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1 Estado e Políticas Públicas 1 Apresentação As pessoas adoecem e morrem devido não só às suas heranças genéticas ou a contatos com parasitas e substâncias tóxicas, mas também em decorrência do maior ou menor acesso aos serviços de saúde que possuem, da possibilidade que têm de receber e interpretar informações disponíveis sobre saúde, do modo de vida a que são submetidas por força de suas condições de subsistência e trabalho. Como vimos até aqui, a saúde dos indivíduos e das coletividades traduz o modo como a sociedade está organizada e como são distribuídos seus recursos. Isto equivale a dizer que a promoção da saúde depende das ações do governo e das instituições, emitidas por intermédio das Políticas Públicas. As Políticas desta natureza, ou seja, voltadas para a proteção social, expressam a maneira como as sociedades constroem historicamente seus mecanismos de solidariedade, sendo a saúde parte importante do conjunto destas políticas. Vamos observar agora um pouco do processo de montagem das políticas públicas sociais, ou de seguridade social, nos países capitalistas, durante o século XX, e como se deu tal processo no Brasil, no qual as primeiras leis de proteção social remontam às décadas de 30 e 40, ampliando-se, gradativamente, segundo uma orientação universalista. A Formulação das Políticas Sociais A economia de mercado, modalidade de organização social difundida pelo mundo desde o século XVIII, tem originado um grande número de demandas relacionadas com a sobrevivência das pessoas, bem como com a vida cultural das sociedades. Esta forma de organização econômica tem crescentemente dissociado o mundo do trabalho (e o que se produz a partir da capacidade de trabalho de cada homem), das condições materiais objetivas de existência (como a propriedade natural da terra ou dos meios de produção), Em outras palavras, o homem que produz tem acesso bastante restrito aos benefícios oriundos de seu trabalho. Para tornar viável a sobrevivência individual e familiar, parcela expressiva da população se vê compelida a barganhar as condições de venda de sua capacidade de trabalho. A maior ou menor capacidade de barganha individual ou coletiva determina o valor do trabalho e a qualidade do emprego, que 1 Texto extraído de Gestão de saúde: curso de aperfeiçoamento para dirigentes municipais de saúde: programa de educação a distância. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; Brasília: UnB, 1998. Autoria de Conteúdos da Unidade I: Antônio Ivo de Carvalho, Clarice Melamed, José Mendes Ribeiro, Mozart de Oliveira Júnior, Nilson do Rosário Costa e Oviromar Flores. Texto para uso exclusivo em sala de aula. A paginação não coincide com o original. 2 podem ser medidos, nas economias de mercado, pela proporção que os salários ocupam entre os principais itens que compõem a renda nacional. O padrão de vida do conjunto da sociedade se tornou, assim, parcialmente dependente do valor da renda direta, gerada pelo trabalho assalariado. Contudo, nem todas as necessidades sociais são contempladas de modo satisfatório através da renda direta gerada pelo trabalho. Questões relacionadas com a educação e com a saúde adquirem contornos públicos, ou seja, dependem de ações governamentais para seu equacionamento e não se resolvem apenas na esfera do mercado. Ao levantar as questões de educação, saúde, assistência, estamos falando da produção de bens e serviços públicos. Denomina-se bem público o resultado de uma ação coletiva ou governamental que pode beneficiar a todos, não provocando perda para nenhum dos membros da sociedade, nem sendo privilégio de indivíduos ou grupos. Este é o caso típico da ação de prevenção e controle das epidemias através das melhorias ambientais e da vacinação em massa. O controle da ameaça epidêmica, como o caso da cólera em meados do século passado na Europa ou da varíola nesse século, beneficiou a todos e criou um bem público pela sensação coletiva do fim da ameaça epidêmica. No entanto, nem todos os problemas que afetam as condições de vida no modo capitalista podem ser postos em pauta com a urgência e a efetividade que podem ser consideradas necessárias pelo bom senso. Há um conjunto de necessidades sociais que exigem políticas direcionadas a um beneficiário individual ou grupo, e que demandam ações públicas que provocam ganhos para alguns, exigindo concessões da parte de outros. É o que se denomina função redistributiva, uma característica bastante típicas do Estado, que, assim, se responsabiliza pelas necessidades do conjunto da sociedade, que exigem condições de acesso a serviços sociais públicos decorrentes de um princípio de justiça e que geram os sistemas de proteção social. Os sistemas de proteção social são definidos como o conjunto de políticas públicas de natureza social que respondem pelas funções de: • prover proteção para todos os membros da comunidade nacional; • realizar objetivos não econômicos e diretamente econômicos, como o provimento de renda mínima; • promover políticas de sentido redistributivo dos ricos para os pobres. Três modelos de política social foram desenhados nos diferentes países capitalistas: residual, meritocrático e institucional-redistributivo (Titmus: 1983), que serão definidos a seguir. O modelo residual baseia-se na premissa de que existem dois canais para a solução de demandas de sobrevivência: a família e o mercado. As instituições de proteção social atuariam apenas temporariamente, na eventualidade de falha destas instituições. Foi o modelo de proteção social, difundido pelo pensamento liberal clássico e contemporâneo, que se tomou dominante nos Estados Unidos, por exemplo. O modelo meritocrático subordina o sistema de proteção social a uma racionalidade econômica, supondo que os indivíduos devem estar aptos a resolver suas próprias necessidades através de sua relação direta com o mercado, baseados em seu esforço no trabalho, que pode ser medido por meio de sua eficiência e produtividade. Este modelo resulta na participação 3 complementar das políticas governamentais no provimento dos serviços sociais, para corrigir as imperfeições do mercado; dirige benefícios, por exemplo, a pobres e velhos, grupos que, reconhecidamente, estariam alijados da possibilidade de disputarem espaço no mercado de trabalho de forma temporária ou permanente. Já o modelo de proteção social institucional-redistributivo é o que mais aproxima a idéia de direito social do conceito de cidadania, dando origem ao Estado de Bem-Estar Social (ou Welfare State, como ficou conhecido na literatura especializada). A proteção social preconizada por este último modelo é concebida como uma iniciativa de incorporação de todos os membros da comunidade nacional a um padrão de vida considerado adequado para viver em sociedade, provendo serviços e benefícios sociais de modo universal e integral, independente da situação do indivíduo no mercado de trabalho. Atente para as diferenças marcantes em relação aos dois modelos anteriores. Partindo de um princípio de justiça substantiva, este modelo considera que todos os homens possuem uma igualdade básica que não permite que sofram privações em decorrência do seu desempenho ou fracasso econômico. A implementação da noção de cidadania, implícita no Estado de Bem Estar Social, reconhece a existência de uma "igualdade humana básica" associada à necessidade de participação integral de todos os indivíduos na comunidade nacional. O desenvolvimento pleno desta construção ideal criaria ou estabeleceria certos limites à desigualdade criada pelo mercado e inerente a este. O conjunto de direitos de cidadania "invadiria" o pressuposto da liberdade do mercado (Marshall, 1967).Em resumo, a extensão da cidadania alteraria o padrão de desigualdade social gerado pela ordem econômica. Em uma perspectiva histórica, o conceito de cidadania pode ser desmembrado em três partes: civil, política e social, segundo Marshall. Estes três elementos aparecem numa sucessão lógica e histórica, que guarda relação com a evolução dos direitos civis na experiência nacional inglesa. Em primeiro lugar, o elemento civil, referido ao século XVIII, seria composto dos direitos individuais - liberdade de ir e vir, de imprensa, pensamento e fé, direito à propriedade, de concluir contrato e direito à justiça. O elemento político seria entendido como o direito à ação coletiva e à participação no exercício do poder político como um membro ou eleito. As instituições correspondentes seriam o parlamento e os conselhos de governo. O elemento social compreende desde o direito de um mínimo de bem- estar econômico e segurança ao direito de participar por completo "na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade", segundo Marshall. O sistema educacional e os serviços sociais são as instituições ligadas aos direitos sociais que tiveram pleno desenvolvimento no século XX. A cidadania transformar-se-ia, nos contextos nacionais onde foi desenvolvida, em um pacto social traduzido em um código de direitos e deveres que devem atingir a todos indistintamente. Diretamente ligada ao exercício pleno da cidadania no plano social está a idéia de seguridade social, que se antepõe à noção de seguro, como discutiremos adiante. 4 As Políticas Sociais no Brasil Até o final da década de 80, as políticas sociais brasileiras foram qualificadas como (i) residuais: por não abrangerem toda a comunidade nacional como objeto da proteção social; e (ii) meritocrático-corporativas (Draibe: 1989), porque a definição dos direitos sociais ficou restrita à vinculação ao sistema previdenciário, sendo definidos como cidadãos os indivíduos pertencentes às categorias ocupacionais (corporações) reconhecidas pelo Estado e que contribuíam para a Previdência Social. Para que você possa compreender melhor vamos revisitar a nossa história. No período populista, iniciado com Vargas nas décadas de 30 e 40, o desenvolvimento das políticas sociais, como, por exemplo, na previdência e na saúde, fizeram parte de uma estratégia de incorporação de segmentos da classe média e trabalhadores urbanos à cidadania. Nesse sentido, as políticas sociais tiveram notável visibilidade e impacto na construção do projeto nacional, embora não tivessem conseguido, de fato, eliminar a pobreza ou implementar uma redistribuição significativa de renda. Durante o primeiro mandato de Getúlio Vargas (a ditadura de 1930-1945), os principais sindicatos de trabalhadores não colocaram em questão o regime autoritário nem reivindicaram a ampliação do poder de cidadania na gestão ou na busca de um modelo redistributivo nas políticas sociais. Ao contrário, ocorreu verdadeira aliança entre o movimento sindical e o governo, estabelecendo-se, como "prêmio", o acesso direto dos grupos sindicais mais organizados ao aparato executivo do Estado. Por meio deste acesso privilegiado às decisões públicas foram criadas as principais organizações de política social nas décadas de 30 e 40, como foi o caso dos antigos IAP (Institutos de Aposentadorias e Pensões das diversas categorias de trabalhadores). A caminhada que se fez nesta época, e mesmo daí em diante, não foi, portanto, em direção a uma cidadania plena, incorporando os elementos civis, políticos e sociais. Houve, de fato, o estabelecimento de uma cidadania regulada, de caráter parcial e concedida por meio de uma articulação entre a política de governo e o movimento sindical. O conceito de cidadania regulada (Santos: 1989) nos permite entender a dinâmica de instalação do sistema de proteção social no período pós anos 30, situando a criação das primeiras instituições públicas preocupadas com assistência médica, habitação, previdência, etc., oferecidas à população (ou parte desta) como concessão do Estado, mais do que como direito de cidadania. A cidadania regulada promoveu a subordinação dos direitos sociais dos brasileiros ao sistema de previdência social estatal. Isto fez com que no Brasil a cidadania social se desenvolvesse subordinada a um sistema de estratificação ocupacional definido por normas legais, dispondo sobre categorias de incluídos e não-incluídos, e não através de um código de valores políticos. Foram reconhecidos como cidadãos (ou seja, os incluídos) apenas os membros da comunidade localizados nas ocupações reconhecidas e definidas em lei e que contribuíam para a Previdência. A extensão da cidadania se fez mediante direitos associados com as profissões, antes que pelo reconhecimento da condição de membro da comunidade nacional. Assim, não bastava ser brasileiro para gozar de direitos de cidadania social; antes era 5 necessário "ter carteira assinada" e contribuir financeiramente para a Previdência Social, mediante uma modalidade de seguro (recebem benefícios somente aqueles que pagam por eles). Desta forma, acabaram excluídos da cidadania todos aqueles cuja ocupação a lei desconhecia: os trabalhadores da área rural e os trabalhadores urbanos cujas ocupações não tivessem sido reguladas. Mesmo as reivindicações relativas a emprego, salários, renda e benefícios sociais ficaram na dependência de um reconhecimento prévio da legitimidade da categoria. No caso dos trabalhadores rurais, a exclusão foi dramática: durante décadas houve forte resistência do Estado brasileiro em reconhecer seus direitos trabalhistas. O enquadramento das políticas governamentais de proteção social, através desta estruturação da cidadania regulada, de natureza corporativa, isto é, voltada para categorias profissionais regulamentadas por lei, produziu fortes distorções na política social. Uma delas, caracterizada pelo estabelecimento de privilégios corporativos, resultou na confusão da própria noção de "público", atribuída às instituições previdenciárias, cujo acesso, entretanto, sempre fora exclusivo das categorias profissionais incluídas no pacto populista. A Previdência Social, encarnada pelos antigos IAP's, era, com efeito, pública e governamental na aparência, porém profundamente marcada pelos interesses privados em sua atuação. Um exemplo claro disso foi a permanente opção de compra de serviços médicos particulares por parte da maioria dos Institutos. Contudo, a tensão entre a manutenção de uma estrutura de privilégios e a necessidade de extensão dos chamados direitos sociais foi permanente no Brasil. Esta tensão ocorreu não só entre as categorias profissionais privilegiadas bancários, comerciários, industriários, funcionários públicos, que mostravam marcantes diferenças de acesso entre si - como entre elas e o restante da população. Estes conflitos levaram à promulgação de uma Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), em 1960, que uniformizou os serviços e benefícios prestados pelo sistema previdenciário brasileiro, sem unificar, entretanto, os diversos Institutos. O Regime Autoritário de 1964 e as Políticas Sociais O regime autoritário, instaurado pelo golpe militar de 1964, produziu alterações importantes no modelo de políticas sociais criado nas décadas anteriores, em um ambiente de neutralização das resistências corporativas às mudanças, dadas as restrições à ordem democrática no País, afetando as atividades sindicais e o funcionamento dos partidos políticos. Estas mudanças foram viabilizadas pela alta concentração de autoridade decisória, resultante do fortalecimento de uma tecnocracia estatal sintonizada com as diretrizes de centralismo e racionalidade da máquina pública. Já durante o primeiro governo militar (1964-1967),duas metas importantes foram atingidas: a reconcentração da iniciativa decisória no interior do aparato de Estado, especialmente no Executivo, e a reafirmação da capacidade gerencial direcionada para a acumulação de capital, assegurando controle sobre a economia. 6 Este processo, que viabilizou o monopólio real das elites dirigentes (militares, tecnoburocracia, grande empresariado) sobre as políticas governamentais, permitiu ao regime deslocar o eixo da disputa por privilégios entre os representantes do Estado e as elites sindicais, como ocorria desde o Estado Novo, para uma esfera bem mais restrita da tecnoburocracia. Este movimento compôs uma ampla estratégia de exclusão de importantes lideranças da sociedade civil e do mundo do trabalho de espaços como os conselhos administrativos e, especificamente, os fóruns tripartites, nos quais, antes do golpe de Estado, representantes dos empregados, empregadores e governo influíam sobre os rumos da Previdência. Durante alguns anos foi muito difícil para os que se opunham a este Estado autoritário abandonar a tese unilateral de que os governos militares haviam se instalado exclusivamente com o objetivo de favorecer o grande capital nacional associado com o internacional, sem apresentar um projeto próprio para o País, e admitir que a "Revolução de 1964" havia realizado reformas econômicas com base nas quais foi possível enfrentar a crise econômica, política e social que envolveu todo o País, nos primeiros anos da década de 60, e, assim, desencadear um vigoroso processo de acumulação e expansão produtiva. O regime autoritário trabalhava com a tese de que decisões de investimentos públicos em bens de natureza social deviam ter como prioridade o atendimento de viabilidade financeira do empreendimento público. Em outros termos, a expansão no fornecimento de serviços sociais teria sido dirigida, neste período, especificamente aos consumidores, ou seja, aos indivíduos que apresentavam poder de compra desses serviços. O caso da política de saneamento básico no País, marcada pela criação das Empresas de Saneamento estaduais, é bastante exemplar, neste aspecto. Os efeitos excludentes da nova produção dos serviços sociais eram evidentes, e resultavam em uma apropriação desigual das políticas públicas por parte da população. Apontava-se, assim, para um novo modelo de ação governamental, subordinado à lógica econômica e extremamente atrelado aos interesses do setor privado. E foi assim que entre os anos de 1964 e 1973 houve uma acentuada mudança, para pior, nos indicadores de cobertura das políticas sociais, exemplificados pelo aumento da mortalidade infantil em várias capitais importantes, como São Paulo. A mortalidade infantil, um indicador seguro de condições sócio-econômicas gerais, havia diminuído acentuadamente entre 1950 e 1960 nas capitais brasileiras, porém durante a década seguinte a tendência ao decréscimo foi revertida, um pouco mais cedo ou mais tarde em todas elas. Em São Paulo, a mortalidade infantil atingiu seu ponto mais baixo em 1962, passando a aumentar significativamente a partir daí, até atingir em 1969, nível 40% superior. Evolução análoga se verificou em Belo Horizonte, onde a mortalidade infantil aumentou quase 45% entre 1960 e 1969 (Singer, 1977). A homogeneidade da tendência ao aumento da mortalidade infantil e o fato de ela verificar-se ao longo de um período considerável demonstravam que houve realmente queda no padrão de vida, pelo menos da população dos centros urbanos maiores. Nesse contexto, a avaliação de indicadores e de condições sociais, particularmente o indicador da mortalidade infantil, junto à concentração de 7 renda, configuravam a degradação das condições sociais da população. Era evidente o decréscimo dos salários reais no período e outros fatores como alimentação e saneamento básico. Os dados indicavam que a deterioração da situação econômica dos assalariados acompanhada da concentração de renda levou a uma progressiva nos níveis de saúde. Esta situação era especialmente gritante no Município de São Paulo onde a evolução se afastava abruptamente das previsões realizadas, com base nas tendências verificadas no período anterior. Diferentes indicadores sociais refletiam o desenvolvimento da economia que conjugou altas taxas de crescimento da economia, em especial entre 1968 e 1974, com expansão do emprego e uma política social regressiva associada com a paralisia das políticas públicas compensatórias. Os dados epidemiológicos simplesmente reforçavam o debate sobre a necessidade de correção dos rumos do modelo de desenvolvimento social trazido à tona pela publicação de informações sobre a concentração de renda na comparação dos Censos de 1960 e 1970. Finalmente, o consenso sobre a falência do modelo social do regime tornou-se ainda maior pela divulgação de dados dramáticos, parcialmente censurados pelo regime militar, no Estudo Nacional de Despesa Familiar - ENDEF, iniciado em 1974, que revelavam que o problema alimentar do Brasil era quantitativo, que importante parcela da população se alimentava pouco e que existia uma desnutrição protéica grave. Os indicadores econômicos e sociais nesta primeira fase do regime confirmavam as críticas à subordinação das decisões em política social às formulações da área econômica. Esses dados desmontavam as teses dominantes, sumarizadas, pelo então ministro Delfim Neto, na idéia de "deixar primeiro o bolo crescer, depois distribuir". Uma redução economicista, na época em moda, de que primeiro viria o crescimento econômico (a produção de riqueza), depois a redistribuição da renda (as políticas sociais). As políticas governamentais produziam seus efeitos por uma perversa conjugação entre estatismo e privatismo. A centralização decisória reforçava a capacidade de planejamento e coordenação da ação governamental. A ausência de pressões vindas de baixo da sociedade, fortemente reprimidas pelo regime de força, aliada à fragmentação das instituições do Estado, fortalecia cada vez mais uma burocracia estatal arrogante e autônoma que incentivava visivelmente a privatização. Tal situação terminou por comprometer as bases políticas do regime, gerando também grande insatisfação da sociedade. É então que o debate sobre a questão social toma força, acarretando importantes mudanças na forma das políticas sociais. Com efeito, como foi visto até aqui, os resultados obtidos durante os três primeiros governos militares (1964-1973) consolidaram e privilegiaram quase que exclusivamente o setor privado e ampliaram de forma exagerada a exclusão social. No entanto, as demandas dos movimentos sociais e as pressões das agências internacionais induziram o Estado brasileiro a refazer sua agenda social. Verifica-se que, já no Governo Geisel (1974-1979), a preocupação com o social assumiu explicitamente uma orientação de expansão de cobertura, mesmo que mantendo em várias áreas a articulação com o setor privado, como é o caso da saúde. Este deslocamento do foco junto às políticas sociais ocorre 8 com a preservação do traço autoritário presente durante todos os governos militares e que, em tal período, é explicitado com o lema da "distensão lenta, gradual e segura". Uma característica realmente nova dessa conjuntura social é o fato de a política buscar o rompimento com a exclusão do modelo anterior, trabalhando com uma idéia mais universalista de direitos sociais e não com a subordinação do acesso como decorrência do fato de o indivíduo ser contribuinte da Previdência Social. A desorganização política e social imposta pelos governos militares criou na sociedade brasileira, como resposta, estímulos a outras formas de solidariedade social, possibilitando a emergência de um sistema de valores centrado na defesa da cidadania universal, direitoao trabalho e à justiça, forjadas na crítica ao autoritarismo e nas suas repercussões sociais. Nos anos 70 foram particularmente visíveis movimentos sociais envolvendo trabalhadores, médicos, intelectuais, moradores e minorias, tendo como pauta as questões ligadas à saúde e outras relacionadas à vida. Este novo cenário de mudanças de valores e crescimentos de pressão das elites e movimentos sociais urbanos para o equacionamento das carências de infra-estrutura (principalmente saneamento) e de serviços sociais (educação, atenção médica, previdência, etc.) gerou uma situação de pressões para a inovação no campo das políticas públicas. A política governamental teve que romper com a lógica da «viabilidade econômica» da conjuntura anterior, ampliando de modo significativo a inclusão do setor social nos projetos de desenvolvimento econômico e não mais como decorrência do mesmo (a «divisão do bolo» somente após seu crescimento). A política pública que mais expressivamente registrou este clima de mudança foi o II Plano Nacional de Desenvolvimento/PND (1974), que redefiniu o modelo de desenvolvimento social brasileiro. Esta formulação de política governamental respondeu não só às pressões econômicas conjunturais, decorrentes da «crise do petróleo» de caráter internacional, como refez as relações entre economia (produção), desenvolvimento social (consumo) e integração social. O II PND assumiu certas críticas de agências internacionais a respeito da concentração de renda, embora considerando tal fenômeno decorrente «de uma evolução em longo prazo da economia, e não de fatores recentes». Desta forma, o II PND se propõe a garantir «o aumento substancial de renda em todas as classes, e a redução substancial da pobreza absoluta», mediante uma agenda que combinaria iniciativas de (i) política de emprego com política de salários, isto é, melhorias nos postos de trabalho e aumentos salariais reais; (ii) política de valorização de recursos humanos, onde foi privilegiada a organização, pelas políticas governamentais, da ação social. Neste item destacou-se o papel da política de saúde que justificou "uma estratégia que visa à clara definição institucional do setor, com base em mecanismos de coordenação que anulem imprecisões ou superposições de âmbito de atuação"; (iii) política de integração social, através de políticas de suplementação de renda (PIS-PASEP); (iv) política habitacional; (v) ampliação do conceito de previdência social para abranger progressivamente novas categorias da população, especialmente as situadas nas faixas de maior pobreza. 9 Universalização das Políticas Sociais: o Caso da Saúde Esta nova formulação da política social voltada para a inclusão, ocorrida nos anos 70, não só inverteu a sua localização como subproduto do desenvolvimento econômico, como fortaleceu mudanças relevantes nos indicadores de infra-estrutura social e de condição de vida, especialmente para as populações urbanas. Alguns exemplos são marcantes. Vejamos. Exemplo 1: entre 1979-80 a área habitacional mostrou intervenção pública (construção direta pelo Estado) equivalente a 20% do volume total de unidades de qualquer tipo (inclusive barracos), igualando-se aos indicadores encontrados nas social-democracias européias nas décadas anteriores. Exemplo 2: a universalização do sistema previdenciário por força das leis que incentivaram a incorporação dos trabalhadores rurais à previdência social em 1971 (Funrural); das empregadas domésticas (1972) e autônomos (1973). Exemplo 3: as mudanças na política de saúde, depois de 1974 (Plano de Pronta Ação) ampliaram o acesso da população pobre e das áreas rurais ao consumo de atenção médico-hospitalar. Exemplo 3: ainda o PPA permitiu a universalização da cobertura para a clientela não-segurada, ao desburocratizar o atendimento nos casos de emergência e incorporar as Secretarias de Saúde e Hospitais Universitários ao sistema previdenciário, através de convênios globais. Aliás, o PPA constituiu um momento expressivo na história das políticas de saúde, pois acarretou a perda de controle da assistência à saúde pela burocracia previdenciária, como vinha acontecendo havia décadas. A expansão da assistência médica teria, assim, transbordado de seu contexto institucional de origem e buscado articular todos os serviços de assistência existentes no País, procurando, mediante convênios, expandir a cobertura. A universalização da cobertura de atendimento médico que acompanhou este processo de retomada das políticas sociais favoreceu a agenda defendida pela Reforma Sanitária, na década de 80, permitindo que viesse a se alterar, efetivamente, os critérios de elegibilidade de clientela vigentes no sistema previdenciário, em troca de uma concepção de inclusão universalista. Nesse quadro de ampliação das políticas sociais, a assistência médica teve um incremento muito mais destacado que os demais benefícios, chegando mesmo a contemplar os trabalhadores não segurados. Até então restrita como padrão de cidadania regulada, a previdência social migrou de um modelo de seguro-saúde (recebe benefícios apenas quem paga) para um desenho organizacional típico de seguridade social (direito independente de pagamento), sendo esta nova forma amplamente incentivada pelas mudanças trazidas pelo II PND. Nas relações entre as áreas de Previdência Social e de saúde no âmbito das políticas públicas, o processo de reorganização institucional estabelecido com a criação do SINPAS - Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (1977) significou uma expressiva ampliação das atividades de proteção social. Foram definidos, na ocasião, importantes organismos no seio do aparelho estatal nacional, que passam a assimilar a crescente expansão das atividades no campo saúde, como é o caso do Instituto Nacional da Assistência Médica da 10 Previdência Social - INAMPS; da assistência social como a LBA e a FUNABEM; além de estruturas gerenciais como o DATAPREV e o lAPAS. Apesar dos avanços propiciados por este novo momento da política de saúde, algumas das características do modelo gerado no período militar não desapareceram de todo e, entre elas, podem ser citadas: • centralização das decisões financeiras e operacionais, no Governo Federal e dentro dele, no interior do INAMPS. • financiamento baseado em contribuições sociais; • redes de atendimento não integradas; • privatização da execução dos serviços de saúde; • pouca efetividade sob o ponto de vista das necessidades da população, seja quanto ao acesso ou a qualidade dos serviços. De uma maneira geral, a expansão dos serviços médicos obedece à lógica já observada desde o período anterior, caracterizada por crescente incorporação de contingentes cada vez mais amplos da população. Esta tendência é esboçada na redução de barreiras burocráticas ao acesso e no crescimento quantitativo da oferta de serviços e unidades assistenciais. As transformações institucionais do sistema continuam a acontecer na década seguinte. Em 1980, na VII Conferência Nacional de Saúde é lançado pelo Governo Federal o PREV-SAÚDE - Programa Nacional de Serviços Básicos. Em 1982 é criado o CONASP - Conselho Nacional de Administração da Saúde Previdenciária, subordinado diretamente ao presidente da República. Tanto o PREV-SAÚDE como o plano elaborado pelo CONASP já incorporavam uma análise cuidadosa dos principais problemas apresentados pelo sistema na época. Em termos de realizações, apenas o último obteve algum êxito, suas propostas foram parcialmente implementadas entre 1982- 1984. É a partir do plano do CONASP que se inicia a implementação de Ações Integradas de Saúde (AIS) com o objetivo de tornar mais eficientes e eficazes as ações produzidas pelo Sistema. Até o final de 1986, 2.500 municípios haviam assinadoos termos de adesão às AIS. Em julho de 1987, por meio do Decreto 94.657, o presidente da República cria os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde (SUDS) com o objetivo de contribuir para a consolidação e o desenvolvimento qualitativo das AIS, antecipando um conjunto de inovações descentralizantes que viriam a ser consolidadas na Constituição de 1988. Entre as principais bandeiras da luta pela chamada Reforma Sanitária estão a necessidade de ampliação dos recursos públicos postos à disposição da saúde da população, a utilização de critérios de eqüidade em sua distribuição e a transparência em sua aplicação. Apesar de certo consenso formado pela ação de governo quanto à necessidade de ampliação da oferta de serviços em saúde. Os resultados mais palpáveis são ainda tímidos durante a primeira metade dos anos 80, pelas restrições impostas no quadro de recessão econômica em que se encontrava imerso o País. As contribuições para a Previdência Social constituem, é bom lembrar, nesta etapa, as principais responsáveis pelo financiamento não só das aposentadorias e pensões, como também das ações de saúde efetuadas pelo INAMPS em todo o País. Em 1986, já no governo da Nova República, ocorre uma retomada dos gastos públicos nas áreas sociais e especialmente em saúde. Em cinco anos, a política de descentralização, proposta pelas AIS, associada com uma elevação 11 significativa de investimentos federais faz triplicar o número de unidades de saúde construídas e mantidas pelas municipalidades. Estas mudanças organizacionais incrementaram especialmente a participação do setor saúde nos gastos da Previdência, que chegaram, em média, a 30% das despesas totais nos anos 1975-1978, acarretando redução nas despesas com benefícios, assistência social e com a administração e gerência do sistema. Esta explicitação de um projeto social universalista retirou da política social o estigma de subproduto do desenvolvimento econômico e tomou viáveis mudanças importantes nos indicadores de oferta de infra-estrutura social e de condição de vida. Os termos do debate, a partir do final da década de 70, permanecem os mesmos, porém são «descobertas» as virtudes das políticas públicas de natureza social. De uma perspectiva econômica, redistribuir não é só possível, como também mais racional e virtuoso. Esta extensão de direitos teve um efeito incrementalista sobre os gastos públicos de natureza social, influenciando de modo positivo as discussões em fins da década de 80 sobre o modelo social brasileiro. Um dos efeitos mais importantes dessas mudanças no setor social brasileiro será a sua total confirmação pela Constituição de 1988, considerada a Constituição Cidadã pelas suas grandes inovações conceituais e pela ampliação dos programas abrangentes de proteção criados nos anos anteriores. Mesmo utilizando um volume significativo de recursos, o sistema de proteção social não estaria, entretanto, alcançando níveis razoáveis de eficiência dos gastos nem qualidade dos seus resultados. A Constituição de 1988 e a Seguridade Social Vamos agora examinar as principais inovações conceituais trazidas pela Constituição de 1988. A principal delas foi a adoção do conceito de seguridade social, que reconhecia os direitos sociais orientados por uma noção de comunidade nacional e definida no artigo 194 da Constituição Federal como um conjunto de princípios, normas e instituições, integradas por ações dos poderes públicos e da sociedade visando assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. A seguridade social, assim definida, reforçou a idéia de um sistema de cobertura destinado a todos que, contribuintes ou não, encontrem-se em estado de necessidade, conforme definido em lei. Mantendo-se o vínculo contributivo apenas para a previdência social, estas inovações conceituais representaram um grande avanço na linha da universalização do acesso aos benefícios e serviços, compondo um sistema de proteção social - o Estado de Bem Estar Social - de razoáveis proporções no Brasil. O conceito de seguridade social resultou na definição do OSS - Orçamento da Seguridade Social, aspecto inédito na legislação brasileira, por intermédio do qual são definidas as fontes de financiamento das políticas e programas da previdência, da saúde e da assistência social, no âmbito do governo federal. As fontes do OSS são, nos termos da Constituição, formadas por diversas contribuições sociais, entre elas a dos empregadores, que pode incidir sobre a 12 folha de salários, o faturamento e o lucro; a dos trabalhadores; a receita de concursos de prognósticos (loterias). O aspecto mais relevante nessa idéia de orçamento da seguridade social é a concepção de socialização de custos, com todos pagando para todos, o que introduziu um componente redistributivo (de quem tem mais para quem tem menos) no financiamento das funções de atenção à saúde, previdência e assistência social. Os pressupostos básicos do Sistema Único de Saúde são descritos na Constituição de 1988 como uma parte do capítulo da seguridade social. A Lei 8.080, que dispõe sobre a promoção da saúde e organização dos serviços, e a Lei 8.142, que define a participação da comunidade e regula as transferências intergovernamentais, dão contornos mais nítidos às orientações constitucionais. A fórmula Saúde - direito de todos, dever do Estado, consagrada como princípio constitucional em 1988, sintetiza admiravelmente a concepção de uma política social universalista. Resultante de um desenho da Reforma Sanitária rompeu e transformou, para melhor, o padrão de intervenção estatal no campo social moldado na década de 30. Associado às premissas da Seguridade Social, o projeto de um Sistema Único de Saúde traz para o debate nacional a noção de acesso universal ao cuidado à saúde, não como uma concessão, mas como direito, provocando a formação de um vasto movimento legal e gerencial, nos vários níveis de governo, para tomar possível a oferta dos serviços que lhe são inerentes. A instituição de um sistema de saúde de acesso universal e igualitário rompe, assim, com o modelo da cidadania regulada e do beneficio como privilégio, e assume a obrigação de quitar parte da nossa imensa dívida social, daí sua especial importância. O SUS despertou ainda um conjunto de princípios ordenadores da justiça social e de eficiência político-administrativa, o que deverá ser retomado em vários momentos do nosso curso. Conclusão Como vimos, a tendência para um pacto social orientado para a cidadania plena vem desde as proposições do II PND, paradoxalmente sob o regime militar, até a Constituição de 1988. Entretanto, mesmo com tal evolução, o desenvolvimento social é ainda frontalmente questionado pelos defensores do mercado (a orientação neoliberal), que atualizam, com bases inteiramente novas, a velha máxima do desenvolvimento social como um subproduto do crescimento econômico. A difusão internacional dessa lógica fortaleceu um diagnóstico sobre a incapacidade de o modelo organizacional do Estado brasileiro assegurar a eficiência e qualidade em seus programas sociais. Realmente, constata-se que, apesar dos avanços descritos, a expansão de cobertura, assegurada pelos grandes investimentos sociais estatais, nem sempre se refletiu em uma oferta de benefícios mais plena e justa para a clientela do sistema. Omite-se, também, o fato de ter tal expansão ocorrido freqüentemente sob a tutela de governos falidos ou corruptos, além de estar associada à incompetência administrativa; à indefinição de responsabilidades, 13 bem como à utilização clientelista e corporativa dos recursos, envolvendo o sistema político-partidário, prestadores de serviço e produtores de insumos,os escalões administrativos e o corpo funcional das organizações públicas. Estes problemas não raro agravam-se pela completa inexistência de mecanismo de controle e de avaliação dos serviços prestados aos usuários. Tal diagnóstico coloca em debate público a agenda da reforma do Estado. Embora as idéias de ineficiência e incapacidade estatal muitas vezes tenham origem no pensamento neoliberal, reformar o Estado para orientá-Io aos ideais de justiça social é parte importante do projeto de diversas forças políticas que acreditam no Estado e em suas instituições para corrigir os efeitos concentradores e excludentes do mercado. 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