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INTRODUÇÃO GERAL À FILOSOFIA AULA 1 Prof. Robson Stigar 2 CONVERSA INICIAL Olá! Nesta aula vamos conhecer os fundamentos do pensamento filosófico, buscando compreender suas origens, sua natureza e as semelhanças e diferenças em relação a outras áreas do conhecimento. Bons estudos! TEMA 1 – AS ORIGENS DO PENSAMENTO FILOSÓFICO A literatura científica aponta que o pensamento filosófico teve origem na Grécia por volta do século VI a.C., período histórico conhecido como arcaico, no qual ocorreram uma série de mudanças políticas e sociais. Dentre outros aspectos, destacamos a formação das cidades-Estado (pólis), o desenvolvimento comercial e a expansão territorial. A conjugação desses fatos efetivou uma nova ordem social na Grécia que propiciou o desenvolvimento de várias áreas do conhecimento, como as artes, a literatura e a filosofia. No que tange a essa última, podemos afirmar que a nova ordem política foi essencial. Com o fim dos governos aristocráticos e a ascensão da democracia, os cidadãos passaram a ser os responsáveis por definir o destino da cidade. Essas decisões eram tomadas com base em discussões públicas que tinham como pressuposto a argumentação, o raciocínio e a reflexão. O que regia a vida das pessoas não era mais a influência dos deuses ou a explicação dada pelos mitos, mas a razão. Importante! Aristocracia: “literalmente governo dos melhores, é uma das três formas clássicas de Governo e precisamente aquela em que o poder (krátos = domínio, comando) está na mão da [...] casta dos nobres” (Bobbio; Matteucci; Pasquino, 1995, p. 57). Democracia: “identificado como governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que gozam de direitos de cidadania” (Bobbio; Matteucci; Pasquino, 1995, p. 319). Segundo Vernant (2002), essa compreensão histórica da origem da filosofia se justifica por duas características próprias da organização da pólis: o exercício da política por meio da compreensão de que a fala é um instrumento 3 de poder; e a disseminação e publicização de todas as manifestações da vida cultural: O que implica o sistema da pólis é primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder [...] a arte da política é essencialmente exercício da linguagem; e o logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras de sua eficácia, através da função política. Uma segunda característica da pólis é o cunho de pena publicidade dada às manifestações mais importantes da vida social [...] tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores, as técnicas mentais são levadas à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia. (Vernant, 2002, p. 34-35) Outro elemento destacado por Vernant (2002) é a função da escrita nesse contexto. Sabemos que no século VI ela era dominada por poucos, mas foi quem possibilitou a disseminação de saberes antes relegados apenas a um grupo de sujeitos ou ainda considerados como exotéricos. De outro, a escrita propiciou a organização social em torno de leis que eram acordadas entre os cidadãos, tornando-as universais e ao mesmo tempo democráticas. Dessa forma, podemos compreender que os elementos fundantes da vida da pólis cooperaram para o surgimento da filosofia: a disseminação dos saberes, a reflexão racional, a participação social e a constituição de um arcabouço legal. Como afirma Chauí (1999, p. 21): “Através da filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência ética, política, técnica, arte”. Entretanto, no início desta aula afirmamos que o avanço comercial e a expansão territorial também são elementos de transformação social e contribuem para o desenvolvimento da filosofia. No que tange às questões relacionadas ao comércio, destacamos a mudança relacionada às transações financeiras. No período aristocrático, elas eram baseadas na troca de bens, e a autoridade que as regulava era envolta em um misticismo sobrenatural, tendo em vista sua postura social. Com a ascensão da democracia e com a expansão do comércio marítimo, a moeda passou a ser o meio de troca de valores. É importante destacar que a moeda em si possui um caráter abstrato, tendo em vista que seu valor é uma convenção realizada pelos homens. Por fim, enfatizamos a importância da expansão e consolidação da democracia nas diversas colônias gregas. Apesar de esse regime político ser vivenciado de diferentes maneiras (pois cada pólis tinha uma organização social e política própria), os princípios de discussão e deliberação pública 4 possibilitavam o exercício do pensamento racional e da argumentação, viabilizando o distanciamento da percepção sobrenatural da realidade. Com base em todos esses elementos, podemos afirmar que a filosofia se originou em um período histórico (século VI) e em um lugar (Grécia) e que isso foi possível por causa da confluência de vários elementos que caracterizavam a organização social: • surgimento da pólis e a prática argumentativa; • utilização da escrita como publicização do saber; • instituição de uma estrutura legal; • instituição de um sistema comercial monetário; • expansão territorial grega. Isso significa que a filosofia teve origem em um tempo e em um espaço específicos, e que é neles desenvolve sua reflexão. TEMA 2 – DO MYTOS AO LOGOS Vimos que a filosofia se originou na Grécia do século VI a.C. em um período histórico no qual a organização social se pautava em novos princípios relacionados a uma visão racional de mundo. Mas, aqui nos cabe uma pergunta: qual era a visão de mundo que antecedeu a da filosofia? A questão é fundamental, pois nos possibilita compreender as primeiras reflexões propostas pelos filósofos da época. Segundo Aranha e Martins (2009, p. 26), a percepção de mundo presente na Grécia era a mitológica: “modo de consciência que predomina nas sociedades tribais e nas civilizações da Antiguidade”. Tal consciência não deve ser compreendida como algo fantasioso ou ainda como uma visão infantilizada da realidade, pois seu nível de complexidade é grandioso; ela está pautada nos mitos. Podemos definir mito como “narrativa lendária, pertencente à tradição cultural de um povo, que explica através do apelo ao sobrenatural, ao divino e ao misterioso, a origem do universo, o funcionamento da natureza e a origem e os valores básicos do próprio povo” (Japiassú; Marcondes, 2006, p. 189). Compreendido dessa forma, o mito não pode ser também relacionado com a compreensão de que se trata de mentira ou algo que não existe. Ele expressa de forma efetiva uma verdade, que provém de uma intuição compreensiva da realidade, pautada em elementos que ajudam determinado 5 povo ou sociedade a significar a vida. Quando afirmamos isso, percebemos que o mito é uma forma de explicação do mundo que busca dar respostas a aspectos da existência por símbolos próprios de cada cultura. Muitos autores realizaram pesquisas sobre o mito nas culturas. Em especial, vamos nos pautar nas reflexões do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Para esse autor, o mito possui a função de explicar a realidade, mas também de garantir a perpetuação das tradições e dos valores do grupo social. Sob essa lógica, Lévi-Strauss (2004) pontua que o mito é um dos elementos estruturantes de cada uma das sociedades e que a relação entre os signos, significados e significantes é que permite entender a mensagem do mito. Dessa forma, a compreensão do mito não reside na forma como eles são pensados, mas como se aplicam na vida dos seres humanos. Um exemplo clássico dessa relação são os mitos que versam sobre a origem, tanto do mundo quanto de realidades presentes. Na estrutura de crenças judaico-cristãs, o mito de um ser soberano,onipotente que cria todas as coisas permite a esses grupos religiosos afirmar a existência de um único Deus, que dá a todos os homens um conjunto moral a partir do qual devem reger suas vidas. De outro, mitos indígenas brasileiros explicam as características dos elementos da natureza por meio de narrativas que mesclam a relação do ser humano com as divindades. Um exemplo é a lenda do pirarucu, peixe da região amazônica, conhecido pelo tamanho, força e voracidade que é comparado ao guerreiro da tribo dos uaiás que, por seu comportamento soberbo para com os membros de sua tribo e para com os deuses, foi condenado a viver nas profundezas do rio. Sob essa ótica, podemos compreender a importância que o mito e a consciência mitológica possuem em um grupo social. No contexto da Grécia do século VI a.C., o mito expressava um conjunto de valores, regras e crenças próprios do período arcaico, no qual o governo aristocrático encontrava legitimação para o poder que exercia sobre a sociedade. A filosofia, como filha da pólis e da democracia, se opunha ao mito tanto no que tange à divergência política como à estrutura lógica de formação do conhecimento. Pautando-se no logos, critica veementemente a crença irrefletida, opondo-se a toda e qualquer discurso que não apresente argumentos racionais. Como afirma Grimal (1982, p. 89): 6 O mito se opõe ao logos como fantasia à razão, como a palavra que narra à palavra que demonstra. Logos e mito são duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida do espírito. O logos, sendo uma argumentação, pretende convencer. O logos é verdadeiro, no caso de ser justo e conforme à lógica; é falso quando dissimula alguma burla secreta. Mas o mito tem por finalidade apenas a si mesmo. Acredita-se ou não nele, conforme a própria vontade, mediante um ato de fé, caso pareça “belo” ou verossímil, ou simplesmente porque se quer acreditar. O mito, assim, atrai em torno a si toda a parcela do irracional existente no pensamento humano. Por esse motivo é que o mito e a filosofia são visões de mundo e formas antagônicas. Para Chauí (1999), esse antagonismo pode ser verificado a partir de três elementos, conforme mostra o Quadro 1. Quadro 1 − Elementos antagônicos entre mito e filosofia MITO FILOSOFIA Narra a realidade como ela era em um passado memorial, buscando trazer elementos que possam pautar a vida no presente. Busca explicar a realidade, por meio da reflexão sobre o quê, como e por quê, considerando o passado, analisando o presente e projetando o futuro. Explica a origem das coisas por meio de confluência de forças sobrenaturais antagônicas ou convergentes. Explica a origem da realidade por meio da natureza, seus elementos e suas manifestações. Utiliza narrativas nas quais se encontram elementos contraditórios ou incompreensíveis, fundamentando-se na crença sobre o mistério. Desenvolve a argumentação de forma lógica e racional, estruturando um discurso coerente e cognoscível por todos os seres humanos. Fonte: elaborado com base em Chauí, 1999, p. 31. Com base nessa compreensão, percebemos que há uma ruptura entre o pensamento filosófico e a consciência mitológica, pois como ressaltam Aranha e Martins (2009, p. 41): Enquanto o mito é uma narrativa cujo conteúdo não se questiona, a filosofia problematiza e, portanto, convida à discussão. No mito a inteligibilidade é dada, na filosofia é procurada. A filosofia rejeita o sobrenatural, a interferência de agentes divinos na explicação dos fenômenos. Ainda mais: a filosofia busca a coerência interna, a definição rigorosa dos conceitos; organiza-se em doutrina e surge, portanto, como pensamento abstrato. Dessa forma, podemos compreender que a filosofia traz à nova ordem social uma forma diferenciada de compreensão de mundo e produção de 7 conhecimento. Entretanto, como vimos, não é possível afirmar que tenha extinguido o mito, mas sim que se colocou como oposição a ele. TEMA 3 – A NATUREZA DO CONHECIMENTO FILOSÓFICO Como já vimos nos dois temas anteriores, a filosofia é um saber racional que se originou na Grécia do século VI a.C. em oposição ao mito, que constituía um tipo de narrativa fundamentada na crença. Compreendemos também que a filosofia se caracteriza por um tipo de saber racional, lógico e argumentativo. Entretanto, até o momento não foi apresentada uma definição do que é filosofia nem a natureza desse tipo de conhecimento. Mas, podemos questionar: é possível conceituá-la? A pergunta foi pauta da reflexão de inúmeros pensadores, pois a filosofia pode ser entendida tanto como uma área do conhecimento quanto uma atitude perante a realidade. Neste tema, vamos abordar a primeira compreensão, e a segunda será pautada posteriormente. O termo filosofia é cunhado no século V por Pitágoras, que buscava explicar a nova forma de conhecimento que se consolidava. Etimologicamente, é formado por dois radicais gregos, filos e sophia. O primeiro significa amor, entendido como afeição, amizade, apreço por determinada realidade; o segundo tem como significado sabedoria, que não se restringe apenas ao acesso a dado conhecimento, mas à capacidade de entender sua constituição, aplicação e inter-relação. Com base nesse entendimento, é importante esclarecer que a filosofia pode ser confundida com algumas posturas ante o mundo que não estão pautadas em uma reflexão racional. Chauí (1999, p. 16) destaca essa questão, sublinhando que é extremamente contraditório afirmar que a filosofia se constitui: • visão de mundo: esta é formada não apenas por análises racionais da realidade, mas pelo conjunto de experiências, valores e crenças de grupos sociais específicos; • sabedoria de vida: esta é relacionada à vivência de indivíduos que, a partir de uma visão de mundo, dão explicações, nem sempre racionais, sobre aspectos da vida; • explicação da totalidade da realidade: esta envolve elementos irracionais pautados na crença e na unilateralidade da existência. 8 Tendo em vista esses aspectos, Deleuze e Guattari (1997, p. 14) apresentam um conceito apofático da filosofia, ou seja, a definem pelo que ela não é: Ela não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação, mesma se ela pôde acreditar se ora uma, ora outra coisa, em razão da capacidade que toda disciplina tem de engendrar suas próprias ilusões, e de se esconder atrás de uma névoa que ela emite especialmente. Ela não é contemplação, pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos. Ela não é reflexão, porque ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja [...] E a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação, que não trabalha em potência a não ser de opiniões, para criar o consenso e não o conceito. Sob essa ótica, percebemos que a definição de filosofia não é algo simples, pois mais do que apenas um amor à sabedoria, é um tipo de conhecimento que possui escopo e intencionalidade próprios, que não se limita aos objetos de conhecimento que trata ou muito menos às abordagens que desenvolve. Nesse ponto, mais uma vez trazemos o questionamento: afinal, o que é filosofia? Como ela pode ser definida? Para responder tais perguntas, precisamos recordar que em sua origem a filosofia foi uma atitude perante uma estrutura social que estava em mudança. Por meio de uma reflexão racional e argumentativa, busca compreender a realidade sem se conformar com aquilo que era considerado verdade. A partir dessa percepção, Chauí (1999, p. 12) afirma: O que é filosofia? Poderia ser: a decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido. Perguntaram, certa vez, a um filósofo: Para que filosofia?E ele respondeu: para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações. Essa definição não apenas nos ajuda a compreender o que é a filosofia, mas nos apresenta aspectos que constituem sua natureza. Por natureza entendemos a essência de algo “conjunto de propriedades que definem uma coisa” (Japiassú; Marcondes, 1996, p. 198). No que tange à filosofia, podemos afirmar que se trata de uma atitude questionadora diante da realidade. Segundo Jaspers (2014, p. 140), “as perguntas em filosofia são mais essenciais que as respostas e cada resposta transforma-se numa nova pergunta”. Entretanto, isso não significa que a pergunta é um fim em si mesmo; ela é, sim, o ponto de partida para compreender de forma mais profunda a realidade. 9 Assim, a filosofia se constitui em um conhecimento que apresenta a verdade, mas a ciência que busca incessantemente a verdade. Em um de seus escritos, Platão explica que mais do que o saber, é a ignorância que move a reflexão filosófica: “Mais sábio do que esse homem eu sou; bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Para que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei” (Platão, 1972, p. 15). Essa passagem pode parecer um tanto contraditória, mas não é. Para Merleau-Ponty (1993, p. 11), a filosofia é um saber cuja natureza é constituída de um movimento “que levaria incessantemente do saber à ignorância, da ignorância ao saber, e um certo repouso entre esse movimento”. Esse movimento é inerente à atitude crítica que se fundamenta na dúvida metódica, ou seja, na suspensão do juízo, na abstenção de conceitos prontos ou valores pessoais, que ajudam a explicar a realidade. Se o pensador considera que determinada atitude é boa, ele não se detém nessa afirmação, mas questiona: o que é bom? Como é bom? Por que é bom? As respostas obtidas é que levam a uma nova compreensão sobre a atitude em questão. Nesse sentido, Chauí (1999, p. 14) afirma que a atitude filosófica possui características próprias: • Perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a ideia é. A Filosofia pergunta qual é a realidade ou a natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual; • Perguntar como a coisa, a ideia, ou o valor é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma ideia ou um valor; • Perguntar por que a coisa, a ideia, ou o valor, existe e como é. A filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma ideia ou um valor. Assim, a dúvida, o questionamento no contexto da filosofia não podem ser considerados como fúteis, inúteis ou ainda vagos, mas sim como um método para que construa uma explicação coerente e fundamentada acerca daquilo que se estuda. Um dos pensadores que fundamentou sua obra na dúvida metódica foi René Descartes. Esse filósofo viveu no início da modernidade, quando ocorria uma mudança do paradigma teocêntrico para o antropocêntrico, em que a busca por novos pressupostos era essencial. Assim, a partir da dúvida metódica 10 Descartes buscava encontrar um fundamento inabalável para o conhecimento, como ele afirma: Há algum tempo que eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo firme e de constante nas ciências. (Descartes, 1999, p. 17) Entretanto, é importante salientarmos que a dúvida metódica não constitui um eterno duvidar ou, ainda, um duvidar despropositado. Ela se refere aos fundamentos do saber, aos princípios sobre os quais o conhecimento está calcado. Como afirma Descartes (1999, p. 17): “visto que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas opiniões estavam apoiadas”. Para tanto, estabelece que a dúvida metódica deveria ser trabalhada a partir do critério de evidência, ou seja, o conceito se apresenta de forma clara e distinta, não havendo a possibilidade de contraditório. Jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. (Descartes, 1996, p. 37) Nesse contexto, é importante destacar que apesar de a atitude filosófica estar calcada na dúvida e no consequente questionamento, não é todo tipo de dúvida que é objeto da filosofia. Um exemplo são as dúvidas acerca de fatos futuros aos quais não se pode dar uma resposta racional, mas apenas especulativa, tendo vista que a sucessão dos fatos é que determinará a resposta. Dessa forma, a filosofia é uma atitude de crítica ante a realidade, que se expressa por meio do questionamento que passa a ser entendido como um método que busca a verdade. Mas, qual é o objeto ou o campo de estudo da filosofia? Ao contrário de outras áreas do conhecimento, que possuem um objeto definido, a filosofia não o tem, pois todas as realidades podem se tornar campo de investigação filosófica, desde que abordadas de forma clara e distinta. 11 TEMA 4 – PARALELOS CONCEITUAIS ENTRE A FILOSOFIA, O MITO E A RELIGIÃO Já vimos que a filosofia, surgida no contexto da pólis, se opunha ao pensamento mítico, hegemônico naquele período histórico. Compreendemos também que o mito se constitui em um tipo de conhecimento expresso por meio de narrativas, próprias de diferentes tradições culturais, que buscavam explicar o mundo com base em elementos relacionados ao sobrenatural ou ainda àquilo que pertence ao mistério. Sob essa ótica, o mito tem como pressuposto a crença, já a filosofia, o pensamento racional. Mas, como podemos pensar a relação desses dois com a religião? Em um primeiro momento nos parece óbvio afirmar que o mito se relaciona com a religião, pois ambas se pautam na crença. Entretanto, tal relação não pode ser entendida de forma simples, é necessário compreendermos o que é a religião. Etimologicamente, o termo religião vem do latim religare e significa o processo de restauração da relação do fiel com a divindade. Entretanto, não se reduz a um relacionamento pessoal, mas sim a “um sistema de orientação que se expressa por meio de simbologias que estão associadas a rituais, que externalizam crenças em realidades as quais se consideram sagradas” (Ruthes; Esperandio, 2017, p. 123). Assim, a religião como sistema de crenças contempla em si elementos doutrinários que expressam verdades e valores que regem a visão de mundo e o comportamento das pessoas. De outro, essas verdades são expressas por meio de simbologias que remetem ao que consideram sagrado, se constituindo objeto de veneração, que ocorre por meio de rituais sagrados que reforçam tais elementos e respaldam a vivência dos que professam determinada religião. Sob essa ótica, podemos compreender que a religião é um sistema complexo e superior ao mito, entretanto necessita deste para respaldar seu conjunto de crenças. Se formos analisar as diversas religiões, vamos encontrar em todas mitos fundantes. Um exemplo clássico é a tradição religiosa judaico- cristã, na qual o mito da criação exerce um papel importante na visão de mundo. O Deus onipotente que cria o ser humano insufla em suas narinas o sopro da vida e a partir disso ele possui existência. De outro, se esse ser humano se afasta de Deus, perde a vida plena e consequentementesua existência passa a ser cheia de sofrimentos. Em outras palavras, o mito da criação explicita a 12 necessidade de ele seguir as leis divinas para encontrar a plenitude e a felicidade. É importante salientar ainda que a religião não possui relação apenas com o mito, mas também com a filosofia. A partir do século II, no Ocidente, teve início um processo de afirmação da fé cristã no qual a filosofia passou a ser utilizada como ponto de justificação das verdades do cristianismo. Isso se deve a duas questões: a necessidade de dar um pressuposto teórico racional que afirmasse que as verdades cristãs eram supremas; e que a busca do conhecimento é a busca de Deus. Como afirma Agostinho (2014, p. 387): O nome filósofo significaria amor à sabedoria. Pois bem, se a sabedoria é Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como demonstraram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama a Deus. Mas. Como a realidade encerrada em tal nome não constitui patrimônio de todos quantos o trazem (não amam a verdadeira sabedoria todos quanto se chamam filósofos), torna-se preciso escolher, entre aqueles cujas sentenças e escritos pudemos conhecer, com quem trata dignamente a referida questão. Sob esse ponto de vista, a busca da filosofia cristã foi estabelecer uma harmonia entre a fé e a razão, pois “já que o falso constitui o contrário do verdadeiro, [...] é impossível que a verdade da fé seja contrária aos princípios que a razão humana conhece em virtude das suas forças naturais” (Aquino, 1996, p. 143). Dessa forma, percebemos que no contexto da relação entre a filosofia e a religião, há um esforço em uni-las visando consensos acerca da crença. Assim, filosofia e religião têm suas interseções, como mito e religião possuem uma relação intrínseca. TEMA 5 – PARALELOS CONCEITUAIS ENTRE FILOSOFIA, SENSO COMUM E CIÊNCIA Sabemos que a filosofia é um tipo de conhecimento crítico, argumentativo, baseado na dúvida e no questionamento que busca compreender os fundamentos das realidades que são estudadas. Em sua origem, se opôs ao mito, que era uma compreensão pautada na crença que se desdobrava em valores e verdades que pautavam a vida das pessoas. Por volta do século XVI, o mundo passou por uma série de mudanças, e surgiu uma nova forma de analisar a realidade: a ciência. Esta já era desenvolvida antes desse período, mas seus métodos tinham caráter especulativo, e agora eram refletidos pela 13 filosofia e posteriormente assumiram outro status quo, ou seja, um método de conhecimento próprio. No século XVIII, com o pensador francês Auguste Comte e de sua teoria positivista, a ciência passou a ser considerada um tipo de conhecimento superior aos demais, inclusive à filosofia. Ele afirmava que a experimentação possibilitava a compreensão da realidade por si mesma, sendo, portanto, um conhecimento neutro. Nesse momento, houve uma separação entre a filosofia e a ciência (a primeira, tida como um saber teórico e reflexivo, e a segunda, um saber prático e exato), contudo não se constituiu em uma oposição. A filosofia passou a ter a ciência como objeto de estudo, e a ciência, com suas novas descobertas, auxiliou a filosofia a ampliar a reflexão sobre a realidade. Mas, como podemos definir a ciência? O termo vem do latim scientia e significa conhecimento. Durante a história, a palavra teve várias acepções, e, segundo Japiassú e Marcondes (2006, p. 44), na modernidade a ciência é a modalidade de saber constituída por um conjunto de aquisições intelectuais que tem por finalidade propor uma explicação racional e objetiva da realidade. Mais precisamente ainda: é a forma de conhecimento que não somente pretende apropriar-se do real para explicá-lo de modo racional e objetivo, mas procura estabelecer entre os fenômenos observados relações universais necessárias, o que autoriza a previsão de resultados (efeitos) cujas causas podem ser detectadas mediante procedimentos de controle experimental. Ao ser compreendida dessa forma, é necessário salientar que a ciência, principalmente a moderna, não surgiu em oposição à filosofia, já que nesta encontrou os fundamentos para se constituir metodologicamente. Mas há um tipo de saber que ciência veio contraditar: o senso comum. Este pode ser definido de duas formas: um saber comum a todos os sujeitos de determinada sociedade e/ou época; ou ainda um saber que foi transmitido de geração a geração sem uma investigação acerca de seu conteúdo. Um exemplo muito comum no cotidiano é a afirmação de que se uma pessoa abre a porta de um forno enquanto algo é assado, este murcha. Tal saber constitui senso comum por não ser questionado ou, ainda, por não se buscar uma explicação a respeito dele. A ciência busca validar tal afirmação apresentando as evidências pelas quais pode ser considerada ou não uma verdade. Nesse ponto, encontramos a diferença entre a ciência e o senso comum: ambos afirmam algo sobre a realidade, mas a primeira se fundamenta na investigação de evidências, e a segunda, na aceitação de saberes sem 14 questioná-los. Segundo Aranha e Martins (2009), as características de cada um ratificam essa compreensão, conforme é possível verificar no Quadro 2. Quadro 2 − Características do senso comum e da ciência SENSO COMUM CIÊNCIA É um conhecimento subjetivo, pois se pauta em opiniões individuais e de grupos, que variam conforme os contextos. É um conhecimento objetivo, pois se pauta em conclusões gerais baseadas na observação. É de caráter fragmentário, pois não considera as relações existentes entre os diferentes conhecimentos. É de caráter unificador, pois apresenta as inter-relações entre os diferentes conhecimentos. É um conhecimento ambíguo, pois é expresso de forma não clara, muitas vezes contraditória. É um conhecimento rigoroso, pois baseia suas afirmações em linguagem clara e precisa, demonstrando todas as variantes sobre determinada realidade. Fonte: elaborado com base em Aranha e Martins, 2009, p. 334. O que garante que a ciência seja um conhecimento objetivo, unificador e rigoroso é o método por ela utilizado. Durante a história, este foi sendo desenvolvido e aperfeiçoado, e embora seja múltiplo, possui uma estrutura lógica que permite descrever suas principais fases: delimitação de um problema; formulação de hipóteses; teses experimentais de cada uma dessas hipóteses; e conclusão, com a elaboração de uma teoria. Baseados nessa diferenciação, salientamos que não se deve ter o senso comum como um tipo de conhecimento inferior ou desprezível. Ele tem uma importância fundamental para o desenvolvimento da ciência: suas proposições foram e ainda são causa de investigação científica e de descobertas importantes para a humanidade. Um exemplo clássico é a superação do modelo geocêntrico (no qual a Terra era o centro do universo) para o heliocêntrico (no qual o Sol passou a ser o centro): a explicação simples e contraditória do primeiro foi mote de pesquisa e se desdobrou, desde o século XV, em inúmeras leis e teorias científicas. Essa relação entre a ciência e o senso comum deve ser estabelecida entre a ciência e a filosofia, e entre a filosofia e o senso comum. 15 NA PRÁTICA Nesta aula, vimos que a filosofia é uma área do conhecimento caracterizada pelo exercício da reflexão racional por meio de questionamentos que buscam aprofundar o conhecimento. Em nossa sociedade atual, de que forma ela pode contribuir na formação do sujeito para que ele exerça de modo autônomo sua cidadania? FINALIZANDO Vimos nesta aula como foi a origem da filosofia, os motivos e características históricas que viabilizaram seu surgimento. Aprendemos também que ela se contrapõe a um pensamento próprio da Grécia no século VI a.C., o mito, narrativa que visa fundamentar elementos das crenças das sociedades. Tambémverificamos que a natureza do pensamento filosófico é racional, reflexiva e questionadora, possibilitando o esclarecimento dos conceitos que elaboramos sobre a realidade. Apontamos ainda que a relação da filosofia e do mito com a religião é próxima, seja por justificação, seja por fundamentação. Por fim, descobrimos que a filosofia se diferencia também da ciência, um tipo de conhecimento sistemático que analisa a realidade por meio de métodos predefinidos e que se opõe ao senso comum. 16 REFERÊNCIAS AGOSTINHO. A cidade de Deus. Petrópolis: Vozes, 2014. AQUINO, T. Súmula contra os gentios. São Paulo: Nova Cultural, 1996. ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 2009. BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 7. ed. Brasília: UnB, 1995. 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