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NUTRIÇÃO E ÉTICA AULA 5 Prof. Alisson David Silva 2 CONVERSA INICIAL Ao abordarmos a ética no contexto dos cuidados em saúde, naturalmente nos deparamos com a complexidade da bioética. Diante da constatação de que as questões éticas tradicionais não abrangiam adequadamente os dilemas relacionados à saúde humana, pensadores e profissionais introduziram o conceito de bioética. Essa abordagem visa oferecer suporte tanto aos profissionais de saúde quanto à sociedade em geral, enfrentando os desafios relacionados à vida humana para promover o máximo bem-estar possível. A bioética incorpora princípios fundamentais, como autonomia, beneficência, justiça e respeito à vida, estabelecendo padrões mínimos para assistência à saúde, pesquisa e outras esferas ligadas à vida. Além disso, ao contemplarmos os cuidados de saúde, inevitavelmente nos deparamos com questões relacionadas à morte. Os cuidados paliativos assumem um papel crucial no atendimento a pacientes terminais ou aqueles que necessitam de cuidados especializados, priorizando o melhor tratamento para esses casos. Abordamos os conceitos relacionados à alimentação, uma área que não apenas impacta a saúde, mas também suscita uma série de questões éticas a serem consideradas. O direito humano à alimentação adequada nos conduz a indagações cruciais: quem merece assistência para efetivar esse direito? Qual entidade deve garantir esse direito e de que maneira? Estas perguntas são abordadas detalhadamente neste capítulo. A análise bioética das questões alimentares envolve temas como sistemas agroalimentares, o uso de agrotóxicos, a engenharia genética, e a influência das propagandas de alimentos, entre outros. Esses elementos são parte integrante das discussões bioéticas que permeiam a alimentação humana, desencadeando reflexões importantes sobre como conciliar a produção, distribuição e consumo de alimentos com princípios éticos sólidos. TEMA 1 – SURGIMENTO DA BIOÉTICA A Bioética surge durante a segunda metade do século XX, um período intrinsecamente moldado por fatores distintivos. Inicialmente, destaca-se a influência sociocultural. Os anos 1960, particularmente nos países ocidentais, testemunharam movimentos culturais e políticos impregnados por discursos críticos que ecoaram no cenário público. Estes movimentos focalizavam 3 questões de justiça, igualdade e a defesa de direitos individuais, intrinsecamente ligados à liberdade e à autonomia pessoal. A desconfiança e a contestação em relação ao poder e à autoridade das instituições potencializaram transformações significativas tanto no âmbito público quanto no privado. Com o despertar crítico, o questionamento ao positivismo científico também se intensificou. Na esfera médica, críticas foram direcionadas ao paternalismo na dinâmica médico-paciente e ao abuso em experimentações com seres humanos. A década de 1970 testemunhou a disseminação acelerada dessas ideias, impulsionada pela popularização dos meios de comunicação de massa, alcançando uma audiência mais ampla. Essa expansão rápida consolidou a consciência pública sobre as implicações éticas na prática médica e na pesquisa, marcando um ponto crucial na evolução da Bioética. O segundo catalisador para o surgimento da Bioética foi o extraordinário avanço científico e biotecnológico que caracterizou esse período. Essa conjuntura, denominada de diversas formas, como a "nova biologia," "revolução biomédica," "revolução biológica," "ecológica" e "médico-sanitária," assim como a "revolução terapêutica" e "biológica," foi marcada pela descoberta e aprimoramento de inúmeras biotécnicas. Conforme Parizeau (1997), o progresso técnico-científico expandiu significativamente a capacidade da medicina de intervir de maneira eficaz no corpo do indivíduo doente. Isso se traduziu no desenvolvimento de medicamentos como antibióticos, vacinas e antipsicóticos, na implementação de técnicas sofisticadas de intervenção, como cirurgia cardíaca, reanimação e transplante de órgãos, e na introdução de novos mecanismos de diagnóstico, como eletrocardiograma, arteriografia e ressonância magnética. Esse cenário de avanço técnico-científico não apenas transformou radicalmente a prática médica, mas também levantou dilemas éticos imediatos. A capacidade ampliada de manipulação do corpo e da genética suscitou questões éticas complexas sobre o uso responsável dessas tecnologias, a equidade no acesso aos benefícios gerados e os potenciais impactos socioeconômicos e ambientais associados à "revolução biomédica." Essa interseção entre progresso científico e desafios éticos tornou-se um terreno fértil para o florescimento da Bioética como disciplina essencial na orientação das práticas e decisões no campo da saúde. 4 A primeira vez que o termo "bioética" é mencionado remonta a décadas anteriores, precisamente ao ano de 1927, quando o teólogo alemão Fritz Jahr o utiliza em um artigo publicado. Ele "bioética" como a obrigação ética não apenas para com os seres humanos, mas estendendo-se a todos os seres vivos. O imperativo proposto por Jahr revoluciona o campo da ética, dando origem ao que é conhecido como "ética da responsabilidade", a ideia de respeitar cada ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e, sempre que possível, tratá-lo como tal. Conforme Reich (1995), a bioética constitui um exame sistemático das dimensões éticas — englobando moralidade, tomada de decisões, comportamentos e políticas — inerentes às ciências da vida e à atenção à saúde. Esse campo de estudo emprega uma variedade abrangente de metodologias éticas, operando de maneira interdisciplinar. O autor também esclarece que a moral é um conceito multifacetado que estabelece normas a serem seguidas pelos membros da sociedade, visando assegurar o bem-estar e uma coexistência harmônica. Em sua essência, a moral representa a garantia de tratamento equitativo para todos os seres humanos, independentemente de sua condição social, racial ou qualquer outro fator. Outro autor, Junqueira (2011), traz que os alicerces fundamentais da bioética se embasam em conceitos cruciais: autonomia, beneficência, justiça e respeito à vida. No âmbito da bioética, autonomia compreende o direito inalienável de cada indivíduo, ao buscar assistência, ter controle sobre si mesmo, preservando sua liberdade de escolha e capacidade decisória. Por sua vez, a beneficência é conceituada como um princípio que impera aos profissionais da saúde a responsabilidade intrínseca de promover o bem ao paciente no exercício de suas funções, consolidando, dessa forma, a prestação de cuidados humanizados. A justiça, enquanto princípio bioético, desempenha o papel crucial de assegurar que as necessidades de saúde sejam atendidas de forma imparcial, destituída de preconceitos ou segregações. Além disso, o respeito à vida constitui-se na premissa de que nenhum dano intencional seja infligido ao outro durante a prestação de cuidados de saúde. Esses princípios não apenas delineiam as bases éticas para a prática médica, mas também fundamentam um arcabouço moral que visa garantir a dignidade e o bem-estar de todos os envolvidos no processo de atendimento à saúde. 5 TEMA 2 – FUNDAMENTOS E REFLEXÕES NAS BASES DA BIOÉTICA Não necessariamente todas as ações que visam contribuir para o avanço científico são automaticamente aceitas ou consideradas éticas pela sociedade. No âmbito do atendimento à saúde, surge uma ponderação sobre como agir de modo a preservar a dignidade das pessoas. É crucial destacar que os profissionais devem estar cientes dos parâmetros aplicados nesse atendimento, assegurando que o objetivo seja alcançado sem prejudicar as questões humanas fundamentais. Como seres holísticos, somos constituídos por dimensões sociais, psicológicas, biológicas, espirituaise físicas, entre outras. A bioética, portanto, pode ser entendida como um campo de atuação multidisciplinar, onde profissionais de diversas áreas se unem na busca por abordar de maneira ética os desafios relacionados à vida humana e ao bem- estar. Ao trazermos essas reflexões para a realidade brasileira, deparamo-nos com o Sistema Único de Saúde (SUS). No contexto do atendimento básico em saúde, as políticas públicas estabelecem as seguintes diretrizes: A Atenção Básica considera o sujeito em sua singularidade, na complexidade, integralidade e na inserção sociocultural e busca a promoção de sua saúde, a prevenção e tratamento de doenças e a redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo saudável. (Brasil, 2006, p. 10) As complexidades inerentes ao atendimento em saúde frequentemente transcendem a esfera individual do paciente. Questões que envolvem a família, a confidencialidade das informações médicas, a condução de pesquisas em seres humanos, as relações interpessoais com outros profissionais de saúde, os cuidados paliativos, o aborto, a eutanásia, e uma série de outros fatores influenciam de maneira abrangente a prestação de cuidados. Enfrentar essas questões requer uma abordagem cuidadosa e ética que vá além dos conceitos pessoais de cada indivíduo. As questões dessas situações demandam parâmetros claros para assegurar a consistência e equidade no atendimento. Reconhecer que as perspectivas individuais, por vezes, não são suficientes para resolver essas questões é o primeiro passo. Nesse sentido, é crucial seguir diretrizes sólidas de bioética que considerem a unicidade do ser humano e orientem a conduta profissional de maneira a preservar a vida sem causar danos ao outro. 6 Profissionais da saúde, quando comprometidos com pilares éticos, têm o poder de equilibrar a complexidade do atendimento, garantindo a preservação da vida e o respeito à dignidade humana. Essa abordagem ética não apenas estabelece uma base sólida para o exercício da medicina, e de outras áreas da saúde, mas também promove uma cultura de cuidado compassivo e centrado no paciente. TEMA 3 – DILEMAS BIOÉTICOS No decorrer do século XX, particularmente durante o regime nazista sob a liderança de Adolf Hitler, uma sinistra colaboração entre o poder político e a comunidade científica veio à tona. Nesse contexto, prisioneiros, incluindo judeus, políticos e militares, foram deliberadamente entregues nas mãos dos médicos para a realização de pesquisas biológicas, sem a mínima consideração pelos limites éticos. Sob a aprovação de Hitler, essas investigações abarcaram uma ampla gama de campos, muitas vezes ultrapassando os padrões éticos estabelecidos. A divulgação posterior das imagens dessas experiências chocantes revelou a desumanização completa do ser humano, tratado meramente como objeto de pesquisa e experimentação, desprovido de qualquer respeito pela vida. Esse capítulo sombrio da história evidenciou conflitos profundos entre os interesses da ciência e os valores fundamentais da sociedade. O impacto global dessas revelações foi profundo, provocando uma conscientização generalizada sobre a necessidade urgente de estabelecer fronteiras éticas intransponíveis entre a busca pelo conhecimento científico e a preservação dos direitos humanos. Essa dolorosa revelação tornou-se um ponto de inflexão crucial, moldando a trajetória subsequente da bioética como uma disciplina voltada para a harmonização dos avanços científicos com os princípios éticos essenciais para a preservação da dignidade e da integridade humana. Com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, o Tribunal Militar Internacional em Nuremberg conduziu julgamentos abrangentes de médicos envolvidos em pesquisas com seres humanos nos campos de concentração nazistas, categorizando essas investigações como crimes contra a humanidade. Esse trágico episódio culminou na formulação das Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomédica envolvendo Seres Humanos, amplamente conhecidas como "O Código de Nuremberg". Este código, composto por dez princípios 7 fundamentais, emerge como um marco na história da bioética, delineando normas cruciais para o consentimento informado, regulamentando a experimentação científica e defendendo o princípio da beneficência. É importante destacar os princípios que fundamentam o Código de Nuremberg (Nuremberg, 1947): 1. Necessidade de consentimento voluntário do sujeito da pesquisa, ou seja, direito de livre escolha e sem intervenção de força, mentira, coação, astúcia e coerção; 2. Produção de resultados vantajosos para a sociedade; 3. Deve ser baseada em resultados de experimentação animal e no conhecimento da evolução da doença. A pesquisa deve basear-se em conhecimento prévio que justifique a realização do experimento e que não possa ser obtido de outra forma. 4. A pesquisa deve evitar sofrimento e danos desnecessários, físicos ou mentais; 5. A pesquisa não deve ser conduzida caso haja risco de morte ou invalidez permanente; 6. O risco deve ser aceitável e limitado pela importância humanitária; 7. Cuidados de proteção de dano, adotando precauções especiais para salvaguardar o participante do experimento contra qualquer eventualidade de dano, incapacidade ou fatalidade, mesmo que essa possibilidade seja remota; 8. Deve ser conduzida por pessoas qualificadas e com habilidades específicas; 9. Prevê a liberdade do paciente se retirar quando quiser; 10. O pesquisador deve estar pronto para interromper os procedimentos experimentais em qualquer fase, caso possua motivos justificáveis, agindo com boa fé, habilidade superior e julgamento cuidadoso, e acredite que a continuação do experimento possa, provavelmente, ocasionar dano, invalidez ou morte para o participante. Diante disso, tivemos outros eventos e desenvolvimentos cruciais no campo da bioética, destacam-se momentos que moldaram a trajetória da bioética. O debate inicial sobre transplante de órgãos nas décadas de 1950 e 1960 revelou questões éticas essenciais relacionadas à doação, alocação de órgãos 8 e definição de morte cerebral. A ética por trás da doação, incluindo consentimento informado e a potencial comercialização de órgãos, tornou-se foco de intensos debates. A alocação justa de órgãos, diante da escassez, gerou dilemas éticos sobre como decidir quem recebe um órgão quando a demanda supera a oferta. Além disso, a definição de morte cerebral emergiu como uma questão crítica, dado que órgãos frequentemente provêm de doadores com esse diagnóstico. No final da década de 1970, os princípios de Beauchamp e Childress forneceram uma estrutura ética abrangente para a bioética. Autonomia, beneficência, não maleficência e justiça tornaram-se pilares norteadores na tomada de decisões em contextos biomédicos. Esses princípios refletiram a necessidade de equilibrar o progresso científico com preocupações éticas fundamentais, respeitando a autonomia do paciente, promovendo beneficência, evitando danos intencionais e buscando justiça na distribuição de recursos de saúde. O Relatório Belmont, originado nos EUA em 1979, respondeu a violações éticas em pesquisas médicas, estabelecendo diretrizes éticas fundamentais. Respeito pelas pessoas, beneficência e justiça tornaram-se princípios orientadores na pesquisa envolvendo seres humanos. Este relatório foi uma resposta crucial aos abusos éticos, incluindo o infame Estudo de Sífilis de Tuskegee. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, casos éticos notórios, como os de Karen Ann Quinlan e Nancy Cruzan, que influenciaram debates sobre decisões médicas e direitos dos pacientes. Questões como a retirada de suporte vital e o direito à recusa de tratamento médico foram centralizadas nessas discussões, resultando em desenvolvimentos legais significativos e regulamentaçõessobre ética médica. Em relação ao Brasil, destacamos as Normas para Pesquisa com Seres Humanos no Brasil, delineadas pela Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012). Este documento aborda, de maneira abrangente, aspectos como o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e fornece orientações sobre os Comitês de Ética em Pesquisa e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Vale a pena examinar os quatro elementos fundamentais de ética que regem a realização de pesquisas com seres humanos: 9 • Respeito ao Participante da Pesquisa: Este princípio reconhece a dignidade e autonomia do participante, ciente de sua vulnerabilidade. Assegura a livre manifestação de sua vontade em contribuir ou não para a pesquisa, por meio de uma expressão clara, livre e esclarecida. • Ponderação entre Riscos e Benefícios: Destaca a necessidade de uma avaliação cuidadosa e equilibrada dos riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais, individuais ou coletivos. Compromete-se com a maximização dos benefícios e a minimização de danos e riscos. • Prevenção de Danos Previsíveis: Este ponto enfatiza a importância de evitar danos previsíveis decorrentes da pesquisa, reforçando o compromisso com a segurança e bem-estar dos participantes. • Relevância Social da Pesquisa: A ética da pesquisa se estende à consideração da relevância social, garantindo a igualdade na ponderação dos interesses envolvidos. Isso preserva o propósito humanitário e social da pesquisa. Além disso, é crucial observar que pesquisas envolvendo seres humanos, mesmo quando não configuram experimentos científicos, como é o caso de pesquisas apenas com aplicação de questionários, devem passar pela avaliação dos Comitês de Ética, os quais estão sempre vinculados a instituições de ensino superior. Este processo reforça o comprometimento com a integridade ética em todas as formas de pesquisa que envolvem seres humanos. TEMA 4 – CUIDADOS PALIATIVOS A essência do termo paliar, derivado do latim pallium, que refere-se ao manto usado pelos cavaleiros para se protegerem nas batalhas, transcende as eras, denotando a ação intrínseca de proteção. Proteger alguém, seja física, psicológica, social ou espiritualmente, é a essência dos cuidados paliativos. Ao receber a notícia de que alguém é elegível para esses cuidados, não há motivo para temor; pelo contrário, representa a oferta compassiva de assistência especializada em momentos delicados. A relevância dos cuidados paliativos nas discussões bioéticas é inegável, principalmente em contextos de doenças terminais. A etimologia de "paliar" ecoa na ideia contemporânea de proteção, enfatizando não apenas o aspecto físico do cuidado, mas também a salvaguarda da dignidade, conforto e qualidade de 10 vida daqueles enfrentando desafios de saúde terminal. Assim, compreender os cuidados paliativos como uma extensão do princípio de proteção reforça a importância ética desse campo na promoção do bem-estar em situações de extrema vulnerabilidade. De acordo com o relatório anual de 2021 – 2022 da Worldwide Hospice Palliative Care Alliance (Aliança Mundial de Cuidados Paliativos e Hospices), anualmente, quase 57 milhões de pessoas e suas famílias necessitam de cuidados paliativos, sendo que 12% dessa demanda global está sendo atendida. Dentre esse contingente, 45% encontram-se no final de suas vidas, destacando a urgência em oferecer suporte compassivo nesses momentos delicados. É importante ressaltar que, das pessoas que requerem cuidados paliativos, 69% enfrentam doenças não transmissíveis, abrangendo condições como câncer, demência, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca- hepática-renal, doenças pulmonares ou lesões. Essa diversidade de condições destaca a necessidade de abordagens especializadas para atender às complexidades dessas situações. Contudo, apenas 12% da demanda global de cuidados paliativos está sendo atendida, evidenciando a disparidade entre a necessidade e a oferta. Além disso, 83% dos países enfrentam restrições significativas ou praticamente inexistentes no acesso a opioides para alívio da dor, revelando uma lacuna crítica no manejo adequado da dor em pacientes que necessitam de cuidados paliativos. Surpreendentemente, 76% da necessidade de cuidados paliativos em adultos concentra-se em países de baixa e média renda. Isso ressalta a desigualdade global no acesso a serviços essenciais de cuidados paliativos e destaca a necessidade premente de ações que garantam uma distribuição mais equitativa desses recursos. Olhando para o futuro, espera-se que a porcentagem de cuidados paliativos, atualmente em 87%, aumente até 2060. Essa projeção destaca a importância de expandir e aprimorar os serviços de cuidados paliativos para atender à crescente demanda, além de aprimorar essa discussão. Os cuidados paliativos representam uma abordagem abrangente que visa melhorar a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças ameaçadoras à continuidade da vida. Essa prática engloba o alívio do sofrimento e o tratamento de sintomas físicos, psicossociais e espirituais. Destaca-se que 11 os cuidados paliativos podem ser oferecidos em diversos contextos, sendo a Atenção Primária em Saúde uma opção recente para essa assistência. Essa forma de cuidado ativo e integral é especialmente direcionada a pacientes cujas doenças não respondem mais a tratamentos curativos, priorizando o objetivo central de assegurar a melhor qualidade de vida possível para os pacientes e seus familiares. Com foco no controle da dor e de outros sintomas, os cuidados paliativos visam mitigar o sofrimento, proporcionando suporte holístico em meio aos desafios enfrentados. A integração entre bioética e cuidados paliativos é evidente, uma vez que ambos compartilham uma base fundamentada no princípio da beneficência. Nesse sentido, os cuidados de saúde devem visar a minimização do sofrimento, priorizando um atendimento que seja compassivo, respeitoso e que busque otimizar a qualidade de vida. Para concretizar esses objetivos, é essencial aderir aos princípios mencionados anteriormente, conferindo autonomia aos pacientes por meio de informações claras e elucidativas. Esse processo possibilita que os pacientes ou seus familiares expressem suas opiniões de maneira efetiva no tocante ao tratamento. Os cuidados paliativos vão além dos pacientes terminais, estendendo-se a uma variedade de situações de saúde. É crucial explorar alguns conceitos e desafios pertinentes a áreas específicas, tais como: • Eutanásia: refere-se ao ato intencional de proporcionar a alguém uma morte indolor como meio de aliviar o sofrimento decorrente de uma doença incurável e dolorosa. • Distanásia: denota o prolongamento excessivo do processo de morte, podendo ser interpretada também como tratamento inútil. • Mistanásia: relaciona-se à omissão de socorro estrutural, frequentemente direcionada às camadas mais vulneráveis da sociedade. No contexto brasileiro, os cuidados paliativos demandam atenção, ampla discussão e investimento contínuo. Essa abordagem visa não apenas aliviar o sofrimento físico, mas também promover os direitos dos pacientes em situações de doenças terminais ou tratamentos de condições graves. Dessa forma, a compreensão e a implementação eficaz dos cuidados paliativos são essenciais para garantir uma assistência abrangente e humanizada em face das complexidades que envolvem a saúde e o bem-estar. 12 TEMA 5 – NUTRIÇÃO E BIOÉTICA Para abordarmos esse tópico, é essencial compreender alguns conceitos fundamentais que embasam a discussão sobre bioética na nutrição, sendo o primeiro deles o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). A concepção de Segurança Alimentar e Nutricional é um conceito em constante construção, intrinsecamente ligado a diferentesinteresses e variados aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos. Portanto, sua definição ainda é objeto de debates por diversos segmentos da sociedade, tanto no Brasil quanto no restante do mundo. Além disso, o conceito evolui ao longo da história, à medida que ocorrem mudanças na organização social e nas relações de poder. No contexto brasileiro, o debate sobre o conceito de SAN já perdura há pelo menos duas décadas. Inicialmente, foi entendido como a garantia a todos de acesso constante a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades básicas. Esse entendimento foi consolidado durante a I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição em 1986. Atualmente, segundo a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), aprovada em 2006, a Segurança Alimentar e Nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem prejudicar outras necessidades essenciais. Esse direito deve ser embasado em práticas alimentares que promovam a saúde, respeitem a diversidade cultural e sejam sustentáveis do ponto de vista ambiental, cultural, econômico e social. A LOSAN também instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com o objetivo de garantir o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). O qual é outro conceito crucial, o DHAA, é considerado indispensável para a sobrevivência. Normas internacionais reconhecem o direito de todos a uma alimentação adequada e o direito fundamental de cada pessoa estar livre da fome, pré-requisitos para a realização de outros direitos humanos. No Brasil, desde 2010, esse direito está assegurado como um dos direitos sociais pela Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional n. 64. No entanto, é importante ressaltar que, apesar dessa garantia legal, muitas pessoas ao redor do mundo ainda enfrentam desafios relacionados à fome e à falta de acesso à alimentação adequada. 13 Além disso, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos estabelece que os avanços e progressos científicos e tecnológicos devem ser direcionados para promover o acesso adequado à alimentação e à água, assegurando, dessa forma, a manutenção da vida. O art. 14 enfatiza a responsabilidade do poder público em lidar com as questões sociais e de saúde. É especialmente por meio desse enfoque que a bioética se conecta diretamente ao DHAA. No que diz respeito à produção e ao acesso aos alimentos, é relevante destacar diversas discussões que entrelaçam bioética, alimentação e o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Essas considerações abrangem uma variedade de tópicos, refletindo sobre questões fundamentais para a equidade e justiça social, que são pilares dos direitos fundamentais. • Acesso ao alimento: como se configura o acesso das populações aos alimentos? Essa indagação está intrinsicamente ligada à equidade e à justiça social, fundamentos essenciais dos direitos fundamentais, destacando a importância de garantir que todos tenham acesso digno e igualitário à alimentação. • Segurança dos produtos alimentares: não se resume apenas ao fornecimento de alimentos, mas à disponibilização de alimentos seguros para o consumo humano. É uma responsabilidade tanto dos governantes quanto da indústria alimentícia garantir que os alimentos oferecidos à população atendam aos mais elevados padrões de segurança. • Bem-estar animal: a alimentação e o bem-estar dos animais envolvem complexas questões bioéticas, pois esses seres vivos merecem respeito e consideração. Além disso, o bem-estar animal tem uma relação direta com a qualidade dos alimentos destinados ao consumo humano, tornando-se um ponto crucial a ser considerado. • Aspectos éticos: o mercado de alimentos, a busca por acesso justo e igualitário, e as políticas públicas que permeiam o setor estão intrinsecamente ligados aos conceitos bioéticos. A análise ética desses elementos é essencial para garantir uma abordagem equitativa e justa na distribuição e acesso aos alimentos. • Aspectos legais: marcos jurídicos desempenham um papel fundamental na garantia do DHAA. Leis, decretos e resoluções têm o propósito de 14 assegurar, por meio da força legal, que os cidadãos obtenham acesso irrestrito e digno à alimentação adequada. Todos esses assuntos, que abrangem desde o acesso aos alimentos até questões éticas, legais e de bem-estar animal, têm implicações cruciais no campo da nutrição. Esses temas devem ser objetos de estudo que visem promover bases sólidas para a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), assegurando, assim, um desempenho eficaz das atividades profissionais na área da saúde e afins. Ao explorar esses diversos ângulos, emerge a compreensão da complexidade das relações entre bioética, alimentação e DHAA, destacando a necessidade premente de uma abordagem abrangente e ética para impulsionar um sistema alimentar mais equitativo e sustentável. Outro ponto importante da Bioética na nutrição está relacionado à regulação da propaganda, visando proteger a sociedade e orientar a promoção de alimentos. No Brasil, a regulamentação das propagandas é realizada pelo sistema de autorregulação. Entretanto, no caso dos alimentos infantis, destaca- se a Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCAL). Esta norma estabelece diretrizes para a comercialização e proíbe certas práticas na publicidade de alimentos voltados para crianças. A NBCAL tem como objetivo garantir o uso adequado desses produtos, evitando interferências na prática do aleitamento materno. Configura-se como um instrumento crucial para controlar a publicidade indiscriminada de alimentos e produtos de puericultura que competem com a amamentação. Fica proibida a promoção comercial em diversos meios, incluindo merchandising, divulgação eletrônica, escrita, auditiva e visual. Estratégias de marketing voltadas para induzir vendas no varejo, como exposições especiais, cupons de desconto, preços abaixo dos custos, destaque de preço, prêmios, brindes, vendas vinculadas e apresentações especiais também são vetadas. Essas medidas visam garantir a ética na promoção de alimentos, especialmente aqueles direcionados ao público infantil. Diante de um mundo em que a produção de alimentos é abundante, é inadmissível que situações de total insegurança alimentar persistam. No entanto, os desafios relacionados à alimentação e aos princípios de bioética vão além dessas circunstâncias. Ao longo da carreira do profissional de nutrição, diversos 15 dilemas surgem, como cirurgias, enfermidades graves, comprometimento da capacidade do trato gastrointestinal, estudos patrocinados por indústrias alimentícias com interesses específicos, propagandas, uso de agrotóxicos e transgenia. Essas questões bioéticas exigem abordagens éticas e reflexivas para garantir a integridade e a responsabilidade no exercício dessa profissão. NA PRÁTICA A relação entre nutrição e bioética é intrínseca, abrangendo questões éticas essenciais para promover uma alimentação saudável e sustentável. Dentre os desafios contemporâneos, a discussão sobre transgênicos destaca- se, suscitando debates sobre segurança alimentar, impactos ambientais e autonomia do consumidor. Nesse contexto, o profissional de nutrição desempenha um papel crucial ao buscar equilíbrio entre avanços científicos, necessidades nutricionais e princípios éticos. Além disso, ao aconselhar pacientes e comunidades, o profissional nutricionista destaca a importância da transparência na rotulagem de produtos transgênicos, garantindo o direito do consumidor à informação e escolha consciente. Ao incorporar princípios debioética, como autonomia e beneficência, o nutricionista contribui para um ambiente alimentar mais ético e sustentável. Elabore uma análise crítica acerca da capacidade da população em escolher conscientemente o consumo de alimentos transgênicos nos mercados ou locais de compra. FINALIZANDO Nos exploramos os conceitos de ética da saúde e nos aprofundamos na bioética, fundamentais para a atuação de profissionais da área da saúde, incluindo a nutrição. Questões como guerras, que impactaram a dignidade humana, e outros temas relacionados à ciência colocaram a bioética no centro de debates internacionais, visando estabelecer consensos sobre a intervenção ética na vida humana. Os princípios fundamentais da bioética, como autonomia, beneficência, justiça e respeito à vida, constituem as bases para a reflexão nas ações que envolvem a preservação e o fim da vida. Temas como eutanásia e cuidados paliativos são abordados sob a égide desses princípios éticos para maximizar o bem-estar. 16 Normativas internacionais, como o Código de Nuremberg, e leis nacionais que regulam pesquisas em humanos, respaldam a ética na condução de estudos em animais e humanos, visando garantir a segurança e aderir aos princípios bioéticos. Quando transitamos para a esfera da alimentação humana, nos deparamos com diversos dilemas que demandam parâmetros éticos. Questões como acesso aos alimentos, segurança alimentar, transgenia, uso de agrotóxicos e políticas públicas são alvos de intensas discussões. Profissionais de nutrição precisam estar atentos às mudanças na sociedade e na ciência, agindo em conformidade com as questões éticas emergentes. 17 REFERÊNCIAS BRASIL. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 2012. PARIZEAU M. Bioéthique. In: Canto-Sperber M. Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale. 2. ed. Paris: Presses Universitaires de France; 1997. GOLDIM J. Bioética: origens e complexidade. Clin Biomed Res, v .26, n. 2, p. 86-98. p. 86, 2006. JUNQUEIRA, C. Bioética: conceito, fundamentação e princípios. São Paulo: UNASUS/UNIFESP, 2011. NUREMBERG. Código de Nuremberg. Tribunal Internacional de Nuremberg – 1947. Trials of war criminal before the Nuremberg Military Tribunals. Control Council Law, 1949, v. 10, n. 2, p. 181-182. REICH, T. Encyclopedia of Bioethics. Nova Iorque: MacMillan, 1995.