um fármaco anti-TNF ou não responder a ele. Respondedores iniciais a um agente anti-TNF que posteriormente pioram poderão se beneficiar da substituição por um segundo agente anti-TNF ou por um agente biológico alternativo com um mecanismo de ação diferente. De fato, alguns estudos sugerem que a mudança para um agente biológico alternativo, como o abatacepte, é mais efetiva do que para outro fármaco anti-TNF. Uma toxicidade inaceitável a partir do uso de um agente anti-TNF também pode requerer a troca para outro agente biológico com um mecanismo diferente de ação ou um regime com DMARD convencional. Estudos também demonstraram que a terapia tripla oral (hidroxicloroquina, metotrexato e sulfassalazina) também pode ser usada de forma efetiva no tratamento da AR inicial. O tratamento pode ser iniciado apenas com metotrexato e, na ausência de uma resposta adequada ao tratamento, seguido dentro de 6 meses por um escalonamento para a terapia tripla oral. Um estado clínico definido como atividade baixa de doença ou remissão é o objetivo ideal da terapia, embora a maioria dos pacientes nunca alcance a remissão completa, apesar de todos os esforços empregados. Índices compostos, como o Escore de Atividade da Doença-28 (DAS-28), são úteis para classificar os estados de atividade baixa da doença e a remissão; entretanto, são ferramentas imperfeitas, devido às limitações do exame clínico da articulação, em que uma sinovite de baixo grau pode escapar da detecção. A remissão completa foi rigorosamente definida como ausência total de qualquer inflamação articular e extra-articular e atividade imunológica relacionada à AR. Entretanto, evidências desse estado podem ser difíceis de serem demonstradas na prática clínica. Em um esforço para padronizar e simplificar a definição de remissão para os ensaios clínicos, o ACR e a EULAR desenvolveram duas definições operacionais de remissão da AR (Tab. 351-3). Um paciente poderá ser considerado em remissão quando (1) atender a todos os critérios clínicos e laboratoriais listados na Tab ela 351-3 ou (2) apresentar escore SDAI ≤ 3,3. O SDAI é calculado considerando-se a soma de uma contagem de articulações dolorosas e edemaciadas (considerando 28 articulações), a avaliação global do paciente (escala de 0-10), a avaliação global do médico (escala de 0-10) e a proteína C-reativa (em mg/dL). Essa definição de remissão não leva em consideração a possibilidade de sinovite subclínica ou de que a lesão por si só, possa levar a uma articulação dolorosa ou edemaciada. Ignorando-se a semântica dessas definições, os critérios de remissão já mencionados são, apesar disso, úteis para estabelecer o nível de controle da doença que provavelmente resultará em pouca ou nenhuma progressão da lesão estrutural e da incapacidade. TABELA 351-3 ■ Definição da ACR/EULAR para remissão da artrite reumatoide A qualquer momento, o paciente deverá satisfazer todos os seguintes critérios: Contagem das articulações dolorosas ≤ 1 Contagem das articulações inchadas ≤ 1 Proteína C-reativa ≤ 1 mg/dL Avaliação global do paciente ≤ 1 (em uma escala de 0-10) OU A qualquer momento, o paciente deverá apresentar um escore SDAI ≤ 3,3 Fonte: Adaptada de DT Felson et al.: Arthritis Rheum 63:573, 2011. FISIOTERAPIA E EQUIPAMENTOS DE ASSISTÊNCIA Em princípio, todos os pacientes com AR devem receber prescrição para exercício e atividade física. O treinamento de força dinâmica, a fisioterapia abrangente em nível ambulatorial e o aconselhamento da atividade física (enfatizando 30 minutos de atividade moderadamente intensa no maior número de dias por semana) sabidamente melhoram a força muscular e o estado de saúde percebido. As órteses para os pés com deformidade dolorosa em valgo minimizam a dor, podendo reduzir a incapacidade e as limitações funcionais. O uso criterioso de talas para os punhos também pode reduzir a dor; entretanto, seus benefícios podem ser diminuídos pela redução da mobilidade e pela variabilidade na força de preensão. TRATAMENTO CIRÚRGICO Os procedimentos cirúrgicos podem aliviar a dor e melhorar a incapacitação na AR, com graus variáveis de sucesso relatado em longo prazo – mais notavelmente, nas mãos, nos punhos e nos pés. Para articulações maiores, como o joelho, o quadril, o ombro ou o cotovelo, a opção preferida para a artropatia avançada pode ser a artroplastia total. Há poucas opções cirúrgicas para lidar com as pequenas articulações das mãos. Implantes de silicone são o recurso protético mais comum para a artroplastia de MCF e, em geral, são usados em pacientes com redução grave no arco de movimento, marcadas contraturas de flexão, dor articular na MCF com anormalidades radiográficas e desvio ulnar grave. A artrodese e a artroplastia completa do punho são reservadas para pacientes com doença grave que apresentam dor substancial e comprometimento funcional. Esses dois procedimentos parecem funcionar com igual eficiência em termos de controle da dor e satisfação do paciente. Existem diversas opções cirúrgicas para correção do hálux valgo no antepé, incluindo a artrodese e a artroplastia, assim como a artrodese, principalmente para a dor refratária no retropé. OUTRAS CONSIDERAÇÕES NO MANEJO Gravidez Até 75% das pacientes com AR apresentam melhora total dos sintomas durante a gravidez, mas, em geral, há recidiva após o parto. Os surtos durante a gravidez são tratados com baixas doses de prednisona; a hidroxicloroquina e a sulfassalazina são provavelmente os DMARDs mais seguros para serem usados durante a gravidez. A terapia com metotrexato e leflunomida é contraindicada nesse período devido à sua teratogenicidade em animais e seres humanos. A experiência com agentes biológicos tem sido insuficiente para gerar recomendações específicas para seu uso durante a gravidez. De modo ideal, seu uso deve ser evitado, porém o controle da AR ativa durante a gravidez pode ser prioritário em alguns casos. Pacientes idosos A AR se manifesta em até um terço dos pacientes após os 60 anos; entretanto, idosos podem receber tratamento menos agressivo devido aos riscos aumentados envolvidos na toxicidade dos fármacos. Estudos sugerem que os DMARDs convencionais e os agentes biológicos são igualmente eficazes e seguros em pacientes jovens e idosos. Devido às comorbidades, vários pacientes idosos apresentam risco aumentado de infecção. O envelhecimento também leva ao declínio gradual da função renal, que poderá elevar o risco de efeitos colaterais de AINEs e de alguns DMARDs, como o metotrexato. A função renal deverá ser avaliada antes da prescrição do metotrexato, que é principalmente eliminado pelos rins. Para reduzir os riscos dos efeitos colaterais, as doses de metotrexato poderão precisar de redução, devido à queda na função renal que, normalmente, ocorre na sétima e na oitava décadas de vida. O metotrexato geralmente não é prescrito para pacientes com níveis séricos de creatinina acima de 2 mg/dL. DESAFIOS GLOBAIS Os países em desenvolvimento são palco de um aumento na incidência de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, doença cardiovascular e AR, diante da pobreza contínua, da presença alarmante de doenças infecciosas e do pouco acesso às facilidades do tratamento moderno de saúde. Nessas áreas, os pacientes tendem a apresentar maior retardo no diagnóstico, acesso limitado aos especialistas e, portanto, maior atividade da doença e incapacidadena apresentação. Além disso, o risco de infecção permanece um ponto significativo para o tratamento da AR nos países em desenvolvimento devido à imunossupressão associada ao uso de glicocorticoides e da maioria dos DMARDs. Por exemplo, em alguns países em desenvolvimento, os pacientes em tratamento de AR apresentam um aumento substancial na incidência de tuberculose, o que demanda a adoção de práticas de avaliação ainda mais abrangentes e o uso mais liberal de profilaxia com isoniazida do que nos países desenvolvidos. A prevalência aumentada das hepatites B e C, assim como da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), nesses países também impõe desafios. A reativação da hepatite viral tem sido observada em associação com alguns DMARDs, como o rituximabe. Além disso, o acesso reduzido à terapia antirretroviral pode limitar o controle da infecção por HIV e, portanto, a escolha das terapias com DMARDs. Apesar desses desafios, deve-se tentar programar o tratamento precoce da AR nos países em desenvolvimento com os recursos disponíveis. A hidroxicloroquina, a sulfassalazina e o metotrexato são razoavelmente acessíveis no mundo todo, podendo ser usados como monoterapia ou combinados com outros fármacos. O uso de agentes biológicos está aumentando nos países desenvolvidos, assim como em outras regiões do mundo, embora seu uso seja limitado pelo alto custo; protocolos nacionais restringem seu uso, e permanece a preocupação com o risco de infecções oportunistas. RESUMO O conhecimento mais amplo sobre a patogênese da AR e seu tratamento revolucionou significativamente o controle dessa doença. O prognóstico de pacientes com AR é vastamente superior ao observado na era anterior ao aparecimento dos modificadores biológicos; um número maior de pacientes do que no passado é capaz de evitar a incapacidade significativa e continuar a trabalhar, embora, em muitos casos, com algumas modificações em suas ocupações. A necessidade de tratamento precoce e agressivo da AR, bem como de consultas frequentes de acompanhamento e monitoramento da terapia com fármacos, tem implicações em nosso sistema de assistência médica. Os médicos de cuidados primários e os reumatologistas devem estar preparados para trabalhar em equipe no sentido de alcançar os objetivos ambiciosos da melhor prática clínica. Em muitos casos, os reumatologistas reestruturaram sua prática, de forma a dar alta prioridade às consultas de qualquer novo paciente com artrite inflamatória precoce. Os regimes terapêuticos para AR estão se tornando cada vez mais complexos com o arsenal terapêutico em rápida expansão. Os pacientes sob essa terapia devem ser cuidadosamente monitorados, tanto pelos médicos de cuidados primários quanto pelos reumatologistas, para minimizar o risco de efeitos colaterais e identificar rapidamente qualquer complicação de imunossupressão crônica. Além disso, a prevenção e o tratamento de condições associadas à AR, como a cardiopatia isquêmica e a osteoporose, provavelmente serão beneficiados por uma abordagem em equipe, devido ao valor do tratamento multidisciplinar. A pesquisa continuará a procurar novas terapias com eficácia superior e perfis mais seguros e a investigar estratégias de tratamento que possam controlar a doença mais rapidamente e alcançar a remissão. Entretanto, a prevenção e a cura da AR provavelmente necessitarão de novos avanços em nosso conhecimento sobre a patogênese da doença. Essas perspectivas poderão vir de estudos genéticos esclarecendo vias críticas para os mecanismos de inflamação articular. Igualmente ambicioso é o objetivo ambicioso do descobrimento de biomarcadores que abrirão as portas da medicina personalizada para o tratamento de pacientes com AR. LEITURAS ADICIONAIS Catrina AI et al: Lungs, joints and immunity against citrullinated proteins in rheumatoid arthritis. Nature Rev Rheumatol 10:645, 2014. 354 Síndrome de Sjögren Haralampos M. Moutsopoulos DEFINIÇÃO, INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA A síndrome de Sjögren é uma doença autoimune crônica, lentamente progressiva, caracterizada por infiltração linfocitária das glândulas exócrinas, resultando em xerostomia e olhos secos (ceratoconjuntivite seca). A síndrome exibe características singulares, uma vez que apresenta um amplo espectro clínico, abrangendo desde a exocrinopatia autoimune órgão-específica até a doença sistêmica. Um número pequeno, porém significativo, de pacientes desenvolve linfoma maligno. A doença pode se manifestar como uma entidade isolada ou associada a outras doenças autoimunes (Tab. 354-1). Por fim, a lesão histopatológica nas glândulas salivares menores labiais é facilmente acessível e auxilia na determinação do diagnóstico, do prognóstico e da patogênese da doença. TABELA 354-1 ■ Associação entre síndrome de Sjögren e outras doenças autoimunes Artrite reumatoide Lúpus eritematoso sistêmico Esclerodermia Doença mista do tecido conectivo Cirrose biliar primária Tireoidopatia autoimune Hepatite crônica ativa Mulheres de meia-idade (proporção feminina:masculina 9:1) são primariamente afetadas, embora a síndrome de Sjögren possa ocorrer em qualquer idade, inclusive em crianças. A prevalência da síndrome de Sjögren primária é de cerca de 0,5 a 1%, ao passo que 5 a 20% dos pacientes com outras doenças autoimunes padecem da síndrome de Sjögren (secundária). PATOGÊNESE A síndrome de Sjögren é caracterizada pela infiltração linfocitária das glândulas exócrinas e por hiper-reatividade de linfócitos B. Um processo oligomonoclonal de células B, que é caracterizado por imunoglobulinas monoclonais crioprecipitáveis (IgMĸ ou IgAκ) com atividade de fator reumatoide, é evidente em até 10% dos pacientes. Os soros de pacientes com síndrome de Sjögren frequentemente contêm autoanticorpos a antígenos não órgão-específicos, como imunoglobulinas (fatores reumatoides) e antígenos extraíveis nucleares e citoplasmáticos (Ro/SS- A, La/SS-B). O autoantígeno Ro/SS-A consiste em dois polipeptídeos (52 e 60 kDa, respectivamente) em conjunção com o RNAs citoplasmáticos, ao passo que a proteína La/SS-B de 48 kDa é ligada a transcritos da RNA-polimerase III. Autoanticorpos para antígenos Ro/SS-A e La/SS-B em geral estão presentes antes do diagnóstico e estão associados com início mais precoce da doença, duração mais longa, aumento de glândulas salivares, manifestações extraglandulares (sistêmicas) e infiltração linfocitária mais intensa de glândulas salivares menores. As principais células infiltrantes nas glândulas exócrinas afetadas são os linfócitos T ativados em lesões discretas, ao passo que as células B prevalecem nas lesões graves. Macrófagos e células dendríticas também são encontrados. Foi demonstrado que o número de macrófagos positivos para interleucina (IL)-18 correlaciona-se com o aumento da glândula parótida e os níveis séricos baixos do componente C4 do complemento, ambos preditivos adversos de desenvolvimento de linfoma. As células epiteliais dos ductos e dos ácinos parecem desempenhar um papel significante na iniciação e na perpetuação da lesão autoimune. Essas células (1) expressam moléculas coestimuladoras e expressam inadequadamente autoantígenos intracelulares Ro/SS-A e La/SS-B em suas membranas, adquirindo a capacidade de fornecer sinais essenciais para a ativação linfocitária; (2) produzem citocinas pró-inflamatórias e quimiocinas que atraem linfócitos, necessárias para sustentar a lesão autoimune e permitir a formação de centros germinativos ectópicos, um achado preditivo do desenvolvimento de linfoma; e (3) expressam receptores funcionais de imunidadeinata, particularmente receptores semelhantes ao Toll (TLRs, de Toll-like receptors) 3, 7 e 9, moléculas que podem contribuir para o início da reatividade autoimune. Tanto as células T como as células B infiltrantes tendem a ser resistentes à apoptose. Constatou-se que os níveis do fator ativador de células B (BAFF, de B cell-activating factor) estão elevados no soro e nos tecidos de pacientes com síndrome de Sjögren, em particular aqueles com hipergamaglobulinemia, e provavelmente são responsáveis por esse efeito antiapoptótico nos linfócitos B. Células epiteliais glandulares parecem ter um papel ativo na produção de BAFF, que pode ser expresso e secretado após a estimulação com interferonas dos tipos I e II. Estas últimas foram detectadas em células epiteliais ductais e em células T. O fator desencadeante da ativação epitelial parece ser uma infecção por enterovírus. A análise molecular de genes do antígeno leucocitário humano (HLA, de human leukocyte antigen) de classe II mostrou que a síndrome de Sjögren, independentemente da origem étnica do paciente, está altamente associada com o alelo HLA DQA1*0501. Estudos de associação genômica ampla revelaram uma prevalência aumentada de polimorfismos de nucleotídeo único em genes de IRF-5 e STAT-4, que participam na ativação da via da interferona tipo I. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS A maioria dos pacientes com síndrome de Sjögren tem sintomas relacionados com a função comprometida de glândulas lacrimais e salivares. A evolução da doença é lenta, e, na maioria dos pacientes, o curso é benigno. Estudos demonstraram que, antes do surgimento da doença, pacientes com síndrome de Sjögren passam por eventos estressantes significativos em suas vidas, os quais eles não conseguem superar adequadamente. O principal sintoma oral da síndrome de Sjögren é a secura (xerostomia). Os pacientes relatam dificuldade em deglutir alimentos secos, sensação de queimação na boca, aumento de cáries dentárias e problemas no uso de dentaduras completas. O exame físico revela uma mucosa oral seca, eritematosa e pegajosa. Há atrofia das papilas filiformes no dorso da língua, e a saliva oriunda das glândulas maiores é turva ou não expressável. O aumento da parótida ou de outras glândulas salivares maiores ocorre em dois terços dos pacientes com síndrome de Sjögren primária, mas é incomum naqueles que têm associação com a artrite reumatoide. Os testes diagnósticos incluem sialometria e técnicas de imagem mais modernas, incluindo ultrassonografia, RM e sialografia por ressonância magnética das principais glândulas salivares. A biópsia de glândula salivar menor labial permite confirmação histopatológica de infiltrados linfocitários focais. O comprometimento ocular é outra manifestação importante da síndrome de Sjögren. Os pacientes em geral descrevem uma sensação de areia ou poeira sob as pálpebras. Outros sintomas oculares incluem queimação, acúmulo de secreções em filamentos espessos nos cantos internos, diminuição do lacrimejamento, vermelhidão, coceira, vista cansada e fotossensibilidade aumentada. Esses sintomas, que definem a ceratoconjuntivite seca, são atribuídos à destruição do epitélio da córnea e da conjuntiva bulbar. A avaliação diagnóstica da ceratoconjuntivite seca inclui mensuração do fluxo lacrimal pelo teste de Schirmer I e determinação da composição das lágrimas, com avaliação do tempo de ruptura do filme lacrimal ou do conteúdo de lisozima da lágrima. O exame da córnea e da conjuntiva com lâmpada de fenda, após a coloração com lissamina verde ou Rosa Bengala, revela ulcerações corneanas puntiformes e filamentos presos de epitélio da córnea. O envolvimento de outras glândulas exócrinas, que ocorre com menos frequência, inclui uma diminuição da secreção de glândulas mucosas da árvore respiratória superior e inferior, resultando em secura do nariz, da garganta e da traqueia (xerotraqueia). Além disso, a secreção diminuída das glândulas exócrinas do trato gastrintestinal leva à atrofia da mucosa esofágica e à gastrite atrófica. Dispareunia, devido à secura da genitália externa, e pele seca também podem ocorrer. Manifestações extraglandulares (sistêmicas) são vistas em um terço dos pacientes com síndrome de Sjögren (Tab. 354-2), mas são muito raras em pacientes cuja síndrome de Sjögren está associada com artrite reumatoide. Elas podem ser classificadas da seguinte forma: inespecíficas; envolvimento de parênquima orgânico por linfócitos (periepiteliais); patologia mediada por imunocomplexo; e desenvolvimento de linfoma. Na primeira categoria, estão inclusos fácil fatigabilidade, febre baixa, fenômeno de Raynaud, mialgias, artralgias e artrite. Em pacientes com síndrome de Sjögren primária, a artrite não é erosiva. O envolvimento de parênquimas orgânicos, como os pulmões, os rins e o fígado, deve-se ao acúmulo periepitelial de linfócitos. Com base nessa observação, foi cunhado o termo epitelite autoimune. O envolvimento pulmonar geralmente se manifesta com tosse seca e, em casos raros, dispneia. A patologia pulmonar subjacente inclui infiltrados peribrônquicos e, mais raramente, pneumonite intersticial linfocítica. O comprometimento renal inclui nefrite intersticial, clinicamente manifestada por hipostenúria e disfunção tubular renal com ou sem acidose. A acidose não tratada pode levar à nefrocalcinose. A doença mediada por imunocomplexo é expressa como uma vasculite que afeta primariamente os vasos de pequeno calibre, manifestada sobretudo com púrpura e, em casos raros, com erupção urticariforme, ulcerações cutâneas, mononeurite multipla e glomerulonefrite membranoproliferativa com crioglobulinemia mista. O envolvimento do sistema nervoso central raramente é reconhecido. Foram descritos poucos casos de mielite associada com anticorpos anti-aquaporina 4. TABELA 354-2 ■ Prevalência de manifestações extraglandulares na síndrome de Sjögren primária Manifestação clínica % Observações Inespecífica Fatigabilidade/mialgias 25 Fibromialgia Artralgias/artrite 60 Geralmente não erosiva, levando à artropatia de Jaccoud Fenômeno de Raynaud 37 Em um terço dos pacientes, precede as manifestações secas Periepitelial Envolvimento pulmonar 14 Doença de pequenas vias aéreas/pneumonite intersticial linfocítica Envolvimento renal 9 Doença renal intersticial geralmente assintomática Envolvimento hepático 6 Cirrose biliar primária estágio I Mediada por imunocomplexo Vasculite de pequenos vasos Púrpura, lesões urticariformes Neuropatia periférica 2 Polineuropatia, seja sensitiva ou sensitivomotora Glomerulonefrite Membranoproliferativa Linfoma Linfoma 6 Linfoma MALTa glandular é o mais comum aTecido linfoide associado à mucosa. Pacientes com síndrome de Sjögren associada com artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico apresentam risco cardiovascular aumentado. Linfoma na síndrome de Sjögren costuma se manifestar mais tardiamente no curso da doença. Aumento persistente da glândula parótida, púrpura, leucopenia, crioglobulinemia, níveis séricos baixos de complemento C4, autoanticorpos (anti-Ro/SS-A, anti-La/SS-B) e formação de centros germinativos ectópicos em glândulas salivares menores são manifestações preditivas do desenvolvimento de linfoma. A maioria dos linfomas são linfomas de células B de zona marginal extranodais de baixo grau e, em geral, é detectada de modo incidental durante a avaliação da biópsia de glândula salivar menor labial. Os linfonodos afetados, em geral, são periféricos. As taxas de sobrevida estão diminuídas em pacientes com sintomas B, massa de linfonodo com diâmetro > 7 cm e grau histológico alto ou intermediário. Exames laboratoriais de rotina na síndrome deSjögren revelam anemia normocrômica normocítica leve. Uma velocidade de hemossedimentação elevada é encontrada em cerca de 70% dos pacientes. Certos autoanticorpos podem determinar diferentes fenótipos de doença. Pacientes positivos para autoanticorpo anticentrômero apresentam um quadro clínico semelhante ao da esclerodermia limitada (Cap. 353). Anticorpos antimitocondriais podem denotar envolvimento hepático na forma de cirrose biliar primária (Cap. 339). Autoanticorpos contra 21-hidroxilase foram descritos recentemente em quase 20% dos pacientes associados com resposta suprarrenal atenuada. I. 1. DIAGNÓSTICO E DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL A síndrome de Sjögren primária é diagnosticada se (1) o paciente apresenta secura de olhos e/ou boca, (2) os testes oculares revelam ceratoconjuntivite seca, (3) a avaliação da boca mostra a mucosa oral seca e/ou (4) o soro do paciente reage com imunoglobulinas (fatores reumatoides) e autoantígenos Ro/SS-A e/ou La/SS-B. A biópsia labial é necessária para fins diagnósticos ou prognósticos, bem como para excluir outras condições que podem causar secura na boca ou nos olhos ou aumento da glândula parótida (Tabs. 354-3 e 354-4). O aumento de glândulas salivares maiores, particularmente em pacientes sem autoanticorpos, deve levantar a suspeita de síndrome relacionada com IgG4. Métodos validados de atividade de doença e critérios de classificação foram estabelecidos (Tab. 354 -5). TABELA 354-3 ■ Diagnóstico diferencial dos sintomas secos Xerostomia Olhos secos Aumento bilateral da glândula parótida Infecções virais (HCV, HIV) Medicamentos Psicoterápicos Parassimpaticolíticos Anti-hipertensivos Origem psicogênica Radiação Diabetes melito Traumatismo Síndrome de Sjögren Amiloidose Inflamação Síndrome de Stevens-Johnson Penfigoide Conjuntivite crônica Blefarite crônica Síndrome de Sjögren Toxicidade Queimaduras Medicamentos Condições neurológicas Deficiência de função das glândulas lacrimais Deficiência de função das pálpebras Outros Traumatismo Hipovitaminose A Anormalidade do piscar Córnea anestesiada Fibrose palpebral Irregularidade epitelial Infecções virais Caxumba Influenza Vírus Epstein-Barr Vírus Coxsackie A Citomegalovírus HIV, HCV Sarcoidose, tuberculose Síndrome IgG4 Síndrome de Sjögren Distúrbios metabólicos Diabetes melito Hiperlipoproteinemias (tipos IV e V) Pancreatite crônica Cirrose hepática Endócrinos Acromegalia Hipofunção gonadal TABELA 354-4 ■ Diagnóstico diferencial da síndrome de Sjögren Infecção pelo HIV e síndrome sicca Síndrome de Sjögren Sarcoidose Predominante em homens jovens Predominante em mulheres de meia-idade Sem preferência de idade ou sexo Ausência de autoanticorpos contra Ro/SS-A e/ou La/SS-B Presença de autoanticorpos Ausência de autoanticorpos contra Ro/SS-A e/ou La/SS-B Infiltrados linfoides de glândulas salivares por linfócitos T CD8+ Infiltrados linfoides de glândulas salivares por linfócitos T CD4+ Granulomas nas glândulas salivares Associação com HLA-DR5 Associação com HLA-DR3 e DRw52 Desconhecida Testes sorológicos para HIV positivos Testes sorológicos para HIV negativos Testes sorológicos para HIV negativos TABELA 354-5 ■ Critérios revisados de classificação internacional para síndrome de Sjögrena,b,c Sintomas oculares: resposta positiva para pelo menos 1 de 3 questões validadas. Você tem tido incômodo de olhos secos persistente e diário há mais de 3 meses? 2. 3. II. 1. 2. 3. III. 1. 2. IV. V. 1. 2. 3. IV. Você tem uma sensação recorrente de areia ou poeira nos olhos? Você usa lágrimas artificiais mais de 3×/dia? Sintomas orais: resposta positiva para pelo menos 1 de 3 questões validadas. Você tem tido uma sensação de boca seca diariamente há mais de 3 meses? Você teve inchaço recorrente ou persistente de glândulas salivares na fase adulta? Você bebe líquidos com frequência para ajudar a engolir alimentos secos? Sinais oculares: evidência objetiva de comprometimento ocular, definido como um resultado positivo a pelo menos 1 dos seguintes testes: Teste de Schirmer I, realizado sem anestesia (≤ 5 mm em 5 min) Escore de Rosa Bengala ou escore de outro corante ocular (≥ 4, conforme o sistema de escores de van Bijsterveld) Histopatologia: sialoadenite linfocitária focal em glândulas salivares menores, com escore de foco ≥ 1. Comprometimento de glândula salivar: evidência objetiva de envolvimento de glândula salivar, definido por um resultado positivo de pelo menos 1 dos seguintes testes diagnósticos: Fluxo salivar total não estimulado (≤ 1,5 mL em 15 min) Sialografia de parótida Cintilografia salivar Anticorpos no soro contra os antígenos Ro/SS-A e/ou La/SS-B. aCritérios de exclusão: radioterapia de cabeça e pescoço no passado, infecção por hepatite C, Aids, linfoma preexistente, sarcoidose, doença do enxerto contra o hospedeiro, uso de anticolinérgicos. bSíndrome de Sjögren primária: quaisquer 4 dos 6 itens, contanto que o item IV (histopatologia) ou o item VI (sorologia) seja positivo; ou quaisquer 3 dos 4 critérios objetivos (itens III, IV, V, VI). cEm pacientes com uma doença potencialmente associada (p. ex., uma outra doença do tecido conectivo bem definida), a presença dos itens I ou II mais quaisquer 2 entre os itens III, IV e V pode ser considerada como indicativa de síndrome de Sjögren secundária. Fonte: De C Vitali et al.: Ann Rheum Dis 61:554, 2002. ©2002 com permissão de BMJ Publishing Group Ltd. TRATAMENTO Síndrome de Sjögren O tratamento da síndrome de Sjögren visa ao alívio sintomático e à limitação do dano resultante da xerostomia crônica e da ceratoconjuntivite seca por meio da substituição ou da estimulação das secreções comprometidas (Fig. 354-1). FIGURA 354-1 Algoritmo de tratamento para síndrome de Sjögren. CHOP, ciclofosfamida, doxorrubicina (hidroxidaunorrubicina), vincristina (Oncovin) e prednisona. Para repor as lágrimas escassas, vários preparados oftálmicos estão prontamente disponíveis (hidroxipropilmetilcelulose; álcool polivinílico; metilcelulose a 0,5%). Se houver ulcerações da córnea, é recomendado o uso de oclusão ocular e pomadas de ácido bórico. Certos fármacos que podem diminuir a secreção lacrimal e salivar, como diuréticos, anti-hipertensivos, anticolinérgicos e antidepressivos, devem ser evitados. Para a xerostomia, a melhor reposição é a água. Um gel de ácido propiônico pode ser usado para tratar o ressecamento vaginal. Para estimular secreções, a pilocarpina administrada por via oral (5 mg, 3 vezes por dia) ou a cevimelina (30 mg, 3 vezes por dia) parecem melhorar as manifestações secas, e ambas são bem toleradas. A hidroxicloroquina (200 mg/dia) é útil para artralgias e artrite leve. Pacientes com acidose tubular renal devem receber bicarbonato de sódio por via oral (0,5-2 mmol/kg em 4 doses fracionadas). Glicocorticoides e anticorpo monoclonal anti-CD20 (rituximabe) parecem ser efetivos em pacientes com doença sistêmica, em particular naqueles com púrpura, artrite e fatigabilidade. A combinação de anti-CD20 com um regime CHOP clássico (ciclofosfamida, adriamicina [hidroxidaunorrubicina], vincristina [Oncovin] e prednisona) leva a taxas de sobrevida aumentadas em pacientes com linfomas de alto grau. Agradecimento Gostaria de agradecer ao Dr. Athanasios G. Tzioufas por sua contribuição à edição anterior deste capítulo. LEITURAS ADICIONAIS Mavragani CP, Fragoulis GE, Moutsopoulos HM: Endocrine alterations in primary Sjogren’s syndrome: An overview. J Autoimmun 39:354, 2012. Mavragani CP, Moutsopoulos HM: Sjögren’s syndrome. CMAJ 186:579, 2014. Mavragani CP, Nezos A, Moutsopoulos HM: New advances in the classification, pathogenesis and treatment of Sjogren’s syndrome. Curr Opin Rheumatol 25:623, 2013. Moutsopoulos HM: Sjögren’s syndrome: A forty-year scientific journey. J Autoimmun 51:1, 2014. 356 Síndromes de vasculite Carol A. Langford, Anthony S. Fauci DEFINIÇÃO A vasculiteé um processo clinicopatológico caracterizado por inflamação e lesão de vasos sanguíneos. O lúmen vascular, em geral, é comprometido, o que está associado à isquemia dos tecidos supridos pelo vaso afetado. Um grupo amplo e heterogêneo de síndromes pode resultar desse processo, posto que qualquer tipo, tamanho e localização de vaso sanguíneo podem estar envolvidos. A vasculite e suas consequências podem ser a manifestação primária, ou mesmo a única manifestação, de uma doença; alternativamente, a vasculite pode ser um componente secundário de outra doença. Pode estar confinada a um único órgão, como a pele, ou acometer vários sistemas orgânicos simultaneamente. Ver também Capítulo A14, “Atlas das síndromes de vasculite”. CLASSIFICAÇÃO Um dos principais achados das síndromes de vasculite como um grupo é a existência de uma grande heterogeneidade, ao mesmo tempo que há sobreposição considerável entre elas. A Tabela 356-1 fornece uma lista das principais síndromes de vasculite. Os aspectos de diferenciação e sobreposição dessas síndromes são discutidos adiante. TABELA 356-1 ■ Síndromes de vasculite Síndromes de vasculite primária Síndromes de vasculite secundária Granulomatose com poliangeíte (de Wegener) Poliangeíte microscópica Granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) Vasculite por IgA (Henoch-Schönlein) Vasculite crioglobulinêmica Poliarterite nodosa Doença de Kawasaki Arterite de células gigantes Arterite de Takayasu Doença de Behçet Síndrome de Cogan Vasculite de um único órgão Angeíte leucocitoclástica cutânea Arterite cutânea Vasculite primária do sistema nervoso central Aortite isolada Vasculite associada a uma provável etiologia Vasculite induzida por fármacos Vasculite crioglobulinêmica associada ao vírus da hepatite C Vasculite associada ao vírus da hepatite B Vasculite associada ao câncer Vasculite associada à doença sistêmica Vasculite lúpica Vasculite reumatoide Vasculite sarcoide Fonte: Adaptada de JC Jennette et al.: Arthritis Rheum 65:1, 2013. FISIOPATOLOGIA E PATOGÊNESE Em geral, acredita-se que a maioria das síndromes de vasculite seja mediada, pelo menos em parte, por mecanismos imunopatogênicos que ocorrem em resposta a determinados estímulos antigênicos. Entretanto, a maior parte das evidências que apoiam essa hipótese são indiretas e podem refletir epifenômenos, em vez da causalidade real. Além disso, não se sabe por que alguns indivíduos podem desenvolver vasculite em resposta a certos estímulos antigênicos, ao passo que outros, não. É provável que diversos fatores estejam envolvidos na expressão final de uma síndrome de vasculite. Esses fatores incluem predisposição genética, exposições ambientais e mecanismos reguladores associados à resposta imune a determinados antígenos. Embora a formação de imunocomplexos, a presença de anticorpos anticitoplasma de neutrófilo (ANCAs, de antineutrophil cytoplasmic antibodies) e as respostas patogênicas dos linfócitos T (Tab. 356-2) estejam entre os principais mecanismos sugeridos, é provável que a patogênese de formas individuais de vasculite seja complexa e variada. TABELA 356-2 ■ Potenciais mecanismos de dano vascular nas síndromes de vasculite Formação e/ou deposição de imunocomplexos patogênicos Vasculite por IgA (Henoch-Schönlein) Vasculite lúpica Doença do soro e síndromes de vasculite cutânea Vasculite crioglobulinêmica associada ao vírus da hepatite C Vasculite associada ao vírus da hepatite B Produção de anticorpos anticitoplasma de neutrófilo Granulomatose com poliangeíte (de Wegener) Poliangeíte microscópica Granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) Respostas patogênicas de linfócitos T e formação de granulomas Arterite de células gigantes Arterite de Takayasu Granulomatose com poliangeíte (de Wegener) Granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) Fonte: Adaptada de MC Sneller, AS Fauci: Med Clin North Am 81:221, 1997. FORMAÇÃO PATOGÊNICA DE IMUNOCOMPLEXOS O depósito de imunocomplexos foi o primeiro mecanismo patogênico mais amplamente aceito da vasculite. Entretanto, o papel etiológico dos imunocomplexos não foi claramente estabelecido na maioria das síndromes de vasculite. A presença de imunocomplexos circulantes não necessariamente resulta em sua deposição nos vasos sanguíneos e subsequente vasculite, sendo que muitos pacientes com vasculite ativa não têm imunocomplexos demonstráveis, circulantes ou depositados. O verdadeiro antígeno contido no imunocomplexo foi identificado apenas raramente nas síndromes de vasculite. Nesse contexto, o antígeno da hepatite B foi identificado tanto em imunocomplexos circulantes quanto em depositados em uma subpopulação de pacientes que apresentam manifestações de vasculite sistêmica, mais notavelmente na poliarterite nodosa (ver “Poliarterite nodosa”). A vasculite crioglobulinêmica está fortemente associada à infecção pelo vírus da hepatite C; complexos antígeno-anticorpo do vírus e dos vírions da hepatite C foram identificados nos crioprecipitados desses pacientes (ver “Vasculite crioglobulinêmica”). Os mecanismos de lesão tecidual na vasculite mediada por imunocomplexos assemelham-se àqueles descritos para a doença do soro. Nesse modelo, os complexos antígeno-anticorpo são formados com excesso de antígeno e depositados nas paredes vasculares, cuja permeabilidade foi aumentada por aminas vasoativas, como a histamina, a bradicinina e os leucotrienos, liberadas de plaquetas ou de mastócitos como resultado de mecanismos desencadeados pela imunoglobulina E (IgE). A deposição de complexos resulta na ativação de componentes do complemento, em particular C5a, que é fortemente quimiotático para neutrófilos. Essas células, então, infiltram-se na parede vascular, fagocitam os imunocomplexos e liberam suas enzimas intracitoplasmáticas, as quais causam lesão na parede do vaso. À medida que o processo se torna subagudo ou crônico, células mononucleares infiltram a parede vascular. O denominador comum da síndrome resultante é o comprometimento do lúmen vascular, com alterações isquêmicas nos tecidos supridos pelo vaso acometido. Diversas variáveis podem explicar a razão pela qual apenas certos tipos de imunocomplexos causam vasculite e somente certos vasos são afetados em pacientes individuais. Essas variáveis incluem a capacidade do sistema reticuloendotelial de depurar complexos circulantes do sangue, o tamanho e as propriedades físico-químicas dos imunocomplexos, o grau relativo de turbulência do fluxo sanguíneo, a pressão hidrostática intravascular em diferentes vasos e a integridade preexistente do endotélio vascular. ANTICORPOS ANTICITOPLASMA DE NEUTRÓFILO Os anticorpos anticitoplasma de neutrófilo (ANCA) são dirigidos contra certas proteínas existentes nos grânulos citoplasmáticos de neutrófilos e monócitos. Esses autoanticorpos são encontrados em uma alta porcentagem de pacientes que apresentam granulomatose com poliangeíte (de Wegener) e poliangeíte microscópica ativas, bem como em uma porcentagem menor de pacientes que apresentam granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss). Como essas doenças compartilham a presença de ANCA e de vasculite de pequenos vasos, alguns pesquisadores passaram a denominá-las coletivamente “vasculites associadas ao ANCA”. Todavia, como essas doenças têm fenótipos clínicos singulares, em que os ANCAs podem estar ausentes, nossa opinião é a de que a granulomatose com poliangeíte (de Wegener), a poliangeíte microscópica e a granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) devem continuarsendo consideradas entidades separadas. Existem duas categorias principais de ANCA com base em diferentes alvos para os anticorpos. O termo ANCA citoplasmático (cANCA) se refere ao padrão de coloração citoplasmática difuso e granuloso observado por microscopia imunofluorescente quando os anticorpos séricos se ligam aos neutrófilos indicadores. A proteinase 3, uma serina-proteinase neutra de 29 kDa presente nos grânulos azurófilos dos neutrófilos, é o principal antígeno cANCA. Mais de 90% dos pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) ativa típica têm anticorpos detectáveis contra proteinase 3 (ver adiante). O termo ANCA perinuclear (p-ANCA) se refere ao padrão de coloração mais localizado perinuclear ou nuclear dos neutrófilos indicadores. O alvo principal para o p- ANCA é a enzima mieloperoxidase; outros alvos que podem produzir um padrão de coloração p-ANCA incluem a elastase, a catepsina G, a lactoferrina, a lisozima e a proteína bactericida/aumentadora de permeabilidade. Contudo, apenas os anticorpos contra a mieloperoxidase foram associados à vasculite de modo convincente. Foi relatada a ocorrência de anticorpos antimieloperoxidase em porcentagens variáveis de pacientes que apresentam poliangeíte microscópica, granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss), glomerulonefrite crescêntica necrosante isolada e granulomatose com poliangeíte (de Wegener) (ver adiante). Um padrão de coloração p-ANCA não decorrente de anticorpos antimieloperoxidase foi associado a entidades não vasculíticas, como doenças autoimunes reumáticas e não reumáticas, doença inflamatória intestinal, certos fármacos e infecções, como endocardite, e infecções bacterianas das vias aéreas em pacientes com fibrose cística. Não se sabe ao certo por que pacientes com essas síndromes de vasculite desenvolvem anticorpos contra a mieloperoxidase ou a proteinase 3, e tampouco foi esclarecido o papel desempenhado por esses anticorpos na patogênese da doença. Há várias observações in vitro que sugerem possíveis mecanismos pelos quais esses anticorpos podem contribuir para a patogênese das síndromes de vasculite. A proteinase 3 e a mieloperoxidase residem nos grânulos azurófilos e nos lisossomos de neutrófilos e monócitos em repouso, onde, aparentemente, são inacessíveis aos anticorpos séricos. Entretanto, quando neutrófilos ou monócitos são estimulados pelo fator de necrose tumoral α (TNF-α, de tumor necrosis factor α) ou pela interleucina 1 (IL-1), a proteinase 3 e a mieloperoxidase translocam-se para a membrana celular, onde podem interagir com ANCA extracelular. Os neutrófilos, então, sofrem desgranulação e produzem espécies reativas do oxigênio que podem causar lesão tecidual. Além disso, os neutrófilos ativados por ANCA podem aderir a células endoteliais in vitro e matá-las. A ativação de neutrófilos e monócitos por ANCA também induz a liberação de citocinas pró-inflamatórias, tais como IL-1 e IL-8. Experimentos de transferência adotiva em camundongos modificados por engenharia genética fornecem evidências adicionais de um papel patogênico direto de ANCA in vivo. Entretanto, vários ensaios clínicos e laboratoriais argumentam contra um papel patogênico primário para os ANCAs. Os pacientes podem ter granulomatose com poliangeíte (de Wegener) ativa na ausência de ANCA; a elevação absoluta dos títulos de anticorpos não se correlaciona bem com a atividade da doença; e os pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) em remissão podem continuar a ter títulos altos de antiproteinase 3 (cANCA) durante anos (ver adiante). RESPOSTAS PATOGÊNICAS DOS LINFÓCITOS T E FORMAÇÃO DE GRANULOMAS O aspecto histopatológico da vasculite granulomatosa forneceu evidências que sustentam um papel para as respostas patogênicas dos linfócitos T e a lesão imune celular. As células endoteliais vasculares podem expressar moléculas de antígeno leucocitário humano (HLA, de human leukocyte antigen) de classe II após a ativação por citocinas, como γ-interferona (IFN). Isso permite que essas células participem de reações imunológicas, como a interação com linfócitos T CD4+, de modo semelhante a macrófagos apresentadores de antígeno. As células endoteliais podem secretar IL-1, podendo, assim, ativar linfócitos T e iniciar ou propagar processos imunológicos in situ dentro do vaso sanguíneo. Além disso, a IL-1 e o TNF-α são potentes indutores da molécula de adesão leucócito- endotelial 1 (ELAM-1, de endothelial-leukocyte adhesion molecule 1) e da molécula de adesão celular vascular 1 (VCAM-1, de vascular cell adhesion molecule 1), que podem intensificar a adesão dos leucócitos às células endoteliais na parede do vaso sanguíneo. ABORDAGEM AO PACIENTE Vasculite PRINCÍPIOS GERAIS DE DIAGNÓSTICO O diagnóstico de vasculite deve ser considerado em qualquer paciente com doença sistêmica inexplicada. Entretanto, há certas anormalidades clínicas que, quando presentes, isoladamente ou em combinação, devem sugerir o diagnóstico de vasculite. Estas incluem a púrpura palpável, os infiltrados pulmonares e a hematúria microscópica, a rinossinusite inflamatória crônica, a mononeurite múltipla, os eventos isquêmicos não explicados e a glomerulonefrite com evidência de doença multissistêmica. Inúmeras doenças não vasculíticas também podem produzir algumas ou todas essas anormalidades. Assim, o primeiro passo na investigação de um paciente com suspeita de vasculite é excluir a hipótese de outras doenças causadoras de manifestações clínicas que possam simular a vasculite (Tab. 356-3). É particularmente importante excluir a hipótese de doenças infecciosas com achados que se superpõem aos da vasculite, sobretudo se a condição clínica do paciente estiver deteriorando rapidamente e o tratamento imunossupressor empírico estiver sendo considerado. TABELA 356-3 ■ Condições que podem simular a vasculite Doenças infecciosas Endocardite bacteriana Infecção gonocócica disseminada Histoplasmose pulmonar Coccidioidomicose Sífilis Doença de Lyme Febre maculosa das Montanhas Rochosas Doença de Whipple Coagulopatias/microangiopatias trombóticas Síndrome antifosfolipídeo Púrpura trombocitopênica trombótica Neoplasias Mixoma atrial Linfoma Carcinomatose Toxicidade de fármacos e substâncias Cocaína Levamisol Anfetaminas Alcaloides do ergot Metissergida Arsênio Outras Sarcoidose Doença ateroembólica Doença antimembrana basal glomerular (síndrome de Goodpasture) Amiloidose Enxaqueca Displasia fibromuscular Distúrbios hereditários do tecido conectivo Mediólise arterial segmentar (MAS) Síndrome vasoconstritora cerebral reversível Uma vez eliminada a possibilidade de doenças mimetizadoras de vasculite, deve-se seguir uma série de etapas progressivas que estabeleçam o diagnóstico de vasculite e determinem, quando possível, a categoria da síndrome de vasculite (Fig. 356-1). Essa abordagem é de importância considerável, visto que várias das síndromes de vasculite exigem terapia agressiva com glicocorticoides e outros agentes imunossupressores, ao passo que outras síndromes, em geral, sofrem regressão espontânea e só necessitam de tratamento sintomático. O diagnóstico definitivo de vasculite costuma ser estabelecido com base na biópsia do tecido acometido. As biópsias “às cegas” de órgãos sem evidência subjetiva ou objetiva de comprometimento apresentam rendimento muito baixo e, por isso, devem ser evitadas. Quando há suspeita de síndromes como poliarterite nodosa, arterite de Takayasu ou vasculite primária do sistema nervoso central (SNC), deve-se realizar uma arteriografia dos órgãos com suspeita de acometimento.FIGURA 356-1 Algoritmo para abordagem ao paciente com suspeita de vasculite. PAN, poliarterite nodosa. PRINCÍPIOS GERAIS DE TRATAMENTO Uma vez estabelecido o diagnóstico de vasculite, é preciso tomar uma decisão quanto à estratégia terapêutica a ser utilizada (Fig. 356-1). Se for identificado um antígeno agressor que precipita a vasculite, este deve ser removido sempre que possível. Se a vasculite estiver associada a alguma doença subjacente, como infecção, neoplasia ou doença do tecido conectivo, essa doença subjacente deve ser tratada. Quando a síndrome representa uma doença vasculítica primária, o tratamento deve ser iniciado de acordo com a categoria da síndrome de vasculite. Os esquemas terapêuticos específicos são discutidos adiante para cada síndrome de vasculite específica; entretanto, certos princípios gerais de terapia devem ser considerados. As decisões relativas ao tratamento devem ser baseadas no uso de esquemas sobre os quais existe uma literatura já publicada confirmando sua eficácia para a doença vasculítica em questão. Como os efeitos colaterais tóxicos potenciais de certos esquemas terapêuticos podem ser significativos, é preciso avaliar cuidadosamente a razão risco versus benefício de qualquer abordagem terapêutica. Por um lado, os glicocorticoides e/ou outros agentes imunossupressores devem ser instituídos imediatamente em doenças nas quais a ocorrência de disfunção orgânica irreversível e as taxas elevadas de morbidade e de mortalidade foram claramente estabelecidas. A granulomatose com poliangeíte (de Wegener) é o protótipo de uma vasculite sistêmica grave que exige essa abordagem terapêutica (ver adiante). Por outro lado, quando possível, deve-se evitar a terapia agressiva para as manifestações de vasculite que raramente resultam em disfunção orgânica irreversível e que, em geral, não respondem a esse tratamento. Por exemplo, a vasculite cutânea idiopática isolada costuma regredir com tratamento sintomático, e os ciclos prolongados de glicocorticoides raramente resultam em qualquer benefício clínico. Os agentes citotóxicos não demonstraram ser benéficos na vasculite cutânea idiopática, e seus efeitos colaterais tóxicos, em geral, superam qualquer efeito benéfico potencial. Os glicocorticoides devem ser iniciados nas vasculites sistêmicas que não podem ser especificamente classificadas ou para as quais não existe qualquer tratamento-padrão estabelecido; outra terapia imunossupressora deve ser acrescentada nessas doenças apenas quando não se obtém qualquer resposta adequada ou quando a remissão só pode ser obtida e mantida com um esquema inaceitavelmente tóxico de glicocorticoides. Uma vez obtida a remissão, deve-se procurar reduzir continuamente os glicocorticoides e suspendê-los, se possível. Quando são utilizados esquemas imunossupressores, a escolha do agente deve ser baseada nos dados terapêuticos disponíveis que sustentam sua eficácia para a doença específica, no local e na gravidade do comprometimento orgânico e no perfil de toxicidade do fármaco. Os médicos devem estar totalmente cientes dos efeitos colaterais tóxicos dos agentes terapêuticos empregados, que podem incluir complicações tanto agudas como em longo prazo (Tab. 356-4). Podem ocorrer morbidade e mortalidade em consequência do tratamento, e as estratégias de monitoração e prevenção da toxicidade representam uma parte essencial da assistência ao paciente. Os glicocorticoides constituem uma importante parte do tratamento da maioria das vasculites, porém estão associados a efeitos tóxicos substanciais. A monitoração e a prevenção da perda óssea induzida pelos glicocorticoides são importantes em todos os pacientes. Com o uso diário de ciclofosfamida, as estratégias são particularmente importantes e visam a minimizar a toxicidade vesical e prevenir a leucopenia. Instruir o paciente a tomar uma dose única de ciclofosfamida pela manhã, aliada à ingesta de grande quantidade de líquido ao longo do dia para manter a urina diluída, pode reduzir o risco de lesão da bexiga. Pode ocorrer câncer de bexiga dentro de vários anos após a interrupção da terapia com ciclofosfamida; por conseguinte, a monitoração para câncer de bexiga deve prosseguir indefinidamente em pacientes que receberam tratamento com ciclofosfamida. A supressão da medula óssea é uma toxicidade significativa da ciclofosfamida, podendo ser observada durante a redução gradual dos glicocorticoides ou com o passar do tempo, mesmo após períodos de medições estáveis. O monitoramento do hemograma completo a cada 1 a 2 semanas enquanto o paciente estiver recebendo ciclofosfamida pode evitar efetivamente a ocorrência de citopenias. A manutenção da contagem de leucócitos em > 3.000/μL e da contagem de neutrófilos em > 1.500/μL é essencial para diminuir o risco de infecções potencialmente fatais. TABELA 356-4 ■ Principais efeitos colaterais tóxicos de fármacos usados no tratamento da vasculite de pequenos vasos sistêmica Glicocorticoides Osteoporose Catarata Glaucoma Diabetes melito Anormalidades eletrolíticas Anormalidades metabólicas Supressão das respostas inflamatória e imune, levando a infecções oportunistas Características cushingoides Supressão do crescimento em crianças Hipertensão Necrose avascular do osso Miopatia Alterações do humor Psicose Pseudotumor cerebral Doença ulcerosa péptica Pancreatite Ciclofosfamida Supressão da medula óssea Cistite Carcinoma de bexiga Supressão gonadal Intolerância gastrintestinal Hipogamaglobulinemia Fibrose pulmonar Mielodisplasia Oncogênese Teratogenicidade Infecções oportunistas Metotrexato Intolerância gastrintestinal Estomatite Supressão da medula óssea Hepatotoxicidade (pode levar a fibrose ou cirrose) Pneumonite Teratogenicidade Infecções oportunistas Azatioprina Intolerância gastrintestinal Supressão da medula óssea Hepatotoxicidade Infecções oportunistas Hipersensibilidade Rituximabe Reações à infusão Leucoencefalopatia multifocal progressiva Reações mucocutâneas Infecções oportunistas Reativação da hepatite B Síndrome de lise tumoral Neutropenia de aparecimento tardio O metotrexato e a azatioprina também estão associados à supressão da medula óssea, sendo necessário obter hemogramas completos a cada 1 a 2 semanas durante os primeiros 1 a 2 meses após o início da administração desses fármacos e, posteriormente, uma vez por mês. Para diminuir a toxicidade, o metotrexato com frequência é administrado com ácido fólico, 1 mg/dia, ou ácido folínico, 5 a 10 mg uma vez por semana, 24 horas após o metotrexato. Antes de iniciar a azatioprina, deve-se medir a tiopurina- metiltransferase (TPMT), uma enzima envolvida no metabolismo da azatioprina, visto que sua presença em níveis inadequados pode resultar em citopenia grave. O rituximabe (anti-CD20) pode estar associado com reações à infusão. Além da administração do agente em um centro capacitado para infusões, essas reações podem ser minimizadas pelo uso de pré-medicações. Existe um risco de reativação da hepatite B com o uso de rituximabe, de modo que todos os pacientes devem passar por triagem para essa infecção antes de iniciar o tratamento com esse agente. A infecção representa uma toxicidade significativa para todos os pacientes com vasculite tratados com terapia imunossupressora. As infecções por Pneumocystis jirovecii e por certos fungos podem ser observadas até mesmo com a contagem de leucócitos dentro dos limites normais, em particular em pacientes em uso de glicocorticoides. Todos os pacientes com vasculite tratados diariamente com glicocorticoidescombinados com outro agente imunossupressor devem receber sulfametoxazol-trimetoprima (SMX- TMP) ou outra terapia profilática para prevenir a infecção por P. jirovecii. Por fim, deve-se ressaltar que cada paciente é único e necessita de uma tomada de decisão individual. O esquema anteriormente destacado deve servir como estrutura para orientar as abordagens terapêuticas; entretanto, é necessário ter flexibilidade para obter eficácia terapêutica máxima com efeitos colaterais tóxicos mínimos em cada paciente. GRANULOMATOSE COM POLIANGEÍTE (DE WEGENER) DEFINIÇÃO A granulomatose com poliangeíte (de Wegener) é uma entidade clinicopatológica distinta, caracterizada por vasculite granulomatosa das vias aéreas superior e inferior em conjunto com glomerulonefrite. Além disso, podem ocorrer graus variáveis de vasculite disseminada envolvendo tanto artérias quanto veias pequenas. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA A granulomatose com poliangeíte (de Wegener) é uma doença incomum, com prevalência estimada de 3 a cada 100.000. É extremamente rara em pessoas negras em comparação com as brancas; a razão entre o sexo masculino e o feminino é de 1:1. A doença pode ser encontrada em qualquer idade; cerca de 15% dos pacientes têm < 19 anos de idade, mas apenas raramente a enfermidade ocorre antes da adolescência; em média, a idade no aparecimento da condição é aproximadamente 40 anos. PATOLOGIA E PATOGÊNESE As marcas histopatológicas características da granulomatose com poliangeíte (de Wegener) são vasculite necrosante de pequenas artérias e veias em conjunto com formação de granulomas, que podem ser intravasculares ou extravasculares (Fig. 356-2). Em geral, o comprometimento pulmonar aparece como múltiplos infiltrados cavitários nodulares e bilaterais (Fig. 356-3), que, na biópsia, quase sempre revelam a vasculite granulomatosa necrosante típica. As lesões das vias aéreas superiores, em particular aquelas nos seios paranasais e na nasofaringe, revelam inflamação, necrose e formação de granulomas, com ou sem vasculite. FIGURA 356-2 Histologia pulmonar da granulomatose com poliangeíte (de Wegener). Esta área de necrose geográfica tem uma borda serpiginosa de histiócitos e células gigantes envolvendo uma zona de necrose central. Também há vasculite com neutrófilos e linfócitos infiltrando a parede de uma arteríola pequena (parte superior, à direita). (Cortesia de William D. Travis, M.D., com permissão.) FIGURA 356-3 Tomografia computadorizada de um paciente com granulomatose com poliangeíte (de Wegener). O paciente desenvolveu infiltrados múltiplos, bilaterais e cavitários. Na forma mais inicial, o comprometimento renal é caracterizado por uma glomerulonefrite focal e segmentar que pode evoluir para uma glomerulonefrite em crescente rapidamente progressiva. A formação de granulomas só é vista raramente à biópsia renal. Em contraste com outras formas de glomerulonefrite, evidências de deposição de imunocomplexos não são encontradas na lesão renal da granulomatose com poliangeíte (de Wegener). Além da tríade clássica da doença dos tratos respiratório superior, respiratório inferior e renal, literalmente qualquer órgão pode ser envolvido por vasculite, granulomas, ou ambos. A imunopatogênese dessa doença é obscura, embora o envolvimento das vias aéreas superiores e dos pulmões por vasculite granulomatosa sugira uma resposta imune aberrante mediada por células a um antígeno exógeno (ou mesmo endógeno) que penetra ou reside nas vias aéreas superiores. Foi relatado que o estado de portador nasal crônico de Staphylococcus aureus está associado a uma taxa de recidiva mais alta da granulomatose com poliangeíte (de Wegener); entretanto, não há evidências do papel desse microrganismo na patogênese da doença. Células mononucleares de sangue periférico obtidas de pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) exibem secreção aumentada de γ- IFN, mas não secretam IL-4, IL-5 nem IL-10, em comparação aos controles normais. Além disso, a produção de TNF-α a partir de células mononucleares do sangue periférico e células T CD4+ está elevada, e os monócitos de pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) produzem quantidades aumentadas de IL-12. Esses achados indicam um padrão desequilibrado das citocinas das células T tipo TH1 nessa doença, o que pode ter implicações patogênicas e talvez, em última análise, terapêuticas. Uma alta porcentagem de pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) desenvolve ANCA, e esses anticorpos podem desempenhar um papel na patogênese dessa doença (ver anteriormente). MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS O comprometimento das vias aéreas superiores ocorre em 95% dos pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener). Esses pacientes, com frequência, apresentam achados graves nas vias aéreas superiores, tais como dor nos seios paranasais, rinorreia e secreção purulenta ou sanguinolenta, com ou sem ulceração da mucosa nasal (Tab. 356-5). Pode haver perfuração do septo nasal, levando à deformidade do nariz em sela. Otite média serosa pode ocorrer em consequência de bloqueio da tuba de Eustáquio. Estenose subglótica da traqueia, resultante da doença ativa ou da formação de tecido cicatricial, ocorre em cerca de 16% dos pacientes e pode resultar em obstrução grave das vias aéreas. TABELA 356-5 ■ Granulomatose com poliangeíte (de Wegener): frequência das manifestações clínicas em 158 pacientes estudados no National Institutes of Health Manifestações Porcentagem no início da doença Porcentagem no decorrer da evolução da doença Rins Glomerulonefrite 18 77 Orelha/nariz/garganta 73 92 Rinossinusite Doença nasal Otite média Perda auditiva Estenose subglótica Dor de ouvido Lesões orais 51 36 25 14 1 9 3 85 68 44 42 16 14 10 Pulmões 45 85 Infiltrados pulmonares Nódulos pulmonares Hemoptise Pleurite 25 24 12 10 66 58 30 28 Olhos Conjuntivite Dacriocistite Esclerite Proptose Dor ocular Perda de visão Lesões retinianas Lesões da córnea Irite 5 1 6 2 3 0 0 0 0 18 18 16 15 11 8 4 1 2 Outrasa Artralgias/artrite Febre Tosse Anormalidades cutâneas Perda de peso (> 10% do peso corporal) Neuropatia periférica Doença do sistema nervoso central Pericardite Hipertireoidismo 32 23 19 13 15 1 1 2 1 67 50 46 46 35 15 8 6 3 aMenos de 1% teve acometimento das parótidas, da artéria pulmonar, da mama ou do trato urogenital inferior (uretra, colo uterino, vagina, testículos). Fonte: GS Hoffman et al.: Ann Intern Med 116:488, 1992. O comprometimento pulmonar pode se manifestar como infiltrados assintomáticos, ou pode se expressar clinicamente como tosse, hemoptise, dispneia e desconforto torácico. Está presente em 85 a 90% dos pacientes. Doença endobrônquica, ou em sua forma ativa ou como resultado de fibrose cicatricial, pode levar à obstrução com atelectasia. O comprometimento ocular (52% dos pacientes) pode variar desde uma conjuntivite leve até dacriocistite, episclerite, esclerite, esclerouveíte granulomatosa, vasculite de vasos ciliares e lesões tipo massa retro-orbitária, levando à proptose. Lesões de pele (46% dos pacientes) aparecem como pápulas, vesículas, púrpura palpável, úlceras ou nódulos subcutâneos; a biópsia revela vasculite, granulomas, ou ambos. O comprometimento cardíaco (8% dos pacientes) manifesta-se como pericardite, vasculite coronariana ou, raramente, miocardiopatia. As manifestações do sistema nervoso (23% dos pacientes) incluem neurite craniana, mononeurite múltipla ou, raramente, vasculite e/ou granuloma cerebral. A doença renal (77% dos pacientes), em geral, domina o quadro clínico e, se não for tratada,é direta ou indiretamente responsável pela maior parte da taxa de mortalidade associada a essa doença. Embora possa permanecer latente, em alguns casos, sob a forma de glomerulonefrite leve com proteinúria, hematúria e cilindros hemáticos, está claro que, após a instalação de um comprometimento da função renal clinicamente detectável, em geral segue-se insuficiência renal de progressão rápida, a menos que o tratamento apropriado seja instituído. Enquanto a doença está ativa, a maioria dos pacientes tem sinais e sintomas inespecíficos, tais como mal-estar geral, fraqueza, artralgias, anorexia e perda de peso. Febre pode indicar atividade da doença subjacente, porém, com mais frequência, reflete uma infecção secundária, normalmente das vias aéreas superiores. Achados laboratoriais característicos incluem velocidade de hemossedimentação (VHS) acentuadamente elevada, anemia e leucocitose leves, hipergamaglobulinemia discreta (em particular da classe IgA) e fator reumatoide discretamente elevado. A trombocitose pode ser vista como um reagente de fase aguda. Cerca de 90% dos pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) ativa têm positividade de ANCAs antiproteinase 3. Contudo, na ausência de doença ativa, a sensibilidade cai para cerca de 60 a 70%. Uma pequena porcentagem de pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) pode ter anticorpos antimieloperoxidase, em vez de antiproteinase 3, e até 20% podem não ter ANCA. Foi demonstrado que pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) têm incidência aumentada de eventos trombóticos venosos. Embora a terapia anticoagulante de rotina não seja recomendada para todos, justifica-se uma atenção especial para quaisquer manifestações clínicas sugestivas de trombose venosa profunda ou embolia pulmonar. DIAGNÓSTICO O diagnóstico de granulomatose com poliangeíte (de Wegener) é feito pela demonstração de vasculite granulomatosa necrosante à biópsia tecidual em um paciente com manifestações clínicas compatíveis. O tecido pulmonar proporciona o maior rendimento diagnóstico, revelando quase invariavelmente a presença de vasculite granulomatosa. A biópsia de tecido das vias aéreas superiores, em geral, exibe inflamação granulomatosa com necrose, mas pode não mostrar vasculite. A biópsia renal pode confirmar a presença de glomerulonefrite pauci-imune. A especificidade de um ANCA antiproteinase 3 positivo para granulomatose com poliangeíte (de Wegener) é muito alta, sobretudo se a glomerulonefrite ativa estiver presente. Entretanto, a presença de ANCA deve ser complementar e, com raras exceções, não deve substituir o diagnóstico histológico. Títulos de ANCA falso-positivos foram relatados em certas doenças infecciosas e neoplásicas. Em sua apresentação típica, o complexo clinicopatológico da granulomatose com poliangeíte (de Wegener), em geral, possibilita uma diferenciação fácil de outros distúrbios. Entretanto, se todos os achados típicos não estiverem presentes simultaneamente, será necessário diferenciar a condição das outras vasculites, da doença antimembrana basal glomerular (síndrome de Goodpasture) (Cap. 308), da policondrite recidivante (Cap. 359), dos tumores das vias aéreas superiores ou do pulmão, bem como de doenças infecciosas – como histoplasmose (Cap. 207), leishmaniose mucocutânea (Cap. 221) e rinoscleroma (Cap. 31) – e doenças granulomatosas não infecciosas. É particularmente importante proceder à diferenciação de outras doenças destrutivas da linha média. Essas doenças levam à destruição tecidual extrema e à mutilação localizadas nas estruturas das vias aéreas superiores na linha média, inclusive os seios paranasais; é comum a ocorrência de erosão através da pele da face, uma característica que é extremamente rara na granulomatose com poliangeíte (de Wegener). Embora os vasos sanguíneos possam ser acometidos na reação inflamatória intensa e na necrose, a vasculite primária não é observada. As neoplasias das vias aéreas superiores e, especificamente, o linfoma extranodal de células natural killer (NK)/T (tipo nasal) são causas importantes de doença destrutiva da linha média. Essas lesões são diagnosticadas com base na histologia, que revela células linfoides atípicas polimórficas com imunofenótipo da célula NK, em geral com vírus Epstein-Barr (Cap. 104). Esses casos são tratados com base no grau de disseminação, sendo que as lesões localizadas respondem à irradiação. As lesões das vias aéreas superiores nunca devem ser irradiadas na granulomatose com poliangeíte (de Wegener). A lesão tecidual induzida pela cocaína pode ser outra condição importante simulando a granulomatose com poliangeíte (de Wegener) em pacientes que apresentam doença destrutiva isolada da linha média. O ANCA dirigido contra a elastase de neutrófilos humanos pode ser encontrado em pacientes com lesões destrutivas da linha média induzidas por cocaína, podendo confundir a diferenciação da granulomatose com poliangeíte (de Wegener). Isso pode ser ainda mais complicado pela alta frequência de adulteração da cocaína com levamisol, que pode resultar em infarto cutâneo e alterações sorológicas passíveis de simular a vasculite. A granulocitopenia é um achado comum na doença induzida por levamisol que não está associado à granulomatose com poliangeíte (de Wegener). A granulomatose com poliangeíte (de Wegener) também precisa ser diferenciada da granulomatose linfomatoide, que consiste em uma proliferação de células B positivas para o vírus Epstein-Barr que está associada a uma reação exuberante das células T. A granulomatose linfomatoide caracteriza-se por comprometimento dos pulmões, da pele, do SNC e dos rins, em que ocorre infiltração do tecido não linfoide de modo angioinvasivo por células linfocitoides e plasmocitoides atípicas. Nesse aspecto, difere claramente da granulomatose com poliangeíte (de Wegener), visto que não se trata de uma vasculite inflamatória no sentido clássico, mas sim de uma infiltração perivascular angiocêntrica por células mononucleares atípicas. Até 50% dos pacientes podem desenvolver linfoma maligno verdadeiro. TRATAMENTO Granulomatose com poliangeíte (de Wegener) Antes da introdução da terapia efetiva, a granulomatose com poliangeíte (de Wegener) era universalmente fatal dentro de poucos meses após o estabelecimento do diagnóstico. Os glicocorticoides isoladamente produziam alguma melhora sintomática, com pouco efeito sobre a evolução final da doença. O desenvolvimento do tratamento com a ciclofosfamida modificou radicalmente o prognóstico dos pacientes, de tal modo que foi observada uma melhora acentuada em > 90% dos pacientes, com remissão completa em 75% dos casos e sobrevida de 5 anos superior a 80%. Apesar da possibilidade de induzir remissões com sucesso, 50 a 70% estão associadas a uma ou mais recidivas. A determinação da recidiva deve ser baseada em evidências objetivas de atividade da doença, tendo o cuidado para excluir outras características passíveis de apresentar aspecto semelhante, como infecção, intoxicação medicamentosa ou sequelas de doença crônica. O título de ANCA pode ser enganoso e não deve ser usado para avaliar a atividade da doença. Muitos pacientes que apresentam remissão continuam tendo títulos elevados por vários anos. Os resultados de um estudo prospectivo de grande porte verificaram que os aumentos do ANCA não estavam associados à ocorrência de recidiva e que apenas 43% sofreram recidiva dentro 1 ano após a elevação dos níveis de ANCA. Por conseguinte, a elevação do ANCA por si só não é um precursorde recidiva imediata da doença e não deve levar à reinstituição da terapia imunossupressora nem a um aumento de sua dose. A reindução da remissão após a recidiva é quase sempre obtida; entretanto, uma alta porcentagem de pacientes, por fim, apresenta algum grau de lesão devido às manifestações irreversíveis da doença, como graus variáveis de insuficiência renal, perda auditiva, estenose da traqueia, deformidade do nariz em sela e comprometimento crônico da função dos seios paranasais. Os pacientes que desenvolveram insuficiência renal irreversível, mas tiveram remissão subsequente, foram submetidos a transplante renal com sucesso. O tratamento da granulomatose com poliangeíte (de Wegener) atualmente é considerado como tendo duas fases: indução, em que a doença ativa é colocada em remissão, seguida de manutenção. A decisão sobre os agentes a serem usados para indução e manutenção baseia-se na gravidade da doença e em fatores individuais do paciente, incluindo contraindicação, história de recidiva e comorbidades. INDUÇÃO COM CICLOFOSFAMIDA PARA A DOENÇA GRAVE Nos pacientes com doença grave, foi constatado que a ciclofosfamida diária combinada com glicocorticoides é um tratamento efetivo para induzir remissões e prolongar a sobrevida. Ao iniciar o tratamento, os glicocorticoides, em geral, são administrados na forma de prednisona, 1 mg/kg/dia durante o primeiro mês, seguindo-se a redução gradual dessa dose em um esquema diário ou em dias alternados, com interrupção depois de cerca de 6 a 9 meses. A ciclofosfamida é administrada em doses de 2 mg/kg/dia por via oral; todavia, dada a sua eliminação renal, a redução de sua dose deve ser considerada em pacientes com insuficiência renal. Alguns relatos indicaram sucesso terapêutico com efeitos colaterais tóxicos menos frequentes e graves associados ao uso de ciclofosfamida intravenosa (IV). Em um ensaio clínico randomizado, a ciclofosfamida IV na dose de 15 mg/kg em 3 infusões administradas a cada 2 semanas e, posteriormente, a cada 3 semanas foi comparada com a ciclofosfamida na dose de 2 mg/kg/dia administrada durante 3 meses, seguida de 1,5 mg/kg/dia. Embora tenha sido constatado que a ciclofosfamida IV apresenta taxa de remissão comparável com uma dose cumulativa mais baixa e menor ocorrência de leucopenia, a instituição de uma fase de consolidação e um acompanhamento insuficiente de monitoração das contagens hematológicas podem ter influenciado negativamente os resultados nos pacientes que receberam ciclofosfamida diariamente. Nesse estudo, deve- se ressaltar que houve recidiva em 19% dos pacientes que receberam ciclofosfamida IV, em comparação com 9% daqueles que foram tratados com administração oral diária. Continuamos fortemente favoráveis às doses diárias (e não às doses intermitentes) de ciclofosfamida aliadas ao monitoramento com hemograma a cada 1 a 2 semanas (como descrito anteriormente) e à limitação da duração da exposição a 3 a 6 meses. Em pacientes com doença que comporta risco iminente à vida, como glomerulonefrite rapidamente progressiva com nível de creatinina superior a 4,0 mg/dL ou hemorragia pulmonar exigindo ventilação mecânica, um esquema diário de ciclofosfamida e glicocorticoides é preferido para induzir a remissão. A plasmaférese auxiliar é usada na doença fulminante, porém seu papel ainda é desconhecido; isso está sendo investigado em um estudo internacional. INDUÇÃO COM RITUXIMABE PARA A DOENÇA GRAVE O rituximabe é um anticorpo monoclonal quimérico dirigido contra CD20 presente em linfócitos B normais e malignos, cujo uso foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) para o tratamento da granulomatose com poliangeíte (de Wegener) e da poliangeíte microscópica. Em dois ensaios clínicos randomizados que recrutaram pacientes positivos para ANCA com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) ativa grave ou poliangeíte microscópica, foi constatado que o rituximabe na dose de 375 mg/m2 administrada uma vez por semana durante 4 semanas, em combinação com glicocorticoides, foi tão efetivo quanto a ciclofosfamida com glicocorticoides para induzir a remissão da doença. No ensaio clínico que também recrutou pacientes com doença recidivante, foi constatado que o rituximabe é estatisticamente superior à ciclofosfamida. Embora o rituximabe não apresente os problemas de toxicidade vesical ou de infertilidade, como pode ocorrer com a ciclofosfamida, em ambos os ensaios clínicos randomizados a taxa de reações adversas foi semelhante nos braços do rituximabe e da ciclofosfamida. Além disso, não há dados de segurança em longo prazo disponíveis sobre o rituximabe na granulomatose com poliangeíte (de Wegener) ou na poliangeíte microscópica. A decisão sobre utilizar a ciclofosfamida ou o rituximabe para induzir remissão deve ser fundamentada individualmente. Entre os fatores a serem considerados, estão a gravidade da doença, se o paciente tem doença recém-diagnosticada ou doença recidivante, as contraindicações à medicação e os fatores individuais do paciente, incluindo questões relacionadas com a fertilidade. MANUTENÇÃO DA REMISSÃO A abordagem para manutenção da remissão é influenciada por alguns elementos, incluindo a medicação usada para induzir a remissão, a ocorrência de recidivas prévias, as características da doença, as contraindicações à medicação e os fatores individuais do paciente. Quando a ciclofosfamida é fornecida para a indução, ela deve ser suspensa após 3 a 6 meses e trocada por outro agente usado para a manutenção da remissão. Os agentes em que se tem maior experiência publicada são o metotrexato, a azatioprina e, mais recentemente, o rituximabe. O metotrexato é administrado por via oral ou subcutânea, começando com uma dose de 0,3 mg/kg em dose única semanal, sem ultrapassar 15 mg/semana. Se o tratamento for bem tolerado depois de 1 a 2 semanas, a dose deve ser aumentada em 2,5 mg por semana até alcançar uma dose de 20 a 25 mg/semana, que, então, é mantida. A azatioprina, na dose de 2 mg/kg/dia, também demonstrou ser efetiva na manutenção da remissão após a indução com ciclofosfamida diária. Em um ensaio clínico randomizado que comparou o metotrexato com a azatioprina para manutenção da remissão, foram observadas taxas comparáveis de toxicidade e recidiva. Por conseguinte, a escolha do agente muitas vezes é baseada no perfil de toxicidade – visto que o metotrexato não pode ser administrado a pacientes com insuficiência renal ou doença hepática crônica – e em outros fatores individuais do paciente. Nos pacientes impossibilitados de receber metotrexato ou azatioprina, ou que sofreram recidiva durante esse tratamento, o micofenolato de mofetila administrado na dose de 1.000 mg, 2 vezes/dia, também pode manter a remissão após a indução com ciclofosfamida. O rituximabe na dose de 500 mg administrada por via IV a cada 6 meses foi recentemente comparado com a azatioprina fornecida após a indução com ciclofosfamida IV em um estudo randomizado. De modo geral, uma taxa menor de recidivas foi observada com o uso do rituximabe, em comparação ao observado com a azatioprina. Entretanto, a curta duração do estudo e a natureza recidivante crônica dessas doenças continuam originando muitas dúvidas quanto ao papel em longo prazo do rituximabe na manutenção. Mesmo assim, esses dados mostram que o rituximabe é uma opção efetiva para a manutenção, podendo ser considerado integrante do arsenal. Para os pacientes que recebem rituximabe para indução da remissão, a abordagem de manutenção ainda não está claramente determinada. As opções incluem a observação clínica do paciente e a repetição do tratamento com rituximabe emcaso de recaída, ou buscar por manutenção após o rituximabe com metotrexato, azatioprina, micofenolato de mofetila ou rituximabe. Até a disponibilização de dados adicionais, essa decisão é tomada em conjunto pelo paciente e pelo médico. A duração ideal da terapia de manutenção continuada é incerta. Na ausência de toxicidade, a terapia de manutenção, em geral, é administrada durante um período mínimo de 2 anos após a remissão; depois disso é então possível considerar uma diminuição gradual das doses por um período de 6 a 12 meses até a sua interrupção. Alguns pacientes com lesão orgânica significativa ou com história de recidiva podem se beneficiar da continuação de um agente de manutenção por um prazo mais longo. OUTRAS TERAPIAS BIOLÓGICAS O etanercepte, uma proteína de fusão dimérica contendo o receptor de TNF de 75 kDa ligado à IgG1 humana, foi incapaz de manter a remissão quando usado como adjuvante da terapia-padrão e não deve ser usado no tratamento da granulomatose com poliangeíte (de Wegener). O abatacepte (CTLA4-Ig) foi examinado em um estudo-piloto aberto sobre doença recidivante não grave e apresentou resultados favoráveis. Entretanto, investigações adicionais são necessárias para possibilitar a sua aplicação na prática clínica. O bloqueio da atividade de C5a do complemento também está sendo investigado. INDUÇÃO COM METOTREXATO PARA A DOENÇA SEM GRAVIDADE Para pacientes selecionados cuja doença não comporta risco imediato à vida, o metotrexato em conjunto com glicocorticoides administrado nas doses já descritas pode ser considerado como alternativa para a terapia de indução, que é, então, continuada para manutenção. SULFAMETOXAZOL-TRIMETOPRIMA Embora certos relatos tenham indicado que o sulfametoxazol-trimetoprima (SMX-TMP) pode ser benéfico no tratamento da granulomatose com poliangeíte (de Wegener) isolada nos tecidos dos seios paranasais, o fármaco nunca deve ser administrado isoladamente para tratamento da granulomatose com poliangeíte (de Wegener) ativa fora das vias aéreas superiores, como em pacientes com doença renal ou pulmonar. Em um estudo que examinou o efeito do SMX-TMP sobre a recidiva, foi constatada uma diminuição das recidivas apenas com relação à doença das vias aéreas superiores, e não foi observada qualquer diferença na recidiva de órgãos importantes. TRATAMENTO DE ÓRGÃO ESPECÍFICO Nem todas as manifestações da granulomatose com poliangeíte (de Wegener) necessitam ou respondem à terapia imunossupressora. No manejo da doença sem comprometimento de órgãos importantes, como aquela limitada aos seios paranasais, às articulações ou à pele, os riscos do tratamento devem ser cuidadosamente analisados em relação aos benefícios. O tratamento com ciclofosfamida raramente ou nunca está justificado para a doença dos seios paranasais isolada na granulomatose com poliangeíte (de Wegener). A diferenciação entre doença ativa e lesão também é relevante. A estenose subglótica exemplifica uma manifestação patológica que, muitas vezes, pode formar cicatriz e responder de modo ideal à intervenção não médica, em vez do tratamento imunossupressor sistêmico. POLIANGEÍTE MICROSCÓPICA DEFINIÇÃO O termo poliarterite microscópica foi introduzido na literatura por Davson, em 1948, em reconhecimento à presença de glomerulonefrite em pacientes com poliarterite nodosa. Em 1992, a Chapel Hill Consensus Conference on the Nomenclature of Systemic Vasculitis adotou o termo poliangeíte microscópica para denotar uma vasculite necrosante com poucos ou nenhum imunocomplexo afetando pequenos vasos (capilares, vênulas ou arteríolas). A glomerulonefrite é muito comum na poliangeíte microscópica, e a inflamação dos capilares pulmonares ocorre com frequência. Diz-se que a ausência de inflamação granulomatosa na poliangeíte microscópica a diferencia da granulomatose com poliangeíte (de Wegener). INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA Estima-se que a incidência de poliangeíte microscópica seja de 3 a 5 a cada 100.000. A idade média de início é cerca de 57 anos de idade, e os homens são acometidos em uma frequência levemente superior à das mulheres. PATOLOGIA E PATOGÊNESE A vasculite observada na poliangeíte microscópica exibe predileção pelo comprometimento de capilares e vênulas, além das artérias de pequeno e médio calibres. A coloração imuno-histoquímica revela uma escassez de deposição de imunoglobulina na lesão vascular da poliangeíte microscópica, sugerindo que a formação de imunocomplexos não desempenha um papel na patogênese dessa síndrome. A lesão renal observada na poliangeíte microscópica é idêntica àquela da granulomatose com poliangeíte (de Wegener). Da mesma forma que esta última, a poliangeíte microscópica está altamente associada à presença de ANCA, que pode desempenhar um papel na patogênese dessa síndrome (ver anteriormente). MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS Em virtude de sua predileção pelo acometimento de pequenos vasos, a poliangeíte microscópica e a granulomatose com poliangeíte (de Wegener) compartilham manifestações clínicas similares. O início da doença pode ser gradual, com sintomas iniciais de febre, perda de peso e dor musculoesquelética, mas costuma ser agudo. Glomerulonefrite ocorre em pelo menos 79% dos pacientes e pode ser rapidamente progressiva, levando à insuficiência renal. Hemoptise pode ser o primeiro sintoma de hemorragia alveolar, que ocorre em 12% dos pacientes. Outras manifestações incluem mononeurite múltipla e vasculite cutânea e do trato gastrintestinal. Doença das vias aéreas superiores e nódulos pulmonares em geral não são encontrados na poliangeíte microscópica e, quando presentes, são sugestivos de granulomatose com poliangeíte (de Wegener). Podem ser encontrados achados de inflamação, incluindo elevação da VHS, anemia, leucocitose e trombocitose. Os ANCAs estão presentes em 75% dos pacientes com poliangeíte microscópica, com anticorpos antimieloperoxidase predominando em associação a essa doença. DIAGNÓSTICO O diagnóstico baseia-se na evidência histológica de vasculite ou de glomerulonefrite pauci-imune em um paciente com manifestações clínicas compatíveis com doença multissistêmica. Embora a poliangeíte microscópica seja fortemente associada a ANCA, até o presente nenhum estudo estabeleceu a sensibilidade e a especificidade dos ANCAs nessa doença. TRATAMENTO Poliangeíte microscópica A taxa de sobrevida de 5 anos para pacientes com poliangeíte microscópica tratada é de 74%, e a mortalidade relacionada com a doença ocorre por hemorragia alveolar ou por doença gastrintestinal, cardíaca ou renal. Os estudos sobre o tratamento derivam de ensaios clínicos que incluíram pacientes com granulomatose com poliangeíte (de Wegener) ou poliangeíte microscópica. Na atualidade, a abordagem para o tratamento da poliangeíte microscópica é igual àquela usada para a granulomatose com poliangeíte (de Wegener) (ver “Granulomatose com poliangeíte [de Wegener]” para uma descrição detalhada desse esquema terapêutico), e os pacientes com doença que comporta risco à vida imediato devem ser tratados com a combinação de prednisona e ciclofosfamida diária ou rituximabe. Foi observada a ocorrência de recidiva da doença em pelo menos 34% dos pacientes. O tratamento para essas recidivas deve ser semelhante àquele usado por ocasião da apresentação inicial, com base no local e na gravidade da doença. GRANULOMATOSE EOSINOFÍLICA COM POLIANGEÍTE (SÍNDROME DE CHURG-STRAUSS) DEFINIÇÃO A granulomatose eosinofílica com poliangeíte (síndrome de Churg-Strauss) foi descrita, em 1951, por Churg e Strauss e caracteriza-sepor asma, eosinofilia periférica e tecidual, formação de granulomas extravasculares e vasculite de múltiplos sistemas orgânicos. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA A granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) é uma doença incomum, com incidência anual estimada em 1 a 3 por milhão. Pode ocorrer em qualquer idade, com possível exceção dos lactentes. A idade média de início é 48 anos, com uma razão entre o sexo feminino e o masculino de 1,2:1. PATOLOGIA E PATOGÊNESE A vasculite necrosante da granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg- Strauss) acomete artérias musculares de pequeno e médio calibres, capilares, veias e vênulas. Um aspecto histopatológico característico da granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) é a ocorrência de reações granulomatosas que podem estar presentes nos tecidos ou até mesmo dentro das paredes dos próprios vasos. Em geral, estão associadas à infiltração dos tecidos por eosinófilos. Esse processo pode ocorrer em qualquer órgão do corpo; o comprometimento pulmonar é predominante, com a pele, o sistema circulatório, os rins, o sistema nervoso periférico e o trato gastrintestinal sendo também comumente acometidos. Embora a patogênese precisa da doença seja incerta, sua forte associação com asma e suas manifestações clinicopatológicas, inclusive eosinofilia, granuloma e vasculite, apontam para fenômenos imunológicos aberrantes. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS Os pacientes com granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) com frequência exibem manifestações inespecíficas, como febre, mal-estar, anorexia e perda de peso, que são características de doença multissistêmica. Os achados pulmonares na granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg- Strauss) dominam claramente o quadro clínico, com crises asmáticas graves e presença de infiltrados pulmonares. A mononeurite múltipla é a segunda manifestação mais comum, ocorrendo em até 72% dos pacientes. Rinite alérgica e rinossinusite desenvolvem-se em até 61% dos casos e, com frequência, são observadas cedo no curso da doença. Cardiopatia clinicamente reconhecível ocorre em cerca de 14% dos pacientes, sendo uma causa importante de mortalidade. Lesões da pele são observadas em cerca de 51% dos pacientes e incluem púrpura, além de nódulos cutâneos e subcutâneos. A doença renal na granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) é menos comum e, em geral, menos grave que a da granulomatose com poliangeíte e da poliangeíte microscópica. O achado laboratorial característico em praticamente todos os pacientes com granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) consiste em intensa eosinofilia, que alcança níveis de > 1.000 células/μL em > 80% dos pacientes. Podem ser encontradas evidências de inflamação, como elevação de VHS, fibrinogênio ou α2-globulinas, em 81% dos pacientes. Os outros achados laboratoriais refletem os sistemas orgânicos envolvidos. Cerca de 48% dos pacientes com granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) apresentam ANCAs circulantes, que, em geral, são antimieloperoxidase. DIAGNÓSTICO Embora o diagnóstico de granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg- Strauss) seja idealmente estabelecido por biópsia em um paciente com as manifestações clínicas características (ver anteriormente), a confirmação histológica pode representar um desafio, visto que, com frequência, as manifestações patognomônicas não ocorrem simultaneamente. Para ser diagnosticado como portador de granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss), um paciente deve apresentar evidências de asma, eosinofilia do sangue periférico e manifestações clínicas compatíveis com vasculite. TRATAMENTO Granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg- Strauss) O prognóstico da granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) não tratada é sombrio, com relato de sobrevida de 5 anos de 25%. Com tratamento, o prognóstico é favorável, e um estudo demonstrou uma taxa atuarial de sobrevida em 78 meses de 72%. O comprometimento do miocárdio é a causa de óbito mais frequente, sendo responsável por 39% da mortalidade dos pacientes. Ecocardiografia deve ser feita em todos os pacientes recém-diagnosticados, visto que o resultado pode influenciar as decisões terapêuticas. Os glicocorticoides, isoladamente, parecem ser efetivos em muitos pacientes. A redução gradual da dosagem frequentemente é limitada pela asma, e muitos pacientes necessitam de uma dose baixa de prednisona para asma persistente decorridos muitos anos da regressão clínica da vasculite. Em pacientes que apresentam doença multissistêmica fulminante, em particular comprometimento cardíaco, o tratamento de escolha é um esquema combinado diário de ciclofosfamida e prednisona seguido de azatioprina ou metotrexato (ver “Granulomatose com poliangeíte [de Wegener]” para uma descrição detalhada desse esquema terapêutico). O mepolizumabe (anticorpo anti-IL-5) foi investigado em um estudo randomizado e se mostrou mais efetivo do que o placebo na granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss). Pacientes com granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) potencialmente fatal foram excluídos do estudo de mepolizumabe e devem continuar sendo tratados com ciclofosfamida e glicocorticoides. O mepoluzimabe é aprovado pela FDA para uso no tratamento da asma eosinofílica grave e pode particularmente ter papel no estabelecimento da asma recidivante ou resistente na granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss). O rituximabe foi investigado apenas em pequenas séries retrospectivas, primariamente em pacientes com doença ativa mesmo sob tratamento com agentes convencionais ou em pacientes intolerantes a esses medicamentos. POLIARTERITE NODOSA DEFINIÇÃO A poliarterite nodosa foi descrita por Kussmaul e Maier em 1866. Trata-se de uma vasculite necrosante multissistêmica de artérias musculares de pequeno e médio calibres em que o comprometimento das artérias renais e viscerais é característico. A poliarterite nodosa não acomete as artérias pulmonares, embora os vasos brônquicos possam estar envolvidos; não se observa a presença de granulomas, eosinofilia significativa e diátese alérgica. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA É difícil estabelecer uma incidência acurada da poliarterite nodosa, visto que os relatos anteriores incluíram a poliarterite nodosa e a poliangeíte microscópica, bem como outras vasculites relacionadas. Acredita-se que a poliarterite nodosa, como ela é definida atualmente, seja uma doença muito incomum. PATOLOGIA E PATOGÊNESE A lesão vascular na poliarterite nodosa consiste em inflamação necrosante das artérias musculares de pequeno e médio calibres. As lesões são segmentares e tendem a envolver bifurcações e ramificações das artérias. Podem se espalhar circunferencialmente para acometer veias adjacentes. Entretanto, o comprometimento de vênulas não é observado na poliarterite nodosa e, quando presente, sugere poliangeíte microscópica (ver adiante). Nos estágios agudos da doença, neutrófilos polimorfonucleares infiltram todas as camadas da parede vascular e das áreas perivasculares, o que resulta em proliferação da íntima e degeneração da parede do vaso. Células mononucleares infiltram a área enquanto as lesões progridem para os estágios subagudo e crônico. Segue-se necrose fibrinoide dos vasos, com comprometimento do lúmen, trombose, infarto dos tecidos irrigados pelo vaso acometido e, em alguns casos, hemorragia. À medida que as lesões cicatrizam,a deposição de colágeno pode ampliar a oclusão do lúmen vascular. Dilatações aneurismáticas medindo até 1 cm e dispostas ao longo das artérias acometidas são características da poliarterite nodosa. A presença de granulomas e eosinofilia substancial, com infiltração eosinofílica dos tecidos, em geral não é encontrada e sugere granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss) (ver anteriormente). Múltiplos sistemas orgânicos são envolvidos, e os achados clinicopatológicos refletem o grau e a localização do comprometimento vascular e as alterações isquêmicas resultantes. Conforme assinalado anteriormente, as artérias pulmonares não estão acometidas na poliarterite nodosa, e o comprometimento das artérias brônquicas é incomum. A patologia do rim na poliarterite nodosa clássica é a da arterite sem glomerulonefrite. Em pacientes com hipertensão significante, podem ser vistos achados patológicos típicos de glomerulosclerose. Além disso, sequelas patológicas da hipertensão podem ser encontradas em outras partes do corpo. A presença de vasculite semelhante à poliarterite nodosa em pacientes com hepatite B, em conjunto com o isolamento de imunocomplexos circulantes compostos de antígeno da hepatite B e imunoglobulina, bem como a demonstração por imunofluorescência do antígeno da hepatite B, de IgM e de complemento nas paredes dos vasos sanguíneos, sugere fortemente o papel de fenômenos imunológicos na patogênese dessa doença. Foi também relatada uma vasculite semelhante à poliarterite nodosa em pacientes com hepatite C. A leucemia de células pilosas pode estar associada à poliarterite nodosa; os mecanismos patogênicos dessa associação ainda não estão bem esclarecidos. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS Sinais e sintomas inespecíficos são a característica essencial da poliarterite nodosa. Febre, perda de peso e mal-estar geral estão presentes em mais da metade dos casos. Em geral, os pacientes apresentam sintomas vagos, tais como fraqueza, mal-estar geral, cefaleia, dor abdominal e mialgias, que podem progredir rapidamente para doença fulminante. Queixas específicas relacionadas com o comprometimento vascular em um sistema orgânico em particular também podem dominar o quadro clínico de apresentação, assim como todo o curso da enfermidade (Tab. 356-6). Na poliarterite nodosa, o comprometimento renal manifesta-se mais comumente na forma de hipertensão, insuficiência renal ou hemorragia devido a microaneurismas. TABELA 356-6 ■ Manifestações clínicas relacionadas com envolvimento de sistema orgânico na poliarterite nodosa Sistema orgânico % de incidência Manifestações clínicas Renal 60 Insuficiência renal, hipertensão Musculoesquelético 64 Artrite, artralgia, mialgia Sistema nervoso periférico 51 Neuropatia periférica, mononeurite múltipla Trato gastrintestinal 44 Dor abdominal, náuseas e vômitos, sangramento, infarto e perfuração intestinais, colecistite, infarto hepático, infarto pancreático Pele 43 Exantema, púrpura, nódulos, infartos cutâneos, livedo reticular, fenômeno de Raynaud Cardíaco 36 Insuficiência cardíaca congestiva, infarto agudo do miocárdio, pericardite Urogenital 25 Dor testicular, ovariana ou no epidídimo Sistema nervoso central 23 Acidente vascular cerebral, alteração do estado mental, convulsão Fonte: De TR Cupps, AS Fauci: The Vasculitides. Philadelphia, Saunders, 1981. Não existem testes sorológicos diagnósticos para a poliarterite nodosa. Em > 75% dos pacientes, a contagem de leucócitos está elevada, com predomínio de neutrófilos. Observa-se a ocorrência de eosinofilia apenas raramente, que, quando presente em altos níveis, sugere o diagnóstico de granulomatose eosinofílica com poliangeíte (Churg-Strauss). Pode haver anemia por doença crônica, e quase sempre a VHS está elevada. Outros achados laboratoriais comuns refletem o órgão específico acometido. Pode ocorrer hipergamaglobulinemia, e todos os pacientes devem ser submetidos à triagem para as hepatites B e C. Raramente, são identificados anticorpos contra mieloperoxidase ou proteinase 3 (ANCA) em pacientes com poliarterite nodosa. DIAGNÓSTICO O diagnóstico de poliarterite nodosa baseia-se na demonstração dos achados característicos de vasculite no material de biópsia dos órgãos acometidos. Na ausência de tecido facilmente acessível para biópsia, a demonstração arteriográfica de vasos comprometidos, particularmente sob a forma de aneurismas de artérias de pequeno e médio calibres em vasos renais, hepáticos e viscerais, é suficiente para firmar o diagnóstico. Isso deve consistir na realização de arteriografia contrastada dirigida por cateter, visto que a angiorressonância e a angiotomografia computadorizada não apresentam atualmente uma resolução suficiente para visualizar os vasos acometidos na poliarterite nodosa. Aneurismas de vasos não são patognomônicos de poliarterite nodosa; além disso, os aneurismas nem sempre precisam estar presentes, e os achados arteriográficos podem limitar-se a segmentos de estenose e obliteração de vasos. A biópsia de órgãos sintomáticos, tais como lesões nodulares da pele, testículos dolorosos e dor em nervo/músculo, fornece melhor retorno diagnóstico. TRATAMENTO Poliarterite nodosa O prognóstico da poliarterite nodosa sem tratamento é extremamente sombrio, com taxa de sobrevida de 5 anos relatada entre 10 e 20%. A morte resulta, em geral, de complicações gastrintestinais, em particular infarto e perfuração intestinais, bem como de causas cardiovasculares. Com frequência, a hipertensão intratável complica a disfunção em outros sistemas orgânicos, como os rins, o coração e o SNC, levando a morbidade e mortalidade tardias adicionais na poliarterite nodosa. Com a introdução do tratamento, a taxa de sobrevida aumentou substancialmente. Foram relatados resultados terapêuticos favoráveis na poliarterite nodosa com a combinação de prednisona e ciclofosfamida (ver “Granulomatose com poliangeíte [de Wegener]” para uma descrição detalhada desse esquema terapêutico). Em casos menos graves de poliarterite nodosa, os glicocorticoides usados isoladamente resultaram em remissão da doença. Em pacientes portadores de hepatite B que apresentam vasculite semelhante à poliarterite nodosa, a terapia antiviral representa uma importante parte do tratamento em combinação com glicocorticoides e plasmaférese. Uma atenção cuidadosa ao tratamento da hipertensão pode diminuir as taxas de morbidade e mortalidade agudas e tardias associadas às complicações renais, cardíacas e do SNC da poliarterite nodosa. Após o tratamento bem-sucedido, foi estimada a ocorrência de recidiva da poliarterite nodosa em 10 a 20% dos pacientes. ARTERITE DE CÉLULAS GIGANTES E POLIMIALGIA REUMÁTICA DEFINIÇÃO A arterite de células gigantes, historicamente designada como arterite temporal, é uma inflamação de artérias de médio e grande calibres. Caracteristicamente, a condição envolve um ou mais ramos da artéria carótida, em particular a artéria temporal. Contudo, é uma doença sistêmica que pode acometer artérias em múltiplas localizações, em particular a aorta e seus principais ramos. A arterite de células gigantes está estreitamente associada à polimialgia reumática, que se caracteriza por rigidez, desconforto e dor nos músculos do pescoço, dos ombros, da região lombar, dos quadris e das coxas. Mais comumente, a polimialgia reumática ocorre de forma isolada, mas pode ser vista em 40 a 50% dos pacientes com arterite de células gigantes. Além disso, cerca de 10 a 20% dos pacientes que apresentam inicialmente aspectos de polimialgia reumática isolada mais tarde desenvolverão arterite de célulasgigantes. Essa forte associação clínica, em conjunto com dados de estudos fisiopatológicos, tem apoiado de modo crescente o conceito de que a arterite de células gigantes e a polimialgia reumática representam espectros clínicos diferentes de um mesmo processo mórbido. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA A arterite de células gigantes ocorre quase exclusivamente em indivíduos com > 50 anos. É mais comum em mulheres do que em homens, e é rara em pessoas negras. A incidência da arterite de células gigantes varia amplamente em diferentes estudos e em diferentes regiões geográficas. Uma incidência alta tem sido encontrada na Escandinávia e em regiões dos Estados Unidos com grandes populações de escandinavos, em comparação com uma incidência mais baixa na Europa Meridional. As taxas de incidência anual em indivíduos com ≥ 50 anos variam de 6,9 a 32,8 por 100.000. Há relatos de agregação familiar, bem como de associação com HLA-DR4. Além disso, estudos de ligação genética têm demonstrado uma associação de arterite de células gigantes com alelos no locus HLA-DRB1, em particular variantes HLA-DRB1*04. No condado de Olmsted, Minnesota, a incidência anual de polimialgia reumática em indivíduos com ≥ 50 anos é de 58,7 por 100.000. PATOLOGIA E PATOGÊNESE Embora a artéria temporal seja a mais comumente envolvida na arterite de células gigantes, os pacientes frequentemente têm vasculite sistêmica de múltiplas artérias de médio e grande calibres, a qual pode não ser detectada. Da perspectiva histopatológica, a doença é uma panarterite com infiltrados inflamatórios de células mononucleares na parede vascular, frequentemente com formação de célula gigante. Ocorre proliferação da íntima e fragmentação da lâmina elástica interna. Os achados fisiopatológicos nos órgãos resultam da isquemia relacionada com os vasos comprometidos. Dados experimentais dão suporte à ideia de que a arterite de células gigantes é uma doença antígeno-dirigida na qual linfócitos T ativados, macrófagos e células dendríticas desempenham um papel crítico na patogênese. A análise de sequência do receptor de células T das células que infiltram os tecidos nas lesões de arterite de células gigantes indica expansão clonal restrita, sugerindo a presença de um antígeno residente na parede arterial. Acredita-se que a arterite de células gigantes seja iniciada na adventícia, onde células T CD4+ penetram através dos vasa vasorum, tornam-se ativadas e coordenam a diferenciação dos macrófagos. As células T recrutadas para as lesões de vasculite em pacientes com arterite de células gigantes produzem predominantemente IL-2 e γ-IFN, tendo sido sugerido o envolvimento desta último na progressão para arterite franca. Dados baseados em exames laboratoriais demonstram que pelo menos duas linhagens separadas de células T CD4 – células TH1 produtoras de γ-IFN e células TH17 produtoras de IL-17 – participam na inflamação vascular e podem demonstrar níveis diferentes de resposta aos glicocorticoides. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS Do ponto de vista clínico, a arterite de células gigantes caracteriza-se mais comumente pelo complexo de febre, anemia, VHS alta e cefaleias em paciente com mais de 50 anos. Outras manifestações fenotípicas incluem características da inflamação sistêmica, incluindo mal-estar geral, fadiga, anorexia, perda de peso, sudorese, artralgias, polimialgia reumática ou doença dos vasos de grande calibre. Nos pacientes com comprometimento das artérias cranianas, a cefaleia é o sintoma predominante e pode estar associada a uma artéria dolorida, espessa ou nodular, que pode pulsar no início da doença, mas tornar-se obstruída mais tarde. Dor no couro cabeludo e claudicação da mandíbula e da língua podem ocorrer. Uma complicação bem reconhecida e temida da arterite de células gigantes, em particular em pacientes não tratados, é a neuropatia óptica isquêmica, que pode levar a sintomas visuais graves (até mesmo cegueira repentina) em alguns pacientes. Entretanto, a maioria dos pacientes tem queixas relacionadas com a cabeça ou os olhos antes da perda visual. Essa complicação, em geral, será evitada quando se presta atenção a esses sintomas com a instituição de terapia apropriada (ver adiante). Outras complicações isquêmicas cranianas incluem acidente vascular cerebral e infarto do couro cabeludo ou da língua. Até cerca de um terço dos pacientes podem apresentar doença dos vasos de grande calibre, que pode ser a principal apresentação da arterite de células gigantes ou se manifestar dentro de um período mais tardio em pacientes que tiveram manifestações prévias de arterite craniana ou polimialgia reumática. As manifestações da doença de vasos de grande calibre podem incluir estenose da artéria subclávia, que pode se manifestar como claudicação do braço ou aneurismas aórticos envolvendo o segmento torácico da aorta e, em menor grau, a parte abdominal, com risco de ruptura ou dissecção. Achados laboratoriais característicos, além da VHS elevada, incluem anemia normocrômica ou levemente hipocrômica. Anormalidades da função hepática são comuns, em particular níveis elevados de fosfatase alcalina. Níveis aumentados de IgG e complemento foram relatados. Os níveis das enzimas indicativas de lesão muscular, tais como creatina-cinase sérica, não estão elevados. DIAGNÓSTICO O diagnóstico de arterite de células gigantes e sua síndrome clinicopatológica associada com frequência pode ser sugerido clinicamente pela demonstração do complexo de febre, anemia e VHS elevada, com ou sem sintomas de polimialgia reumática, em um paciente com mais de 50 anos. O diagnóstico pode ser confirmado por biópsia da artéria temporal, mas pode não ser positivo em todos os pacientes devido aos achados histológicos irregulares. Visto que o envolvimento do vaso pode ser segmentar, a positividade é aumentada pela obtenção de um segmento de biópsia de 3 a 5 cm, em conjunto com secções seriadas de espécimes de biópsia. Relatos mostram que a ultrassonografia da artéria temporal é útil no diagnóstico, e seu uso tem aumentado cada vez mais entre alguns médicos. A terapia não deve ser adiada, dependendo do desempenho dos exames diagnósticos. Nesse sentido, tem sido relatado que a biópsia da artéria temporal pode mostrar vasculite mesmo depois de cerca de 14 dias de terapia com glicocorticoide. A resposta clínica dramática a um teste terapêutico com glicocorticoide pode dar suporte ainda maior ao diagnóstico. A doença de vasos de grande calibre pode ser sugerida por sintomas e achados ao exame físico, como diminuição dos pulsos ou sopros. É confirmada por um exame de imagem vascular, mais comumente ressonância magnética ou tomografia computadorizada. A polimialgia reumática isolada é um diagnóstico clínico estabelecido pela presença de sintomas típicos de rigidez, desconforto e dor nos músculos do quadril e da cintura escapular, elevação da VHS, ausência de manifestações clínicas sugestivas de arterite de células gigantes e resposta terapêutica imediata à prednisona em dose baixa. TRATAMENTO Arterite de células gigantes e polimialgia reumática A mortalidade relacionada com a doença aguda causada diretamente por arterite de células gigantes é incomum, e os casos fatais ocorrem em consequência de eventos cerebrovasculares ou infarto agudo do miocárdio. Entretanto, os pacientes correm risco de mortalidade tardia por ruptura ou dissecção de aneurisma aórtico, visto que os pacientes com arterite de células gigantes têm probabilidade 18 vezes maior de desenvolver aneurismas da aorta torácica em comparação com a populaçãogeral. O tratamento na arterite de células gigantes tem por objetivo reduzir os sintomas e, sobretudo, prevenir a perda visual. A abordagem para o tratamento da doença intracraniana e de vasos de grande calibre na arterite de células gigantes atualmente é a mesma. A arterite de células gigantes e seus sintomas associados são muito sensíveis à terapia com glicocorticoides. O tratamento deve começar com prednisona, em uma dose de 40 a 60 mg/dia durante cerca de 1 mês, seguida de redução gradual. Quando ocorrem sinais e sintomas oculares, deve-se considerar o uso de metilprednisolona na dose de 1.000 mg/dia, durante 3 dias, para proteger a visão remanescente. Embora a duração ótima da terapia com glicocorticoides não tenha sido estabelecida, a maioria das séries constatou que os pacientes necessitam de tratamento por ≥ 2 anos. A recorrência dos sintomas durante a redução gradual da prednisona desenvolve-se em 60 a 85% dos pacientes com arterite de células gigantes, exigindo aumento da dose. A VHS pode servir como um indicador útil da atividade inflamatória da doença na monitoração e na redução da terapia, podendo ser usada para orientar o esquema de redução. Contudo, pequenos aumentos da VHS podem ocorrer quando os glicocorticoides estão sendo reduzidos e não refletem necessariamente uma exacerbação da arterite, sobretudo se o paciente permanece assintomático. Sob tais circunstâncias, a redução gradual deve prosseguir com cautela. A toxicidade por glicocorticoides ocorre em 35 a 65% dos pacientes e representa uma causa importante de morbidade. Observou-se que o ácido acetilsalicílico na dose de 81 mg/dia1 reduz a ocorrência de complicações isquêmicas cranianas na arterite de células gigantes, devendo ser administrado em associação aos glicocorticoides em pacientes sem contraindicações. O uso de metotrexato semanalmente como um agente poupador de glicocorticoide foi examinado em dois ensaios clínicos randomizados controlados por placebo, os quais alcançaram conclusões conflitantes. O infliximabe, um anticorpo monoclonal contra o TNF, foi estudado em um ensaio clínico randomizado e não demonstrou ter benefício. O tocilizumabe (antirreceptor de IL-6) mostrou-se mais efetivo do que a prednisona isolada em um recente estudo randomizado de grande porte sobre arterite de células gigantes, tendo sido aprovado pela FDA para uso com essa indicação. É usado como adjunto com glicocorticoides, mas seu papel ideal no manejo do paciente continuará a ser definido com o passar do tempo. É necessário considerar o perfil de efeitos colaterais do tocilizumabe, que inclui leucopenia, trombocitopenia, elevação de transaminases e hiperlipidemia. Dado o risco de perfuração gastrintestinal, pacientes com diverticulite prévia foram excluídos do estudo de arterite de células gigantes. Devido à natureza de seu mecanismo, o tocilizumabe tem impacto sobre os parâmetros laboratoriais da resposta de fase aguda, anulando a possibilidade de usá- los na avaliação da atividade da doença. O abatacepte (CTLA4-Ig) foi investigado em um pequeno estudo randomizado sobre arterite de células gigantes, tendo demonstrado mais eficácia do que o uso isolado de glicocorticoides. Os pacientes com polimialgia reumática isolada respondem prontamente à prednisona, que pode ser iniciada em uma dose mais baixa, de 10 a 20 mg/dia. Do mesmo modo que na arterite de células gigantes, a VHS pode servir como um indicador útil na monitoração e na redução da prednisona. Os sintomas da polimialgia recorrente desenvolvem-se na maioria dos pacientes durante a redução da prednisona. Um estudo sobre o uso semanal de metotrexato identificou que esse fármaco reduziu a dose de prednisona em apenas 1 mg, em média, e não diminuiu os efeitos colaterais relacionados com a prednisona. Em um ensaio clínico randomizado na polimialgia reumática, não foi constatado que o infliximabe possa diminuir as recidivas ou as necessidades de glicocorticoides. ARTERITE DE TAKAYASU DEFINIÇÃO A arterite de Takayasu é uma doença inflamatória e estenosante de artérias de médio e grande calibres caracterizada por uma forte predileção pelo arco da aorta e seus ramos. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA A arterite de Takayasu é uma doença incomum, com incidência anual estimada em 1,2 a 2,6 casos por milhão. É mais prevalente em adolescentes do sexo feminino e mulheres jovens. Embora seja mais comum na Ásia, não é restrita racial nem geograficamente. PATOLOGIA E PATOGÊNESE A doença acomete as artérias de médio e grande calibres, com forte predileção pelo arco da aorta e seus ramos; a artéria pulmonar também pode ser envolvida. As artérias mais comumente afetadas, vistas pela arteriografia, estão listadas na Tabela 356-7. O comprometimento dos ramos principais da aorta é muito mais marcante em sua origem do que nas partes distais. A doença é uma pan-arterite com infiltrados inflamatórios de células mononucleares e, ocasionalmente, células gigantes. Há proliferação e fibrose acentuadas da íntima, formação de tecido cicatricial e vascularização da média, bem como desintegração e degeneração da lâmina elástica. O estreitamento do lúmen ocorre com ou sem trombose. Os vasa vasorum com frequência são envolvidos. As alterações patológicas nos diversos órgãos refletem o comprometimento do fluxo sanguíneo através dos vasos envolvidos. TABELA 356-7 ■ Frequência de anormalidades arteriográficas e potenciais manifestações clínicas de envolvimento arterial na arterite de Takayasu Artéria Porcentagem de anormalidades arteriográficas Manifestações clínicas potenciais Subclávia 93 Claudicação do braço, fenômeno de Raynaud Carótida comum 58 Alterações visuais, síncope, ataques isquêmicos transitórios, acidente vascular cerebral Aorta abdominala 47 Dor abdominal, náuseas, vômitos Renal 38 Hipertensão, insuficiência renal Arco ou raiz da aorta 35 Insuficiência aórtica, insuficiência cardíaca congestiva Vertebral 35 Alterações visuais, tontura Tronco celíacoa 18 Dor abdominal, náuseas, vômitos Mesentérica superiora 18 Dor abdominal, náuseas, vômitos Ilíaca 17 Claudicação da perna Pulmonares 10-40 Dor torácica atípica, dispneia Coronária < 10 Dor torácica, infarto agudo do miocárdio aLesões arteriográficas nessas localizações em geral são assintomáticas, mas têm o potencial de causar esses sintomas. Fonte: G Kerr et al.: Ann Intern Med 120:919, 1994. Nessa doença, há suspeita de mecanismos imunopatogênicos, cuja natureza precisa é incerta. Da mesma forma como em várias síndromes de vasculite, imunocomplexos circulantes têm sido demonstrados, mas seu significado patogênico não está claro. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS A arterite de Takayasu é uma doença sistêmica, com sintomas tanto generalizados quanto vasculares. Os sintomas generalizados incluem mal-estar geral, febre, sudorese noturna, artralgias, anorexia e perda de peso, que podem ocorrer meses antes que o envolvimento de vasos seja aparente. Esses sintomas podem se mesclar com aqueles relativos ao comprometimento vascular e à isquemia de órgãos. Os pulsos comumente estão ausentes nos vasos envolvidos, em particular na artéria subclávia. A frequência das anormalidades à arteriografia e as manifestações clínicas potencialmente associadas estão listadas na Tabela 3 56-7. Ocorre hipertensão em 32 a 93% dos pacientes, contribuindo para lesão renal, cardíaca e cerebral. Os achados laboratoriais característicos incluem VHS elevada, anemia leve e níveis altos de imunoglobulina. DIAGNÓSTICO Deve-se suspeitar fortemente de arterite de Takayasu em uma mulher jovem que desenvolve diminuição ou ausência de pulsos periféricos, discrepâncias na pressão arterial e sopros arteriais.O diagnóstico é confirmado pelo padrão característico à arteriografia, que inclui paredes vasculares irregulares, estenose, dilatação pós-estenose, formação de aneurisma, oclusão vascular e evidência de circulação colateral aumentada. Deve-se obter arteriografia contrastada completa da aorta através de cateter ou angiorressonância, a fim de delinear totalmente a distribuição e o grau da doença arterial. A demonstração histopatológica de inflamação da parede vascular, que é predominantemente linfocítica, com formação de granulomas e células gigantes acometendo a média e a adventícia, contribui com dados confirmatórios; todavia, raramente o tecido é facilmente disponível para exame. A doença relacionada com IgG4 é uma causa potencial de aortite e periaortite, que é diferenciada histologicamente da arterite de Takayasu pela presença de um denso infiltrado linfoplasmocítico rico em plasmócitos positivos para IgG4, de um padrão de fibrose estoriforme e de flebite obliterativa. TRATAMENTO Arterite de Takayasu O prognóstico em longo prazo de pacientes com arterite de Takayasu tem variado amplamente entre os estudos. Embora dois estudos norte-americanos tenham encontrado uma sobrevida geral de ≥ 94%, a taxa de mortalidade em 5 anos a partir de outros estudos variou de 0 a 35%. A mortalidade relacionada com a doença ocorre mais frequentemente por insuficiência cardíaca congestiva, eventos cerebrovasculares, infarto agudo do miocárdio, ruptura de aneurisma ou insuficiência renal. Mesmo na ausência de doença potencialmente fatal, a arterite de Takayasu pode estar associada a uma morbidade significante. A evolução da enfermidade é variável, e, embora remissões espontâneas possam ocorrer, a arterite de Takayasu é mais frequentemente crônica e recidivante. Apesar da terapia com glicocorticoides aliviar os sintomas, em doses de 40 a 60 mg/dia de prednisona, não há estudos convincentes indicando que ela aumente a sobrevida. A combinação da terapia com glicocorticoides para os sinais e sintomas agudos, com uma abordagem cirúrgica e/ou arterioplástica agressiva para os vasos estenosados, melhorou acentuadamente o prognóstico e diminuiu a morbidade ao reduzir o risco de acidente vascular cerebral, corrigir a hipertensão causada por estenose da artéria renal e melhorar o fluxo sanguíneo para vísceras e membros isquêmicos. A menos que requerida com urgência, a correção cirúrgica de artérias estenosadas somente deve ser realizada com o processo inflamatório vascular bem controlado por tratamento clínico. Em indivíduos que são refratários aos glicocorticoides ou incapazes de ter sua dose gradualmente reduzida, o metotrexato em doses de até 25 mg/semana tem apresentado resultados encorajadores. Os resultados preliminares com terapias anti-TNF e tocilizumabe têm sido alentadores, porém são necessários estudos adicionais empregando ensaios clínicos randomizados para determinar sua eficácia. Recentemente, o abatacepte foi investigado no primeiro estudo randomizado conduzido sobre arterite de Takayasu, mas falhou em mostrar eficácia superior à do uso isolado de glicocorticoides. Alguns estudos retrospectivos publicados em que o tocilizumabe foi usado na arterite de Takayasu sustentam os benefícios do fármaco, porém investigações adicionais são necessárias para determinar totalmente a eficácia. VASCULITE POR IgA (HENOCH-SCHÖNLEIN) DEFINIÇÃO A vasculite por IgA (Henoch-Schönlein) é uma vasculite de vasos de pequeno calibre caracterizada por púrpura palpável (distribuída mais comumente sobre as nádegas e os membros inferiores), artralgias, sinais e sintomas gastrintestinais e glomerulonefrite. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA A vasculite por IgA (Henoch-Schönlein) costuma ser observada em crianças; a idade da maioria dos pacientes varia de 4 a 7 anos; entretanto, a doença também pode ser observada em lactentes e adultos. Não é uma doença rara; em uma série, ela foi responsável por 5 a 24 internações por ano em um hospital pediátrico. A razão entre os sexos masculino e feminino é de 1,5:1. Foi observada uma variação sazonal, com pico de incidência na primavera. PATOLOGIA E PATOGÊNESE O mecanismo patogênico proposto para a vasculite por IgA (Henoch-Schönlein) é a deposição de imunocomplexos. Vários estímulos antigênicos têm sido sugeridos, inclusive infecções do trato respiratório superior, vários fármacos, alimentos, picadas de insetos e imunizações. IgA é a classe de anticorpos mais frequentemente encontrada nos imunocomplexos e tem sido demonstrada nas biópsias renais desses pacientes. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS Em pacientes pediátricos, a púrpura palpável é vista em praticamente todos os casos; a maioria dos pacientes desenvolve poliartralgias na ausência de artrite franca. O envolvimento gastrintestinal, que é visto em quase 70% dos pacientes pediátricos, caracteriza-se por cólica abdominal, em geral associada a náuseas, vômitos, diarreia ou constipação e é, com frequência, acompanhada pela eliminação de sangue e muco pelo reto; pode ocorrer intussuscepção intestinal. De modo geral, o comprometimento renal observado em 10 a 50% dos pacientes caracteriza-se por glomerulonefrite leve, levando a proteinúria e hematúria microscópica, com cilindros hemáticos na maioria dos pacientes; essa condição costuma se resolver de maneira espontânea, sem terapia. Raramente, haverá desenvolvimento de glomerulonefrite progressiva. Em adultos, os sintomas de apresentação estão mais frequentemente relacionados à pele e às articulações, ao passo que queixas intestinais iniciais são menos comuns. Embora certos estudos tenham estabelecido que a doença renal é mais frequente e grave nos adultos, isso não tem sido um achado constante. Contudo, o curso da doença renal em adultos pode ser mais insidioso e, assim, requer acompanhamento de perto. Comprometimento do miocárdio pode ocorrer em adultos, mas é raro em crianças. Os exames de laboratório, em geral, mostram leucocitose discreta, contagem de plaquetas normal e, ocasionalmente, eosinofilia. Os componentes do complemento sérico estão normais, e os níveis de IgA estão elevados em cerca de metade dos pacientes. DIAGNÓSTICO O diagnóstico de vasculite por IgA (Henoch-Schönlein) baseia-se em sinais e sintomas clínicos. Uma biópsia de pele pode ser útil na confirmação da vasculite leucocitoclástica, com deposição de IgA e C3, por imunofluorescência. A biópsia renal raramente é necessária para o diagnóstico, porém, em alguns pacientes, pode fornecer informação prognóstica. TRATAMENTO Vasculite por IgA (Henoch-Schönlein) O prognóstico da vasculite por IgA (Henoch-Schönlein) é excelente. A mortalidade é extremamente rara; 1 a 5% das crianças progridem para doença renal em estágio terminal. A maioria dos pacientes se recupera completamente, e alguns não necessitam de terapia. O tratamento é semelhante para adultos e crianças. Quando a terapia com glicocorticoides é necessária, a prednisona em doses de 1 mg/kg/dia, que são reduzidas de forma gradativa conforme a resposta clínica, é comprovadamente útil para diminuir o edema tecidual, as artralgias e o desconforto abdominal; todavia, a prednisona não tem eficácia comprovada no tratamento das doenças cutânea ou renal e não parece encurtar a duração da doença ativa ou reduzir a chance de recorrência. Alguns relatos de casos de pacientes com glomerulonefrite rapidamente progressiva têm registrado benefícios da plasmaférese combinada com agentes citotóxicos. Recorrências da doença têm sido relatadas em 10 a 40% dos pacientes. VASCULITE CRIOGLOBULINÊMICA DEFINIÇÃO As crioglobulinas são imunoglobulinas monoclonais ou policlonais precipitáveis pelo frio.A crioglobulinemia pode estar associada a uma vasculite sistêmica caracterizada por púrpura palpável, artralgias, fraqueza, neuropatia e glomerulonefrite. Embora possa ser observada em associação com uma variedade de distúrbios subjacentes, inclusive mieloma múltiplo, distúrbios linfoproliferativos, doenças do tecido conectivo, infecções e doença hepática, em muitas situações, ela parece ser idiopática. Devido à ausência aparente de doença subjacente e à presença de crioprecipitado contendo imunoglobulinas oligoclonais/policlonais, esta entidade foi designada como crioglobulinemia mista essencial. Desde a descoberta da hepatite C, foi estabelecido que a grande maioria dos pacientes considerados portadores de crioglobulinemia mista essencial apresenta vasculite crioglobulinêmica relacionada à infecção pelo vírus da hepatite C. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA A incidência da vasculite crioglobulinêmica ainda não foi estabelecida. Entretanto, foi estimado que 5% dos pacientes portadores de hepatite C crônica desenvolverão vasculite crioglobulinêmica. PATOLOGIA E PATOGÊNESE As biópsias de pele na vasculite crioglobulinêmica revelam um infiltrado inflamatório circundando e acometendo as paredes dos vasos sanguíneos, com necrose fibrinoide, hiperplasia das células endoteliais e hemorragia. É comum haver depósito de imunoglobulina e complemento. Podem ser observadas anormalidades da pele não acometida, incluindo alterações da membrana basal e depósitos nas paredes vasculares. A glomerulonefrite membranoproliferativa é responsável por 80% de todas as lesões renais na vasculite crioglobulinêmica. A associação entre a hepatite C e a vasculite crioglobulinêmica tem sido sustentada por elevada frequência da hepatite C documentada, presença de RNA do vírus da hepatite C e anticorpos anti-hepatite C em crioprecipitados do soro, evidências de antígenos da hepatite C em lesões de vasculite cutânea e eficiência da terapia antiviral (ver adiante). As evidências atuais sugerem que, na maioria dos casos, a vasculite crioglobulinêmica ocorre quando uma resposta imune aberrante à infecção pelo vírus da hepatite C leva à formação de imunocomplexos, que consistem em antígenos da hepatite C, IgG policlonal específica da hepatite C e fator reumatoide IgM monoclonal. O depósito desses imunocomplexos nas paredes dos vasos sanguíneos desencadeia uma cascata inflamatória, que resulta em vasculite crioglobulinêmica. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS As manifestações clínicas mais comuns da vasculite crioglobulinêmica consistem em vasculite cutânea, artrite, neuropatia periférica e glomerulonefrite. A doença renal desenvolve-se em 10 a 30% dos pacientes. Glomerulonefrite rapidamente progressiva potencialmente fatal ou vasculite do SNC, do trato gastrintestinal ou do coração ocorrem com baixa frequência. A presença de crioprecipitados circulantes é o achado fundamental na vasculite crioglobulinêmica. O fator reumatoide quase sempre é encontrado e pode ser uma pista útil para a doença quando não se detectam crioglobulinas. Ocorre hipocomplementemia em 90% dos pacientes. VHS elevada e anemia ocorrem frequentemente. Evidências de infecção por hepatite C devem ser pesquisadas em todos os pacientes, e testes para anticorpos e RNA da hepatite C devem ser obtidos. TRATAMENTO Vasculite crioglobulinêmica A mortalidade aguda causada diretamente por vasculite crioglobulinêmica é incomum, mas a presença de glomerulonefrite é um sinal de prognóstico ruim para o desfecho geral em tais pacientes. Cerca de 15% dos casos progridem para doença renal em estágio terminal, 40% apresentarão doença cardiovascular, infecção ou insuficiência hepática fatais posteriormente. Conforme indicado, a maioria dos casos está associada à infecção pelo vírus da hepatite C. Nesses pacientes, o tratamento com terapia antiviral (Cap. 332) é a terapia de primeira linha para a vasculite crioglobulinêmica associada à hepatite C, em particular devido à eficácia das terapias para hepatite C atualmente disponíveis. A melhora clínica com terapia antiviral depende da resposta virológica. Os pacientes que eliminam a hepatite C do sangue têm melhora objetiva de sua vasculite, em conjunto com reduções significativas dos níveis de crioglobulinas, IgM e fator reumatoide circulantes. Embora uma melhora transitória possa ser observada com glicocorticoides, a resposta completa só é vista em 7% dos pacientes. A plasmaférese e os agentes citotóxicos têm sido utilizados em relatos de casos. Essas observações não foram confirmadas, e tais terapias têm riscos significativos. Ensaios clínicos randomizados com rituximabe (anti-CD20) na vasculite crioglobulinêmica associada à hepatite C forneceram evidências de benefício, de modo que esse agente deve ser considerado em pacientes com vasculite ativa, em combinação com terapia antiviral, ou isoladamente em pacientes que sofreram recidiva, demonstram intolerância ou apresentam contraindicações para agentes antivirais. VASCULITE DE UM ÚNICO ÓRGÃO A possibilidade da vasculite acometer órgãos isolados tornou-se cada vez mais evidente. Essa situação foi definida como vasculite em artérias ou veias de qualquer calibre, em um único órgão, que não apresenta manifestações indicando que se trata de uma expressão limitada de vasculite sistêmica. Os exemplos incluem aortite isolada, vasculite testicular, vasculite da mama, vasculite cutânea isolada e vasculite primária do SNC. Em alguns casos, essa forma de vasculite pode ser descoberta por ocasião de uma cirurgia, como orquiectomia para uma massa testicular devido à preocupação de neoplasia maligna que, no fim, demonstra ser uma vasculite. Alguns pacientes originalmente diagnosticados com vasculite de um único órgão podem desenvolver mais tarde manifestações adicionais de doença sistêmica. Nos casos em que não há evidências de vasculite sistêmica e o órgão acometido foi totalmente removido, o paciente pode ser acompanhado rigorosamente sem terapia imunossupressora. Em outras circunstâncias, como a vasculite primária do SNC ou em alguns pacientes com vasculite cutânea isolada, justifica-se uma intervenção clínica. VASCULITE CUTÂNEA IDIOPÁTICA DEFINIÇÃO O termo vasculite cutânea é amplamente definido como a ocorrência de inflamação dos vasos sanguíneos da derme. Devido à sua heterogeneidade, a vasculite cutânea tem sido definida por uma variedade de termos, incluindo vasculite por hipersensibilidade e angeíte cutânea leucocitoclástica. Contudo, a vasculite cutânea não é uma doença específica, e sim uma manifestação que pode ser vista em uma variedade de contextos. Em mais de 70% dos casos, a vasculite cutânea ocorre como parte de uma vasculite sistêmica primária, ou como vasculite secundária a um agente desencadeante ou a uma doença subjacente (ver “Vasculite secundária” adiante). Nos 30% restantes, a vasculite cutânea ocorre de forma idiopática. INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA A vasculite cutânea representa a vasculite mais comumente observada na prática clínica. A incidência exata da vasculite cutânea idiopática não foi determinada, devido à tendência da vasculite cutânea de estar associada a um processo subjacente e à variabilidade de sua evolução clínica. PATOLOGIA E PATOGÊNESE A característica histopatológica típica da vasculite cutânea é a presença de vasculite de vasos de pequeno calibre. As vênulas pós-capilares são os vasos mais comumente acometidos; capilares e arteríolas podem ser envolvidos com menor frequência. Essa vasculite é caracterizada por uma leucocitoclasia, um termo que se refere aos detritos nucleares remanescentesdos neutrófilos que se infiltraram dentro e em volta dos vasos durante os estágios agudos. Na fase subaguda ou crônica, as células mononucleares predominam; em certos subgrupos, é observada infiltração eosinofílica. Os eritrócitos frequentemente extravasam dos vasos comprometidos, levando à púrpura palpável. Pode ocorrer também arterite cutânea, que acomete vasos de calibre ligeiramente maior na derme. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS E LABORATORIAIS A característica essencial da vasculite cutânea idiopática é o predomínio do comprometimento da pele. As lesões cutâneas, em geral, podem aparecer como púrpura palpável; entretanto, podem ocorrer outras manifestações cutâneas de vasculite, incluindo máculas, pápulas, vesículas, bolhas, nódulos subcutâneos, úlceras e urticária recorrente ou crônica. As lesões de pele podem ser pruriginosas ou até mesmo bastante dolorosas, com uma sensação de queimadura ou ferroada. As lesões ocorrem mais comumente nos membros inferiores de pacientes deambulantes ou na área do sacro em pacientes acamados, devido aos efeitos das forças hidrostáticas sobre as vênulas pós- capilares. O edema pode acompanhar certas lesões, e hiperpigmentação ocorre frequentemente em áreas de lesões recorrentes ou crônicas. Não há exames laboratoriais específicos disponíveis para o diagnóstico de vasculite cutânea idiopática. Uma leucocitose discreta, com ou sem eosinofilia, é característica, assim como VHS elevada. Os exames de laboratório devem visar à exclusão de aspectos que sugiram doença subjacente ou vasculite sistêmica. DIAGNÓSTICO O diagnóstico de vasculite cutânea é estabelecido pela demonstração de vasculite na biópsia. Nos pacientes com essa enfermidade, um importante princípio diagnóstico é pesquisar uma etiologia para a vasculite – seja um agente exógeno, como um fármaco ou uma infecção, ou uma condição endógena como uma doença subjacente (Fig. 356-1). Além disso, o exame físico minucioso e os exames laboratoriais devem ser realizados para afastar a possibilidade de vasculite sistêmica. Esse processo deve começar pela abordagem diagnóstica menos invasiva, só devendo prosseguir para a mais invasiva se indicado clinicamente. TRATAMENTO Vasculite cutânea idiopática Quando um estímulo antigênico é reconhecido como fator precipitante da vasculite cutânea, ele deve ser removido; se for um microrganismo, a terapia antimicrobiana apropriada deve ser instituída. Se a vasculite estiver associada a outra doença subjacente, o tratamento da última, com frequência, resulta na resolução da primeira. Em situações em que a doença aparentemente é autolimitada, nenhuma terapia está indicada, exceto, possivelmente, o tratamento sintomático. Quando a vasculite cutânea persiste e não há evidências de agente incitante, doença associada ou vasculite sistêmica subjacente, a decisão de tratar deve se basear na ponderação do balanço entre o grau dos sintomas e o risco do tratamento. Alguns casos de vasculite cutânea idiopática regridem espontaneamente, ao passo que outros entram em remissão e sofrem recidiva. Em pacientes com vasculite persistente, uma variedade de esquemas terapêuticos foi tentada, com resultados variáveis. De modo geral, o tratamento da vasculite cutânea idiopática não tem sido satisfatório. Felizmente, como a doença em geral está limitada à pele, uma falta de resposta consistente à terapia não leva a uma situação potencialmente fatal. Os fármacos com os quais tem havido relatos de casos de sucesso incluem a dapsona, a colchicina, a hidroxicloroquina e os agentes anti-inflamatórios não esteroides. Os glicocorticoides com frequência são usados no tratamento da vasculite cutânea idiopática. Em geral, a terapia instituída é a prednisona (1 mg/kg/dia), com redução gradual rápida da dose sempre que possível, ou pela suspensão direta ou pela conversão para um esquema de dias alternados, seguida da suspensão final. Nos casos comprovadamente refratários aos glicocorticoides, pode ser indicada uma triagem com outro agente imunossupressor. Os pacientes com vasculite crônica limitada às vênulas cutâneas raramente respondem de forma drástica a qualquer esquema terapêutico, e, nesses pacientes, os agentes citotóxicos só devem ser utilizados como último recurso. Em relatos de casos, o metotrexato e a azatioprina têm sido empregados nessas situações. Embora a ciclofosfamida seja o agente terapêutico mais efetivo nas vasculites sistêmicas, quase nunca deve ser usada para vasculites cutâneas idiopáticas, em função de sua toxicidade potencial. VASCULITE PRIMÁRIA DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL A vasculite primária do sistema nervoso central (SNC) é uma entidade clinicopatológica incomum, caracterizada por vasculite restrita aos vasos do SNC, sem outra vasculite sistêmica aparente. Em geral, o processo inflamatório é composto de infiltrados de células mononucleares, com ou sem formação de granuloma. Os pacientes podem apresentar cefaleias, função mental alterada e déficits neurológicos focais. Sintomas sistêmicos em geral estão ausentes. Anormalidades neurológicas devastadoras podem ocorrer dependendo da extensão do comprometimento vascular. O diagnóstico pode ser sugerido por imagens anormais na ressonância magnética cerebral, por uma punção lombar alterada e/ou pela demonstração de anormalidades vasculares características na arteriografia (Fig. 356-4), porém é confirmado pela biópsia do parênquima cerebral e das leptomeninges. Na ausência de uma biópsia do cérebro, deve-se tomar cuidado para não interpretar equivocadamente como vasculite primária verdadeira as anormalidades arteriográficas que podem, na realidade, estar relacionadas a outra causa. Uma entidade importante a considerar no diagnóstico diferencial é a síndrome de vasoconstrição cerebral reversível, que, em geral, se manifesta com cefaleia “em trovoada” e está associada a anormalidades arteriográficas que simulam a vasculite primária do SNC, mas que são reversíveis. Outras considerações diagnósticas incluem infecção, aterosclerose, embolia, doença do tecido conectivo, sarcoidose, neoplasia maligna e causas associadas a fármacos. O prognóstico da vasculite primária granulomatosa do SNC é sombrio; entretanto, alguns relatos indicam que a terapia com glicocorticoides, isoladamente ou em associação com ciclofosfamida administrada conforme descrito anteriormente, induziu remissões clínicas. FIGURA 356-4 Arteriografia cerebral de um homem de 32 anos de idade com vasculite primária do sistema nervoso central. Observa-se uma acentuada formação em contas (seta), típica de vasculite. DOENÇA DE BEHÇET A doença de Behçet é uma entidade clinicopatológica caracterizada por episódios recorrentes de úlceras orais e genitais, irite e lesões cutâneas. O processo patológico subjacente é uma venulite leucocitoclástica, embora vasos de qualquer tamanho, e em qualquer órgão, possam ser envolvidos. Esse distúrbio é descrito de modo detalhado no Capítulo 357. SÍNDROME DE COGAN A síndrome de Cogan caracteriza-se por ceratite intersticial, em conjunto com sintomas vestíbulo-auditivos. Pode estar associada a uma vasculite sistêmica, em particular aortite com envolvimento da valva aórtica. Os glicocorticoides representam a base da terapia. O início do tratamento tão cedo quanto possível após o começo da perda auditiva melhora a probabilidade de resultado favorável. DOENÇA DE KAWASAKI A doença de Kawasaki é uma doença multissistêmica febril e aguda de crianças. Cerca de 80% dos casos ocorrem antes dos 5 anos de idade, com o pico de incidência acontecendo aos 2 anos ou menos. Caracteriza-sepor adenite cervical não supurativa e alterações na pele e nas membranas mucosas, tais como edema; conjuntivas congestionadas; eritema da cavidade oral, dos lábios e das palmas das mãos; e descamação da pele das pontas dos dedos da mão. Embora a doença, em geral, seja benigna e autolimitada, está associada a aneurismas das artérias coronárias em cerca de 25% dos casos, com uma taxa geral de letalidade de 0,5 a 2,8%. Essas complicações costumam ocorrer entre a terceira e a quarta semanas da doença, durante a fase de convalescença. A vasculite das artérias coronárias é encontrada em quase todos os casos fatais submetidos à necrópsia. Há uma proliferação típica da íntima e infiltração da parede vascular com células mononucleares. Aneurismas semelhantes a contas e tromboses podem ser vistos ao longo da artéria. Outras manifestações incluem pericardite, miocardite, isquemia e infarto agudo do miocárdio e cardiomegalia. Com exceção dos 2,8% dos pacientes que desenvolvem complicações fatais, o prognóstico dessa doença para recuperação é excelente. A γ-globulina IV em dose alta (2 g/kg como uma infusão única ao longo de 10 horas), em conjunto com ácido acetilsalicílico (100 mg/kg/dia, por 14 dias, seguidos por 3-5 mg/kg/dia, por várias semanas), demonstrou ser efetiva para reduzir a prevalência das anormalidades das artérias coronárias quando administrada precocemente no curso da doença. A cirurgia pode ser necessária em pacientes com doença de Kawasaki que apresentam aneurismas gigantes de artérias coronárias ou outras complicações coronarianas. O tratamento cirúrgico inclui, mais comumente, tromboendarterectomia, retirada de trombos, reconstrução para aneurisma e cirurgia de bypass coronariano. SÍNDROMES DE SOBREPOSIÇÃO DE POLIANGEÍTE Alguns pacientes com vasculite sistêmica manifestam características clinicopatológicas que não se enquadram precisamente em qualquer doença específica, mas têm aspectos superpostos de diferentes tipos de vasculite. A vasculite sistêmica ativa em tal situação tem o mesmo potencial para causar lesão irreversível de sistemas orgânicos da que ocorre em uma das síndromes listadas na Tabela 356-1. O diagnóstico e as considerações terapêuticas, assim como o prognóstico, para esses pacientes dependem dos locais e da gravidade da vasculite ativa. Aqueles com vasculite que pode potencialmente causar lesão irreversível a um sistema orgânico importante devem ser tratados como descrito em “Granulomatose com poliangeíte (de Wegener)”. VASCULITE SECUNDÁRIA VASCULITE INDUZIDA POR FÁRMACOS A vasculite associada a reações a fármacos em geral apresenta-se como uma púrpura palpável, que pode ser generalizada ou limitada às extremidades inferiores ou a outras áreas dependentes; contudo, lesões de urticária, úlceras e bolhas hemorrágicas também podem ocorrer (Cap. 56). Os sinais e sintomas podem ser limitados à pele, embora possam ocorrer manifestações sistêmicas, como febre, mal-estar geral e artralgias. Apesar de a pele ser o órgão predominantemente envolvido, uma vasculite sistêmica pode resultar de reações a fármacos. Os fármacos implicados na vasculite incluem alopurinol, tiazídicos, ouro, sulfonamidas, fenitoína e penicilina (Cap. 56). Um número crescente de fármacos foram relatados como causadores de vasculite associada a anticorpos ANCA antimieloperoxidase. Entre eles, a hidralazina e a propiltiouracila apresentam as melhores evidências de causalidade. As manifestações clínicas da vasculite induzida por fármacos ANCA-positiva podem variar desde lesões cutâneas até glomerulonefrite e hemorragia pulmonar. Além da suspensão do fármaco, o tratamento deve basear- se na gravidade da vasculite. Os pacientes com vasculite de pequenos vasos representando uma ameaça imediata à vida devem ser tratados inicialmente com glicocorticoides e ciclofosfamida, conforme descrito para a granulomatose com poliangeíte (de Wegener). Após a melhora clínica, deve-se considerar a redução gradual desses agentes em um esquema mais rápido. DOENÇA DO SORO E REAÇÕES SEMELHANTES À DOENÇA DO SORO Essas reações são caracterizadas pela ocorrência de febre, urticária, poliartralgias e linfadenopatia 7 a 10 dias após a exposição primária e 2 a 4 dias após a exposição secundária a uma proteína heteróloga (doença do soro clássica) ou a um fármaco não proteico, como penicilina ou sulfa (reação semelhante à doença do soro). A maioria das manifestações não se deve à vasculite; entretanto, pacientes ocasionais terão uma venulite cutânea típica, que, raramente, poderá progredir para vasculite sistêmica. VASCULITE ASSOCIADA A OUTRAS DOENÇAS SUBJACENTES Certas infecções podem desencadear diretamente um processo de vasculite inflamatória. Por exemplo, riquétsias podem invadir células endoteliais de pequenos vasos sanguíneos e nelas proliferar, causando vasculite (Cap. 182). Além disso, a resposta inflamatória ao redor dos vasos sanguíneos associada a certas doenças fúngicas sistêmicas, como histoplasmose (Cap. 207), pode simular um processo de vasculite primária. Uma vasculite leucocitoclástica envolvendo predominantemente a pele e com envolvimento ocasional de outros sistemas orgânicos pode ser um componente minoritário de muitas outras infecções. Entre elas, estão a endocardite bacteriana subaguda, infecção pelo vírus Epstein-Barr, infecção pelo HIV, além de outras infecções. A vasculite pode estar associada a certas neoplasias malignas, em particular neoplasias linfoides ou reticuloendoteliais. Vasculite leucocitoclástica confinada à pele é o achado mais comum; contudo, pode ocorrer vasculite sistêmica disseminada. É de interesse particular mencionar a associação da leucemia de células pilosas (Cap. 106) com poliarterite nodosa. Várias doenças do tecido conectivo apresentam vasculite como manifestação secundária do processo primário subjacente. Destacam-se, entre estas, o lúpus eritematoso sistêmico (Cap. 349), a artrite reumatoide (Cap. 351), a miosite inflamatória (Cap. 358), a policondrite recidivante (Cap. 359) e a síndrome de Sjögren (Cap. 354). A forma mais comum de vasculite, nessas condições, é a venulite de pequenos vasos restrita à pele. Entretanto, alguns pacientes podem desenvolver vasculite necrosante sistêmica fulminante. A vasculite secundária também tem sido observada em associação com colite ulcerativa, deficiências congênitas de vários componentes do complemento, sarcoidose, cirrose biliar primária, deficiência de α1-antitripsina e cirurgia de bypass intestinal. LEITURAS ADICIONAIS Buttgereit F et al: Polymyalgia rheumatica and giant cell arteritis: A systematic review. JAMA 315:2442, 2016. Fauci AS et al: Wegener’s granulomatosis: Prospective clinical and therapeutic experience with 85 patients for 21 years. Ann Intern Med 98:76, 1983. Finkielman JD et al: Antiproteinase 3 antineutrophil cytoplasmic antibodies and disease activity in Wegener granulomatosis. Ann Intern Med 147:611, 2007. Guillevin L et al: Churg-Strauss syndrome. Clinical study and long-term follow- up of 96 patients. Medicine (Baltimore) 78:26, 1999. Hoffman GS et al: Wegener granulomatosis: An analysis of 158 patients. Ann Intern Med 16:488, 1992. FIGURA 364-3 Fatores selecionados envolvidos no processo osteoartrítico, incluindo condrócitos, osso e sinóvia. A sinovite provoca a liberação de citocinas, alarminas, moléculas de padrões moleculares associados à lesão (DAMPs) e complemento, que ativam os condrócitos por meio de receptores de superfície celular. Os condrócitos produzem as moléculas da matriz (colágeno tipo 2, agrecano) e as enzimas responsáveispela degradação da matriz (p. ex., ADAMTS-5 e metaloproteinases matriciais [MPMs]). Ocorre invasão do osso através da cartilagem calcificada, desencadeada pelo fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF) e por outras moléculas. IL, interleucina; TGF, fator de crescimento transformador; TNF, fator de necrose tumoral. (De RF Loeser et al: Arthritis Rheum 64:1697, 2012.) A sinóvia, a cartilagem e o osso influenciam o desenvolvimento da doença por meio de citocinas, quimiocinas e até mesmo ativação do complemento (Fig. 364-3), que, por sua vez, atuam sobre os receptores de superfície celular dos condrócitos e, em última análise, exercem efeitos transcricionais. Os fragmentos de matriz liberados da cartilagem estimulam a sinovite. Citocinas inflamatórias, como a interleucina 1β (IL-1β) e o fator de necrose tumoral α (TNF-α), induzem os condrócitos a sintetizar prostaglandina E2 e óxido nítrico, que exercem efeitos complexos sobre a síntese e a degradação da matriz. Nos estágios iniciais da resposta da matriz à lesão, o efeito final da estimulação das citocinas pode ser a síntese da matriz; todavia, por fim, a combinação dos efeitos sobre os condrócitos desencadeia a degradação da matriz. As enzimas na matriz são mantidas sob controle por inibidores da ativação, como o inibidor tecidual da metaloproteinase (TIMP). Os fatores de crescimento também fazem parte dessa complexa rede, em que a proteína morfogênica do osso 2 (BMP-2, de bone morphogenetic protein 2) e o fator de crescimento transformador β (TGF-β, de transforming growth factor β) desempenham papéis proeminentes na estimulação do desenvolvimento dos osteófitos. Enquanto a cartilagem articular saudável é avascular, em parte devido à presença de inibidores da angiogênese na cartilagem, a doença caracteriza-se pela invasão de vasos sanguíneos na cartilagem a partir do osso subjacente. Esse processo é influenciado pela síntese do fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF) na cartilagem e no osso. Esses vasos sanguíneos são acompanhados de nervos que podem produzir inervação nociceptiva. Provavelmente em consequência da lesão oxidativa crônica, os condrócitos articulares exibem um declínio na sua capacidade de síntese relacionado com o envelhecimento, ao passo que mantêm a capacidade de produzir mediadores pró- inflamatórios e enzimas de degradação da matriz, achados que caracterizam um fenótipo secretor senescente. Esses condrócitos são incapazes de manter a homeostasia tecidual (como após agressões de natureza mecânica ou inflamatória). Por conseguinte, com o envelhecimento, a cartilagem é facilmente lesionada por traumas menores e, às vezes, despercebidos, incluindo aqueles que fazem parte das atividades diárias. A cartilagem da OA caracteriza-se pela depleção gradual de agrecano, pela desestruturação da matriz colágena firmemente trançada e pela perda de colágeno tipo 2. Essas mudanças são acompanhadas por maior vulnerabilidade da cartilagem, que perde a sua rigidez compressiva. FATORES DE RISCO A vulnerabilidade articular e a aplicação de carga sobre a articulação são os dois fatores principais que contribuem para o surgimento da OA. Por um lado, uma articulação vulnerável, cujos protetores estão disfuncionais, pode desenvolver OA com níveis mínimos de carga, talvez até mesmo com níveis encontrados durante as atividades diárias. Por outro lado, em uma articulação jovem com protetores competentes, uma lesão aguda significativa ou sobrecarga prolongada é necessária para desencadear a doença. Os fatores de risco para OA podem ser compreendidos em termos de seu efeito sobre a vulnerabilidade articular ou sobre a aplicação das cargas (Fig. 364-4). FIGURA 364-4 Os fatores de risco para osteoartrite (OA) contribuem para a suscetibilidade da articulação (fatores sistêmicos ou fatores existentes no ambiente articular local) ou levam ao aumento do risco em consequência da carga imposta à articulação. Em geral, é necessária a combinação da aplicação das cargas com os fatores de suscetibilidade para causar a doença ou a sua progressão. FATORES DE RISCO SISTÊMICOS A idade é o fator de risco mais potente para OA. A evidência radiográfica de OA é rara nos indivíduos com < 40 anos; contudo, em algumas articulações, como as das mãos, a OA ocorre em > 50% dos idosos com idade > 70 anos. O envelhecimento faz aumentar a vulnerabilidade articular por meio de vários mecanismos. Enquanto a carga dinâmica das articulações estimula a síntese de matriz da cartilagem por parte dos condrócitos na cartilagem jovem, a cartilagem envelhecida é menos responsiva a esses estímulos. Em parte em virtude dessa incapacidade de sintetizar a matriz com a aplicação de cargas, a cartilagem se adelgaça com o envelhecimento, e a cartilagem mais fina sofre maior estresse de cisalhamento, correndo maior risco de sofrer lesão. Além disso, os protetores articulares falham mais frequentemente com o envelhecimento. Os músculos que cruzam a articulação ficam mais fracos com o envelhecimento e respondem também com menor rapidez aos impulsos iminentes. O influxo dos nervos sensitivos torna-se mais lento com o envelhecimento, retardando a alça de feedback dos mecanorreceptores para os músculos e tendões relacionados com sua tensão e posição. Os ligamentos se distendem com o envelhecimento, tornando-se menos capazes de absorver os impulsos. Esses fatores trabalham em conjunto para aumentar a vulnerabilidade das articulações mais velhas à OA. As mulheres de idade mais avançada exibem alto risco de desenvolvimento de OA em todas as articulações, o qual emerge na sexta década da vida. Embora a perda hormonal observada com a menopausa possa contribuir para esse risco, existe pouca compreensão sobre a vulnerabilidade singular das mulheres idosas versus a dos homens à OA. HEREDITARIEDADE E GENÉTICA A OA é uma doença altamente hereditária, porém a sua hereditariedade é específica de cada articulação. Cerca de 50% dos casos de OA nas mãos e nos quadris na comunidade podem ser atribuídos à herança, isto é, à doença presente em outros membros da família. Entretanto, o percentual de OA no joelho que pode ser herdado é de, no máximo, 30%, com alguns estudos sugerindo que a hereditariedade não desempenha nenhum papel. Enquanto muitas pessoas com OA sofrem dessa doença em múltiplas articulações, tal fenótipo de “OA generalizada” raramente é herdado, representando mais frequentemente uma consequência do envelhecimento. Evidências emergentes identificaram mutações genéticas que conferem um alto risco de OA, das quais a mais bem reproduzida é um polimorfismo no gene do fator de diferenciação do crescimento 5 (GDF5). Esse polimorfismo diminui a quantidade de GDF5; esse fator de diferenciação do crescimento influencia principalmente o formato articular, que tende a ser o mecanismo pelo qual os genes que predispõem à OA aumentam o risco de doença. CONSIDERAÇÕES GLOBAIS Com o envelhecimento das populações, tanto a prevalência de OA como a quantidade de incapacitação mundial relacionada à OA estão aumentando, em particular nos países desenvolvidos onde muitos vivem até a fase da idade avançada. A OA no quadril é rara na China e nos imigrantes chineses dos Estados Unidos. Entretanto, a OA no joelho é pelo menos tão comum, ou até mais, nos chineses do que nos brancos dos Estados Unidos, representando a principal causa de incapacitação na China, particularmente em áreas rurais. As diferenças anatômicas entre os quadris dos chineses e os dos brancos podem ser responsáveis por grande parte da diferença na prevalência da OA do quadril, com os quadris dos brancos evidenciando umaprevalência maior de predisposições anatômicas ao desenvolvimento de OA. FATORES DE RISCO NO AMBIENTE ARTICULAR Alguns fatores de risco fazem aumentar a vulnerabilidade da articulação por meio de efeitos locais sobre o ambiente articular. Com as mudanças na anatomia articular, por exemplo, a carga sobre a articulação não se distribui mais uniformemente por toda a superfície articular, e sim mostra aumento no estresse focal. No quadril, três anormalidades incomuns de desenvolvimento que ocorrem in utero ou durante a infância – a displasia congênita, a doença de Legg-Perthes e o deslizamento da epífise da cabeça do fêmur – deixam as crianças com distorções na anatomia da articulação do quadril, que, com frequência, evoluem para OA nas fases subsequentes da vida. As meninas são acometidas predominantemente pela displasia acetabular, uma forma leve de deslocamento congênito, ao passo que as outras anormalidades acometem mais frequentemente os meninos. Dependendo da gravidade das anormalidades anatômicas, a OA de quadril ocorre na vida adulta jovem (anormalidades graves) ou na meia-idade (anormalidades leves). O desenvolvimento de impacto femoroacetabular pode ocorrer durante a adolescência. É uma síndrome clínica em que as anormalidades anatômicas da cabeça femoral e/ou do acetábulo resultam no contato anormal entre os dois ossos, em particular durante a flexão e a rotação do quadril, levando à lesão cartilaginosa e labral, à dor no quadril e, por fim, em fases mais tardias da vida, a uma possível OA do quadril. As grandes lesões de uma articulação também podem produzir anormalidades anatômicas que tornam a articulação suscetível à OA. Por exemplo, uma fratura através da superfície articular costuma causar OA nas articulações em que a doença é bastante rara, como o tornozelo e o punho. A necrose avascular pode dar origem ao colapso do osso morto na superfície articular, produzindo irregularidades anatômicas e OA subsequente. As lacerações das estruturas ligamentosas e fibrocartilaginosas que protegem as articulações, como o menisco, no joelho, e o labrum, no quadril, podem levar ao desenvolvimento prematuro de OA. As lacerações meniscais aumentam com o envelhecimento e, quando crônicas, são frequentemente assintomáticas, porém levam à lesão da cartilagem adjacente e à OA acelerada. Mesmo as lesões que nunca foram diagnosticadas no indivíduo acometido podem aumentar o risco de OA. Por exemplo, nos indivíduos do Estudo Framingham, os homens com história de lesão significativa do joelho, porém sem qualquer cirurgia, exibiam um risco 3,5 vezes maior de vir a ter OA subsequente no joelho. Outra fonte de anormalidade anatômica é o desalinhamento da articulação ( Fig. 364-5). Esse fator foi mais bem estudado no joelho, que é o ponto de apoio do braço de alavanca mais longo no corpo. Os joelhos varos (pernas arqueadas) com OA são um risco extremamente alto de perda da cartilagem no compartimento medial ou no interno do joelho, ao passo que o desalinhamento em valgo (joelho virado para dentro) predispõe à rápida perda da cartilagem no compartimento lateral. O desalinhamento provoca esse efeito ao aumentar o estresse sobre a área focal da cartilagem, que, então, se desintegra. Há evidências de que o desalinhamento no joelho não apenas provoca perda da cartilagem, mas também resulta em lesão no osso subjacente, produzindo lesões da medula óssea que são observadas por imagem de ressonância magnética (RM). O desalinhamento no joelho frequentemente produz aumento substancial do estresse focal no joelho (conforme demonstrado pelos efeitos destrutivos no osso subcondral), de modo que os joelhos com desalinhamento acentuado podem estar destinados a progredir independentemente da existência de outros fatores de risco. FIGURA 364-5 Os dois tipos de desalinhamento dos membros no plano frontal: varo, em que o estresse é aplicado ao longo do compartimento medial da articulação do joelho; e valgo, que aplica o estresse excessivo ao longo do compartimento lateral do joelho. A fraqueza nos músculos quadríceps que transitam no joelho aumenta o risco de desenvolvimento de OA dolorosa no joelho. O papel do osso no funcionamento como um absorvente dos choques para a carga de impacto não é bem compreendido, porém indivíduos com densidade óssea aumentada têm alto risco de OA, sugerindo que a resistência do osso ao impacto durante a utilização da articulação pode desempenhar um papel proeminente no desenvolvimento da doença. FATORES RELACIONADOS COM AS CARGAS Obesidade Durante o apoio em uma única perna, o joelho suporta uma carga que varia de 3 a 6 vezes o peso corporal. Qualquer aumento no peso pode ser multiplicado por esse fator para revelar a força excessiva exercida sobre o joelho nas pessoas com sobrepeso durante a marcha. A obesidade é um fator de risco bem reconhecido e significativo para o desenvolvimento de OA no joelho e, um pouco menos, no quadril. A obesidade precede o surgimento da doença e não é apenas uma consequência da inatividade atual observada nos indivíduos com a doença. Trata-se de um fator de risco mais potente para a doença nas mulheres do que nos homens. Nas mulheres, a relação peso:risco de doença é linear, de forma que cada aumento no peso será acompanhado de um aumento proporcional no risco. A perda de peso nas mulheres reduz o risco de desenvolver a doença sintomática. Além de a obesidade ser um fator de risco de OA nas articulações responsáveis pela sustentação do peso corporal, indivíduos obesos exibem sintomas mais graves da doença. O efeito da obesidade sobre o desenvolvimento e a progressão da doença é mediado principalmente por meio da aplicação de cargas maiores nas articulações responsáveis pela sustentação do peso corporal que ocorre nas pessoas com sobrepeso. Contudo, uma associação modesta da obesidade com o risco aumentado de OA na mão sugere que produtos sistêmicos do tecido adiposo, como as adipocinas, também podem afetar o risco de desenvolver a doença. Uso repetido da articulação e exercício Existem duas categorias de uso repetitivo da articulação: o uso ocupacional e as atividades físicas de lazer. Os trabalhadores que realizam tarefas repetitivas por muitos anos como parte de suas ocupações correm alto risco de desenvolver OA nas articulações que são utilizadas repetidamente. Por exemplo, os fazendeiros correm alto risco de OA do quadril, ao passo que os mineiros têm taxas elevadas de OA nos joelhos e na coluna vertebral. Os trabalhadores cujas tarefas exigem a flexão regular do joelho ou levantam ou carregam cargas pesadas exibem alta taxa de OA no joelho. Uma razão pela qual os trabalhadores podem ser acometidos pela doença é que, durante os longos dias de trabalho, seus músculos podem ficar exauridos gradualmente, deixando de funcionar como protetores articulares efetivos. Recomenda-se amplamente que as pessoas adotem um estilo de vida com exercícios, e os estudos de longo prazo sobre o efeito do exercício sugerem não haver nenhuma associação consistente do exercício com o risco de OA na maioria dos indivíduos. Entretanto, aqueles que já têm lesões articulares podem se expor a um risco maior com o engajamento em determinados tipos de exercício. Por exemplo, pessoas que já sofreram lesões significativas no joelho correm risco aumentado de OA progressiva do joelho como consequência de corrida. Além disso, em comparação com indivíduos que não correm, os corredores de elite (aqueles profissionais e de equipes olímpicas) correm alto risco de OA do joelhoe do quadril. Por fim, embora corredores amadores não corram risco aumentado de OA do joelho, estudos sugerem que eles têm um aumento modesto no risco de doença do quadril. PATOLOGIA A patologia da OA fornece evidências do acometimento de muitas estruturas articulares na doença. Inicialmente, a cartilagem mostra fibrilação e irregularidade superficiais. À medida que a doença progride, surgem erosões focais nessas áreas, as quais, por fim, se estendem até o osso subjacente. Com a progressão adicional, a erosão da cartilagem que desce até o osso se expande e envolve uma área maior da superfície articular, embora a OA continue sendo uma doença focal com perda não uniforme de cartilagem (Fig. 364-6). FIGURA 364-6 Alterações patológicas de osteoartrite na articulação de um artelho. Observe a perda não uniforme de cartilagem (ponta de seta vs. seta sólida), a maior espessura do invólucro ósseo subcondral (seta sólida) e o osteófito (seta aberta). (© 2018 American College of Rheumatology. Utilizada com permissão.) Após lesão da cartilagem, os condrócitos sofrem mitose e aglomeração. Embora a atividade metabólica desses aglomerados de condrócitos seja alta, o efeito final dessa atividade é promover a depleção de proteoglicanas na matriz que circunda os condrócitos. Isso ocorre pelo fato de a atividade catabólica ser maior do que a atividade de síntese. À medida que a doença se instala, a matriz colágena sofre alguma lesão, as cargas negativas das proteoglicanas ficam expostas, e a cartilagem fica edemaciada por ação da atração iônica pelas moléculas de água. Como na cartilagem lesionada as proteoglicanas não são mais forçadas a permanecerem em estreita proximidade, a cartilagem não recupera sua elasticidade após a aplicação da carga, como fazia quando era saudável, tornando-se vulnerável à lesão adicional. Os condrócitos ao nível basal da cartilagem sofrem apoptose. Com a perda da cartilagem, surgem alterações no osso subcondral. Estimulados pelos fatores de crescimento e pelas citocinas, os osteoclastos e os osteoblastos na lâmina óssea subcondral, imediatamente abaixo da cartilagem, acabam sendo ativados. A formação óssea produz espessamento e maior rigidez da placa subcondral que ocorre até antes da ulceração da cartilagem. O traumatismo do osso durante a aplicação de carga articular pode ser o fator primário que aciona essa resposta óssea, com cicatrização da lesão (incluindo fendas microscópicas) e produção de rigidez. Existem habitualmente pequenas áreas de osteonecrose nas articulações com a doença em fase avançada. A morte do osso também pode ser causada por traumatismo ósseo com o cisalhamento da microcirculação, levando à interrupção do suprimento vascular para algumas áreas do osso. Na margem da articulação, próximo das áreas de perda da cartilagem, ocorre formação de osteófitos. Esses osteófitos começam como evaginações de cartilagem nova, e, com a invasão neurovascular do osso, essa cartilagem sofre ossificação. Os osteófitos constituem um importante marco radiográfico da OA. A sinóvia produz líquidos lubrificantes que minimizam o estresse de cisalhamento durante o movimento. Nas articulações sadias, a sinóvia consiste em uma única camada descontínua cheia de gordura e contendo dois tipos de célula-macrófagos e fibroblastos; no entanto, na OA, ela pode tornar-se algumas vezes edemaciada e inflamada. Observa-se a migração dos macrófagos periféricos para o tecido, e as células que revestem a sinóvia proliferam. As citocinas inflamatórias e as alarminas secretadas pela sinóvia ativam os condrócitos, que produzem enzimas que aceleram a destruição da matriz. Outras alterações patológicas ocorrem na cápsula, que fica distendida e edemaciada, podendo tornar-se fibrótica. A patologia da OA não é idêntica em todas as articulações. Nas articulações da mão com OA grave, por exemplo, ocorrem com frequência erosões da cartilagem no centro da articulação, produzidas provavelmente pela pressão óssea proveniente do lado oposto da articulação. Os cristais de fosfato de cálcio básico e de pirofosfato de cálcio di- hidratados são evidenciados ao exame microscópico na maioria das articulações com OA em estágio terminal. Seu papel na cartilagem osteoartrítica é obscuro, porém sua liberação da cartilagem para dentro do espaço articular e do líquido articular provavelmente desencadeia uma inflamação sinovial, que, por sua vez, pode produzir liberação de citocinas e induzir estimulação nociceptiva. FONTES DE DOR Devido à cartilagem ser aneural, sua perda em uma articulação não é acompanhada de dor. Assim, a dor na OA tem origem provavelmente em estruturas fora da cartilagem. As estruturas inervadas na articulação são a sinóvia, os ligamentos, a cápsula articular, os músculos e o osso subcondral. A maioria dessas estruturas não é visualizada em radiografias, e o grau de alterações radiográficas na OA correlaciona-se precariamente com a intensidade da dor. Entretanto, em estágios mais tardios da OA, a perda da integridade da cartilagem acompanhada de invasão neurovascular pode contribuir para a dor. Com base em estudos de RM realizados em joelhos osteoartríticos comparando aqueles com e sem dor, assim como em estudos destinados a mapear a hipersensibilidade em articulações não anestesiadas, as prováveis fontes de dor são a inflamação sinovial, os derrames articulares e o edema da medula óssea. Uma sinovite moderada instala-se em muitas, mas não em todas as, articulações osteoartríticas. A presença de sinovite na RM mostra correlação com a presença e a intensidade da dor no joelho. O estiramento capsular devido ao líquido existente na articulação estimula as fibras nociceptivas nessa área, levando à sensação de dor. As maiores cargas focais como parte da doença não apenas afetam a cartilagem, como também provavelmente lesionam o osso subjacente. Em consequência, o edema da medula óssea aparece na RM; na perspectiva histológica, esse edema assinala a presença de fendas microscópicas e cicatrizes que representam as consequências de traumatismos. Tais lesões podem estimular as fibras nociceptivas no osso. A dor pode ter origem também fora da articulação, incluindo as bursas próximo das articulações. As fontes comuns de dor nas proximidades do joelho são a bursite anserina e a síndrome da banda iliotibial. As alterações patológicas da OA podem finalmente levar a alterações na sinalização do sistema nervoso. De modo específico, os nociceptores periféricos podem se tornar mais responsivos à estimulação sensitiva, conhecida como sensibilização periférica, e também pode haver aumento na atividade nociceptiva ascendente central, conhecida como sensibilização central. Indivíduos com OA também podem apresentar modulação inibitória descendente insuficiente. Alguns indivíduos podem apresentar predisposição genética à sensibilização; no entanto, seja qual for a etiologia, essas alterações no sistema nervoso estão associadas a uma intensidade maior da dor, podendo contribuir para a presença de alodinia e hiperalgesia em pacientes com OA. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS A dor articular da OA é primariamente relacionada à atividade nos primeiros estágios da doença. A dor surge durante ou imediatamente após o uso da articulação e, em seguida, desaparece de modo gradual. São exemplos a dor nos joelhos ou no quadril ao subir ou descer escadas, a dor nas articulações responsáveis pela sustentação do peso corporal ao caminhar e, para a OA da mão, a dor ao cozinhar. Nas fases iniciais da doença, a dor é episódica,induzida frequentemente pela utilização hiperativa de uma articulação acometida, como acontece com uma pessoa que sofre de OA no joelho que realiza uma longa caminhada e, a seguir, enfrenta alguns dias de dor. À medida que a doença progride, a dor torna-se contínua e começa até mesmo a incomodar durante a noite. A rigidez da articulação afetada pode ser proeminente, porém a rigidez matinal costuma ser de curta duração (< 30 minutos). Nos joelhos, pode ocorrer deformação devido, em parte, à fraqueza dos músculos que cruzam a articulação. Os sintomas mecânicos, como deformidade ou bloqueio, também poderiam significar desarranjo interno, como ruptura do menisco ou do ligamento cruzado anterior; entretanto, esses sintomas, que são comuns em indivíduos com OA do joelho, somente necessitarão de avaliação adicional se aparecerem após uma lesão aguda no joelho. No joelho, a dor com as atividades que exigem flexão do joelho, como subir escadas e levantar-se de uma cadeira, emana com frequência do compartimento patelofemoral do joelho, que não se articula ativamente até que o joelho seja flexionado em cerca de 35°. A OA é a causa mais comum de dor crônica no joelho em pessoas com > 45 anos de idade, porém o diagnóstico diferencial é longo. A artrite inflamatória é provável quando existe rigidez matinal prolongada e muitas articulações estão afetadas. As bursites ocorrem geralmente ao redor dos joelhos e dos quadris. O exame físico deve concentrar-se em esclarecer se a hipersensibilidade se localiza sobre a interlinha articular (na junção dos dois ossos ao redor dos quais se processa a movimentação articular) ou fora dela. A bursite anserina, medial e distal ao joelho, é uma causa extremamente comum de dor crônica no joelho, que pode responder a uma injeção de glicocorticoide. A dor noturna proeminente na ausência de OA em estágio terminal merece propedêutica distinta. Para a dor no quadril, a OA pode ser identificada pela perda da rotação interna durante a movimentação passiva; a dor isolada em uma área lateral ao quadril reflete normalmente a presença de bursite troncantérica. Nenhum exame de sangue é indicado como rotina na avaliação dos pacientes com OA, a não ser quando os sintomas e sinais sugerirem artropatia inflamatória. O exame do líquido sinovial costuma ser mais útil do ponto de vista diagnóstico do que uma radiografia. Se a contagem de leucócitos do líquido sinovial for > 1.000/μL, existe a probabilidade de artropatia inflamatória, gota ou pseudogota, sendo as últimas duas também identificadas pela presença de cristais. As radiografias são indicadas para avaliar a possibilidade de OA somente quando a dor articular e os achados físicos forem atípicos ou se a dor persistir após a instituição de um tratamento efetivo para a OA. Na OA, os achados radiográficos (Fig. 364-7) exibem pouca correlação com a presença e a intensidade da dor. Além disso, tanto nos joelhos como no quadril, as radiografias podem ser normais nas fases iniciais da doença, pois são insensíveis para perda de cartilagem e para outros achados iniciais. FIGURA 364-7 Radiografia do joelho com osteoartrite medial. Observe o espaço articular estreitado apenas no lado medial da articulação (seta branca), a esclerose do osso no compartimento medial evidenciando espessamento cortical (seta preta) e os osteófitos no fêmur medial (ponta de seta branca). A RM pode revelar a extensão da patologia em uma articulação osteoartrítica, porém não está indicada como parte da propedêutica diagnóstica. Achados como lacerações meniscais na cartilagem e lesões ósseas ocorrem não só na maioria dos pacientes com OA no joelho como também na maioria dos 1. 2. 3. idosos que não apresentam dor articular. Os achados de RM quase nunca justificam modificação na terapia. TRATAMENTO Osteoartrite Os objetivos do tratamento da OA consistem em aliviar a dor e minimizar a perda da função física. Até o ponto em que a dor e a perda de função forem consequências de inflamação, fraqueza da articulação e frouxidão e instabilidade, o tratamento da OA envolverá a correção de cada um desses comprometimentos. A terapia abrangente consiste em uma abordagem multimodal, incluindo elementos farmacológicos e não farmacológicos. Os pacientes com sintomas leves e intermitentes podem necessitar apenas de tranquilização ou tratamentos não farmacológicos. Pacientes com dor contínua e incapacitante tendem a necessitar tanto de terapia não farmacológica como de farmacoterapia. Os tratamentos para a OA do joelho foram avaliados mais completamente do que os destinados à OA do quadril e da mão ou à doença em outras articulações. Assim, apesar de os princípios do tratamento serem idênticos para a OA em todas as articulações, enfocamos adiante o tratamento da OA no joelho, assinalando recomendações específicas para a doença em outras articulações, principalmente quando diferem das adotadas para a doença no joelho. TERAPIA NÃO FARMACOLÓGICA Sabendo que a OA é uma doença induzida mecanicamente, a base do tratamento consiste em alterar as cargas sobre a articulação dolorida e melhorar a função dos protetores articulares, para que possam distribuir melhor a carga ao longo da articulação. As maneiras de reduzir as cargas focais ao longo da articulação consistem em: evitar atividades dolorosas, que geralmente são aquelas que sobrecarregam a articulação; melhorar a força e o condicionamento dos músculos que cruzam a articulação, a fim de aprimorar sua função; e remover as cargas que atuam sobre a articulação, seja redistribuindo-as dentro da articulação com uma órtese ou uma tala ou reduzindo a carga articular durante a sustentação do peso corporal com uma bengala ou uma muleta. O tratamento mais simples para muitos pacientes é evitar as atividades que precipitam dor. Por exemplo, para o paciente de meia-idade cuja corrida de longa distância provoca os sintomas de OA no joelho, uma forma menos rigorosa de atividade com sustentação do peso corporal pode aliviar todos os sintomas. Para uma pessoa de idade mais avançada cujas caminhadas diárias subindo e descendo ladeiras provocam dor no joelho, a mudança de percurso da caminhada, desviando-se das ladeiras, pode eliminar os sintomas. Como o efeito da carga exercida por cada quilograma de peso é multiplicada em 3 a 6 vezes ao longo dos joelhos, cada quilograma de peso perdido pode exercer um efeito multiplicador proporcional, aliviando a carga tanto sobre os joelhos como sobre os quadris e provavelmente minimizando a dor nessas articulações. Nas articulações das mãos afetadas pela OA, a imobilização, uma vez que limita o movimento, frequentemente minimiza a dor em pacientes com comprometimento, sobretudo na base do polegar. As articulações responsáveis pela sustentação do peso corporal, como as dos joelhos e dos quadris, podem ser aliviadas ao utilizar uma bengala na mão oposta à articulação afetada, para sustentar parcialmente o peso. Um fisioterapeuta pode ajudar o paciente, ensinando-o a usar adequadamente a bengala, assegurando que a altura esteja ótima para reduzir as cargas. As muletas ou os andadores podem ter uma função benéfica semelhante. Exercício A dor osteoartrítica nos joelhos ou nos quadris durante a sustentação do peso corporal resulta em falta de atividade e mobilidade reduzida, e, pelo fato de a OA ser tão comum, a inatividade resultante aumenta o risco de doença cardiovascular e obesidade. A capacidade aeróbia é precária na maioria dos idosos com OA sintomática do joelho, sendo pior que a dos outros indivíduos damesma idade. A fraqueza nos músculos que cruzam as articulações osteoartríticas é de etiologia multifatorial. Primeiro, observa-se um declínio na força com o envelhecimento. Segundo, com uma mobilidade limitada, instala-se a atrofia muscular por desuso. Terceiro, os pacientes com OA dolorosa nos joelhos ou nos quadris alteram sua marcha, de modo a reduzir as cargas sobre a articulação afetada, o que reduz ainda mais o uso dos músculos. Quarto, pode ocorrer “inibição artrogênica”, pela qual a contração dos músculos que cruzam a articulação é inibida por uma alça de feedback aferente neural com origem em uma cápsula articular edemaciada e distendida, impedindo que seja alcançada a força voluntária máxima. Sabendo que a força muscular e o condicionamento adequados são essenciais à proteção articular, a fraqueza em um músculo que cruza a articulação acometida torna essa articulação mais suscetível à dor e a lesões adicionais. O grau de fraqueza se correlaciona fortemente com a intensidade da dor articular e o grau de limitação física. Um dos principais elementos do tratamento da OA consiste em melhorar o funcionamento dos músculos que circundam a articulação. Os ensaios clínicos para a OA do joelho e do quadril mostraram que exercícios reduzem a dor e melhoram a função física. Os esquemas de exercícios mais efetivos consistem em treinamento aeróbio e/ou de resistência; os de resistência enfocam o fortalecimento dos músculos que cruzam a articulação. É provável que os exercícios sejam efetivos especialmente quando treinam os músculos utilizados na execução das atividades rotineiras de uma pessoa. As atividades que aumentam a dor na articulação devem ser evitadas, e o programa de exercício precisa ser individualizado para melhorar ao máximo a sua efetividade. Os exercícios de amplitude de movimento, que não fortalecem os músculos, e os exercícios isométricos que os fortalecem, porém não por meio da amplitude dos movimentos, dificilmente são efetivos quando realizados isoladamente. Os exercícios de baixo impacto, como a hidroginástica e o treinamento de resistência na água, costumam ser mais bem tolerados pelos pacientes do que aqueles que envolvem cargas de impacto, como corrida ou exercícios na esteira. O paciente deve ser encaminhado a aulas de ginástica ou a um terapeuta que possa criar um esquema individualizado. Além dos programas convencionais de exercícios, o tai chi pode ser efetivo para a OA do joelho. Entretanto, não há evidências concretas de que os pacientes com OA da mão possam se beneficiar do exercício terapêutico. A adesão em longo prazo representa o principal desafio para a prescrição de exercício. Em ensaios clínicos envolvendo pacientes com OA do joelho engajados no tratamento com exercícios, cerca de um terço até mais da metade dos pacientes recrutados interromperam o exercício em 6 meses. Menos de 50% continuaram praticando exercício regular depois de 1 ano. O preditor mais forte de exercício continuado em determinado paciente é a história pessoal prévia de sucesso do exercício. Os médicos devem reforçar a prescrição do exercício em cada consulta, ajudar o paciente a reconhecer as barreiras para o exercício constante e identificar os momentos mais convenientes para que o exercício seja realizado de forma rotineira. A combinação de exercício com restrição calórica e perda de peso é particularmente efetiva na redução da dor. Correção do desalinhamento O desalinhamento no plano frontal (varo-valgo) aumenta acentuadamente o estresse da articulação, o que pode resultar em progressão da doença, dor e incapacitação (Fig. 364-5). A correção do desalinhamento varo-valgo, seja cirúrgica ou com órtese, pode aliviar a dor em pacientes com joelhos mal alinhados. Entretanto, corrigir um desalinhamento muitas vezes é bastante difícil. Órteses ajustadas que endireitam joelhos em varo impondo um estresse em valgo ao longo da articulação podem ser efetivas. Lamentavelmente, muitos pacientes não desejam utilizar uma órtese de realinhamento para o joelho; além disso, em pacientes com pernas obesas, as órteses podem se deslocar durante o uso, perdendo seu efeito de realinhamento. Seu uso está indicado para pacientes motivados e capazes de aprender a vesti- las corretamente, nos quais a órtese não deslize. A dor do compartimento patelofemoral do joelho pode ser causada por inclinação ou desalinhamento da patela, a qual acaba se deslocando lateralmente no sulco troclear do fêmur. Ao utilizar uma órtese patelar para realinhar a patela, ou uma fita adesiva para recolocá-la no sulco troclear ou reduzir sua inclinação, comparativamente aos controles em ensaios clínicos, consegue-se reduzir a dor patelofemoral. Contudo, os pacientes podem ter dificuldade para aplicar a fita adesiva, sendo comum haver irritação da pele causada pela fita e, do mesmo modo como as órteses de realinhamento, as órteses patelares podem sair do lugar. Apesar de seu efeito sobre o desalinhamento ser questionável, os protetores de neoprene puxados para cobrir o joelho reduzem a dor, sendo fáceis de utilizar e muito populares entre os pacientes. Contudo, a explicação para seu efeito terapêutico sobre a dor é obscura. Nos pacientes com OA do joelho, a acupuntura produz alívio moderado da dor em comparação com as agulhas de efeito placebo, podendo ser um tratamento coadjuvante. FARMACOTERAPIA Apesar de baseada em abordagens não farmacológicas de tratamento, a farmacoterapia desempenha um importante papel adjuvante no tratamento da OA para controle dos sintomas. Os fármacos disponíveis são administrados pelas vias oral, tópica e intra-articular. Até o presente, não há fármacos disponíveis para alterar o processo patológico em si. Paracetamol, fármacos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) e inibidores de cicloxigenase 2 (COX- 2) O paracetamol (acetaminofeno) é o analgésico de escolha inicial para pacientes com OA nos joelhos, nos quadris ou nas mãos, mesmo que seu efeito terapêutico nessa condição seja pequeno (Tab. 364-1). Para a minoria dos pacientes em que o paracetamol é adequado para controlar os sintomas, torna-se possível evitar medicamentos mais tóxicos, como os AINEs. TABELA 364-1 ■ Tratamento farmacológico para osteoartrite Tratamento Dosagem Comentários Paracetamol Até 1 g, 3×/dia Prolonga a meia-vida da varfarina. Certifique-se de que o paciente não esteja recebendo outros tratamentos contendo paracetamol, para evitar a hepatotoxicidade. AINEs orais e inibidores da COX-2 Tomar com alimento. Risco aumentado de infarto agudo do miocárdio e de acidente vascular cerebral para alguns AINEs e, particularmente, inibidores da COX-2. Altas taxas de efeitos colaterais GIs, como úlceras e sangramento. Os pacientes com alto risco de efeitos colaterais GIs também devem tomar um inibidor de bomba de prótons ou o misoprostol.a Observa-se intensificação dos efeitos colaterais GIs ou sangramento com o uso combinado com ácido acetilsalicílico. Também podem causar edema e insuficiência renal. Naproxeno 375-500 mg, 2×/dia Salsalato 1.500 mg, 2×/dia Ibuprofeno 600-800 mg, 3-4×/dia Celecoxibe 100-200 mg, 1×/dia AINEs tópicos Friccionar nas articulações. Poucos efeitos colaterais sistêmicos. É comum a irritação da pele. Diclofenaco de sódio em gel a 1% 4 g, 4×/dia (para joelhos, mãos) Opiáceos Várias Os efeitos colaterais comuns consistem em vertigem, sedação, náuseas ou vômitos, boca seca, constipação, retenção urinária e prurido. Pode ocorrer depressão respiratória e do sistema nervoso central. Capsaicina Creme a 0,025-0,075%, 3-4×/dia Pode irritar as mucosas. Injeções intrarticulares Esteroides Hialuranos Varia de 3 a 5 injeções por semana, dependendo da preparação Dor leve a moderada no local da injeção. Existem controvérsias quanto à sua eficácia.aOs pacientes de alto risco incluem aqueles com eventos GIs prévios, idade ≥ 60 anos e uso de glicocorticoides. Os ensaios clínicos demonstraram a eficácia dos inibidores da bomba de prótons e do misoprostol na prevenção das úlceras e do sangramento. O misoprostol está associado a altas taxas de diarreia e cólicas; por isso, os inibidores da bomba de prótons são usados mais extensamente para reduzir os sintomas GIs relacionados com os AINEs. Siglas: COX-2, cicloxigenase 2; AINEs, anti-inflamatórios não esteroides. Fonte: Adaptada de DT Felson: N Engl J Med 354:841, 2006. Os AINEs são os medicamentos mais populares para o tratamento da dor osteoartrítica. Podem ser administrados topicamente ou por via oral. Em ensaios clínicos, os AINEs orais produzem melhora cerca de 30% maior na dor, em comparação a doses altas de paracetamol. Alguns pacientes tratados com AINEs obtêm alívio significativo da dor, ao passo que, em outro a melhora é pequena. Inicialmente, os AINEs devem ser administrados topicamente ou por via oral, conforme a necessidade, visto que seus efeitos colaterais são menos frequentes com pequenas doses intermitentes. Se o uso ocasional da medicação não for suficientemente eficaz, pode-se indicar o tratamento diário com uma dose de anti-inflamatório selecionado ( Tab. 364-1). Convém lembrar aos pacientes que as pequenas doses de ácido acetilsalicílico e ibuprofeno ou naproxeno devem ser tomadas em horas diferentes para eliminar as interações medicamentosas. Os AINEs administrados por via oral exercem efeitos colaterais substanciais e frequentes, dos quais o mais comum é a toxicidade para o trato gastrintestinal (GI) superior, incluindo dispepsia, náuseas, distensão abdominal, hemorragia GI e úlceras. Cerca de 30 a 40% dos pacientes experimentam efeitos colaterais no trato GI superior tão graves a ponto de tornar necessária a interrupção da medicação. Para minimizar o risco dos efeitos colaterais GIs relacionados com AINEs, os pacientes devem receber AINEs após a refeição; se o risco for alto, os pacientes devem tomar um agente gastroprotetor, como um inibidor de bomba de prótons. Certos agentes orais são mais seguros para o estômago do que outros, incluindo salicilatos não acetilados e nabumetona. Efeitos gastrintestinais colaterais significativos relacionados com os AINEs podem ocorrer em pacientes que não se queixam de sintomas no trato GI superior. Em um estudo com pacientes hospitalizados por hemorragia digestiva, 81% não haviam tido sintomas premonitórios. Devido às taxas aumentadas de eventos cardiovasculares associados a alguns AINEs convencionais, como o diclofenaco, muitos desses fármacos não são apropriados para tratamento de longo prazo de indivíduos idosos com OA, particularmente aqueles com alto risco de doença cardíaca ou acidente vascular cerebral. A American Heart Association identificou o rofecoxibe e todos os outros inibidores da COX-2 como fármacos que colocam os pacientes em alto risco, embora o celecoxibe em baixas doses (≤ 200 mg/dia) não esteja associado a uma elevação do risco. O único AINE convencional que parece ser seguro em termos cardiovasculares é o naproxeno; entretanto, esse fármaco apresenta toxicidade GI. Existem outros efeitos colaterais comuns dos AINEs, como a tendência a desenvolver edema em consequência da inibição das prostaglandinas responsáveis pelo suprimento sanguíneo aferente para os glomérulos renais e, por motivos semelhantes, certa tendência pela insuficiência renal reversível. A pressão arterial pode aumentar moderadamente em alguns pacientes tratados com AINE. Os AINEs por via oral não devem ser usados em pacientes com doença renal no estágio IV ou V e devem ser administrados com cautela àqueles com doença no estágio III. Os AINEs podem ser colocados em gel ou solução tópica com outra modalidade química que possa intensificar a penetração na barreira cutânea, criando, assim, um AINE tópico. Quando absorvidas por meio da pele, as concentrações plasmáticas têm uma ordem de magnitude inferior à daquelas alcançadas com a mesma quantidade de fármaco administrado por via oral ou parenteral. Entretanto, quando esses fármacos são administrados topicamente em proximidade a uma articulação superficial (joelhos, mãos, mas não quadris), podem ser encontrados nos tecidos articulares, como a sinóvia e a cartilagem. Os resultados dos ensaios clínicos realizados têm sido variáveis, mas, em geral, demonstram que os AINEs tópicos são ligeiramente menos eficazes do que os agentes orais, porém apresentam muito menos efeitos colaterais GIs e sistêmicos. Infelizmente, os AINEs tópicos frequentemente causam irritação cutânea localizada no sítio de aplicação, provocando eritema, queimação ou prurido (ver Tab. 364-1). Injeções intra-articulares: glicocorticoides e ácido hialurônico Como a inflamação sinovial tende a ser uma importante causa de dor nos pacientes com OA, os tratamentos anti-inflamatórios locais administrados por via intra-articular podem ser eficazes em reduzir a dor, pelo menos temporariamente. As injeções de glicocorticoides proporcionam essa eficácia, porém a resposta varia, e alguns pacientes apresentam pouco alívio da dor, ao passo que outros obtêm um alívio da dor com duração de vários meses. A sinovite, uma das principais causas de dor articular na OA, pode diminuir após uma injeção, sendo que essa minimização está correlacionada com a redução na intensidade da dor no joelho. As injeções de glicocorticoide são úteis para ajudar os pacientes a superar as exacerbações agudas da dor, porém seus efeitos, em geral, duram menos de 3 meses. Injeções repetidas podem acarretar perda de quantidades mínimas de cartilagem associada a consequências clínicas irrelevantes. As injeções de ácido hialurônico podem ser aplicadas para tratar os sintomas da OA do joelho e do quadril, mas ainda não foi esclarecido se são mais eficazes que um placebo (Tab. 364-1). Outras classes de fármacos e nutricêuticos Para pacientes com OA sintomática do joelho ou do quadril que não demonstraram uma resposta adequada aos tratamentos anteriormente descritos e que não desejam se submeter ou não são candidatos à artroplastia total da articulação, os analgésicos opioides apresentaram eficácia modesta, de modo que o seu uso pode ser tentado. Os planos de manejo com opioides e a seleção dos pacientes são de importância crucial. Outra opção é o uso de duloxetina, que demonstrou ter uma modesta eficácia na OA. Diretrizes recentes não recomendam o uso de glicosamina ou condroitina para a OA. Ensaios clínicos de grande porte patrocinados publicamente não conseguiram demonstrar que, em comparação com o placebo, esses compostos aliviam a dor em indivíduos com a doença. A terapia não cirúrgica ideal para a OA é frequentemente obtida por tentativa e erro, com cada paciente apresentando respostas idiossincráticas aos tratamentos específicos. Os efeitos placebo (ou contextuais) podem representar 50% ou mais dos efeitos terapêuticos na OA, e certos modos de administração de tratamento, como as injeções intrarticulares, produzem efeitos contextuais mais significativos do que outros (p. ex., comprimidos). Quando as terapias clínicas falham e o paciente apresenta uma redução inaceitável em sua qualidade de vida, assim como dor e incapacitação persistentes, é indicada a artroplastia total da articulação pelo menos para a OA do joelho e do quadril. TRATAMENTO CIRÚRGICO Para a OA do joelho, estão disponíveis vários procedimentos. O desbridamento e lavado artroscópicos tiveram a sua popularidade diminuída após a realização de ensaios clínicos randomizados demonstrando que a sua eficácia não supera a de uma cirurgia simulada (Sham) para alívio da dor ou da incapacitação. Embora a meniscectomia artroscópicaseja indicada para lacerações agudas do menisco, nas quais sintomas como bloqueio e dor aguda estão claramente relacionados de modo temporal com uma lesão do joelho que provocou laceração, ensaios clínicos recentes mostraram que a realização de meniscectomia parcial em indivíduos com OA e laceração sintomática do menisco não alivia a dor no joelho, não melhora a função e nem mesmo leva à resolução do bloqueio do joelho. Para pacientes com OA do joelho isolada no compartimento medial, as operações para realinhamento do joelho destinadas a reduzir a sobrecarga medial podem aliviar a dor. Essas cirurgias incluem a osteotomia tibial alta, em que a tíbia é fraturada logo abaixo do platô tibial e realinhada de modo a transferir a carga para o compartimento lateral normal, ou a substituição unicompartimental com realinhamento. Cada cirurgia pode proporcionar ao paciente anos de alívio da dor antes que haja necessidade de substituição total do joelho. Por fim, quando o paciente com OA do joelho ou do quadril tiver falhado às modalidades de tratamento não cirúrgico e continuar apresentando as limitações impostas pela dor e as limitações funcionais que comprometem sua qualidade de vida, torna-se necessário encaminhar os que tiverem expectativas razoáveis e disposição para a cirurgia para uma artroplastia total do joelho ou do quadril. Esse tratamento consiste em cirurgias altamente eficazes que aliviam a dor e melhoram a função na grande maioria dos pacientes, embora as taxas de sucesso sejam mais altas para a substituição do quadril do que para a do joelho. Atualmente, as taxas de fracasso de ambos os procedimentos são de cerca de 1% por ano, embora essas taxas sejam mais altas nos pacientes obesos. A probabilidade de sucesso cirúrgico é maior nos centros onde pelo menos 25 dessas operações são realizadas a cada ano ou por cirurgiões que realizam múltiplas intervenções anualmente. O momento mais apropriado para a substituição do joelho ou do quadril é de fundamental importância. Se o paciente sofreu por muitos anos até seu estado funcional ter declinado substancialmente, com considerável enfraquecimento muscular, o estado funcional pós-operatório poderá não melhorar até o nível alcançado por outros pacientes submetidos à operação mais precocemente durante a evolução de sua doença. Regeneração da cartilagem O transplante de condrócitos não se revelou eficaz na OA, talvez porque essa entidade inclui uma patologia de mecânica articular que não é corrigida pelos transplantes de condrócitos. De modo similar, a artroplastia por abrasão (condroplastia) não foi bem estudada quanto à eficácia na OA, mas produz fibrocartilagem no local da cartilagem hialina lesionada. Essas duas tentativas cirúrgicas de regenerar e reconstituir a cartilagem articular podem ser mais propensas a serem eficazes mais precocemente no curso da doença quando o desalinhamento articular e muitas das outras anormalidades não cartilaginosas que caracterizam a OA ainda não se desenvolveram. LEITURAS ADICIONAIS Felson D: Safety of nonsteroidal antiinflammatory drugs. N Engl J Med 375:2595, 2016. Glyn-Jones S et al: Osteoarthritis. Lancet 386:376, 2015. McAlindon TE et al: Effect of intra-articular triamcinolone vs saline on knee cartilage volume and pain in patients with knee osteoarthritis: A randomized clinical trial. JAMA 317:1967, 2017. McAlindon TE et al: OARSI guidelines for the non-surgical management of knee osteoarthritis. Osteoarthritis Cartilage 22:363, 2014. Neogi T et al: Sensitivity and sensitisation in relation to pain severity in knee osteoarthritis: Trait or state? Ann Rheum Dis 74:682, 2015. O’Neill TW et al: Synovial tissue volume: A treatment target in knee osteoarthritis (OA). Ann Rheum Dis 75:84, 2016. 365 Gota e outras artropatias associadas a cristais H. Ralph Schumacher1, Lan X. Chen O uso da microscopia com luz polarizada durante a análise do líquido sinovial, em 1961, por McCarty e Hollander, bem como a aplicação subsequente das técnicas cristalográficas, como a microscopia eletrônica, a análise elementar com dispersão de energia e a difração por raios X, permitiu aos pesquisadores identificar o papel de diferentes microcristais, como o urato monossódico (MSU), o pirofosfato de cálcio (CPP), a apatita de cálcio (apatita) e o oxalato de cálcio (CaOx), na indução da artrite ou periartrite aguda ou crônica. Os eventos clínicos que resultam da deposição de MSU, CPP, apatita e CaOx possuem muitas semelhanças, mas também têm diferenças significativas. Devido às manifestações clínicas frequentemente semelhantes, deve ser enfatizada a necessidade de realizar a análise do líquido sinovial para distinguir o tipo de cristal envolvido. A microscopia com luz polarizada isoladamente consegue identificar a maioria dos cristais típicos; no entanto, a apatita constitui uma exceção. A aspiração e a análise dos derrames também são importantes para se determinar a possibilidade de infecção. Excluindo-se a identificação de materiais microcristalinos ou microrganismos específicos, as características do líquido sinovial nas doenças associadas aos cristais são inespecíficas, podendo o líquido sinovial ser ou não inflamatório. Sem a identificação de cristais, essas doenças podem ser confundidas com artrite reumatoide ou outros tipos de artrite. Uma lista das possíveis manifestações musculoesqueléticas da artrite associada aos cristais é apresentada na Tabela 365-1.1 TABELA 365-1 ■ Manifestações musculoesqueléticas da artrite induzida por cristais Monoartrite ou poliartrite aguda Artropatias destrutivas Bursite Artrite inflamatória crônica Tendinite Artrite vertebral Entesite Tipo peculiar de osteoartrite Depósitos tofáceos Síndrome do túnel do carpo GOTA A gota é uma doença metabólica que afeta mais frequentemente homens de meia-idade a idosos e mulheres na pós-menopausa. Resulta de uma maior reserva corporal de urato com hiperuricemia. Em geral, caracteriza-se por artrite aguda episódica ou artrite crônica causada pela deposição de cristais de MSU nas articulações e tofos nos tecidos conectivos, bem como risco de deposição no interstício renal ou de nefrolitíase induzida por ácido úrico (Cap. 410). ARTRITES AGUDA E CRÔNICA A artrite aguda é a manifestação clínica inicial mais comum da gota. Habitualmente, no início, é afetada apenas uma única articulação, porém a gota aguda poliarticular pode ocorrer em episódios subsequentes. A articulação metatarsofalângica do hálux é acometida com frequência, porém as articulações társicas, os tornozelos e os joelhos também costumam ser acometidos. Principalmente nos pacientes idosos ou na doença em fase avançada, as articulações dos dedos das mãos podem estar envolvidas. Os nódulos de Heberden ou de Bouchard inflamados podem ser a primeira manifestação da artrite gotosa. O primeiro episódio de artrite gotosa aguda costuma começar à noite, com forte dor e edema articular. As articulações tornam-se rapidamente quentes, avermelhadas e hipersensíveis, com um aspecto clínico que, com frequência, simula o da celulite. Os ataques iniciais tendem a regredir espontaneamente no transcorrer de 3 a 10 dias, com a maioria dos pacientes exibindo intervalos de duração variável sem sintomas residuais até o próximo episódio. Vários eventos podem desencadear a artrite gotosa aguda: excesso dietético, traumatismo, cirurgia, ingestão excessiva de etanol, terapia hipouricemiante e enfermidades clínicas sérias, como infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral. Depois de muitos ataques monoarticulares ou oligoarticulares, alguns pacientes gotosos podemapresentar sinovite não simétrica crônica, levando a uma possível confusão com artrite reumatoide (Cap. 351). Menos comumente, a artrite gotosa crônica será a única manifestação, e, ainda mais raramente, a doença se manifestará apenas como depósitos tofáceos periarticulares na ausência de sinovites. As mulheres representam apenas 5 a 20% dos pacientes com gota. Muitas mulheres com artrite gotosa são pós-menopáusicas e idosas, sofrendo de osteoartrite e hipertensão arterial que causam ligeira insuficiência renal, e, em geral, estão recebendo diuréticos. A gota na pré-menopausa é rara. Já foram descritas famílias com gota precoce em mulheres jovens causada por menor depuração renal de uratos e insuficiência renal. Diagnóstico laboratorial Mesmo quando o aspecto clínico sugere enfaticamente a presença de gota, o diagnóstico presuntivo deve ser confirmado, de preferência por aspiração com agulha das articulações acometidas aguda ou cronicamente ou dos depósitos tofáceos. A artrite séptica aguda, várias das outras artropatias por microcristais, o reumatismo palindrômico e a artrite psoriásica podem apresentar manifestações clínicas semelhantes. Durante os ataques gotosos agudos, os cristais de MSU com formato de agulha são normalmente visualizados tanto no interior das células quanto extracelularmente (Fig. 365-1). Com luz polarizada compensada, esses cristais são fortemente birrefringentes, com alongamento negativo. As contagens de leucócitos no líquido sinovial são elevadas, de 2.000 a 60.000/μL. Os derrames parecem turvos em virtude do número elevado de leucócitos. A grande quantidade de cristais produz ocasionalmente um líquido articular pastoso espesso ou calcário. A infecção bacteriana pode coexistir com os cristais de urato no líquido sinovial; se houver a menor suspeita de artrite séptica, o líquido articular deverá ser enviado para culturas. FIGURA 365-1 Cristais de urato monossódico extracelulares e intracelulares, conforme visualizados em um preparado fresco de líquido sinovial, ilustrando cristais com formato de agulha e de bastão. Esses cristais são fortemente birrefringentes negativos na microscopia com luz polarizada compensada; 400×. Os cristais de MSU também podem ser demonstrados, com frequência, na primeira articulação metatarsofalângica, assim como nos joelhos não acometidos agudamente pela gota. A artrocentese dessas articulações é uma técnica útil para se estabelecer o diagnóstico de gota entre os ataques. Os níveis séricos de ácido úrico podem estar normais ou baixos por ocasião de um ataque agudo, visto que as citocinas inflamatórias podem ser uricosúricas; o início efetivo da terapia hipouricemiante pode desencadear ataques. Isso limita o valor das determinações dos níveis séricos de ácido úrico para o estabelecimento do diagnóstico de gota. Não obstante, os níveis séricos de urato mostram-se quase sempre elevados em algum momento, sendo a sua utilização importante para acompanhar a evolução da terapia hipouricemiante. Uma coleta de urina de 24 horas para o ácido úrico pode, em alguns casos, ser útil para determinar o risco da ocorrência de cálculos, elucidar a superprodução ou excreção inadequada de ácido úrico e decidir se pode ser apropriado utilizar a terapia uricosúrica (Cap. 410). A excreção de > 800 mg de ácido úrico por 24 horas durante a adoção de uma dieta regular sugere que as causas da superprodução de purinas devem ser consideradas. O exame de urina, a creatinina sérica, a hemoglobina, a contagem de leucócitos, as provas de função hepática e os lipídeos séricos devem ser obtidos, devido às possíveis sequelas patológicas da gota e outras doenças associadas que exigem tratamento, podendo funcionar também como níveis basais em virtude dos possíveis efeitos adversos do tratamento da gota. Características radiográficas As alterações císticas, erosões bem definidas com margens escleróticas (na maioria das vezes, com arestas ósseas salientes) e massas de tecidos moles, são aspectos característicos da gota tofácea crônica em fase avançada. A ultrassonografia pode ser útil para o estabelecimento de um diagnóstico mais precoce, pela demostração de um sinal de duplo contorno sobre a cartilagem articular. A tomografia computadorizada (TC) com dupla energia pode revelar aspectos específicos, estabelecendo a presença de cristais de urato. TRATAMENTO Gota ARTRITE GOTOSA AGUDA O alicerce do tratamento durante um ataque agudo é a administração de agentes anti-inflamatórios, tais como medicamentos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), colchicina ou glicocorticoides. Os AINEs são usados mais frequentemente nos indivíduos sem condições comórbidas intercorrentes. Tanto a colchicina quanto os AINEs podem ser mal tolerados e perigosos nos idosos, assim como na presença de insuficiência renal e distúrbios gastrintestinais. A aplicação de compressas geladas e o repouso das articulações afetadas podem ser úteis. A colchicina administrada por via oral é um tratamento tradicional e eficaz se for utilizada na fase inicial de um ataque. Um esquema útil consiste em um comprimido de 0,6 mg, administrado a cada 8 horas, com redução gradual subsequente, ou 1,2 mg, seguido de 0,6 mg em 1 hora, com dose diária subsequente dependendo da resposta. Em geral, essa conduta é mais bem tolerada do que os esquemas anteriormente aconselhados com doses mais altas. O fármaco precisa ser pelo menos temporariamente suspenso aos primeiros sinais de fezes amolecidas, e deve-se administrar um tratamento sintomático para a diarreia. A colchicina intravenosa foi retirada do mercado. Os AINEs administrados em doses anti-inflamatórias plenas são efetivos em cerca de 90% dos pacientes, e a resolução dos sinais e sintomas ocorre habitualmente em 5 a 8 dias. Os fármacos mais efetivos são aqueles com meia-vida curta, incluindo indometacina, 25 a 50 mg, 3 vezes ao dia; naproxeno, 500 mg, 2 vezes ao dia; ibuprofeno, 800 mg, 3 vezes ao dia; diclofenaco, 50 mg, 3 vezes ao dia; e celecoxibe, 800 mg, seguidos de 400 mg, com intervalo de 12 horas e, em seguida, 400 mg, 2 vezes ao dia. Os glicocorticoides administrados por injeção intramuscular ou oral, como a prednisona, 30 a 50 mg/dia para dose inicial, a ser reduzida gradualmente com a resolução do ataque, podem ser efetivos na gota poliarticular. Para o acometimento de apenas uma ou de poucas articulações, a triancinolona acetonida intra-articular, 20 a 40 mg, ou a metilprednisolona, 25-50 mg, são efetivas e bem toleradas. Com base em evidências recentes sobre o papel essencial do inflamassoma e da interleucina 1β (IL-1β) na gota aguda, a anacinra diária tem sido usada quando outros tratamentos falharam ou foram contraindicados. TERAPIA HIPOURICEMIANTE O controle definitivo da gota depende da correção do defeito subjacente básico, a hiperuricemia. As tentativas de normalizar o nível sérico de ácido úrico para < 300 a 360 μmol/L (5,0-6,0 mg/dL), a fim de prevenir os ataques gotosos recorrentes e eliminar os depósitos tofáceos, são de importância crucial e exigem o uso de esquemas hipouricemiantes e medicamentos que geralmente são necessários durante toda a vida. A terapia hipouricemiante deve ser considerada quando, como acontece na maioria dos pacientes, a hiperuricemia não pode ser corrigida por meios simples (controle do peso corporal, dieta pobre em purina, aumento na ingestão de líquidos, limitação do uso de etanol, consumo reduzido de alimentos e bebidas contendo frutose e evitar os diuréticos). A decisão de iniciar a terapia hipouricemiante é habitualmente tomada levando-se em consideração o número de ataques agudos (a redução dos uratos pode ser custo- efetiva após dois ataques), os níveis