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MONICK LEBRÃO MEDICINA- TURMA XIV (FASAVIC) 1 REFLUXO GASTROESOFÁGICO NA CRIANÇA Professora Mellyssa Matos HAM IV DEFINIÇÃO Refluxo gastroesofágico (RGE) deve ser entendido como retorno passivo do conteúdo gástrico para o esôfago sem nenhuma implicação quanto à etiologia. Em indivíduos normais, adultos ou crianças, a passagem de conteúdo gástrico para o esôfago ocorre espontaneamente, constituindo um evento fisiológico sem maiores consequências clínicas. Em pediatria, essa situação é conhecida como refluxo gastroesofágico fisiológico ou refluxo gastroesofágico não complicado. Porém, se o RGE ocorrer de forma crônica e persistente e provocar complicações clínicas e/ou laboratoriais, seja pela frequência aumentada dos episódios de refluxo, seja pelo maior tempo de exposição da mucosa esofágica ao material refluído, transformar-se-á numa condição anormal que é conhecida como doença do refluxo gastroesofágico (DRGE). Dentre as afecções esofágicas que acometem as crianças, a DRGE é a mais frequente. FISIOLÓGICO: 2 ou 3 vezes ao dia, medidas antropométricas normais e sem doença de base. PATOLÓGICO: 6 ou mais, cervical hiperestendida, irritabilidade. Em situações fisiológicas, o RGE ocorre principalmente: 1. Durante o relaxamento induzido pela deglutição (RID); 2. Durante o relaxamento transitório do esfíncter inferior do esôfago (RTEIE). FISIOPATOLOGIA A etiopatogenia da DRGE é multifatorial e envolve vários mecanismos intrínsecos ou não. Fatores que possam prejudicar a competência dos mecanismos anti–RGE (anatômicos ou não), favorecem a ocorrência de relaxamentos transitórios do esfíncter esofagiano inferior (RTEEI), sendo que o aumento do número dos mesmos, predispõe ao RGE3. Esse é considerado o principal fator na etiopatogênese da DRGE. A partir do nascimento, observa-se aumento gradativo da pressão do EEI. Por volta dos 2 meses, esta atinge o valor pressórico observado em adultos. A extensão do EEI é de aproximadamente 1 cm nos menores de 3 meses, atinge 1,6 cm por volta de um ano de idade e cerca de 4 cm na idade adulta. O RTEEI ocorre fisiologicamente após uma deglutição, sendo um reflexo normal após distensão do estômago, através de estímulos vagais. O EEI amadurece em torno dos 12 meses de vida, até essa idade é mais frequente as regurgitações. Alterações em vários mecanismos anti-RGE permitem que os episódios de RGE ocasionem a DRGE, entre os quais: depuração insuficiente e tamponamento do ácido pela salivação, esvaziamento gástrico retardado, anormalidades na cicatrização epitelial do esôfago, diminuição dos reflexos neurais de proteção do trato digestivo e sistema respiratório. A distensão gástrica ou acomodação inadequada do fundo gástrico também aumentam a ocorrência dos RTEEI. O sono, pela redução de salivação, do tônus do EEI e deglutição, bem como a postura deitada nas crianças pequenas podem ser fatores agravantes que aumentam igualmente o número dos RTEEI. LEGENDA: Fatores envolvidos na etiopatogênese da doença do refluxo gastroesofágico: EEI – esfíncter esofageano inferior, PGE – prostaglandina E, PVI – peptídeo vasoativo intestinal. Os relaxamentos inapropriados do EEI (em negrito) representam o mais importante mecanismo de RGE. CLASSIFICAÇÕES A DRGE pode ser classificada em: PRIMÁRIA: quando existe disfunção no nívelesofagogástrico; Sem nenhuma doença de base que propicie o RGE. SECUNDÁRIA: quando existem causas subjacentes que predispõem ao RGE, como infecções, distúrbios metabólicos, malformações congênitas, obstruções duodenogástricas, lesões do sistema nervoso MONICK LEBRÃO MEDICINA- TURMA XIV (FASAVIC) 2 central, alergia à proteína do leite de vaca, colagenoses, drogas etc. OCULTO: ocorre quando o líquido ingerido e o suco gástrico voltam mas não chegam a sair, ou seja, não são “devolvidos” pela boca. A criança que não vomita, mas tem sintomas secundários de refluxo (afta, cáries, desgaste do esmalte dentário, broncoaspiração). O principal sintoma é a APNEIA. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS REGURGITAÇÃO DO LACTENTE (REFLUXO GASTROESOFÁGICO FISIOLÓGICO) A regurgitação do lactente (refluxo gastroesofágico fisiológico ou “happy spitter”) ocorre especialmente nos primeiros meses de vida, e em geral finda antes do final do primeiro ano. O critério de Roma IV apresenta as seguintes recomendações para o diagnóstico da regurgitação do lactente. Ocorrência obrigatória das duas características seguintes em um lactente saudável com idade entre três semanas e 12 meses: 1) Dois ou mais episódios diários de regurgitação por pelo menos três semanas; 2) Ausência de náuseas, hematêmese, aspiração, apneia, déficit de ganho ponderal, dificuldade para alimentação ou deglutição, postura anormal. Pesquisa de anormalidades anatômicas no trato gastrintestinal superior, como obstrução gástrica ou má-rotação, deve ser considerada quando as regurgitações são acompanhadas de vômitos desde o início do período neonatal ou persistem após o primeiro ano de vida ou, ainda, quando há associação com vômitos biliosos. A regurgitação do lactente desaparece espontaneamente. Orientação e apoio aos familiares são princípios fundamentais do tratamento. VÔMITO (contração ativa do esôfago/estômago) - tem alguma doença de base (com alterações perceptíveis) X REGURGITAÇÃO (contração passiva, na qual o conteúdo gástrico acaba voltando). A regurgitação do lactente pode estar associada à cólica que se caracteriza com choro por tempo excessivo. DOENÇA DO REFLUXO GASTROESOFÁGICO NO LACTENTE Os principais sintomas gastrintestinais são regurgitações frequentes, acompanhadas muitas vezes por vômitos propulsivos, recusa da alimentação, irritabilidade, baixo ganho ponderal, sintomas disfágicos e alterações de sono. SINAIS DE ALARME Vômitos biliosos Febre Perda de peso ou parada no crescimento Convulsões Sangramento gastrointestinal Letargia Hepatoesplenomegalia Síndrome genético-metabólica Diarreia Vômitos frequentes em jato Mal estado geral Distensão abdominal Início dos vômitos após 1 ano de idade Macrocefalia/Microcefalia Disúria EXAME FÍSICO No exame físico pediátrico, voltado para o RGE e para a DRGE, o principal é a coleta das medidas antropométricas. PESO COMPRIMENTO/ESTATURA PERÍMETRO CEFÁLICO DIAGNÓSTICO História clínica cuidadosa, avaliação do estado nutricional e exame físico constituem os dados mais importantes para caracterizar o refluxo gastroesofágico. O pediatra deve estar atento aos sinais de alerta que indicam a doença do refluxo. Uma história de curta duração, sintomas clínicos mais expressivos e ausência de comprometimento do estado nutricional podem sugerir DRGE não complicada. Em casos de sintomas crônicos ou recorrentes, envolvimento de múltiplos sistemas e acometimento do estado geral e MONICK LEBRÃO MEDICINA- TURMA XIV (FASAVIC) 3 nutricional impõe-se o diagnóstico de DRGE de maior gravidade. Existem vários métodos diagnósticos que permitem diagnosticar e quantificar a severidade da DRGE; a escolha depende das particularidades clínicas de cada paciente. É fundamental o conhecimento das indicações e limitações de cada método diagnóstico. CINTILOGRAFIA GASTROESOFÁGICA Constitui método não invasivo que permite tempo de observação maior que o EED porque a radiação é muito menor. Consiste na ingestão do radionuclídeo tecnécio 99 (Tc-99) acrescido ao leite para, sob gama- câmara acoplada a um computador, captar os episódios de RGE durante trinta a sessenta minutos e documentar eventualaspiração pulmonar quatro ou mais horas após. Esse método possui baixa sensibilidade para a confirmação diagnóstica do RGE. PHMETRIA ESOFÁGICA DE 24 HORAS Consiste na monitoração do pH intraesofágico e constitui importante método para quantificar a frequência e a duração dos episódios de RGE, o tempo de exposição ácida do esôfago no período analisado (índice de refluxo) e correlacionar os episódios de refluxo com a posição adotada pelo paciente (supina ou decúbito), a refeição e os sintomas clínicos. IMPEDANCIOMETRIA INTRALUMINAL A impedanciometria intraluminal acoplada à pHmetria é um método novo e promissor que avalia a capacidade de transporte do bolus ingerido, possibilita a detecção de refluxo ácido e não ácido e a análise do conteúdo refluído (líquido, gasoso ou misto). A impedanciometria intraluminal registra as alterações de impedância elétrica na luz esofágica por meio da passagem do bolus ingerido, podendo ser líquido ou gasoso. ENDOSCOPIA DIGESTIVA ALTA O exame endoscópico do sistema digestório alto é de extremo valor no sentido de detecção da DRGE com esofagite, permitindo o diagnóstico de esofagite erosiva, esôfago de Barrett (substituição do epitélio escamoso normal do esôfago pelo colunar metaplásico) e estenose péptica. TRÂNSITO ESÔFAGO-GASTRODUODENAL O EED ou estudo contrastado de esôfago- estômago-duodeno é um procedimento que avalia o tamanho, a forma e a funcionalidade do esôfago, estômago e uma porção do intestino delgado. É indicado principalmente em casos de distúrbios digestivos (como refluxo gastroesofágico ou vômitos). MANOMETRIA ESOFÁGICA A manometria do esôfago (esofágica) é um exame que permite ao médico avaliar as pressões do esôfago (órgão do aparelho digestivo que faz o transporte dos alimentos da boca ao estômago), sendo no momento o padrão ouro para o estudo do peristaltismo (movimentos coordenados que permitem a progressão do bolo alimentar) e das alterações da motilidade do esôfago. NENHUM EXAME COMPLEMENTAR É SUPERIOR À CLÍNICA DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL O diagnóstico diferencial com outras doenças pediátricas que cursam com sintomas de vômitos deve ser sempre ponderado, levando em consideração a faixa etária. O acompanhamento da evolução após as orientações é essencial. MONICK LEBRÃO MEDICINA- TURMA XIV (FASAVIC) 4 TRATAMENTO O tratamento da DRGE visa fundamentalmente a resolver ou diminuir a intensidade dos sintomas, melhorar a qualidade de vida e prevenir as complicações da DRGE. MEDIDAS POSTURAIS Manter o lactente em posição vertical por trinta minutos após as mamadas. A posição supina, mesmo com elevação de 30°, mostra-se inadequada. Considerando o número de refluxos ácidos, apontam vantagens da posição prona e do decúbito lateral esquerdo como medidas posturais antirrefluxo mais efetivas. Atualmente, nos primeiros meses de vida, não se recomenda a posição prona em virtude do risco mais elevado de ocorrência de morte súbita. MEDIDAS DIETÉTICAS As modificações dietéticas propostas para reduzir os episódios de refluxo devem respeitar as necessidades nutricionais da criança. As recomendações dietéticas para crianças maiores e adolescentes são baseadas naquelas definidas para adultos. Devem ser evitados alimentos que potencialmente diminuem o tônus do EIE ou aumentam a acidez gástrica, como alimentos gordurosos, frutas cítricas, tomate, café e bebidas alcoólicas e gasosas. As crianças e adolescentes obesos apresentam DRGE com maior frequência e gravidade, sendo recomendada a redução do peso corpóreo e dietas com menores teores de gordura, como medidas terapêuticas antirrefluxo. O fumo, mesmo passivo, promove maior número de relaxamentos transitórios do EIE, tendo impacto na piora da DRGE. Considera-se o leite materno o melhor alimento anti- refluxo. TRATAMENTO MEDICAMENTOSO PROCINÉTICOS O emprego dessas medicações está baseado na capacidade destas drogas de aumentar o tônus do EEI, melhorar o clearance esofágico e promover aceleração do esvaziamento gástrico. Há um grupo de pacientes com RGE que apresenta melhora, no que tange a ocorrência de regurgitações e vômitos, porém, quando se toma os dados relativos à pHmetria esofágica, não se comprova ação consistente na redução do número e duração dos refluxos ácidos. METOCLOPRAMIDA / BROMOPRIDA A metoclopramida é uma droga que acelera o esvaziamento gástrico, aumenta a pressão do EEI e diminui a ocorrência de regurgitações e vômitos. Alguns estudos, igualmente, demonstram melhora dos parâmetros na pHmetria esofágica após o tratamento. Há uma elevada frequência dos efeitos colaterais que podem atingir mais de 30% dos pacientes, tais como: irritabilidade, sonolência excessiva e, por vezes, sinais de liberação extrapiramidal. A dose tóxica é muito próxima da dose terapêutica. A metoclopramida foi retirada do mercado brasileiro por iniciativa do fabricante. A bromoprida é um fármaco muito similar à metoclopramida, com substituição apenas do radical bromo no lugar do cloro. As drogas possuem a mesma farmacocinética e os mesmos efeitos colaterais, o que limita igualmente o uso dessa medicação. DOMPERIDONA É uma droga anti-dopaminérgica que exerce efeito procinético moderado. Efeitos colaterais que incluem cólicas e irritabilidade excessiva, são descritos com o uso deste tipo de fármaco. O uso de domperidona deve ser individualizado, reservado para casos selecionados, especialmente aqueles que cursam com bradigastria, por curto intervalo de tempo e sob supervisão cuidadosa do pediatra. ANTI ÁCIDOS ANTIÁCIDOS ALGÍNICOS São produtos que promovem proteção física contra o ácido na mucosa gástrica. O componente alginato-sódio forma um precipitado viscoso que reveste a superfície mucosa, sendo que o bicarbonato de sódio contido nas formulações é convertido em dióxido de carbono. Eventualmente são utilizados para o desconforto. ANTAGONISTAS DO RECEPTOR DE HISTAMINA H2 Inibem o receptor H2 das células parietais gástricas. Essas drogas incluem a cimetidina, MONICK LEBRÃO MEDICINA- TURMA XIV (FASAVIC) 5 famotidina e ranitidina. Essa última é a mais largamente utilizada em lactentes. Doses de 5 mg/kg a cada 12 horas produz efeito antiácido razoável nas primeiras semanas de utilização, porém comumente, há perda de ação com o transcorrer do tempo (taquifilaxia), situação em que o aumento das doses não melhora a eficácia do tratamento. O pediatra deve estar atento, quanto à ocorrência dos efeitos colaterais ou a perda de eficácia após algumas semanas de utilização. INIBIDORES DE BOMBA DE PRÓTONS São indicados quando houver esofagite erosiva, estenose péptica do esôfago ou esôfago de Barrett, condições incomuns em lactentes. São igualmente selecionados para o uso em pacientes neurológicos ou com de doença respiratória crônica associada à DRGE. O bloqueio da secreção ácida dos IBP mantém o pH intragástrico acima de 4. Há um efeito adicional de diminuição do volume do conteúdo gástrico e do material refluído. Diferentes IBPs como omeprazol, esomeprazol, lansoprazol, pantoprazol, rabeprazol e dexlansoprazol foram utilizados em estudos de lactentes com DRGE por serem liberados para uso após um ano de idade. Atualmente, o FDA autorizou nos EUA, o emprego de omeprazol e esomeprazol para lactentes a partir do primeiro mês de idade desde que apresentem quadro comprovado de esofagite. CONSIDERAÇÕES FINAIS 1) Regurgitação no lactente (refluxo gastroesofágico fisiológico) é comum e o pediatra deve estar atento aos sinaisque possam indicar DRGE (destaca-se que dificuldade de se alimentar e desaceleração de ganho ponderal são mais indicativos de DRGE do que choro excessivo do lactente); 2) Crianças maiores e adolescentes verbalizam com maior clareza os sintomas da DRGE, tais como: epigastralgia, pirose e sensação de plenitude gástrica; 3) Os exames subsidiários são complementares e sua solicitação está na dependência de qual aspecto da DRGE o pediatra quer avaliar: exame radiológico (anatomia do trato digestivo alto); relação evento de refluxo com sintoma (pHmetria esofágica de 24 horas ou impedâncio-pHmetria esofágica) e para constatação de esofagite (endoscopia digestiva alta); 4) Medidas gerais como postura, correção de erros alimentares e estilo de vida devem ser sempre instituídas na abordagem dos pacientes com RGE; 5) Em lactentes, nos primeiros meses de vida, deve-se incluir a possibilidade de alergia alimentar no diagnóstico diferencial da DRGE; 6) Em lactentes, o tratamento medicamentoso só deve ser instituído após comprovação mais clara da ocorrência de DRGE; 7) Pode ser iniciado tratamento empírico para DRGE (anti-H2 ou IBP) em crianças maiores e adolescentes que apresentam sintomatologia moderada sem sinais agravantes ou de complicações; 8) Pacientes com asma persistente grave e nítida exacerbação do quadro respiratório no período noturno podem receber tratamento empírico para DRGE com IBP pelo prazo de 3 meses.