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Indaial – 2021 Povo, Cultura e religião Prof. Jose Antonio Teófilo Cairus 2a Edição Copyright © UNIASSELVI 2021 Elaboração: Prof. Jose Antonio Teófilo Cairus Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: C136p Cairus, Jose Antonio Teófilo Povo, cultura e religião. / Jose Antonio Teófilo Cairus. – Indaial: UNIASSELVI, 2021. 239 p.; il. ISBN 978-65-5663-425-8 ISBN Digital 978-65-5663-426-5 1. Cultura. - Brasil. 2. Religião. – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 300 aPresentação Caro acadêmico! Povo, Cultura e Religião são termos de uso universal, mas suas definições não são fixas, pois seus significados variam nas diversas regiões do mundo. De forma análoga, estes termos, possuem significados di- ferentes ao longo da história da humanidade. Todavia, nas décadas finais do século XX, com a revolução da era digital e a aceleração do processo de globa- lização, tópicos relacionados a povos, culturas e religiões passam a ser objeto de debate, controvérsias e até mesmo conflitos. Assim, os princípios funda- mentais formadores de nossa identidade, seja individual ou coletiva, que enfa- tizam a diferença como ponto de partida para nos definir como grupo distinto, ganha contornos dramáticos quando a convivência entre povos, culturas e re- ligiões é pulverizada pelas novas tecnologias de comunicação e pela proximi- dade física proporcionada em consequência da movimentação de povos em escala global. O mundo ficou menor, a humanidade maior e, infelizmente, o fluxo contínuo, quantitativo e qualitativo de informações recebidas em tempo real não nos fez, nem mais sábios, tampouco, nos fez mais tolerantes. Conhecimento é fundamental para se promover entendimento, diálo- go e superar diferenças. Assim, nossa disciplina, além do aspecto pedagógico que a norteia, visa proporcionar conhecimento dos conceitos fundamentais da disciplina com rigor acadêmico e, de forma complementar, espera contri- buir para se conhecer e se perceber a diversidade como um atributo humano a ser celebrado. Convém não esquecer que o ser humano é contraditório por natureza, somos uma espécie biologicamente resistente a mudanças, mas por outro lado, nossas características singulares, como espécie, nos equipa- ram com mecanismos para sobrevivermos, nos adaptarmos e evoluirmos. Na primeira unidade deste livro, você será capaz de entender e defi- nir conceitos básicos como “Povo”, “Cultura” e “Religião” a partir da inter- pretação de intelectuais de épocas e lugares diferentes. Compreenderá tam- bém como esses conceitos, muitas vezes entrecruzados, se transformaram, ao longo da História, adquirindo novos significados, sendo interpretados e empregados de acordo com nosso Zeitgeist (espírito do tempo). Na segunda unidade, abordaremos as religiões monoteístas iniciando com a origem do conceito, com ênfase, nas vertentes monoteístas abraâmicas: judaísmo, cristianismo e islamismo, respectivamente. O estudo destas três religi- ões se desdobra em duas partes principais: na evolução histórica e na compreen- são de seus rituais e práticas religiosas na sua complexidade e transformações. Na terceira unidade estudaremos as religiões dominantes na Ásia Oriental, notadamente, na Índia, China e Japão. De forma análoga à segunda Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novi- dades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagra- mação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilida- de de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assun- to em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA unidade, o hinduísmo, o budismo e o xintoísmo serão analisados em seu as- pecto histórico, filosófico, ritualístico e nas suas vertentes diversas. Bons estudos! Prof. Dr. Jose Antonio Teófilo Cairus Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complemen- tares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE sumário UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO ........................................... 1 TÓPICO 1 — POVO ............................................................................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 DA IDADE MODERNA PARA A IDADE CONTEMPORÂNEA ............................................. 5 3 O USO POLÍTICO E SOCIAL CONTEMPORÂNEO DO CONCEITO DE “POVO” ........... 9 4 ETNIA .................................................................................................................................................. 10 5 RAÇA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL ..................................................................................... 14 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 18 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 19 TÓPICO 2 — CULTURA ..................................................................................................................... 21 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 21 2 RELATIVISMO CULTURAL ........................................................................................................... 22 3 CULTURA DE MASSA E A ESCOLA DE FRANKFURT NO SÉCULO XX ........................... 24 4 MARXISMO CULTURAL E AS GUERRAS CULTURAIS NA ATUALIDADE ................... 28 5 CULTURA NO MUNDO PÓS-COLONIAL ................................................................................. 32 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 36 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 37 TÓPICO 3 — RELIGIÃO ..................................................................................................................... 39 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................39 2 CONCEITO E ETIMOLOGIA ........................................................................................................ 41 3 O CONCEITO MODERNO DE RELIGIÃO NO OCIDENTE .................................................. 44 4 POVO, CULTURA, RELIGIÃO E POLÍTICA NO MUNDO ATUAL ...................................... 46 5 REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DA RELIGIÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA .................. 49 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 60 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 64 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 65 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 66 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS ..................................................................................... 71 TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO ................................. 73 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 73 2 RAÍZES DO MONOTEÍSMO ........................................................................................................ 73 3 CRENÇA, FÉ E CREDO .................................................................................................................... 74 4 MONOTEÍSMO FILOSÓFICO ....................................................................................................... 77 5 RELIGIÕES ABRAÂMICAS............................................................................................................ 78 5.1 O JUDAÍSMO ................................................................................................................................ 80 5.1.1 Judaísmo no tempo .............................................................................................................. 83 5.1.2 Movimentos no judaísmo moderno .................................................................................. 88 5.1.3 Judaísmo no século XX ....................................................................................................... 90 5.1.4 Identidade judaica atual ..................................................................................................... 90 5.2 ORAÇÕES ...................................................................................................................................... 91 5.3 VESTUÁRIO RELIGIOSO ........................................................................................................... 92 5.4 FERIADOS JUDAICOS ................................................................................................................ 95 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 99 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 100 TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO ................................................................................................... 101 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 101 2 ORIGENS DO CRISTIANISMO .................................................................................................. 101 2.1 A ERA APOSTÓLICA ................................................................................................................ 102 2.2 PERÍODO PRÉ-NICENO .......................................................................................................... 102 2.3 O INÍCIO DO CÂNONE ORTODOXO ................................................................................... 103 2.4 O CRISTIANISMO ORIENTAL ................................................................................................ 105 2.5 A REFORMA PROTESTANTE .................................................................................................. 110 2.5.1 Denominações Protestantes ............................................................................................ 111 2.6 O CATOLICISMO E A CONTRARREFORMA ...................................................................... 116 2.7 NEOPAGANISMO, TRADIÇÕES INDÍGENAS E AFRICANAS ....................................... 121 2.7.1 Religiões dos povos ameríndios ..................................................................................... 124 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 128 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 129 TÓPICO 3 — O ISLÃ ......................................................................................................................... 131 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 131 2 ARÁBIA PRÉ-ISLÂMICA E A REVELAÇÃO CORÂNICA ................................................... 133 3 DIVISÕES SECTÁRIAS ................................................................................................................. 140 3.1 A ORIGEM DO XIISMO ........................................................................................................... 141 3.2 KHARIJITAS OU IBADIS .......................................................................................................... 143 3.3 SUNITAS ...................................................................................................................................... 144 3.4 XIITAS .......................................................................................................................................... 144 3.5 O SUFISMO ................................................................................................................................. 146 3.6 A ERA DE OURO DO ISLÃ (750-1258) ................................................................................... 147 3.6.1 O Califado Abássida (750-1258) ....................................................................................... 147 3.7 ISLÃ E O OCIDENTE: UMA HISTÓRIA LITIGIOSA .......................................................... 148 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 152 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 154 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 155 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 156 UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS ..................................................................................... 161 TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO..................................................................................... 163 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 163 2 O PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA HUMANA .......................................................................... 163 3 RELIGIOSIDADE NO OCIDENTE E NO ORIENTE ............................................................... 165 3.1 O CONCEITO DE TEMPO ........................................................................................................166 4 O HINDUÍSMO ............................................................................................................................... 167 4.1 BRAMANISMO ........................................................................................................................... 170 4.2 HINDUÍSMO CLÁSSICO .......................................................................................................... 171 5 O BUDISMO ..................................................................................................................................... 177 5.1 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO INICIAL ......................................................................... 178 5.2 CISMA E ORIGEM DAS DIFERENTES ESCOLAS BUDISTAS ........................................... 179 5.3 EXPANSÃO BUDISTA NO SUL DA ÁSIA ............................................................................. 180 5.4 O BUDISMO MAHAYANA....................................................................................................... 185 5.5 O BUDISMO HOJE ..................................................................................................................... 187 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 188 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 190 TÓPICO 2 — CONFUCIONISMO E TAOÍSMO ......................................................................... 191 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 191 2 O CONFUCIONISMO .................................................................................................................... 191 2.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS E CARREIRA EM LU ....................................................... 192 2.2 CONFUCIONISMO: VISÃO FILOSÓFICA ........................................................................... 196 3 O TAOÍSMO .................................................................................................................................... 198 3.1 ORIGENS ..................................................................................................................................... 199 4 RELIGIÃO NA CHINA CONTEMPORÂNEA .......................................................................... 203 4.1 LIBERDADE E REGULAMENTAÇÃO ................................................................................... 204 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 210 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 211 TÓPICO 3 — XINTOÍSMO .............................................................................................................. 213 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 213 2 ORIGENS .......................................................................................................................................... 213 3 AS CRÔNICAS DE KOJIKI E NIHON SHOKI ......................................................................... 214 4 DEUSES XINTOÍSTAS ................................................................................................................... 216 5 O XINTOÍSMO E BUDISMO ....................................................................................................... 218 6 SANTUÁRIOS XINTOÍSTAS ....................................................................................................... 219 7 ADORAÇÃO E FESTIVAIS ........................................................................................................... 221 8 UMA VISÃO DA RELIGIÃO NO JAPÃO ATUAL................................................................... 222 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 232 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 234 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 235 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 236 1 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender os conceitos de povo, cultura e religião no contexto histórico; • conhecer as mudanças nos conceitos dos termos ao longo do pro- cesso histórico; • entender sua aplicabilidade sob diversas visões de mundo; • contribuir para o debate dos conceitos de povo, cultura e religião no âmbito de nossa disciplina. 2 PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – POVO TÓPICO 2 – CULTURA TÓPICO 3 – RELIGIÃO Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 3 TÓPICO 1 — UNIDADE 1 POVO 1 INTRODUÇÃO Em uma definição comum, geralmente encontrada em qualquer dicionário, a palavra “povo” (do latim populu) define o conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e hábitos idênticos, afinidades e uma história e tradições comuns. Porém, conceitos como “povo”, de forma análoga a outros termos com significados subjetivos, diversos e contraditórios, podem ser compreendidos ao se estudar suas transformações e usos ao longo do tempo. Na maioria das sociedades agrárias pré- -modernas as identidades coletivas se formavam apenas no seio das elites governantes, portanto, em civilizações, impérios ou qualquer outra entidade política, antes do século XVIII, as massas de camponeses iletrados não possuíam uma identidade coletiva. Esses camponeses, que formavam a maioria da população, na visão das elites governantes, deviam continuar marginalizados vivendo com seus costumes e práticas e “superstições”. Para contribuir ainda mais para a esta marginalização, a massa de camponeses, geralmente, se expressava por meio de dialetos locais, que dependendo da distância que habitavam do poder central, podia ser mais ou me- nos semelhantes ao idioma das elites governantes. Tal realidade, aliada ao analfa- betismo, que era norma na época, obliterava qualquer possibilidade de acesso ao conhecimento que, geralmente, era reservado, na Europa, aos que falavam idiomas clássicos como o grego e o latim. Convém lembrar que, aqui, nos referimos às so- ciedades cujos governantes reinavam pelo princípio do “direito divino”, portanto, neste quadro, a legitimação dos governantes não dependia pela aprovação popular. Era uma relação – como ocorria na Idade Média, na Europa feudal – de troca e dependência, certamente desigual para os padrões contemporâneos, que envolvia, por exemplo, pela parte do povo, fornecimento de alimentos, mão de obra e soldados em troca de proteção da nobreza. Ainda em tempos pré-modernos, o termo “povo” podia ser utilizado para designar grupos com características homogêneas, tais como, tribos, pequenos estados (reinos, principados etc.) e comunidades religiosas. Assim, “povo” podia servir para identificar coletivamente, gauleses, saxões, ibéricos, celtas e até o “povo de Deus”, para identificar cristãos na Europa medieval. UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 4 FIGURA 1 – OS GAULESES FONTE: <https://bit.ly/39k4Cw2>. Acesso em: 21 abr. 2020. Os gauleses, personagensda história em quadrinhos Asterix, o gaulês, são um exemplo bem-humorado de uma representação imaginada do passado francês como padrão de identidade coletiva para todos os franceses na atualidade. INTERESSANTE O que aconteceu com os povos fenícios, hebreus, canaanitas, assírios, nabateus, ibéricos, gauleses, astecas, entre tantos outros que aparecem em nossos livros de História Antiga? Certamente não desapareceram. Eles estão vivíssimos em nossa genética como pode ser comprovado nos exames de DNA cada vez mais acessíveis para a pessoa comum. Esses povos se misturaram e se fundiram com outros povos, aliás, como ocorreu com nossos antepassados desde sua origem no continente africano. A ideia da existência de um povo geneticamente puro, ao longo da História, não só é impossível como é falaciosa, assim como é falsa a ideia que os povos antigos tenham desaparecido sem deixar traços ou mesmo que os povos atuais sejam uma continuidade biológica pura de povos antigos com o mesmo nome. NOTA TÓPICO 1 — POVO 5 2 DA IDADE MODERNA PARA A IDADE CONTEMPORÂNEA Na Europa Ocidental, a partir do século XV, com o fim da Idade Média, as me- lhorias dos meios de transporte, o aumento do comércio e, consequentemente, da maior interação entre as diferentes regiões, a ideia de “povo” se consolida em torno de grupos etnolinguísticos (povos que falavam o mesmo dialeto ou idioma). Assim, as identidades difusas e fragmentadas do período medieval tendem a se uniformizar em torno dos pa- drões identitários ditados pelo poder central dominado pela nobreza, laica e religiosa. No entanto, apenas do século XVIII em diante, é que as massas marginalizadas, em certas sociedades europeias, cujos privilégios se limitavam à nobreza, são elevadas à condição de cidadãos. Isso ocorre como resultado das mudanças econômicas, sociais e políticas, como, por exemplo, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. Porém, é no século XIX, com o surgimento dos estados-nações, que o termo “povo” vai adqui- rir sua definição moderna. É importante ressaltar que o uso do termo “povo” se torna extremamente conveniente para reforçar uma narrativa nacionalista, que surge no sé- culo XIX, buscando, no simbolismo do termo, um sentido necessário de continuidade histórica para as nações-estados que surgem na Europa e depois na América. Consequentemente, a narrativa nacionalista, a partir do século XIX, tende a manipular o termo “povo” com intuito de impor uma identidade homogênea comum a todos os habitantes dos estados-nação. Dessa maneira, na França, país formado historicamente por uma amálgama de povos através de sua história, tenta fazer dos gauleses sua única ou principal referência identitária. O mesmo princípio ocorre em países formados em épocas mais recentes, como o Brasil, cuja elite políti- ca e intelectual procura, na impossibilidade de negar a diversidade óbvia presente na formação de nossa população, destacar o papel e contribuições de determinados grupos étnicos em detrimento ou mesmo na invisibilidade de outros. A mudança ocorrida, no final do século XVIII, inclusive, pode ser observada nas constituições modernas nas quais a palavra “povo” começa a aparecer em destaque. A primeira aparição da palavra “povo” ocorre no preambulo da Constituição dos Estados Unidos da América, redigida em 1787, se inicia com a frase: “We the People of the United States” (“Nós, o Povo dos Estados Unidos”) (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1787, s.p.). Em seguida, na primeira Constituição francesa, de 1791, o termo aparece na frase: “A Soberania é una, indivisível, inalienável e imprescritível. Ela pertence à Nação e nenhuma parte do povo nem indivíduo algum pode atribuir-se o exercício” (FRANÇA, 1791, s.p.). No Brasil, o termo “povo”, na Constituição do Império de 1824, aparece na frase “Dom Pedro Primeiro, por graça de Deus, e unânime aclamação do povo, Impe- rador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil...” (BRASIL, 1824, s.p.). É signifi- cativo que, na carta magna do império, “povo” aparece apenas para aclamar a figura do imperador que reina por “graça divina”. Em contraste, na Constituição republica- na de 1891, o termo “povo” adquire um novo status: “Nós, os representantes do povo brasileiro...” (BRASIL, 1891, s.p.). E, finalmente, na Constituição de 1988, em sua forma atual: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988, s.p.). UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 6 FIGURA 2 – A LIBERDADE LIDERANDO O POVO (REVOLUÇÃO FRANCESA) FONTE: <https://bit.ly/2J5EDxE>. Acesso em: 15 mar. 2020. É importante lembrar que após o século XVIII as mudanças político-sociais transfor- mam os habitantes de um país, antes súditos de um soberano, em cidadãos de uma nação. Por- tanto, a lealdade e obediência aos soberanos é substituída pela lealdade ao país. Dessa maneira, a obediência aos representantes eleitos se baseia no que está estipulado em uma Constituição que, por sua vez, é transformada em lei máxima para todos, sejam cidadãos ou governantes. Isso fica demonstrado pelo fato de que em monarquias os votos de lealdade (em cerimonias de naturali- zação, em cerimonias militares etc.) são dirigidos ao rei ou rainha e a seus sucessores dinásticos. Nas repúblicas, como ocorre no Brasil, de maneira simbolicamente diferente, em rituais e cerimô- nias análogos, se presta juramento à bandeira e não a um indivíduo em particular. IMPORTANTE Na segunda metade do século XIX, nas Ciências Sociais, o termo “povo” surge como alternativa a categoria “raça”. Esta uma categoria menos flexível, mais estática, porque, teoricamente, baseada na Biologia, é utilizada em um contexto histórico que tentava estabelecer hierarquias raciais em bases científicas. É no século XIX, na sua se- gunda metade, quando os europeus vão recorrer à ciência, ou à pseudociência, em alguns casos, para explicar sua superioridade tecnológica e justificar o domínio da Eu- ropa sobre o resto do mundo. Esta simbiose entre “povo” e “raça” teria consequências trágicas no século XX, quando transformada em ideologia de Estado para discriminar, rejeitar e mesmo exterminar grupos considerados inassimiláveis e indesejáveis. O termo “povo”, assim, torna-se modernamente uma metaidentidade que, como o termo indica, incorpora aspectos culturais, linguísticos e religiosos cuja narra- tiva histórica, inicialmente romantizada pelo nacionalismo, passa, ao longo do século TÓPICO 1 — POVO 7 XIX, a ganhar o status de ciência. Essa mudança é adotada por historiadores, que no século XIX, se tornam profissionais encarregados de escrever as narrativas patrióticas de estados-nações para promover a ligação desejada entre passado e o presente. Um dos objetivos principais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838, no Rio de Janeiro, era justamente escrever uma história brasileira para um país que tinha ficado independente há apenas dezesseis anos. A ideia é que um país sem his- tória era como um indivíduo sem biografia. Assim, copiando as tendências do nacionalismo na Europa, promovia-se competições em que se escolhia qual narrativa seria considerada como história oficial do Brasil. É importante destacar que a criação de “vultos históricos”, datas sele- cionadas para se celebrar e uma narrativa heroica e patriótica passa a ser a ocupação de histo- riadores profissionais como um componente fundamental na simbologia do estado-nacional. IMPORTANTE FIGURA 3 – O FARDO DO HOMEM BRANCO (1899) FONTE: <https://bit.ly/377EgdZ>. Acesso em: 15 mar. 2020. UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 8 O fardo do homem branco é uma charge do final do século XIX que retrata de forma critica o imperialismo europeu e norte-americano. Explicação da charge: escalando a montanha rumo à civilização, John Bull (Inglaterra) e Tio Sam (Estados Unidos) carregam nas costas o resto da humanidade não branca (africanos, latino-americanos,chineses, árabes, indígenas etc.) para ajudá-los a superar as “pedras” da ignorância, superstição, bar- bárie, opressão, brutalidade e vício, características naturais desses povos. INTERESSANTE FIGURA 4 – OS JUDEUS FONTE: <https://bit.ly/2UY51fs>. Acesso em: 15 mar. 2020. Os judeus é uma ilustração da propaganda nazista, na década de 1930, que busca desumanizar a figura do judeu junto à população alemã e com isso encorajar a dis- criminação e justificar a perseguição aos judeus. Tradução da frase na ilustração: “O espírito judeu corrói a saúde do povo alemão”. INTERESSANTE TÓPICO 1 — POVO 9 FIGURA 5 – SEGREGAÇÃO RACIAL FONTE: <https://bit.ly/374gNuq>. Acesso em: 15 mar. 2020. Segregação racial no Sul dos Estados Unidos, na década de 1940. A foto foi tirada na Rodoviária de Durham, na Carolina do Norte. A placa indica a sala de espera separada para negros. A segregação racial no Sul dos Estados Unidos só terminou, oficialmente, em 1965. INTERESSANTE 3 O USO POLÍTICO E SOCIAL CONTEMPORÂNEO DO CONCEITO DE “POVO” Na França, antes da Revolução Francesa, “povo” identificava membros do Ter- ceiro Estado que, por sua vez, incluía qualquer indivíduo que não pertencesse à nobreza formada por clérigos (Primeiro Estado) e nobres laicos (Segundo Estado). Entretanto, o Terceiro Estado na França pré-revolucionária, era formado por uma enorme de massa, (cerca de 96% da população francesa) de burgueses, trabalhadores urbanos e campone- ses. Como seria de se esperar, um espectro social tão diverso tinha identidade, anseios e objetivos muito diferentes. Fato, aliás, que fica evidente no desenrolar da Revolução em que as ideias radicais pleiteadas pelos grupos menos favorecidos, dentro do Terceiro Estado, são derrotadas pelas ideias conservadoras da burguesia que emerge triunfante. As mudanças sociais provocadas pelas Revoluções Francesa e Industrial e, mais tarde, na Era das Revoluções, no século XIX, como foi chamado o período por Eric Hobsbawm (1917-2012), revoluções ocorridas na América Latina e Europa, im- primem ao termo “povo” um caráter ideológico que o relaciona às massas do prole- tariado urbano e camponeses no meio rural. Também é importante destacar que, na- UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 10 quela altura, essa nova leitura do termo “povo” é inspirada por uma nova ideologia chamada marxismo, que era uma ideologia com pretensões revolucionárias concebi- da pelo intelectual alemão Karl Marx (1818-1883). Assim, a partir daquele momento, “povo” será também associado ao proletariado e entendido como uma categoria ou classe social em permanente oposição e conflito com a burguesia. Dessa maneira, “povo” adquire, em linhas gerais, o significado que conhecemos, com variações no emprego do termo, muitas vezes, ditada pela orientação ideológica, mas relacionada, geralmente, às classes subalternas ou segmentos pobres da população. Povão, povinho, povaréu, povo-miúdo, gentinha, arraia-miúda, povoléu, plebe, populacho, poviléu, ralé, gentiaga. São alguns adjetivos de uso popular, depreciativos, que associam “povo” às classes sociais subalternas. NOTA 4 ETNIA Na segunda metade do século XX, “etnia” surge como alternativa para “raça”, “nacionalidade”, “origem” e outros significados dependendo do contex- to. Em uma definição genérica etnicidade é o conjunto de características comuns a um grupo de pessoas, que as diferenciem de outro grupo. Geralmente, as diferen- ças incluem a língua, a cultura e uma origem comum. O termo “etnia” significa “povo”, em grego, e, na sua origem, foi usado para identificar “estrangeiros”. A partir da década de 1950, o termo é definitivamente adotado como abordagem científica. Sua principal vantagem, se comparado com “raça”, é com- binar uma bagagem cultural com laços de sangue. Assim, “etnia” possibilitava a sinergia entre um passado linguístico e uma origem biológica. Consequentemente, a flexibilidade conceitual do termo “etnia” possibili- tou que antropólogos, como o norueguês Fredrik Barth (1928-2016), na segunda metade do século XX, demonstrassem, por exemplo, o anacronismo do emprego de conceitos como “tribo” em sociedades não europeias. Ou outros termos aná- logos utilizados, no mesmo período, que refletiam o pensamento intelectual da época. Por isso, termos como “raça” e “tribo” pretendiam ser definitivos, mono- líticos, inflexíveis e preconceituosos nos estudos de sociedades não-europeias. No final do século XX e início do XXI, o termo “etnicidade” volta a ter popu- laridade baseado na teoria do filosofo francês contemporâneo Étienne Balibar (1942-) que a definiu como inteiramente fictícia. Balibar (1998) insiste que as nações não são “étnicas” e de que a própria noção de “origem étnica” é duvidosa. Ele sugere que é o nacionalismo, como ideologia, que torna nações etnicamente diversas em entidades 11 que compartilham uma cultura homogênea por um processo pelo qual estas nações passam a ser apresentadas como uma comunidade natural (BALIBAR, 1998). Essa abordagem crítica do conceito de estado-nação, busca evitar as armadilhas contidas nas definições etnobiológicas ou etnoreligiosas que, infelizmente, ainda dominam a ideologia do nacionalismo e suas formulações etnicistas e essencialistas mesmo após as experiências trágicas do nacionalismo radical na primeira metade do século XX. FIGURA 6 – ETNONACIONALISMO NA POLÍTICA FRANCESA FONTE: <https://bit.ly/3kZKvp9>. Acesso em: 5 maio 2020. A charge critica a declaração do presidente francês, Nicolas Sarkozy, que, em 2016, declarou que, independente da origem, todos os franceses, mesmo os imigrantes, deveriam incorporar a ideia de uma ancestralidade gaulesa. ATENCAO 12 FIGURA 7 – INTEGRALISMO FONTE: <https://glo.bo/39aR2eq>. Acesso em: 22 abr. 2020. O Integralismo foi uma forma de nacionalismo radical que surgiu no Brasil, in- fluenciado pelo fascismo e outras ideologias totalitárias europeias. O Integralismo surgiu após a Revolução de 1930, defendendo um nacionalismo antiliberal, antissocialista e xenófobo. NOTA FIGURA 8 – NACIONALISMO SUPREMACISTA “BRANCO” NOS EUA FONTE: <https://bit.ly/3lXD6Im>. Acesso em: 22 abr. 2020. 13 Os supremacistas brancos nos Estados Unidos defendem ideologias racistas, através de discursos de ódio contra minorias. ATENCAO O pensamento essencialista define-se por duas características: atribui a todos os membros de um grupo social, étnico, histórico ou racial, atributos que podem, com efei- to, encontrar-se, mais ou menos frequentemente, entre os membros desse grupo; explica esses atributos pela natureza do grupo e não pela situação social ou pelas condições de vida. Quando o grupo é visto com aspectos favoráveis estes passam a ser características deste grupo; quando o grupo é visto de maneira negativa, só os aspectos desfavoráveis contam. Assim, os indivíduos do grupo visto de maneira negativa, que por alguma razão, escapam deste estereótipo são considerados como exceções e atípicos. FONTE: ARON, R. Les désillusions du progrès. Paris: Calmann-Lévy, 1969, p. 86. IMPORTANTE No final do século XX e início do XXI, o nacionalismo etnobiológico e et- noreligioso parecia resistir às pressões de teorias, como destacamos no trabalho de Etienne Balibar (1998). A despeito da diversidade e particularidades de cada país, certos aspectos são comuns na estruturação de uma nação. Não obstante, a existência de uma origem étnica ou religiosa foi a ideologia do nacionalismo, a partir do século XIX, ancorada no ímpeto secularista que iria estabelecer os limi- tes do papel desempenhado pela religião nas nações-estado modernas. A partir da segunda metade do século XIX e por quase todo século XX, após in- tensa exposição, as ideologias de cunho laico e sob influência de intelectuais, tais como Auguste Comte, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber, o papel da religião nos círculos acadêmicos sofre um processo de marginalização (SAHLIYEH, 1990). A ideia é que a religião seria relegada, cada vez mais, a um papelsecundário e, eventualmente, desapareceria varrida pelos ventos da modernidade (NORRIS; INGLEHART, 2004). No entanto, o surgimento de movimentos religiosos, em escala global, nas décadas finais do século XX, após décadas de influência marcante de ideologias seculares, tais como, capitalismo, socialismo, liberalismo e comunismo, demons- tram que a religião, em suas várias esferas de manifestações, continua a desempe- nhar um papel fundamental na vida bilhões de seres humanos. 14 O surgimento, ou ressurgimento de identidades etnoreligiosas em diversas regiões do mundo, afetam, sem exceção, todas as religiões chamadas universais. Conflitos e tensões entre grupos etnoreligiosos distintos e, em alguns ca- sos, entre estes grupos e o Estado demonstraram a necessidade de se estudar o fenômeno religioso em um novo contexto histórico, porém, nem só de conflitos se caracterizou o revivalismo religioso contemporâneo. Grupos religiosos em sua forma tradicional ou em forma de novas estruturas sectárias tornam-se atores de peso na política e em sociedade com projetos de poder, ironicamente, colocados em prática via mecanismos disponibilizados pelo estado lai- co que, no passado, foram utilizados para alijar intuições religiosas do poder. • Etnonacionalismo é a forma de nacionalismo que se define em termos de etnicidade. O Países com políticas e práticas etnonacionalistas: Armênia, Bulgária, Croácia, Estônia, Fin- lândia, Alemanha, Grécia, Hungria, Israel, Itália, Malásia, Romênia, Rússia, Sérvia e Turquia. • Nacionalismo etnoreligioso é a simbiose entre nacionalismo e uma religião em particular. Esta conexão se baseia em duas premissas: na politização da religião e a influência na política. O Nacionalismo budista: Myanmar e Sri Lanka. O Nacionalismo cristão (igrejas evangélicas): Estados Unidos. O Nacionalismo católico: Polônia e Irlanda. O Nacionalismo cristão ortodoxo: Rússia. O Nacionalismo cristão maronita: Líbano. O Nacionalismo hindu: Índia. O Nacionalismo islâmico (sunita): Paquistão. O Nacionalismo judaico (sionismo): Israel. NOTA 5 RAÇA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL Theodore W. Allen (1919-2005), na década de 1960, publicou dois volumes de uma obra monumental intitulada A invenção da raça branca. Nessa obra está documen- tado como nos Estados Unidos se criou a categoria racial “branco” para explorar eco- nomicamente os africanos escravizados e para, mais tarde, controlar as nações não- -brancas (ALLEN, 1940). Portanto, brancos não existem; negros não existem. Assim como não existem, vermelhos, amarelos, pardos, azuis, roxos, púrpura ou pessoas de qualquer outra cor. As cores são produtos socialmente construídos, mas são constru- ções que resultaram em tragédias de consequências inimagináveis (DABASHI, 2017). Há mais de cem anos, o sociólogo americano W. E. B. Du Bois (1868-1963) se preocupava com o fato de “raça” estar sendo usada como uma explicação biológica para explicar diferenças sociais e culturais entre indivíduos e povos. Ele se manifes- 15 tou contra a ideia de "branco" e "preto" como grupos distintos, alegando que essas categorizações ignoravam o escopo da diversidade humana (DU BOIS, 2014). A ciência, mais tarde, confirmaria a teoria de Du Bois. Hoje, a tese domi- nante entre os cientistas afirma que raça é uma construção social sem fundamento biológico. E, no entanto, ainda encontramos estudos de genética, em revistas cien- tíficas, utilizando categorias como "branco" e "preto" como variáveis biológicas. De acordo com Pappas (2013), em um artigo publicado pela revista Science, quatro especialistas sugeriram que as categorias raciais são exemplos inadequados para explicar a diversidade genética e precisam ser eliminadas. Estes especialistas pediram às Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos EUA que reunissem um painel de especialistas nas ciências biológicas e sociais para encontrar maneiras de os pesquisadores se afastarem do conceito racial na pesquisa genética. Raça, portanto, é um conceito que consideramos monolítico demais cujo significado social que interfere no entendimento científico da diversidade genética humana. Para Michael Yudell (2014), professor de Saúde Pública na Universidade de Drexel, a pesquisa genética moderna está trabalhando com um paradoxo: raça é entendida como uma ferramenta útil para elucidar a diversidade genética humana, mas, por outro lado, a raça também se constitui como um marcador inadequado e impreciso para se estudar a relação entre ancestralidade e genética (YUDELL, 2014). Svante Pääbo (2014), biólogo e diretor do Instituto Max Planck de Antro- pologia Evolucionária, na Alemanha, e que trabalhou no genoma do Homem de Neandertal, afirma: O que o estudo de genomas completos de diferentes partes do mundo mostrou é que, mesmo entre a África e a Europa, por exemplo, não há uma única diferença genética absoluta, ou seja, nenhuma variante em que todos os africanos tenham uma variante e todos os europeus outra. Mes- mo quando a migração recente é desconsiderada. É tudo uma questão de diferenças na frequência com que diferentes variantes ocorrem em dife- rentes continentes e em diferentes regiões (PÄÄBO, 2014, p. 218). Teorias de diferenças genéticas entre pessoas de diferentes raças tiveram repercussões sociais e históricas e ainda ameaçam alimentar crenças racistas. Isto ficou demonstrado há dois anos quando vários cientistas se irritaram com a in- clusão de suas pesquisas no livro polêmico Uma herança problemática, de Nicholas Wade, publicado em 2014. No livro, Wade propõe que a seleção genética deu origem a comportamentos distintos entre diferentes populações. Em um artigo do jornal The New York Times, Allen (2014, s.p.) escreve: “Wade justapõe um relato incompleto e impreciso de nossa pesquisa de diferenças genéticas humanas com especulações de que a seleção natural recente levou a diferenças nos resultados dos testes de QI nas instituições políticas e no desenvolvimento econômico”. Michael Yudell (2014, p. 84) observa que fazer suposições baseadas em aspectos raciais pode também ser perigoso na Medicina: “Se você fizer previsões 16 clínicas com base na raça de alguém estará na maior parte das vezes errado Yu- dell e seus colegas usaram o exemplo da fibrose cística, que é subdiagnosticada em pessoas de ascendência africana porque é considerada uma doença "branca”. Mindy Fullilove (1999), psiquiatra da Universidade de Columbia, acha que as mudanças propostas na abordagem do conceito de raça são "extremamente ne- cessárias". Fullilove (1999) observa que, de acordo com algumas leis no Sul do Esta- dos Unidos, as pessoas que tenham apenas um ancestral negro entre outros trinta e dois ancestrais são consideradas “negras”. O problema dessa legislação anacrônica é que seus 31 ancestrais brancos também são importantes para influenciar herança genética no que diz respeito a sua saúde. Fullilove (1999) acredita que as mudanças propostas na abordagem do conceito de “raça” são fundamentais que se tenha uma ciência melhor (GANNON, 2016). Contudo, fica a pergunta de que outras variáveis poderiam ser usadas se o conceito racial fosse descartado. De acordo com Pääbo (2014), a geografia poderia ser um substituto me- lhor, em regiões como a Europa, para se estudar populações a partir de uma perspectiva genética. No entanto, ele acrescenta que, na América do Norte, onde a maioria da população, nos últimos trezentos anos, vem de diferentes partes do mundo, categorias étnicas, como "afro-americanos" ou "europeu-americanos", ainda podem funcionar como abordagem válida para se analisar a origem da an- cestralidade de uma determinada pessoa (PÄÄBO, 2014). Yudell (2014) concorda, também, que os cientistas precisam ser mais específi- cos em sua linguagem, talvez, usando termos como "ancestralidade" ou "população" que possam refletir com mais precisão a relação entre os seres humanos e seus genes, tanto no nível individual quanto no coletivo. Os pesquisadores também reconhecemque, em algumas áreas, o conceito de “raça”, como uma construção, ainda pode ser útil como uma variável política e social, mas não biológica (YUDELL, 2014). FIGURA 9 – RAÇA, UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL FONTE: <https://bit.ly/2J5Aj1p>. Acesso em: 1º mar. 2020. 17 Povos sem estado. A simbiose entre povos e estados-nação (países) é um fenômeno europeu da transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea (a partir do século XVIII) e este modelo foi exportado para o mundo através do colonialismo. Ape- sar do senso comum pensar o contrário, apenas 3% dos grupos étnicos no mundo tem seu próprio país. A maioria está distribuído em um ou mais países. Portanto, povos sem estado são a maioria em nosso mundo. Os 10 povos mais numerosos, sem estado (em milhões): • Curdos (30 – 45) – Iraque, Síria e Irã. • Iorubás (35) – Nigéria, Benin e Togo. • Igbo (30) – Nigéria. • Occitanos (16) – França, Espanha e Itália. • Assam (15) – Índia. • Uigur (15) – China, Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão e Quirguistão. • Palestinos (13) – Margem Ocidental, Faixa de Gaza, Israel, Síria e Líbano. • Zulus (12.2) – África do Sul, Zimbábue, Lesoto e Suazilândia. • Bávaros (12,5) – Alemanha. • Balúchis (10) – Paquistão, Irã e Afeganistão. IMPORTANTE 18 Neste tópico, você aprendeu que: RESUMO DO TÓPICO 1 • “Povo” é um conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e hábitos idênticos, afinidade de interesses, uma história e tradições comuns. • Para entender melhor o conceito de “povo” é preciso entender sua evolução no tempo. • Até o século XVIII, o termo “povo” era usado para identificar grupos com características homogêneas, como por exemplo, tribos, pequenos estados e comunidades religiosas. • Nos séculos XVIII e XIX, com o surgimento dos estados-nações, o termo “povo” adquire sua definição moderna. • Na segunda metade do século XIX, o termo “povo” começa a ser usado como alternativa ao termo “raça”. • Etnicidade, em uma definição genérica, é o conjunto de características comuns a um grupo de pessoas, que as diferenciem de outro grupo. • Etnicidade foi, definitivamente, adotada como abordagem científica, a partir da década de 1950. A principal vantagem do termo, se comparado com raça, é combinar uma bagagem cultural com laços de sangue. • A flexibilidade conceitual do termo “etnia”, no entanto, possibilitou que antropó- logos, como Fredrik Barth, demonstrassem em sociedades não europeias o anacro- nismo de conceitos como “tribo”, que por sua vez, como outros termos utilizados na segunda metade do século XIX, refletia o pensamento intelectual da época. • Étienne Balibar (1998) insistiu no fato de que as nações não são “étnicas” e de que a própria noção de sua “origem étnica” é duvidosa. É o nacionalismo que torna nações etnicamente diversas em entidades que compartilham uma cultura homogênea em um processo pelo qual elas passam a ser apresentadas como uma comunidade natural. 19 1 Etnia é uma categoria de análise, que apesar de conhecida já no século XIX, começa a ser usada como abordagem definitiva após a década de 1950, principalmente, como consequência da relação do termo “raça” com ideias racistas. Sobre a origem da palavra “etnia” qual é seu significado original? a) ( ) Raça. b) ( ) Inimigo. c) ( ) Estrangeiro. d) ( ) Parente. 2 “Povos sem estado” é uma realidade bem mais comum do se pode imagi- nar pelo senso comum. Espalhados pelo mundo, são milhões de pessoas, de determinados grupos étnicos, que vivem em estados-nações como mi- norias, embora pleiteiem uma nação geograficamente definida para seus respectivos grupos étnicos. Assinale, a seguir, a alternativa que CORRETA- MENTE lista os povos sem estado no mundo atual. a) ( ) Búlgaros, armênios e chechenos. b) ( ) Curdos, igbos e palestinos. c) ( ) Zulus, azerbaijanos e iorubás. d) ( ) Uigures, cazaques e berberes. 3 O termo “raça” surge em um contexto histórico que favorece interpretações deterministas e racistas baseadas em teorias pseudocientíficas em voga na época. Levando-se em consideração este quadro, em que contexto histórico aparece o uso do termo “raça”? a) ( ) No contexto de descolonização do mundo pós II Guerra Mundial. b) ( ) No contexto atual após a Guerra Fria. c) ( ) No contexto das Grandes Navegações no século XV. d) ( ) No contexto do cientificismo e imperialismo da 2ª metade do século XIX. AUTOATIVIDADE 20 21 TÓPICO 2 — UNIDADE 1 CULTURA 1 INTRODUÇÃO O termo “cultura” tem origem em “cultivar” relacionado à agricultura e por séculos seu significado foi produzir, desenvolver, por exemplo, cultivar trigo, cultivar artes ou mesmo cultura de bactéria. Cicero, orador romano, foi o pioneiro no emprego do termo como metáfora, com origem na agricultura, para “a forma- ção de uma alma filosófica entendido como o estágio mais avançado do desenvol- vimento humano” (LIMA, 2002, p. 14). Samuel Pufendorf (1632-1694), jurista alemão no século XVII, adotou a me- táfora de Cícero em um contexto moderno com significado semelhante, mas des- cartando o ideal original de que filosofia era o aperfeiçoamento natural do homem. Pufendorf e outros que o seguiram, passaram a entender “cultura” como: “relacio- nada com tudo que faz o ser humano superar seu estágio original de barbarismo e com habilidade se tornar um ser humano completo” (VELKLEY, 2002, p. 15). Em meados do século XVIII, o termo “cultura” começa a ser usado como sinônimo de “civilização” Civilizado passa a significar ser culto ou possuidor de “boas maneiras” e saber apreciar arte, música e literatura. Portanto, naquela altura, “cultura” adquire seu o significado contemporâneo. No entanto, esse uso do conceito de cultura é individual, pois, coletivamente, com a Revolução Indus- trial, tudo associado com “mecânica” passa a ser o oposto de “cultural”. Isso deu início à separação entre atributos individuais e de grupos, e do que é “espiritual e cultural” e do que é “mecânico e material”. Assim, o conceito de “civilização” é associado a esses dois aspectos tão distintos, e cultura, a partir do século XVIII, é entendida como um processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético (WILLIAMS, 1983). O filósofo alemão, Immanuel Kant (1724-1804), no século XVII, elaborou uma definição individualista de Iluminismo semelhante ao conceito Bildung. O Iluminismo assim libertaria o homem de sua imaturidade atávica e falta de cora- gem de pensar independentemente. Para combater o que Kant chamava covardia, ele encorajava o homem a ousar para ser sábio. Em resposta a Kant, outros intelectuais alemães, como Johann Gottfried Herder (1744-1803), defendiam que a criatividade humana, mesmo sendo imprevisível e diversificada, era tão importante como a racionali- 22 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO dade. Ademais, Herder propunha uma forma coletiva de Bildung que ele definia como a “totalidade das experiências de um povo que formavam uma identidade coletiva coerente e um sentimento de destino comum" (FORSTER, 2018, p. 253). Em 1795, Wilhelm von Humboldt (1767-835), um linguista e filósofo prussiano, sugeriu uma antropologia que pudesse sintetizar as ideias de Kant e Herder. Portan- to, na era do Romantismo, intelectuais alemães, particularmente os envolvidos com os movimentos nacionalistas nos diversos estados germânicos e entre as minorias do Império Austro-Húngaro, desenvolvem o conceito de Weltanschauung (cosmovisão). Segundo esta escola de pensamento, cada grupo étnico possui uma cosmovisão única e distinta de outros grupos. Apesar de contemplar certa diversidade cultural, a cosmo- visão ainda separava os grupos humanos entre “civilizados” e “primitivos”. Mais tarde, no século XIX, o inglês E. B. Tylor (1832-1917), fundador da Antropologia Cultural, definia cultura como “uma totalidade complexa que inclui, conhecimento, crença, artes, ética, leis, costumes e outras características e hábitos adquiridos pelo ser humano com membro de uma sociedade” (TYLOR, 1994).Ainda na metade do século XIX, Adolf Bastian, antropólogo alemão, apre- sentava sua teoria da “unidade psíquica da humanidade” na qual, por meio de comparação cientifica de todas sociedades, revela que cosmovisões diferentes possuem os mesmos elementos básicos. Para Bastian, todas sociedades huma- nas compartilhavam um sistema comum de “ideias elementares” (Elementarge- danken) e culturas populares diferentes (Völkergedanken) eram modificações locais de ideias elementares. A teoria de Bastian abriu caminho para uma compreensão contemporânea de cultura que viria, no começo do século XX no trabalho seminal do antropólogo Franz Boas, seu discípulo mais ilustre. 2 RELATIVISMO CULTURAL No início do século XX, a teoria do Relativismo Cultural de Franz Boas (1858- 1942) antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos, foi uma verdadeira revolu- ção acadêmica na área de cultura. Boas rompe com os paradigmas vigentes. No final do século XIX, o cientificismo dominava todas as áreas de conhecimento. O cientifi- cismo, nas áreas das chamadas Ciências Humanas e Sociais, se baseava em teorias racistas que pressupunham a existência de uma rígida hierarquia, inclusive cultural, que classificava diferentes grupos humanos em “superiores” e “inferiores”. A ortogêneses, por exemplo, sugeria que todas as sociedades progrediam, de forma linear, através dos mesmos estágios e de uma mesma sequência. Para os evolucionistas, apesar dos povos Inuit (esquimós) e alemães viverem na mes- ma época, os primeiros se encontravam em um estágio inicial da evolução e os últimos em um estado avançado. Porém, Boas (1982) percebe que essa teoria re- plicava o equívoco comumente cometido na teoria de Darwin. Este teria sugerido que os seres humanos descendiam dos chimpanzés. Na verdade, porém, Darwin sugeriu que chimpanzés e humanos evoluíram paralelamente. Para Darwin era TÓPICO 2 — CULTURA 23 fundamental atentar aos processos pelos quais uma espécie se transforma em ou- tra; portanto, “adaptação” é a chave que explica a relação entre as espécies e seu meio ambiente e seleção natural como mecanismo de mudança. Outro aspecto extremamente importante no trabalho de Boas foi, analitica- mente, substituir a categoria epistemologicamente rígida “raça” pela flexibilidade da categoria “cultura”. O antropólogo teuto-americano, de origem judaica, ao lon- go de sua carreira acadêmica combateu vigorosamente o paradigma racista que inspiraria a ideologia nazifascista e formou uma nova geração de intelectuais que dariam continuidade a sua obra, entre eles, o brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987). Assim, no final do século XIX e, especialmente, no século XX, o conceito de cultura, gradualmente, se desvincula do caráter hierarquizante, exclusivista e associado a um ideal civilizatório eurocêntrico. Portanto, cultura assume um caráter universal, múltiplo, plural e desprovido de hierarquias. Isto passa a significar, ao contrário do que era preconizado pelos paradigmas cientificistas anteriores, que a cultura dos Inui não era nem melhor nem pior que a dos alemães, mas era apenas diferente. Assim, segundo Boas (1982), não existiam cultura e sim culturas. FIGURA 10 – RELATIVISMO CULTURAL FONTE: <https://bit.ly/2HxUHI3>. Acesso em: 31 maio 2020. Relativismo cultural inverso: o branco como exótico para não brancos. NOTA 24 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 3 CULTURA DE MASSA E A ESCOLA DE FRANKFURT NO SÉCULO XX A "Escola de Frankfurt" refere-se a um grupo de teóricos alemães, muitos radicados, posteriormente, nos Estados Unidos, e que elaboraram teorias críticas às mudanças ocorridas nas sociedades capitalistas ocidentais desde da elaboração da teoria clássica de Karl Marx. Trabalhando no Institut für Sozialforschung, em Frank- furt, Alemanha, no final da década de 1920 e início da década de 1930, teóricos como Max Horkheimer, T. W. Adorno, Herbert Marcuse, Leo Lowenthal e Erich Fromm produziram alguns dos primeiros relatos da teoria social crítica da impor- tância da cultura de massa e da comunicação na reprodução e dominação sociais. A Escola de Frankfurt também gerou um dos primeiros modelos de estu- dos culturais críticos que analisaram os processos de produção cultural e econo- mia política, a política de textos culturais e a recepção do público e o uso de artefa- tos culturais (KELLNER, 1990). Deixando a Alemanha nazista e se instalando nos Estados Unidos, a Escola de Frankfurt observou, em primeira mão, o surgimento de uma cultura de mídia envolvendo cinema, música popular, rádio, televisão e outras formas de cultura de massa (WIGGERSHAUS, 1994). Nos Estados Unidos, onde se exilaram por causa do nazismo, a produção de mídia era, em geral, uma forma de entretenimento comercial controlado por grandes corporações. Max Horkheimer e T.W. Adorno, dois de seus principais teóricos, desen- volveram, nos Estados Unidos, uma análise da "indústria cultural" para chamar a atenção para a industrialização e comercialização da cultura sob as relações capitalistas de produção. Este quadro, nos Estados Unidos, com pouco apoio es- tatal às indústrias de cinema ou televisão e onde surgiu uma cultura de massa altamente comercial, se tornou um modelo das sociedades capitalistas e um foco de estudos culturais críticos. Durante a década de 1930, a Escola de Frankfurt desenvolveu uma abor- dagem crítica e transdisciplinar dos estudos culturais e de comunicação, com- binando economia política, análise textual e análise dos efeitos sociais e ideoló- gicos da cultura de massa. Foi criado, assim, o conceito de "indústria cultural" para analisar o processo de industrialização da cultura produzida em massa e os imperativos comerciais que impulsionavam o sistema. Os teóricos da Escola de Frankfurt examinam todos os artefatos culturais produzidos em larga escala que possuem as mesmas características de outros produtos produzidos em escala industrial, tais como, padronização, comercialização e massificação. As indústrias culturais tinham a função específica de prover a sustentação ideológica das sociedades capitalistas e de integrar indivíduos em seu modo de vida. Dessa maneira a os intelectuais da Escola de Frankfurt produziram análises como, por exemplo, as de Adorno sobre música popular, televisão, astrologia e discursos fascistas; os estudos, de Lowenthal, sobre literatura e revistas populares; e os estudos de novelas de rádio, perspectivas e críticas, de Herzog. Para os teóricos TÓPICO 2 — CULTURA 25 da Escola de Frankfurt, a cultura de massa e a mídia estão no centro da atividade de lazer, são importantes agentes da socialização, mediadores da realidade política e, portanto, devem ser vistas como grandes instituições das sociedades contempo- râneas, com diversos efeitos econômicos, políticos, culturais e sociais. Perseguidos pelo totalitarismo europeu, a Escola de Frankfurt experimentou, em primeira mão, como os nazistas usavam os instrumentos da cultura de massa para produzir submissão da cultura à ideologia fascista. Enquanto, exilados nos Estados Unidos, os membros da Escola de Frankfurt passaram a acreditar que a "cultura po- pular" norte-americana também era altamente ideológica e trabalhava para promover os interesses do capitalismo americano. Controladas por corporações gigantescas, as indústrias culturais eram organizadas de acordo com os princípios da produção em massa, que resultava na criação de um sistema cultural altamente comercial que, por sua vez, vendia os valores, estilos de vida e instituições "do estilo vida americano. FIGURA 11 – O MODO DE VIDA AMERICANO FONTE: <https://bit.ly/3m6ahtw>. Acesso em: 31 maio 2020. Justaposição de imagens mostrando o contraste entre a propaganda do modo de vida americano (o padrão de vida mais elevado do mundo) e a fila de desempregados negros. INTERESSANTE Walter Benjamin (1892-1940), um intelectual peculiar, que se associou livremen- te à Escola de Frankfurt, em Paris, na década de 1930, descreveu aspectosdas novas tecnologias de produção cultural, como fotografia, cinema e rádio. Em seu livro, A obra de arte na era da reprodução mecânica, observou como os novos meios de comunicação 26 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO estavam substituindo formas mais antigas de cultura, através das quais a reprodução em massa de fotografias, filmes, gravações e publicações, substituía a originalidade e a "aura" da obra de arte. Além disso, Benjamin (1996) acreditava que o fluxo de imagens criadas pelo cinema produzia subjetividades capazes de compreender a turbulência da experiência moderna nas sociedades urbanizadas e industrializadas. Walter Benjamin (1996) desejava promover uma política cultural e de mídia ra- dical, preocupada com a criação de culturas de oposição alternativas. No entanto, ele reconheceu que mídias como o filme poderiam ter efeitos conservadores. Embora ele considerasse progressivo que as obras produzidas em massa perdessem sua "aura", sua força mágica e abrissem artefatos culturais para discussões políticas e críticas, ele reco- nheceu que o filme poderia criar um novo tipo de magia ideológica através do culto a celebridades de certas estrelas ou imagens através da tecnologia do cinema. Benjamin foi, portanto, um dos primeiros críticos culturais radicais a examinar cuidadosamente a for- ma e a tecnologia da cultura da mídia na avaliação de sua natureza e efeitos complexos. Dando continuidade à crítica da indústria cultural, Max Horkheimer e T.W. Adorno escrevem a obra Dialectic of enlightenment (Dialética do iluminismo), que aparece pela primeira vez em 1948, e traduzida para o inglês em 1972. Eles argumentavam que o sistema de produção cultural era dominado por filmes, ra- diodifusão, jornais, e revistas, era controlado por imperativos comerciais e de pu- blicidade e servia para criar subserviência ao sistema de capitalismo de consumo. Embora os críticos posteriores tenham sugerido que esta abordagem exa- gera o poder manipulador do sistema de produção cultural e, além disso, era re- dutiva e elitista, o trabalho de Horkheimer e Adorno surge como uma alternativa crítica significativa a estudos que subestimam a maneira como as indústrias de mídia exercem poder sobre o público e ajudam a produzir pensamentos e com- portamentos compatíveis com a sociedade existente. A Escola de Frankfurt também contribui na elaboração de uma perspec- tiva histórica da transição da cultura tradicional e do modernismo nas artes para uma mídia produzida em massa para uma sociedade de consumo. Em seu livro inovador A transformação estrutural da esfera pública, Jürgen Habermas (1929-) historiciza ainda mais a análise de Adorno e Horkheimer da indústria cultural. Fornecendo antecedentes históricos para o triunfo da indústria cultural, Habermas observa como a sociedade burguesa nos finais dos séculos XVIII e XIX foi marcada pelo surgimento de uma “esfera pública”. Esta se situava entre a sociedade civil e o Estado e mediava interesses públicos e privados. Pela primeira vez na História, indivíduos e grupos passaram a moldar a opinião pública, dando expressão direta às suas necessidades e interesses e influenciando a política. A esfera pública burguesa tornou possível formar um domínio da opinião pública que se opunha ao poder do Estado e aos interesses poderosos que estavam começando a moldar a sociedade burguesa. TÓPICO 2 — CULTURA 27 Habermas observa uma transição da esfera pública liberal que se originou no Iluminismo e na Revolução Americana e Francesa para uma esfera pública domina- da pela mídia no estágio atual do que ele chama de capitalismo do estado de bem- -estar social e democracia de massa. Essa transformação histórica está fundamentada na análise de Horkheimer e Adorno da indústria cultural, na qual corporações as- sumiram a esfera pública e a transformaram de um local de debate racional em um consumo de manipulação e passividade. Nessa transformação, a "opinião pública" muda do consenso racional emergente do debate, discussão e reflexão para a opinião fabricada de pesquisas ou especialistas em mídia. Para Habermas, a interconexão entre a esfera do debate público e a participação individual foi comprometida e trans- formada em um domínio de manipulação política e espetáculo, no qual, cidadãos- -consumidores ingerem e absorvem passivamente entretenimento e informação. Os "cidadãos" tornam-se espectadores de apresentações e discursos da mídia que arbitram a discussão pública e reduzem seu público a objetos de notícias, infor- mações e assuntos públicos. A tese da indústria cultural descreveu tanto a produção de produtos culturais massificados quanto as subjetividades homogeneizadas. A cultura de massa da Escola de Frankfurt produziu desejos, sonhos, esperanças, medos e anseios, além de um desejo sem fim de produtos de con- sumo. A indústria da cultura produzia consumidores culturais que consumiam seus produtos e estavam em conformidade com os ditames e os comportamentos da sociedade existente. E, no entanto, como Walter Benjamin (1996) apontou, a indústria cultural também produz consumidores racionais e críticos capazes de dissecar e discriminar entre textos e performances culturais, da mesma forma que os fãs de esportes aprendem a analisar e criticar eventos esportivos. Em retrospecto, pode-se ver a escola de Frankfurt funcionar como arti- culação de uma teoria do estágio do capitalismo de estado e monopólio que se tornou dominante na década de 1930. Era uma era de grandes organizações, te- orizadas anteriormente pelo marxista austríaco, Rudolf Hilferding (1877-1941), como "capitalismo organizado", em que o Estado e as grandes corporações geren- ciavam a economia e as quais os indivíduos se submetiam ao controle estatal e corporativo (HILFERDING, 2006). Esse período é frequentemente descrito como "fordismo" para designar o sistema de produção em massa e o regime de homogeneização do capital que dese- java produzir desejos, gostos e comportamentos em massa. Foi, portanto, uma era de produção e consumo em massa caracterizada pela uniformidade e homogenei- dade de necessidades, pensamento e comportamento, produzindo uma sociedade de massa e o que a escola de Frankfurt descreveu como "o fim do indivíduo". Certamente, a cultura da mídia nunca foi tão massificada e homogênea como no modelo da escola de Frankfurt e pode-se argumentar que o modelo foi falho mesmo durante seu tempo de origem e influência e que outros modelos eram preferíveis, como os de Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Ernst Bloch e outros da geração Weimar e, posteriormente, estudos culturais britânicos. 28 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO No entanto, o modelo escolar, original de Frankfurt, da indústria cultural arti- culou os importantes papéis sociais da cultura da mídia durante um regime específico de capital e forneceu um modelo, ainda de uso, de uma cultura altamente comercial e tecnologicamente avançada que atende às necessidades dos interesses corporativos de- sempenha um papel importante na reprodução ideológica e na cultura de indivíduos no sistema dominante de necessidades, pensamentos e comportamento. 4 MARXISMO CULTURAL E AS GUERRAS CULTURAIS NA ATUALIDADE Anders Breivik, terrorista norueguês, foi condenado por setenta e sete assassinatos cometidos em julho de 2011. Ele é um dos muitos afiliados à extre- ma-direita que acreditam em um esforço conjunto de uma elite de "marxistas culturais" para destruir a moralidade e a civilização ocidentais. Por certo, existe um fenômeno (ou um conjunto de fenômenos) que possa ser rotulado de "marxismo cultural". No entanto, o marxismo cultural, no sentido acadêmico, tem apenas uma pequena semelhança com a grande ideologia conspi- ratória e “destruidora de civilizações” descrita por Breivik e outros. Para complicar ainda mais a questão, o termo “marxismo cultural”, quan- do usado informalmente, muitas vezes parece se referir a nada mais do que crí- ticas culturaisde esquerda. Claramente, isso acontece no meio acadêmico e em alguns cantos da internet. No entanto, não é óbvio porque a crítica cultural de esquerda deve, por si só, ser considerada algo ruim. Nada disso, no entanto, se qualifica como uma expressão do marxismo cultural. Quando, em certos círculos, as pessoas reclamam do "marxismo cultural", a ênfase parece estar em algo mais específico. Eles estão pensando, talvez, em um tipo de autoritarismo cultural de esquerda: uma tendência a criticar filmes, videogames e outros produtos culturais de uma maneira muito severa que implica na necessi- dade de censura do governo. Além disso, pode, pelo menos, implicar a necessidade de policiamento social agressivo e um ambiente de constrangimento público. Novamente, é possível que esse tipo de autoritarismo de esquerda seja um fenômeno genuíno. É comum em certas áreas da academia e em outros lu- gares, incluindo algumas redes de blogueiros ou jornalistas. Isso pode ser algo de conotação negativa, pelo menos até certo ponto, mas não há necessariamente algo marxista nisso. Em parte, pode representar uma racionalização, no jargão político, de uma aversão a representações de violência e manifestações explícitas de sexualidade. Contudo, tem muito pouco a ver com a subversão de valores no nível da civilização descrita no manifesto do terrorista de Breivik. De fato, muito envolve a resistência a elementos da cultura popular que são imorais pelos padrões tradicionais. 29 Certamente poderíamos perceber uma tendência autoritária, por exem- plo, nas campanhas de consumidores mais conservadores para restringir a co- mercialização de jogos com o Grand Theft Auto V. Porém, duvidamos que a hos- tilidade de esquerda ao GTA V, pelas representações denegrindo as mulheres, seja explicada apenas pelo marxismo cultural. Existem, por certo, razões para a hostilidade baseada em preocupações mais comuns a respeito da violência (espe- cialmente a violência sexual) em nossa mídia de entretenimento. Assim, parece realmente haver algo parecido com uma guerra cultural en- tre pessoas consideradas “autoritárias culturais” versus outras que poderiam ser chamadas de “libertárias culturais”. Até certo ponto, a guerra cultural do século XXI atravessa as classificações políticas/econômicas de esquerda e direita. Mesmo que alguém se alinhe, em geral, com os “libertários culturais”, não significa que, em determinados casos, não se possa discordar deles. O mesmo prin- cípio se aplica aos “autoritários culturais”. Talvez, ao invés de “marxismo cultural” uma expressão diferente possa ser empregada para definir intervenções cultural- mente autoritárias para se tentar policiar arte e cultura. De qualquer maneira, nada disso nos leva a aceitar a “grande narrativa” conspiratória do terrorista de Breivik. Portanto, pouco ou nada existe para se justificar o termo "marxismo cultu- ral". No limite, pode haver uma mentalidade de autoritarismo cultural de esquer- da que tem pouco a ver com Marx e, ironicamente, tem muito a ver com a defesa dos valores tradicionais. Há também, note-se, mentalidades culturalmente auto- ritárias associadas à direita política. Estes tendem a ser de direta e abertamente protetores dos valores e atitudes cristãos tradicionais. O termo "marxismo cultural" está em circulação há mais de quarenta anos. Seu significado permanece um tanto obscuro e contestado, mas há, pelo menos, um certo consenso no seu entendimento. Embora o termo seja frequentemente aplicado pejorativamente, ele tem um significado mais acadêmico que se conecta à virada cultural dentro do marxismo ocidental, iniciado na década de 1920 e, especialmente, após a Segunda Guerra Mundial. Essa mudança do comunismo no estilo soviético encontrou popularidade no final da década de 1950 com as críticas de esquerda à URSS e a própria denúncia de Nikita Khrushchev contra seu antecessor, Joseph Stalin. Posteriormente, cresceu cada vez mais com o desenvolvimento de estudos culturais como disciplina acadêmica. O cientista político Richard R. Weiner (1981, p. 117) escreve: Em resposta a uma série de problemas que os movimentos trabalhistas, nas sociedades industriais avançadas, não foram capazes de resolver, teo- ricamente ou na prática, surgiram nas andanças dos movimentos sociais e políticos nas décadas de 1960 e 1970, a perspectiva culturalmente orientada. 30 Weiner (1981) acrescenta que esta perspectiva teria realmente começado em 1956 com uma série de eventos que alienaram os pensadores ocidentais do comunismo ao estilo soviético, principalmente, a invasão soviética na Hungria. No entanto, Weiner (1981) atribui o termo atual "marxismo cultural" a Trent Schroyer, no livro A crítica da dominação: as origens e desenvolvimento de ume teoria crítica, publicado em 1973. O uso do termo "marxismo cultural" na obra de Schroye é provavelmente o mais antigo que se pode encontrar e ele o relaciona especificamente ao que ele en- tende como uma "teoria da crise" empregada pelos intelectuais marxistas da Escola de Frankfurt. Ele também se refere a outros teóricos, que ele pensa, compartilham a “teoria da crise”, como György Lukács (1885-1971) e Henri Lefebvre (1901-1991). Podemos também concluir que o termo "marxismo cultural" tem uma va- riedade de usos acadêmicos, ideológicos e outros mais populares. É empregado por ideólogos de extrema direita, como Breivik, em teorias conspiratórias que têm pouca credibilidade e é usado popularmente de maneiras que mostram pou- ca compreensão de sua história ou do seu significado original. No entanto, o termo também tem sido útil para os estudiosos conven- cionais que tendem a ser marxistas ou simpatizantes do pensamento marxista. Portanto, não se pode propor que o termo "marxismo cultural" seja simplesmente eliminado, assumindo que isso fosse possível. FIGURA 12 – CARTOON ANTISSEMITA ATRIBUINDO A ORIGEM DO MARXISMO CULTURAL A UMA CONSPIRAÇÃO JUDAICA Tradução: “E para onde o próximo degrau nos levará?” Os degraus semitas do Marxismo Cultural. FONTE: <https://bit.ly/33gy1n9>. Acesso em: 1º jul. 2020. 31 FIGURA 13 – CARTAZ DE PROPAGANDA ELEITORAL NAZISTA, EM 1932 Tradução: O marxismo é o anjo da guarda do capitalismo. Vote nos nacionais-socialistas. FONTE: <https://bit.ly/3fyQrEO>. Acesso em: 1º jul. 2020. Sob a iniciativa de Felix J. Weil, filho de um negociante de cereais que fizera for- tuna na Argentina, foi organizada a “Primeira Semana de Trabalho Marxista” que tinha como prerrogativa lançar a noção de um marxismo verdadeiro e puro. A partir deste evento nasceu a ideia de criar um instituto permanente na condição de órgão independente de investiga- ção. Este instituto foi estabelecido com um donativo de Herman Weil (pai de Felix) e de um contrato com o Ministério da Educação que frisava a exigência de que o diretor do instituto deveria ser titular de uma cadeira na universidade. O Instituto de Pesquisa Social (como foi denominado) e que deveria se chamar Instituto para o Marxismo, foi criado oficialmente por um decreto do Ministério da Educação da República de Weimar (Alemanha) em 1923. Quanto à terminologia, observa-se uma tradicional problemática, pois “escola” notifica um corpo intelectual cujos membros se concentram em uma mesma linha de pensamento, no caso da Teoria Crítica, de uma mesma avaliação crítica social da política vigente, o que não se pode determinar verdadeiramente quando observadas as teorias de seus membros. A Teoria Crítica tornou-se legítima como tal após a publicação da obra “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” de Max Horkheimer, na Revista de Pesquisa Social entre 1932 e 1942. É sabido que Horkheimer foi o principal responsável pela consolidação da escola, não somente por sua posição intelectual e política no âmbito da Universidade de Frankfurt, mas, sobretudo, por sua situação financeira que lhe garantiu grandes realizações. FONTE: <https://bit.ly/3fzwz4b>. Acesso em: 19 out. 2020. DICAS 32 FIGURA 14 – PRÉDIO ORIGINAL DA “ESCOLADE FRANKFURT” NA ALEMANHA FONTE: <https://bit.ly/33d50J7>. Acesso em: 19 out. 2020. 5 CULTURA NO MUNDO PÓS-COLONIAL Os impérios coloniais conquistados, pelos europeus na segunda metade do século XIX começam a ruir rapidamente após a II Guerra Mundial. Em um novo cenário social, político e cultural, o conceito “cultura”, antes usado para promover e impor os padrões visões de mundo dos conquistadores europeus, é transformado em uma arma poderosa para libertar e forjar identidades dos povos recém-independentes. No aspecto cultural, categorias criadas pelo imperialismo europeu, tais como “africanos”, “asiáticos”, “orientais”, pouco ou nada significa- vam. Tampouco estas invenções simplificadoras, produtos do olhar eurocêntrico, funcionavam como categorias analíticas válidas na esfera acadêmica e intelectual. Intelectuais como Frantz Fanon e Edward Said, entre outros, com destaque para o último, criticaram, duramente, os efeitos deletérios do colonialismo europeu e suas consequências na criação e imposição de um discurso hegemônico e homo- geneizante binário do “nós” e “eles”. Para Said (2014), “poder” e “conhecimento” eram componentes inseparáveis na relação em que os “ocidentais” reclamavam possuir “conhecimento” do “Oriente”. Portanto, a imposição de tal conhecimento, permitiu aos europeus renomear, redefinir e controlar os povos “orientais” (SAID, 2014). Porém, o espectro epistemológico da Teoria Pós-Colonial vai além dos povos submetidos ao imperialismo e abrange os grupos subalternos marginalizados em qualquer sociedade. Dessa maneira, indígenas, mulheres, grupos religiosos, comu- nidades LGBT, entre outros, também são objetos de análise e preocupação de inte- lectuais que estudam cultura a partir da Teoria Pós-colonial. 33 Na relação a seguir, há alguns termos, conceitos e categorias chaves na Teoria Pós-colonial, com suas respectivas definições: • Alteridade: natureza ou condição do que é outro, do que é diferente. • Diáspora: emigração forçada ou incentivada de populações de sua terra-natal. • Etnicidade: uma fusão de características compartilhadas por um grupo, tais como valores, crenças, normas, hábitos, experiências, memorias, afiliações relacionadas a uma identidade. • Exotismo: é o processo pelo qual algo relacionado a uma cultura estrangeira torna-se objeto de curiosidade quando comparada com a cultura do colonizador. • Hegemonia: é poder de as elites convencerem outras classes sociais que seus interes- ses são os interesses de todos. Geralmente, por meio de controle político e social, mas também por meio do controle da educação e da mídia. • Hibridismo: formas transculturais que surgem de trocas culturais. Hibridismos podem ser sociais, políticos, linguísticos, religiosos, entre outros. • Crioulização: cultura distinta que surge como consequência da miscigenação étnica ao longo do tempo. • Identidade: a maneira como o indivíduo ou grupo se autodefine. Envolve também essencialismo e alteridade. • Ideologia: sistema de valores, crenças ou ideias compartilhadas por um grupo social. • Metanarrativa: podem ser compreendidas como explicações gerais, amplas e univer- salizantes do mundo e da sociedade na qual vivemos. • Mimetismo: meio pelo qual o colonizado se adapta a cultura (língua, roupa, maneiras). Tal processo, porém, implica em mudanças e adaptações importantes que podem dar origem a uma cultura híbrida. • Subalterno: classe ou camadas inferiores de uma sociedade com meios limitados de se ex- pressar. Dessa maneira, o subalterno depende dos meios de expressão da elite que o governa. IMPORTANTE FIGURA 15 – PÓS-COLONIALISMO FONTE: <https://bit.ly/3l2l2eW>. Acesso em: 31 maio 2020. 34 O QUE É CULTURA? Para a antropologia, cultura é uma rede de significados que dá sentido ao mundo que cerca um indivíduo, ou seja, a sociedade. É comum dizermos que uma pessoa não possui cultura quando ela não tem contato com a leitura, artes, história, música etc. Se compararmos um professor universitário com um in- divíduo que não sabe ler nem escrever, a maior parte das pessoas chegaria à conclusão de que o professor é “cheio de cultura” e o outro, desprovido dela. Mas, afinal, o que é cultura? Para o senso comum, cultura possui um sentido de erudição, uma instrução vasta e variada adquirida por meio de diversos mecanismos, principalmente o estudo. Quantas vezes já ouvimos os jargões “O povo não tem cultura”, “O povo não sabe o que é boa música”, “O povo não tem educação” etc.? De fato, esta é uma concepção arbitrária e equivocada a respeito do que realmente significa o termo “cultura”. Não podemos dizer que um índio que não tem contato com livros, nem com música clássica, por exemplo, não possui cultura. Onde ficam seus costumes, tradições, sua língua? O conceito de cultura é bastante complexo. Em uma visão antropológica, podemos o de- finir como a rede de significados que dão sentido ao mundo que cerca um indivíduo, ou seja, a sociedade. Essa rede engloba um conjunto de diversos aspectos, como crenças, valores, costumes, leis, moral, línguas etc. Nesse sentido, podemos chegar à conclusão de que é impossível que um indivíduo não tenha cultura, afinal, ninguém nasce e permanece fora de um contexto social, seja ele qual for. Tam- bém podemos dizer que considerar uma determinada cultura (a cultura ocidental, por exem- plo) como um modelo a ser seguido por todos é uma visão extremamente etnocêntrica. FONTE: <https://bit.ly/3pWGwgU>. Acesso em: 27 abr. 2020. DICAS FIGURA 16 – BISONTE MAGDALENIENSE POLÍCROMO. CAVERNA DA ALTAMIRA, ESPANHA FONTE: <https://bit.ly/3m3TMOz. Acesso em: 7 abr. 2020. 35 O Bisonte Magdaleniense policromo na Caverna da Altamira, na Espanha, é um exemplo de como a cultura está presente na nossa origem. INTERESSANTE 36 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • O termo cultura tem origem em “cultivar” relacionado à agricultura e, por sé- culos, seu significado foi produzir, desenvolver, por exemplo, cultivar trigo, cultivar artes ou mesmo cultura de bactéria. • Samuel Pufendorf, jurista alemão no século XVII, adotou a metáfora de Cíce- ro em um contexto moderno com significado semelhante, mas descartando o ideal original de que Filosofia era o aperfeiçoamento natural do homem. • Na segunda metade do século XIX, Adolf Bastian, antropólogo alemão, apre- senta sua teoria da “unidade psíquica da Humanidade” na qual, por meio de comparação científica de todas sociedades, revela que cosmovisões diferentes possuem os mesmos elementos básicos. • A teoria do Relativismo Cultural de Franz Boas, antropólogo alemão radica- do nos Estados Unidos, foi uma verdadeira revolução acadêmica na área de cultura no início do século XX. • Outro aspecto extremamente importante no trabalho de Boas foi, analitica- mente, substituir a categoria epistemologicamente rígida “raça” pela flexibi- lidade da categoria “cultura”. • A Escola de Frankfurt foi uma corrente de pensamento filosófico e socioló- gico, filiada ao Instituto de Pesquisa Social, que exerceu profunda influência na esfera cultural do século XX ao desenvolver conceitos, entre outros, como “cultura de massa” em oposição a “cultura popular”. • Cultura no mundo pós-colonial é uma abordagem que critica, de forma con- tundente, o olhar eurocêntrico como paradigma nas Ciências Humanas crian- do uma ruptura epistemológica que valoriza a cultura dos politicamente opri- midos e socialmente marginalizados. 37 1 Em uma definição básica, “cultura” significa “todo um complexo que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano não somente em família, como também por fazer parte de uma sociedade da qual é membro” (CULTURA, 2020, s.p.). Porém, o conceito de cultura se transforma, apesar de manter seu significado original, e adquire também outros através da História. Sobre a origem do termo, a que atividade humana o termo “cultura” estava associado na sua origem? a) ( ) Pecuária.b) ( ) Mineração. c) ( ) Agricultura. d) ( ) Arte. 2 As teses racistas da segunda metade do século XIX foram largamente adota- das, sem oposição, na esfera intelectual em várias partes do mundo. Mesmo em regiões habitadas por populações não europeias e mestiças, estas ideias dominaram o cenário acadêmico até a primeira metade do século XX. No entanto, um intelectual teuto-americano provocou uma revolução na Antro- pologia ao sugerir uma nova teoria que, vigorosamente, contrapunha essas teorias racistas. Assinale a alternativa que contém o nome desse antropólogo? a) ( ) Charles Darwin. b) ( ) Edward Said. c) ( ) Franz Boas. d) ( ) Adolf Bastian. 3 No Brasil, as teses do racismo cientificista também dominavam o cenário in- telectual nas primeiras décadas do século XX, porém, na década de 1930, um jovem intelectual brasileiro, discípulo da escola culturalista, que promovia uma transformação significativa nos meios intelectuais norte-americanos, publicou uma obra que iria marcar definitivamente a historiografia brasileira. Assinale a alternativa que contém o nome desse sociólogo brasileiro: a) ( ) Jorge Amado. b) ( ) Sérgio Buarque de Holanda. c) ( ) Caio Prado Junior. d) ( ) Gilberto Freyre. AUTOATIVIDADE 38 39 TÓPICO 3 — UNIDADE 1 RELIGIÃO 1 INTRODUÇÃO A presença de práticas religiosas nas sociedades humanas data da Pré- -História. Arqueólogos identificaram sítios funerários do Homo sapiens, com pelo menos 300.000 anos, como evidência mais antiga de ritos religiosos. Outras evidências se relacionam a artefatos simbólicos encontrados na África com origem no período Mesolítico. No entanto, descobertas arqueológicas de períodos mais recentes no Paleolítico Superior (50.000-13.000 a.C.) encontra- ram artefatos religiosos tais como, o “Homem-Leão”, na Alemanha, as estatuetas de Vênus, na Europa e na Ásia, as pinturas nas Cavernas de Chauvet, na França, e os ritos funerários, em Sungir, na Rússia. Em 1996, os arqueólogos descobriram o sítio de Göbekli Tepe, na Turquia, cuja existência pré-data a Revolução Agrícola, no Neolítico. Este sítio arqueológi- co é considerado o mais antigo complexo religioso encontrado e sua descoberta foi extremamente importante para a história das religiões. Klaus Schmidt (1953-2014), arqueólogo alemão que participou das esca- vações em Göbekli Tepe, concluiu, após examinar as ruínas do complexo religioso: “Primeiro veio o templo, depois a cidade” (CURRY, 2008, s.p.). Portanto, contra- riando a ideia que os templos religiosos eram construídos como consequência da fundação de cidades, Klaus Schmidt sugere, baseado nas evidências encontradas em Göbekli Tepe, que os templos religiosos é que deram origem as cidades e, con- sequentemente, à civilização (CURRY, 2008). A Era Axial é uma teoria defendida pelo filosofo alemão Karl Jaspers. Esta teoria sugere que no período entre 800 a.C. e 200 a.C., ocorre, de forma simultânea, no mundo conhecido, uma revolução intelectual e filosófica que teria dado origem a sistemas religiosos que viriam influenciar profundamente a humanidade. Assim, segundo Karl Jaspers (2014), na chamada Era Axial, teriam surgido em uma vasta região compreendida entre o Mediterrâneo e a China: filósofos gregos, metafísicos indianos, sábios, articulados com o hinduísmo, budismo, jainismo, profetas do zo- roastrismo e judaísmo e sábios das “100 escolas” do confucionismo e taoísmo. A “transcendência”, na Era Axial, teria sido uma característica comum e fundamental em todas manifestações espirituais e filosóficas surgidas no perío- do. O conceito de “transcendência” significa “ir além” e, durante a Era Axial, este 40 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO conceito teria provocado uma mudança na cosmovisão do universo, no desenvol- vimento de um raciocínio especulativo do destino da humanidade e na concep- ção de como os seres humanos seriam inerentemente “bons”. Assim, o pensamento da Era Axial se destaca das tradições anteriores, por exem- plo, quando os pensadores indianos desenvolvem conceito de “karma”, que oferece uma solução, “moska”, para os problemas residuais de vidas passadas. Ou como Sócrates, que usou a razão em sua busca pela “verdade”, e como seu aluno, Platão, adaptou suas ideias com a teoria de como se relacionam o mundo físico (finito) e mundo eterno. Na China, os discípulos de Confúcio lutavam para unificar o reino e evitar a guerra civil debatendo o emprego adequado do “caminho” (dao) para promover harmo- nia e civilização. No outro extremo da Ásia, os profetas hebreus pregavam que seu deus tribal, Israel, criara o céu e a terra e controlava o destino de todos os seres humanos. Não muito longe dali, no atual Irã, Zaratustra ou Zoroastro, concebia a história humana como um microcosmo de luta entre o bem e o mal e a vida como um conflito permanente entre estas duas escolhas. Dessa maneira, os represen- tantes daquelas linhas de pensamento, na Era Axial, não propunham soluções para as atribulações humanas restritas apenas a seus respectivos povos, antes, propunham soluções universais para toda humanidade. FIGURA 17 – ERA AXIAL: UM MAPA Legenda: Mapa da Era Axial ilustrando os principais eixos onde surgiram sistemas religiosos e filosóficos em vária regiões do mundo então conhecido. FONTE: <https://bit.ly/366cNKN>. Acesso em: 20 maio 2020. TÓPICO 3 — RELIGIÃO 41 Textos religiosos mais antigos: • Pirâmide de Unas, no Egito, de 2.400-2.300 a.C. • Upanishads, India, hinduísmo, 1.500 a.C. • Manuscritos do Mar Morto, judaísmo, cerca de 2.000 anos. • Avesta zoroastrismo, 1.500-1.200 a.C. IMPORTANTE FIGURA 18 – RELIGIÕES DO MUNDO FONTE: <https://bit.ly/2HxKyuV>. Acesso em: 4 maio 2020. 2 CONCEITO E ETIMOLOGIA Na definição do Dicionário da Língua Inglesa Merrian Webster, religião é: “Um sistema sociocultural de comportamentos específicos, práticas, moral, cosmovisão, textos, lugares-santos, profecias, ética e instituições relacionadas ao transcendental e ao espiritual citar” (RELIGIÃO, c2015, s.p.). Porém, como já vimos em relação a outras definições, esta, por mais abrangente que seja, não contempla toda a amplitude do termo. Assim, em relação à religião não existe consenso, pelo menos acadêmico, de sua definição (MORREALL; SONN, 2011). Religião, portanto, é um termo politético, isto é, segundo o conceito do linguista e filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (20110, termos como religião, entre outros, podem ser usados para identificar um conjunto de crenças sem, con- tudo, implicar que elas tenham características idênticas ou mesmo parecidas. No entanto, mesmo que incompletas, para estudarmos qualquer fenômeno é neces- sário procurar definições que nos ajudem a entendê-los. 42 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO Religiões, não sempre, mas na maioria das vezes, possuem elementos do divino, do sagrado, da fé, de entidades sobrenaturais ou mesmo de transcendência como fonte de normas e recurso para toda a vida. Religiões, também, possuem rituais, sermões, co- memorações, veneração, sacrifícios, festas, transes, iniciações, ritos funerários e matrimo- niais, meditação, preces, música, arte, dança, entre outros aspectos da cultura humana. Religiões, podem ter narrativas consideradas sagradas e simbólicas con- sideradas por alguns como explicação para o propósito e a origem da vida, o universo, entre outras do mundo que nos cerca. No mundo, existem cerca de 10.000 religiões, porém, 84% da população mun- dial é afiliada ao cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo ou outra religião tra- dicional. O restante não é afiliado a nenhuma religião em particular, ou são ateus e agnósticos, sendo que, estes últimos, ainda se sentem identificados com alguma crença. O estudo das religiões abrange uma gama variada de disciplinas acadêmicas tais como, teologia, religião comparada, sociologia, antropologia, psicologia, história entre outras. No pensamento evolucionário do século XIX, que surgiu como consequência do Iluminismo,religião era considerada uma condição humana primeira a partir da qual o Direito, a Ciência e a Política tiveram origem, mas que em virtude das trans- formações ocorridas no século XVIII se separaram definitivamente. No século XX, porém, a maioria dos estudiosos passa a refutar a ideia que religião é simplesmente uma forma primitiva e ultrapassada, ou um modo arcaico do pensamento científico. Ao contrário, religião seria, assim, um espaço específico para a prática de crenças humanas que não pode ser comparado a nenhum outro. Portanto, a essência da reli- gião não deve ser confundida com, por exemplo, a essência da política, embora, em muitas sociedades as duas possam se sobrepor e se entrelaçar (ASAD, 2009). A palavra “religião” deriva do latim religio cuja origem é incerta. Uma hipó- tese se remete a Cícero, filósofo romano, que deu ao termo o significado de “reler” ou considerar algo com cuidado. Outra hipótese atribui o termo a Agostinho de Hipona, que relaciona o termo ao conceito de “religar”, porém, o termo “religião”, como ou- tras definições consideradas equivocadamente imutáveis, possui significados distin- tos ao longo da História. Na Antiguidade Clássica significava conscientização, senso de justiça, obrigação moral ou dever. Para os romanos, o termo era usado em relação aos deuses, mas incluía uma vasta gama de emoções como, dúvida, cautela, ansieda- de, medo, restrição e inibição em oposição ao contexto mundano (CAMPBELL, 1991). Religião, na Idade Média, adquiriu o sentido de vida monástica, mas seu sentido separado da vida mundana, no cristianismo, se inicia no século XVI para distinguir o domínio da Igreja do mundo secular (MORREALL; SONN, 2011) entretanto, o conceito moderno de religião, como uma abstração que compreende um conjunto de crenças e doutrinas, é relativamente recente e se inicia em textos no século XVII relacionado a divisão na cristandade e a expansão do cristianismo com a expansão europeia em contato com outras línguas, portanto, o conceito moderno de religião se consolidou nos séculos XVI e XVII. TÓPICO 3 — RELIGIÃO 43 Ressalte-se que, nos textos sagrados como a Bíblia, Alcorão e nos textos do judaísmo, tal palavra, ou mesmo a ideia, não existe (NONGBRI, 2013). Aliás, tanto no judaísmo, com o termo hebraico halakha (“caminho”), como no islamismo, com o termo árabe din (lei), palavras que seriam mais próximas à religião, de forma análoga ao cristianismo, apenas adquiriram o sentido de religião a partir da Idade Moderna. Em outras tradições religiosas, como o hinduísmo, budismo e xintoísmo, respectivamente na Índia, China e Japão, a palavra também tem o sentido de “lei” (RAMBELLI, 2003). Nas tradições dos povos nativos do continente americano o conceito é desconhecido e foi imposto pelos colonizadores europeus (OMAR; DUF- FEY, 2015). É bom lembrar que um dos objetivos deste livro didático é proporcionar um olhar alternativo à perspectiva eurocêntrica que impôs, nos últimos séculos, uma visão monolítica do mundo não europeu. Portanto, a ruptura entre a esfera do sagrado e do mundano que se consolida a partir do século XVIII, é um fenômeno europeu que se estende gradativamente ao resto do Ocidente e ao resto do mundo. Assim, a separação entre o religioso e o laico não fazia sentido no mundo de outras tradições religiosas que não passaram por experiências históricas como o Iluminis- mo e daquilo, que no Ocidente, passou-se a chamar “Modernidade”. Partindo de tal princípio, vários especialistas sugerem que a terminolo- gia “religião” deriva de uma tradição judaico-cristã construída no Ocidente, e, portanto, os princípios básicos do conceito, como categoria analítica, são essen- cialmente ocidentais. Esta abordagem foi sugerida, de forma pioneira, por Wil- fred Cantwell Smith (1916-2000), em 1962, no livro de sua autoria intitulado O significado e o fim da religião. Para intelectuais que adotaram esta teoria “religião” é um conceito moderno relacionado ao cristianismo e, dessa maneira, aplicado de forma inapropriada às tradições existentes fora da esfera ocidental. Embora não se possa negar a genealogia do termo “religião”, seu signifi- cado histórico é objeto de debate. De acordo com Tomoko Masuzawa, especialista em estudos religiosos, a simbiose entre cristianismo e religião afeta desfavora- velmente os estudos comparativos entre religiões, levando-se em consideração, que este foi imposto durante o auge do imperialismo ocidental. Outros, por outro lado, argumentam que essa leitura exagera a influência do pensamento intelectu- al do Ocidente no resto do mundo. Para ilustrar como o conceito “religião” foi apresentado e imposto aos povos não europeus, basta lembrar que até o século XIX os indianos não se identificavam como “hindus” ou “budistas” (JOSEPHSON, 2012). No Japão, o termo “religião” só passou a ser conhecido depois da segunda metade do século XIX quando os norte-a- mericanos impuseram, à força, que o governo japonês assinasse tratados que se com- prometiam com a “liberdade religiosa” cujo conceito era completamente estranho no universo cultural do Japão (ZUCKERMAN; GALEN; PASQUALE, 2016). 44 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO De acordo com estudos de Filologia (estudo da linguagem em fontes histó- ricas escritas), em idiomas como o inglês, foi no século XIX, que o termo latino reli- gio (religião), começou a ser empregado no sentido exclusivo de reverência a deus ou deuses. Estes mesmos estudos, em culturas no Egito, Pérsia e Índia, atestam o uso do termo em outras tradições religiosas no mesmo período (STONE, 1989). 3 O CONCEITO MODERNO DE RELIGIÃO NO OCIDENTE Como já visto, religião é um conceito ocidental moderno, pois conceitos similares e mesmo o termo, em si, são desconhecidos em culturas no presente e no passado. Por esta razão cresce, entre os especialistas, a tendência a não definir o termo em sua essência, afinal, “religião”, como entendido na atualidade, é uma construção relativamente recente e de uso geograficamente limitado (SMITH, 1963). Já o especialista W.L. King (2005), na Enciclopédia da Religião, afirma: As tentativas de definir “religião” como parte da iniciativa de encon- trar um sistema distinto e único de qualquer noutra experiência hu- mana é uma preocupação limitada ao Ocidente como consequência de seus pressupostos intelectuais, especulativos e científicos. É também produto de um modelo dominante imposto pelo Ocidente baseado na chamada tradição “judaico-cristã” ou mais precisamente na herança teísta do judaísmo e do cristianismo. Esta, mesmo quando relativizada é responsável por uma visão ambígua de religião estruturada na rela- ção entre uma entidade uma divindade e o resto, entre o criador e sua criação e entre Deus e o homem (KING, 2005, p. 7692). Para o antropólogo Talal Asad (1932-), as definições de religião, invariavel- mente, partem do princípio do modelo ocidental moderno que interpreta a religião sob uma ótica a-histórica e abduzida de seu meio cultural. Portanto, para Asad (1982), não pode haver uma definição universal de religião, não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma o produto histórico de processos discursivos. Asad (1982), desse modo, sugere uma abordagem antropológica em que os estudos das religiões analisem os processos sociais que configuram o aspecto religioso separadamente em sociedades diferentes ao invés de supor a existência de critérios cognitivos e universais capazes de determinar o que é a religião. Para isso, os antropólogos devem recorrer à comparação como estratégia metodológica para demonstrar como as religiões são produtos de configurações sociais específicas. Outro antropólogo que trabalhou com o tema, o norte-americano Clifford Geertz (1926-2006), define assim religião: TÓPICO 3 — RELIGIÃO 45 É um sistema de símbolos que atua para estabelecer um poderoso, penetrante modo permanente de motivaçõesnos homens por formu- lação de concepções de ordem geral da existência e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que os humores e motivações parecem singularmente realistas" (GEERTZ, 1993, p. 90). O sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), em sua obra clássica As formas elemen- tares de vida religiosa, publicada em 1912, definiu religião como sistema unificado de cren- ças e práticas relativas a coisas sagradas. Por coisas sagradas entenda-se algo separado e proibido – crenças e práticas unidas em uma comunidade moral em torno de uma Igreja. Coisas sagradas, entretanto, não estão limitadas a deuses ou espíritos, ao con- trário, podem ser pedras, árvores, fontes, pedaços de madeira, casas. Em suma, pode ser qualquer coisa. Crenças religiosas, mitos, dogmas e lendas são representações que expressam a natureza das coisas sagradas e as virtudes e poderes atribuídos a eles. O conceito de Durkheim influenciou sobremaneira na definição contem- porânea de intelectuais como Frederick Ferré, defensor da metafisica cristã, que define religião como um meio de avaliar de forma mais abrangente e intensiva- mente (FERRÉ, 1987). E, de forma análoga, ao teólogo Paul Tillich (1975), que define a fé como estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente. Por último, a Enciclopédia das religiões define religião em seu caráter uni- versal a todas as culturas: Quase todas as culturas conhecidas possuem uma dimensão profunda das experiências transcendentais que estabelecem normas e inspiração para toda a vida. Quando padrões de comportamento são construídos em volta destas dimensões profundas em uma dada cultura esta es- trutura se constitui em forma reconhecida de religião. Religião é uma vida organizada em torno de uma experiência profunda que varia na forma, plenitude e clareza de acordo uma cultura que ela se insere (RELIGION, 2005, p. 7555). O panteísmo é a crença de que absolutamente tudo e todos compõem um deus abrangente, e imanente, ou que o universo (ou a natureza) e deus são idênticos. Assim, os adeptos dessa posição, os panteístas, não acreditam num deus pessoal, antropo- mórfico ou criador. A palavra é derivada do grego pan (que significa "tudo") e theos (que significa "deus"). Embora existam divergências dentro do panteísmo, as ideias principais dizem que deus é encontrado em todo o cosmos como uma unidade abrangente, portan- to, é inaceitável no panteísmo o politeísmo (adoração e crença em vários deuses), pois as divindades são tidas como aspectos diferentes do absoluto. NOTA 46 UNIDADE 1 — DEFINIÇÕES DE POVO, CULTURA E RELIGIÃO 4 POVO, CULTURA, RELIGIÃO E POLÍTICA NO MUNDO ATUAL Os termos que deram o nome a este Livro Didático são historicamente fluidos e suscetíveis a uma gama variada de interpretações. Vimos, também, que não obstante à qualidade e erudição dos especialistas citados, é raro uma teoria resistir, por inteiro, às novas realidades e transformações que ocorrem rapidamente em nosso mundo. Para além dos objetivos teóricos e didáticos deste trabalho uma busca su- perficial nos noticiários basta para entendermos a utilidade e relevância do con- teúdo do nosso objeto de estudo. Os conflitos étnicos-religiosos não apenas entre países diferentes, mas também os conflitos e a tensão entre estes grupos no interior dos estados-nação, ocorrem em escala global. A lista é extensa e abrange todas as chamadas religiões universais, sem exceção. O mundo assistiu, nas últimas décadas, a um revivalismo religioso e o processo pelo qual grupos religiosos buscam um espaço político via caminhos disponibilizados pelo Estado laico. Ou, talvez, a ideia que vivamos em um mun- do secular não reflita a realidade. Esta tese pode ser comprovada ou questionada dependendo da região do mundo que estivermos olhando, mas, certamente, o conceito de “ressurgimento” da religião é no mínimo controverso haja visto que ela nunca teria deixado de existir. No contexto de tensão e conflitos envolvendo grupos religiosos em várias par- tes do mundo, certamente, há casos extremos como os dos movimentos chamados fundamentalistas, que, por sua vez, em grande parte, são alimentados pela frustração coletiva após décadas de secularismo que falha, em diferentes regiões do mundo, em responder adequadamente aos anseios das massas marginalizadas. Dessa maneira, os anseios, frustrações e demandas de muçulmanos em diferentes partes do Oriente Mé- dio, Ásia e África, assim como, de neopentecostalistas na América Latina, budistas em Sri Lanka e hindus na Índia compartilham, talvez, mais similaridades que diferenças. Não se deve esquecer, também, o papel do cristianismo em movimentos sociais, tanto na sua versão católica como nas versões neopentecostais, na América Latina como nos Estados Unidos. Tampouco o nacionalismo budista e hindu, no Sri Lanka e na Índia respectivamente. Não por acaso, a única revolução popular no mundo pós-Segunda Guerra Mundial foi a que derrubou um estado secular e ins- taurou um regime misto, teocrático-democrático, no Irã, em 1979 (DEMANT, 2008). Ali mesmo, no Oriente Médio, em países criados pelo pós-colonialismo, a frustração com o nacionalismo resulta em uma reinvenção de identidades reli- giosas. Nesse contexto, o terrorismo, comumente atribuído como inerente à reli- gião, relaciona-se diretamente às consequências das mazelas do colonialismo, a 47 um projeto pós-colonial conturbado, crises econômicas renitentes, intervenções estrangeiras na região e a falência do projeto secular importado do Ocidente. Em realidade, as manifestações violentas de extremismo religioso em ou- tras regiões, envolvendo diferentes afiliações religiosas, também estão relaciona- das com as causas análogas, ou seja, em artigo recentemente publicado, o especia- lista em Estudos Religiosos, John L. Allen Jr. (1965-), na contramão de se atribuir violência à religião, defende que secularismo seria a causa do extremismo e não a solução para o problema (ALLEN JR., 2013). A propósito da discussão religião-violência é de conhecimento de todos que cer- ta visão, ditada mais pelo senso comum que por uma análise histórica abalizada, que as religiões, em geral, são responsáveis por guerras, perseguições e tragédias ao longo da História, porém, um exame superficial na história é suficiente para rebater este mito. A última guerra religiosa na Europa ocorreu no século XVII, e no resto do mun- do, exceto em conflitos localizados ocorridos na África e na Ásia, não foi muito dife- rente. Ainda que haja aspectos religiosos nos conflitos contemporâneos entre Índia e Paquistão, na Palestina, na antiga Iugoslávia, entre outros, nenhum conflito religioso na História foi mais sangrento e devastador que as duas guerras mundiais no século XX. Foram dois conflitos globais inspirados no nacionalismo e suas variantes totalitárias, de cunho inegavelmente secular, como fascismo e o nazismo. Além disso, as ideologias totalitárias, com destaque para o comunismo, na sua versão stalinista, na antiga URSS maoísta, na China, ou mesmo no regime de Pol Pot no Camboja, foram responsáveis por milhões de mortes também no século XX. Dian- te de números tão expressivos, a constatação é que as ideologias seculares, em muito menos tempo, causaram muito mais morte e sofrimento que os conflitos causados por disputas religiosas. Outras causas, com origem na própria modernidade, poderiam ser apontadas para explicar o crescimento das religiões como globalização, imigração e o individua- lismo extremo promovido pelo capitalismo refletido no enfraquecimento dos laços co- munais. Como observou Frei Betto: “O capitalismo é irmão gêmeo do individualismo”. Assim, o fundamentalismo, como um subproduto do crescimento dos movi- mentos religiosos em nosso tempo, se insere em um quadro de profundas transfor- mações ocorridas nos últimos quatrocentos anos. Neste quadro, para a especialista Karen Armstrong (2001, p. 57), as transformações no mundo contemporâneo, estão relacionadas aos movimentosfundamentalistas, como ela afirma nesta assertiva: Acompanharam as mudanças econômicas dos últimos quatrocentos anos imensas revoluções sociais, políticas e intelectuais, com o desen- volvimento de um conceito da natureza da verdade totalmente di- verso, científico e racional; e, mais uma vez, uma mudança religiosa radical tornou-se necessária. No mundo inteiro acha-se que as velhas formas de fé já não funcionam nas circunstâncias atuais: não conse- guem prover o esclarecimento e o consolo que parecem vitais para a 48 humanidade. Assim, tenta- se encontrar novas maneiras de ser religio- so; como os reformadores e os profetas da Era Axial, homens e mulhe- res procuram usar as percepções do passado para evoluir no mundo novo que construíram. Uma dessas experiências modernas – por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista – é o fundamentalismo. Portanto, primordial para o nosso trabalho é perceber que o momento his- tórico que vivemos, como tantos outros no passado, são marcados por mudanças, transformações e continuidades. Qualquer tese que busque respostas fáceis e de- finitivas para fenômenos tão complexos está fadada ao fracasso. No que se refere ao fenômeno religioso na atualidade, seus efeitos não podem apenas ser medidos em análises rigidamente dualistas ou maniqueístas. Há certamente aspectos positivos e negativos e não poderia ser diferente quan- do se trata de seres humanos. Por exemplo, se os conflitos e tensões atuais no Brasil e no mundo são exacerbados por movimentos religiosos e isto é inegável, estes mesmos movimentos possuem um potencial inestimável para ações no meio social e político que promovam o bem-comum em esferas fora do alcance de estados na periferia do ca- pitalismo. O Brasil, mesmo, é um exemplo em que Estado não alcança milhões de bra- sileiros marginalizados e a mercê do narcotráfico e outros grupos do crime organizado. Dessa maneira, o conceito de “poder suave” (soft power), preconizado pelo cientista político Joseph S. Nye (1937-), é um exemplo de como as religiões possuem potencial para positivamente agir em várias esferas, inclusive nas relações entre pa- íses. Para o autor, o poder suave se define como a ideia de um vetor, ou ideologia, agindo no alvo sem apresentar ameaças concretas, ou seja, através da argumenta- ção e persuasão, o detentor do soft power pode mover multidões, conquistar o dese- jado, ou o que quer, sem o uso da coação ou da violência (NYE, 2005). Consequentemente, para Nye (2005), o “poder suave” não visa coagir e sim cooptar. Neste sentido, a religião possui capital cultural e político para in- fluenciar a adoção de agendas positivas por pessoas e governos. Na esfera in- ternacional, de forma análoga, a proposta religiosa de “poder suave” enseja que indivíduos e instituições religiosas podem exercer um papel importante nas rela- ções entre países em sinergia com valores, normas e crenças religiosas que ajam como diplomacia alternativa para promover entendimento e solução de conflitos na esfera internacional (NYE, 2005). Isso, inclusive, já é realidade nas iniciativas da chamada “diplomacia cultural”, promovida pelas organizações internacionais inter-religiosas, que foram criadas a partir da década de 1960, inspirada pelas mudanças feitas na Igreja Católica após o Concilio Vaticano II (1962-1965). Em resumo, no que se refere ao papel da religião no mundo atual, é importante fazer um exercício difícil e complexo de nos posicionarmos de forma crítica em relação ao nosso tempo, o que só é possível por meio do conhecimento do processo histórico. É preciso ir além da tolerância. É necessário conhecer o “outro”, que, em realidade, não existe e sim é uma construção. Afinal, como já foi dito, em 2016, pelo Papa Francisco, em um discurso para religiosos luteranos: “O que nos une é bem maior do que nos separa”. Ou o Dalai Lama, líder espiritual budista do Tibete, em sua visita ao Brasil, 49 em 2011: “A diferença é o que nos une”. E finalmente, nas palavras do terceiro califa muçulmano, Ali Ibn Abu Taleb, há quatorze séculos: “Há dois tipos de seres humanos: aqueles que são seus irmãos de fé e aqueles que são seus iguais em humanidade”. Modernidade: período, influenciado pelo Iluminismo, em que o homem passa a se reconhecer como um ser autônomo, autossuficiente e universal, e a se mover pela crença de que, por meio da razão, se pode atuar sobre a natureza e a sociedade. NOTA O termo “fundamentalismo” surgiu na passagem do século XIX para o XX, nos Estados Unidos, como expressão de um movimento teológico protestante conservador de reação à modernidade, ao liberalismo na teologia e à ciência. Teólogos e líderes protestan- tes do movimento produziram, ao longo da segunda década do século XX, uma coletânea de 12 volumes intitulada “Os Fundamentos: um testemunho para a Verdade”, resultante de debates e conferências. A palavra “fundamentalista” foi usada pela primeira vez neste con- texto em 1920 por um editor ligado à Igreja Batista, Curtis Lee Laws, para expressar essa coalizão de protestantes conservadores ativistas. FONTE: <https://bit.ly/2IWMNZy>. Acesso em: 29/05/20. IMPORTANTE 5 REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DA RELIGIÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA Esta é uma reflexão sobre o papel da religião em tempos de pandemia, baseada no artigo publicado em 8 de maio de 2020, no maior jornal de língua inglesa de Bangla- desh, o Daily Star, intitulado Como atores religiosos podem ajudar a combater a crise do Covid 19 (How faith actors can help fight Covid-19 crisis), de autoria de Aisha Binte Abdur Rob. Leia o artigo original em: https://bit.ly/33c3JSo. DICAS 50 A matéria revela diferentes perspectivas do papel da religião na sociedade, inclusive, durante a pandemia de coronavírus. A autora argumenta que os ato- res religiosos desempenham um "papel estabilizador vital" durante crises globais e podem "oferecer um farol de esperança" em meio aos "estragos dessa pandemia". Nos comentários do artigo, algumas perguntas se destacam. Primeiro, fé e ciência podem andar juntas? Segundo, como os atores religiosos podem ajudar quando lutam entre si? Terceiro, os atores religiosos podem pensar lógica e racionalmente sobre a pandemia? Em um comentário, o leitor dizia que a ideia de certas crenças, que se julgavam superiores podia tornar a pessoa "irracional". O leitor concluiu sugerindo, de forma pouco educada, que a autora do artigo "mantivesse sua reli- gião para si mesma e não a misturasse com o bom senso e a ciência, especialmente, nesses dias difíceis e quando o mundo inteiro está tumultuado com o COVID-19". A troca entre os leitores e a autora esclareceu duas perspectivas diametral- mente opostas de como as instituições e crenças religiosas interagem com a atual pandemia global e como elas são importantes para as políticas de saúde pública. Por um lado, a longa história de pandemias demonstra a importância da religião, especialmente, porque as tradições, crenças e instituições religiosas desempenham papel importante na vida cotidiana da maioria das pessoas no mundo. Em contras- te, os céticos veem a fé em oposição à ciência e as visões de mundo religiosas como nitidamente separadas das normas seculares. Por último, "alfabetização religiosa" seria um viés que distorce a realidade com narrativas simbólicas. A religião apareceu com destaque nos primeiros relatórios da pandemia de coronavírus, muitas vezes sob uma luz negativa. Na Coreia do Sul, ficou claro, no final de março, que as reuniões na Igreja Shincheonji de Jesus, na cidade de Daegu, resultaram em 5.080 casos confirmados de COVID-19, mais da metade do total do país. Uma reunião do grupo missionário muçulmano Tablighi Jamaat, que reuniu centenas de pregadores em sua sede em Nova Délhi foi responsabilizado por quase 30% dos casos conhecidos na Índia. Outras reuniões dos Tablighi foram ligadas a surtos na Malásia e no Paquis- tão. Em outras partes do mundo, aglomerações causadas por outras comunidades religiosas também foramresponsabilizadas pelo aumento da infecção de COVID-19. No entanto, por outro lado, autoridades de saúde pública e líderes reli- giosos, juntos, estão trabalhando ativamente em respostas efetivas à pandemia. A necessidade de se impor um distanciamento físico tornou-se central para a saúde pública e, consequentemente, a limitação de reuniões religiosas. Essas parcerias se basearam em lições de pandemias anteriores, notadamente HIV/AIDS e Ebola, em que o envolvimento religioso foi vital. No início de março, realizou-se uma série de discussões, organizadas pela Organização Mundial da Saúde, para fornecer informações ao público a respeito da pandemia, que incluía, explicitamente, líderes religiosos. A OMS disponibili- zou o esboço de diretrizes dirigidas às comunidades religiosas para comentários, iniciando, assim, discussões on-line antes de serem finalizadas. Seguindo este 51 exemplo, nos meses seguintes, vários países emitiram diretrizes rígidas de saúde pública projetadas para comunidades e líderes religiosos, além de vários artigos, webinars e outros recursos. Tornou-se cada vez mais claro que as comunidades religiosas, como ou- tros segmentos da sociedade, estavam se ajustando, de boa ou de má vontade, às mudanças radicais que o coronavírus provocara, em praticamente, todos os aspectos da vida normal. Também ficou claro que líderes religiosos e grupos re- ligiosos tinham ideias para compartilhar e papéis práticos a desempenhar. Para aqueles que acompanham e analisam as respostas religiosas ao COVID-19, essas reações levantam várias questões importantes como, por exemplo: • Quais são as contribuições das comunidades religiosas durante a pandemia? • Que lições podemos aprender das crises globais de saúde anteriores e da atual? • Como os formuladores de políticas poderiam integrar melhor as vozes religio- sas na saúde pública, bem como na recuperação econômica e social por vir? Um erro comum cometido pelos formuladores de políticas públicas é iso- lar as comunidades religiosas do público em geral, como se elas constituíssem uma entidade ou "setor" separado. De fato, as comunidades religiosas são parte integrante das sociedades, economias e políticas. Mais de 80% das pessoas em todo o mundo aderem a uma religião, de acor- do com um estudo importante realizado, em 2012, pelo Pew Research Center. Por- tanto, separar a religião como um único “setor” também obscurece a natureza com- plexa e diversificada dessas comunidades e como elas se relacionam com o estado. O posicionamento político, jurídico e cultural do Vaticano é, por exemplo, bastante diferente do de um pequeno templo budista na Tailândia ou de uma mes- quita na Indonésia. Ainda assim, existem pontos em comum na maneira como a pandemia os afetou. Em termos gerais, interferiu em três aspectos da vida religiosa: congregação, ritos religiosos e assistência pastoral e caridade. Todos estes aspectos revelam como pode ser problemático deixar a religião alijada da estratégia de com- bate à pandemia. Afinal, os líderes religiosos demonstraram criatividade, genero- sidade e trabalharam para se adaptar às circunstâncias encontrando maneiras de praticar a fé e servir suas comunidades, mesmo sob restrições rigorosas. As reuniões religiosas que capturaram as manchetes no início de março rapidamente se tornaram eventos no folclore da pandemia, como diretamente responsáveis, pelo tremendo aumento da infestação do vírus. Outros eventos, po- rém, como os esportivos e shows, também apresentavam riscos semelhantes. Por isso, fazia sentido em termos de estratégia de saúde pública que as autoridades se mobilizassem rapidamente para limitar grandes aglomerações. Mas a congre- gação, é claro, é uma parte central do etos de muitas comunidades religiosas. Os esforços das autoridades de saúde pública para limitar eventos como os cultos da 52 igreja católica, na Páscoa, as celebrações islâmicas no Ramadã e a Páscoa judaica levaram alguns adeptos a receberem as medidas como um cerceamento de liber- dade de culto, criando, assim, uma tensão significativa entre o público e o estado. Um pastor na Louisiana, nos Estados Unidos, ganhou as manchetes quan- do se recusou a cancelar eventos que atraíram centenas de fiéis, desafiando as ordens do estado de limitar o tamanho das reuniões públicas. No entanto, apenas uma minoria de líderes religiosos parece ter rejeitado, categoricamente, as proi- bições de reuniões. Em todo o mundo, igrejas, mesquitas e templos optaram por fechar em resposta à pandemia e a suspender rituais de peregrinação. As autoridades, na Arábia Saudita, estão pedindo aos muçulmanos do mundo todo que adiem seus planos de realizar o hajj, a peregrinação anual a Meca, que atrai, anualmente, milhões de estrangeiros ao reino saudita. O Vatica- no está fechado ao público e a imagem do Papa Francisco, falando sozinho em uma praça geralmente cheia de fiéis, simboliza a seriedade dos líderes religiosos em limitar aglomerações por causa do COVID-19. Para reduzir a necessidade de congregações, os líderes religiosos estão apre- sentando opções inovadoras e criativas que inspiraram suas comunidades a aceitar e se adaptar à nova realidade. Dados do Pew Research Institute, divulgados em mar- ço, indicam que a maioria dos norte-americanos que frequenta serviços religiosos regularmente, fez a transição para o culto on-line. Alguns pastores, inclusive, ofe- recem serviços na igreja no sistema drive-thru, realizam reuniões de comunhão no Zoom e algumas comunidades cristãs oferecem batismos virtuais e até casamentos. Outros encontraram maneiras de adaptar práticas em vez de simplesmente mudá-las para o modo virtual. Especialistas em leis judaicas criaram adaptações nos rituais religiosos reduzindo, por exemplo, o quórum mínimo de pessoas necessárias para realizar um casamento judaico. Estudiosos muçulmanos liberaram os fiéis, para realizar em casa, as orações congressionais de sexta-feira e a quebra de jejum diário, durante o mês sagrado do Ramadã, que são mudanças dramáticas em alguns dos ritos coletivos mais caros à comunidade islâmica. Entre os cristãos, atendendo às orientações das autoridades de saúde pública para evitar o contato físico, as instituições religiosas adaptaram práticas consagradas pelo tempo, incluindo canto coral e o sinal de paz. Esta tradicional saudação cristã, geralmente um aperto de mão ou um abraço durante um culto foi modificado para que as pessoas não precisassem se tocar para participar. No entanto, para alguns rituais e rituais religiosos, a adaptação tem sido mais difícil. O coronavírus apresenta barreiras consideráveis para se cuidar dos doentes e para realizar certos ritos de morte e enterro. Estas são práticas religio- sas essenciais, especialmente dolorosas e particularmente necessárias, em uma pandemia que já matou, até agora, mais de quinhentos mil seres humanos. Os substitutos são poucos. É difícil para os clérigos dar apoio e orientação espiritual aos doentes, particularmente, aqueles que estão em quarentena nos hospitais. 53 Em caso de morte, os falecidos e seus entes queridos sofrem com funerais solitários e famílias e comunidades, em diferentes cantos do mundo, enfrentam restrições aos rituais tradicionais de luto. As medidas de saúde pública para práticas funerárias seguras já entraram em conflito com os ritos tradicionais e pelo o que é considerado respeito aos mortos. No Sri Lanka, as autoridades tornaram obrigatória a cremação, por mortes relacionadas ao coronavírus, apesar da cremação ser proibida no Islã, agravando, dessa maneira, as já sensíveis tensões entre budistas e muçulmanos. Tratar os mortos com dignida- de, um conceito fundamental em muitas tradições religiosas e culturais, se tornou, durante a pandemia, como uma prioridade essencial para os direitos humanos. A pandemia também complicou as práticas funerárias judaicas e muçul- manas de lavar e envolver o corpo, com um tecido, antes do enterro. No entanto, nesta prática particular,também houve alguma inovação. Em Israel, a lavagem ritual agora é concluída com equipamento de proteção individual e os corpos são embrulhados em plástico antes do enterro. De modo análogo, os clérigos muçul- manos orientam os fiéis a respeito da lavagem do corpo, explicando como o ritual pode ser realizado com segurança, reconciliando, políticas de saúde pública com as práticas funerárias tradicionais. O impacto da pandemia também é sentido, além do âmbito espiritual, afetan- do a comunidade em geral que se beneficia ou até depende de caridade religiosa. A importância de cuidar dos mais vulneráveis está profundamente enraizada em tradi- ções e muitas comunidades religiosas fornecem serviços sociais essenciais, como, por exemplo, assistência à infância e distribuição de alimentos aos necessitados. O fechamento de centros religiosos para impedir a propagação do coro- navírus pode colocar os beneficiários desses programas em perigo. "Se não fi- carmos abertos, as crianças vão passar fome", afirma Idris Abdul Zahir, um imã muçulmano, cuja mesquita na Filadélfia administra um programa de distribuição de alimentos para estudantes de baixa renda. Para Abdul Zahir, a ameaça do CO- VID-19 não é tão real para algumas pessoas quanto a ameaça de fome. O imam acabou fechando a mesquita para serviços religiosos, no final de março, mas pla- nejava continuar o programa de almoço escolar. Mesmo lutando para realizar suas atividades de caridade e cumprindo as medidas de distanciamento social e sanitárias a pandemia está se agravando e a ne- cessidade de ajuda também. Líderes e organizações religiosos se mobilizaram para responder ao impacto da pandemia nas comunidades vulneráveis com voluntários e recursos financeiros para atender às necessidades dos doentes, idosos e comuni- dades carentes. Na Índia, por exemplo, organizações budistas, hindus, muçulma- nas e sikh estão trabalhando para combater a fome, uma preocupação importante, dadas as previsões de que a fome global dobrará devido ao COVID-19. Líderes reli- giosos, nos Estados Unidos, estão entregando mantimentos e prestando assistência a idosos e pessoas de grupos de risco com maior risco de contrair o coronavírus. 54 Igualmente importante, grupos religiosos ajudam as pessoas a encontrar sig- nificado e a manter a esperança diante de uma situação extrema. Com medo e, em alguns casos, sozinhas, as pessoas buscam conforto, explicações, para o sofrimento e esperança. De acordo com uma pesquisa recente do Pew Research Institute, um quarto dos americanos diz que sua fé se tornou mais forte por causa da pandemia. Greg Eps- tein, capelão da Universidade de Harvard, observou que as pessoas sentem conforto em saber que estão enfrentando a crise atual juntas e são igualmente vulneráveis. Mes- mo quando a pandemia evidencia injustiças e desigualdades sociais, as pessoas bus- cam nos ensinamentos da fé inspiração para o caminho a seguir. As tradições religiosas lembram as pessoas que seus antepassados foram testados e emergiram mais fortes de provações passadas, fornecendo alguma garantia de que também sairão da atual crise. Em razão da separação entre instituições governamentais e organizações reli- giosas, e a invisibilidade, em certos casos, das últimas, pode-se ignorar o papel signifi- cativo que, líderes e grupos religiosos, tiveram na resposta em pandemias anteriores. O COVID-19 difere do HIV/AIDS e Ebola de maneira significativa. O coronavírus, por exemplo, tem um período de incubação muito mais curto que o da AIDS, mas existem semelhanças importantes. A disseminação e o tratamento de todas essas do- enças foram exacerbados pelas desigualdades no acesso à assistência médica. Duran- te os surtos anteriores de HIV/AIDS, nos Estados Unidos, e em todo o mundo, e do Ebola, na África Central e Ocidental, o esforço assistencial das comunidades religio- sas, raramente, foi incorporado às políticas públicas. Consequentemente, os sucessos e fracassos das respostas à pandemia oferecem lições de como as barreiras entre reli- gião e governos podem prejudicar políticas públicas eficazes, bem como estratégias para o engajamento construtivo durante a pandemia do COVID-19. Os líderes religiosos, com suas conexões sociais e profundo conhecimento das comunidades locais, são fundamentais em tempos de crise. As diretrizes dos órgãos de saúde pública são curtas e diretas, simplesmente pedindo as pessoas que “fiquem em casa” e “lavem as mãos”, por exemplo. Os líderes religiosos podem se basear na teologia e narrativas religiosas para transmitir sugestões básicas de saúde pública de maneira que as pessoas possam aceitar com mais facilidade interpretan- do a importância das medidas, tanto por tradição, quanto por contexto. Líderes religiosos podem modelar comportamentos construtivos como, por exemplo, respeitar a quarentena e apelar, na ameaça de violência, por com- paixão e solidariedade para evitar raiva e recriminação. Líderes religiosos também podem, é claro, transmitir informações im- precisas e falsas. Como promover curas duvidosas para COVID-19 ou espalhar visões apocalípticas que contribuem para medo e desconfiança durante a pande- mia. Assim, líderes e entidades religiosas são responsáveis em combater rumores, mal-entendidos, informações falsas e teorias da conspiração dissipando e corri- gindo a desinformação. Por fim, as instituições religiosas têm grande capacidade de se comunicar de maneira positiva e suas mensagens desempenham um papel crítico na maneira pela qual uma doença é percebida pelo público. 55 Identificar e assistir grupos vulneráveis é uma função vital das entidades religiosas, que pelo conhecimento de suas respectivas comunidades, são capazes de direcionar ajuda com precisão a grupos particularmente vulneráveis. Em to- das as pandemias, os ensinamentos e práticas de entidades religiosas apoiaram os famintos, os idosos e as minorias excluídas. Os atores religiosos também de- sempenham papéis importantes na defesa destes grupos, insistindo que os gover- nos e outras entidades se concentrem nos mais necessitados. As pandemias, como é sabido, potencializam a discriminação contra gru- pos marginalizados, incluindo imigrantes, refugiados, minorias raciais e étnicas. A tendência em culpar determinados grupos tem raízes antigas e também ma- nifestações contemporâneas, com ocorreu nas pandemias de HIV/AIDS, Ebola e agora com a COVID-19. Grupos estigmatizados podem ser associados a doen- ças específicas, como aconteceu com asiáticos-americanos, nos Estados Unidos, e com muçulmanos, na Índia, durante a presente pandemia. As comunidades religiosas podem exacerbar preconceitos e inflar tensões, mas também podem combatê-las. Líderes religiosos conscientes, admoestam e orientam seus seguidores, encorajando valores humanitários e enfatizando cren- ças que superam o preconceito. A confiança é vital durante as pandemias, tanto para intervenções na saú- de pública quanto para apoiar e implementar as mudanças econômicas e sociais que as acompanham. Embora a confiança na liderança religiosa possa variar, pesquisas indicam que os líderes religiosos estão, frequentemente, entre as ca- tegorias de líderes mais confiáveis, principalmente, no papel vital de combater o medo e falsas informações sobre a COVID-19. O perigo de desconfiança mútua foi evidente durante o surto de Ebola, em 2014, na África Ocidental, quando as autoridades provocaram medo e suspei- ta, na população, ao tornar obrigatório a cremação e o enterro rápido dos mortos para conter a propagação do Ebola. Para piorar, os trabalhadores de organiza- ções humanitárias, que supervisionavam esses procedimentos, eram estrangeiros vestidos com roupas de proteção que pareciam trajes espaciais que, em muitos casos, foram impedidos de entrar em comunidades afetadas pelo Ebola. Outros, enfrentaram ataques físicos violentos, alguns, até mortais. No final de 2014, ofi- ciais de saúde pública e líderes religiosos, da Organização Mundial da Saúde, trabalharam juntospara produzir um protocolo de enterros, culturalmente mais aceitáveis, para as vítimas do Ebola que podem ter salvado milhares de vidas. Desconfianças semelhantes cercam as diretrizes de saúde da COVID-19, como rastreamento de contatos, por exemplo, o que levantou preocupações legí- timas de privacidade. Uma pandemia não é o momento de fragilizar a confiança mútua entre governos e grupos religiosos. Os governos e instituições, nos níveis global e local, precisam cultivar a relação, por natureza, complexa e diversificada com as religiões para que possa evitar tensões e oportunidades perdidas que, por sua vez, são produtos de abordagens simplistas acerca da religião. 56 Os governos e instituições internacionais reconhecem o poder e a complexi- dade da religião, mas carecem de conhecimento prático e profundo das comunidades religiosas. Como resultado, mesmo os esforços sinceros de divulgação são frequen- temente mal executados, aprofundando, em vez de aliviar as desconfianças mútuas. A crise da COVID-19 envolve desafios consideráveis, sem precedentes, que terão repercussões de longo prazo nos assuntos globais. As necessidades atuais são imediatas e urgentes, mas trabalhar em direção a resultados duradouros, que contemplem, injustiças e desigualdades, é igualmente urgente. Isso exigirá ações para proteger a saúde da comunidade e atenção em longo prazo aos problemas estruturais que a crise revelou. As comunidades religiosas estão desempenhando papéis importantes em todas as dimensões, no cotidiano, por meio de adaptações criativas da prática, mensagens que separam fatos e boatos, apoio às comunidades, divulgação de informações fidedignas e a eliminação de preconceitos. As dificuldades inerentes à reabertura e normalização da vida, em socie- dade, podem ser atenuadas, sobremaneira, pelo apoio decisivo das comunidades religiosas. Elas, certamente, farão parte dos debates políticos das prioridades e reformas que emergem da pandemia, com muito a contribuir, especialmente, nas desigualdades e inconsistências reveladas dos sistemas públicos de saúde. Em di- álogos e debates estimulados por visões de sociedades "reimaginadas", mais jus- tas e pacíficas, as vozes religiosas podem e devem desempenhar papéis centrais. Em cada estágio e para cada tópico, as comunidades religiosas precisam ser parte integrante do todo na elaboração de políticas. As diversas comunidades religio- sas do mundo estão no meio da pandemia, destacando que as distinções habituais entre fé e ciência, exageram as diferenças quando a inclusão e as pontes são urgente- mente necessárias. A sabedoria das antigas tradições religiosas, sua experiência prá- tica e alcance às comunidades, o consolo que elas proporcionam em tempos de crise e seus ensinamentos sociais, tudo isso é necessário agora mais do que nunca. FIGURA 19 – DIVIDIDOS PELA RELIGIÃO E UNIDOS PELA PELO VÍRUS FONTE: <https://bit.ly/3l4bdNo>. Acesso em: 3 jul. 2020. 57 FIGURA 20 – CHARGE DO ARTISTA GREGO, MICHAEL KOUNTOURIS FONTE: <https://wapo.st/2HxOiwt>. Acesso em: 3 jul. 2020. A Peste Negra também afetou a religião. No século XIV os devotos tiveram que se deparar com o que parecia ser o fracasso de sua religião. A Igreja não pôde salvar as pessoas da doença o que levou muitos europeus a questionar suas crenças. Naquela época, os médicos não conheciam a origem da doença e como ela era transmitida, por isso, era comum as pessoas acreditarem que poderes sobrenaturais estavam no controle e viam a praga como um castigo divino. Muitos buscaram na autoflagelação a esperança de expiar seus supostos pecados. O fracasso em proteger seus fiéis e o clero levou a uma dramática perda de poder e influência da Igreja. Para a pessoa comum a conclusão era que devia haver algo errado com a própria Igreja que justificasse a punição. No entanto, era muito mais cômodo responsabilizar alguém pela doença. Um grupo específico foi escolhido como bode expiatório. Os judeus prontamente se tornaram responsáveis pela praga acusados de conspirar para espalhar a doença. O fato de muitos judeus trabalharem no comércio, inclusive como viajantes, levou a população a relacioná-los com a circulação da doença. Os ataques e a perseguição sistemática contra judeus continuaram até o final da Idade Média. FONTE: <https://bit.ly/3ftSZDU>. Acesso em: 3 jul. 2020. IMPORTANTE 58 FIGURA 21 – AFRESCO RELIGIOSO REPRESENTANDO A PESTE NEGRA FONTE: <https://bit.ly/3q0gQ39>. Acesso em: 3 jul. 2020. FIGURA 22 – PROCISSÃO DE FLAGELANTES DURANTE A PESTE NEGRA. QUADRO DE FRAN- CISCO DE GOYA FONTE: <https://bit.ly/3pZOt4U>. Acesso em: 3 jul. 2020. Pesquisas mostram que adversidades e incertezas podem tornar as pessoas mais religiosas. Não que elas pensem necessariamente que Deus fez a terra tremer, mas podem usar sua religião para lidar com a situação. São principalmente cristãos, muçulma- nos, hindus e judeus que usam sua religião para lidar com as experiências após desastres naturais. Os budistas parecem ser menos afetados. IMPORTANTE 59 Que tipos de desastres aumentam as crenças religiosas? De acordo com a teoria enfrentamen- to religioso, as pessoas usam a religião para lidar com eventos grandes, negativos e imprevisí- veis. Isto é parte do chamado enfrentamento focado na emoção, no qual as pessoas buscam reduzir o sofrimento emocional resultante de uma situação. Quando as pessoas enfrentam eventos percebidos negativos, mas previsíveis, como um exame que se aproxima ou uma en- trevista de emprego, é mais provável que se envolvam em um enfrentamento focado no pro- blema, quando pretendem enfrentar diretamente o problema que está causando o estresse. Da mesma forma, a religiosidade aumenta mais em resposta a desastres imprevisíveis, em comparação com os previsíveis. Dos quatro principais desastres geofísicos e meteorológi- cos: terremotos, tsunamis e erupções vulcânicas aumentam a busca pela religião, enquan- to as tempestades tropicais não. Outros desastres, como guerras e conflitos, podem poten- cialmente ter efeitos semelhantes na religiosidade dos desastres naturais. Após o ataque de 11 de setembro, nove em cada dez americanos relataram que lidaram com sua angústia recorrendo à religião. Além disso, pesquisas constatam que pessoas que foram mais expos- tas a conflitos têm maior probabilidade de participar de grupos religiosos. FONTE: <https://bit.ly/39b1kLA>. Acesso em: 3 jul. 2020. 60 LEITURA COMPLEMENTAR ACREDITAR EM DEUS É DIFERENTE DE TER RELIGIÃO, AFIRMA BIÓ- GRAFO DE JESUS CRISTO Ruan de Sousa Gabriel Autor de Zelota – A vida e a época de Jesus de Nazaré e Deus – Uma história humana, o cientista da religião, Reza Aslan, defende o panteísmo como uma “es- piritualidade para um mundo novo e globalizado”. 1 Em seu livro "Deus – Uma história humana", o senhor argumenta que de- sumanizar Deus, despojá-lo de características humanas, é a única maneira de experimentar verdadeiramente o divino. Por quê? Ao longo da história humana, quase todas as culturas e religiões enxerga- ram o divino como um reflexo de nós mesmos. Enxertamos em Deus nossas pró- prias emoções e personalidades, nossas virtudes e nossos vícios, até nossos corpos. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos pediu a várias pessoas que descreves- sem Deus: brancos imaginavam um Deus branco e negros imaginavam um Deus negro; progressistas imaginavam um Deus com traços femininos e conservadores imaginavam um Deus másculo. Todos descreviam a si mesmos. É assim que nosso cérebro funciona. Atribuímos características humanas a Deus para conseguir en- tendê-lo e nos relacionarmos com ele. A consequência negativa e óbvia disso é que também atribuímos a Deus todos os nossos defeitos, preconceitos e intolerâncias. É por isso que as religiões podem ser maravilhosas, inspirar amor e compaixão e refletir o que há de bom na natureza humana. Mas, com frequência, a religião também reflete o que há de pior na natureza humana: violência, misoginia, intole- rância. Não dá para ter a parteboa sem a parte ruim. Por isso, defendo que façamos um esforço consciente para despojar Deus desses atributos humanos. O resultado desse esforço será uma vida espiritual mais profunda, pacífica e plural. 2 Ao desumanizar Deus e despojá-lo de atributos sobrenaturais como sua imen- sa bondade, sua misericórdia e seu poder, não abrimos mão de tudo aquilo de que gostamos nele? Tudo isso que você descreveu são atributos humanos. Misericórdia, com- paixão e amor são atributos humanos. Não são sobrenaturais. Criar um Deus que vê, age e ama do mesmo modo que nós vemos, agimos e amamos é um impulso natural. É por isso que o cristianismo é uma religião tão bem-sucedida. Toda re- ligião atribui qualidades humanas a Deus, mas o cristianismo simplesmente diz que, se você quer saber como Deus é, é só imaginar um ser humano perfeito. É uma espiritualidade fácil e que cria intimidade, mas há limites. É mais satisfatório conceber um Deus que está além das questões humanas, um Deus que não é uma personalidade divina, mas uma força criativa fundamental no Universo. 61 3 No livro, o senhor argumenta em favor do panteísmo, que afirma que Deus não é um ser sobrenatural, mas tudo e todas as coisas que existem. O panteísmo é uma religião? Religiões são instituições criadas por homens. Envolvem estruturas de co- mando e hierarquias. O panteísmo é uma posição espiritual, uma perspectiva. É possível ser um budista panteísta, um cristão panteísta ou até mesmo um ateu panteísta. Uma perspectiva panteísta nos ajuda a entender nosso lugar no Uni- verso, nossa relação com Deus e a relação de Deus com a humanidade. 4 O senhor afirma que encontrou o panteísmo por meio do islamismo sufista. Como pessoas de outras tradições religiosas podem abraçar o panteísmo? O panteísmo é um impulso religioso universal. Está presente no judaísmo, por exemplo. Na cabala (misticismo judaico) há a concepção do “hálito de Deus”, a noção de que Deus existe em todas as coisas. O panteísmo também está presente no pensamento de alguns místicos cristãos. Em religiões orientais, como o taoísmo e o hinduísmo, há a ideia de que Deus não é uma pessoa, mas a totalidade do Universo. O panteísmo aparece até na filosofia. (O filósofo judeu holandês Baruch de) Espinosa argumentava que Deus é a única “substância” e que toda a criação são “modos” de Deus. Até na ciência moderna há a crença de que a matéria e a energia que existem hoje sempre existiram e sempre existirão. É nisso que os panteístas acreditam, que tudo o que existe é uma única substância. Nós chamamos a essa substância de Deus. 5 Como as pessoas podem se relacionar com um Deus que é a totalidade? Deve- mos orar? Devemos louvá-lo? O que fazer com os textos sagrados? É por isso que o panteísmo, embora exista em todas as religiões e tenha sido a primeira forma de espiritualidade humana, nunca foi muito popular. As pessoas se perguntam: “Se Deus é a totalidade, por que ir à igreja? Por que orar?” Um panteísta responde que não são essas práticas que mudam quando se entende que Deus é a to- talidade, é nossa mentalidade que muda. Eu, por exemplo, às vezes vou à igreja com minha esposa e às vezes vou à mesquita. Os templos e as hierarquias não importam. O que importa é o espírito incorporado no grupo de pessoas que, juntas, concentram sua devoção ao divino. Eu oro o tempo todo. Eu não oro para que meu time ganhe ou pedindo coisas. Orar é refletir sobre mim mesmo e meu lugar no Universo. Todo o meu dia é uma oração. Eu vejo Deus em tudo e em todos. Ser um crente devoto é se devotar a todas as coisas — porque elas são Deus. Para muitos, a religião promove uma espiritualidade fácil: não precisam pensar, porque pensam por elas e lhes dizem o que fazer. Para mim, isso é ser uma criança espiritual. A maioria de nós somos crianças espirituais. Devemos crescer, aprender a ser adultos e reconhecer que não precisamos das aparências, mas daquilo que está além delas. 6 As religiões propõem códigos éticos e morais. O panteísmo tem uma ética a nos oferecer? A religião é tão boa em fomentar a moralidade como a imoralidade. A Torá diz: “Ama teu próximo como a ti mesmo”. Mas também manda escravizar todos 62 os incrédulos, sejam eles homens, mulheres ou crianças. Jesus mandou oferecer a outra face, mas também disse: “Não vim trazer paz, mas espada”. O Corão diz que aquele que mata um indivíduo mata toda a humanidade, mas também man- da matar todos os idólatras que você encontrar. As religiões têm muitas sugestões imorais. Podem ser usadas para o bem ou para o mal, promover a compaixão ou a violência. Se alguém age corretamente porque espera uma recompensa ou teme a punição divina, como uma criança que se comporta bem para ganhar um pirulito, qual o sentido? Um panteísta não se comporta como uma criança. Eu tento agir corretamente porque quero refletir o divino que há em mim. É daí que deriva a ética de um panteísta. Eu entendo que há quem prefira ganhar um pirulito, mas eu defendo que cresçamos e deixemos de ser crianças espirituais. 7 A religião está na origem de vários conflitos políticos. Esse Deus com atribu- tos humanos às vezes parece ter opiniões políticas fortes. Quais as implicações políticas do panteísmo e da crença em um Deus desumanizado? Religião e política são fenômenos parecidos. Religião é uma forma de identi- dade e afeta todos os aspectos de nossa vida: nossa visão de mundo, nossas opiniões políticas, como pensamos a economia e a sociedade. Não dá para separar política e religião, como defendem os progressistas, porque as pessoas votam influenciadas por princípios morais baseados na religião. Nos Estados Unidos, nacionalistas bran- cos e pouco educados, que se consideram seguidores da Bíblia, acreditam que deve- mos ser um país branco. Por isso temos um presidente racista. Eles fundiram identi- dade religiosa e identidade política, criando uma bagunça tóxica. Um panteísta diz que todos são Deus, não importa a cor da pele, se você é conservador ou progressista, você é um ser divino. Isso permite uma separação maior entre política e religião. 8 Se a religião fornece uma identidade, que tipo de identidade é fornecida pelo panteísmo? Identidade é como nós definimos a nós mesmos. E nós sempre nos defini- mos em oposição a um outro: eu sou católico, não protestante; eu sou cristão, não muçulmano; eu sou branco, não negro. O panteísmo é uma nova espiritualidade para um mundo novo e globalizado, porque os panteístas se recusam a se definir em oposição a algo ou alguém. Se sou a mesma coisa que você e que esta mesa aqui na minha frente, o indivíduo perde toda a importância e eu ganho uma identidade global. Eu sou um com todas as coisas. No século XXI, vivemos uma tensão entre os globalistas, que dizem que somos todos iguais independentemente de nossa na- cionalidade, e a reação fascista observada nos Estados Unidos e na Europa, onde as pessoas se aferram a sua nacionalidade. A religião segue uma lógica parecida com a lógica nacionalista. Se a religião é nacionalista, o panteísmo é globalista. 9 O senhor anunciou no Facebook que está fazendo uma viagem ao re- dor do mundo com sua família para expor seus filhos a práticas, crenças e cul- turas religiosas as mais diversas. Qual o objetivo dessa viagem? Minha mulher e eu queremos que nossos filhos cresçam espiritualmente conscientes. Não nos importamos com a linguagem que eles vão usar para expressar 63 sua espiritualidade. Não faz diferença se for uma linguagem cristã, muçulmana ou budista. Acreditamos que, se forem expostas a diferentes crenças e visões de mundo, as crianças podem desenvolver um espírito panteísta, entender que a fé que têm é expressa de centenas de maneiras diferentes. Quanto mais aprenderem essas diferen- ças, mais vão reconhecer que a fé é real. A maioria das pessoas acredita que as crian- ças devem ser criadas numa única religião específica. Mas, quando crianças criadas assim crescem, elas começam a achar que religião é besteira e deixam de acreditar emDeus. Elas abandonam a fé porque não sabem a diferença entre Deus e a religião em que foram criadas. Ou então desenvolvem não uma relação com Deus, mas com a religião de seus pais. Quando lhes perguntam “No que você acredita?”, respondem coisas como “Eu acredito no cristianismo”. Mas o cristianismo é apenas uma lin- guagem para expressar algo mais profundo! Não queremos nenhuma dessas opções para nossos filhos. Por isso, decidimos fazer um experimento: estamos vendo se é possível expô-los a várias religiões e mostrar a eles como a fé é universal, para que, quando eles estiverem prontos, possam escolher uma dessas linguagens. Queremos que eles tenham uma espiritualidade ampla, e não limitada pela religião. FONTE: <https://glo.bo/363DIXA>. Acesso em: 27 abr. 2020. 64 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA • Práticas religiosas nas sociedades humanas remontam à Pré-História. Há sí- tios funerários do Homo sapiens com 300.000 anos, como evidência mais antiga de ritos religiosos. • A Era Axial, teoria defendida pelo filosofo alemão Karl Jaspers, sugere que, entre 800 a.C. e 200 a.C., ocorreu, de forma simultânea, uma revolução intelec- tual e filosófica no mundo conhecido que daria origem a sistemas religiosos que viriam influenciar profundamente a Humanidade. • No mundo, existem cerca de 10.000 religiões. Sendo que 84% da população mundial é afiliada a uma dessas religiões: cristianismo, islamismo, hinduís- mo budismo ou alguma religião tradicional. • O conceito moderno de religião se consolidou nos séculos XVI e XVII, e o termo em si é ausente dos textos considerados sagrados em todas as religiões. • A ideia que vivemos em um mundo secular não reflete a realidade. Portanto, o conceito de “ressurgimento” da religião é no mínimo controverso haja visto que ela nunca teria deixado de existir. 65 1 Ritos religiosos são uma presença constante nas sociedades humanas em qualquer região do planeta. Em qual período da história da humanidade os arqueólogos acharam evidências mais antigas de práticas religiosas? a) ( ) Antiguidade. b) ( ) Pré-História. c) ( ) dade Média. d) ( ) Alta Idade Média. 2 Analise as sentenças a seguir sobre a Era Axial do filosofo alemão Karl Jasper, e assinale V paras as verdadeiras e F para falsas. ( ) Para Karl Jasper a Era Axial, entre 800 e 200 d.C., teria sido um período fundamental para o surgimento de sistemas filosóficos completamente alheios a ideia de transcendentalismo. ( ) A Era Axial, entre 800 e 200 a.C., teria sido um período fundamental para o surgimento de sistemas filosóficos e religiosos que ocorrem de forma simultânea em várias regiões do mundo. ( ) Na Era Axial, entre 800 e 200 a.C., desenvolve-se a ideia de transcendência central para os sistemas religiosos. ( ) Na Era Axial, entre 800 e 200 a.C., ocorre uma revolução científica de caráter puramente laico em várias regiões do mundo conhecido. Assinale a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – F – F. b) ( ) F – V – V – F. c) ( ) V – F – V – F. d) ( ) F – F – V – V. 3 Qual o conceito desenvolvido pelo cientista político Joseph S. Nye que enfatiza o papel a ser desempenhado pela religião na solução dos problemas internacionais na atualidade? a) ( ) Poder de dissuasão. b) ( ) Poder moderador. c) ( ) Poder suave. d) ( ) Poder espiritual. AUTOATIVIDADE 66 REFERÊNCIAS ALLEN, A. Charging into the minefield of genes and racial difference. The New York Times, New York, 15 maio 2014. Disponível em: https://nyti.ms/3fyZoho. Acesso em: 15 set. 2020. ALLEN JR., J. L. The catholic church: what everyone needs to know. Oxford: Oxford University Press, 2013. ARMSTRONG, K. 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No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO TÓPICO 2 – O CRISTIANISMO TÓPICO 3 – O ISLÃ Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 72 73 UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O termo “monoteísmo” tem origem no grego monos (único) combinado com theos (Deus). Portanto, da forma mais sucinta possível, significa crença em um Deus único, onipotente, criador de todas as coisas e que intervém em nosso mundo. A existência de cultos monoteístas remonta à Idade do Bronze (3000-1200 a.C.) e a manifestação monoteísta mais antiga surgiu no período védico, na atual Índia, durante a Idade do Ferro (500-332 a.C.). No início do século XX, o antropólogo austríaco Wilhelm Schmidt (1868- 1954) propôs o conceito de Urmonotheismus, ou “monoteísmo primitivo”, como modelo explicativo em contraponto à abordagem evolucionária progressiva das religiões. Schmidt sugere que o monoteísmo teria sido a religião original da hu- manidade a partir da Idade do Bronze em sociedades do Oriente Próximo. No entanto, recentemente, a especialista britânica, Karen Armstrong (1944-), voltou a defender a tese evolucionária progressiva com origem no ani- mismo que teria evoluído para o politeísmo e, sucessivamente, para o henoteísmo (culto de um único deus sem se negar a existência de outras divindades, a mono- latria (crença na existência de muitos deuses, mas com adoração consistente em apenas uma divindade) e finalmente ao monoteísmo. TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 2 RAÍZES DO MONOTEÍSMO Embora o termo “monoteísmo”, em si, seja moderno, os estudiosos buscam suas raízes no mundo antigo. No topo da lista está o faraó egípcio Aquenáton (1353- 1336 a.C.), frequentemente referido como o primeiro a promover um culto monoteísta. Durante o período de Amarna (segunda metade da XVIII dinastia), Aque- náton promoveu a adoração ao deus Áton, o símbolo do sol, como a forma supre- ma de devoção eliminando o culto ao deus Amon-Rá, em Luxor, que era, até en- tão, o deus dominante. No entanto, não há evidências de que Aquenáton também tenha perseguido ou tentado eliminar outros deuses ou deusas da religião egípcia ou tampouco tenha tentado eliminar os inúmeros festivais religiosos ou crenças de vida após a morte, em todo o Egito. Porém, é a partir do século VI a.C. que os zoroastristas, na Pérsia, passam a adorar um único deus, chamado Ahura Mazda, como ser primordial e criador de todas as coisas. UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 74 O zoroastrismo, todavia, não era completamente monoteísta porque vene- rava outras divindades (yazatas) juntamente com Ahura Mazda. De forma análoga, filósofos gregos na Antiguidade, como Xenófones de Cólofon e Antístenes, acre- ditavam em um politeísmo monista (conceito metafísico que afirma que tudo que existe está formado por um só elemento originário) muito próximo do monoteís- mo. Não obstante, convém lembrar que os fundamentos que se tornariam tão caros aos monoteísmos abraâmicos, têm origem no zoroastrismo. Dessa maneira, aspec- tos fundamentais do zoroastrismo, como, messianismo, julgamento após a morte, a ideia de “céu e inferno”, livre-arbítrio, entre outras, influenciaram, sobremaneira, o judaísmo, gnosticismo, a filosofia grega, o cristianismo, o islamismo e o budismo. O conceito de Universo, para os antigos, consistia em três reinos: o Céu (os céus); a Terra (humanos); e o Submundo (ou simplesmente "a terra dos mortos"). O “Céu” era o domínio dos deuses habitado por divindades que possuíam uma vasta gama de poderes. As civilizações antigas, de modo geral, adoravam um deus dominante, ou um “rei dos deuses”, com outras divindades encarregadas de vários aspectos da vida, servindo como um tribunal de conselheiros ou, sim- plesmente, como mensageiros para os seres humanos. Esses poderes podiam se manifestar na Terra de várias maneiras e podiam se manifestar no Submundo por intermédio das divindades menores, conhecidas como daemons, que passaram a ser conhecidas como “demônios”. Acreditava-se que esses últimos eram capazes de possuir pessoas, o que funcionava como expli- cação para doenças e transtornos mentais. 3 CRENÇA, FÉ E CREDO O conceito moderno de monoteísmo se baseia em dois princípios: “cren- ça” e “fé”, porém, isto não significa dizer que os devotos das religiões na Antigui- dade não adoravam seus deuses e deusas. Apenas nesses sistemas religiosos, as manifestações ditas divinas ocorriam de maneira diversa, se comparadas com as religiões monoteístas abraâmicas. O equivalente mais próximo, na Antiguidade, seria o encontrado nas obras de Homero (Ilíada; Odisseia) Hesíodo (Teogonia; Os Trabalhos e os Dias) e nos mitos dos bardos como base das narrativas da criação e dos deuses e heróis. Como não havia uma autoridade central para ditar uma ortodoxia de crenças e práticas, cada grupo étnico desenvolveu rituais e práticas necessárias para seus cultos. TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 75 CRENÇA E FÉ: RELAÇÕES E DIFERENÇAS Fabrício Veliq É comum, ao se abordaressa temática pelo viés teológico, definir crença, como algo que seria algo comum a todas as pessoas, mais ligada à ideia do acreditar em algo ou alguém, como pode ser percebido cotidianamente nas diversas relações familiares, institucionais, amorosas etc., uma vez que em todos esses tipos de relacionamentos está pressuposto o acreditar que aquele/a em quem se confia não nos trairá ou pagará o nosso salário em dia etc. Esse sentido mais simples de acreditar, que envolve certa certeza do que acontecerá, seria o que hoje se define como uma crença. A fé, por outro lado, é definida como aquela que tem a ver com uma decisão fundamental de entregar o seu coração a alguém ou a alguma coisa, de maneira que não é algo que vem simplesmente pelo hábito, ou que deve ser crido cegamente, mas envolve também uma reflexão a respeito daquilo sobre o qual se deseja depositar essa fé. [...] É muito comum que os/as cristãos vejam as outras religiões como crenças e a religião cristã como fé e nisso é possível perceber que no uso dos termos está implícita certa noção de superioridade do cristianismo em relação às outras religiões. De certa forma, traz a ideia de que as outras religiões somente têm crenças e acreditam cegamente em algo, enquanto o cristianismo é a religião que possui a fé e, por isso, a melhor de todas e a mais correta. Nada mais errôneo, até mesmo porque pode haver cristãos que somente tenham uma crença cristã, assim como budistas que tenham uma fé budista, e assim por diante. [...] Por ser um encontro, a fé não deve ser pensada de maneira fechada e nunca deve ser encarada como convicção cega. [...] Entendendo crença e fé com essas diferenças, não é difícil inferir que se pode tanto ser uma pessoa de crença como uma pessoa de fé. No primeiro, há sempre a tendência a uma postura de fechamento diante das novas situações, presa nos aspectos doutrinais e nas “convicções” aprendidas por meio do hábito e da cultura. No segundo, uma vez que se mostra como decisão refletida e em liberdade, fruto de um encontro que pode ser de diversas maneiras, tende a ser propensa a abertura e ao diálogo com o diferente. [...] FONTE: <http://bit.ly/3sKLChA>. Acesso em: 8 dez. 2020. IMPORTANTE O judaísmo seria então a primeira religião abraâmica a conceber a ideia de um monoteísmo ético, no qual a moralidade provinha de Deus, e suas leis eram eternas. Posteriormente, estes conceitos se tornariam a base de outras religiões como o cristianismo, islamismo, entre outras. Para o judaísmo, assim como para outras tradições abraâmicas, o mono- teísmo era a religião original da humanidade. Esta visão de um “monoteísmo primitivo” foi abandonada, no século XIX, em favor de uma teoria evolucionista que sugeria uma progressão do animismo, via politeísmo, para o monoteísmo. O judaísmo antigo, portanto, é considerado por muitos como a origem do monoteísmo na tradição ocidental. Recentemente, porém, estudiosos preferem empregar o termo "monolatria" como o mais adequado para se estudar sistemas UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 76 monoteístas que contemplavam a existência de outros deuses, mas escolheram adorar apenas um. Assim, como seus vizinhos, cananeus, egípcios e arameus, os judeus antigos conceberam uma hierarquia de poderes no céu: "filhos de Deus" (BÍBLIA, 2012, Gênesis 6), anjos, arcanjos (os mensageiros de Deus que comuni- cam a vontade de Deus aos seres humanos), querubins e serafins. Os judeus tam- bém reconheciam a existência de demônios, com muitos exemplos no ministério de Jesus nos evangelhos, em seu papel de exorcista. Os estudiosos sempre tentaram analisar Gênesis 1:26: "Então Deus disse: fa- çamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança..." (BÍBLIA, 2012). Com quem Deus estaria falando? O "nosso" é o mesmo que o "nós real"? As sugestões incluíram a ideia nas culturas antigas de que os Céus refletiriam a estruturas sociais na Terra. Os reis, geralmente, tinham um tribunal de conselheiros e, portanto, ha- veria um “tribunal celestial” também. Geralmente, se concebe a ideia de que os judeus eram monoteístas quando Moisés recebeu os mandamentos no Monte Si- nai: "Eu sou o Senhor, seu Deus... Você não terá outro Deus antes de mim", a tra- dução, porém, poderia ser: "nenhum outro Deus além de mim". Isto indicaria que outros deuses existiam e o mandamento ordenava que os judeus não deveriam adorar outros deuses. A adoração no mundo antigo, invariavelmente, implicava oferecer sacrifícios. Os judeus podiam orar aos anjos e outras potências no céu, mas deveriam oferecer sacrifícios ao deus de Israel (HURTADO, 2005). As “Escrituras” judaicas se referem à existência de deuses das nações (grupos étnicos): Deuteronômio 6:14, "não sigam outros deuses"; 29:18 "servir aos deuses dessas nações; 32:43 "Louvado seja o Céu, seu povo, adore-o todos os seus deuses!" (BÍBLIA, 2012); Isaías 36:20 "quem dentre todos os deuses dessas nações salvou suas nações?" (BÍBLIA, 2012); e Salmo 821 "Deus preside a grande assem- bleia, Ele faz julgamento entre os deuses" (BÍBLIA, 2012). Na história do Êxodo dos judeus do Egito, “Deus” luta contra os Deuses do Egito para demonstrar quem controla a natureza. Isso não faria sentido se a existência deles não for reconhecida: "Trarei julgamento sobre todos os deuses do Egito" (BÍBLIA, 2012, Êxodo 12:12). Enquanto os judeus apenas ofereciam sacrifícios ao deus de Israel, eles compartilhavam uma convicção comum de que todos os deuses deveriam ser respeitados; pois era perigoso irritar os outros deuses. O Êxodo 22:28, ordenava aos judeus nunca menosprezarem os deuses das nações (BÍBLIA, 2012). Com a destruição do templo judaico, em Jerusalém, pelos romanos no ano 70 d.C., os sacrifícios rituais não eram mais possíveis. Assim, os rabinos, tornados autoridades máximas no judaísmo, iniciam um longo processo de reinterpretação da religião que os levaria a consolidar a ideia da existência de um deus único. Com a perseguição dos gregos selêucidas (que resultou na revolta dos Macabeus em 167 a.C.), se acreditava que aqueles que morreram como mártires, por se re- cusarem a adorar os deuses gregos, eram recompensados e, instantaneamente, transportados para o Céu. TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 77 4 MONOTEÍSMO FILOSÓFICO Com o surgimento de escolas de Filosofia grega, por volta de 600 a.C., em Mi- leto, a especulação filosófica sobre o universo e o lugar dos humanos nele começou a se espalhar por toda a bacia do Mediterrâneo. Filósofos reuniram estudantes ao seu redor (discípulos), e foram estes estudantes que, na maioria das vezes, reproduziram seus ensinamentos para a próxima geração. A Filosofia na Grécia Antiga ensinava um modo de vida oferecendo suas próprias interpretações morais e espirituais. As escolas de Platão, Aristóteles e os estoicos ensinaram maneiras de lidar com os caprichos da vida, mais preocupados com o estado da alma do que com as coisas do mundo. O foco estava em como a alma poderia retornar às suas origens no reino superior após a morte, reunindo-se com o "deus mais alto". Para Platão, esse deus supremo era incriado, imutável (não sujeito a mu- danças) e pura essência (não importa e, portanto, não está sujeito à decadência). Através do dispositivo da alegoria, resumos da realidade emanavam da mente de Deus, como a luz de uma vela. Esse “Deus” também emanou os logotipos, ou o princípio da racionalidade, para ordenar o mundo físico. Aristóteles (384-322 a.C.) lidou com a metafísica ou a existência dos pri- meiros princípios. O deus mais alto é a primeira de todas as substâncias, o "mo- tor imóvel", causando o movimento das esferas, dos planetas. Para os estoicos, o universo era um organismo único energizado por uma força racional iminente e divina que ordenava o universo de acordo com a lei natural. Eles ensinaram que todos deveriam viver uma vida de aceitação do bem e do mal, disciplinando-se para finalmente alcançar harmonia com essaforça divina. Essas escolas criticavam a mitologia grega tradicional e seu antropomor- fismo (atribuindo características humanas aos deuses), embora muito poucas condenassem os sacrifícios tradicionais ou pedissem a eliminação dos rituais tra- dicionais. Portanto, a Filosofia contribuiu para as eventuais visões do monoteís- mo, tanto para os teólogos cristãos como para os rabinos posteriores. UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 78 FIGURA 1 – AQUENÁTON E A FAMÍLIA REAL NO ANTIGO EGITO FONTE: <https://bit.ly/35ZzmjA>. Acesso em: 8 dez. 2020. 5 RELIGIÕES ABRAÂMICAS São as religiões praticadas pelos povos de língua semítica, cuja origem comum remete ao judaísmo dos antigos israelitas e ao culto ao deus de Abraão. As religiões abraâmicas são monoteístas e o termo deriva de “Abraão”, importante figura bíblica do Velho Testamento, reconhecida por judeus, cristãos e muçulmanos, entre outras religiões. As religiões abraâmicas se difundiram por intermédio do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Na atualidade, se estima que 54% (3,6 bilhões de pessoas) da população mundial, são adeptas de uma religião abraâmica. TEMPLO REVELA MISTÉRIOS DO MONOTEÍSMO Arqueólogos acreditam ter descoberto as origens desconhecidas do monoteísmo no norte da Jordânia. O Templo Migdol ainda pode ser visto encravado nas colinas áridas do Vale do Rio Jordão. À primeira vista seus blocos imensos de pedra não diferem muito de qualquer outra cons- trução antiga. Porém, uma equipe formada por arqueólogos jordanianos e australianos, em 1997, no sítio antigo chamado Pella, começaram a montar um quebra-cabeças que logo se revelou uma história de 3.600 anos gravado na pedra. As informações contidas em um único espaço no Templo Migdol revelam um dos mais im- portantes eventos da história da Humanidade: a transição do politeísmo para a crença em um Deus único. Utilizado de forma contínua, entre 1650 e 850 a.C., o Templo Migdol abriga cente- nas de artefatos religiosos que indicam cinco fases distintas de sua ocupação e reconstrução. DICAS TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 79 Construído, destruído e reconstruído repetidas vezes o Templo Migdol registra mudanças durante o período dos cananeus, o egípcio, o filisteu e a era dos reinos locais. A história do Templo Migdol ocorre na mesma região e simultaneamente ao início do monoteísmo como registrado no Velho Testamento. O templo já existia durante a chegada dos israelitas e o es- tabelecimento dos reinos de Israel e Judá que marcam o início do monoteísmo abraâmico. Durante 800 anos de sua ocupação o Templo Migdol seus devotos gradualmente mu- dam de suas crenças politeístas da Idade do Bronze para crenças henoteístas da Idade do Ferro que permitem a crença em diversos deuses embora encorajando a veneração em um deus supremo em relação aos outros. A ênfase na crença em um Deus não apenas aconteceu com os israelitas, mas ocorreu simultaneamente com vários povos através do Oriente Médio, como culto a Hadad em Damasco, a Milkom em Aman, a Chemos em Moab (atual Jordânia) e a Qos em Edom (atual Israel). As mais recentes descobertas em Migdol sugerem que a região conheceu uma forma particular de monoteísmo e que este surgiu em áreas diferentes do Oriente Médio como forma de unificar nações. As evidências do Templo Migdol sugerem que uma consciência coletiva surge em centros diferentes de forma idêntica. Portanto, não nada de único da experiencia israelita, que ocorre por toda a região e as descobertas em Pella registram essas mudanças no norte da Jordânia. O sítio de Pella é único pelo longo período de sua ocupação. Na maior parte localizado na Jordânia, Pella permite aos arqueólogos estudar, em um único lugar, como a cultura humana se desenvolveu por mais de 10.000 anos. Não existe outro lugar em que se possa estudar História com tanta profundidade. FONTE: Traduzido e adaptado de <https://bit.ly/393L9iF>. Acesso em: 8 dez. 2020. FIGURA 2 – TEMPLO CANANEU DE MIGDOL, JORDÂNIA FONTE: <https://bit.ly/3c1chRC>. Acesso em: 8 dez. 2020. UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 80 FIGURA 3 – REPRODUÇÃO ARTÍSTICA DA APARÊNCIA DO TEMPLO DE MIGDOL EM 1.600 A.C. FONTE: <https://bit.ly/2Y8ahhX>. Acesso em: 8 dez. 2020. 5.1 O JUDAÍSMO O judaísmo tem suas raízes no Oriente Médio, no período conhecido como a Idade do Bronze (4000-500 a.C.), e evoluiu de antigas práticas religiosas naquela região, por volta de 500 a.C. O judaísmo pode ser considerado uma das mais antigas religiões monoteístas e seus textos, tradições e valores influenciaram outras religiões abraâmicas, incluindo, o cristianismo e o islamismo. O judaísmo, de acordo com uma visão histórica, evoluiu de antigas religiões semíticas politeístas, especificamente, do politeísmo cananeu. Posteriormente, coexistiu com a religião babilônica e seus sin- cretismos conforme se evidencia nos primeiros livros proféticos da Bíblia hebraica. FIGURA 4 – O LEVANTE (REGIÃO NO ORIENTE MÉDIO QUE CORRESPONDE ATUALMENTE AO LÍBANO, SÍRIA, ISRAEL E PALESTINA) FONTE: <https://bit.ly/39Vdcjx>. Acesso em: 8 dez. 2020. TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 81 O judaísmo se tornou uma prática religiosa distinta do politeísmo cananeu, por meio de um processo, que começou com a adoração monolatrística, de Yahweh (Javé) e se consolida, gradualmente, como uma crença monoteísta de culto a Javé, com a rejeição a todos os outros deuses, cananeus ou estrangeiros. Durante o chamado “cativeiro babilônico”, entre os séculos V e VI a.C., certos círculos judeus, exilados na Babilônia, transformam o monolatrismo, centrado em Javé, em uma teologia monoteísta rígida que veio dominar o antigo reino de Judá nos séculos seguintes. Dessa maneira, entre o século V a.C. e o ano 70 d.C., a religião judaica se desenvolveu em várias escolas teológicas do judaísmo do Segundo Templo, além do judaísmo helenístico, na diáspora. A escatologia do Segundo Templo foi influenciada pelo zoroastrismo persa de maneira marcante. O texto da Bíblia hebraica, neste período, foi então redigido e canonizado. Por outro lado, o judaísmo rabínico, o mais praticado na atualidade, se desenvolve mais tarde, entre os séculos III e VI, já na Era Cristã; quando foram compilados o texto massorético (texto hebraico da Bíblia utilizado com a versão universal da Tanakh) e o Talmude. Os manuscritos mais antigos da tradição massorética têm origem nos séculos X e XI, sob a forma do “Códice de Alepo” (Síria) e de textos posteriores, no século XI, compilados no “Códice de Leningrado” (feito no Cairo, Egito). Portanto, os manuscritos mais antigos existentes de várias obras rabínicas, são obras consideradas tardias e a cópia manuscrita completa mais antiga do Talmude Babilônico é datada de 1342. O episódio conhecido como “Cativeiro Babilônico”, na história judaica, poderia ser entendido, de uma maneira menos dramática, como o início do judaísmo, que ocorreu na Mesopotâmia, não na Judeia. Este foi um capítulo de imensa importância na história do judaísmo, sobre o qual, infelizmente, pouco se sabe. No entanto, podemos dizer que, por mais de mil anos, a Mesopotâmia esteve no coração do judaísmo. Desde o século I até o fim da Antiguidade, muito mais judeus viviam na Mesopotâmia do que na Judeia. E foi na Mesopotâmia, que estudiosos judeus produziram o Talmud babilônico, desde então, texto central e normativo para o judaísmo rabínico. IMPORTANTE O deus hebreu seria único e solitário, consequentemente, seu relacionamento não seria com outros deuses, mas, sim, com o mundo e, mais especificamente, com os seres humanos. O judaísmo inicia a prática de um monoteísmo ético, isto é, a cren- ça que Deus é um e se preocupa com as ações da humanidade. Segundo o Tanakh (Bíblia hebraica), Deus teria prometido a Abraão que faria de seus filhos uma grande nação. De acordo com essa crença, muitas gerações depois, o deus hebreuordenou à nação de Israel que amasse e adorasse apenas um deus. Assim, a nação judaica de- veria retribuir a preocupação de deus com o mundo. Este mandamento é parte um conjunto de leis que constituem um convênio que dá substância ao judaísmo. UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 82 Embora exista uma tradição esotérica no judaísmo (Cabala), o estudioso rabínico Max Kadushin (1895-1980) caracterizou o judaísmo normativo como "mis- ticismo normal" porque envolve experiências pessoais cotidianas com deus através de comportamentos comuns a todos os judeus. Isso ocorre pela observância da Halacá (lei judaica) cuja norma é verbalizada no Birkat Ha-Mizvotou ou breves bên- çãos, expressas toda vez que um mandamento é cumprido. Assim, ocorrências co- muns, familiares e cotidianas constituem ocasiões para a experiência com Deus. De forma análoga, o sustento diário e outras realizações são percebidas como manifes- tações da bondade de Deus, exigindo, em troca, a prática de “santidade” (Berakhot Kedushah), que seria a imitação do divino. Portanto, embora a experiência com o divino seja única, as ocasiões para experimentá-la conscientemente são múltiplas. O monoteísmo ético é central em todos os textos sagrados ou normativos do judaísmo. No entanto, o monoteísmo nem sempre foi seguido na prática. Por isso, a Bíblia judaica (Tanakh) registra e condena, repetidamente, a adoração gene- ralizada de outros deuses do antigo Israel. Na Era Greco-Romana, existiam muitas interpretações diferentes do monoteísmo judaico incluindo as interpretações que deram origem ao cristianismo. Por isso, há o debate, em certos círculos, se o juda- ísmo é uma religião que exigiria a crença em Deus. De acordo com esta linha de interpretação, a lei judaica seria mais importante do que a crença em Deus, em si. Recentemente, alguns movimentos de judeus liberais rejeitam a existên- cia de uma divindade ativa na história do judaísmo. Portanto, o debate sobre se alguém pode falar sobre o judaísmo, autêntico ou normativo, não ocorre apenas entre judeus religiosos, mas também ocorre entre historiadores. O judaísmo não há uma autoridade centralizada, que dite dogmas religiosos a serem seguidos. Por este motivo, muitas variações das crenças básicas são conside- radas no escopo do judaísmo. Mesmo assim, todos os movimentos religiosos judai- cos são, em maior ou menor grau, baseados nos princípios da Bíblia hebraica e em vários comentários, como o Talmud e o Midrash. O judaísmo também reconhece, universalmente, a aliança bíblica que teria sido feita entre Deus e Abraão, bem como os aspectos adicionais da aliança, revelados a Moisés, considerado o maior profeta do judaísmo. Na Mishnah, um texto central do judaísmo rabínico, a aceitação da origem divina desta aliança é considerada um aspecto essencial do judaísmo. A lei judaica, chamada Halacá, é interpretada e reinterpretada ao longo de milênios. Ademais, o judaísmo religioso opera ciclicamente no tempo e a maneira linear, como os historiadores modernos abordam a história, não corresponde a essa visão de mundo. Os feriados principais, como o sabá ou o ano novo judaico, ser- vem para estruturar uma fronteira entre o sagrado e o profano. Outros festivais re- lembram eventos antigos, conectando judeus, em qualquer época, aos antigos isra- elitas. Como, por exemplo, lembrando a entrega da Torá, no Monte Sinai, o êxodo do Egito, as colheitas de outono e a vitória dos macabeus sobre o reino helenizado. O judaísmo é um modo de vida que honra o ciclo de dias, semanas, meses, anos e vidas. O sabá, o sábado, serve como o lembrete final do ciclo judaico do TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 83 tempo. Baseado na crença de que no sétimo dia da criação Deus descansou, o sabá é um marcador do tempo sagrado. Os judeus religiosos abstêm-se de todos os tipos de trabalho no sábado e passam o dia com suas famílias e comunidades, orando, ouvindo enquanto uma parte da Torá é cantada (as leituras são determinadas por um horário fixo) e comendo fartamente. Um grande rabino do século XX, Abraham Joshua Heschel, descreveu o sábado como "uma catedral no tempo" (BIALE, 2006). Apesar da autoridade da voz rabínica no Talmud, o judaísmo não é hierárqui- co. Não existe, nem nunca houve, uma única autoridade; a religião é interpretada por quem a pratica e a estuda. Existe uma tendência a conceber o judaísmo como uma re- ligião antiga, originária no Levante, onde Deus teria dado a Torá aos israelitas, porém, uma parte essencial da tradição religiosa foi produto dos estudos rabínicos, já na Era Cristã, que continuaram a debater, discutir e reinterpretar leis antigas (BIALE, 2006). As divisões tribais antigas, bem como os movimentos sectários posterio- res, incluindo, o cristianismo primitivo, estabeleceram um precedente de diver- sidade cultural judaica. Até a Bíblia hebraica não foi escrita exclusivamente em hebraico; pois inclui seções em grego e aramaico. No entanto, religião foi unifi- cada sob a égide de uma coletânea de textos sagrados, começando com a Bíblia hebraica, passando pelo Talmude, livros de oração rituais e folhetos místicos. No judaísmo, a religião é algo distinto do povo judeu. Embora esteja claro que nem todos os judeus praticam o judaísmo, todos aqueles que praticam o judaísmo se consideram judeus. Em outras palavras, existem judeus sem judaísmo, mas não pode haver judaísmo sem judeus (YERUSHALMI, 1989). Enquanto a coleção de textos sagrados e o calendário unem judeus em todo o mundo, existem profundas divisões culturais e políticas. Os alimentos, música, lite- ratura, idioma e interpretações dos judeus variam imensamente, dependendo da ori- gem da comunidade. O judaísmo norte-americano, por exemplo, é dividido em mo- vimentos e denominações, de forma análoga ao cristianismo norte-americano. Estas denominações têm comitês de rabinos que votam na escolha de uma linha filosófica e os tipos de observância que suas comunidades adotarão. No entanto, disputas in- ternas constituem parte da longa tradição de debate judaico (YERUSHALMI, 1989). 5.1.1 Judaísmo no tempo Sem que haja evidências arqueológicas, a Bíblia hebraica descreve um templo em Jerusalém erguido pelo rei Salomão, provavelmente, em algum perío- do no século X a.C. A Bíblia também descreve a destruição do templo pelas mãos dos babilônios quinhentos anos depois (BÍBLIA, 2012). Diáspora Após a destruição do primeiro templo, os judeus se espalharam por re- giões do Oriente Médio ocidental e pela Mesopotâmia, criando culturas judaicas concorrentes. Os estudiosos judeus perceberam, então, que seria necessário escre- UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 84 ver as tradições orais e estabelecer um modelo para as gerações futuras para que se debatessem e se reinterpretassem as leis judaicas. O estudioso mais conhecido é Hilel (110 a.C. – 10 d.C.), estudioso proto-rabínico, que desenvolve métodos flexíveis para interpretar a Bíblia hebraica. Portanto, desde a sua criação, o ju- daísmo tem sido sujeito à interpretação e contextualizado em suas respectivas comunidades. Um novo templo foi construído um século depois, da destruição do primeiro, quando alguns judeus retornaram à terra de Israel. No ano 70 d.C., após o Cerco de Jerusalém pelos romanos, os judeus, segundo a tradição judaica, teriam se dispersado pelo norte da África, Oriente Médio e regiões no entorno do Mar Mediterrâneo. Esta dispersão é parte de uma narrativa chamada “Diáspora”. Para Aharon Oppenheimer, especialista israelense da Universidade de Tel Aviv, a narrativa do “exílio”, que começou após a destruição do Segundo Templo Judaico, foi criada e propagada pelos primeiros cristãos, que viam a destruição do templo judeu como uma punição ao deicídio judaico e, por extensão, como uma afirmação dos cristãos como novo “povo escolhido”, ou o "novo Israel". Segundo Oppenheimer, contrariando esta narrati- va, noperíodo que se seguiu à destruição do templo, os judeus desfrutavam de liberdades, tinham autonomia religiosa, econômica e cultural, como poderia ser comprovado pela revolta de Bar Kochbae, em 132, na qual os judeus demonstraram possuir unidade e poder político-militar sessenta e dois anos após a destruição do templo. FONTE: OPPENHEIMER, A. The Jerusalem temple in diaspora: jewish practice and thou- ght during the second temple period. Leiden: Brill, 2019, p. 204. NOTA Judaísmo na Idade Média Na Idade Média, comunidades judaicas habitavam áreas dominadas por muçulmanos e cristãos. Essas comunidades tinham tradições distintas, mas as di- ferenças mais pronunciadas eram entre aquelas originárias de áreas muçulmanas e aquelas originárias de áreas cristãs. Os judeus que habitavam áreas da Europa Central e Oriental eram chamados de “asquenazes”. Os que viviam nas regiões do mundo islâmico ocidental (Península Ibérica) eram chamados “sefarditas” e os ju- deus originários das terras muçulmanas, no Oriente Médio e norte da África, eram chamados mizrahi e maghrebi, respectivamente. Esses rótulos, historicamente, nun- ca tiveram importância, pelo menos até o século XX, quando judeus originários de países árabes emigraram para a Europa, Estados Unidos e Israel (BOYARIN, 2004). TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 85 FIGURA 5 – PAINEL DO SANTUÁRIO DA TORÁ NA SINAGOGA BEN EZRA, NO CAIRO, SÉC. XI, OS PADRÕES ESTÉTICOS DEMONSTRAM A INFLUÊNCIA DA ARTE ISLÂMICA FONTE: <https://bit.ly/3p8Ll5X>. Acesso em: 8 dez. 2020. Na Idade Média, judeus asquenazes e sefarditas eram obrigados a pagar im- postos específicos em troca de autonomia comunitária. Com o passar do tempo lín- guas vernaculares, dos não judeus, entre os quais viviam, são incorporadas e estilos arquitetônicos, musicais, culinários e literários são adotados. Dessa maneira, as sina- gogas em terras cristãs são arquitetonicamente monótonas por fora, mas extrema- mente ornamentadas por dentro. Em contraste, as sinagogas em terras muçulmanas tinham cúpulas e arcos que imitavam a arquitetura islâmica, como a Santa Maria la Blanca, em Toledo, na Espanha, ou a Sinagoga de Argel Grande, na Argélia. FIGURA 6 – SINAGOGA SANTA MARIA LA BLANCA (SINAGOGA IBN SHUSHAN) TOLEDO, AL-AN- DALUS (ESPANHA), SÉC. XII FONTE: <https://bit.ly/3bZTQMZ>. Acesso em: 8 dez. 2020. UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 86 Na Europa, a perseguição aos judeus começa depois que o imperador ro- mano Constantino se converteu ao cristianismo. Nos séculos XI e XII, os cruzados massacraram judeus por toda a Europa, culpando-os pela crucificação de Jesus. E a perseguição foi reforçada por outra, chamada “libelo de sangue”, em que judeus promoveriam o assassinato ritual de crianças cristãs. Os judeus que viviam na Eu- ropa eram alvos fáceis para os cruzados, pois os muçulmanos, alvo principal da ira dos cruzados, na ocasião, ainda estavam longe. Durante os séculos XIV e XV, os judeus na Península Ibérica, após a chamada “Reconquista”, ficaram sujeitos a formas violentas de antijudaísmo. A “Inquisição Espanhola”, em particular, forçou conversões e expulsões de muitos judeus da Península Ibérica (CHAZAN, 2006). Em contraste, a vida dos judeus em terras islâmicas era relativamente tran- quila. Nas áreas dominadas pelos muçulmanos os judeus, da Idade Média, eram tolerados na condição de dhimmi (“povo do livro”), um status religioso concedido, inicialmente, a judeus e cristãos, que viviam em terras islâmicas. Esse status lhes per- mitia viver em domínios muçulmanos mediante pagamento da jizia, um imposto per capita, cobrado em troca de proteção e isenção do serviço militar, assim como a isenção de outros impostos pagos pelos muçulmanos, como o zakat (ver no Tópico 3) Ao contrário do mundo cristão, os judeus não eram a única comunidade religiosa a praticar outra religião em um mundo bem mais culturalmente diverso em terras islâmicas, onde, além dos judeus, viviam cristãos, zoroastristas, hindus, budistas, entre outros. Os judeus, dessa maneira, foram integrados à sociedade islâmica e puderam praticar sua religião. Na Idade Média, os judeus conduziam negócios com não judeus e as se- melhanças na, arte, música e tradições alimentares pareciam indicar uma comple- ta interação, porém, suas vidas comunitárias permaneciam praticamente separa- das, pois as leis alimentares judaicas, ou kashrut, prescreviam aos judeus ter seus próprios açougueiros, padeiros e até produtores de vinho. No sábado, descanso semanal judeu, comerciantes e camponeses judeus não trabalhavam. A lei judaica proibia o casamento fora da religião, solidificando ainda mais as fronteiras entre judeus e seus vizinhos, fronteiras que, em alguns casos, mais tarde se tornariam guetos, dentro dos quais, os judeus foram forçados a viver (COHEN, 1994). Um gueto, geralmente é parte de uma cidade em que vivem membros de um grupo minoritário, geralmente, como resultado de pressão social, legal ou econômica. Os guetos são conhecidos por serem mais empobrecidos do que outras áreas da cidade. Versões do gueto aparecem em todo o mundo, cada uma com seus próprios nomes, clas- sificações e agrupamentos de pessoas. O termo foi originalmente usado em Veneza, Itália, em 1516, para denominar a parte da cidade onde os judeus viviam segregados. NOTA TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 87 Os judeus entre 1750 e a 2ª Guerra Mundial A emancipação dos judeus europeus dos guetos se tornou referência de transição de uma nação medieval para uma nação moderna. Após o surgimento dos estados seculares, em 1791-2, os judeus franceses receberam direitos civis. Ao longo do século XIX, outras nações europeias seguiram o exemplo. Os estados nacionais se distanciaram das antigas formas de organização política tolerando os judeus, embora com reservas (BIRNBAUM; KATZNELSON, 1995). Iluminismo judaico (haskalá) Na Alemanha, que não se tornou uma nação unificada até 1871, os judeus não receberam a igualdade jurídica como cidadãos. Os direitos dependiam da região em que viviam e, em alguns lugares, os judeus receberam direitos, mas estes direitos foram posteriormente revogados. Não é por acaso que a Alemanha foi o berço do judaísmo reformista. Na impossibilidade de conquistar igualdade jurídica, pensadores progressistas judeus tentaram transformar o judaísmo inter- namente para atenuar o preconceito (GITELMAN,1988). Moses Mendelssohn (1729-1786) foi pioneiro do Iluminismo judaico, ou Haskalá, que defendia muitas das mesmas ideias sobre liberdade e direitos iguais defendidas por Iluministas, como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804). Mendelssohn debatia maneiras pelas quais os judeus poderiam viver em uma sociedade religiosamente plural, na qual você pode adotar os costumes e a constituição do país em que você se encontra, o que significa, também, ser firme em defender a religião de seus pais. Nas gerações subsequentes, muitos judeus, entre eles, os pais de Karl Marx (1818-1883), acharam mais fácil se converter ao cristianismo e viver pu- blicamente como cristãos, com o intuito de evitar a discriminação e ter acesso a empregos e outros direitos básicos (HERTZ, 2007). Porém, havia um paradoxo colocado pela modernidade. Inspirados por Mendelssohn, críticos judeus em todas as terras de língua alemã, no início do século XIX, criaram o movimento Reformador. Esses reformadores acreditavam que sua missão era sintonizar o judaísmo com o pensamento moderno. Também encorajavam, entre mudanças nas práticas religiosas, que as orações deveriam ser feitas no idioma local. Eles incentivaram os rabinos a olhar, além do Talmude e da Torá, em busca de orientação. Os reformadores rejeitaram a ideia de que o passado poderia ditar um modo de vida em um contexto cada vez mais secular e industrial. Eles modela- ram muitas de suas práticas religiosas, depois que os cristãos alemães encoraja- UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTOHISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 88 ram o “decoro” na sinagoga, introduzindo música semelhante aos ritos cristãos e muitos até queriam mudar o dia de descanso do sábado para o domingo. Eles sugeriam permanecer judeus, destacando, não as diferenças, mas as semelhanças do judaísmo com o cristianismo. FIGURA 7 – “JUDEU COM CHAPÉU DE PELE”. REPRESENTAÇÃO DE UM JUDEU DEVOTO PARA UM PÚBLICO NÃO JUDEUS E PARA JUDEUS ACULTURADOS FONTE: <https://bit.ly/3638Yp6>. Acesso em: 8 dez. 2020. 5.1.2 Movimentos no judaísmo moderno Os esforços reformadores enfureceram os tradicionalistas, que reagiram com um conservadorismo intenso, o que acarretou em alguns movimentos opositores à emancipação dos judeus. Movimento ortodoxo Alguns rabinos tradicionais há muito se opunham à emancipação dos judeus, mas em resposta aos reformadores, um grupo de adeptos do Halaká organizou o novo movimento ortodoxo. Eles se opunham às formas culturais seculares que o judaísmo adotou, entre elas: o idioma iídiche e o sionismo, entre outros. Por isso, alguns grupos continuam se vestindo e falando como as gerações passadas. Portanto, essas formas extremas de observância, foram tanto um produto da modernidade quanto de movimentos reformistas (MEYER, 1988). Judaísmo Hassídico Na Europa Oriental, outro movimento religioso, chamado “hassidismo”, ganhou força, paralelamente, à Reforma e a Ortodoxia. Fundado no século XVIII, por TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 89 um rabino e místico chamado Israel Baal Shem Tov (1698-1760), o judaísmo hassídico surgiu de uma reação populista ao elitismo tradicional na academia talmúdica. O judaísmo hassídico se concentra nas interpretações místicas dos textos sagrados e no potencial de judeus, sem instrução, experimentarem um estado de “santidade”. O movimento se espalhou rapidamente pela Europa Central e Oriental. O hassidismo atraiu oposição de dois grupos: de grupos ligados a estruturas legais rabínicas tradicionais, que giravam em torno do estudo organizado da Torá, e dos judeus "esclarecidos" que pretendiam escapar do quadro opressivo da família judaica tradicional e se aculturar na sociedade europeia. Apesar da história de conflitos do judaísmo hassídico, que veio a ser conhecido como ortodoxia, tornou-se mais difícil distinguir judeus ortodoxos de seus homólogos hassídicos. Em razão da popularidade do judaísmo reformista, os dois grupos, ortodoxos e hassídicos, uniram forças em apoio a Halaká e em oposição à reforma radical. Conhecidos por seus trajes distintos (barbas, chapéus de pele, meias e caftans para homens), os hassidins estão entre os grupos judaicos mais visíveis. Em meio a turbulências políticas e econômicas na Europa Ocidental e Central, o nacionalismo se tornou um “grito de guerra” e ideias pseudocientíficas de cunho racista encontraram terreno fértil para proliferar. Uma onda de antissemitismo afeta os judeus na Europa e em todo o mundo colonial europeu. Da Rússia a Damasco e Danzig a Argel, os judeus foram atacados como infiltrados e responsabilizados por uma ampla gama de problemas sociais e econômicos. Acusações e rumores levaram a pogroms, uma palavra russa que significa destruir violentamente, usada para descrever os distúrbios, na Europa Oriental, nos séculos XIX e XX, que resultaram em violência, roubo e destruição contra os judeus (RAPOPORT-ALBERT, 1998). Sionismo O racismo e a xenofobia na Europa, entre os meados do século XIX e o início do século XX, ganha novo impulso relacionados à crescente onda de nacionalismo, revivalismo religioso e teorias pseudocientíficas de supremacismo. Como resultado, minorias, particularmente os judeus, sofrem com perseguições, que combinadas com instabilidade econômica, levam, na década de 1880, mais de dois milhões de pessoas, a emigrar. A maioria fugiu para a América do Norte e uma pequena fração imigrou para a Palestina. Alguns líderes asquenaze, em resposta, se afiliam ao projeto de Theodor Herzl, judeu austríaco, que defendia um tipo de nacionalismo judeu secular, que ele definia, como “retorno” à terra bíblica do povo judeu. O movimento político moderno, conhecido como sionismo, uniu o impulso religioso de "retornar", baseado em uma narrativa religiosa e ideias seculares sobre a construção de uma nação de estilo europeu, na Palestina, para os judeus da Europa. O sionismo, neste sentido, foi, fundamentalmente, uma forma de nacionalismo judaico, que surgiu no século XX, nos moldes do nacionalismo cristão europeu. Alguns judeus lutaram pela autonomia territorial e política em diferentes partes do globo, outros lutaram pela autonomia cultural nas nações onde viviam. Esses movimentos nacionalistas, em outras regiões, que abrigavam populações judaicas, desapareceram, em 1948, quando Israel se tornou um estado independente. UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 90 5.1.3 Judaísmo no século XX "O antissemita cria o judeu", escreveu, em 1945, o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). O antissemitismo gera uma imagem falaciosa que os judeus eram um perigo para as sociedades europeias. Após a Primeira Guerra Mundial, democracias liberais em toda parte estavam em perigo. A ideia de que os judeus eram responsáveis por crises sociais e econômicas convenceu muitos a usar “raça” e “etnia” como um teste para determinar quem deveria ser excluído da sociedade europeia. Holocausto Foi neste clima que o partido nazista chega ao poder em 1933, combinando uma visão expansionista com teorias espúrias de pureza racial. Consequentemente, as “Leis de Nuremberg”, em 1935, forçam os judeus a se identificar com um distintivo e criminalizaram as relações sexuais com judeus. Além disso foram aprovadas leis na Europa que excluíam os judeus de certas profissões e o direito de frequentar a escola. A cidadania dos judeus foi revogada e muitos foram forçados a deixar suas casas. Inspirados pelo gueto medieval, os nazistas foram mais longe, restringindo, comida, remédios e colocando milhares de pessoas em espaços superlotados sem permitir a emigração. Trabalhando em colaboração com outros governos europeus, as autoridades nazistas promulgaram, no início de 1942, a "Solução Final" para a "Questão Judaica". Os judeus foram reunidos à força e enviados para campos de concentração, na Alemanha, e para campos de extermínio na Polônia e na URSS. Seis milhões de judeus morreram no Holocausto (KAPLAN, 1999). Como resultado, o genocídio na Europa transformou a identidade judaica. Judeus, na Polônia, Romênia, Hungria, Tchecoslováquia, Grécia, Iugoslávia, Alemanha e Áustria foram reduzidos a uma pequena fração de seus números anteriores à guerra. Mesmo assim, as populações judaicas sobreviveram por toda a Europa, inclusive na Rússia, no Reino Unido e na França. 5.1.4 Identidade judaica atual Nos Estados Unidos, os judeus prosperaram nas décadas pós-guerra e vários movimentos ganham popularidade: ortodoxo, conservador, reformador e reconstrucionista. Na Europa e Israel, inspirados por estes movimentos norte- americanos, uma fração menor de judeus progressistas se organizou para formar outros tipos de judaísmo. Desde a década de 1990 até o presente, alguns judeus- norte-americanos aderiram a uma tendência mundial de fundamentalismo religioso. Ao mesmo tempo, o movimento de reformista cresceu. A separação tradicional entre homens e mulheres foi abolida e as mulheres, em círculos não ortodoxos, puderam, inclusive, ter acesso ao rabinato. Segundo o artista norte-americano, Art Spiegelman: “Uma coisa que me incomoda é a maneira pela qual o Holocausto, no final do século XX, se tornou algo, exclusivamente, relacionado ao judaísmo. As pessoas continuam achando TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 91 que o Holocausto é um problema apenas judaico e não um problema de todos” (SPIEGELMAN, 2011, p. 55) A onipresença do Holocausto na educação da comunidade judaica, combinada com umaespécie de alienação da tradição, transformou o Holocausto no agente unificador para os judeus. Porém, no século XXI, os jovens judeus começaram a se opor ao Holocausto como característica definidora de seu judaísmo e buscam maneiras alternativas de expressar suas conexões com a religião. Os filmes, músicas e festivais culturais judaicos atraem público judeu e não judeus. O maior festival deste tipo ocorreu anualmente na Polônia, e atraiu dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo. O fato do festival se realizar no país onde o maior número de judeus foi morto, durante o Holocausto, sinaliza uma mudança na forma de como esse período sombrio deixa de ser a referência principal da identidade judaica coletiva. “Como escreveu o estudioso Shaye J. D. Cohen, o judaísmo, como a maioria ou talvez todas as outras identidades, é imaginado; não é algo verificável para o qual possamos apontar e exclamar: 'É isso!' O judaísmo está na mente” (HAMMERMAN; HAMMERMAN, 2020, s.p.). Em 2015, a população judaica mundial foi estimada em 14,3 milhões, ou aproxi- madamente 0,2% da população mundial total. Aproximadamente 43% de todos os judeus resi- dem em Israel e outros 43% residem nos Estados Unidos e no Canadá, com a maioria restante na Europa e outros grupos minoritários espalhados pela América Latina, Ásia, África e Austrália. ATENCAO 5.2 ORAÇÕES Tradicionalmente, os judeus recitam orações três vezes ao dia, Shacharit, Minchá e Ma'ariv com uma quarta oração, o Mussaf, no sabá e outros feriados. No centro da liturgia está a oração chamada Amidá (de pé em direção a Jerusalém). Outra oração importante, em muitos cultos, é a declaração de fé, é a Shemá Yisrael (ou Shema). O Shemá é a recitação de um verso da Torá (BÍBLIA, 2012, Deuteronômio 6:4): Shema Yisrael Adonai Eloheinu Adonai Echad – "Ouve, ó Israel! O Senhor é o nosso Deus! O Senhor é um!". A maioria das orações em um culto judaico tradicional pode ser feita em oração solitária, embora a oração comunitária seja preferida. A oração comunitária requer um quórum (participação mínima) de dez judeus adultos, chamado “minian”. Em quase todos os círculos ortodoxos e alguns conservadores, apenas judeus do sexo masculino contam para efeitos de quórum, porém, a maioria dos judeus conservadores e membros de outras denominações judaicas também incluem as mulheres no quórum. UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 92 Além dos serviços de oração, os judeus tradicionais recitam orações e bênçãos ao longo do dia ao realizar vários atos. As orações são recitadas ao acordar de manhã, antes de comer ou beber alimentos diferentes, depois de comer uma refeição e assim por diante. O conteúdo da oração varia entre as denominações judaicas. As diferenças podem incluir os textos das orações, a frequência da oração, o número de orações recitadas em vários eventos religiosos, o uso de instrumentos musicais e música coral e se as orações são recitadas nas línguas litúrgicas tradicionais ou no vernáculo. FIGURA 8 – UM JUDEU IEMENITA NAS ORAÇÕES DA MANHÃ, USANDO UMA TOUCA DE KIPÁ, XALE DE ORAÇÃO E TEFILIN FONTE: <https://bit.ly/2KDuglL>. Acesso em: 8 dez. 2020. Em geral, as congregações ortodoxas e conservadoras aderem à tradição e as sinagogas, Reformadas e Reconstrucionistas, são mais abertas a inovações na liturgia. Além disso, na maioria das sinagogas conservadoras, e em todas as congregações de Reformadas e Reconstrucionistas, as mulheres participam de cultos de oração em igualdade de condições com os homens, incluindo, papéis tradicionalmente preenchidos apenas por homens, como a leitura da Torá. 5.3 VESTUÁRIO RELIGIOSO De acordo com artigo publicado na revista Morashá, “para o Povo Judeu, as vestes sempre foram uma forma de manter sua identidade” (ESTILO, 2008, s.p.). TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 93 FIGURA 9 – JUDEUS REZANDO NO MURO OCIDENTAL (“DAS LAMENTAÇÕES”) FONTE: <http://bit.ly/3iDy7vq>. Acesso em: 22 jun. 2020. • Quipá Um quipá é uma boina ou touca utilizada pelos judeus como símbolo da religião e símbolo de temor a Deus. Usado para orar, recitar bênçãos, estudar textos religiosos e em todos os momentos, por alguns judeus. Nas comunidades ortodo- xas, apenas os homens usam o quipá; em comunidades não ortodoxas, algumas mulheres também usam. O tamanho varia, pode ser um pequeno gorro redondo que cobre apenas a parte de trás da cabeça ou um grande que cobre toda a coroa. FIGURA 10 – QUIPÁ FONTE: <https://bit.ly/397pt5x>. Acesso em: 8 dez. 2020. UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 94 • Tzitzit São "franjas" ou "borlas" com nós especiais, encontradas nos quatro cantos do talit ou xale de oração. O talit é usado por homens e algumas mulheres durante o ser- viço de oração. Os costumes, em relação à idade em um judeu começa a usar o talit variam, dependendo da comunidade. Entre os judeus sefarditas, os meninos começam a usar o talit da idade do bar mitzvá (ou “filho do mandamento” que é a cerimônia que insere o jovem judeu como um membro maduro na comunidade). Em algumas comu- nidades asquenaze é costume usar otzitzit somente após o casamento. Um talit katan (talit pequeno) é uma roupa com franjas usada sob a roupa durante o dia. Em alguns círculos ortodoxos, as franjas podem ficar penduradas do lado de fora da roupa. FIGURA 11 – TZIZIT FONTE: <https://bit.ly/2Mfbkdg>. Acesso em: 8 dez. 2020. • Tefillin Significa salvaguarda ou amuleto, são duas caixas quadradas de couro contendo versículos bíblicos, presas à testa e enroladas ao redor do braço esquer- do por tiras de couro. Os rabinos recomendam que os tefilin sejam colocados diariamente pelas manhãs com a prece matinal ou pelo menos até o pôr do sol recitando-se o Shemá. Os tefilin somente não são utilizados no Sabá, Yom Tov e Chol Hamoêd. Com treze anos, após o bar mitzvá o menino passa a usar os tefilin. TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 95 FIGURA 12 – TEFILLIN FONTE: <https://bit.ly/3979KTR>. Acesso em: 8 dez. 2020. 5.4 FERIADOS JUDAICOS Os feriados judaicos são dias especiais no calendário litúrgico judaico que celebram momentos da história judaica, bem como temas centrais no relacionamento entre Deus e o mundo, como criação, revelação e redenção. Sabá O “Sabá” é o dia de descanso semanal que se inicia pouco antes do pôr do sol na sexta-feira à noite e termina no cair da noite no sábado à noite. É celebrado como o dia de descanso de Deus, após seis dias da criação. Ela desempenha um papel fundamental na prática judaica e é governada por um corpus de leis religiosas. Ao pôr do sol na sexta-feira, a mulher da casa inicia o sabá acendendo duas ou mais velas e recitando uma bênção. A refeição da noite começa com o Kiddush, uma bênção recitada em voz alta sobre um copo de vinho e o Mohtzi, uma bênção recitada sobre o pão. É costume ter chalá, dois pães trançados na mesa. Durante o sabá, os judeus são proibidos de participar de qualquer atividade que se enquadre em trinta e nove categorias de melakhah, traduzidas literalmente como "trabalho". Três festivais de peregrinação Os dias sagrados judaicos (chaggim) celebram eventos marcantes na história judaica, como o êxodo do Egito, a entrega da Torá e, às vezes, marcam a mudança de estações e transições no ciclo agrícola. Os três principais festivais, Sucot, Páscoa e Shavuot, que são chamados de "regalim" (derivados da palavra hebraica "regel", ou pé). Nos três regalins era costume os judeus fazerem peregrinações a Jerusalém para oferecer sacrifícios no templo. • A Páscoa (Pessach) é um feriado de uma semana que começa na noite do décimo quarto dia de Nisan (o primeiro mês do calendário hebraico), que comemora UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 96 o êxodo do Egito. Fora de Israel, a Páscoa é comemorada por oito dias. Em sua origem coincidia com a colheita da cevada. É o único feriadoque se concentra no serviço doméstico, o Seder. Os produtos fermentados (chametz) são removi- dos da casa antes do feriado e não são consumidos durante a semana. As casas são completamente limpas para garantir que não restem pão ou seus derivados e uma queima simbólica dos últimos vestígios de chametz é realizada na manhã do Seder. Matzá (pão sem fermento) é comido em vez de pão. • Shavuot ("Pentecostes" ou "Festa das Semanas") celebra a revelação da Torá aos israelitas no Monte Sinai. Shavuot é comemorada durante um dia, em Israel, e dois na diáspora, sempre no sexto dia do mês de Sivan. É também conhecido como o Festival de Bikurim, ou primícias, coincidia, nos tempos bíblicos, com a colheita do trigo. Os costumes de Shavuot incluem maratonas de estudo duran- te a noite conhecidas como Tikkun Leil Shavuot, durante os quais se consomem derivados de leite, lendo o Livro de Rute, decorando casas e sinagogas com vegetação e vestindo roupas brancas, simbolizando a pureza. • Sucot ("Tabernáculos" ou "O Festival das Cabines") comemora os quarenta anos de peregrinação dos israelitas pelo deserto, a caminho da “Terra Pro- metida”. Inicia-se no dia 15 de Tishrei, de acordo com o calendário judaico. É comemorado através da construção de cabines temporárias chamadas sucot que representam os abrigos temporários dos israelitas durante a sua pere- grinação. Ele coincide com a colheita dos frutos e marca o fim do ciclo agrí- cola. Judeus em todo o mundo comem em sucot por sete dias e noites. Sucot conclui com Shemini Atzeret, quando os judeus começam a rezar pela chuva e Simchat Torá, "Alegria da Torá", um feriado que marca o fim do ciclo de leitura da Torá e começa tudo de novo. A ocasião é comemorada com canto e dança com os rolos da Torá. Shemini Atzeret e Simchat Torá são tecnicamente consideradas férias separadas e não parte de Sucot. Dias sagrados • Rosh Hashaná, (também Yom Ha-Zikkaron ou "Dia da Lembrança", e Yom Teruah, ou "Dia do Som do Shofar"). Rosh Hashaná é o ano novo judaico (li- teralmente, "cabeça do ano"), embora caia no primeiro dia do sétimo mês do calendário hebraico, Tishri. O Rosh Hashaná marca o início dos dez dias de expiação que antecederam o Yom Kipur, durante o qual os judeus são ordena- dos a procurar suas almas e reparar os pecados cometidos, intencionalmente ou não, durante todo o ano. Os costumes de férias incluem tocar o shofar, ou sinos de carneiro, na sinagoga, comer maçãs e mel e dizer bênçãos por uma variedade de alimentos simbólicos, como romãs. • Yom Kipur, ("Dia da Expiação") é o dia mais santo do ano judaico. É um dia de jejum comunitário e orando por perdão pelos pecados. Judeus observadores passam o dia inteiro na sinagoga, às vezes com uma pequena pausa à tarde, reci- tando orações de um livro especial de oração chamado "Machzor". Muitos judeus não religiosos fazem questão de assistir aos serviços da sinagoga e jejuar no Yom Kipur. Na véspera de Yom Kipur, antes que as velas sejam acesas, é feita uma refeição pré-fabricada, a "seuda mafseket". Os serviços da sinagoga na véspera de Yom Kipur começam com a oração de Kol Nidre. É costume usar branco no TÓPICO 1 — DO MONOTEÍSMO AO MONOTEÍSMO ABRAÂMICO 97 Yom Kipur, especialmente para Kol Nidre, e sapatos de couro não são usados. No dia seguinte, as orações são realizadas de manhã à noite. O culto final de oração, chamado "Ne'ilah", termina com uma longa explosão do shofar. • Purim é um feriado judaico que comemora a libertação dos judeus persas da trama do mal Hamã, conforme registrado no livro bíblico de Ester. É caracterizado pela recitação pública do “Livro de Ester”, presentes mútuos de comida e bebida, cari- dade para com os pobres e uma refeição comemorativa. Outros costumes incluem beber vinho, comer doces especiais chamados hamantashen, vestir máscaras e fan- tasias e organizar carnavais e festas. O Purim é celebrado, anualmente, no dia 14 do mês hebraico de Adar, que ocorre em fevereiro ou março do calendário gregoriano. • Hanucá, também conhecido como “Festival das Luzes”, é um feriado judaico de oito dias que começa no 25º dia de Kislev (calendário hebraico). O festival é observado nos lares judeus pelas luzes acesas em cada uma das oito noites do festival, uma na primeira noite, duas na segunda noite e assim por diante. Marca a rededicação do Templo após sua profanação por Antíoco IV Epifâ- nio. Espiritualmente, o hanucá comemora o "Milagre do Óleo". De acordo com o Talmude, na rededicação do Templo em Jerusalém após a vitória dos Macabeus sobre o Império Selêucida, havia apenas óleo consagrado suficiente para alimentar a chama eterna no Templo por um dia. Milagrosamente, o óleo queimou por oito dias – o tempo que levou para pressionar, preparar e con- sagrar óleo novo. O Hanucá não é mencionado na Bíblia e nunca foi conside- rado um feriado importante no judaísmo, mas tornou-se mais comemorado nos tempos modernos, principalmente porque cai na mesma época do Natal e adquiriu conotações nacionalistas, após a criação do Estado de Israel. QUADRO 1 – PRINCÍPIOS DA FÉ JUDAICA • Creio com perfeita fé que o Criador, Bendito seja o Seu Nome, é o Criador e Guia de tudo o que foi criado; Somente ele fez, faz e fará todas as coisas. • Creio com perfeita fé que o Criador, Bendito seja o Seu Nome, é Um, e que não há unidade de maneira alguma como a Sua, e que Ele é o único Deus que foi, é e será. • Creio com perfeita fé que o Criador, Bendito seja o Seu Nome, não tem cor- po, e que Ele é livre de todas as propriedades da matéria, e que não pode haver comparação (física) com Ele, seja qual for. • Creio com perfeita fé que o Criador, Bendito seja o Seu Nome, é o primeiro e o último. • Creio com perfeita fé que, para o Criador, Bendito seja o Seu Nome, e somente a Ele, é correto orar, e que não é correto orar a qualquer ser além Dele. • Creio com perfeita fé que todas as palavras dos profetas são verdadeiras. • Creio com perfeita fé que a profecia de Moisés, nosso professor, que a paz esteja com ele, era verdadeira e que ele era o chefe dos profetas, tanto os que o precederam como os que o seguiram. • Eu acredito com perfeita fé que toda a Torá que está agora em nossa posse é a mesma que foi dada a Moisés, nosso professor, que a paz esteja com ele. UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 98 • Eu acredito com perfeita fé que esta Torá não será trocada e que nunca ha- verá outra Torá do Criador, Bendito seja o Seu Nome. • Creio com perfeita fé que o Criador, Bendito seja o Seu Nome, conhece todas as ações dos seres humanos e todos os seus pensamentos, como está escrito: "Quem formou o coração de todos, que compreende todas as suas ações" (Salmos 33: 15). • Creio com perfeita fé que o Criador, Bendito seja o Seu Nome, recompensa aqueles que guardam Seus mandamentos e pune aqueles que os transgridem. • Eu acredito com perfeita fé na vinda do Messias; e mesmo que ele se demo- re, espero todos os dias por sua vinda. • Creio com perfeita fé que haverá um reavivamento dos mortos no momento em que isso agradar ao Criador, Bendito seja o Seu nome, e Sua menção será exaltada para todo o sempre. FONTE: O autor 99 Neste tópico, você aprendeu que: RESUMO DO TÓPICO 1 • O judaísmo tem origem no Oriente Médio durante a Idade do Bronze. • O judaísmo se transforma, gradualmente, em uma fé monoteísta, no Oriente Médio, a partir do contato com outras tradições religiosas. • O judaísmo se consolida, como tradição religiosa, através dos séculos mesmo depois do surgimento do cristianismo. • O judaísmo, na atualidade, é bastante diverso e foi exposto, principalmente, no Ocidente. • Fenômenos como o nacionalismo e eventos como o Holocausto, ambos ocorridos na Europa, definem, de forma marcante a identidade judaica contemporânea. 100 1 O judaísmo se cristaliza em tradição religiosa ao longo dos séculos. É um processo gradual, que, inclusive, ocorre em localidades diferentes. Uma mudança importantediz respeito à transformação do judaísmo em mono- teísmo absoluto. Sobre este processo, assinale a alternativa relacionada ao processo gradual da consolidação do monoteísmo absoluto. a) ( ) Politeísmo relativo. b) ( ) Crença monolatrística. c) ( ) Monoteísmo primitivo. d) ( ) Monoteísmo flexível. 2 O judaísmo na Europa convive e é influenciado pelos acontecimentos fora da comunidade judaica. Eventos como a Revolução Científica e o Iluminis- mo impactam na visão de mundos dos judeus na Europa. Como se chama o movimento Iluminista característico do judaísmo europeu? a) ( ) Diáspora. b) ( ) Êxodo. c) ( ) Haskalá. d) ( ) Holocausto. 3 Entre as várias interpretações do judaísmo existentes, na atualidade, uma se destaca. O judaísmo rabínico é considerado a principal vertente do ju- daísmo e se consolidou em torno da compilação de um texto, considerado sagrado, para os judeus. Qual texto da tradição judaica foi decisivo para fundamentar o judaísmo rabínico? a) ( ) Torá. b) ( ) Texto Massorético. c) ( ) Tanakh. d) ( ) Talmude. AUTOATIVIDADE 101 UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O cristianismo é uma religião monoteísta, da tradição abraâmica, basea- da na vida e nos ensinamentos de Jesus de Nazaré. Seus seguidores, conhecidos como cristãos, acreditam que Jesus é o Cristo, cuja vinda como o Messias teria sido profetizada na Bíblia Hebraica ou Antigo Testamento. O cristianismo é dividido em várias denominações, doutrinas e dogmas. No entanto, geralmente, compartilham a crença que Jesus é filho de Deus, o logos encarnado, que pregou, sofreu, morreu na cruz e teria ressuscitado dos mortos para a salvação da humanidade. A vida e os ensinamentos de Jesus foram compilados, entre os anos, 70 e 150, em quatro evangelhos canônicos chamados, Mateus, Marcos, Lucas e João. TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 2 ORIGENS DO CRISTIANISMO No início, no século I, na província romana da Judeia, o cristianismo era uma seita judaica do Segundo Templo. Os apóstolos de Jesus e seus seguidores, após sua morte, se espalharam pelo Oriente Médio, Europa, Transcaucásia e Áfri- ca. Apesar da perseguição, a nova religião logo atraiu “não judeus”, o que levou a uma ruptura gradual com o judaísmo. Esta ruptura ocorre, em grande parte, como consequência da atividade missionária de um cidadão romano, de origem judaica, chamado Paulo de Tarso. FIGURA 13 – O SÍMBOLO ICHTUS OU ICHTHYS, ÉFESO, NA ÁSIA MENOR. O ICHTUS SE TOR- NOU O EMBLEMA DO CRISTIANISMO PRIMITIVO FONTE: <https://tinyurl.com/y6cs3q3a>. Acesso em: 8 dez. 2020. 102 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS Os especialistas, geralmente, dividem a história do cristianismo primitivo em dois períodos principais: o ministério de Jesus (27-30) e o Primeiro Concílio de Niceia (325). O primeiro período é subdividido em: Era Apostólica (30-100), quando os primeiros apóstolos ainda estavam vivos) e o Período Pré-Niceno (100-325). 2.1 A ERA APOSTÓLICA A “Era Apostólica” se caracteriza pela atividade missionária dos apósto- los. Ela tem um significado especial na tradição cristã porque trata da atividade missionária realizada pelos apóstolos diretos de Jesus. Uma fonte primária do período são os “Atos dos Apóstolos”, mas sua precisão histórica é questionável e sua cobertura é parcial, concentrando-se, especialmente, no ministério de Paulo, e terminando por volta de 62 com Paulo pregando em Roma. Os primeiros seguidores de Jesus eram judeus apocalípticos e os primei- ros grupos cristãos eram formados por judeus ebionitas, que consideravam Jesus, o Messias, mas rejeitavam sua divindade e nascimento sobrenatural. A comuni- dade cristã primitiva, de acordo com os Atos dos Apóstolos, em Jerusalém, era liderada por Tiago, irmão de Jesus. Eles se descreviam como "discípulos do Se- nhor" e seguidores "do Caminho" e uma comunidade estabelecida, em Antióquia, foi a primeira cujos membros passaram a se chamar "cristãos". A inclusão de “gentios” (não judeus) representava um problema, pois eles não podiam observar corretamente o Halacá. Saulo de Tarso, cujo nome latinizado é (Pau- lus) Paulo, o Apóstolo, perseguiu os primeiros cristãos judeus, depois se converteu e iniciou sua atividade missionária entre os “gentios”. Assim, a principal preocupação das “Cartas de Paulo” era a inclusão dos “gentios” na “Nova Aliança com Deus”. Nos dois primeiros séculos da era cristã, essa decisão provocou o afastamento definitivo do “cristianismo judaico” do judaísmo. O cristianismo primitivo se espalha, inicialmente, formando bolsões de devotos entre os povos de língua aramaica, que habitavam ao longo da costa do Mediterrâneo. Simultaneamente, se espalha para outras regiões do Império Romano e no Império Sassânida, incluindo a Mesopotâmia. 2.2 PERÍODO PRÉ-NICENO É o período compreendido entre a “Era Apostólica” e o Primeiro Concílio de Niceia, no início do século IV. Durante esse período, o cristianismo se espa- lhou na Europa Ocidental, na bacia do Mediterrâneo e para o norte e o leste da África. Uma estrutura mais formal da Igreja se forma nas comunidades primiti- vas e surgem diversas doutrinas cristãs. O cristianismo se separa, definitivamente, do judaísmo, formando uma identidade própria, que, inclui, uma rejeição crescente às práticas judaicas. TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 103 Com uma interpretação crítica do cristianismo no Período Pré-Niceno, inclu- sive em relação aos judeus, o filme Ágora retrata a vida da filosofa Hipátia, em Alexandria, nos séculos IV e V. • Veja a sinopse em: http://www.agoralapelicula.com/. • Assista ao trailer com legendas em português: https://bit.ly/3o7C0tV. DICAS O número de cristãos cresce consideravelmente durante o primeiro e o segundo séculos. Na igreja pós-apostólica, os bispos surgem como líderes das populações cristãs urbanas e uma hierarquia do clero gradualmente toma forma. No período Pré-Niceno surgem seitas, cultos e outros movimentos cristãos com tendências mais unificadoras, que inexistiam no período apostólico, como in- terpretações, em particular, que versavam sobre a divindade de Jesus e sobre a natureza da Trindade. Nesse período, as várias formas de cristianismo interagiam de maneira complexa para formar o caráter dinâmico do cristianismo. O período pós-apostólico foi sectariamente diverso em crenças e práticas. Além do amplo es- pectro do cristianismo, as mudanças resultam em conflitos e sincretismos. 2.3 O INÍCIO DO CÂNONE ORTODOXO A expansão do cristianismo, eventualmente, converte segmentos da elite no mundo helenístico, que na qualidade de “bispos”, iriam se tornar os chamados “Padres da Igreja”. Estes primeiros intelectuais cristãos iriam produzir obras de natureza teológica e apologética. Estas últimas foram endereçadas à defesa da fé contra os argumentos filosóficos que ameaçavam os dogmas do cristianismo. Esta corrente é chamada patrística e se destacam, nesta fase, Inácio de Antióquia, Policarpo, Justino Mártir, Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes e Agostinho de Hipona. No século III, acontecem dois momentos decisivos para cristianismo no processo de se legitimar como religião de Estado: é adotado como religião oficial, na Armênia, entre 301 e 314, que se torna o primeiro estado oficialmente cristão. No Império Romano, Constantino, legalizou a prática do cristianismo pelo Édito de Milão, em 313, transformando-o de religião perseguida, em religião oficial do Império. No entanto, apesar de passar a desfrutar de um prestígio e status inéditos, o Cristianismo seria afetado, nos séculos seguintes, por disputas de natureza cristológica, as quais, também, encobriam disputas políticas. 104 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS FIGURA 14 – EXPANSÃO DO CRISTIANISMO, SÉC. I-VII FONTE: <https://bit.ly/399ce4m>. Acesso em: 8 dez. 2020. Concílios da Igreja Pré-Cisma: • 50 C. de Jerusalém: As leis judaicas e os cristãos. • 325 1º C. de Niceia: Contrao arianismo. Credo. • 381 1º Constantinopla: Finalização do Credo. • 432 C. de Éfeso: Contra o nestorianismo. • 451 C. de Calcedónia: Contra o monofisitismo princípio da união hipostática. • 553 2º Constantinopla: Contra os nestorianos. • 681 3º Constantinopla: Contra o monotelitismo. • 767 2º C. de Niceia: Legaliza a veneração de imagens. ATENCAO Os conflitos internos da igreja católica atingiram seu ápice com o Grande Cisma do Oriente, que iria separar a Igreja, em catolicismo ocidental (latino) e oriental (grego). A separação foi a primeira, mas não a última, divisão importante da cristandade. Embora, normalmente datado de 1054, o Cisma do Oriente foi resultado de um distanciamento gradual entre a cristandade latina e grega, que TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 105 incluía, discordâncias sobre a primazia papal e questões doutrinárias, como o filioquismo (doutrina dogmática que o pai é o princípio da Trindade) exacerbado por diferenças culturais e linguísticas (LIVINGSTONE, 2016). 2.4 O CRISTIANISMO ORIENTAL O cristianismo oriental compreende as igrejas que se formaram, geográfica e historicamente, próximas ao berço do cristianismo primitivo: as igrejas ortodoxas orientais e as igrejas católicas orientais (que restabeleceram a comunhão com Roma, mas ainda mantêm suas liturgias originais). Algumas igrejas orientais têm mais em comum, histórica e teologicamente, com o cristianismo católico romano, que entre si. As várias igrejas orientais normalmente não se referem a si mesmas como "orientais", com exceção, da Igreja Assíria do Oriente e da Igreja Antiga do Oriente. FIGURA 15 – JESUS CRISTO “TODO-PODEROSO” (PANTOCRATOR), DETALHE DO MOSAICO NA CATEDRAL DE HAGIA SOPHIA, ISTANBUL, SÉCULO XII FONTE: <https://bit.ly/3c6m48P>. Acesso em: 8 dez. 2020. Os termos "oriental" e "ocidental" se originaram de divisões geográficas no cris- tianismo refletindo as divisões cultural e política entre o Oriente helenístico e o Oci- dente latino e a divisão política, entre os impérios romano ocidental e oriental. A maior igreja do Oriente é a instituição, atualmente conhecida, como Igreja Ortodoxa Oriental. O termo "Ortodoxo" é frequentemente usado como sinônimo de "Orien- tal”. No entanto, a maioria das denominações cristãs, sejam orientais ou ociden- tais, se consideram "ortodoxas" (significando: "seguindo crenças corretas"), bem como "católicas" (significando: "universal"). 106 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS As igrejas orientais seguem vários ritos litúrgicos: o rito alexandrino, o rito armênio, o rito bizantino, o rito siríaco oriental (também conhecido como rito persa ou caldeu) e o rito siríaco ocidental (também chamado o rito antioquiano). Os cristãos orientais não compartilham as mesmas tradições religiosas, mas com- partilham muitas tradições culturais. Igreja Ortodoxa Grega O nome Igreja Ortodoxa Grega, ou ortodoxia grega, é um termo que se refere ao corpo de várias igrejas. No cristianismo ortodoxo grego, a liturgia era, tradicionalmente, conduzida em grego koiné, a língua original da Septuaginta e do Novo Testamento. Sua história, tradições e teologia estão enraizadas nas doutrinas dos “Padres da Igreja” e na cultura do Império Bizantino. O cristianis- mo ortodoxo grego enfatiza as tradições do monasticismo e ascetismo ortodoxos orientais, com origens no cristianismo primitivo no Oriente Próximo e na Anató- lia bizantina. As Igrejas Ortodoxas, ao contrário da Igreja Católica, não têm um Sumo Pontífice ou Bispo e sustentam a crença de que Cristo é o líder máximo da Igreja. No entanto, cada um deles é governado por um comitê de bispos, chama- do de Santo Sínodo, com um bispo central com o título honorário de "primeiro entre iguais" (primum inter pares). O Arcebispo de Constantinopla (Istambul) é considerado o líder espiritual dos cristãos ortodoxos no mundo. A maioria dos cristãos ortodoxos gregos vive na Grécia e em outros lugares do sul dos Bálcãs, incluindo a Albânia, mas também na Jordânia, nos territórios palestinos, no Ira- que, na Síria, no Líbano, em Chipre, na Anatólia, na Turquia e no sul do Cáucaso. Além disso, devido à diáspora grega, há muitos cristãos ortodoxos gregos que vivem na América do Norte e na Austrália (CONSTANTELOS, 1982). Igreja Ortodoxa Oriental A Igreja Ortodoxa Oriental é uma instituição cujos devotos vivem, de modo geral, no Oriente Médio (particularmente Síria, Líbano, Jordânia, Israel e Palestina), Turquia, Europa Oriental e Cáucaso, mas com uma presença crescente no mundo ocidental. Os cristãos ortodoxos orientais acatam as decisões dos sete primeiros concílios ecumênicos e seguem o credo niceno. O cristianismo ortodoxo oriental identifica-se como a igreja cristã original fundada pelos apóstolos e traça sua linha- gem à igreja primitiva através do processo de sucessão apostólica, teologia e práti- ca. Como características da Igreja Ortodoxa Oriental, destacam-se, o Rito Bizantino (compartilhado com algumas Igrejas Católicas Orientais) e a ênfase na continuação da “Tradição Sagrada” considerada de natureza apostólica. Estas igrejas também são chamadas de antigas igrejas orientais. Eles compreendem a Igreja Ortodoxa Copta, a Igreja Ortodoxa da Eritreia Tewahedo, a Igreja Ortodoxa Etíope de Tewa- hedo, a Igreja Síria Jacobita de Antióquia e a Igreja Apostólica Armênia. Igreja Ortodoxa Russa A Igreja Ortodoxa Russa é também conhecida como Patriarcado de Moscou. O primaz é o patriarca de todos os russos. A Igreja Ortodoxa Russa, ocupa, oficial- TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 107 mente, o quinto lugar na ordem de precedência ortodoxa, imediatamente abaixo dos quatro patriarcados antigos da Igreja Ortodoxa Grega: Constantinopla, Alexandria, Antióquia e Jerusalém. A cristianização da Rússia iniciada, em Kiev, em 988, é tra- dicionalmente aceita como a origem da Igreja Ortodoxa Russa através do batismo do príncipe Vladimir pelo clero do Patriarcado Ecumênico. A Igreja Ortodoxa Russa é considerada a maior das igrejas ortodoxas orientais do mundo. Seus seguidores somam mais de 112 milhões. Entre as igrejas católicas, a Igreja Ortodoxa Russa, é apenas menor, em números de devotos, que a Igreja Católica Romana. Igreja do Oriente ou Nestoriana Historicamente a Igreja do Oriente é o ramo do cristianismo oriental que mais se espalhou na Ásia, a partir do seu centro na antiga na Assíria (atualmente Síria e Iraque), até a Índia e a China. A Igreja do Oriente foi a única igreja cristã reconhecida pela Pérsia Sassânida, governada por zoroastristas. Em 424, a Igreja do Oriente se de- clarou independente de outras igrejas e ao longo do século seguinte se afiliou ao Nes- torianismo, uma doutrina cristológica, que significa a existência de duas naturezas, divina e humana, em Jesus Cristo. Tal interpretação sugerida por Nestório, Patriarca de Constantinopla, de 428 a 431, foi declarada herética no Império Romano. Por isso, a Igreja do Oriente ficou conhecida no Ocidente, como Igreja Nestoriana. Sobrevivendo a um período de perseguição na Pérsia, a Igreja do Oriente floresceu no período do califado islâmico abássida e se ramificou, estabelecendo dioceses em toda a Ásia. Após outro período de expansão, durante o Império Mongol, a igreja entrou em declínio e, a partir do século XIV, acabou confinada, na Mesopotâmia, sua região de origem. Igreja Assíria do Oriente A Igreja Assíria do Oriente surgiu de uma divisão da Igreja do Oriente e, na origem, se localizava na Mesopotâmia/Assíria, então, parte do Império Persa e, posteriormente, se espalhou pela Ásia. A Igreja Assíria do Oriente moderna surgiu no século XVI, após uma divisão com a Igreja Caldeia, que mais tarde en- trou em comunhão com Roma, como Igreja Católica Oriental. A igreja pertence ao ramo oriental da cristandade siríaca e adota a “Divina Liturgia” (celebração euca- rística no rito bizantino) e o siríaco, dialeto do Aramaico, como língua litúrgica. A maioria de seus adeptos são assírios étnicos. Osmaronitas A Igreja Siríaca Maronita de Antióquia é uma igreja do rito siríaco oci- dental em comunhão com o catolicismo. Tem origem na comunidade fundada por Maron, um monge siríaco-arameu venerado como santo, que viveu, entre os séculos IV e V. Tradicional no Líbano, como um grupo etnoreligioso, a Igre- ja Maronita possui ritual próprio, diferente do rito litúrgico latino adotado pela maioria dos católicos ocidentais. O rito oriental maronita, que pertence à tradição litúrgica de Antióquia, celebra a missa em língua siríaca, um dialeto aramaico 108 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS ocidental. Os maronitas, apesar de sua união histórica com Roma, são liderados por seu próprio patriarca na sede do patriarcado no Líbano. Os maronitas vivem em maior número no Líbano, mas também habitam a Síria, Palestina e, em todos os continentes, como resultado da diáspora libanesa. FIGURA 16 – BSHARRE, VILAREJO LOCALIZADO, NO VALE DO KADISHA, NAS MONTANHAS DO LÍBANO NAS IMEDIAÇÕES DA FLORESTA DOS CEDROS DO LÍBANO (ARZ AR-RABB "OS CEDROS DO SENHOR”) FONTE: <https://tinyurl.com/y34ngnu5>. Acesso em: 8 dez. 2020. O diálogo ecumênico Em 1964, o diálogo ecumênico, entre o Papa Paulo VI e o Patriarca Ortodo- xo Atenágoras I, marcou o retorno das conversações que vislumbram a possibilida- de, após quase um milênio, de unidade cristã. Durante o encontro de Paulo VI e Atenágoras I, em Jerusalém, as excomunhões foram extintas e foram feitos avanços significativos nas relações entre papado e o patriarcado ecumênicos de Constantino- pla. Em uma reunião recente, Bento XVI e Bartolomeu I, assinaram em conjunto a “Declaração Comum”. Em 2013, o patriarca Bartolomeu, participou da cerimônia de instalação de Francisco, o novo papa católico romano, assim, foi a primeira vez que um patriarca ecumênico de Constantinopla assistiu a essa cerimônia. Credos do cristianismo • Crença em Deus Pai, Jesus Cristo como o Filho de Deus e o Espírito Santo • A morte, descida ao inferno, ressurreição e ascensão de Cristo • A santidade da Igreja e a comunhão dos santos • A segunda vinda de Cristo, o dia do julgamento e a salvação dos fiéis TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 109 Trindade A doutrina cristã da Trindade (do latim trinitas "tríade", de trinus "tripla") define Deus como três pessoas consubstanciais, expressões ou hipóstases: o Pai, o Filho (Jesus Cristo) e o Espírito Santo – um Deus em três pessoas. As três pessoas são distintas, mas são uma substância, essência ou natureza. FIGURA 17 – "ESCUDO DA TRINDADE" OU "SCUTUM FIDEI" DIAGRAMA DE SIMBOLISMO CRIS- TÃO TRADICIONAL FONTE: <https://bit.ly/363Jh7K>. Acesso em: 8 dez. 2020. Antitrinitarismo Refere-se a um sistema de crenças monoteístas, principalmente entre os cristãos, que rejeita a doutrina de Trindade. No Primeiro Concílio de Constanti- nopla, a doutrina da Trindade foi formulada e antitrinitarismo apareceu no gnos- ticismo dos cátaros, entre os séculos XI e XIII, entre grupos da teologia unitária na Reforma Protestante do século XVI, no Iluminismo do século XVIII e em alguns grupos surgidos durante o Segundo Grande Despertar do século XIX. Entre as maiores denominações cristãs não trinitárias destacam-se: a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Pentecostais do Nome de Jesus, Testemunhas de Jeová, entre outras denominações menores. 110 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 2.5 A REFORMA PROTESTANTE O Protestantismo é a segunda maior denominação cristã no mundo contabilizando, entre oitocentos e um bilhão de adeptos, ou cerca de 37% de todos os cristãos. Originou-se na Reforma Protestante, no século XVI, como um movimento de descontentes com os rumos tomados pela Igreja Católica. Os protestantes rejeitam a doutrina católica da supremacia e dos sacramentos papais, mas discordam entre si a respeito da presença real de Cristo na Eucaristia. Enfatizam o sacerdócio de todos os crentes, a justificativa pela fé (sola fide), a autoridade suprema da Bíblia, na fé e na moral (sola scriptura). As "cinco solae" resumem diferenças teológicas básicas em oposição à Igreja Católica. O movimento protestante começou na Alemanha, em 1517, quando Martinho Lutero, um clérigo católico, publicou suas noventa e cinco teses como reação ao que ele entendia ser os abusos da Igreja Católica na venda de indulgências, que oferecia remissão, mediante pagamento, da punição temporal dos pecados cometidos pelos devotos. O termo “protestante”, no entanto, deriva da carta de protesto feita, em 1529, pelos príncipes luteranos alemães, contra um decreto da Dieta de Speyer, que condenava os ensinamentos de Martinho Lutero. Embora houvesse rupturas e tentativas anteriores de reformar a Igreja Católica, principalmente, por Peter Waldo, John Wycliffe e Jan Hus, Lutero conseguiu desencadear um movimento mais amplo, duradouro e moderno. No século XVI, o luteranismo se espalhou da Alemanha para a Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia, Letônia, Estônia e Islândia. Denominações reformadas (ou calvinistas) se espalharam na Alemanha, Hungria, Holanda, Escócia, Suíça e França por reformadores protestantes, como John Calvin, Huldrych Zwingli e John Knox. A separação política da Igreja da Inglaterra do papa, no reinado de Henrique VIII, insere a Inglaterra e o País de Gales, via o Anglicanismo, nesse amplo movimento da Reforma. Os protestantes desenvolveram sua própria cultura, com contribuições importantes na Educação, Humanidades, Ciências, Ordem política e social, Economia, entre outras áreas de conhecimento. O protestantismo é diverso, sendo mais dividido, teológica e eclesiasticamente, do que a Igreja Católica, a Igreja Ortodoxa Oriental ou a Ortodoxia Oriental. Sem unidade estrutural ou autoridade central, os protestantes desenvolveram o conceito de igreja invisível, em contraste com os católicos, que se percebem como a única igreja original – a única igreja verdadeira – fundada por Jesus Cristo. Algumas denominações têm escopo e distribuição, mundial de devotos, enquanto outras estão confinadas a um único país. A maioria dos protestantes são membros de um grupo de denominações protestantes tais como, adventistas, anabatistas, anglicanos, batistas, calvinistas/reformados, luteranos, metodistas e pentecostais. As igrejas não denominacionais, carismáticas, evangélicas, independentes e outras estão em ascensão e constituem uma parte significativa do protestantismo. O protestantismo, assim, pode ser considerado uma das quatro principais divisões do cristianismo, juntamente com a Igreja Católica, a Igreja Ortodoxa Oriental e as Igrejas Ortodoxas Orientais (HILLERBRAND, 2004). As “Cinco Solas” são princípios, com termos em latim, que surgiram durante a Reforma para agrupar as convicções teológicas dos reformadores sobre o que consideraram pontos essenciais do cristianismo. TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 111 • Sola Scriptura (“somente as Escrituras”): somente a Bíblia é nossa maior autoridade. • Sola Fide (“somente fé”): somos salvos somente pela fé em Jesus Cristo. • Sola Gratia (“somente graça”): somos salvos somente pela graça de Deus. • Solus Christus (“somente Cristo”): Jesus Cristo sozinho é nosso Senhor, Salva- dor e Rei. • Soli Deo Gloria (“somente para a glória de Deus”): vivemos somente para a glória de Deus. Figura 18 – MARTINHO LUTERO PREGA AS 95 TESES NA PORTA DA IGREJA EM WITTENBERG, 1517 FONTE: <https://static.dw.com/image/16406497_303.jpg>. Acesso em: 8 dez. 2020. 2.5.1 Denominações Protestantes A comunidade se divide em denominações, as quais podem ser vistas na Figura 19. 112 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS FIGURA 19 – DENOMINAÇÕES PROTESTANTES FONTE: <https://bit.ly/3p7VcZX>. Acesso em: 8 dez. 2020. TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 113 Adventistas O adventismo começou no século XIX, nos Estados Unidos, no contexto do “Segundo Grande Despertar” (1790-1840).O nome se refere à crença na iminente “Segunda Vinda” (ou "Segundo Advento") de Jesus Cristo. William Miller iniciou o movimento adventista na década de 1830. Seus seguidores ficaram conhecidos como mileritas. Embora as igrejas adventistas tenham muito em comum, suas teologias diferem em alguns aspectos. O movimento incentivou o exame de toda a Bíblia, le- vando os adventistas do Sétimo Dia, e alguns grupos adventistas menores, a guardar o sábado. A Conferência Geral dos Adventistas do Sétimo Dia compilou as crenças centrais da igreja nas “28 Crenças Fundamentais” (1980 e 2005), que usam referências bíblicas como justificativa. Em 2010, o adventismo contava com cerca de 22 milhões de adeptos espalhados em várias igrejas independentes. A maior igreja do movimen- to, a Igreja Adventista do Sétimo Dia, tem mais de 18 milhões de membros. Anglicanismo O Anglicanismo é o ramo da Reforma Protestante representado pela Igre- ja da Inglaterra, que desenvolve suas práticas, liturgia e identidade. A palavra “anglicano” se origina na ecclesia anglicana ou igreja inglesa, um termo no latim medieval, que data 1246. Não existe uma única "Igreja Anglicana" com autorida- de jurídica universal, pois cada igreja nacional ou regional tem total autonomia. A maioria dos anglicanos é membro de igrejas que fazem parte da “Comunhão Anglicana internacional”, que possui 85 milhões de adeptos e consideram o Ar- cebispo de Canterbury seu primus inter pares. A Igreja da Inglaterra declarou sua independência da Igreja Católica, em 1559, na época do assentamento religioso elizabetano. Muitos dos novos formulários anglicanos, de meados do século XVI, correspondiam aos da tradição da Reforma. Estas reformas foram entendidas, por Thomas Cranmer, o então Arcebispo de Canterbury, como um caminho inter- mediário entre duas das tradições protestantes emergentes, a saber, o luteranis- mo e o calvinismo. Por outro lado, a retenção de formas litúrgicas tradicionais do catolicismo e do episcopado, era vista como inaceitável por aqueles que promo- viam os princípios protestantes mais avançados. Exclusivo do anglicanismo é o “Livro de Oração Comum”, a coleção de serviços que os fiéis, na maioria das igre- jas anglicanas, usavam há séculos. Embora tenha sofrido muitas revisões e igrejas anglicanas tenham produzidos versões diferentes, o “Livro de Oração Comum” ainda é reconhecido como um dos laços que unem a Comunhão Anglicana. Batistas Os batistas aderem à doutrina de que o batismo deve ser realizado ape- nas para os crentes professos (batismo do crente, em oposição ao batismo infantil), e que deve ser feito por imersão completa (em oposição à afusão ou aspersão). Outros princípios das igrejas batistas incluem, competência da alma (liberdade), salvação somente pela fé, somente as Escrituras como regra de fé e prática, e a autonomia da congregação local. Os batistas reconhecem dois ofícios ministeriais, pastores e diáconos. As igrejas batistas são consideradas igrejas protestantes, em- 114 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS bora alguns batistas neguem essa identidade. Diversos desde o início, os que hoje se identificam como batistas, diferem amplamente uns dos outros em suas crenças, em como adoram, em suas atitudes, em relação a outros cristãos, e em sua compre- ensão do que é importante no discipulado cristão. A igreja mais antiga chamada “Batista” data de 1609, em Amsterdã, que tinha como pastor, o inglês John Smyth. De acordo com sua leitura do Novo Testamento, ele rejeitava o batismo de crianças e batizava apenas de adultos crentes. A prática batista se espalhou para a Inglater- ra, onde alguns batistas consideravam a expiação de Cristo estendida a todas as pessoas, enquanto outros batistas acreditavam que ela se estendia apenas aos “elei- tos”. Em 1638, Roger Williams estabeleceu a primeira congregação batista nas co- lônias norte-americanas. Em meados do século XVIII, durante o “Primeiro Grande Despertar”, os adeptos da Igreja batista aumentam nas regiões norte-americanas da Nova Inglaterra e no Sul. No “Segundo Grande Despertar”, no início do século XIX, a Igreja batista expande o número de devotos, no sul dos Estados Unidos o que resulta na mudança das diretrizes originais da igreja que, em sua origem apoiava a abolição da escravidão. Os missionários batistas espalharam sua igreja por todos os continentes. A “Aliança Batista Mundial” registra mais de 41 milhões de membros, em mais de 150.000 congregações. Em 2002, havia mais de 100 milhões de batistas e membros de grupos batistas em todo o mundo. Calvinismo O calvinismo, também conhecido como “Tradição Reformada”, foi promo- vido por vários teólogos, como Martin Bucer, Heinrich Bullinger, Peter Martyr Ver- migli e Huldrych Zwingli. Porém, este ramo do cristianismo leva o nome do refor- mador francês John Calvin por causa da influência deste e de seu papel destacado nos debates confessionais e eclesiásticos ao longo do século XVI. Na atualidade, o termo “calvinismo” também se refere às doutrinas e práticas das igrejas reformadas das quais Calvino foi um dos primeiros líderes. Os detalhes da teologia calvinista estão contidos nos “Cinco pontos do Calvinismo”, embora os pontos identifiquem a visão calvinista da soteriologia, em vez de resumir o sistema como um todo. De um modo geral, o calvinismo enfatiza a soberania ou o governo de Deus em todas as coisas, na salvação, mas também em toda a vida. Estes conceitos são expostos nas doutrinas da “predestinação” e “depravação total”. A maior associação calvi- nista é a “Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas”, com mais de 80 milhões de membros em 211 denominações-membro em todo o mundo. Existem federações reformadas mais conservadoras, como a Irmandade Mundial Reformada e a Con- ferência Internacional de Igrejas Reformadas, além de igrejas independentes. Luteranismo O luteranismo se identifica com a teologia de Martinho Lutero. O luteranis- mo defende a doutrina da justificação "somente pela graça, somente pela fé, apenas com base nas Escrituras", em que as escrituras são a autoridade final em todos os assuntos de fé, rejeitando, assim, a afirmação feita pelos líderes católicos no Con- selho de Trento de que a autoridade vem das Escrituras e da Tradição. Além disso, os luteranos aceitam os ensinamentos dos quatro primeiros concílios ecumênicos TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 115 da Igreja Cristã indivisa. Ao contrário da tradição reformada, os luteranos mantêm muitas das práticas litúrgicas e ensinamentos sacramentais da Igreja pré-Reforma, com ênfase particular, na Eucaristia, ou Ceia do Senhor. A teologia luterana difere da teologia reformada em cristologia, o propósito da lei de Deus, a graça divina, o conceito de perseverança dos santos e a predestinação. Na atualidade, o lute- ranismo é um dos maiores ramos do protestantismo. Com aproximadamente 80 milhões de adeptos, constitui a terceira maior confissão protestante. A Federação Luterana Mundial, a maior comunhão global de igrejas luteranas, representa mais de 72 milhões de devotos. Estas duas figuras desconsideram os luteranos em todo o mundo, pois muitos membros da Federação Luterana Mundial não se identificam como luteranos ou frequentam congregações que se identificam como luteranas. Além disso, existem outras organizações internacionais, como o Fórum Luterano Confessional Global e Missional, o Conselho Luterano Internacional e a Conferên- cia Luterana Evangélica Confessional, além de denominações luteranas que não são necessariamente membros de uma organização internacional. Metodismo O metodismo se identifica, principalmente, com a teologia de John Wesley (1703-1791), um padre e evangelista anglicano. Esse movimento evangélico se ori- ginou como um reavivamento, na Igreja da Inglaterra, no século XVIII, e se tornou, após a morte de Wesley, uma igreja separada. Por causa da intensa atividade mis- sionária, o movimento se espalhou por todo o Império Britânico,Estados Unidos e além, contando, atualmente, com 80 milhões de adeptos em todo o mundo. A maioria dos metodistas é “arminiana”, doutrina que enfatiza que Cristo realizou a salvação para todos seres humanos e que estes devem exercer um ato da vontade de recebê-la, em oposição, à doutrina calvinista tradicional do “monergismo” (a doutrina de que o Espírito Santo sozinho pode atuar num ser humano e propiciar a conversão). O metodismo é conhecido por sua rica tradição musical; pois Charles, irmão de John Wesley, escreveu grande parte dos hinos da Igreja Metodista e mui- tos outros eminentes escritores de hinos vêm da tradição metodista. Pentecostalismo O pentecostalismo é um movimento que coloca ênfase especial na expe- riência pessoal direta com Deus através do batismo com o “Espírito Santo”. O termo Pentecostal é derivado de Pentecostes, o nome grego da Festa Judaica das Semanas. Para os cristãos, este evento comemora a descida do “Espírito Santo” sobre os seguidores de Jesus Cristo, conforme descrito no segundo capítulo do “Livro de Atos”. Esse ramo do protestantismo se distingue pela crença no ba- tismo com o Espírito Santo, como uma experiência separada da conversão, que permite ao cristão viver uma vida plena em comunhão com o “Espírito Santo”. Esse poder, inclui, o uso de dons espirituais, como falar em línguas e cura divina – duas outras características definidoras do pentecostalismo. Por causa do seu compromisso com a autoridade bíblica, os dons espirituais e os milagrosos, os pentecostais tendem a ver seu movimento refletindo o mesmo tipo de poder e en- sinamentos espirituais encontrados na “Era Apostólica” da igreja primitiva. Por 116 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS esse motivo, alguns pentecostais também usam o termo “Evangelho Apostólico” ou “Pleno” para descrever seu movimento. O pentecostalismo gerou centenas de novas denominações, incluindo grandes grupos, como as Assembleias de Deus e a Igreja de Deus em Cristo, tanto nos Estados Unidos quanto em outros lugares. Existem mais de 279 milhões de pentecostais em todo o mundo e o movimen- to está crescendo em muitas partes do mundo, especialmente no hemisfério sul. Desde a década de 1960, o pentecostalismo ganhou cada vez mais aceitação, de outras tradições cristãs, e as crenças pentecostais, sobre o batismo do Espírito e os dons espirituais, foram adotadas por cristãos não pentecostais nas igrejas, protestante e católica por meio do Movimento Carismático. Juntos, o cristianismo pentecostal e carismático, contam com mais de 500 milhões de adeptos. Evangelicalismo Evangelicalismo, ou protestantismo evangélico é um movimento mundial que sustenta a doutrina que a essência do evangelho consiste na doutrina da salva- ção pela graça, através da fé, na expiação de Jesus Cristo. Evangélicos são cristãos que acreditam na centralidade da conversão ou na experiência de "nascer de novo" em receber a salvação. Os evangélicos acreditam na autoridade da Bíblia, como revela- ção de Deus à humanidade e dão ênfase ao evangelismo ou com a mensagem cristã. Ganhou grande impulso nos séculos XVIII e XIX com o surgimento do Metodismo e dos movimentos revivalistas (“Grande Despertar”) na Grã-Bretanha e na Améri- ca do Norte. As origens do evangelicalismo, geralmente, remontam ao movimento metodista inglês, a Nicolas Zinzendorf (1700-1760), reformador petista da Igreja da Morávia), ao pietismo luterano, ao presbiterianismo e ao puritanismo. Entre os líde- res e figuras importantes do movimento evangélico protestante estão: John Wesley, George Whitefield, Jonathan Edwards, Billy Graham, Harold John Ockenga, John Stott e Martyn Lloyd-Jones. Os evangélicos, no mundo, chegam a quase 300 milhões ou a 13% da população cristã e a 4% da população mundial. As Américas, África e Ásia abrigam a maioria dos evangélicos. O evangelismo vem se tornado popular, especialmente, na América Latina e no mundo em desenvolvimento. 2.6 O CATOLICISMO E A CONTRARREFORMA O Concílio de Trento tornou-se a força motriz por trás da Contrarreforma em resposta ao movimento protestante. Em termos doutrinários, reafirmou os en- sinamentos católicos centrais, como a transubstanciação e a exigência de amor e es- perança, além de fé para alcançar a salvação. Em 1545, a Igreja iniciou o Concílio de Trento para lidar com as questões levantadas por Lutero. O Concílio de Trento era uma assembleia de altos funcionários da Igreja que se reuniu (por dezoito anos), em 25 sessões, principalmente, na cidade de Trento, no norte da Itália. Resultados do Concílio de Trento: TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 117 • O Conselho negou a ideia luterana de justificação pela fé. • Afirmaram, em outras palavras, sua Doutrina do Mérito, que permite aos se- res humanos se redimirem através de Boas Obras e através dos sacramentos. • Afirmaram a existência do purgatório e a utilidade da oração e das indulgên- cias para reduzir a permanência de uma pessoa no purgatório. • Reafirmaram a crença na transubstanciação e a importância de todos os sete sacramentos. • Reafirmaram a autoridade das escrituras e os ensinamentos e tradições da Igreja. O Concílio de Trento em Arte Religiosa No Concílio de Trento, a Igreja também reafirmou a utilidade das imagens, mas enfatizou que clérigos deveriam ter o cuidado de promover o uso correto das imagens e se prevenir da prática de idolatria. O Concílio decretou que as imagens são úteis, pois através das imagens honramos as figuras sagradas retratadas”. A outra razão pela qual as imagens eram úteis se baseava no princípio que os milagres que Deus teria realizado teriam ocorrido pelo intermédio dos santos. Assim, seus exem- plos virtuosos podem ser expostos aos olhos dos fiéis para que pudessem agradecer os milagres, para que pudessem pautar suas vidas pelo exemplo de santidade e cul- tivar a piedade. Nos séculos seguintes, o catolicismo se espalhou por todo o mundo, em parte, via atividade missionária acompanhando e expansão europeia a partir do século XV. No entanto, na Europa, o poder da Igreja Católica diminuiu em virtude do fortalecimento do secularismo que culmina com o Iluminismo. FIGURA 20 – CONCÍLIO DE TRENTO (SÉCULO XVI) FONTE: <https://bit.ly/39Sh1Gp>. Acesso em: 8 dez. 2020. 118 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS Iluminismo e Revolução Francesa A partir do século XVII, a intelectualidade na Europa começa a questionar o poder e a influência da Igreja Católica. No século XVIII, escritores como Voltaire e os Enciclopedistas, escrevem críticas mordazes à religião e à Igreja Católica. A revo- gação do “Decreto de Nantes”, por exemplo, em 1685, pelo rei Luís XIV da França, foi duramente criticada ao encerrar uma política de tolerância religiosa, em relação aos huguenotes protestantes que já durava um século. À medida que o papado resistia à pressão do galicanismo (movimento originado na França, que defendia a independência administrativa da Igreja Católica Romana), a vitória da Revolução Francesa transferiu o poder para o Estado, causando a destruição de igrejas, o esta- belecimento de um culto à razão e mesmo o martírio de freiras durante o período do “terror”. Em 1798, Napoleão Bonaparte invadiu a Península Italiana, aprisio- nando o papa Pio VI, que morre em cativeiro. Napoleão, mais tarde, restabeleceria a Igreja Católica, na França, através da Concordata de 1801. O fim das guerras na- poleônicas trouxe o ressurgimento católico e o retorno dos Estados papais. FIGURA 21 – A SEPARAÇÃO DA IGREJA E O ESTADO FONTE: <https://bit.ly/3aa1jqr>. Acesso em: 8 dez. 2020. Século XIX Em 1854, o papa Pio IX, com o apoio da esmagadora maioria dos bispos católicos, consultados, entre 1851 a 1853, proclamou a Imaculada Conceição como um dogma na Igreja Católica. Em 1870, o Primeiro Concílio do Vaticano promul- gou a doutrina da infalibilidade papal, quando exercida, em pronunciamentos especificamente definidos.A controvérsia sobre esta e outras questões resultou em um movimento separatista chamado Antiga Igreja Católica. A unificação italiana, na década de 1860, incorporou os Estados papais, in- cluindo Roma, desde 1870, pondo fim ao poder temporal do papado. Em resposta, o papa Pio IX excomungou o rei Victor Emmanuel II, recusou a indenização e re- jeitou a lei italiana de garantias, que lhe concedia privilégios especiais. Para evitar se colocar em sujeição visível às autoridades italianas, ele permaneceu como "pri- sioneiro no Vaticano". Esse impasse apenas foi resolvido pelo “Tratado Latrão”, em TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 119 1929, pelo qual a “Santa Sé” reconhecia a soberania italiana sobre os antigos Esta- dos papais em troca de pagamento e o reconhecimento da soberania papal sobre a Cidade do Vaticano como um novo Estado soberano e independente. Século XX No século XX, o conflito entre o Estado laico e a Igreja Católica prosseguiu. No México, por exemplo, a “Lei de Calles”, de 1926, que separava a Igreja e o Es- tado levou à “Guerra Cristera”. Nesse conflito, mais de 3.000 sacerdotes católicos foram exilados ou assassinados, igrejas foram profanadas, freiras violadas e pa- dres capturados e executados. Após a “Revolução Russa”, em 1917, a perseguição à Igreja e aos católicos, na União Soviética, se inicia e continua, na década de 1930, com a execução e o exílio de clérigos, monges e leigos, o confisco de instrumentos religiosos e o fechamento de igrejas. Na “Guerra Civil Espanhola”, entre 1936 e 1939, a hierarquia católica aliou-se aos nacionalistas de Franco contra o governo da Frente Popular, o que resultou na represália dos republicanos contra a Igreja. FIGURA 22 – GUERRA CRISTERA, REVOLTA CAMPONESA CONTRA A SEPARAÇÃO ENTRE A IGREJA E O ESTADO, 1926-1929 FONTE: <https://bit.ly/3632bfa>. Acesso em: 8 dez. 2020. Na Alemanha, após violações do Reichskonkordat (concordata que regu- lava as relações entre a Alemanha nazista e o Vaticano), em 1933, o Papa Pio XI emitiu a encíclica Mit brennender Sorge, em 1937, que condenava publicamente o nacional-socialismo suas ideologias neopagãs e de superioridade racial. A Igreja condenou a invasão da Polônia, em 1939, que iniciou a Segunda Guerra Mundial, e outras invasões nazistas durante a guerra. Milhares de padres, freiras e católi- cos foram presos e assassinados em todos os países ocupados pelos nazistas, in- cluindo, os santos Maximilian Kolbe e Edith Stein. Embora o Papa Pio XII, tenha ajudado a salvar centenas de milhares de judeus durante o Holocausto, a Igreja também foi acusada de ter incentivado séculos de antissemitismo e de não ter feito o suficiente para impedir as atrocidades nazistas. 120 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS FIGURA 23 – EXECUÇÃO PÚBLICA DE CLÉRIGOS POLONESES, NA PRAÇA DO MERCADO VELHO DE BYDGOSZCZ, EM 9 DE SETEMBRO DE 1939. A IGREJA POLONESA SOFREU UMA PERSEGUIÇÃO BRUTAL SOB OCUPAÇÃO NAZISTA FONTE: <https://bit.ly/2Mcd9bd>. Acesso em: 8 dez. 2020. Durante o período pós-guerra, os governos comunistas na Europa Orien- tal restringiram severamente as liberdades religiosas. Embora alguns padres e religiosos colaborassem com os regimes comunistas, muitos outros foram presos, deportados ou executados. A igreja foi um participante importante no fim do co- munismo na Europa, particularmente na Polônia. Em 1949, a vitória comunista na “Guerra Civil Chinesa” levou à expulsão de todos os missionários estrangeiros. O novo governo também criou a Igreja Patriótica e nomeou seus bispos. Essas nomeações foram inicialmente rejeitadas pelo Vaticano. Na década de 1960, durante a Revolução Cultural, os comunistas chineses fecharam todos os estabelecimentos religiosos. Quando as igrejas chine- sas finalmente reabriram, elas permaneceram sob o controle da Igreja Patriótica. Muitos pastores e padres católicos continuaram sendo enviados para a prisão por se recusarem a renunciar à lealdade ao Papa. Concílio Vaticano II O Concílio Vaticano II (1962-1965) introduziu as mudanças mais signi- ficativas nas práticas católicas, em quatro séculos, desde o Concílio de Trento. Iniciado pelo Papa João XXIII, esse concílio modernizou as práticas da Igreja Ca- tólica, permitindo que a missa fosse rezada em vernáculo (idioma local) e incenti- vando uma participação plenamente consciente e ativa nas celebrações litúrgicas. O papa pretendia aproximar a Igreja do mundo atual (aggiornamento), o que foi descrito por seus defensores, como uma "abertura das janelas". Além de mudan- ças na liturgia, levou a mudanças na abordagem da Igreja com o ecumenismo e a um apelo, no documento Nostra aetate, de melhoria nas relações com religiões não cristãs, como o judaísmo e o islamismo. TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 121 O Concílio, no entanto, gerou controvérsia na implementação de suas refor- mas: os defensores do "Espírito do Vaticano II", como o teólogo suíço Hans Küng, criticaram o Vaticano II por não ter ido longe o suficiente para mudar as políticas da Igreja. Católicos tradicionalistas, por sua vez, como o Arcebispo Marcel Lefeb- vre, criticaram o Concílio, argumentando que suas reformas litúrgicas levaram à destruição do Santo Sacrifício da Missa e dos sacramentos, entre outras questões. Vários ensinamentos da Igreja Católica foram submetidos a um exame minucioso, simultaneamente e após o Concílio, entre esses, estava o ensinamento da igreja sobre a imoralidade da contracepção. A recente introdução da contra- cepção hormonal (incluindo "a pílula"), que alguns acreditavam ser moralmen- te diferente dos métodos anteriores, levou João XXIII a formar um comitê para aconselhá-lo sobre as questões morais e teológicas do novo método. FIGURA 24 – SESSÃO DE ABERTURA DO CONCÍLIO VATICANO II NA BASÍLICA DE SÃO PEDRO, EM 11 DE OUTUBRO DE 1962 FONTE: <https://bit.ly/39WphVW>. Acesso em: 8 dez. 2020. 2.7 NEOPAGANISMO, TRADIÇÕES INDÍGENAS E AFRICANAS O paganismo contemporâneo ou o neopaganismo são termos coletivos para novos movimentos religiosos influenciados por ou derivados de várias cren- ças pagãs históricas de povos pré-modernos (ADLER, 2006). Embora comparti- lhem semelhanças, os movimentos religiosos pagãos contemporâneos são plurais e não compartilham um único conjunto de crenças, práticas ou textos. A maioria dos especialistas que estudam o fenômeno consideram o neopaganismo um mo- vimento dividido em diferentes religiões enquanto outros o caracterizam como uma única religião dividida em denominações diferentes. Os adeptos do neopaganismo acreditam, em níveis diferentes, em fontes pré-cristãs, folclóricas e etnográficas. Muitos praticam uma espiritualidade que 122 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS acredita ser completamente moderna, enquanto outros, dizem seguir tradições antigas ou buscam reviver religiões étnicas indígenas. Os especialistas situam o movimento pagão em um espectro que vai de um extremo associado ao ecletis- mo ao outros relacionado com o reconstrucionismo politeísta. Assim, o politeís- mo, animismo e panteísmo são características comuns da teologia pagã (ADLER, 2006). O paganismo contemporâneo é, às vezes, associado ao movimento da Nova Era (New Age) e o campo acadêmico dos estudos neopaganistas toma forma, na década de 1990, da fusão de estudos realizados nas duas décadas anteriores. Etnia e região Para alguns grupos, a identidade étnica é fundamental, mas esta abor- dagem é considerada racista em certos círculos. Por outro lado, outros grupos neopagãos não limitam a adesão a uma identidade étnica. Nesta categoria, os adeptos buscam se identificar com os sistemas de crenças pré-cristãos, de uma determinada região, através da crença de uma afiliação étnica que teria origem em vidas passadas. A ênfase no aspecto étnico é uma característica dos movimen- tos pagãos na Europa Continental em contraste com movimentos congêneres na América do Norte e nas Ilhas Britânicas.Estes paganismos étnicos são entendidos como respostas a influência estrangeira, a globalização, ao cosmopolitismo e a ansiedade diante da erosão cultural (ROUNTREE, 2015). No aspecto ideológico, Simpson (2013) sugere um modelo de análise sim- plificado, que relaciona os movimentos neopaganistas na América do Norte e nas Ilhas Britânicas, a uma tendência esquerdista, em contrapartida, aos da Eu- ropa Central e Oriental de tendência direitista. Os especialistas observam, que na Europa Central e Oriental os grupos neopagãos enfatizam a centralidade da nação, do grupo étnico ou da tribo. No entanto, Rountree (2015) observa que se- ria equivocado presumir que expressões do paganismo podem ser categorizadas diretamente de acordo com uma região geográfica ou cultura, mas reconheceu que algumas tendências regionais eram visíveis, como, por exemplo, o impacto do catolicismo sobre o paganismo no sul da Europa. Saiba mais sobre neopaganismo, acessando os links a seguir: • http://bit.ly/3qCjk78 • http://bit.ly/3iIK7vR • http://bit.ly/3qIyIPn • https://bit.ly/2KDvywZ. DICAS TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 123 Religiões afro-brasileiras De acordo com o censo, em 2010, 588.797 brasileiros declararam pertencer a uma das religiões afro-brasileiras: 167.363 ao candomblé, 407.331 à umbanda e 14.103 a outras religiões afro-brasileiras). No entanto, a prática é muito mais di- fundida do que mostram os números. As religiões afro-brasileiras são procuradas pela sua oferta de ajuda, mas nem todos que as procuram se tornam devotos e são iniciados em suas práticas. Também não se deve subestimar a influência da imagem negativa dessas religiões, que se agravou nas últimas décadas, devido ao crescimento das igrejas neopentecostais (SILVA, 1994). Para os líderes dessas igrejas, as entidades espirituais das religiões afro-brasileiras, como os orixás, por exemplo, são demônios que devem ser exorcizados. As tradições afro-brasileiras, no entanto, incentivam a incorporação, pois isto permitiria a comunicação com as entidades sobrenaturais e enriqueceria positivamente a vida dos possuídos. As tradições afro-brasileiras inspiraram e retrataram os afro-brasileiros em roman- ces, poemas, canções, filmes e outras formas artísticas. Alguns aspectos das reli- giões afro-brasileiras, como as lendas sobre as divindades, os orixás, e até alguns artefatos, são agora considerados patrimônio nacional (SANSI, 2007). O nascimento das religiões afro-brasileiras está ligado à história de escravi- dão e seu cotidiano. O candomblé, que deriva principalmente da tradição iorubá da África Ocidental, está vinculado a Salvador e seus arredores, na Bahia. Já Xangô, que leva o nome da divindade iorubá com o mesmo nome, se dissemina em Recife. Tam- bor de Mina, que tem forte influência do Daomé, assim como Terecô, se popularizam no Maranhão. Para Prandi (2005) algumas tradições afro-brasileiras podem ser consi- deradas “étnicas” devido ao forte vínculo com uma região específica do Brasil, Bahia, Maranhão, Recife e assim por diante. Na atualidade, no entanto, é possível encontrar terreiros (casas comunitárias e conjuntos) dessas tradições em todas as grandes cida- des do Brasil e a maioria tende a perder o vínculo com a região de origem. A difusão das religiões afro-brasileiras, no século XX, deu origem ao sur- gimento de religiões sincréticas como a umbanda que combina elementos do es- piritismo com o candomblé. No final do século XX, os sacerdotes do candomblé começam a “re-africanizar” as suas tradições e a “purificar” seus terreiros das in- fluências católicas. No entanto, na umbanda e outras religiões sincréticas, a cruz e as imagens de santos católicos foram mantidas como símbolos dos vínculos com o catolicismo popular brasileiro. Porém, não é possível dividir os terreiros afro- -brasileiros em religiões distintas devido às variações e sincretismos. As religiões afro-brasileiras representam um espectro tão variado de crenças e práticas que, às vezes, é impossível distinguir um terreiro de umbanda de um de candomblé. Uma característica comum é a adoração de divindades africanas, geralmente cha- madas de orixás, mas também voduns ou nkisis, que estão associadas a elemen- tos da natureza, por exemplo, vento, água e trovão. A iniciação reforça a relação entre o iniciado e os orixás que têm poder so- bre o destino dos humanos, mas também podem ser influenciados por sacrifícios e outras oferendas. Cada comunidade é hierarquicamente estruturada com um 124 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS sacerdote ou sacerdotisa à frente da comunidade. Eles detêm o poder máximo sobre as crenças e práticas do seu terreiro, embora eles próprios estejam ligados ao terreiro do sacerdote que os iniciou. A maioria das religiões afro-brasileiras, principalmente, o candomblé e a umbanda, foram pesquisados por especialistas brasileiros, norte-americanos americanos e europeus. Como resultado surgiram vários estudos etnográficos descrevendo, em detalhes, a visão de mundo e os rituais de comunidades especí- ficas em Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e outras cidades. Como cada terreiro é autônomo, as variações pareciam infinitas. Estes terreiros receberam reconhe- cimento e até ganharam influência política, embora religiosamente não tenham autoridade sobre outros terreiros. Alguns dos primeiros estudos antropológicos, como do antropólogo fran- cês Roger Bastide, examinaram a bricolagem de ideias e práticas dentro da comu- nidade afro-brasileira. Eles se concentraram, particularmente, no candomblé, que ainda era percebido como a religião mais “autêntica” e “africana”. Por um tempo, a umbanda foi esquecida, até que sua importância fosse reconhecida. Um dos fo- cos da pesquisa foram as mulheres e a sexualidade. Estudiosos brasileiros também abordaram as religiões afro-americanas em um contexto político mais amplo, como no processo de formação de uma identidade negra, no passado e no presente (SIL- VA, 1994). Um desdobramento recente é o estudo da umbanda como manifestação diaspórica da cultura “banto” (MALANDRINO, 2006). Outra característica presen- te nesses estudos é o lado estético dos rituais e sua dimensão material. Saiba mais sobre religiões afro-brasileiras, acessando: • http://bit.ly/3cafxd8 • https://bit.ly/3980lLL • https://bit.ly/2Y2kEDY. DICAS 2.7.1 Religiões dos povos ameríndios De acordo com o Censo de 2010, existem 817.000 ameríndios no Brasil (IBGE, 2012); entretanto, apenas 63.082 declararam pertencer a uma religião in- dígena. Muitos se converteram a denominações cristãs embora, frequentemente, mantenham parte de sua própria tradição. O termo “religião indígena” esconde a grande diversidade de crenças e práticas da população ameríndia brasileira, que pode ser dividida em 305 nações indígenas, com 274 línguas diferentes. Apesar de algumas semelhanças culturais, cada grupo difere consideravelmente um do outro. TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 125 A maioria das pesquisas sobre as religiões indígenas foi feita por antro- pólogos brasileiros, europeus e norte-americanos. Esses antropólogos se concen- traram no relato etnográfico de populações indígenas diversas no esforço para obter uma visão do mundo dos grupos ameríndios pesquisados. Dessa maneira, os antropólogos coletaram não apenas informações sobre a estrutura social, por exemplo, o parentesco, línguas, conflitos e visões de mundo. Como outras religiões indígenas, os povos ameríndios não têm uma pa- lavra para religião, mas se referem a ela como um modo de vida. A religião entre o grupo guarani pode ser descrita como “nossa boa maneira de ser” (ñandé rekó katú). A religião é parte integrante da cultura, essencial no pensamento e no coti- diano do grupo (tekó), ligada ao que consideram ser exclusivamente deles (ñandé) e como ser bom (katú). Nesse sentido, a religião é um marcador da identidade do grupo, uma forma de se separar dos outros. Os primeiros estudos sobre essas religiões indígenasse concentraram em uma coleção de mitos que continham informações sobre a cosmovisão com seus vários grupos de seres naturais e sobrenaturais. Um dos primeiros estudos sobre o universo religioso guarani foi publicado, em 1914, por Curt Unkel Nimuenda- jú, que trabalhava com um pequeno grupo de Ñandéva (Apapokúva) de Mato Grosso. Sua coleção de mitos sobre a criação e destruição do universo contém um dos primeiros estudos etnográficos da religião ameríndia. Suas percepções foram particularmente importantes devido à busca quiliástica pela “terra sem mal” que ainda ocorria entre os guaranis na época da pesquisa. Estes movimentos regis- trados, desde os tempos coloniais, interpretados como reação ao colonialismo e às pressões pós-coloniais, incluindo, doenças e desmatamento. O objetivo era en- contrar a terra dos espíritos ancestrais, a terra sem o mal, geralmente caminhando por centenas, até milhares de quilômetros (um relato colonial refere-se à chegada de um pequeno grupo no império inca nos Andes). Ao chegar, o grupo começava a dançar sem parar para se aproximar da terra dos espíritos. Passado o tempo das longas caminhadas, a dança em forma de caminhada e o conceito de terra sem mal, ainda é uma característica dos rituais guaranis. No entanto, os guaranis são hoje predominantemente cristãos, como as demais populações ameríndias do Brasil. A instalação de reservas indígenas, no início do século XX, podem ser relacionadas com a disseminação do protestantis- mo entre grupos ameríndios. E o governo brasileiro favoreceu as missões protes- tantes porque deveriam tornar os ameríndios receptivos à aculturação. O impacto foi generalizado, em particular, devido ao foco dos missionários na educação e outras ofertas sociais. A Missão Evangélica Caiuá, por exemplo, desde 1928, tem como objetivo a educação e a saúde como forma de divulgação da fé cristã e hoje está consolidada entre os guaranis. Muitos líderes indígenas, professores e agen- tes dos setores de saúde hoje foram ensinados em escolas e igrejas protestantes. No entanto, a partir da década de 1970, o pentecostalismo começou a se espalhar entre as populações ameríndias como forma de indigenizar o cristianismo. Na atualidade, entre as trinta e seis igrejas da “Reserva Indígena de Dourados”, trin- ta e duas são pentecostais, três protestantes (presbiteriana, metodista e batista) e 126 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS uma católica romana. No entanto, embora um grande número dessas comunida- des seja liderado por líderes indígenas, as vinte igrejas maiores são todas lidera- das por ministros não indígenas que vivem em centros urbanos como Dourados. Em 1993 foi fundada a primeira igreja indígena nesta reserva, a Igreja do Evange- lho Pentecostal Indígena de Jesus. A igreja é liderada por indígenas e pratica uma forma carismática de cristianismo, com ênfase em narrativas pessoais de sucesso na resistência contra os “poderes do mal”. Embora a cristianização da população ameríndia seja um fenômeno conhe- cido, até agora não foi bem estudado. O foco dos antropólogos tem sido as crenças e práticas tradicionais como o xamanismo. Uma contribuição importante para a com- preensão das religiões ameríndias é o artigo “Os pronomes cosmológicos e o perspecti- vismo ameríndio”, de Viveiros de Castro, publicado em 1996, em que critica o pensa- mento centrado no homem. O autor argumenta, uma forma de pensar ameríndia aceita a existência de seres diferentes (por exemplo, humanos, animais e espíritos) e perspectivas diferentes que determinam a realidade de cada um. Viveiros de Castro (1996) caracteriza o pensamento ameríndio, portanto, como a aceitação de diferen- tes realidades coexistentes, não apenas humanas e animais, mas diferentes grupos humanos e diferentes grupos de animais. O perspectivismo de Viveiros de Castro (1996) está ligado ao debate revitalizado sobre o animismo (um antigo termo reno- vado neste debate), que ocorre atualmente entre antropólogos que trabalham com religiões ameríndias. Uma característica importante da forma de animismo amerín- dio é a relação entre o homem e a natureza e a possibilidade de cruzar a fronteira entre o homem e o animal (por exemplo, em sonhos ou visões xamânicas). O homem não é elevado como “guardião da natureza”, mas visto como parte de uma rede de relações, às vezes, harmoniosa, porém mais frequentemente conflituosa. Refletindo sobre o pensamento ameríndio, “animismo é a capacidade de avaliar plantas, espí- ritos, objetos e animais como pessoas não humanas, ou seja, como seres volitivos, sencientes, sensíveis, atentos e inteligentes” (HAUGHT, 1990, p. 19). O desdobramento mais recente nos estudos das religiões ameríndias é marcado pelas contribuições crescentes de autores indígenas. Enquanto de um lado medeiam entre as interpretações ocidentais e as tradições indígenas, eles também representam uma expansão significativa na maneira de pensar, pois muitas vezes fundem as ideias tradicionais em uma nova bricolagem. Gabriel dos Santos Gentil (2000), um pensador Tukano, que lecionou na Universidade Federal de Manaus e colaborou com pesquisadores ocidentais em sua busca por tradições indígenas, em seu livro O Calendário lunar tukano: mito das astronomias e constelações, de 2003, combina os ensinamentos religiosos Tukano com as ideias da Nova Era e Inca, retiradas da vasta literatura sobre o Império Inca. Gentil (2000) representa apenas um exemplo de um campo crescente de bricolagem criativa. Os estudos das religiões afro-brasileiras e ameríndias refletem as transfor- mações da sociedade brasileira nas últimas décadas e ensejam a complexidade da religião no Brasil. O Brasil é uma sociedade industrializada e urbanizada com pro- blemas sociais consideráveis como legado de seu passado colonial, mas também resultado de uma urbanização dramática e manutenção de desigualdades abissais. TÓPICO 2 — O CRISTIANISMO 127 De forma análoga, outras transformações, como nas relações de gênero e na estra- tificação social, causaram impacto na prática e estudos das religiões afro-brasilei- ras e ameríndias, pois não é mais possível restringir papéis e tradições religiosas a determinados segmentos social ou racial. Tampouco achar que certas religiões são praticadas, predominantemente, entre os pobres urbanizados ou que outras religi- ões tradicionais atraem principalmente mulheres ou homossexuais. É possível se tornar um xamã em uma religião ameríndia sem ser indígena. Outra consequência dos processos que mudaram a sociedade brasileira é a bricolagem das tradições. Se as religiões afro-brasileiras se estabeleceram como bricolagem já no passado colo- nial, a fusão de tradições e o estabelecimento de novas formas também estão pre- sentes em outras religiões e não apenas nas tradições vernáculas. Saiba mais sobre religiões indígenas, acessando: • http://bit.ly/2LLH6Px • http://bit.ly/2Y12hj0 • http://bit.ly/397fJYU. DICAS 128 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • O cristianismo tem origem como uma seita do judaísmo. • Como uma religião distinta, o cristianismo se formou a partir do trabalho de missionários (apóstolos). • A bíblia cristã se consolida a partir da compilação e seleção dos quatro evan- gélicos canônicos. • O cristianismo, nos primeiros séculos, foi afetado por disputas de ordem po- lítica e cristológica. • O cristianismo deixa de ser uma religião perseguida e se torna a religião ofi- cial do império romano no governo de Constantino, no século IV. • A igreja católica se dividiu, no século XI, após o Grande Cisma. • A Reforma Protestante foi iniciada por Martinho Lutero, no século XVI, na Alemanha. • Os protestantes se dividiram em várias denominações ao longo do tempo. • O Iluminismo e a secularização causaram grande impacto no cristianismo. • As religiões neopaganistas constituem um fenômeno moderno que interage com um passado imaginado e reinventado no presente. • As religiões afro-brasileirase indígenas são aspectos fundamentais em uma identidade brasileira contemporânea e são tradições sincréticas cuja transfor- mação é continua e multifacetada. 129 1 Com origem no judaísmo, o cristianismo, gradualmente, se distingue como uma tradição religiosa distinta. Um missionário, em particular, se destaca neste processo de distanciamento do cristianismo pregando para não ju- deus no mundo greco-romano. Quem foi esse apóstolo? a) ( ) Pedro. b) ( ) Paulo. c) ( ) Tiago. d) ( ) Barnabé. 2 As igrejas do cristianismo oriental e ocidental se separam, culturalmente e em razão de discordâncias cristológicas. O cristianismo dito oriental se apropria de um termo, em particular, para marcar sua tradição distinta do catolicismo romano. Assinale a alternativa que se relaciona com a denomi- nação característica das igrejas católicas orientais. a) ( ) Ecumênicas. b) ( ) Heterodoxas. c) ( ) Ortodoxas. d) ( ) Reformadas. 3 O cristianismo reformado se baseou em convicções religiosas sobre o essen- cial do cristianismo. Estes eram termos em latim que definiam a essência da doutrina protestante. Assinale a alternativa que se relaciona a estes cinco pilares da igreja reformada. a) ( ) Teses. b) ( ) Atos. c) ( ) Ordenações. d) ( ) Solas. AUTOATIVIDADE 130 131 UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO O islã surge no século VII, na cidade de Meca, no Hijaz (“Barreira” na tra- dução portuguesa), localizada na parte ocidental da Península Arábica, ao longo do Mar Vermelho. A Península arábica se situava, na época, na periferia de dois grandes impérios: o Império Bizantino e Sassânida. A mensagem islâmica, como enfatizada desde o início, era uma continuação de outras tradições monoteístas na região (exemplo, judaísmo e cristianismo). Portanto, incorpora no seu bojo estas tradições, com mudanças, que tinham como intuito, de acordo com a interpretação islâmica, corrigir distorções, que teriam sido produzidas pelas ações humanas nos cânones e práticas das religiões monoteístas abraâmicas que antecederam o islã. TÓPICO 3 — O ISLÃ FIGURA 25 – ARÁBIA PRÉ-ISLÂMICA FONTE: <https://bit.ly/3paHN30>. Acesso em: 8 dez. 2020. 132 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS A mensagem islâmica é divulgada por Muhammad (Maomé) que era mem- bro de um clã tradicional em Meca. Este clã integrava a tribo de Coraixe, que gover- nava Meca por gerações. Porém, os Banu Hashim (hachemitas), clã de Muhammad, havia perdido seu status de liderança, no final do séc. VI, para seus parentes do clã dos Banu Ummaya (Omíadas). O declínio do status do seu clã, juntamente com a perda de seus pais, ainda jovem, teria grande impacto na vida de Muhammad. Meca era um centro comercial e religioso pré-islâmico cujo centro era a Caaba (em árabe “cubo”). Até os 40 anos de idade, de acordo com a narrativa tradicional, Muhammad foi um mercador de longa-distância, ocupação consoante com a tradi- ção dos membros da tribo de Coraixe. De 610, em Meca, até sua morte, em Medina, em 632, segundo reza a tradição islâmica, Muhammad recebe um fluxo intermitente de revelações divinas que são compiladas, oralmente e na forma escrita, em árabe, em um texto chamado Alcorão (al-Qurān), que em árabe significa “a Recitação”. FIGURA 26 – CAABA, EM MECA, CONSTRUÍDA COM GRANITO E COBERTA COM SEDA COM INSCRIÇÕES EM OURO E PRATA FONTE: <https://bit.ly/3pfg5T6>. Acesso em: 8 dez. 2020. No fim de sua vida, no ano de 632, Muhammad, acumulava a liderança religiosa e política e havia unido, as cidades de Meca, Medina e as tribos nômades beduínas nas regiões circunvizinhas. Após sua morte, sob a liderança de seus su- cessores, chamados “califas”, os povos da Península Arábica, dão continuidade a um processo de expansão dos povos árabes já em curso antes do islã. Desta feita, porém, a expansão é impulsionada, organizada e posta em prática, sob a égide de solidariedade etnorreligiosa. Tal fenômeno, leva os árabes e outros povos conver- tidos ao Islã, em menos de um século, no Oriente, até as fronteiras da China, e no Ocidente, até o sul da França. TÓPICO 3 — O ISLÃ 133 2 ARÁBIA PRÉ-ISLÂMICA E A REVELAÇÃO CORÂNICA Sobre o papel das religiões na Arábia pré-islâmica existem duas narrati- vas conflitantes. Uma, mais próxima de certas tradições religiosas, enfatiza, quase exclusivamente, as religiões xamânicas de natureza politeísta praticadas pelos povos árabes. Outra, no entanto, baseada em estudos acadêmicos, contempla, a existência, anterior do judaísmo e do cristianismo na região. Ao observar o que acontece com estas tradições religiosas, em outras regiões do Oriente Médio, se percebe que, naquele período, principalmente, o cristianismo, passa por intenso conflitos de natureza político-teológica, que em alguma medida, chegam à região de origem do islamismo na Península arábica. Nesse aspecto, o islamismo, antes de ser uma ruptura radical com o politeís- mo pré-islâmico, foi, na realidade, parte de um processo de assimilação e ressignifica- ção do monoteísmo abraâmico, por parte dos povos árabes. A presença, inclusive, de tribos árabes judaizadas e adeptos do cristianismo oriental, tanto em Meca como em outras regiões, é bem documentado e confirmada pela narrativa corânica. De modo análogo, a presença dos hanifs (aquele se reverte), entre os árabes, que era uma ver- tente que dizia ser adepta de um monoteísmo abraâmico original, reforça a tese de uma adesão gradual dos árabes ao monoteísmo que iria culminar com o islamismo. Na tradição islâmica a revelação corânica tem um papel central e ela se inicia quando Muhammad, a partir de certa idade, se retira para meditar em uma caverna nas cercanias de Meca. Aos 40 anos, no interior da caverna de Hira, ele re- cebe sua primeira revelação, que a princípio, parece não fazer sentido. De acordo com a tradição islâmica, Muhammad seria “analfabeto” (ummi) cujo significado, em árabe, corresponde a “iletrado”, mas, segundo outras intepretações, pode sig- nificar alguém que desconhece os textos sagrados anteriores. De qualquer manei- ra, a primeira revelação teria sido veiculada por uma voz de comando, que urgia Muhammad a ler ou recitar aquilo seria mais tarde a primeira surata do Alco- rão. Tal comando o teria aterrorizado, que confuso, teria ido buscar apoio junto à Khadija, sua esposa. Esta, então, o encaminha a seu primo chamado Warqah ibn Nawfal, um cristão versado em textos cristãos e judaicos. Warqah, após ouvir o relato de Muhammad teria concluído que sua experiência mística era o início de uma nova revelação divina e a confirmação do seu status como profeta. As reve- lações ocorrem de forma intermitente e aleatórias, e como sugerido, inicialmente, por Warqah ibn Nawfal, eram intermediadas pelo Anjo Gabriel. 134 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS FIGURA 27 – CAVERNA DE HIRA (MECA) LOCAL DA 1ª REVELAÇÃO CORÂNICA FONTE: <https://bit.ly/2LURvs6>. Acesso em: 8 dez. 2020. A divindade única e indivisível no islã é Allah (Alá), que significa “Deus” em árabe, e seria, em princípio, a mesma divindade adorada por judeus e cristãos. Esta divindade já era presente no panteão politeísta de deuses pré-islâmicos e, por intermédio de um processo análogo ao ocorrido no judaísmo, com Yahweh, gradualmente, “Allah” se torna a divindade principal para os árabes, ainda no período pré-islâmico, sem, contudo, eliminar outras divindades. Com advento do Islã, Allah se torna a divindade única e absoluta pelo prin- cípio de unicidade islâmica chamado tawhid (unicidade) cuja centralidade é confir- mada na sura al-Al-Ikhlas (a pureza ou a sinceridade): Em nome de Deus, Clemente, Misericordioso (fórmula obrigatória para iniciar todas as suras do Alcorão. QUADRO 2 – TRADUÇÃO DAS SURAS DO ALCORÃO Transliteração do árabe Tradução 1 Qul huwa Allahu ahad 2 Allahu alssamad 3 Lam yalid walam yoolad 4 Walam yakul lahu kufuwan ahad 1 Diga: Ele é Allah, o Único. 2 Allah,o Absoluto 3 Jamais gerou nem foi gerado. 4 E nada nem ninguém a Ele se compara. FONTE: O autor A ênfase islâmica na unicidade visava se afastar da concepção trinitária cristã e reafirmar o monoteísmo abraâmico original. Outras duas questões cen- trais à nova religião: a primeira é a missão de Muhammad na qualidade de selo da profecia, isto é, como o último de uma linhagem profética que se remete a Adão, passa por todos os profetas judeus do Antigo Testamento, por Jesus Cristo, e finalmente se encerra em Muhammad. A última se refere ao Alcorão, que apesar de conter ecos de tradições judaicas e cristãs, se reveste de originalidade textual, estética e funcional dentro de uma cosmovisão islâmica. TÓPICO 3 — O ISLÃ 135 O Alcorão se consolida como texto sagrado do islã, na língua árabe, cuja im- portância se mantém até os dias de hoje. O árabe, antes do Alcorão, era ainda uma língua, em grande parte oral, e se organiza de forma escrita definitiva a partir do texto corânico. Outra característica única do Alcorão é sua recitação peculiar e me- lódica, associada à tradição árabe de poesia com a Qasida. O texto corânico é compi- lado, ao longo da vida de Muhammad, de forma oral, e na forma escrita, utilizando como plataforma os materiais disponíveis tais como, couro e ossos de animais. A compilação corânica seguiu uma diretriz rígida, que tinha como obje- tivo, na percepção islâmica, evitar distorções ocorridas nos textos sagrados do judaísmo e do cristianismo. As versões memorizadas pelos huffaz (plural de hafiz ou memorizadores) e os trechos escritos eram frequentemente comparados para evitar qualquer distorção. Após a morte de Muhammad, o primeiro califa (líder da comunidade islâmica), Abu Bakr (573-634), ordenou primeira compilação do texto corânico, organizado em 114 suras ou suratas organizadas em ordem de- crescente a sua revelação. Isto é, as últimas suratas precedendo as últimas. Pos- teriormente, no governo do terceiro califa, Osman ibn Affan (579-656), a versão definitiva do Alcorão é compilada e manuscrita. FIGURA 28 – TRECHO DA SURATA AL-ALAQ (O COÁGULO, 96º SURATA DO ALCORÃO) E A PRIMEIRA REVELAÇÃO CORÂNICA RECEBIDA POR MUHAMMAD Tradução: Lê, em nome do teu Senhor que criou, criou o homem de um coágulo. Lê, que o teu Senhor é Generosíssimo, que ensinou através do cálamo, ensinou ao homem o que este não sabia. FONTE: <https://bit.ly/39T9Z4i>. Acesso em: 8 dez. 2020. Um dos textos mais antigos do Alcorão no mundo se encontra em forma de pergaminho e foi, possivelmente, confeccionado durante a vida do Profeta Muhammad. Esse documento foi encontrado na Coleção da Biblioteca de Pes- quisa Cadbury, na Universidade de Birmingham, Inglaterra. As duas folhas de pergaminho bem preservadas formam um manuscrito e foram datadas, pelo rá- dio carbono, como produzidas no período, entre 568 e 645. Este resultado é consi- derado, pelos cientistas que o testaram em Oxford, como quase certo (com 95,4% de precisão). O texto corânico de Birmingham, que se acredita ter sido escrito, por volta de 650, pode estar entre as primeiras compilações da obra que veio a se tornar o livro sagrado de uma das maiores religiões do mundo. O texto é quase idêntico ao usado atualmente. O documento, inclusive, é ainda legível para quem sabe ler o árabe contemporâneo. 136 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS FIGURA 29 – FÓLIOS DO MAIS ANTIGO EXEMPLAR DO ALCORÃO. ARQUIVO DA BIRMINGHAM UNIVERSITY FONTE: <https://bit.ly/397ikC8>. Acesso em: 8 dez. 2020. Inicialmente restrito a um pequeno círculo de familiares e amigos, a co- munidade islâmica, em Meca, cresce atraindo aqueles na base da hierarquia so- cial daquela sociedade tais como, escravos, mulheres e outros indivíduos social- mente marginalizados. Os líderes coraixitas de Meca, em princípio, toleravam a pregação islâmica em virtude das conexões tribais, que em caso de ataque a Muhammad, poderia gerar um ciclo interminável de vendetas sangrentas. Toda- via, como o falecimento de Abu Taleb, tio e protetor de Muhammad, a situação dos muçulmanos, em Meca, fica insustentável. Exposto a forte perseguição e ameaças a sua vida, Muhammad e sua pequena comunidade islâmica, busca refúgio em Medina, então conhecida como Yathrib, que era um oásis relativamente próximo de Meca. Este episódio da fuga de Muhammad, em 622, de Meca para Medina, fica conhecido como a Hégira (imigração) e marca o início do calendário lunar islâmico. Em Medina, Muhammad assume o papel de árbitro, entre tribos rivais, papel comumente oferecido, entre os árabes, a indivíduos dotados de capacidade de liderança sem vínculos tribais com os locais. Em Medina, Muhammad põe em prática suas habilidades de liderança ar- bitrando disputas tribais e acomodando sua comunidade original no seio da comu- nidade local. Porém, a frágil harmonia intertribal se rompe dando início a uma série de conflitos internos, inclusive envolvendo as tribos árabes judaizadas de Medina, e conflitos externos com o os coraixitas de Meca. No final de dez anos, Muhammad se consolida como líder político e religioso, recebe as últimas revelações corânicas e conquista, em 630, Meca, de forma pacífica. Dois anos mais tarde, Muhammad falece em Medina e deixa como legado a união inédita das tribos árabes sob a égide de uma religião, fundamentada no seu exemplo e na revelação corânica. Com a morte inesperada de Muhammad surge a necessidade de se escolher um novo líder diante do choque e da instabilidade política. Os líderes muçulma- nos se reúnem e elegem Abu Bakr, companheiro de Muhammad de primeira hora, como “califa” (khalifa). Abu Bakr é investido de autoridade política e religiosa sobre a comunidade islâmica ou a ummah. Este episódio dá origem ao califado rashidun (os TÓPICO 3 — O ISLÃ 137 bem-guiados) que após Abu Bakr, elege Omar ibn Khattab, Osman ibn Affan e Ali ibn Abu Taleb. No califado de Ali ibn Abu Taleb acontece a primeira fitna (guerra civil entre muçulmanos) que dá origem a dinastia dos omíadas, que transferem a sede do califado de Medina para Damasco, na Síria, conquistada aos bizantinos. Este conflito, entre Ali ibn Abu Taleb e Abu Sufyan, que se tornaria o primeiro califa omíada, deu origem ao futuro cisma, na comunidade islâmica, entre sunitas e xiitas. Com fim da revelação corânica e o crescimento da comunidade islâmica, sur- ge a necessidade de compilar os ditos e ações de Muhammad como fonte complementar ao Alcorão. Dessa maneira, coleta-se depoimentos daqueles que teriam convivido com Muhammad e testemunhado seu exemplo e suas ações nas mais diversas situações, inclu- sive as não previstas no Alcorão. Surge assim o hadith, que se transforma em leis religiosas e norma de conduta para os muçulmanos como fonte canônica apenas inferior ao Alco- rão. De modo geral, a sharia ou lei islâmica é, em grande parte, baseada nos hadith. De- talhes de funções ritualísticas, como a ablução (wudu), preces (salat) e mesmo formas de cumprimento adequado entre muçulmanos, estão prescritas nos hadith não no Alcorão. IMPORTANTE Etimologia do termo “Islã”. O significado remete à totalidade, submissão, since- ridade, segurança e paz. No contexto, estritamente religioso, significa “submissão voluntária a vontade de Deus”. NOTA Artigos de fé islâmicos (imam): • Concepção de um Deus único, absoluto e indivisível (tawhid). • Crença nos anjos (malak). • Crença na Revelação (Qur’an). • Crença nos profetas e na sunnah (compilação dos hadith). • Crença na Ressurreição (Yawm al-Qiyāmah) e no Juízo Final (Yawm ad-Dīn). • Crença na vontade divina (al-qada). Os cinco pilares do islã (arkan al-Islã) ou atos de devoção: 138 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS • Testemunho (Shahada): "ʾašhadu ʾal-lā ʾilāha ʾillā-llāhu wa ʾašhadu ʾanna muħammadan rasūlu-llāh” – “Não há divindade além de Allah, Único e sem sócio, e Muhammad é Seu servo e mensageiro”. • Prece (salat) – as preces, cincovezes ao dia na direção de Meca (qibla), são com- pulsórias, mas existe flexibilidade nos horários de acordo com as circunstâncias. • Caridade (zakat) – geralmente fixado em 2,5% dos ganhos anuais para ajudar os pobres, necessitados, endividados, libertar escravos e viajantes perdidos. • Jejum (sawm) – se abster de comida, bebida, relações sexuais, entre outras ati- vidades, do nascer ao pôr do sol no 9º mês do calendário islâmico (Ramadan). • Peregrinação (hajj) – realizado no mês do calendário islâmico de dhu al-hijjah. Todo muçulmano apto, fisicamente, mentalmente e financeiramente deve fa- zer a peregrinação à Meca, ao menos, uma vez na vida. Sharia (lei islâmica) Corpo de leis religiosas que compõem a tradição islâmica. Deriva de duas fontes consideradas sagradas para os muçulmanos: Alcorão e os hadith. O conceito de lei divina contrasta com as interpretações dos juristas chamada fiqh. A aplicabi- lidade da sharia é objeto de debate entre muçulmanos tradicionalistas e reformistas. A partir do século XIX, as leis tradicionais, baseadas na sharia, foram gradualmente substituídas por códigos inspirados nos modelos europeus. Não obstante, as cons- tituições em países de maioria muçulmana, ainda contêm referências à sharia, aliás, como ocorre em constituições ocidentais com referências à tradição cristã. São pou- cos os países do mundo islâmico que ainda adotam formas clássicas de aplicação da sharia, como a Arábia Saudita e alguns emirados no Golfo Pérsico. Mesmo o Irã, que se autodenomina uma “república islâmica”, adota uma legislação mista, com- binando valores da sharia com códigos seculares (ESPOSITO, 2014). A MULHER NO ISLÃ Sami Isbelle Um dos maiores equívocos atribuídos ao islã é o que se refere à condição da mulher, estereotipada como submissa, infeliz e sem direitos. Vamos dar uma pequena pincelada no que o Islã garantiu a elas há quase 1432 anos. Ao analisarmos o momento histórico da mensagem final do islã, através do seu último mensageiro, Muhammad (que a bênção e a paz de Deus estejam sobre ele), verificamos o avanço proporcionado pelo islã em relação ao tratamento dado às mulheres compara- dos a outras sociedades da época. De uma forma geral, as mulheres em outras socie- dades eram tratadas como mercadorias, praticamente não tinham direito algum, não tinham direito à herança, não podiam gerir seus bens sem a intervenção de um tutor. IMPORTANTE TÓPICO 3 — O ISLÃ 139 Além disso, a mulher no islã, não é a única responsável pelo pecado original. Na visão is- lâmica, ambos pecaram, tanto Adão como Eva, e ao se arrependerem Deus os perdoou. Na língua árabe, idioma em que o Alcorão foi revelado, todas as passagens relativas a este episódio estão no "dual". No árabe, existe o singular, dual e plural (três ou acima). Ou seja, ambos pecaram, ambos se arrependeram. Vejamos agora alguns dos direitos garantidos pelo Islã desde a sua revelação final: • o islã garantiu o direito à vida num período em que as filhas eram enterradas vivas na Arábia pré-islâmica; • no islã, a busca do conhecimento e o estudo não são direitos e sim obrigações religiosas, seja este conhecimento religioso ou secular. E isso vale para os dois, homem e mulher; • o islã garantiu à mulher o direito de trabalhar e de receber o mesmo salário que os homens, caso exerçam a mesma função; • o islã garantiu à mulher o direito de dispor dos seus bens sem a interferência de nenhum tutor, como pai, marido; • o islã garantiu à mulher o direito à herança; • o islã garantiu à mulher o direito de escolher com quem quer se casar; • o islã garantiu à mulher o direito ao prazer sexual; • o islã garantiu à mulher o direito ao divórcio; • o islã valorizou a mulher como um ser humano dotado de razão e personalidade, onde o que acaba sendo ressaltado é o seu caráter e a sua inteligência, e não seus atributos físicos. Um ponto que devemos estar atentos é o fato de que quando tivemos Estados islâmi- cos, ou seja, aqueles cujas leis eram baseadas na Sharia (jurisprudência islâmica), esses direitos foram garantidos e as mulheres eram ativas na sociedade. Tivemos na história islâmica muitas mulheres que se destacaram nos mais diversos campos do saber. Hoje, no entanto, é consenso entre os sábios muçulmanos que não temos nenhum Esta- do islâmico. Existem países em que a maioria da população é muçulmana, mas sua legis- lação é secular ou mista, ou seja, se aplica em parte à Sharia e em parte às leis seculares. Atualmente, não há nenhum país que aplique a jurisprudência islâmica na íntegra. Logo, quando vemos em alguns destes países as mulheres muçulmanas não tendo na prática todos esses direitos garantidos, com certeza, a culpa não é do islã, e sim destes Estados, de suas leis e de sua estrutura patriarcal. Por vezes, vemos costumes locais se sobrepondo aos ensinamentos islâmicos, o que faz com que as pessoas entendam certas práticas como prove- nientes do islã, quando na verdade são apenas hábitos culturais profundamente enraizados. FONTE: <https://glo.bo/2NhWfZ1>. Acesso em: 8 dez. 2020. Jihad Os termos “jihad”, “jihadistas”, “jihadismo”, entre outras variantes, se in- tegraram ao cotidiano de bilhões pessoas, via as mais variadas formas de mídias, dando origem a diversas interpretações, geralmente associadas a ações violentas de indivíduos e grupos, que aderiram ao “jihadismo” islâmico, em escala glo- bal. A expressão “jihad” pode ser encontrada trinta e cinco vezes no Alcorão, em quinze suras: quatro reveladas em Meca e onze reveladas em Medina. A palavra “jihad” aparece, no Alcorão, sob várias formas, principalmente, esotéricas, que enfatizam o esforço de conduta do devoto contra as atribulações do cotidiano 140 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS (“esforço na senda divina” ou jihād fī sabīil Allah). A expressão jihad, associada à “guerra-santa”, conflito ou violência, inexiste em qualquer texto islâmico, seja no Alcorão ou no hadith. Ironicamente, “guerra-santa” é um conceito inerente ao processo histórico do cristianismo, que remonta a Ambrósio de Milão, Agostinho de Hipona e, posteriormente, às Cruzadas. Contudo, notadamente no período da vida de Muhammad, em Medina, o “jihad” adquire caráter de legitima-defe- sa empreendida, sob certas condições e limitações estabelecidos no Alcorão e na sharia. Por outro lado, ações manu militare (de caráter militar) são mencionadas no Alcorão sob as denominações, qital (guerra, conflito) e qatala (morte, assassina- to, ação violenta). O Alcorão, dessa maneira, oferece uma gama variada de opções e condições para que o jihad (esforço), na sua concepção “maior” (al-akhbar) inte- rior e esotérica ou na sua forma “menor” (al-asghar) exterior e terrena, possa ser empreendido, regulado e delimitado. 3 DIVISÕES SECTÁRIAS As divisões sectárias no Islã surgiram, apesar de certas divergências en- tre os especialistas, em torno da questão sucessória de Muhammad. A escolha de Abu Bakr, como califa, apesar de atender a um consenso, na ocasião, deixou ressentimentos em indivíduos associados a Ali Ibn Abu Taleb, primo, um dos primeiros conversos ao Islã, e, posteriormente, genro de Muhammad. Os que de- fendiam a legitimidade de Ali, como sucessor, baseavam suas alegações em torno de dois motivos principais. O primeiro se baseava na crença da primazia dos membros da Ahl al-Bayt (a família do Profeta). Isto é, os sucessores legítimos de Muhammad seriam seus descendentes. TÓPICO 3 — O ISLÃ 141 FIGURA 30 – DIVISÕES SECTÁRIAS FONTE: <https://bit.ly/3941MLk>. Acesso em: 8 dez. 2020. Como Muhammad não tinha herdeiros do sexo masculino a escolha recaía sobre Ali, um primo bem mais novo, praticamente, criado por Muhammad. Se- gundo esta crença, teria sido passado para Ali um conhecimento único reservado aos membros da família de Muhammad. Esta corrente também alega, que certas passagens corânicas, confirmavam a escolha de Ali, ao contrário da interpretação narrativa ortodoxa (sunita),que afirma que Muhammad não deixou sucessores. O outro motivo para a suposta legitimidade de Ali em relação a outros con- correntes à sucessão, se baseia no relacionamento único entre Ali e Muhammad, que teria, em várias ocasiões, sua lealdade absoluta a Muhammad e sua mensagem. Tal relacionamento teria sido confirmado pela decisão de Muhammad de conceder a Ali a honra de se casar com Fátima, única filha de Muhammad a chegar à idade adulta. 3.1 A ORIGEM DO XIISMO Ressalte-se, que todas narrativas que sugerem o direito inquestionável de Ali à sucessão de Muhammad vão de encontro a uma contranarrativa sunita, que rebate ponto por ponto as justificativas, que mais tarde, serviriam de base a uma narrativa xiita. O termo xiita, inclusive, significa a abreviação de Shīʿatu ʿAlī ou 142 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS “partidários de Ali” (xiitas). Para aumentar a tensão entre grupos na comunidade islâmica original, Ali é preterido em duas eleições seguintes e só é escolhido como califa na quarta eleição, após o assassinato do terceiro califa, Osman ibn Affan. A escolha de Ali, no entretanto, desagrada o clã de Banu Ummaya (omíadas) ao qual pertencia Osman e a rivalidade desencadeia a primeira guerra civil (fitna) entre mu- çulmanos. Ali renuncia ao califado, como resultado desta guerra e Muwaya ibn Sufian se torna novo califa, que transfere a capital do califado, de Medina para a recém-conquis- tada cidade de Damasco, na Síria. Porém, durante a guerra entre partidários de Ali e os Banu Ummaya, um grupo entre os aliados de Ali, se revolta contra sua decisão de renun- ciar e decide hostilizar ambas as partes envolvidas na disputa. Surge, assim, a primeira divisão sectária no Islã com os chamados kharijitas “aqueles que se separam”. Os kharijitas são derrotados por Ali, mas iniciam uma militância que pre- ga o retorno aos valores iniciais do Islã e a eliminação daqueles que, segundo eles, teria colaborado para esta corrupção de valores. Entre os principais alvos da ira kharijita na liderança islâmica, apenas Ali é assassinado (661) enquanto rezava em uma mesquita em Kufa, no atual Iraque. Como resultado, os kharijitas se tornam alvo de perseguição e se organizam, como uma seita minoritária, em algumas regiões na periferia do mundo islâmico. Ali deixa dois filhos de seu casamento com Fátima, Hassan e Hussein, netos de Muhammad. O primeiro, aparentemente, não alimenta ambições de se tornar califa, mais o mais novo, Hussein, decide enfrentar os omíadas, que na ocasião são liderados pelo califa Yazid, filho de Muawya. O desfecho da rivalida- de ocorre em Kerbela, no atual Iraque. Hussein e um grupo de familiares e com poucos guerreiros, enfrenta as tropas numerosas do califa Yazid e a batalha termi- na como massacre de Hussein e seus familiares. A tragédia de Kerbela reverbera enormemente no mundo islâmico, afinal a família do Profeta, liderada por seu neto, foi morta e os sobreviventes escravizados pela dinastia do omíadas. O martírio de Hussein e seus familiares, em Kerbela, no dia 10 do mês de Muharram de 680, que passa se chamar ashura (“o decimo dia”) se torna o símbolo máximo do sacrifício da família do Profeta. Os xiitas entendem que a tragédia, em Ker- bala, é resultado da opressão do poder corrompido, que vitimizou os descendentes de Muhammad e a comunidade islâmica. Vale lembrar, que a cristalização da tradição re- ligiosa xiita foi gradual e se manifesta séculos, após o martírio de Hussein em Kerbela. TÓPICO 3 — O ISLÃ 143 FIGURA 31 – PINTURA DE UM ARTISTA IRANIANO REPRODUZINDO OS MOMENTOS FINAIS DO MARTÍRIO DO IMAM HUSSEIN, EM KERBELA, 680 FONTE: <https://bit.ly/3iNBO25>. Acesso em: 8 dez. 2020. 3.2 KHARIJITAS OU IBADIS Os ibadis constituem uma corrente religiosa cuja origem remonta aos kha- rijitas. Os ibadis contemporâneos se opõem a denominação “kharijita”, embora re- conheçam que seu movimento se originou, no século VI, com a secessão kharijita. Apesar de terem precedido, por várias décadas, todas as escolas de jurisprudência sunitas e xiitas, as interpretações ibadis permanecem desconhecidas, tanto para não muçulmanos quanto para outros muçulmanos. Em razão da perseguição que so- freram, após os conflitos no século VI, os ibadis se refugiaram em regiões isoladas do mundo islâmico. De forma análoga, a outras seitas minoritárias, estas regiões se transformam em refúgios ideais para os ibadis sobreviverem como corrente hetero- doxa islâmica. Os ibadis, ao contrário dos kharijitas originais, desenvolveram uma tradição tolerante se abstendo, em princípio, da ideia de confronto. Os ibadis, se per- cebem como muçulmanos ortodoxos, em razão da sua tradição preceder o sunismo e o xiismo. Portanto, os ibadis se assemelham, em vários aspectos, aos sunitas, por exemplo, em relação à sucessão de Muhammad, na importância dos hadith (embora em um número de tradições bem mais reduzido), mas, por outro lado, acreditam que o Alcorão teria sido criado por Deus e não eterno ou não criado. Neste aspecto, em particular, os ibadis se anteciparam a uma corrente filosófica posterior chamada “mutazila” (al-muʿtazilah= “aqueles que se separam”). Esta foi uma escola racionalis- ta que floresceu, no mundo islâmico, entre os séculos VIII-X, até ser suprimida. Os ibadis atualmente vivem, em maior número, no Omã (onde são maioria), Zanzibar (na costa oriental da África), e em regiões da Líbia e da Argélia. 144 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 3.3 SUNITAS Os sunitas, também conhecidos como Ahl como-Sunnah wa'l-Jamā'h (povo ou grupo que segue a sunnah) ou simplesmente Ahl como-Sunnah, é a maior denomina- ção do Islã. O termo “sunita” vem da palavra sunnah (costumes e práticas) que signi- fica os ensinamentos, ações ou exemplos de Muhammad e dos Sahaba (companheiros de Muhammad) compiladas em seis coleções canônicas: Sahih al-Bukhari, Sahih Mus- lim, Sunan Abu Dawud, Sunan al-Tirmidhi, Sunan al-Nasa'I, Sunan Ibn Majah. Para os sunitas, Muhammad não teria escolhido seu sucessor, por isso apoiaram eleição pela shura (consulta) de Abu Bakr, como primeiro califa. Os muçulmanos sunitas consideram os quatro primeiros califas, como mencionado anteriormente, os al-Khulafā'ur-Rāshidūn ou "Os califas corretamente guiados". Os sunitas também acreditam que o califa deve ser eleito, mas admitem que a conti- nuidade deste sistema ficou comprometida pelos conflitos, entre Ali ibn Abi Taleb e os omíadas, que resultou na adoção de uma monarquia dinástica contrária a tradição anterior. Após o fim do Império Otomano, em 1923, não existe mais, a figura do califa, em nenhuma parte do mundo islâmico. A partir do século XIX e, principalmente, no século XX, o sunismo orto- doxo representado pelas quatro escolas de jurisprudência islâmica (madhab) tra- dicionais, Hanafi, Maliki, Shafi'i and Hanbali, são confrontadas pela influência de interpretações modernistas e puritanos (entre estes, os wahabitas, que governam a Arábia Saudita) que reclamam representar o Islã sunita tradicional ou ortodoxo. 3.4 XIITAS Os xiitas são a segunda maior denominação do Islã somando o equivalente a 10-20% da população muçulmana total. Embora seja uma minoria no mundo mu- çulmano, os muçulmanos xiitas constituem uma maioria, no Irã, no Iraque, no Líba- no, no Bahrein e no Azerbaijão, bem como minorias significativas, na Síria, Turquia, África Oriental, sul da Ásia, Iêmen, Arábia Saudita e outras partes do Golfo Pérsico. Além de acreditar na autoridade do Alcorão e possuir sua própria coleção de hadith (diferente das seis coleções canônicas dos sunitas) os xiitas acreditam que a família de Muhammad, o Ahl al-Bayt (o "Povo da Casa"), incluindo seus descendentes conhecidos como “imãs”, tem autoridade política e espiritual so- bre a comunidade islâmica. Sendo assim, Ali ibn Abi Talib, primo e genro de Muhammad, teria sido o primeiro desses imãs e o único legítimo sucessor de Muhammade, portanto, os xiitas rejeitam a legitimidade dos três primeiros cali- fas de Rashidun (bem-guiados). As seitas são diversas e se dividem em muitos grupos diferentes. São es- colas de jurisprudência, crenças filosóficas e movimentos espirituais. TÓPICO 3 — O ISLÃ 145 • Duodecimalistas: acreditam nos doze “imãs” e são a única escola a seguir os “Hadith dos Doze Sucessores”, em que Muhammad afirmou que teria doze sucessores. Constituem a maioria dos xiitas. É a vertente islâmica, oficialmen- te, adotada pela República Islâmica do Irã. • Ismaelismo: um ramo, do xiismo duodecimalista, com uma crença de cunho esoté- rico, que diverge dos duodecimalistas sobre a aceitação de um dos imãs. De forma análoga, os kharijitas abandonaram a postura militante do passado e se tornaram um grupo quietista e intelectualizado. Vivem, principalmente, na Índia e no Pa- quistão, mas imigraram, em grande número para a Europa e América do Norte. • Zaiditas (Zaidiyyah): seita xiita cuja crença se limita ao reconhecimento de cin- co imãs com destaque para Zayd ibn Ali, neto de Hussein. Entre as seitas xiitas é que mais se aproxima da ortodoxia sunita. É, particularmente, impor- tante no Iêmen onde são conhecidos como houthis. • Alauítas ou nusaíritas: são membros de uma subdivisão do xiismo que se formou nos séculos IX e X. Seguindo a estratégia de outras seitas minoritárias habitam regiões nas montanhas (na Síria) próximas as costas do Mar Medi- terrâneo. É uma seita bastante heterodoxa e misteriosa com destaque para crenças consideravelmente distintas da ortodoxia islâmica. Além do papel central atribuído a Ali ibn abi Taleb, comum a todas seitas xiitas, os alauítas acreditam na reencarnação, não frequentam mesquitas e não estão obrigados a realizar as preces prescritas a outros muçulmanos. Por essa razão, muitos muçulmanos os consideram heréticos. Porém, no século XX, algumas fatwas (opiniões legais de juristas) foram emitidas legitimando os alauítas como uma seita islâmica xiita. São mais numerosos, na Síria, Turquia, Líbano, nas Coli- nas de Golã ocupadas e imigraram em grande número, inclusive para o Brasil. • Drusos: como os alauítas, sua afiliação ao Islã é objeto de intenso debate entre os muçulmanos. É um ramo do xiismo ismaelita que se forma no século XI. Suas crenças têm também conteúdo esotérico, acreditam na reencarnação e, ra- ramente cumprem, como os alauítas, os “cinco pilares” do islamismo ortodoxo. No entanto, uma fatwa emitida, em 1959, por um jurista islâmico da tradicional Universidade de Al-Azhar, no Cairo, afirma que os drusos, os alauítas e ou- tros grupos xiitas, considerados “heréticos e idolatras” são muçulmanos “legí- timos”. Os drusos habitam, historicamente, as montanhas do Líbano, Síria, as Colinas de Golã ocupadas e certas regiões da Palestina histórica. Imame, imamo ou imã se traduz literalmente do árabe como “guia espiritual" ou "condutor". É um título muçulmano que designa o sacerdote encarregado de dirigir as preces na mesquita. Historicamente foi um título dado aos professores de direito e teologia islâmicas e aos califas, bem como é usado pelos soberanos em certas regiões do mundo islâmico sob a designação de “imamado” ou “imamato” ("liderança suprema"). FONTE: <http://bit.ly/361J2di>. Acesso em: 15 jan. 2021. NOTA 146 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS 3.5 O SUFISMO O termo “sufi” foi primariamente aplicado aos místicos muçulmanos que se vestiam com uma peça rústica de lã (suf). Esta é a origem do termo tasawwuf, que literalmente, significa “aqueles que se vestem com batas de lã”. No sentido amplo envolve renúncia para uma experiência pessoal e mais próxima de Deus. O sufismo é parte significativa e inalienável da história e práxis islâmica. Em que pese o deba- te entre a tradição sufi e os especialistas em história islâmica acerca da origem do sufismo, sua prática foi definitivamente incorporada à ortodoxia sunita, no século XI, pelo gênio do intelectual muçulmano Al-Ghazali. Consequentemente, a primei- ra irmandade ou confraria sufi (tariqa = caminho) foi estabelecida em Bagdá, no século XI, e serviu de modelo para outras confrarias que surgem por todo mundo islâmico. Os sufis, de forma quase absoluta, estão afiliados ao Islã sunita. FIGURA 32 – SUFI DERVIXES RODOPIANTES DA ORDEM (TARIQA) MEVLEVI, NA TURQUIA FONTE: <https://bit.ly/3c3CQVZ>. Acesso em: 24 jun. 2020. O QUE É SUFISMO? Eric Geoffroy Existem três dimensões na religião do Islã: a lei, a teologia e a espiritualidade. O sufismo é definido como o terceiro, a dimensão interior do Islã. Os sufis consideram essa dimensão um aspecto da sabedoria eterna e universal que existe desde Adão e foi encarnada no corpo da religião islâmica, nascida na Arábia no século VII. No Alcorão (57: 3), Deus é apresentado como sendo o Exterior e o Interno, o Visível e o Oculto; e para os sufis, a criação está à imagem de Deus. E assim, sob o mundo das apa- IMPORTANTE TÓPICO 3 — O ISLÃ 147 rências, formas, dogmas e leis, existe uma realidade interior (haqiqa), que é seu verdadeiro fundamento e lhe dá significado. Essa realidade é o que o sufi tende a perceber, partindo da norma externa e periférica, a sharia, para uma jornada pelo caminho da iniciação (tariqa) que liga a aparência à essência – concha ao núcleo. Esse processo introspectivo é descrito no Alcorão (51:20): “Na terra há sinais para aqueles cuja fé é certa. E também em vocês mesmos. Você não verá então? Os sufis deram vários objetivos à sua disciplina. Todos eles concordam com a necessidade de purificar a alma, a fim de se tor- nar transparente para Deus e adquirir as "nobres virtudes" do Profeta. Para a maioria dos sufis, a purificação é uma mera ferramenta: você deve conhecer Allah para adorá-lo mais. Mas isso é impossível de alcançar enquanto o ego estiver entre Ele e a consciência humana: ao "aniquilar em Allah" (al-fanā), o iniciado chega à conclusão de que somente Ele é. "Os se- res humanos não foram criados para você vê-los, mas para você ver o Senhor neles", dizem os sufis. De fato, a afirmação islâmica de fé não declara que "Deus não existe senão Alá"? Para os sufis, isso significa que "Somente Allah é", porque o que é criado, o que é efêmero deve desaparecer diante do que é Absoluto. FONTE: Traduzido e adaptado de <http://bit.ly/3bWTqqK>. Acesso em: 8 dez. 2020. 3.6.1 O Califado Abássida (750-1258) Os abássidas constroem Bagdá, que se tornaria capital do império, próxi- ma aos rios Tigre e Eufrates, entre a Ásia e a Europa, a cidade se tornaria um gi- gantesco centro comercial e cultural nos próximos séculos. Bagdá atraiu pessoas, incluindo estudiosos, a viver dentro de suas fronteiras. Os numerosos subúrbios, cobertos de parques, jardins, vilas e belos passeios, e abundantemente abasteci- dos de bazares ricos, mesquitas e banhos finamente construídos, estendiam-se por uma distância considerável em ambos os lados do rio. No auge de sua prospe- ridade, a população de Bagdá e seus subúrbios chegavam a mais de dois milhões. O palácio do califa ficava no meio de um vasto parque, ao lado de um zoológico, e o aviário compreendia um recinto para animais selvagens reservados para a caça. Os terrenos do palácio estavam dispostos com jardins e adornados com um gosto requintado de plantas, flores e árvores, reservatórios e fontes, cercados por 3.6 A ERA DE OURO DO ISLÃ (750-1258) Após a morte de Muhammad e um período relativamente breve de gover- no pelos califas Rashidun (os bem-guiados), a dinastia omíada assume o controle do califado. Sediado em Damasco, na Síria, o califado omíada enfrentou pres- sões e resistências internas, em parte porque demonstrava uma preferência ób- via pelos muçulmanos árabes, excluindo muçulmanos não árabes (mawali), como os persas. Aproveitando-se da fraqueza, um membro da família de Muhammad, Abu al-Abbas, inicia uma revolução, em 750, com o apoio de seus seguidores, inclusive os xiitas, derrota as forças omíadas,dando início à dinastia Abássida. 148 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS figuras esculpidas. Deste lado do rio ficavam os palácios dos grandes nobres. Ruas imensas, de largura não inferior a quarenta côvados, atravessavam a cidade de uma ponta a outra, dividindo-a em quarteirões, cada um sob o controle de um supervisor, que cuidava da limpeza, saneamento e conforto dos habitantes. Os califas abássidas, Harun al-Rashid e seu filho, al-Ma'mun, que o suce- deu, criaram a “Casa da Sabedoria” (Bayt al-Hikma), em Bagdá. Este verdadeiro centro de pesquisas recrutava sábios, muçulmanos, cristãos e judeus que traba- lham juntos na produção de conhecimento. Os governantes abássidas iniciaram uma “revolução cultural” resgatando, incialmente, o conhecimento clássico e posteriormente se tornando um centro irradiador de ciência sem paralelo. A produção de papel, originário da China, foi fundamental na produção e divulgação do saber. O papel, na China, cujo uso era reservado às elites, com os mu- çulmanos é produzido, em grande escala, o que tornava os livros mais acessíveis. Durante a Idade de Ouro do Islã, estudiosos árabes e persas, fizeram avanços consi- deráveis na ciência que transformaram o mundo islâmico e a língua árabe em van- guarda civilizatória por mais de meio milênio, do atlântico a fronteira com a China. FIGURA 33 – IBN SINA OU AVICENA, CONSIDERADO O MAIS INFLUENTE CIENTISTA E FILÓSOFO PRÉ-MODERNO. SÍMBOLO DA ERA DE OURO ISLÂMICA. IBN SINA E SEU “CÂNONE DA MEDICINA” FONTE: <https://bit.ly/2MfJeP4>. Acesso em: 8 dez. 2020. 3.7 ISLÃ E O OCIDENTE: UMA HISTÓRIA LITIGIOSA Não há duas civilizações cujas histórias tenham sido tão intimamente en- trelaçadas quanto o Islã e o Ocidente. Estes dois mundos, nos últimos quatorze séculos, construíram uma história de confrontos, competição, desafios, admira- ção, ódio, aceitação, rejeição e uma série de outros sentimentos, atitudes e ex- periências conflitantes. Começando com as primeiras polêmicas entre os sábios muçulmanos com Teodoro Abū Qurrah, Beda e São João de Damasco, passando pelos cruzados, a convivência andaluza ou o fascínio dos transcendentalistas nor- te-americanos por tópicos islâmicos à maneira de seu mestre, o filósofo Goethe. Não importa como alguém defina os termos, "Islã" e "Ocidente", ou se opte por eliminá-los completamente, as percepções, reivindicações identitárias daqueles TÓPICO 3 — O ISLÃ 149 que vivem nas sociedades muçulmanas e ocidentais foram moldadas por estas histórias. Esta é uma das razões, entre muitas, que as relações entre o Islã e o Oci- dente nunca parecem perder sua relevância. Como religião monoteísta, o islã se define como a última das três grandes tradições de fé abraâmica. O Alcorão e o ḥadīth (as duas fontes canônicas do Islã) e as tradições acadêmicas posteriores revelam uma consciência aguda do judaísmo e do cristianismo. As duas fontes canônicas contêm numerosas referên- cias a temas judaicos e cristãos, exortando judeus e cristãos, a se unirem em um monoteísmo absoluto contra o politeísmo de Meca e suas injustiças. Nascidos em um ambiente multirreligioso e multicultural, nos séculos VIII e IX, os primeiros muçulmanos estavam em contato com as várias comunidades judaicas e cristãs. As obras dos teólogos bizantinos eram de natureza, tanto teológica, quanto cul- tural e política. Como as terras outrora sob o domínio bizantino rapidamente se tornaram parte do dār al-Islām (a morada do Islã onde os muçulmanos viviam como maioria), a teologia islâmica se depara com um conjunto de desafios religiosos. Enquanto judeus e cristãos foram reconhecidos, pelos muçulmanos, como o “Povo do Livro" (ahl al-kitāb) e receberam alguma liberdade religiosa, uma prerrogativa que nenhuma outra religião jamais concedeu, eles foram convidados para um sério diálogo teológico, como diz no Alcorão: "Ó adeptos do Livro, vinde, para chegarmos a um termo comum, entre nós e vós" (ALCORÃO, 2020, Āl ʿImrān 3:64). Ademais, o fato de Jesus Cristo e a Virgem Ma- ria, entre outras figuras bíblicas, ocuparem um lugar de destaque no Alcorão e noʿadīth, tornou-se um incômodo, para muitos teólogos cristãos no Oriente e depois na Europa. A cultura é outra área contestada na história das relações entre o islã e o Ocidente. A influência da cultura e civilização islâmica na Europa medieval foi decisiva e inevitável. Os europeus medievais odiavam o islã, como religião, mas o admiravam como cultura e civilização. As obras de filósofos, teólogos, cientis- tas, poetas, contadores de histórias, artistas e místicos muçulmanos penetraram fundo, entre os séculos IX e XVI, na paisagem cultural europeia. Tomás de Aqui- no, talvez o maior pensador cristão da Idade Média, passou grande parte de sua carreira intelectual, refutando o que considerava as heresias do Averroísmo, uma escola de pensamento, fundada pelos seguidores europeus do muçulmano anda- luz: o filósofo Ibn Rushd, conhecido no Ocidente como Averroés (1126-1198). As ideias de Ibn Rushd foram oficialmente banidas, em 1277, em Paris, por ordem do bispo Tempier. No entanto, em outras áreas do mundo, incluindo as cida- des andaluzas de Córdoba, Granada, Toledo e Sevilha, judeus, cristãos e muçul- manos desfrutavam de uma cultura de tolerância e investigação crítica na qual buscavam conhecimento, estudavam nas mesmas escolas, realizavam pesquisas nas mesmas bibliotecas e estudavam os céus nos mesmos observatórios. Foi em Toledo que muitas obras em árabe, incluindo o Alcorão, foram traduzidas para o latim, levando eventualmente ao que Charles Haskins, (1870-1937), historiador norte-americano, chamou de "Renascimento do século XII". 150 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS As relações culturais entre o Islã e o Ocidente sofreram uma virada drásti- ca quando a Europa surgiu, na era contemporânea, como a força dominante e in- contestável. Combinando um passado judaico-cristão com um presente secular, a cultura ocidental criou uma cunha entre as elites ocidentalizadas e as comunida- des tradicionais no mundo muçulmano. No entanto, Seyyed Hossein Nasr (1933- ), filósofo iraniano contemporâneo, argumenta que, embora os mundos ocidental e muçulmano tenham experiências históricas e tradições culturais diferentes, eles podem traçar sua história religiosa a uma espiritualidade compartilhada. Porém, isto exige uma reformulação do pensamento islâmico contemporâneo, que foi moldado por seu encontro com o Ocidente moderno secular. O mundo muçulma- no é confrontado hoje com a constante invasão da cultura ocidental e compartilha com o resto do mundo um sentimento de perda e desempoderamento cultural. O legado do colonialismo continua a causar um profundo impacto nas rela- ções entre o Islã e o Ocidente. Vários países muçulmanos travaram guerras de liber- tação contra potências europeias, mas após a independência se viram dependentes de seus antigos colonizadores. A atual distribuição do poder global, outrora exercida pela Europa e agora pelos Estados Unidos, alimenta uma sensação de alienação, frus- tração e desconfiança no mundo muçulmano. Além disso, teses como a de Samuel Huntington (1996) em seu livro O choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial, tentam disseminar a ideia de uma colisão entre os valores fundamentais dos mundos islâmico e ocidental. Porém, para Hatem Bazian (1984-), especialista, em direito e teologia islâmicos, teses como a de Huntington (1996) servem como plata- forma para políticas, que enfatizam o racismo cultural e como como base para dis- criminação e xenofobia em detrimento de culturas e sociedades não ocidentais. Os eventos de 11 de setembro de 2001, as invasões do Afeganistão e Iraque aumentaram ainda mais as tensões entre muçulmanos e o Ocidente. Muitos, na Europa e nos EUA, veem grupos extremistas, no mundo muçulmano, como uma ameaça à existência de segurança internacional e ao futuro da civilizaçãoocidental. Muitos, no mundo mu- çulmano, veem a "guerra ao terror" como uma guerra contra o islã e os muçulmanos. Como os especialistas, Dalia Mogahed e John L. Esposito demonstraram no livro Who Speaks for Islam? (Quem fala pelo Islã?), publicado em 2008, a esmagadora maioria dos muçulmanos subscreve os princípios universais de direitos humanos, estado de direito e democracia, que são igualmente valores caros aos ocidentais. No entanto, também querem que o Ocidente respeite a cultura, religião e a tradição islâmica. Isto implica uma discussão mais fundamentada e equilibrada das relações entre o islã e o Ocidente do que simplesmente igualar os muçulmanos, a terrorismo, a violência, ao irracionalismo, a opressão ou ao atraso cultural. A este respeito, a islamofobia, que se define como medo infundado do islã e dos muçulmanos, e o ódio decorrente deste medo, são uma importante fonte de tensão. As relações entre o islã e o Ocidente estão mudando constantemente. Um novo elemento nesta longa e variada história é o surgimento de comunidades mu- çulmanas que vivem no Ocidente. Enquanto procuram ser participantes ativos de suas sociedades, as comunidades muçulmanas do Ocidente, também estão lutando com questões de integração, discriminação e direitos das minorias. Como a negocia- ção de um espaço nas sociedades ocidentais é um processo que diz respeito aos dois TÓPICO 3 — O ISLÃ 151 mundos, seu potencial para desempenhar o papel de construtores de pontes está aumentando. Por ser um muçulmano europeu, Tariq Ramadan (1962-), por exemplo, convida os muçulmanos, que vivem no Ocidente, a chamar a Europa e os EUA de seu "lar" cultural e político. Como muitos de seus colegas, o apelo de Ramadan é que os muçulmanos salvem o Islã de ser um fenômeno de imigração e que as comunida- des muçulmanas reivindiquem um lugar vital para si no mundo ocidental. As relações futuras entre as sociedades muçulmanas e ocidentais serão mol- dadas por três visões diferentes. A primeira é defendida por aqueles que veem o Islã e o Ocidente, inexoravelmente, em curso de colisão inevitável, com os dois mantendo visões de mundo irreconciliáveis e teologias políticas. Eles veem o confronto como o único caminho. Infelizmente, esta corrente é numerosa, tanto do lado ocidental, como do lado muçulmano. A segunda visão, defendida pelas elites e governos laicos, con- sidera as tensões atuais inúteis e baseadas em teologias antiquadas. Ele afirma que o remédio para o mundo muçulmano é mais modernização e mais secularização. Este seria o caminho para as sociedades muçulmanas serem admitidas na comunidade internacional de nações "civilizadas". A terceira visão, defendida por estudiosos, inte- lectuais e ativistas, tanto no mundo muçulmano quanto no ocidental, defende um en- volvimento crítico e uma eventual reconciliação entre os mundos islâmico e ocidental. Da política e religião internacionais à mídia e educação, há um processo vibrante em andamento para renegociar o legado da modernidade ocidental e traçar um novo caminho para as relações futuras. Tanto os movimentos de base quanto os compromissos de liderança de alto nível, como o “Diálogo de Civiliza- ções” e a Organização das Nações Unidas, buscam preencher a lacuna religiosa, cultural e política entre as comunidades muçulmanas e ocidentais. Este engaja- mento crítico, e um possível movimento em direção à reconciliação histórica, que envolverão rever as atuais percepções mútuas dos mundos islâmico e ocidental. É uma tarefa desafiadora, mas essencial para a paz global. FIGURA 34 – “CASA DA FAMÍLIA ABRAÂMICA” COM UMA IGREJA, UMA SINAGOGA E UMA MES- QUITA PROJETADA PARA SER CONSTRUÍDA NA ILHA SAADIYAT, EM ABU DHABI FONTE: <https://bit.ly/3iAeRiu>. Acesso em: 8 dez. 2020. 152 UNIDADE 2 — O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS E SEUS FUNDAMENTOS LEITURA COMPLEMENTAR NOVO ESTUDO LANÇA LUZ SOBRE A ORIGEM DA POPULAÇÃO JU- DAICA EUROPEIA Eran Elhaik Apesar de ser um dos grupos mais geneticamente analisados, a origem dos judeus europeus permaneceu obscura. No entanto, um novo estudo publica- do on-line na revista Genome Biology and Evolution pelo Dr. Eran Elhaik, geneticis- ta da Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins, argumenta que o genoma judeu europeu é um mosaico de ancestrais, do Cáucaso, da Europa e semitas. Esta hipótese rebate as narrativas anteriores sobre a ascendência dos ju- deus europeus. As descobertas de Elhaik corroboram a “Hipótese Khazarian”, em oposição à “Hipótese da Renânia”, sobre origem dos judeus europeus. Isto pode ter um grande impacto nas maneiras pelas quais os cientistas estudam distúrbios genéticos na população. A “Hipótese da Renânia” era a preferida, até agora, para explicar as origens dos judeus europeus. Neste cenário, judeus descendentes de tribos israelitas-cananeus teriam deixado a Palestina e se instalado, no século VII, na Europa, após a conquista muçulmana. No início do século XV, entretanto, um grupo de, aproximadamente 50.000 judeus, deixa a Alemanha (Renânia) rumo ao o leste europeu. Lá eles mantiveram relações endogâmicas e, apesar das guerras, perseguições, doenças, pragas e dificuldades econômicas, sua população teria se expandido, rapidamente, no século XX, para cerca de 8 milhões. Devido à im- plausibilidade de tal expansão demográfica, esta rápida expansão foi explicada pelo professor Harry Ostrer, Dr. Gil Atzmon e outras colegas, como um “mila- gre”. Pela “Hipótese da Renânia”, os judeus europeus seriam muito parecidos, entre si, e teriam uma ascendência predominante com origem no Oriente Médio. A explicação rival, a “Hipótese Khazarian”, afirma que os khazars, con- vertidos ao judaísmo, eram membros de uma confederação formada por tribos turcas, iranianas e mongóis, que viviam, no sul da Rússia, norte da Geórgia e leste da Ucrânia. Estas tribos teriam se convertido, entre os séculos, VII e IX, juntamen- te com grupos de judeus mesopotâmicos e greco-romanos e formado, assim, a base da população judaica no leste europeu, que por sua vez, teriam migrado das suas regiões de origem, após o colapso, no século XIII, do império khazar. Embo- ra não haja dúvida de que os judeus-khazares migraram para a Europa Oriental e contribuíram para a formação de uma população judaica na Europa, o argumento girava em torno da magnitude dessa contribuição. O artigo de Elhaik, o elo que faltava entre as “Hipóteses da Renânia” e da “Khazarian'', examinou um conjunto abrangente de dados de 1.287 indivíduos, sem vínculos de parentesco, de 8 populações judias e 74 não judias genotípicas em 531.315 polimorfismos autossômicos de nucleotídeo único (SNPs). Foram dados publicados por Doron Behar e colegas, em 2010, que Elhaik usou para calcular sete medidas TÓPICO 3 — O ISLÃ 153 de ancestralidade, parentesco, mistura, distâncias de compartilhamento de alelos, origens geográficas e padrões de migração. Eles identificaram assinaturas ancestrais do Cáucaso, da Europa no genoma dos judeus europeus, juntamente, com um ge- noma menor do Oriente Médio. Os resultados foram consistentes na representação da ascendência do Cáucaso para todos os judeus europeus. A análise mostrou uma estreita relação genética entre os judeus europeus e as populações do Cáucaso e iden- tificou a origem biogeográfica dos judeus europeus no sul da Khazaria (regiões nas proximidades do Mar Negro e do Mar Cáspio) distante 560 quilômetros da capital de Samandar-Khazaria. Análises posteriores produziram uma ancestralidade multiétni- ca complexa, com um Cáucaso levemente dominante, ancestrais do sul da Europa e do Oriente Médio e uma pequena contribuição do leste da Europa. O Dr. Elhaik escreve: "A explicação mais razoável para nossas descobertas é que os judeus do Leste Europeu, tem sua ascendência judaico-kazharianos forja- das ao longo de muitos séculos no Cáucaso. A presença judaica no Cáucaso e mais tarde na Khazaria foi registrada antes da Era Cristã e reforçada devido ao aumento do comércioao longo da Rota da Seda, ao declínio de Judá (séculos I-VII) e o surgi- mento do cristianismo e do islã. Judeus greco-romanos e mesopotâmicos frequen- tavam a região da Khazaria nos primeiros séculos da Era Cristã e suas migrações se intensificaram, após a conversão dos khazares ao judaísmo. A conversão abrange a maioria das tribos subordinadas ao Império Khazar, cuja existência dura, aproxi- madamente 400 anos, até a invasão dos mongóis. No colapso final de seu império, no século XIII, muitos dos judeus-khazares fogem para a Europa Oriental e depois migram para a Europa Central misturando-se com as populações locais”. As descobertas do Dr. Elhaik consolidam resultados conflitantes que des- crevem a alta heterogeneidade entre comunidades judaicas e a relação com popu- lações do Oriente Médio, sul da Europa e Cáucaso, que não podem ser explicadas pela “Hipótese da Renânia”. Embora o estudo do Dr. Elhaik tenha ligado os judeus europeus aos khazares, ainda há perguntas a serem respondidas. Quão substancial é a ascendência iraniana nos judeus modernos? Considerando-se que os judeus da Europa Oriental chegaram do Cáucaso, de onde vieram os judeus da Europa Central e Ocidental? Se não houve migração em massa da Palestina no século VII, o que acon- teceu com os antigos judeus? E como essas novas descobertas afetariam os estudos de doenças genéticas?" Os epidemiologistas que estudam distúrbios genéticos estão constantemente lutando com questões sobre ancestralidade, heterogeneidade e como explicá-las", diz ele. "Espero que este trabalho abra uma nova era nos estudos genéti- cos em que a estratificação populacional seja usada mais corretamente". FONTE: Traduzido e adaptado de ELHAIK, E. The missing link of jewish european ancestry: con- trasting the rhineland and the khazarian hypotheses. Genome Biology and Evolution, Oxford, v. 5, n. 1, p. 61-74, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3qNRvJj. Acesso em: 8 dez. 2020. 154 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA • O islã é uma religião que continua à fé abraâmica iniciada com o judaísmo e o cristianismo. • O islã surgiu em Meca, de acordo com a tradição islâmica, com a revelação corânica a Muhammad. • Muhammad e seus seguidores, perseguidos pelos coraixitas em Meca, bus- cam refúgio em Medina, onde estabelecem a primeira comunidade islâmica. • Muhammad morreu em Medina, deixando mensagem corânica e os árabes unidos sob a bandeira do islã. • O islã se resume em cinco pilares da fé. • O Alcorão e o hadith são os dois textos canônicos do islã. • Os árabes islamizados sob a liderança dos califas iniciaram uma expansão político-militar. • Os árabes, em poucas décadas, construíram um império, da península ibérica à fronteira com a China. • Após o quarto califa, os muçulmanos se enfrentaram na primeira guerra civil. • Durante o califado Omíada, aconteceu a segunda guerra civil, que deu início à formação do islã xiita. • O califado abássida se transformou, por mais de meio milênio, em um grande centro de produção de conhecimento. 155 1 A revelação corânica, segundo a tradição islâmica, se desdobrou, de forma contínua, por mais de uma década. De acordo, com esta tradição, um anjo (malak), em particular, intermediou a revelação entre Deus e Muhammad. Quem era o anjo também presente nas tradições cristã e judaica? a) ( ) Miguel. b) ( ) Rafael. c) ( ) Gabriel. d) ( ) Uriel. 2 A língua árabe era, quase exclusivamente, uma língua oral com a forma es- crita em formação na época da revelação corânica. O Alcorão (al-Qur’an) foi revelado em árabe, em uma linguagem poética, particularmente, apreciada entra os povos árabes. O que significa “Alcorão” em árabe? a) ( ) A leitura. b) ( ) A memorização. c) ( ) A lei. d) ( ) A recitação. 3 A comunidade islâmica, no seu início, é perseguida pelos coraixitas e, em um determinado momento, migra de Meca para Medina, na região do He- jaz, para praticar sua fé em liberdade. Assinale a alternativa que relaciona corretamente o nome da migração da comunidade islâmica para Medina. a) ( ) Hégira. b) ( ) Lailat al-Qadr. c) ( ) Fitna. d) ( ) Sirat. AUTOATIVIDADE 156 REFERÊNCIAS ADERNY, W. F. 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Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – HINDUÍSMO E BUDISMO TÓPICO 2 – CONFUCIONISMO E TAOÍSMO TÓPICO 3 – XINTOÍSMO Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 162 163 UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO Na última unidade do nosso livro, Povo, Cultura e Religião, estudaremos as chamadas “religiões orientais”. Na Unidade 1, já estudamos alguns problemas con- ceituais inerentes ao uso indiscriminado do termo “religião”, principalmente, no que refere à espiritualidade das populações que habitam em vastas regiões da Ásia meridional e oriental. Portanto, usaremos o termo “religião” com intuito de manter certa coerência semântica e conceitual, sem, contudo, nos deixar levar pela tentação da generalização, do preconceito e da imposição de visões de mundo hegemônicas. As religiões orientais, na atualidade, são praticadas por bilhões de seres humanos, não apenas em suas regiões de origem, na Ásia, mas em todos os cantos do planeta. Nos dois países mais populosos do planeta, Índia e China, algumas dessas religiões, são amplamente majoritárias. Por fim, se levarmos em conta as mudanças nas últimas décadas, alavancadas pela ascensão geopolítica da Ásia, o estudo das religiões orientais, como componente fundamental daquelas culturas, não é somente academicamente desejável, mas se torna essencial para a formação intelectual de nosso acadêmico pari passu com o mundo no século XXI. Entre os séculos XVIII e XIX, os ocidentais descobriram a filosofia oriental e resolvem estabelecer uma divisão arbitrária entre “filosofia ocidental” e “filo- sofia oriental”, como se estes dois sistemas de pensamento fossem antagônicos. No entanto, não há divisão entre filosofia oriental e ocidental quando se trata das questões básicas do significado de ser humano, pois, fundamentalmente, a Filosofia busca encontrar sentido e propósito na vida, e neste particular, não há grande diferença entre os dois sistemas filosóficos. TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO 2 O PROPÓSITO DA EXISTÊNCIA HUMANA Para Sankara Saranam (2016), autor do livro Deus sem religião, a diferença mais significativa entre os dois sistemas filosóficos seria que a filosofia oriental está preocupada com o conhecimento, em geral, enquanto a filosofia ocidental visa a um conhecimento específico. Esta visão remete ao entendimento que a filo- sofia oriental, especificamente a filosofia chinesa, trata de toda a existência huma- na, enquanto a filosofia ocidental, começando com os gregos, se concentra apenas em certos aspectos da condição humana. UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS 164 Um exemplo sugere que Os Analectos, de Confúcio, lidam com a vida, interna e externa, enquanto as obras de Aristóteles enfatizam como se conduzir para viver bem em sociedade. Outro exemplo é o filósofo chinês Mozi (V - IV a.C.), que buscava uma compreensão holística de si mesmo e do seu entorno, en- quanto Platão (V - IV a.C.), um filósofo ocidental, enfatizava objetivos específicos pelos quais devemos nos esforçar para descobrir o que é real. No entanto, essas são distinções que distorcem, pois passam a ver a histó- ria destas culturas como diametralmente opostas quando, na realidade, os seres humanos são essencialmente os mesmos em todo o mundo. Pode-se, por exem- plo, comparar as ideias fundamentais do filósofo chinês Confúcio (551-479 a.C.) com as do filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) e descobrirque apresentam os mesmos conceitos básicos. Os dois acreditavam que a virtude era o objetivo mais elevado a se alcançar e que, recompensas duradouras, seriam agraciadas aos que colocavam a virtude acima das posses mundanas. Ainda nesta linha de pensamento, o filósofo coreano Won-hyo (617-686) afir- mava que o bem e o mal estão juntos no pensamento, o que significa: se alguém pensa de forma negativa de algo, isto se torna algo negativo para quem pensou. O filósofo grego, Epicteto (50-130), afirmava algo semelhante quando escreveu: "Não são as cir- cunstâncias que perturbam as pessoas, mas seus julgamentos sobre estas circunstân- cias" (EPICTETO, 2013, p. 9). Epiteto também dizia que não se deve nem mesmo temer a morte, pois não se sabe se a morte é uma coisa boa ou má. Won-hyo concordaria com ele, porque acreditava que para o ser humano tudo era “um” e que todas as experiên- cias são apenas parte de uma “experiência única” (EPICTETO, 2004). As filosofias relativistas do sofista chinês Teng Shih (VI a.C.) e do sofista grego Protágoras (V a.C.) são quase idênticas, pois ambos deixam claro que é pre- ciso se concentrar no aprimoramento de si mesmo antes de tentar aprimorar os ou- tros. O melhor exemplo, no entanto, da semelhança fundamental do pensamento oriental e ocidental é resumido nas obras de dois dos filósofos mais conhecidos de seus respectivos hemisférios: Platão (428-348 a.C.) e Wang Yangming (1472-1529). Platão é bastante conhecido no Ocidente, em contraste com Yangming, embora o último seja tão famoso quanto Platão na China, Coreia e Japão. Ambos exerceram enorme influência por meio de suas obras, nas quais defendiam a exis- tência de um conhecimento inato do ser humano capaz de discernir entre o certo e o errado e entre o bem e o mal. Para que isso ocorresse, seria preciso apenas que as pessoas fossem encorajadas a buscar o “bem” para viver uma vida plena. Em seu diálogo Fedro, Platão (2016) levanta a questão do que é bom e o que não é bom? Seu mentor, Sócrates, (o personagem principal de Fedro, como na maioria das obras de Platão) faz esta pergunta a seu camarada Fedro a respeito da qualidade da escrita. Na visão de Platão, alguém já sabe o que é bem escrito, porque inatamente conhece o conceito de bom na escrita e na vida (PLATÃO, 2016). De forma análoga, Wang Yangming defende a superioridade da intuição TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO 165 em questões morais. Wang concordaria com Platão que qualquer um pode reco- nhecer o que é bom e o que não é bom em relação à moralidade. A Filosofia de Wang e Platão foram criticadas por empiristas pela falta de evidências, mas o que esses dois filósofos afirmavam faz sentido em um nível muito básico: é preciso saber o que é bom para buscar o que é bom e esse conhecimento tem que ser inato para que alguém tenha o desejo de alcançá-lo. Além disso, eles argu- mentam, os humanos devem reconhecer o que não é bom para rejeitá-lo e, portanto, não precisam ser ensinados sobre o bem, mas apenas orientados ou educados para agir com base em seu conhecimento inato do bem. O argumento empirista de que há uma falta de evidência para o conhecimento inato não pode ser sustentado por fatos; pois a pessoa deve estar ciente da necessidade de buscar algo antes de buscá-lo. A teoria da intuição de Wang pode ser comparada a uma das necessida- des humanas mais básicas: comer. Nenhuma criança é ensinada que "deveria" sentir fome e nenhuma criança aprende a pedir comida para os adultos. O bebê chora para avisar que precisa ser alimentado e a criança verbaliza, em palavras ou atos: "estou com fome" ou simplesmente buscando algo para comer. Sentir fome é uma característica humana inata que não precisa ser ensinada e Wang diz que isto pode ser aplicado, por analogia, à moralidade. Portanto, o que deve ser ensinado é como aplicar o conhecimento inato, de maneira apropriada, da mesma forma que uma criança aprende a maneira adequada de pedir comida (BISHOP, 2001). No “Mênon”, um dos diálogos de Platão, Sócrates elogia um escravo que demonstra conhecer Geometria sem nunca ter aprendido. Platão usa este exem- plo de conhecimento inato para demonstrar que, de forma análoga ao “bem”, o ser humano possui outros tipos de conhecimento inato. Assim como uma criança sabe quando está com fome, sabemos discernir o bem do mal. Wang e Platão con- cordam que o que nos impede de agir “bem” são nossos desejos egoístas que nos confundem e nos levam a agir “mal”. Portanto, as diferenças entre os conceitos de Wang e Platão são cosméticas e linguísticas não havendo diferença significativa em suas ideias fundamentais. Os filósofos do Oriente sempre buscaram o mesmo que os filósofos no Ocidente. Portanto, não há Filosofia “oriental” ou “ocidental”; existe apenas Filosofia. O amor pela sabedoria não conhece região; a Filosofia desafia todas as fronteiras e todo tipo de definição mesquinha (KOLLER, 2011). 3 RELIGIOSIDADE NO OCIDENTE E NO ORIENTE A maioria das tradições ocidentais, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, pelo menos, em suas interpretações ortodoxas ou majoritárias, per- cebem o “Absoluto” como transcendente. Por outro lado, a maioria das tradi- ções orientais percebe o “Absoluto” como imanente e interior. A religiosidade ocidental concebe Deus, como o “Último”, e o objetivo da maioria dos devotos é conhecer a Deus, obedecê-lo e construir, com “Ele” um relacionamento amoroso e essencial. O pensamento oriental, porém, não é teísta, concebe o “Último” como algo transpessoal e os objetivos de seus praticantes são alcançar a consciência e a unidade. Embora muitas religiões orientais tenham um lugar para os deuses UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS 166 em seus sistemas de crenças, a “realidade” é percebida como algo que está além dos deuses e guardado no coração de cada um. Portanto, seria correto dizer, pelo menos em relação ao cristianismo, que o divino é uma pessoa e no pensamento oriental cada pessoa é, em última análise, divina. Toda religião, seja ocidental ou oriental, é um nexo formando uma ponte entre o “absoluto” e o “relativo”, entre o “aparentemente real” e o “verdadeiramente real” e entre o que percebemos como secular e o que conhecemos como sagrado. 3.1 O CONCEITO DE TEMPO O conceito de tempo é outra diferença significativa entre o pensamento oriental e ocidental. No Ocidente, o tempo costuma ser comparado a um rio que corre veloz fluindo em uma direção à “Eternidade”. Tal ponto de vista os faz olhar para a “Eternidade” de forma unilateral. A “Eternidade” está no futuro; pois é algo que se espera. Não se importam onde o rio nasce; não se interessam pelo passado antes do nascimento. Embora muitos ocidentais passem um tempo considerável contemplando uma vida após a morte, a vida antes do nascimento não é contemplada. Não sabem e não sem importam. Assim, o clássico Rinzai Zen koan (narrativa do zen-budismo) – "como era seu rosto antes de você nascer?" – não teria muito significado para os ocidentais. No Oriente, porém, o tempo é comparado a um grande oceano primitivo, sempre existindo, ao nosso redor. É a nossa origem e nosso destino. A eternidade não nos espera, pois estamos nela agora. No Ocidente, o tempo significa história e esta tem significado. As religiões ocidentais dependem de eventos históricos para dar significado às suas crenças mais significativas. Deus agiria no tempo histórico para ensinar lições, redimir ou punir. Assim, o “Êxodo”, a “Crucificação” e a “Noite do Poder” (Lailat al-Qa- dr) são, respectivamente, eventos fundamentais no judaísmo, cristianismo e no islamismo. Esse conceito é totalmente ausente na filosofia oriental. Embora seja incorreto dizer que a História não tem sentido para budistas, hindus ou taoístas, seria melhor dizer que a História é um reflexo da ação humana e não divina. Re- sulta de nossos atos, não dos planos divinos. Por causa de sua perspectiva diferente, o pensamento religioso oriental sempre fascinou, e, muitas vezes, confundiu a menteocidental, pois enfatiza va- lores que o Ocidente esqueceu. A religiosidade oriental celebra a si mesma, mas é o oposto do egoísmo. Ao contrário, nos mostra uma realidade que vai além do nosso mundo, mas não é de outro mundo. Longe de serem impraticáveis, desinteressados e indiferentes (acusações comumente feitas contra eles), as religi- ões orientais oferecem as ferramentas físicas, mentais e espirituais para capacitar uma pessoa a viver de forma plena e profunda. As religiões orientais conduzem não para um caminho de um éter estranho e indefinível, mas em um caminho in- terior em direção a um “eu” profundo. Chame-se de “Absoluto”, de “Brahman”, de “Tao” ou fale-se disso em silêncio (MORGAN, 2001). TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO 167 4 O HINDUÍSMO O hinduísmo é considerado a religião mais antiga da humanidade. Originário da Ásia Central e do Vale do Indo o hinduísmo está entre as religiões com mais de- votos no mundo. O termo “hinduísmo” é conhecido como exônimo (nome dado por outras pessoas a um povo, lugar ou conceito), pois deriva do termo persa “Sindus”, que designava, para os persas, “aqueles que viviam além do rio Indo”. Os adeptos do hinduísmo o chamam de “Sanatana Dharma” ("ordem eterna" ou "caminho eterno") e entendem seus preceitos, conforme estabelecidos nas escrituras chamadas “Vedas”. Este, assim como Brahma, a “Alma Suprema”, de quem toda a criação emerge. Am- bos, o “Vedas” e “Brahma”, são eternos, sempre existiram e, portanto, não foram criados. Brahma é a “Causa Primeira” que coloca tudo em movimento, mas também é o que está em movimento, que guia o curso da criação e a própria criação. Pode-se interpretar o hinduísmo como monoteísta (já que existe um deus), como politeísta (já que existem muitos avatares de um único deus), como henote- ísta (já que se pode escolher elevar qualquer um dos seus avatares), como pante- ísta (com avatares que podem ser interpretados como representantes de aspectos do mundo natural), ou mesmo como ateu, já que alguém pode escolher substituir o conceito de “Brahman” (conceito do hinduísmo, semelhante ao conceito de ab- soluto presente em outras religiões) por si mesmo ao se esforçar para ser a melhor versão de si mesmo (SARANAM, 2016). Esse sistema de crenças foi inicialmente estabelecido nos “Vedas”, du- rante o chamado Período Védico (1500-500 a.C.), mas os preceitos teriam sido transmitidos oralmente em períodos anteriores. Não existe um fundador do hin- duísmo, nenhuma data de origem, nem mesmo informações do desenvolvimento de um sistema de crenças; assim, os escribas apenas teriam registrado os Vedas reproduzindo o que sempre existiu. Este conhecimento eterno é conhecido como shruti ("o que é ouvido") e está estabelecido nos Vedas e em suas várias seções conhecidas como, Samhitas, Aranyakas, Brahmanas e, o mais famoso, os Upanishads, cada um dos quais aborda um aspecto diferente do hinduísmo. Essas obras são complementadas por outro tipo conhecido como smritis (“o que é lembrado”), que relata histórias de como se deve praticar o hinduísmo e inclui os Puranas, os épicos Mahabharata e Ramayana, os Yoga Sutras e o Bha- gavad Gita. Nenhuma delas, entretanto, deve ser considerada a “Bíblia Hindu”, pois não existe a pretensão de ser a “palavra de Deus”; antes, essas obras, seriam uma revelação afirmando que o universo é racional, estruturado e controlado por Brahman em cuja essência todos os seres humanos participam (SWAMI, 2020). O propósito da vida seria reconhecer a unidade essencial da existência e o aspecto superior do “eu” individual (conhecido como o Atman) que é uma parte do “eu” de todos os outros. Assim como a Sobre-Alma/Mente e, através da adesão ao dever de vida (dharma) realizada com a ação apropriada (karma), desatar os laços da existência física e escapar do ciclo de renascimento e morte (samsara). Uma vez que este ciclo se complete, o Atman se une a Brahman e o indivíduo retornaria para a uni- UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS 168 dade primordial. O que impediria alguém de alcançar essa unidade seria a ilusão da dualidade ou a crença de que o indivíduo está separado do Criador. Porém, este equívoco (conhecido como maya), estaria relacionado no apego ao mundo físico, que, por sua vez, seria superado pela experiência mística com a unidade essencial de toda a existência e pela realização de que tudo se assemelha e projeta o divino. Alguma forma sistêmica de crenças, que mais tarde se tornaria o hinduís- mo, provavelmente já existia antes do terceiro milênio a.C., quando uma coalizão nômade de tribos, que se autodenominavam arianas, se instalou no Vale do rio Indo oriundas da Ásia Central. Alguns desses povos arianos se estabeleceram na região do atual Irã (alguns dos quais passaram a ser conhecidos no Ocidente como “persas”), enquanto outros, agora conhecidos como indo-arianos, se assen- taram no Vale do rio Indo. À guisa de explicação, o termo “ariano” se referia a um grupo ou classe de pessoas, não a uma raça, e seu significado era “homem livre” ou “nobre”. O mito de uma “invasão ariana” pela qual povos caucasianos “trou- xeram a civilização” para a região é produto de estudos racistas, há muito desa- creditados, em voga, nos séculos XVIII e XIX (KULKE; ROTHERMUND, 2006). FIGURA 1 – MAPA DA CIVILIZAÇÃO DO VALE DO INDO FONTE: <https://bit.ly/3czCsPy>. Acesso em: 9 dez. 2020. TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO 169 A partir das escavações arqueológicas das ruínas de cidades como Mohen- jo-daro e Harappa (para citar apenas as duas mais famosas), fica claro que uma civilização avançada já existia no Vale do rio Indo, por volta de 3000 a.C., com origem nos assentamentos do período Neolítico, que datam de período anterior a 7000 a.C. Este período é agora referido como a “Era da Civilização do Vale do Indo” ou “Civilização Harappan” (7000 a.C. – 600 a.C.), que seria influenciada e se fundiria com a cultura dos indo-arianos. Por volta de 2000 a.C., a grande cidade de Mohenjo-daro tinha ruas de ti- jolos, água corrente e um sistema comercial e político sofisticado. É bem provável que também tenha desenvolvido algum tipo de crença, que incluía banhos rituais e outras práticas religiosas, mas não existem registros escritos que os compro- vem. É mais certo, qualquer que seja a forma que essa religião tenha assumido, que os elementos fundamentais destas práticas religiosas tenham origem na reli- gião iraniana primitiva da Pérsia. A religião primitiva do vale do Indo desenvolveu-se por meio da influên- cia dos recém-chegados durante o período védico. Durante esse tempo, o sistema de crenças conhecido como Vedismo foi desenvolvido pelos chamados povos Vé- dicos que escreveram em sânscrito, a língua em que os Vedas são compostos. Para o especialista John M. Koller (2011, p. 50): A língua sânscrita, da qual os Vedas são a expressão mais antiga so- brevivente, tornou-se dominante. Embora a tradição sânscrita reflita empréstimos e acomodações de fontes não védicas, ela esconde mais dessas contribuições do que revela. Assim, apesar da grandeza da an- tiga civilização do Indo, é aos Vedas que devemos nos voltar para uma compreensão do pensamento indiano primitivo. Os Vedas buscaram compreender a natureza da existência e o lugar do indi- víduo na ordem cósmica. Ao buscar essas questões, os sábios criaram o sistema teoló- gico altamente desenvolvido que se tornaria o hinduísmo. Os Veda foram pensados para reproduzir os sons exatos do próprio universo no momento da criação e em diante, e assim assumem a forma, em grande parte, de hinos e cânticos. Ao recitar os Vedas, acredita-se que a pessoa está literalmente participando da canção criativa do universo que deu origem a todas as coisas observáveis e inobserváveis desde o início dos tempos. Os pensadores védicos fizeram perguntas sobre si mesmos, o mundo ao seu redor e seu lugar nele. O que é pensamento? Qual é a sua fonte? Por que o vento sopra? Quem colocou o sol, gerador de calor e luz, no céu? Como a Terra produz tantasformas de vida? Como renovamos nossa existência e nos tornamos completos? Questões de “como”, “o quê” e “por que” são o início da reflexão filosófica. UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS 170 4.1 BRAMANISMO O Vedismo tornou-se Bramanismo, uma crença religiosa baseada na Ver- dade “Causa Primeira”, de todos os fenômenos observáveis, bem como dos as- pectos invisíveis da existência. Os sábios que desenvolveram o bramanismo co- meçaram com o mundo observável que operava de acordo com certas regras. Eles chamaram essas regras de rita (“ordem”) e reconheceram que, para que rita existisse, algo deveria ter existido anteriormente para criá-la; ninguém poderia ter regras sem um criador de regras. Nessa época, havia muitos deuses no panteão do Vedismo que poderiam ser considerados a Causa Primeira, mas os sábios foram além das divindades an- tropomórficas e reconheceram, segundo Koller, que há uma totalidade, uma rea- lidade indivisa, isso é mais fundamental do que ser ou não ser (KOLLER, 2011). Essa entidade foi concebida como um indivíduo tão grande e poderoso que está além de toda a compreensão humana. O ser que eles passaram a se referir como Brahman não existia apenas na realidade (outro ser como qualquer outro) nem fora da realidade (no reino do não ser ou pré-existência), mas era a própria rea- lidade. Brahman não apenas fez com que as coisas fossem como eram; eram as coisas como sempre foram e sempre seriam. Daí a designação de Sanatana Dhar- ma – Ordem Eterna – como o nome do sistema de crenças. Um indivíduo comum, que viveu brevemente na Terra, não teria esperan- ça de se conectar com a “fonte final de vida” tendo em vista que Brahman não pode ser compreendido e nenhum relacionamento poderia ser possível. Segundo Koller (2011), este “Ser” é considerado diferente do conhecido e diferente do desconhecido. A pergunta que se está fazendo é: o que torna possível ver, ouvir e pensar? Mas a questão não é sobre processos fisiológicos ou mentais. Quem dirige nossos olhos para ver as cores e a mente para ter pensamentos? O sábio presume que deve haver um diretor interno, um agente interno, dirigindo as várias funções do conhecimento (KOLLER, 2011.) Este "diretor interno" foi determinado para ser o “Atman”, o eu superior que está conectado a Brahman. Cada indivíduo carrega a “Verdade Suprema” e a “Causa Primeira”. Não há razão para buscar esta entidade externamente porque se carrega essa entidade dentro de si; basta compreender essa “verdade” para vivê-la conforme expresso no “Chandogya Upanishad” na frase Tat Tvam Asi, “Tu és Aquilo”, a pessoa já é o que procura se tornar; só precisamos perceber isto. Esse princípio foi promovido, por meio de rituais, que não apenas cele- bravam Brahman, mas também representavam a criação de todas as coisas. A classe sacerdotal, os brâmanes, ao elevar o “Divino Supremo” por meio dos can- tos, hinos e canções dos Vedas, não apenas estavam na presença do Divino, mas eram parte integrante dele, portanto, tudo o que precisavam fazer era estar cien- tes, desta “realidade”, e celebrá-lo através do cumprimento de rituais. TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO 171 4.2 HINDUÍSMO CLÁSSICO O bramanismo se transformou no sistema hoje conhecido como hinduís- mo que, embora seja considerado uma religião, é também considerado um modo de vida e uma filosofia. Central para o hinduísmo, seja qual for a forma que al- guém acredite que ele assuma, é o autoconhecimento, pois ao conhecer a si mes- mo a pessoa passaria a conhecer Deus. O mal, portanto, viria da ignorância e o conhecimento seria uma forma de combater o mal. O propósito de vida de cada um, o karma, é conhecer o que é bom e se esforçar para alcançá-lo de acordo com seu dharma (dever, missão, propósito). Consequentemente, quanto mais perto da autorrealização alguém se encontra mais perto está de perceber o Divino em si mesmo. O mundo físico é uma ilusão apenas na medida em que convence alguém da dualidade e da separação. Pode-se virar as costas ao mundo e seguir a vida de um asceta religioso, mas o hinduísmo incentiva a plena participação na vida por meio dos purusharthas, objetivos de vida: • Artha: a carreira, a vida doméstica, a riqueza material. • Kama: amor, sexualidade, sensualidade, prazer. • Moksha: liberação, liberdade, iluminação, autoconhecimento. A alma se entretém com estas atividades, embora compreenda que todas são prazeres temporais. A alma é imortal, ela sempre existiu como parte de Brahman e sempre existirá, portanto, a morte é uma ilusão. Na morte, a alma apenas descarta o corpo e reencarna, caso não tenha atingido moksha. Caso o tenha atingido, o atman se torna um com Brahman e retorna ao seu lar eterno. O ciclo de renascimento e morte, conhecido como samsara, continua até que a alma se farte de experiências e prazeres terrestres e concentre a vida no desapego e na busca de bens eternos. Nesse processo, os “gunas” podem ser obstáculos ou facilitadores para alcançar o samsara. Os gunas, descritos como “energias” representam um tri- ângulo de forças, simultaneamente, opostas e complementares, que governam tanto o universo físico quanto nossa personalidade e padrões de pensamento no cotidiano. Por sua vez, os gunas podem gerar realizações, fracassos, alegrias, in- felicidade, saúde e doenças. A qualidade de nossas ações depende das três gunas: • Sattva: sabedoria, bondade, iluminação desapegada. • Rajas: intensidade apaixonada, atividade constante, agressão. • Tamas: literalmente "soprado pelos ventos", escuridão, confusão, desamparo. Por exemplo, um indivíduo equilibrado pode ter sua vida completamente mudada como consequência de um acontecimento dramático. Através dos gunas, portanto, seria possível para este indivíduo trabalhar para controlar aspectos me- nos desejáveis de sua personalidade para ajudá-lo a realizar seu dharma. Todos vivem com um papel específico a desempenhar e, se alguém não conseguir cum- prir essa missão em uma vida, teria que voltar quantas vezes fosse necessário, para que este objetivo fosse alcançado (RINEHART, 2004). UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS 172 Assim, a dinâmica da reencarnação está relacionada ao sistema de casta do hinduísmo, no qual alguém nasce em uma determinada posição imutável nes- te sistema, e que se falhar em desempenhar corretamente o papel em sua casta designada será obrigado a reencarnar. Este conceito foi sugerido, pela primeira vez, no Bhagavad Gita (composto por volta dos séculos V-II a.C.) quando Krishna fala a Arjuna dos gunas e a responsabilidade com o dharma. As castas: • Brahmana varna: casta superior, professores, sacerdotes, intelectuais. • Kshatriya varna: guerreiros, polícia, protetores, guardiões. • Vaishya varna: mercadores, fazendeiros, banqueiros, escriturários. • Shudra varna: casta inferior, servos, operários, trabalhadores não qualificados. • Abaixo dos Shudras estão os intocáveis, conhecidos como Dalits, aqueles que existem fora do sistema de castas. ATENCAO SOCIEDADE DE CASTAS FONTE: <https://bit.ly/39GDOGs>. Acesso em: 9 dez. 2020. Segundo o que teria sido prescrito por Krishna, que o dharma de cada um era pertencer a uma casta (varna) específica, como brâmanes, guerreiros ou comerciantes. As palavras de Krishna foram posteriormente compiladas na obra conhecida como Manusmriti (As Leis de Manu), entre os séculos II e III. Esse código prescrevia que um sistema de castas rígido havia sido ordenado, como parte da TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO 173 “ordem divina”, na qual alguém era destinado a permanecer, por toda a vida, na classe social em que nasceu. O manuscrito das “Leis do Manu” é o primeiro registro desse conceito, da forma como ficou conhecido. Textos e preceitos O conceito de “Ordem Eterna” é explicado nos textos hindus considera- dos sagrados. As obras, se enquadram em duas categorias: • Shruti (“o que é ouvido”): a revelação da natureza da existência conforme registrada pelos escribas que a “ouviram” e registraram nos Vedas. • Smritis (“o que é lembrado”):relatos de grandes heróis do passado e como vi- veram – ou deixaram de viver – de acordo com os preceitos da “Ordem Eterna”. Os textos relacionados com “Shruti” são os “Quatro Vedas”: • Rig Veda: o mais antigo dos Vedas, uma coleção de hinos composta por dez livros (conhecidos como Mandalas) de 1.028 hinos de 10.600 versos. Esses versículos se preocupam com a prática e a observância religiosa adequada, com base nas vi- brações universais conforme entendidas pelos primeiros sábios que os ouviram, mas também abordam questões fundamentais relacionadas à existência. Esta re- flexão filosófica caracteriza a essência do hinduísmo no sentido de que o objetivo da existência pessoal é questioná-lo à medida que nos movemos das necessida- des básicas da vida em direção à autorrealização e união com o Divino. O Rig Veda incentiva esse tipo de pergunta por meio de hinos a vários deuses – Agni, Mitra, Varuna, Indra e Soma notavelmente – que, eventualmente, seriam vistos como avatares da Suprema Alma Suprema, Causa Primeira e fonte de existência, Brahman. De acordo com algumas escolas de pensamento hindu, os Vedas foram compostos por Brahman, cuja canção os sábios então ouviram. • Sama Veda: textos litúrgicos, cantos e canções Sama Veda (“Conhecimento da Melodia” ou “Conhecimento da Canção”) é uma obra de canções litúrgicas e textos (cantados). O conteúdo é quase totalmente derivado do Rig Veda e, como alguns estudiosos observaram, o Rig Veda serve como a letra das melo- dias do Sama Veda. É composto por 1.549 versos e dividido em duas seções: a gana (melodias) e o arcika (versos). As melodias são pensadas para encorajar a dança que, combinada com as palavras, eleva a alma. • Yajur Veda (fórmulas rituais, mantras, cânticos): consiste em recitações, fórmulas de adoração rituais, mantras e cantos diretamente envolvidos nos serviços de adora- ção. Como o Sama Veda, seu conteúdo deriva do Rig Veda, mas o foco de seus 1.875 versos está na liturgia das observâncias religiosas. É considerado como tendo duas “seções” que não são partes distintas, mas características do todo. O “sombrio Yajur Veda” refere-se às partes que não são claras e mal organizadas, enquanto o “claro Yajur Veda” se aplica aos versos que são mais claros e mais organizados. • Atharva Veda (magia, cânticos, hinos, orações): difere significativamente dos três primeiros porque se refere à magia para afastar os maus espíritos ou pe- rigos através de cantos, hinos, orações, rituais de iniciação, casamento, ce- UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS 174 rimônias fúnebres e preceitos da vida diária. Atribui-se a obra ao sacerdote Atharvan, conhecido como um inovador religioso, ou a outros indivíduos que viveram na mesma época que foram compostos o Sama Veda e o Yajur Veda (1200-1000 a.C.). É composto por 20 livros de 730 hinos, alguns dos quais ins- pirados no Rig Veda. A natureza do trabalho, a linguagem usada e a forma que foi feito faz com que alguns teólogos e estudiosos o rejeitem como um Veda autêntico. Nos dias atuais, é aceito por algumas seitas, mas não por todas as seitas hindus, com o fundamento de que lida com o conhecimento posterior que é lembrado, não o conhecimento primordial que foi ouvido. O Aranyakas, Brahmanas, Samhitas e Upanishads podem ser considerados anotações, extensões ou comentários dos textos anteriores. • Aranyakas: rituais e preceitos. • Brahmanas: comentários dos rituais e preceitos. • Samhitas: bênçãos, orações e mantras. • Upanishads: comentários filosóficos sobre o significado da vida e os Vedas. Os Upanishads são considerados o “fim dos Vedas” como na última palavra dos textos. O termo Upanishads significa “sentar perto”, como um aluno faria com um mestre para receber algumas informações não destinadas ao resto da classe. Os Upanishads, em cada um dos Vedas, comentam o texto ou o ilustram por meio de diálogos e narrativas, esclarecendo assim passagens ou conceitos difíceis ou obscuros. NOTA Os textos relativos ao smritis (“o que é lembrado”) são: • Puranas: folclore e lenda sobre figuras do passado antigo. • Ramayana: conto épico do Príncipe Rama e sua jornada para a autorrealização. • Mahabharata: conto épico dos cinco Pandavas e sua guerra com os Kauravas. • Bhagavad Gita: conto popular em que Krishna instrui o príncipe Arjuna sobre o dharma. • Yoga Sutras: comentário das diferentes disciplinas de ioga e autoliberação. Estes textos aludem a numerosas divindades, como: • Indra, senhor das forças cósmicas, raios, tempestades, guerra e coragem. • Vac, deusa da consciência, fala e comunicação clara. • Agni, deus do fogo e da iluminação. • Kali, deusa da morte. • Ganesh, o deus com cabeça de elefante, removedor de obstáculos. TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO 175 • Parvati, deusa do amor, fertilidade e força e também consorte de Shiva. • Soma, deus do mar, fertilidade, iluminação e êxtase. Entre as mais importantes divindades estão aquelas que constituem a chamada "Trindade Hindu": FIGURA 2 – BRAHMA – O CRIADOR, VISHNU – O PRESERVADOR E SHIVA – O DESTRUIDOR (HINDU TRIMÚRTI) FONTE: <https://bit.ly/3cGFlhg>. Acesso em: 9 dez. 2020. Todos esses deuses são manifestações de Brahman, a Realidade Suprema, que só pode ser entendida por meio de aspectos de si mesma. Brahma, Vishnu e Shiva são ambos, aspectos e divindades individuais com seus próprios personagens, motivações e desejos. Eles também podem ser compreendidos por meio de seus pró- prios avatares, já que eles também são opressores demais para serem compreendidos por conta própria, e, portanto, assumem a forma de outros deuses, o mais famoso dos quais é Krishna, o avatar de Vishnu, que chega à Terra periodicamente para ajustar a compreensão da humanidade e corrigir o erro (WILLIAMS, 2017). No Bhagavad Gita, Krishna aparece como o cocheiro do Príncipe Arjuna, Ba- talha de Kurukshetra, porque sabe que este está inseguro de lutar contra seus paren- tes. Krishna busca convencê-lo a lutar, ao explicitar, dentre muitas outras coisas, a verdadeira natureza da alma, de Deus e da transcendência. Estes textos ensinam os preceitos religiosas dos adeptos do Sanatan Dharma que, em geral, têm dois aspectos: • Puja: adoração, ritual, sacrifício e oração em um santuário ou templo pessoal. • Darshan: contato visual direto com a estátua de uma divindade. UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS 176 Pode-se adorar o Divino em sua casa, um santuário pessoal ou um tem- plo. No templo, o sacerdote ajuda intercedendo em seu nome junto à divindade por meio de instruções, cânticos, canções e orações. Música, dança e movimento geral para se expressar diante de Deus muitas vezes caracterizam um serviço religioso. Outro elemento importante é o contato visual com a divindade repre- sentados por uma estátua ou estatueta. O darshan (“ver”, não no sensorial, mas no sentido de “realização da verdade”) é vital para a adoração e a comunhão, pois o deus está procurando o adepto tão sinceramente quanto o adepto busca a divindade e eles se encontram através dos olhos. Esta é a razão pela qual os templos hindus são adornados com figuras de muitos deuses, tanto interna quanto externamente. A estátua é consi- derada a personificação da própria divindade e a pessoa recebe bênçãos e confor- to por meio do contato visual, assim como em um encontro com um amigo. A relação entre um adepto do hinduísmo e a divindade é mais aparente através dos muitos festivais observados ao longo do ano. Entre os mais populares está o “Diwali”, o festival das luzes, que celebra o triunfo das energias brilhan- tes e da luz sobre as forças da negatividade e das trevas. Neste festival, como na observância diária, a presença de uma estátua ou estatueta de uma divindade é importante para fazer a conexão e elevar a mente e a alma de um adepto. O diwali é provavelmente o melhor exemplo da disciplina de Bhakti Yoga que se concentra na devoção e serviço. As pessoas limpam, renovam, decoram e melhoram suas casas em homenagem à deusa da fertilidade e prosperidade“Lakshmi”, e agra- decem por tudo o que receberam dela. A divindade individual não importa, afinal, porque todas as divindades do panteão são aspectos de Brahman, assim como o adorador e o ato de adoração. Os detalhes da observância não importam tanto quanto a própria observância que reconhece o lugar da pessoa no universo e reafirma o compromisso de reco- nhecer a unidade divina em todos os aspectos de sua vida e a conexão com outras pessoas que estão viajando no mesmo caminho para casa (WILLIAMS, 2017). O sistema de crenças chamado hinduísmo, na Índia, ao longo de milênios, passa por transformações e mudanças consideráveis. Algumas das mais impor- tantes ocorreram sob os domínios islâmico e britânico. O “Movimento Bhakti” (séculos XV-XVII), por exemplo, na chamada Idade Média do hinduísmo, que se caracterizou pela devoção teística com o intuito de reformar o hinduísmo tradi- cional, o que mais tarde deu origem ao sikhismo. Outro momento importante do hinduísmo moderno foi com o chamado “Movimento Brahmos”, liderado por Ram Mohan Roy (1772-1833) e continuado, por outros, como Debendranath Tagore (1817-1905), pai do grande poeta Rabindranath Tagore). Esse movimento foi uma reação que resultou em resistência a influencias externas e à incorporação de elementos de outras religiões (judaísmo, cristianismo e islamismo). Entre as mudanças propostas foi incluída a rejeição aos Vedas e a adoção de experiência pessoal com o “Divino” semelhante às tradições abraâmicas. TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO 177 Nos séculos XX e XXI, na Índia contemporânea, hinduísmo também passou a desempenhar força política e ser fonte da identidade nacional indiana. Com origens remontando ao movimento Hindu Mahasabha, na década de 1910, esta tendência cul- minou com o surgimento do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), em 1925; e do Parti- do Bharatiya Janata (BJP) na política da Índia independente. A religiosidade hindu, assim ocupa um papel importante no movimento nacionalista (RINEHART, 2004). O sikhismo “Sikh”, (discípulo ou aprendiz), é uma religião que se originou na região de Punjab, na Índia, por volta do final do século XV. Atualmente soma cerca de 25 milhões de devotos. O sikhismo é baseado nos ensinamentos espirituais de Guru Nanak, o primeiro Guru (1469-1539) e os nove Gurus Sikh que o sucederam. O décimo Guru, Guru Gobind Singh, nomeou o Guru Granth Sahib das escrituras sikh, como seu sucessor, encerrando a linha de gurus humanos e estabelecendo a Escritura como o eterno guia espiritual religioso para os si- khs. Guru Nanak ensinou que viver uma "vida ativa, criativa e prática" de "veracidade, fidelidade, autocontrole e pureza" está acima da verdade metafísica, e que o homem ideal é aquele que "estabelece união com Deus, conhece Sua vontade e executa essa Vontade " (SINGH, 2003). FONTE: SINGH, P. The Guru Granth Sahib: canon, meaning and authority. Oxford: Oxford University Press, 2003. Disponível em: https://tinyurl.com/y2udbzff. Acesso em: 9 dez. 2020. NOTA 5 O BUDISMO O budismo é uma das tradições espirituais asiáticas mais expressivas. Du- rante cerca de dois milênios e meio de História, o budismo demonstrou enorme capacidade de adaptação a contextos e ideias, não obstante, mantendo seus ensi- namentos básicos. Como resultado de sua ampla expansão geográfica, o budismo hoje abrange uma série de tradições, crenças e práticas diferentes. Durante as últimas décadas, o budismo também ganhou uma presença significativa fora da Ásia. Com o número de adeptos estimado em quase 400 mi- lhões de pessoas, o budismo em nossos dias se expandiu em todo o mundo e não é limitado a um contexto cultural e geográfico limitado. Por muitos séculos, esta tradição foi uma força poderosa na Ásia, que influenciou, quase todos os aspectos do mundo oriental, como, artes, moral, tradição, mitologia e instituições sociais (KULKE; ROTHERMUND, 2006). UNIDADE 3 — RELIGIÕES ORIENTAIS 178 5.1 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO INICIAL A origem do budismo remonta a Sidarta Gautama, o Buda histórico, nas- cido no século V, em Lumbini, atual Nepal. Sidarta Gautama foi o fundador de uma seita de ascetas errantes (Sramanas), uma das muitas seitas que existiam, na Índia, naquele período. Essa seita ficou conhecida, como Sangha, para diferenciá- -la de outras comunidades semelhantes. O movimento Sramanas, que se originou na cultura de renúncia ao mun- dano surgiu, na Índia, por volta do século VI a.C. Esse movimento foi a origem comum de muitas tradições religiosas e filosóficas, incluindo, a escola Charvaka, o budismo, e sua religião-irmã, o jainismo. Os Sramanas eram ascetas que rejeitavam os ensinamentos védicos, que era então, a ordem religiosa tradicional na Índia. O jainismo nasceu na Índia no mesmo período do budismo por volta de 500 a.C. Surgiu perto de Patna e seu fundador, Mahavira, como Buda, pertencia à casta dos guerreiros. Mahavira era conhecido como "Jina", que significa “o grande vencedor” o que daria origem ao nome da religião. O jainismo é semelhante ao budismo e ambos surgiram de movimentos que tinham como objetivo reformar filosofia bramânica, então dominan- te na Índia. Ambos compartilham a crença na reencarnação, que eventualmente, leva à liberação. O jainismo é diferente do budismo em suas crenças ascéticas e a não violên- cia é dos seus fundamentos básicos. Os jainistas acreditam que tudo tem vida, inclusive, pedras, areia e árvores. Após 30 anos de meditação e pregação, que culminaram com inanição voluntária, Mahavira atinge a “iluminação” e morre, em Pava, em 527 a.C. Os jainistas são vegetarianos e procuram não ferir qualquer ser, por exemplo, não andam em campos onde há insetos, para evitar a possibilidade de pisar neles. Cobrem a boca para evitar a possibilidade de engolir pequenos micróbios invisíveis. Geralmente não trabalham em profissões em que haja a possibilidade de matar qualquer ser vivo, como na agricul- tura. Curiosamente, os janistas, na Índia, se envolveram em ocupações como bancos e finanças, entre outras profissões consideradas, por eles, não violentas, que os tornou uma comunidade minoritária, mas extremamente rica. IMPORTANTE Sidarta Gautama viveu durante uma época de profundas mudanças so- ciais na Índia. A autoridade da religião védica estava sendo desafiada por novas visões religiosas e filosóficas. Essa religião, desenvolvida em uma sociedade nô- made, cerca de um milênio antes da época de Sidarta, gradualmente se tornou dominante no norte da Índia, especialmente na planície do rio Ganges. Porém, no século V a.C., o estilo de vida mais nômade foi substituído por sociedades agrárias e urbanas. Sob este novo contexto, um setor considerável da sociedade indiana, não estava mais satisfeito com a tradicional religião védica e Sidarta Gautama foi um dos muitos críticos deste sistema religioso. TÓPICO 1 — HINDUÍSMO E BUDISMO 179 Após a morte de Sidarta Gautama, a comunidade que ele fundou se trans- forma em um movimento religioso e os ensinamentos de Sidarta se tornaram a base do budismo. As evidências históricas sugerem que o budismo teve um começo hu- milde como uma tradição religiosa menor, na Índia, e alguns estudiosos sugerem que o impacto do Buda em seus dias, foi relativamente limitado devido à escassez de documentos escritos, inscrições e evidências arqueológicas daquela época. No século III a.C., imperador Ashoka, o Grande, que governou de 268 a 232 a.C., transformou o budismo na religião oficial. Dessa maneira, Ashoka pro- piciou um clima social e político favorável para a aceitação das ideias budistas encorajando a atividade missionária budista e tornando os monges budistas in- fluentes na esfera das decisões políticas. As evidências arqueológicas do budismo, entre a morte de Buda e a época de Ashoka, são escassas; mas depois da época de Ashoka, elas se tornam abun- dantes (BUSWELL, 2013). 5.2 CISMA E ORIGEM DAS DIFERENTES ESCOLAS BUDISTAS A dissidência entre discípulos, aparentemente, já estava presente na