Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.
left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

left-side-bubbles-backgroundright-side-bubbles-background

Crie sua conta grátis para liberar esse material. 🤩

Já tem uma conta?

Ao continuar, você aceita os Termos de Uso e Política de Privacidade

Prévia do material em texto

<p>FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Reitor Lauro Morhy Vice-Reitor Timothy Martin Mulholland Elizabeth Cancelli EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Diretor Alexandre Lima CONSELHO EDITORIAL Airton Lugarinho de Lima Camara, Alexandre Lima, Estevão Chaves de Rezende Martins, A cultura do crime e da lei José Maria G. de Júnior, Moema Malheiros Pontes einhardt Adolfo Fuck, Sérgio Paulo Rouanet e Sylvia Ficher 1889-1930 Série Prometeu 40 anos Humanidades Editora Universidade de Brasília AUTORIZADA DR</p><p>Equipe editorial: Airton Lugarinho (Supervisão editorial): Rejane de Meneses (Acompanhamento Wilma Gonçalves Rosas Saltarelli (Preparação de originais); Gilvam Joaquim Cosmo e Wilma Gonçalves Rosas Saltarelli (Revisão): Raimunda Dias (Editoração eletrônica); Paulo Andrade (Capa) Copyright 2001 by Elizabeth Cancelli Impresso no Brasil Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília SCS Q. 02 Bloco C 78 Ed. OK andar 70300-500 Brasília DF Tel: (0xx61) 226-6874 Fax: (0xx61) 225-5611 Há alguns anos, quando assisti ao filme A estra- editora@unb.br nha família de Antônia, emocionei-me muito, porque Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação vi retratada na tela do cinema, de forma muito próxi- poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a ma, a maneira de viver e encarar a vida sempre pre- autorização por escrito da Editora. sente na casa de meus avós maternos. Solidariedade, Ficha catalográfica elaborada pela dignidade e respeito à individualidade foram valores Biblioteca Central da Universidade de Brasília que fizeram daquela casa um centro de convívio que alimentou com força espiritual não só o núcleo famili- Cancelli, Elizabeth ar, mas parentes, vizinhos e estranhos que lutavam C215 A cultura do crime e da lei: 1889-1930 / Elizabeth pela vida em uma pequena vila de descendentes de Cancelli. Brasília : Editora Universidade de Brasília, alemães no interior do Rio Grande do Sul. Meus avós 2001. 268 p. (Série Prometeu) e aquela forma de viver há muito se foram, mas fica- ram entre nós os princípios pelos quais traçaram a ISBN: 85-230-0596-X trajetória de suas e de outras vidas. E é a esta família e Edições Humanidades. à sua memória que fez perpassar valores fundamentais 1. Crimes Brasil. 2. Violência social Brasil. da vida privada para a esfera pública que dedico este 3. Crimes contra a moral e os bons costumes. I. trabalho. Solidariedade, dignidade e respeito à indivi- II. Série. dualidade são fundamentais para se chegar à liberda- CDU 343.971(81) de, nem que seja pela resistência. 343.54(81) Às estranhas famílias.</p><p>Sumário AGRADECIMENTOS, 9 INTRODUÇÃO, 11 CAPÍTULO 1 CRIMINOSOS E NÃO CRIMINOSOS NA HISTÓRIA, 19 CAPÍTULO 2 E A CIÊNCIA DESCOBRE AS SOM- BRIAS": CRIME E LEI, 53 CAPÍTULO 3 "QUANDO O RELÓGIO DO CORAÇÃO ANDA MAIS ATRASADO DO QUE O DO os CRIMES DE PAIXÃO, 97 CAPÍTULO 4 CONSTRUINDO ESTIGMAS, 149 CAPÍTULO 5 EM TORNO DOS DIREITOS DO ESTADO, 193 CAPÍTULO 6 A ORGANIZAÇÃO LEGAL, 231 ANEXO, 251 BIBLIOGRAFIA, 255</p><p>Agradecimentos Três instituições foram fundamentais para que pudesse ser concluído este trabalho. O CNPq, que fi- nanciou a pesquisa e assim possibilitou meu desloca- mento a vários pontos do Brasil; a Unicamp, que me acolheu em pós-doutorado e segue me recebendo como parte do grupo de pesquisa História e lingua- gens políticas: razão, sentimentos e sensibilidades ligado ao Departamento de História; e a UnB, em várias instâncias, desde o Departamento de História, ao Decanato de Pesquisa e Pós-graduação e a Editora da UnB, onde sempre, gentilmente, fui incentivada a publicar. No mundo universitário, onde escolhi trilhar meu caminho profissional, tive a sorte de fazer grandes amigos. Pessoas que muito me ensinaram e de quem quero sempre estar perto. A todas elas, velhos e novos sujeitos em minha vida, gostaria de fazer um agrade- cimento muito especial pelo prazer e pelo imenso divertimento que tem sido estar por perto, apesar dos tempos difíceis e instáveis por que passamos nas uni- versidades públicas brasileiras. No caso específico deste livro e, é claro, livran- do-os de toda a responsabilidade sobre o resultado, quero agradecer pelo incentivo sempre dado por Ema- nuel Araújo, que não chegou a ver este livro publica-</p><p>10 Elizabeth Cancelli do, Sônia Lacerda, Airton Lugarinho, Geralda Dias, Vavy Pacheco Borges e Stella Bresciani. A Regina Weber e Maria Luiza Martini, profissio- nais sensíveis, devo minha gratidão por terem aberto seus braços e seu coração em um momento difícil da Introdução vida em que precisei ausentar-me da UnB. Aos meus orientandos e alunos, obrigada pelas discussões e por compartilharem idéias; em especial, a Gustavo Flávio, personagem de Rubem Fonseca, Getúlio N. Cunha, Rosana Botelho, Daniel Barbosa A. estava sentado à mesa de um restaurante carioca, ten- de Faria e Roberto Baptista Júnior pela assiduidade na tando fazer com que Amanda percebesse como era intelectual. importante aprender a ver, e como escrever pressupu- No Rio, em São Paulo, em Porto Alegre e em nha sempre fazer opções. Depois do período em que Brasília, ainda pude contar com uma coleção de ami- insistiu para que ela observasse o casal que sentava ao gos excepcionais. Em especial, devo agradecer aos lado, Gustavo virou-se e disse: que apoiaram minhas decisões, respeitaram minha individualidade e ajudaram a retraçar caminhos. Os No fim eu iria dizer a você que o papel do escritor Rieth sabem disso. é fazer o leitor ver o que ele, o escritor, viu. E o que o escritor vê não deve ser necessariamente a realidade convencional. Essa nossa conversa não era para ensinar você a ver o que pode ser visto, mas a ver o que não se vê. Você não pode adotar a semiótica de médicos e policiais, que através dos sinais de que dispõem precisam descobrir uma Pois bem, se me permite o leitor, gostaria de ex- plicar que, a exemplo do que propõe Gustavo, durante todo o tempo em que construí o texto deste livro, fiz opções e pretendi, de certa forma, buscar ver que 1 Rubem Fonseca, E no meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto, São Paulo, Companhia das Letras, 1997. Gustavo Flávio também foi personagem de Rubem Fonse- ca em Bufo & Spallanzani.</p><p>.2 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 13 se vê. Tentei encontrar uma cultura que os livros vam presentes na vida pública, influenciando, deci- história e de ciências sociais estão minimizando ou dindo, marcando posições, mas não necessariamente esquecendo. Espero ter vislumbrado caminhos dife- ocupando acento no parlamento. Um caso parecido renciados, e peço desculpas pelos tropeços. com o que aconteceu com a burguesia empresarial, a Aos que acham que enveredo pelo campo do Di- exemplo do que tão bem demonstra Ângela de Castro reito, da repressão e da violência, em um entendi- Gomes em seus mento restrito, adianto: estou fazendo História Políti- Se Euclides da Cunha dizia-se abandonado pela ca, buscando a história das idéias no Brasil. Por isso, o República de "mentalidade curta", certamente seu ponto de partida deste livro é o de que a violência, posicionamento não poderia ser generalizado, até por- o crime e o Direito fazem parte da política. Ou melhor que a amplidão, a e a intensidade dos de- dizendo, na medida em que a violência é a negação da bates políticos que tomaram lugar na assim chamada própria política, estudar os instrumentos de violência e República Velha evidenciavam por meio da dinâmi- repressão de uma sociedade é mergulhar no interior da ca das instituições, do grande número de jornais e da cultura política desta Por esse motivo, este quantidade de publicações, além da agressividade das trabalho tenta analisar como os homens criam suas discussões que a caracterização simplista que grande concepções de sociedade e as relacionam com a vio- parte da historiografia dá ao que chama de uma Repú- lência em alguns dos seus aspectos. Acima de tudo, blica de "oligarquias", de de "café-com- como constroem a cultura que reprime, institui e ad- leite" é inadequada, porque, antes de mais nada, es- ministra os instrumentos de violência social e institu- conde, ou tenta esconder, por meio da caricatura, do cional. mau emprego de conceitos e do reducionismo, o fato Pesquisar os vários discursos que compuseram a de que se faziam construir vários projetos diferentes, e cultura do crime e da lei no Brasil da passagem do muitas vezes divergentes, de construção social, insti- século XIX para o XX pressupõe, a priori, que não tucional e política do Brasil. aceitamos o entendimento historiográfico de que os Ao adentrarmos a vida pública e buscarmos a intelectuais teriam sido alijados da vida pública com o história das idéias políticas que desenharam as insti- advento da República, mesmo que algüns publicistas e tuições brasileiras, percebemos que a definição de pro- agitadores do movimento republicano tenham desapa- recido por completo. Ao contrário, atuantes, eles esta- 3 Ângela de Castro Gomes, Burguesia e trabalho: política e le- gislação social, 1917-1937, Rio de Janeiro, Campos, 1979. Mais tarde, a autora vai desenvolver estas idéias em seu artigo A re- 2 Sobre estes pressupostos, baseio-me, principalmente, em três pública oligárquica e o liberalismo dos empresários, in: S. Sergio trabalhos de Hannah Arendt: A condição humana, A vida do es- Silva e Tamás Szmrecsányi, História econômica da Primeira pírito e Eichman em República, São Paulo, Hucitec/Fapesp, 1996.</p><p>14 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 15 jetos para a construção de uma nação e de suas insti- servadores, liberais radicais ou darwinistas sociais, tuições passava por questões que pretendiam pensar a gente como Sylvio Romero que abominou o comtis- essência dos problemas do homem universal e do Brasil mo,4 ou Tobias Barreto, dos intelectuais alemães, e que, portanto, pressupunham uma complexidade que ou Evaristo de Moraes com suas tendências socialis- foi bem mais longe do que a disputa entre pretensas tas, ou ainda Elysio de Carvalho, militante anarquista, "oligarquias" (sic) cafeeiras com militares jacobinos; ou fazem parte deste universo multifacetado que deixou de "coronéis" (sic) com idealistas políticos. marcas profundas e definitivas na constituição do ima- Não seria no seio da caracterização teórica dos ginário nacional, ainda hoje, como na época, carregado primeiros 41 anos de República como uma "República do legado romântico em que a herança e a tradição Oligárquica" que poderíamos encontrar respostas que ordenam a nação e desenham marcos autoritários. pudessem nos levar a uma compreensão política e Se não houve uniformidade de pensamento e cultural do Brasil daquela época. Buscamos, isto sim, esta foi uma grande riqueza que a historiografia não reconstruir alguns dos discursos que matizaram o pe- poderia deixar escapar existiram eixos que demar- ríodo e, a partir dos quais, evocavam conjuntos de caram de forma muito clara os valores étnicos e mo- valores éticos e morais que forjaram o entendimento rais, a idéia de sociedade e mesmo a de nação que da lei e da sociedade. vinham sendo As diferenças encontradas na formulação das questões que os homens do século XIX e início do século XX fizeram ao construir a cultura do crime e 4 "a influência positivista não aparece aí por acaso; uma influên- da lei referente ao período perfizeram a complexidade cia que não implicava longe disso uma fidelidade estrita à da formulação dessa sociedade. Procuramos recuperar doutrina de Comte. Aliás, desde 1880, o sucesso dessa doutrina no corpo do estudo as diferenças de visões de mundo, se deveu muito menos aos seus discípulos ortodoxos como os porque optamos teoricamente por resgatar essa cons- agrupados na igreja positivista do Rio de Janeiro do que aos seus propagandistas mais livres (...)". Daniel Pécault, Os inte- trução e não sucumbir ao chamamento costumeiro de lectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação, São identificar grupos e, por intermédio deles, montar Paulo, Ática, 1989, p. 34. 5 conjuntos uníssonos de pensamento. Dessa forma, Sobre esta questão, vide os estudos de Maria Stella M. Brescia- entendemos, pudemos perceber as divergências e as ni, charme da ciência e a sedução da objetividade, in: Sergio semelhanças, mesmo entre aqueles a quem se costuma Silva e Tamás Szmrecsányi, op. cit., e M. Stella M. Bresciani, O cidadão da República, Revista da USP, liberalis- classificar como pertencentes a uma mesma filiação mo/neoliberalismo. n° 17, março-maio de 1993. Com enfoque ideológica, como Sylvio Romero e Tobias Barreto e diferente e conclusões até conflitantes com as de Bresciani e os assim chamados adeptos da "Escola do Recife". com este estudo, mas chamando a atenção para a diversidade, é Comtianos, anticomtianos, spencerianos, liberais con- interessante o trabalho de Lúcia Lippi Oliveira, A questão nacio- nal na Primeira República, São Paulo, Brasiliense, 1990.</p><p>16 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 17 Diante do país, impuseram-se cada vez mais as difícil e tortuoso, mas achamos que conseguimos ver, "razões de Estado" para que se forjasse o nascimento como Gustavo impôs a Amanda, alguns caminhos de um tipo de sociedade ou civilização e um tipo de diferenciados e pistas para questões que julgávamos indivíduo com determinadas peculiaridades culturais. insolúveis quando problematizadas aos moldes do que Quando se partiu do princípio de que os homens não vinha sendo normalmente produzido a respeito do seriam iguais, não nasceriam iguais e possuiriam ca- papel das elites, do cotidiano das ruas, dos julgamen- racterísticas sociais, culturais, psicológicas e físicas tos, da condição feminina, dos crimes comuns e polí- que os tornavam diferentes, partilhou-se do determi- ticos, da vadiagem e do trabalho, enfim, de uma gama nismo estreito da teoria lombrosiana e de seu princípio de questões correlatas que tiveram como pano de fun- básico da desigualdade nata entre os homens. Como do debates acirrados na área do Direito e da política, identificar essas peculiaridades, perguntavam-se os em torno da ciência e da verdade. homens daquele tempo? O desafio era desvendar o As divergências e as semelhanças de idéias que, lado oculto do comportamento humano, ou seu com- absolutamente, não perfizeram um conjunto uníssono portamento irracional. de pensamento também não estavam "fora de lugar", No interior desses debates, vimos a intensidade não eram fruto de sincretismo grosseiro, tampouco como se pensavam dicotomias construídas, como en- poderiam ser classificadas como restritas ao eixo de tre o moderno e o atrasado, por exemplo, tão estreita- debates sobre raça e meio. Num ambiente de inova- mente relacionadas às várias idéias de construção das ções e controvérsias, surgiram, sim, ramificações de identidades Por isso, fizemos um exercício pensamento que construíram nova tradição intelectual, de desmonte dos discursos políticos, especialmente cultural, jurídica e política no Brasil. Divergia-se pe- dos bacharéis em Direito, porque, embora eles tenham sadamente entre tradições de pensamento que não se sido a da intelectualidade brasileira a este tempo, circunscreviam ao racismo versus liberalismo, mas foram curiosamente silenciados pela historiografia ou, infinitamente mais, entre o positivismo e o liberalis- quando muito, taxados de "bacharelescos". mo, como enfatiza Stella Bresciani em seus estudos; Partimos do princípio de que vários dos alicerces mas vários positivismos e liberalismos, talvez tantos intelectuais e culturais que fundamentam grande parte quanto tenham existido em outros lugares e que, espe- da vida social e política brasileira giraram em torno de cialmente em relação aos positivismos, impregnaram, questões que pretendemos focar neste estudo. Fugi- de forma irreparável, não só a cultura do crime e da lei mos de modelos teóricos predeterminados e tratamos no Brasil, mas a noção de mundo de tantos direitistas de percorrer caminhos turvos e pouco conhecidos. Foi (falsos), socialistas e anarquistas e outros messiânicos que, de forma geral, respaldados por aquilo que cons- 6 M. Stella M. Bresciani, cidadão da República. truíram e constroem como ciência e verdade, preten-</p><p>18 Elizabeth Cancelli dem salvar o mundo, nem que para isso tenham de extinguir ou estigmatizar meia humanidade. Salvê- mo-nos deles, de sua infalibilidade e de seu autorita- rismo! Capítulo 1 Criminosos e não criminosos na história Janeiro de 1890, Carta de um malandro Marcos Valente Meu caro redator - Ao velho órgão democrático da Paulicéia, inexpugnável baluarte das liberdades pú- blicas (como ainda se usa dizer em momentos sole- nes como este em que tenho a honra de achar-me), ao Estado, ex- Província de São Paulo, é que eu de preferência dirijo a presente carta em que venho pro- pugnar os meus sagrados direitos de cidadão ocioso. Como sabeis, acha-se travada na imprensa desta capital, animada contenda a propósito de um trecho do relatório do cidadão Alberto Bran- dão, diretor da Fazenda do Estado do Rio de Ja- neiro, no qual trecho do relatório, pede seve- ra repressão da ociosidade e que sejam os libertos de 15 de maio compelidos ao trabalho nas fazen- das que abandonaram. Ora, eu sou malandro e preso-me disso. A minha ocupação habitual é não me ocupar de cousa nenhuma; todos os meus afazeres resu- mem-se em não ter o que fazer. Infelizmente não me sobra tempo para outra cousa.</p><p>20 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 21 Não trabalho; em primeiro lugar porque não Com que direito? Pergunto eu. Com que di- gosto; em segundo, porque não preciso; em ter- reito vem a sociedade meter-me nas mãos uma ceiro, porque não quero. Considero o trabalho cousa degradante. Or- enxada e forçar-me a ganhar pão com o suor do gulho-me de ser o rei da creação; sinto indizível meu rosto, se não peso à sociedade, se não leso, se não ofendo, se não incomodo? orgulho em lembrar-me que fui feito à imagem e semelhança de Deus e não me canso de contem- Não ando bebendo pelas ruas; as poucas chuvas que apanho, enxugo-as em casa, em famí- plar, embevecido, a estampa com que abrem as edições ilustradas das Fábulas de La Fontain, no lia, entre a minha amante e meu gato. que se vê a figura nobre do homem elevando-se Não brigo, não furto, não jogo. (E que jogasse: dominadora e soberana entre toda a bicharia con- jogaria que é meu.) Não ofendo nenhum dos direitos dos meus gregada e humilde. Quem trabalha suja, caleja as mãos, maltrata o cônscios de civilização, respeitando-lhos todos, corpo, deforma a obra mais bela e mais perfeita de como faço, tenho o direito de empregar o meu tempo e de dispor do meu bento corpinho como Deus. eu entender melhor. Logo a sociedade, a Lei Ouço dizer que é pelo trabalho que se adqui- tem o dever de deixar-mo cabular à vontade, de re a riqueza; mas dou-me bem sem ela. Não tenho empregar o tempo e matá-lo e de dispor do cor- ambições. po... a descansá-lo. Um naco de carne, um copo de água fresca, Tenho, pois, o direito de ser malandro e uma xícara de café, um bom cigarro, uma rede e exercito-o conscientemente. um sorriso meigo de mulher eis tudo o que de- sejo. Ora, todo este pouco eu o possuo e basta. Conseguintemente, a Lei que viesse coagir-me Para que trabalhar? a teme- ao trabalho seria iníqua e estúpida; iníqua porque rosa e sanhuda, a tutora da sociedade a Lei. atentaria contra a minha liberdade de ação, estú- pida porque revelaria ignorar a ineficácia absoluta De modo o mais simples e honesto; herdei qua- dos esforços humanos e que segundo a doutrina tro patacas de meus pais e sou feliz com o belo sexo. Além disso, como tenho um grão de espírito cristã, o próprio trabalho é vaidade, visto que só o não é amar e servir a Deus. Ora, eu sou cristão e uma porta de fecundia, não há quem me convide pela graça de Deus. para jantar e não me dê cigarros. Assim tenho vivido os meus trinta e um anos Advogue, pois, senhor redator, a causa sa- e meio de existência planetar, e não pretendia cralíssima dos amigos do dolce far niente, garanta nem pretendo, louvado Deus modificar tão agra- a vadiação aos vadios, como deve garantir e ali- dável sistema de vida. Leio agora que se projeta ás não garante - o trabalho dos trabalhadores. obrigar-me a trabalhar. A sociedade tem tanto o direito de impedir-me de não fazer nada, como teria o de obstar a que eu fizesse alguma cousa.</p><p>22 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 23 Direito ao trabalho, direito à vadiação; são estrutural de implantação de uma ordem iguais e igualmente respeitáveis. Isto é, associa a imposição da ética do trabalho ao Protesto, pois, em nome da República, isto é, da liberdade, contra a projetada lei de repressão à controle social. E, segundo, quando confrontada com vadiagem. a realidade, a partir do século XIX, em que a dinâmica Deus nobilis hoec otia fecit do espaço urbano se torna cada vez mais intensa, ela Vede, senhor redator, que além dos argu- reconhece que tudo o que se relaciona com o crime mentos expendidos, tenho a meu lado o latim. passa a ser de interesse da sociedade como um todo e Saúde e fraternidade. "componente integrante" do do cidadão. Um Das duas vertentes, não excludentes, por assim dizer, Quando Marcos Valente escrevia esta debochada caberiam interpretações para a existência da carta de carta ao jornal O Estado de S. Paulo, o novo Código Marcos Valente, já que a vagabundagem ocupa o lu- Penal de 1890 ainda não havia sido aprovado, mas a gar do ilícito e se contrapõe à disciplina do trabalho. vagabundagem, de longa data, e de maneiras diferen- Embora essa aproximação com a temática do ciadas, é bem verdade, vinha sendo enquadrada como crime e do ilícito esteja presente na historiografia e ela assunto criminal. Um lugar na sociedade a ser norma- nos narre, analise, introduza e até pontifique crimes e tizado. criminosos, falta à historiografia a construção sobre o que se relaciona de fato a esse mundo criminal. Ou Mas como um transgressor confesso, um vaga- seja, faltam-nos trabalhos que busquem no crime bundo, um malandro, vinha a público questionar se sua vida estaria ou não permeada pela ilícita atitude de conjunções que produzam sobre da) a sociedade um optar pelo descumprimento da Lei? Como Marcos todo diferenciado de imagens, uma vez que este "componente integrante" do dia-a-dia o crime e seus Valente poderia ganhar espaço na primeira página do criminosos, para nos referirmos mais uma vez ao tra- jornal O Estado de S. Paulo para retorquir contra a "imposição de uma nova (sic) ética do trabalho"? A historiografia brasileira mais recente, de certa 2 Argumento defendido por Sidney Chaloub, em seu Trabalho, lar forma, tenta responder a essa Primeiro, quan- e botequim: o cotidiano dos trabalhadores na Belle São Paulo, Brasiliense, 1986, compartilhado por Maria Alice Rezen- do admite que à última década do século XIX e às de, in: Berenice C. Brandão et alii, A Polícia e a força policial duas primeiras décadas do século XX corresponde um no Rio de Janeiro, PUC, Rio de Janeiro, 1981, Série Estudos. 3 período "terminantemente decisivo do longo processo mais conhecido trabalho, e provavelmente o mais importante, sobre crimes na historiografia é o de Boris Fausto, Crime e coti- ano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São Paulo, 1 Brasiliense, 1984. Neste livro, um dos pontos fundamentais da Marcos Valente, Carta de um malandro, Estado de S. Paulo, análise de Boris é o de que acontece a "naturalização" do crime São Paulo, anno XVI, n° 4.442, 18 de janeiro de 1890. no cotidiano da vida paulista.</p><p>24 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 25 balho de Boris Fausto embora constituinte, faz par- te, nas investidas da História, da realidade que se pre- madas, pelo ponto de partida da normatização, por uma ideologia do tende exógena de uma cultura, quer na forma de im- posição, quer na forma de normatização. Da maneira Trata-se de olhares múltiplos que ignoram os como os estudos têm sido montados, torna-se extre- crimes e os criminosos a partir de seu princípio fun- mamente difícil compreender a medicalização e a dante. Ou seja, buscam nas manifestações de precon- patologização social, senão a infindável criação de ceito social especialmente contra negros e imigrantes tipos sociais estigmatizados a partir do e o contingente populacional pobre ou estigmatizado final do século XIX e princípio do século XX, uma ou na lógica do trabalho os procedimentos que deter- vez que os estudos apresentam quase que invariavel- minam práticas sociais que nortearão a repressão, a mente o crime como lugar marginal do social. punição e o controle. Daí a infinidade de investidas no É surpreendente que, embora a historiografia bra- mundo das instituições, da disciplinarização e da me- sileira, nos últimos 15 anos, tenha procurado novas dicalização como tentativas de para o Brasil temáticas, abordagens e conceitual, suscitando uma do século XX e final do XIX as realidades encontra- vertente enorme de indagações que contribuíram para das por Michel Foucault em seus estudos, sem que amadurecimento intelectual da produção histórica, haja um olhar atento ao mundo que se cria em torno ela tenha construído o mundo de análise dos crimes e do crime e dos criminosos. Na realidade, são investi- dos criminosos assentada fundamentalmente no as- das históricas que se debruçam de uma forma exógena pecto da dinamização econômica e social e da proleta- sobre a criminalidade, o controle, a repressão e am- rização (ou da lumpem proletarização) advindas do biente urbano. E não sobre o crime propriamente dito fim da escravidão, da industrialização e da imigração e sua simbiose com o criminoso. Procura-se localizar em massa,4 quer essas questões estejam ou não infor- a patologização social brasileira ignorando sua cons- trução e a de seus novos paradigmas. São construções 4 de História que ignoram o elevado racismo incorpora- O melhor exemplo é o importante trabalho de Boris Fausto. do por Nina Rodrigues e seus discípulos ao introduzi- Martha de Abreu Esteves, no seu livro, Meninas perdidas, inicia sua análise histórica com palavras do jurista José Viveiros de Castro sobre questões sexuais, para dizer que as preocupações do jurista se achavam em um "contexto onde se organizava a pátria Martha de Abreu Esteves, Meninas perdidas: os populares e o livre e republicana e vivencia-se um espetacular aumento demo- cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. gráfico (...) resultante, principalmente, da imigração (...) de es- 5 cravos libertos (...) e da intensificação da imigração estrangeira". Como em Margareth Rago, Do cabaré ao lar: a utopia da cida- Premia-se a ideologia do trabalho como fundante de qualquer de disciplinar. Brasil (1890-1930), Rio de Janeiro, Paz e Terra, prática social, e não há qualquer referência ao novo olhar que 1985, e Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexuali- bipartidariza a sociedade em criminosos e não criminosos. Cf.: dade feminina em São Paulo (1890-1930), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.</p><p>26 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 27 rem a Antropologia Criminal no Como, por SOS indivíduos. Uma corrente que encontrará no Brasil exemplo, Chaloub pode afirmar que os processos que estuda "revelam de forma notória a preocupação dos terreno fértil para sua disseminação e seu aprofunda- mento. agentes policiais e jurídicos em esquadrinhar, conhe- cer, dissecar mesmo os aspectos mais da Não é compreensível como a historiografia bra- vida cotidiana", sem se deter sobre a construção dos sileira pode ignorar a simbiose8 entre as várias especia- paradigmas que apontam para a patologização social? lidades de conhecimento, em especial as teorias alie- É como tentar entender a fala sem ter noções básicas nistas, a Psiquiatria, a Sociologia, a Estatística e, por da língua. fim, a própria Criminologia, que estabeleceram novas Crimes e criminosos, é certo, constituíram-se, de verdades conceituais e novos standarts morais a partir alguma forma, como parte relevante da história da de meados do século XIX; portanto, a compreensão do humanidade. Foram também alvo de repressão, puni- homem contemporâneo e da fundamentação de seus contornos de loucura/sanidade e de crime/não crime. ção, controle. Mas, com advento da modernidade, tornaram-se objeto de estudo. Primeiro, com o nasci- Pierre mostra como, sob a influência de mento da Criminologia propriamente dita, que se de- Pinel (1809), se delineou um primeiro esboço de An- bruçará sobre os aspectos não-legais do crime, suas tropologia Criminal. Depois, Gall enuncia que os de- litos recebem seus caracteres da natureza e da condi- causas, suas correlações e sua prevenção, e que terá, no século XVIII, seus primeiros representantes: Beccaria, ção dos indivíduos que os cometem, e Pritchard Jeremy Bentham, Samuel Romlly, John Howard, etc. formula a teoria da moral sanity, que dá o status de Depois, no século XIX, é muito importante frisar a loucos morais aos criminosos. Lucas publica em 1857 existência de uma corrente bastante forte de pensado- res a da Escola Positiva e a da Antropologia Crimi- 8 E não apenas relacionamento com outras práticas de disciplinari- nal que se dedicará à especulação científica, basi- zação como dá a entender Maria Clementina Pereira Cunha ao camente no princípio da neutralidade de Comte afirmar que "O alienismo, a medicina social, a engenharia, assim sobre a inscrição da predisposição ao crime nos diver- como a polícia e todo um conjunto de instituições, conjugam esforços em direção à edificação de uma sociedade higienizada, livre da peste e do perigo, que reproduza em seu interior a ima- 6 "Nina Rodrigues dará início a uma verdadeira escola através de gem vitoriosa da ordem burguesa", in: Maria Clementina Pereira suas aulas de Medicina Legal na Universidade do Rio de Janeiro, da Cunha, O espelho do mundo; a história de um asilo, da qual fizeram parte, entre outros, Afrânio Peixoto, Leonídio São Paulo, Paz e Terra, 1986, p. 27. Note-se, entretanto, que na Ribeiro e Arthur Ramos", in: Getulio Nascentes da Cunha, Cáftens historiografia recente este é o único estudo que relaciona o alie- e polacas: a estigmatização do judeu como "flagelo social" (1889- nismo e a criminologia, além de ressaltar a importância, tanto de 1942), Brasília, tese de mestrado, mimeo.. 1993, p. 80. 9 um como de outro, para uma nova percepção social. 7 Voltam-se muito para a penalogia. Pierre Darmon, Médicos e assassinos na Belle São Paulo, Paz e Terra, 1991.</p><p>28 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 29 o Tratado de degenerescências físicas, intelectuais e preceitos científicos sobre as entranhas da mente, cujo morais da espécie humana, e Morel, o médico alie- ponto de partida é o da existência do criminoso nato, nista, com sua teoria da degenerescência, dizia que ou seja, de uma espécie de memória genética insti- tuinte do mundo agora bipartidarizado entre crimino- sob a influência de nocividades diversas, de ori- SOS e não sejam eles mentalmente sãos gem patológica (aumento da tuberculose e da sífi- ou lis) ou social (industrialização, urbanização, paupe- rismo, desregramento de costumes, alcoolismo, O apogeu dessa construção é atingido espe- tabagismo), as forças do mal preponderariam do- cialmente na Itália e acabou por levar à fama o ravante sobre as forças do bem, e a humanidade médico Cesare Lombroso¹4 e os juristas Enrico Fer- sofredora, já no declive da degenerescência, não teria nada mais a oferecer além de uma grande 12 O Dr. Lucas teria enunciado pela primeira vez, em 1847, a quantidade de frutos secos, "imbecis", "histéri- noção de hereditariedade criminosa, mas é Lombroso quem cos", "cretinos", cuja multiplicação anunciaria o anuncia uma obra de grande impacto publicada em 1857: Traité des degenéscences physiques, intellectuelles et moralles de l'es- fim dos tempos, (....) o criminoso seria, portanto, pèce humaine, in: Pierre Darmon, op. cit., p. 41. apenas um simples produto da 13 Luis Antônio Francisco de Souza tenta fazer uma ligação entre Criminologia e crime. Peca em seu excelente trabalho, entre- Fortemente influenciados por Darwin, os cientis- tanto, por não conseguir descolar-se dos preceitos da historio- tas do século XIX de Morel, Casper grafia recente e ignora o caminho dos criminologistas, no senti- e Wislow) estudam ainda a fisionomia dos criminosos do de adentrar a mente e construir o mundo bipartidarizado. Afirma, erroneamente, o caráter do elemento racial como único e as relações entre crime e fundante da Criminologia, que somente a posteriori incorpora- Esse é, por assim dizer, o caminho que precedeu ria conhecimentos de outras áreas. Na ingenuidade de suas co- o advento da Escola Positiva de Direito e o da Antro- locações, conclui que, "na prática, o discurso criminológico pologia Criminal, criada no mesmo século XIX. Com mostrou-se flexível na incorporação ou adaptação de todo o tipo elas, o tempo se organizará ou pensará se organizar de nova abordagem (que) foi apenas para garantir sua perma- nência dentro dos quadros institucionais". Luis A. Francisco (portanto se construirá) numa sociedade composta dos Souza, São Paulo, polícia urbana e disciplinar: a Polícia eixos da criminalidade ou da Fun- Civil e a ordem social na Primeira República, São Paulo, USP, da-se uma espécie de narrativa mítica assentada em tese de mestrado, mimeo., 1992, p. 247. 14 Lombroso era professor de Psiquiatria e Antropologia em Tu- rim. Introduziu a noção de que os crimes possuem múltiplas 10 Cf.: Pierre Darmon, op. cit., p. 40-42. causas. Embora os pressupostos de Lombroso tenham dado 11 Idem, ibidem, p. 43. Em 1968, salienta o autor, o alienista Des- margem a manifestações racistas das mais radicais, "por nature- pine apresenta um longo estudo dos criminosos em seu Tratado za Lombroso era, dizia-se, de uma imensa bondade. Praticava a sobre a loucura, e o alienista inglês Maudsley, em Mental res- caridade, não fazia mistério de suas idéias socialistas e inflama- ponsability, dizia que a loucura moral seria um mal hereditário. va-se como um jovem por todas as grandes causas. Conta-se</p><p>30 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 31 e Raffaelo por exemplo. A força do dade que apresenta, em seu conjunto, um verdadeiro mito criado pela Escola Positiva e pelos seus seguido- inventário ético e ainda inédito sob o ponto de vista res alastrava-se pelo mundo afora e fazia com que, já em 1896, o pernambucano Clóvis Bevilácqua escre- Deve-se refletir sobre a função sim- vesse Criminologia e Direito, baseado nas teses da bólica e ideológica da justiça criminal, dos parâmetros Escola Positiva, e que Afrânio Peixoto escrevesse a morais por ela delimitados à sociedade, da singulari- dade dos costumes rituais, da linguagem e das manei- sua Epilepsia do Direito, em 1899, mesmo ano em que acabou sendo fundada no Brasil a Associação ras, das linhas de separação entre o proibido e o per- Antropológica de Assistência Social. mitido, a partir de uma realidade que não se circuns- Assim, como pensar espaço urbano brasileiro creve ao estritamente criminal, mas que, neste mo- mento, inicia a dividir o mundo em constituído de abstraindo-se quase que inteiramente do fato de que os novos paradigmas científicos, nos marcos da mitoló- sujeitos criminosos e não criminosos, como forma de organização cultural. gica Escola Positiva, informam práticas sociais que, no mínimo, se instituíram sobre a repressão, a punição Leve-se em conta, para refazer esse caminho, e o controle. Ou melhor. como recuperar os planos do que, no âmbito do Direito, a presença da Escola Posi- tiva se tornava, já no final do século XIX, cada vez traçado cultural de uma sociedade ignorando o seu mais evidente. Até então, era a Escola Clássica de próprio traçado? Torna-se necessário partir para uma análise que Direito, com seu princípio de livre-arbítrio, que ins- truía o olhar sobre o mundo criminal. Mas sinais evi- pretenda recuperar os símbolos sugestivos dessa reali- dentes da diminuição de sua influência já se fazem notar muito no Brasil, especialmente na que na noite de 18 de outubro de 1909 ele foi tomado por um formulação do Código Penal de Ficavam pa- mal-estar cardíaco quando soube da execução do anarquista Fer- tentes neste código os novos contornos teóricos trazi- rer. Morreu algumas horas depois de uma crise aguda de assis- dos pela Escola Positiva, embora o código ainda apre- tolia", in: Pierre Darmon, op. cit., p. 39. 15 Ferri foi professor em Bolonha, Siena, Piza e Roma. Deu aulas sentasse, em sua formulação, muitos dos princípios em Bruxelas e na École des Hautes Études, em Paris. Em 1908, fundantes da Escola Clássica. De toda forma, come- esteve na América do Sul (Uruguai, Argentina, Chile e Brasil). çava-se a olhar o mundo através deste olho de crimi- Foi deputado e chegou a ser eleito senador. Sua maior obra foi Sociologia Criminal e, é muito importante dizer, negou o livre arbítrio e o correlato de responsabilidade moral. 17 O Código de 1890 "trouxe os avanços da ciência penal. Ali- 16 Garofalo era professor da Universidade de Napoli e foi senador mentou, no plano doutrinário, expressivas contribuições e per- em 1909. Juntamente com Lombroso e Ferri, compunha o trio mitiu que suas teorias dessem lugar a exposições originais e fe- mais famoso da Criminologia e da Escola Positiva, da qual fo- cundas". Gerson Pereira dos Santos, Código penal, R. ram fundadores. Limongi França (coord.), Enciclopédia Saraiva de Direito, V. XV, São Paulo, Saraiva, 1977.</p><p>32 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 33 nalização, isto é, ter na esfera da prática do crime, a tência a suas ações. Criminosos e não criminosos se partir do próprio paradigma científico, uma realidade diferenciariam fundamentalmente por suas diferenças que não se apresentava mais como exógena sob o bioantropológicas. Dividindo os homens em vários ponto de vista da constituição cultural. Provavelmente tipos, dos quais cada um revelaria uma tendência ina- pela presença incompatível de ambas as visões é que o ta, total, parcial ou mínima, o olhar da Escola voltava-se Código Penal tenha se transformado em um docu- totalmente para o indivíduo do crime e para o seu mento tão cheio de imperfeições jurídicas, falhas téc- comportamento. O exame criminal não seria mais nicas, omissões. sobre o ato, mas sobre o indivíduo. Um homem, ou As diferenças entre ambas as escolas eram gri- um conjunto deles, era capaz agora de ser analisado tantes. Os postulavam, em primeiro lugar, por recursos e métodos das ciências naturais por meio que as condições socialmente determinadas conduziam de uma orientação empírica e positiva. Portanto, ao comportamento desviado, razão pela qual todo "mais verdadeira" e contrária à postura eminentemente indivíduo podia apresentar um comportamento desvia- "filosófica" da Escola Clássica, de tradição iluminista, O objeto da reflexão teórica não seria o autor, o que rechaçava a investigação das causas individuais criminoso, mas o ato criminal em si. Assim, os olhos na apreciação convencional do criminoso, de sua valo- deveriam estar voltados para a relação da sociedade rização negativa, já que, para efeito de diagnóstico, com o indivíduo por meio da ação, ou seja, procura-se deveriam imperar as causas sociais. Para efeitos da o tratamento do crime (daí o surgimento da penalo- pena, a Escola Positiva, em vez do castigo ao crime, gia). A saída da comunidade social para livrar-se do propunha a defesa social preventiva ou repressiva ao problema criminal seria, por isso, reativa, já que a criminoso. ação se converteria em um delito ao romper o contrato A introdução da Escola Positiva no século XIX, social. Para efeitos de diagnóstico, os males que leva- por isso, marca uma grande ruptura. Além do caráter riam ao ato criminal seriam sociais. A pena convertia-se individual do criminoso, ela surgia com a convicção em castigo pelo crime. de seu caráter sociológico. Na gênese do crime, esta- Já a Escola Positiva viaja por outros caminhos. vam também nuanças introduzidas por causas climáti- Impôs, cada vez mais, um rígido determinismo em cas e sazonais: o bócio, as influências da cidade, da que homens cunhados biológica e socialmente de de- imprensa, da densidade demográfica, da imigração e terminada maneira seriam impulsionados sem resis- da emigração, a privação, o álcool, o Uma espécie de inserção do homem ao complexo 18 Especialmente por intermédio de seus principais representantes: ambiente urbano. Formulações que se adaptavam per- Beccaria, Bentham e Von 19 Cf. Siefried Lamnek, Teorías de la criminalidad: una confron- tación 20 Pierre Darmon, op. cit., p. 65.</p><p>34 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 35 feitamente às latentes mudanças sociais que aconteci- instâncias criminais pela moralidade e pelos costumes. am no Brasil. A análise positiva se encaixaria bem Surgem também três sujeitos novos no mundo crimi- num país que, além de tudo, na virada do século XIX nal: o cáften profissional, o menor infrator e o menor para o XX, tinha a notícia de que estava sendo invadi- abandonado. do por formas inovadoras de crimes e contravenções. Havia ainda ambientes nos quais a prática crimi- No Rio de Janeiro e em São Paulo, essa realidade era nosa se generalizava entre os do local. muito evidente. Eram, principalmente, os bares, as pensões e os clu- A presença das quadrilhas, por exemplo, era uma bes. Muitos clubes funcionavam, na realidade, como grande Organizavam-se nos subúrbios, de Eles atendiam todas as classes sociais e, maneira a criar uma identidade própria e diferenciada, apesar das batidas policiais, tinham endereço conheci- como uma espécie de sociedade repousada sobre a Sobre o Jogo do Bicho, depois de surgido no Rio cumplicidade. Além de agirem em bandos há relatos em junho de 1892, também São Paulo teria iniciado da existência de pelo menos uma quadrilha de pun- seu ciclo de incursão nessa roda ilegal, em 1896. guistas e "chacadores de otários" que teria vindo a Como o jogo, a prostituição era outra obsessão social. São Paulo diretamente de Buenos usavam Os bares e as pensões eram lugares privilegiados da apelidos e nomes falsos (Boca Torta, Frango Amarelo, Girafa, Mulatinho...), situação que provavelmente lhes auferia uma espécie de áurea de A maior parte dos crimes era contra o patrimônio. Havia, en- tretanto, um número assustadoramente alto de crimes 24 Em São Paulo, o Sportman Club, na rua São Bento, 34; o Clube contra os costumes, o que denotava uma obsessão das dos Políticos, na José Bonifácio, 41; o Círculo Paulista, na Ma- rechal Deodoro, 6-A; e no mais refinado deles, o Clube dos Gi- rondinos, na Marechal Deodoro, 8. In: Guido Fonseca, op. cit., 21 Guido Fonseca, Crimes, criminosos e criminalidade em São 25 Paulo (1870-1950), São Paulo, Editora Resenha Tributária, Pelo antigo Código Criminal, a pena era de 15 a 60 dias de 1988, p. 51. prisão para funcionamento de casas de tavolagem e multa cor- 22 Relato de um escruchante (arrombador, portas) feito a Cândi- respondente, ficando livre de pena os jogadores. Mas o Código do Motta, então delegado de polícia. Penal de 1890 as penas de tavolagem, Art. 369, e pu- 23 Acreditamos que a identidade desses bandos deva ser diversa niu os jogadores. A Lei 1.099, de 18 de setembro de 1860, Art. daquela estudada por Michelle Perrot, a partir de 1902, para os I, § e completando disposições do Código Criminal, pu- "Apaches", primeiro bando de jovens parisienses, embora em nia loterias não autorizadas. A Lei 1.899 reprimiu, mais energi- muitos pontos o espírito desordeiro em comum possa ser busca- camente que o Código, o Jogo do Bicho (Lei 628, de 28 de ou- do. Cf.: Michelle Perrot, Os excluídos da História: operários, tubro de 1899, Art. 3), e a Lei 2.321, de 31 de dezembro de mulheres, prisioneiros, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, 1910, Art. 31, puniu com mais rigor as loterias não autori- zadas, dilatando a compreensão de loterias e rifas e a enumera- p. 315 e ção de pessoas punidas.</p><p>36 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 37 Neles, além do comércio sexual, havia tão dado a amores, que os escreveria em si mes- música, dança, jogos, bebidas e tóxicos. mo, pode ser verdadeiramente Assim, os crimes e as contravenções, inovadores ou não quanto à sua forma ou ocorrência, vinham A maneira diferenciada da percepção era cho- agora acompanhados de um novo olhar. A própria cante e se vadiagem deixa de receber "notas de comiseração dos Mas como seria o código sob o qual cidadão e a relatórios de polícia e presidentes de para sociedade, de uma forma geral, além de juristas, juízes, "revelarem uma visão da vadiagem como desvio advogados, promotores e criminosos, se espelhavam? comportamental e não como decorrência de contin- O Código Penal de que vigorou até gências Na solução científica, como bem foi dividido em quatro livros: dos crimes; das penas; observou satiricamente Machado de Assis, um crítico do no caso de um assassinato envolven- 30 Machado de Assis, A Semana, Rio de Janeiro, W. M. Jacson, do um tatuado: 2 (1910), in: Luis A. F. Souza, op. cit., p. 243. 31 Durante o período colonial, vigoraram as Ordenações do Reino. Quando os médicos examinaram este homem fi- Na época do descobrimento, vigoravam em Portugal as Ordena- zeram-no com Lombroso na mão, e acharam os ções Afonsinas, substituídas no século XVI pelas Manoelinas. sinais que o célebre italiano dá para conhecer um Em 1603, vigoraram as Ordenações Filipinas. As três ordena- criminoso nato (...) Eu, para completar o juízo ci- ções imitavam as Decretais de Graciano. Em 1830, feito à luz entífico, mandaria ao mestre Lombroso cópia das da Constituição de 1824, o Código Criminal (provavelmente o tatuagens, pedindo-lhe que dissesse se um homem primeiro Código Penal da América Latina efetivamente nacio- nal) assentou a precedência da conduta criminosa; a irretroativi- dade; a referência legal da pena e sua individualização; o aca- 26 Guido Fonseca chama atenção para o fato de que existiam bares tamento dos princípios gerais da igualdade formal perante a lei; servidos por mulheres e que também apresentavam espetáculos, a abolição dos açoites para pessoas livres; as torturas; as marcas como o Bela Veneza, no largo Municipal, hoje praça João Me- de ferro quente; das penas de confisco e de infâmia; a inviolabi- nezes, e que eram dados à prostituição. As principais pensões: lidade do domicílio; a garantia do direito de propriedade; o Palais Elegant, Palácio de Cristal, Maison Dorré, Maxim's. Cf.: princípio dos habeas-corpus, etc. Distinguiu crime da tentativa Guido Fonseca, op. cit., p. 77. de crime e autoria e participação. Chegou a inspirar a legislação 27 Boris Fausto, op. cit., p. 40. espanhola, mas misturou liberdade com arbítrio e preservou 28 Idem, ibidem, p. 43. E curioso que Boris Fausto tenha notado a valores patriarcais. Algo das Ordenações Filipinas permaneceu diferença, mas a atribua ao fato de que a questão vadiagem não no Império. Fator complicador, uma vez que as Ordenações tenha tido "maior importância em uma área por muito tempo se- eram um misto de despotismo e beatice híbrida e feroz que con- cundária do ponto de vista econômico e escassamente urbanizada". fundia crime com pecado. In: Gerson Pereira dos Santos, op. 29 Vide a este respeito a polêmica de Machado com Sylvio Rome- cit., pp. 463-466. ro, in: Lilia Moritz Schwartz, O espetáculo das raças: cientis- 32 Em 1932, foi feita a Consolidação das Leis Penais, e em 1940 o tas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930), São Estado Novo aprovou o novo Código, que entraria em vigor em Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 40. 1942. Cf.: Elizabeth Cancelli, O mundo da violência: a Polícia</p><p>38 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 39 das contravenções em espécie; e das disposições ge- Milton, e o substitutivo dos deputados João Vieira, rais. Estes estão divididos em títulos, que podem divi- Plínio Casado e Alfredo Pinto, de 1917. Todos relega- dir-se em capítulos e em artigos. Como criação da lei, dos ao esquecimento. Houve várias alterações no Có- a opção técnica do Código de 1890 é a da bipartidari- digo, e, pelo Decreto 22.213, de 14 de dezembro de zação, ou seja, existem crimes e contravenções, ao 1932, incorporou-se o trabalho do desembargador Vi- contrário do Código Francês, por exemplo, com sua cente Piragibe e fez-se a Consolidação das Leis Penais. tripartidarização, no qual há o crime, a contravenção e Esse aspecto híbrido em que se envolveu o Códi- o Como inovação, o Código assinala que o go Penal era importante não apenas porque a lei era crime não é apenas uma ação, mas pode ser também um parâmetro de princípios mais gerais que construía uma omissão. o olhar sobre a sociedade, mas porque regulava de A confusão era tanta em torno do Código Penal, fato o dia-a-dia das pessoas, desde a opção de culto que, em 1917, por exemplo, juízes e autoridades poli- até as atividades profissionais. Era assim que a polí- ciais comumente invocavam e aplicavam os artigos cia, por força da lei, não podia consentir que em 1910 sobre questões relativas a loteri- as e a rifas. Houve, até 1917, várias comissões na indivíduos arvorados em advogados, médicos, Câmara para a reforma do Código Penal: uma presidi- engenheiros, sem título legal e sem observância da por Galdino Siqueira; a de-1893, presidida por João dos preceitos regulamentares, se instituíssem Vieira de Araújo (um simpatizante declarado da Es- doutores e, à sombra do título usurpado, abusas- cola Positiva); a de 1896, presidida por Aristides sem escandalosamente da credulidade pública; que se realizassem publicamente sessões de espi- ritismo ou feitiçaria; e que, corum populo, exer- da era Vargas, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1993, cessem as suas profissões as cartomantes, as ni- p. 78. O Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, aprovou cromantes, os mágicos e outros o novo Código baseado no projeto de Alcântara Machado, re- visto pela comissão presidida por Francisco Campos e formada Ou, ainda, que fosse permitida a vagabundagem por Roberto Lira, Marcelino Queiroz e Vieira Braga. O código de "indivíduo maior de qualquer sexo, que sem meios vigorou até 1969. 33 João Vieira de Araújo, Código Penal commentado theorica e de subsistência, por fortuna própria ou por profissão, praticamente, Rio de Janeiro/São Paulo, Laemmert & Cia., arte ou ofício ocupação legal e honesta em que ganhar 1896. Na tripartidarização, a infração punida pela polícia é con- a vida, vague pela cidade em ociosidade". 36 travenção; com penas correcionais, delito; e com pena afictiva ou infame, crime. 34 35 Brasil, Annais da Conferência Judiciária, p. 300. Brasil, Annais da Conferência judiciária policial: convocado 36 O Decreto 6.994, de 19 de junho de 1908, Art. 52, alterou o por Aurelino de Araújo Leal, chefe de polícia do Distrito Fede- ral, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1918, p. 233. Art. 399 do Código Penal, substituindo a prisão celular por re- clusão para os vagabundos. Mas o menor de vinte anos, pelo</p><p>40 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 41 As novas conotações teóricas trazidas pela Escola mem criminoso considerado por todos os seus ca- Positiva evidenciavam-se, entretanto, pela questão que racteres psíquico-somáticos (...) daí vem a associa- passou a ser símbolo da virada de uma visão sobre o ção dessa ciência com a psiquiatria, às ciências delito, cultivada pela Escola Clássica, para uma visão penais, isto é, aos estudos do crime como ação sobre o criminoso, ponto de partida dos positivistas. humana, da pena como reação social e dos siste- Essa nova postura era a do enquadramento do louco mas de sua aplicação e execução por meios efica- zes que correspondem ao desideratum final da no Código Penal de 1890, porque o Art. 27 dizia que suprema função de punir que exerce o não eram criminosos "os que por imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil forem absolutamente inca- A própria noção de crime aparecia a partir do pazes de imputação" e "os que se acharem em estado criminoso propriamente dito, e não do ato criminal. de completa privação dos sentidos e de inteligência no Mas não se tratava de classificar O normal ou o dege- ato de cometer o crime". 37 Estava introduzida aí uma nerado. Uma nota de primeira página, em 5 de feve- questão que fazia mister o estudo da no reiro de 1890, d' O Estado é esclarecedora de como a Direito Penal, para que se pudesse, em função da Lei, noção de degeneração parte dos mistérios do cérebro. estabelecer quem era ou não "privado dos sentidos e O jornal chamava a atenção para o fato de que Lom- de inteligência no ato de cometer o crime". A conse- broso advertia que todos os homens de gênio possuí- qüência imediata desta nova postura era a de que se am caracteres de O próprio Lombroso colocava em xeque o caráter normativo da penalogia, instituira uma tabela para delimitação do criminoso. e recorria-se ao caráter explicativo. Aí, auxiliado pela Nela, os elementos anatômicos, os psicológicos e os Antropologia Criminal e pelos dados tão sociológicos. caros aos positivistas, é que poderia ser imputado o A tipificação feita quanto ao tipo de crimes tam- estado de loucura ou de irresponsabilidade. Segundo João Vieira de Araújo, o presidente da comissão que bém partia do lugar do sujeito. Especulava-se que havia duas divisões recorrentes na sociedade: os cri- fez reformas no Código em 1893: mes cometidos por atavismo (típicos das sociedades A Antropologia Criminal é uma síntese dos co- pouco esclarecidas e nas classes populares pobres, nhecimentos obtidos pelos processos científicos privadas de cultura e das luzes da ciência, como da observação e da experiência no estudo do ho- a martirização, as pancadas, as mutilações, os homicí- dios voluntários realizados por meio de machados, mesmo decreto, podia ser internado em Colônia Correcional cacetete); e os crimes cometidos por evolução, que se do Art. 52). 37 Também facultava a entrega dos loucos e dos criminosos às 38 João Vieira de Araújo, op. cit., p. 264. respectivas famílias e proibia sua punição enquanto neste estado 39 nome do médico italiano popularizava-se no país. A nota de se achassem. Artigos 29 e Estado de S. Paulo sobre o assunto era de 25</p><p>42 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 43 cometeriam nas sociedades civilizadas:40 envenena- mas muito mais civil em seus meios", pois substituiria mentos lentos e sistemáticos, como na administração a força e a violência pela astúcia e pelo dolo.44 progressiva de sugestões hipnóticas, a fim Não seria por acaso que, principalmente a partir de incitar o indivíduo ao crime, às vinganças pessoais dos anos 1910, os pareceres médicos passariam a ser refinadas, à chantagem, commérages mentirosos e a emitidos nos processos jurídicos com outros vícios de A pilhagem, o roubo, o furto Esses pareceres seguiam, para efeito de análise, vários de objetos de algibeira seriam também característicos tipos de classificação para os criminosos: a de Ferrus, das classes baixas; das altas, as concussões, universal- Despine, Nicholson, Valentini, Bettinger, Sallour, mente espalhadas por via do jogo de cartas, dos mantes, Hastings, Du Care, Virgílio, Morselli, Michux, Petit, nas transações de honra nas eleições, as especulações Hurel, Ascott, Wohlberg, Beltrani-Scalia, Munsloff, bancárias fraudulentas, o desvio de dinheiro público, a Le Bon, Arboux, Lacassagne, Fohring, Polleti, Lizt, venda de empregos, Krauss, Benedict, Prins, Topinard, Croses, Garofalo, A criminalidade atávica, enfim, seria o retorno de Badik, Laurent, Olrik, Aschaffenburg, Ingenieros, certos indivíduos, cuja constituição fisiológica e psico- M. L. Patrizi e o da União Nacional de lógica seria enfermiça, aos meios violentos na luta pela É interessante notar a classificação psicogenética vida, e suprimidos para sempre pela civilização. Daí o de Patrizi-Severi,4 reproduzida por Cândido Motta. homicídio, o roubo, o estupro. A criminalidade evoluti- Ela dá uma idéia dos parâmetros sob os quais se regi- va seria "igualmente perversa, talvez mais na intenção, am o saber médico e o jurídico: 40 Como bem demonstra a divisão relativa aos tipos de crime, o Os criminosos estariam divididos entre natos de saber da criminologia recaía sobre toda a sociedade e não ape- sentimento e criminosos de intelecto (ou loucos, nas sobre "toda uma fauna urbana empenhada em fraudar e re- dementes). sistir à disciplina, e que logo se torna objeto de saber específico, Os criminosos de sentimento, por sua vez, como de formas de intervenção inicialmente oscilantes entre a são apresentados nesta classificação psicogenética criminologia e o alienismo", como quer M. Clementina P. Cf.: M. C. Cunha, op. cit., p. 24. 44 Idem, ibidem, p. 15. 41 É interessante como a administração de veneno com o intuito do 45 Sobre esta vide Boris Fausto, op. cit., p. 100. assassinato nas classes altas influenciou a literatura policial da 46 Cândido Motta, op. cit., p. 40 e 41. época, mesmo onde a Escola Positiva não teve tanta influência, 47 Enrico Ferri era socialista, aliás, um dos maiores dirigentes como na Inglaterra. Vide a este respeito os livros de uma das socialistas europeus no início do século. Inscrevia-se na cor- maiores escritoras de policiais, Dorothy L. Sayers (Flemming), rente do socialismo positivista italiano. Professor de Direito em especialmente o seu Strong Poison. 42 Roma e em Piza, seria o único a ter sua classificação aceita no Cândido Motta, Classificação dos criminosos: introdução ao Congresso de Antropologia Criminal de Roma. Eles seriam os estudo do Direito Penal, São Paulo, J. Rossetti, 1925, p. 14 e 15. 43 Idem, ibidem. criminosos natos, os incorrigíveis, os habituais, os de ocasião e os alienados</p><p>44 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 45 em duas categorias: os intelectualmente incapazes sempre (...), e como a observação de todos os dias (deficientes, ausentes) e por exalta- o confirma, um olhar vítreo, frio, imóvel, algumas ção de sentimento. No primeiro caso, estão o de- vezes sangüíneo e injetado: nariz linqüente nato, delinqüente epiléptico, o débil aquilino, adunco, sempre volumoso; as mandíbu- mental, o delinqüente primitivo, o delinqüente de las fortes, as orelhas compridas, largos os zigo- hábito, o delinqüente de ocasião, e a prostituta. mas; crespos, abundantes e escuros os cabelos, a Entre os por exaltação de sentimento barba frequentissimamente rara: muito desenvol- há uma subdivisão entre emotivos vidos os caninos (...). 49 É de tal modo constante e ou de ímpeto, vítimas de uma força acentuado este tipo, que os assassinos diferem irresistível, e os passionais por pai- muito mais dos indivíduos normais do seu país do xão comum (conservação da espécie ou do indi- que estes diferem da população de um país etno- víduo, política ou religiosa e delin- graficamente qüentes intelectuais (sentimento intelectual). Quanto aos criminosos de intelecto, há três A argumentação relativa ao homem, e não ao categorias: impotentes intelectuais (idiotas, creti- crime, que está contida nesta construção repousa sobre nos, imbecis, surdos-mudos, etc.), os loucos reco- a inerência do crime na natureza do homem. O ponto (epilépticos, maníacos, paranóicos, etc.) e de partida era o de que, como só Deus é perfeito, o os inconscientes (sonâmbulos, sugestionados, sob delito é inerente, uma manifestação de inadaptabilida- efeito de delírio tóxico ou febril, os embriagados). de ao meio que se habita, um fenômeno solidário de Características físicas comuns seriam encontradas alguma perturbação social. "A estatística, tanto quanto entre os diversos grupos de criminosos, para qualquer o exame antropológico, nos mostra(ria), em suma, o das classificações A escola, entretanto, crime como um fenômeno natural, um fenômeno (di- não chegava a afirmar que algum sujeito seria um riam alguns filósofos) necessário, como o nascimento, criminoso por apresentar tais características, mas que a morte, a concepção". tais características, não exclusivamente anatômicas, eram predominantes nos criminosos. Assim é que base: a narrativa mítica assentada em preceitos científicos de memória genética instituinte. Garofalo, por exemplo, em vez Garofalo dizia que o primeiro fato incontestável é de um tipo antropológico, institui três classes de criminosos: o que nos cárceres se distinguem facilmente os la- assassino, o violento, o ladrão. Sobre Garofalo, vide Lilia M. Schwarcz, op. cit., p. 167. drões dos Estes oferecem, quase 49 E por aí segue um incontável número de características próprias dos assassinos. 50 In: Cândido Motta, op. cit., p. 89. 48 É importante notar que a escola, por intermédio de cada autor, 51 A inspiração para esta citação de Cândido Motta vem de F. cria interpretações diferenciadas que partem de uma mesma Puglia. Cf.: Cândido Motta, op. cit., p. 10 e 11.</p><p>46 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 47 Da mesma forma, a nítida obsessão pela observa- ção da moralidade e dos costumes encontra-se arrai- dos positivistas ao código baseava-se no princípio do livre-arbítrio da Escola Clássica. Dizia-se que uma gada na tradição da Escola Positiva, porque este tipo legislação apoiada no livre-arbítrio (...) de crime apresentaria, na verdade, o efeito de aber- ração dos instintos, com manifestações primitivas e teria como uma perigosa impunida- "matóidicas" que caracterizariam personalidades apar- de geral, uma vez que, para um cientista que utili- tadas do normal. Observa-se, neste particular, uma zasse os métodos da moderna análise psicológica recorrência sistemática dos positivistas às teorias (ou que penetrasse a mente), seria difícil respon- e às várias etapas do desenvolvimento der afirmativamente que o acusado estaria no sexual infantil no que se relaciona às fixações que gozo do redundar nas neuroses nas perversões. Pressupostos que ganhavam maior significação, na Era como salientava o editorial da Gazeta Médi- ca, em 1897: medida em que no próprio código o crime seria tanto mais grave quanto maior sua importância, ora do de- ver moral violado, ora do preceito social limitado pela Código Penal está errado, vê o crime e não moral, ou criminoso. De ordem secundária é por sem dúvida Com a introdução dessa inovação como visão de a natureza do delito. Antes de tudo a identificação mental do criminoso, pela inspeção médico-física mundo e no conjunto das leis penais, a maior crítica e sua qualificação à espécie que pertence é que interessa. 52 À medida que Freud vai publicando e ganhando notoriedade, Em última instância, diziam os adeptos da Escola juntamente com a Sociedade Internacional de Psicanálise, fun- dada em 1910, suas teorias são mais e mais incorporadas às Positiva que a definição de criminoso envolvia a análises dos adeptos da Escola Positiva e da Antropologia Cri- constituição de elementos anatômicos, psicológicos e minal no Brasil. A definição tanto dos tipos de crimes como o 53 Heleno Fragoso, ao criticar a Escola Positiva, diz que se cria uma ciência causal-explicativa, com forte aplicação do método 55 experimental, o que estaria em desacordo com a Ciência Penal, A citação é de Nina Rodrigues. Cf.: Mariza Corrêa, As ilusões na qual o estudo do Direito seria o da lei, e não o do criminoso. da A escola de Nina Rodrigues e a Antropologia no Por isso, os preceitos jurídicos do positivismo seriam os dados 56 Brasil, São Paulo, USP, tese de doutorado, mimeo., 1981(?), p. antropológicos e os estatísticos. Heleno Fragoso, Direito Penal e A questão social acha-se sempre presente nesta análise, trazida, Criminologia, in: Revista Forense, 153, ano 51, Rio de Janei- fundamentalmente, pela Sociologia. De uma certa forma, acre- ro, 1954, p. 49-53. dito que M. Clementina P. Cunha tenha desconsiderado esta 54 Sistemas mais ou menos amplos, subordinados ao ecletismo do questão ao afirmar, por exemplo, que: "Nessa ótica, o ambiente justo e do útil. João Vieira de Araújo, op. cit., p. 378. urbano será expressamente responsabilizado pela geração de um número crescente de 'degenerados', cuja origem não é</p><p>48 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 49 de criminosos por isso carregava, na medida em que faz parte da constituição física do negro, cuja raça instituía características físicas, princípio da heredita- é inferior por ter se conservado riedade. A falta congênita de senso moral, comum a assassinos e a ladrões, seria responsável pela imprevi- A medida dos cérebros brancos, segundo as aulas dência das das ações dos criminosos de Cândido Motta na Faculdade de Direito do Largo de natos, cuja ausência de senso moral se denunciaria São Francisco, pesa 1.534 gramas, dos negros 1.371 e pela insensibilidade manifesta perante o sofrimento e dos australianos 1.228. Estas diferenças de organiza- os danos causados às vítimas por seu ção física implicariam diversidade de caráter. Os ne- Quanto aos alienados, estes seriam antropologi- gros seriam sensuais, com tendência à imitação servil, camente idênticos aos criminosos natos (como nos falta de iniciativa, horror à solidão, à mobilidade. Te- casos de loucura, imbecilidade e epilepsia). E, embora riam o amor desordenado do canto e da dança, o gosto diferissem deles pela desordem intelectual e pelos invencível dos ornamentos e dos enfeites. Seriam sintomas psicológicos, possuíam um caráter psicológi- indiscretos, imprevidentes e preguiçosos. Em com- comum: uma anormal força impulsiva para os atos pensação, suas qualidades seriam apreciáveis: sensível criminosos provenientes de degeneração hereditária. a bons tratos, suscetível de uma grande dedicação, Seguindo esse caminho, as raças mereceriam es- sem prejuízo da capacidade para o ódio e para vingan- pecial atenção, já que carregariam as anomalias dege- ças cruéis. Enfim, com as qualidades e os defeitos do nerativas: homem Cada tipo de criminoso teria características espe- O prognatismo do branco é evidentemente um es- ciais.60 Os ladrões seriam mentirosos, por exemplo; o tigma de regressão do tipo ancestral; entretanto, ele criminoso nato, ou de instinto, apresentaria ausência hereditária de senso moral, cuja seria a moral ou econômica, mas atribuída, sobretudo, às determinações insensibilidade física e moral; o criminoso de ímpeto biológicas de hereditariedade". In: M. C. P. Cunha, op. cit., p. 26. teria imprevidência não hereditária, mas de momentâ- 57 Em Massachusetts, Estados Unidos, o princípio aceito do crimi- nea anestesia de sentimentos; e o criminoso de ocasião noso nato teria feito com que fosse proibido o casamento de seria apenas um fraco que não soube resistir às impul- epilépticos, alcoólicos e sifilíticos; na Pensilvânia, de sifilíticos, sões exteriores. gonorréicos, epilépticos, dipsômanos, tuberculosos e sujeitos à loucura hereditária; no Texas, de epilépticos. Um tal deputado Edgar teria apresentado, em Michigan, um projeto de lei para que todas as pessoas encerradas em casas de saúde por aliena- 58 Cândido Motta, op. cit., p. 31. ção mental, epilepsia e os condenados pela terceira vez pela lei 59 Idem, ibidem, p. 32, 33, 46-50. fossem submetidos à esterilização. Cf.: Cândido Motta, op. cit., 60 A educação atuaria não como elemento formador do caráter, p. 24 e 25. mas como elemento modificador.</p><p>50 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 51 Todo esse conjunto de fatores apresentado pela com que não pudesse haver margem para dúvidas. construção científica da Escola Positiva impunha ain- O código oficial de condutas era único, não dando da uma espécie de código de conduta normativa, tanto margem a normas de grupos sociais diferentes e dife- no que diz respeito ao criminoso, como no que se renciadas, principalmente no que se relacionava aos refere à Justiça, à Polícia (agentes repressivos e disci- crimes contra os costumes (estupro, sedução, atentado plinadores), aos médicos higienistas ou à sociedade ao pudor, libidinagem, etc.). como um todo. Mas essas questões, ao que parece, foram ignora- Assim, retornando ao nosso ponto de partida, se a das pela historiografia. Passou-se à observação da obsessão pela moralidade, por exemplo, fazia parte patologização, ignorando as raízes construtivas desta dessa visão de como entender a dimensão patologização, como se a mudança de paradigma no cultural da disciplinarização na Primeira República Brasil não houvesse existido. sem que se tome conhecimento dos paradigmas insti- Cumpre enfatizar que, do ponto de vista analítico, tuintes de uma "normalidade é impossível estudar o contexto criminal sem entender A influência da Escola Positiva no Brasil é in- que a partir do final do século XIX todo o processo contestável não só na reformulação do Código Penal, dos rituais, da simbologia, do pensar e da atuação dos em 1940, em plena vigência do Estado Novo, como atores e do inventário ético encontra-se assentado no no tipo de atuação jurídica, policial, psiquiátrica, pri- indivíduo, no seu comportamento e em preceitos de sional ou normativa da sociedade como um todo. Com uma narrativa mítica que institui um mundo constituí- o avanço dessa tendência, o saber sobre a normalida- do, fundamentalmente, de criminosos e não crimino- de, o crime e os criminosos passou a ser tido como SOS. As chamadas "classes perigosas", que tão facil- incontestável, na medida em que a utilização de certe- mente foram incorporadas ao jargão de nossa zas estatísticas, psiquiátricas, médicas e judiciais fazia historiografia, repousam também no saber da Medici- na Legal, que, próxima da Polícia e do Judiciário, se 61 Margareth Rago chega a dizer que "indícios de uma anormali- torna a grande coqueluche intelectual dos médicos na dade social, as práticas populares de vida e lazer dos trabalhado- res fabris, dos improdutivos, dos pobres, das mulheres públicas, virada do século XIX para o XX. Daí os estudos sobre das crianças que vagueiam abandonadas nas ruas vão se tornan- o criminoso, o alcoolismo, a epilepsia, a prostituição, do objeto de profunda preocupação de médico-higienistas, de a embriaguez e a alienação. Higienizar e moralizar as autoridades públicas, de setores da burguesia industrial, de fi- cidades, antes de tudo, significará combater a degene- lantropos e reformadores sociais, nas décadas iniciais do século XX", mas procede, no transcorrer de seu trabalho, como se a rescência do indivíduo para a coletividade, em nome construção sobre a questão da anormalidade não existisse. Cf.: da ciência e não do indivíduo. Margareth Rago, Do cabaré ao lar: a utopia da cidade discipli- nar. Brasil (1890-1930), São Paulo, Paz e Terra, 1985, p. 12.</p><p>Capítulo 2 E a ciência descobre as "consciên- cias crime e lei Mas falta muito para que o mundo inteligente seja tão bem governado quanto o mundo físico. Pois, embora aquele também possua leis que, por sua natu- reza, são invariáveis, ele não obedece a elas com a mesma constância com a qual o mundo físico obedece às suas. Se no processo a principal autoridade era o juiz; a retórica, o sujeito do espetáculo; e a imprensa, uma espécie de catalisadora de emoções, a criminalidade nas ruas não só refletia como era parte constituinte do princípio do sistema das normas estabelecidas pelo Direito no início da República. Ou seja, o texto jurídi- 1 Formulação de Esmeraldino Bandeira para definir os objetivos dos estudos de Enrico Ferri, in: Esmeraldino O. T. Bandeira, Estudos de política criminal, Rio de Janeiro, Typographia Leu- zinger, p. 236. 2 Charles de Secondat Montesquieu, espírito das leis, São Pau- lo, Martins Fontes, 1993.</p><p>54 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 55 e os efeitos jurídicos das regras eram, como costu- isso, o instrumento do método positivo por excelência. mam ser, práticos e direcionados para a aplicação Seu serviço, administrativo e subserviente à missão do social. Os agentes apontados como os responsáveis, Estado. Quanto a seus processos, eram considerados portanto a organização judiciária e policial -, inves- "tecnicamente Toda a técnica de investi- tiam-se de competência, ao mesmo tempo social e gação e distinção do objeto de cálculo do crime partia técnica, para exercer a legitimada visão do mundo da estatística, e a redução à unidade calculável permi- social. tia a ação sobre o fator criminal "determinado cientifi- O dia-a-dia da criminalidade, por isso, ficava camente". Isso queria dizer que, sob o ponto de vista muito além dos espetáculos produzidos apenas pelos do mal a ser combatido, não poderiam ser levantadas crimes de paixão, mas constituía igualmente um as- dúvidas, uma vez que o apoio científico tornava in- sunto palpitante e apelativo nos jornais e a razão de questionável sobre quem, por quê, como e onde deve- ser do aparato repressivo e vigilante. Longe de retratar riam atuar a lei e seus agentes. Um aumento nos núme- a banalidade do mal, esses espetáculos eram o retrato ros significava sempre um aumento na criminalidade. do prestígio do mal: o fascínio pelo proibido, pelo Não se pensava em atribuir o aumento dos números ao ilícito. acréscimo da eficácia policial ou da demanda cres- As taxas de criminalidade tendiam a ser mostra- cente do público em relação à presença policial. das num crescendo, e a preocupação social com a As inovações em termos de ação que viriam a ser presença do proibido era debatida aberta e largamente introduzidas pela estatística, entretanto, não estavam pela sociedade. Embora fosse médico e não jurista, chegando sozinhas. Faziam parte de um conjunto Nina Rodrigues, ao contestar a liberdade da vontade e maior de medidas e políticas que visavam não só ins- ao afirmar que a liberdade das ações humanas era trumentalizar a polícia, mas provê-la de um arcabouço apenas ilusória, apontava a tendência dos juristas en- científico. A estatística, por si só, criava, por meio dos volvidos com a Escola Positiva, que insistiam na ne- números, a sugestibilidade e a credulidade necessárias cessidade de estabelecer princípios preventivos e não à indução da ação. Ou seja, a estatística representava o repressivos para o crime. Intensificava-se uma cultura interesse ou a orientação das autoridades quando for- jurídica necessária à proteção dos bens e dos indivíduos. mulavam uma política criminal. Pela utilização das O rápido crescimento do Rio de Janeiro e de São análises de natureza física, biológica, sociológica e Paulo nos primeiros decênios do século fazia com que psíquica do homem, na verdade da Antropologia Po- o discurso protetor e alarmista da lei e da polícia, cal- sitiva, a ciência permitiria prever e planejar os aconte- cado na recente introdução dos dados estatísticos, chamasse a atenção para a necessidade de incrementar a vigilância sobre a população. A estatística era, por 3 Roberto Lira, O método estatístico, Ciência do Direito (revista de juízes e juristas brasileiros), ano I, tomo III, Rio de Janeiro.</p><p>56 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 57 cimentos que vinham sendo premiados pela análise a idéia de adotar métodos modernos de identificação estatística. Dados experimentais, nesse sentido, eram espalhara-se. Em São Paulo, no Rio Grande do Sul e fundamentais para que se pudesse promover a repres- no Estado do Rio inauguraram-se serviços de identifi- são, uma vez que ela representava o engajamento mo- cação em 1895. ral e jurídico do Estado, pois os dados antropológicos A Bertillonage tornar-se-ia a grande moda entre e os estatísticos perfaziam o preceito jurídico. os policiais e os médicos. Os parâmetros de excelên- A idéia de fazer um serviço de no cia de utilização do método eram Paris, Marselha, as Rio de Janeiro, baseado no sistema Bertillon, inaugu- principais cidades italianas e Buenos Aires. O médico rado em 1894 para funcionar apenas por um ano -, Evaristo da Veiga, chefe do Gabinete Antropométrico aconteceu em 1889 e veio ao encontro da tendência de- de São Paulo, em 1899, dava graças ao fato de terem dar suporte técnico e científico à Polícia e ao Judiciá- sido achados os instrumentos importados da Europa rio. O sistema era trazido da França e fora inventado que haviam se extraviado na alfândega e, portanto, ter por Alphonse Bertillon, em 1882, para a identificação sido possível inaugurar um gabinete de antropometria de criminosos por meio da Antropometria. Chefe do em uma pequena sala no andar superior da Cadeia Instituto de Investigação de Paris, Bertillon dividiu em três seu sistema de reconhecimento dos criminosos: 1) Os aparelhos importados eram de precisão. Havia medidas antropométricas da estrutura óssea; 2) descri- o mensurador de orelhas e o de pés, os compassos de ção das características do corpo (cabelos, olhos), da precisão e o antropômetro de Alfosso, inventado para estrutura mental e moral do indivíduo; 3) descrição tomar, simultaneamente, medidas de estatura, grande dos sinais peculiares, como tatuagens, deformidades, envergadura e diâmetro de cabeça. Aplicavam-se as cicatrizes, sinais, etc. medidas nas planchas modeladas de Bertillon e Na esteira dessa inovação científica no Brasil, ha- nos impressos, conforme a ordem das mensurações, via sido importante a fundação, em 1892, da Associa- estudo e a prática do mensurador, que seguiam à risca ção Antropológica de Assistência Criminal, que sugeria os modelos de classificação de Bertillon, menos no ao governo a instalação do Serviço Antropométrico.4 que dizia respeito à coloração da íris, pois achava-se E mesmo com a iniciativa do Distrito Federal abortada que, em virtude de nós, habitantes do Brasil, sermos pela precariedade das instalações e do funcionamento, constituídos basicamente de meridianos da Europa, africanos e americanos, não nos adaptávamos perfei- 4 Um serviço antropométrico foi fundado em Outro Preto, em 1893, e um serviço de identificação em Belo Horizonte, em de- 5 Evaristo da Veiga, Relatório do Gabinete Antropométrico de São zembro de 1893. Cf.: Leonildo Ribeiro, A identificação no Rio Paulo, sobre Augusto Perelli, assassino do dr. Mário Camargo, de Janeiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1932. São Paulo, edição particular, 1899, p. 5-7.</p><p>58 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 59 tamente à classificação de Bertillon pelo argumento 1910, e as modificações introduzidas nos serviços gradual da pigmentação policiais, em 1912, só aumentaram a ênfase dada aos Entretanto, havia falhas nos serviços prestados serviços de identificação e pelos paulistanos, porque, segundo o médico respon- Também o Gabinete Antropométrico da Reparti- sável, não havia aparelho disponível para se tomarem ção Central de Polícia do DF, criado em torno de com exatidão as dimensões cranianas, as mais impor- 1895, foi logo transferido para a Casa de Detenção, tantes dentro da antropometria, embora um pequeno onde havia duas secções: a de Antropologia e a de clinômetro, usado para a mensuração goniométrica do Fotografia. E os moldes do trabalho eram parecidos crânio (ângulos), existisse no Gabinete Antropológico com os de São Paulo, sendo que, quando Felix Pache- de São Paulo e fosse "indispensável" para o estudo de assumiu o Gabinete de em craniologia, porém inaplicável em um gabinete da- passou a ser obrigatória a identificação dos réus pre- quela Existia também um ergógrafo de SOS. Foi depois de 1910, entretanto, que a prática de Mosso, aparelho de medição da contractilidade mus- organização técnica policial de investigação foi siste- cular, mas estava com uma peça faltando o registra- matizada e os métodos passaram a ser prática corrente dor automático das contrações sem o qual o apare- nos lho se tornava imprestável. As prisões convertiam-se naturalmente em gran- De qualquer forma, o Gabinete dava sua contri- des laboratórios para os criminologistas. buição aos serviços de identificação. Inicialmente, Mas o que a princípio poderia apenas ser feito por eram as prisões os grandes laboratórios dos serviços meio do sistema Bertillon, logo depois da introdução de identificação, que, num primeiro momento, foram da datiloscopia por meio do sistema Vucetich de unicamente criminais. Em São Paulo, todos os presos da Cadeia, desde gatunos a desordeiros, passando por sentenciados e processados, tiveram mensurados e 9 Decreto 1.892, de 23 de junho de 1910, e o 1.342, de 16 de dezembro de 1912. anotados os seus "caracteres individuais, indeléveis 10 Passou a chamar-se Gabinete de Investigações e Estatística e imutáveis". Posteriormente, a iniciativa também Criminal em 1903, estava primeiramente ligado à Polícia, mas atingiu a todos aqueles que davam entrada nas pri- seria repartição autônoma, vinculada diretamente ao Ministério Tais medidas eram intensificadas em São Paulo, da Justiça e Negócios Interiores, entre 1923 e 1927. Cf.: Leonil- e a reorganização da Secretaria de Segurança, em do Ribeiro, op. cit, É nessa data, pelo decreto de 5 de fevereiro de 1903, que se dá a organização definitiva do Serviço de Iden- tificação do Rio de Janeiro. 6 Idem, ibidem. 11 Decreto 3.640, de 14 de abril. 7 Idem, ibidem. 12 Elysio de Carvalho, L'organisation et le fonctionnement du 8 Idem, ibidem. Service d'Identification de Rio de Janeiro, Biblioteca do Bole- tim Policial, n° XXVII, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914.</p><p>60 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 61 identificação de criminosos, criado pelo argentino Juan Vucetich, em 1891, passaria a ser feito por um 1 a identificação obrigatória de todas as pes- sistema considerado já que não se encon- soas detidas, com informações sobre idade, sexo, posição social e seu crime ou contra- trariam jamais duas pessoas com as mesmas impres- venção; datiloscópicas. Tais avanços científicos seriam 2 a organização dos inquéritos judiciários; definitivamente incorporados no Brasil a partir de 3 a inspeção fotográfica dos lugares dos cri- 1902 e, somados às novas metodologias técnico- mes, dos suicídios, dos acidentes, etc.; científicas de identificação, passaram a ser introduzi- 4 a verificação da identidade dos cadáveres; dos e usados Objetivava-se muito mais do que suprir a polícia como bureau técnico e de 5 a perícia das impressões, dos traços e de outros indícios materiais; suporte judiciário para o exercício da repressão, mas 6 a identificação civil; torná-la um observatório da criminalidade para o es- tudo da personalidade criminosa, da produção dos 7 - a organização da estatística criminal, policial e administrativa; crimes, da antropometria e de estudos Por 8 a direção da Escola de Polícia; esses motivos, na montagem do aparelhamento cientí- 9 a publicação do Boletim Policial; fico do crime, uma tríade tornara-se inseparável: os 10 a missão de acompanhar os trabalhos de estudos de Antropologia Criminal, os Serviços de técnica policial surgidos em outros Estatística e os Serviços de Identificação. Desde a estruturação policial de 1903, tratara-se Ao cumprir suas atribuições, nos vários docu- de copiar o modelo argentino de organização dos méto- mentos de identificação deveriam também constar o dos, adotado, tendo como fundamento o tratado de troca estado civil; um exame descritivo abrangente; as notas de informações assinado entre as polícias de Buenos cromáticas; a descrição das particulariedades indivi- Aires, La Plata, Santiago, Montevidéu e Rio de Janei- duais, das tatuagens e das cicatrizes das regiões visí- ro. Sob as ordens diretas da Chefatura de Polícia, veis; as impressões isoladas dos dez dedos; e a foto- Serviço de Identificação da Capital Federal tinha dez grafia de face e perfil reduzida a 1/7. atribuições básicas: Apesar da inovação do sistema Bertillon, essa es- truturação técnico-científica da ação policial e legal 13 A primeira identificação de um criminoso pelas impressões não prescindiria, no Brasil como no resto do mundo, digitais foi feita na Argentina por Vucetich, em 1892, quando da fotografia. Usada desde meados do século XIX foi condenada por assassinato Francisca Rojas. para a identificação de criminosos, ela acabou sendo 14 Elysio de Carvalho, L'organisation et le fonctionnement du Service d'Identification de Rio de Janeiro, p. 15 Idem, ibidem, p. 7.</p><p>62 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 63 superada mas não abandonada pelos sistemas de carteiras de identidade por Em 1920, a do- e Vucetich, porque ambos introduziram cumentação demonstra a complementação do serviço formas de classificação para a identificação dos cri- pelo fornecimento de carteiras de identidade, carteiras minosos, o que não era possibilitado pela fotografia. eleitorais, carteiras domésticas, atestados de bons Julgava-se, na época, que Serviço de Identifica- antecedentes, folhas corridas, indenizações, vistos em ção era importante porque proporcionaria, a partir de carteiras, retificações e segundas vias, num número sua implementação, além da pronta identificação do elevado para a época: cerca de 165 carteiras de identi- criminoso, a troca de informações entre as polícias dade e 19 de doméstica por Embora a iden- nacionais e internacionais e o cálculo da reincidência criminal. Como diria o médico Evaristo da Veiga: tificação obrigatória tardasse por vir no Brasil, a pró- pria Polícia reconhecia, ao final da década de 1920, que as provas de identidade estavam sendo tão cons- Em um país como o nosso, onde esse serviço tem sido descuidado, não raro terá acontecido que in- tantemente exigidas para o desempenho de qualquer divíduos sentenciados e foragidos das prisões te- função, que a obrigatoriedade quase existia virtual- nham sido presos por outros motivos, e de novo mente, mesmo que se pensasse ser "de grande vanta- restituídos à liberdade, pela falta do registro an- gem" que se tornasse obrigatória a identificação de operários, da mesma forma que ela existia para os condutores de veículos, vendedores ambulantes, car- A introdução desses serviços era também o pri- regadores e empregados meiro passo para que toda a população começasse a O conjunto de inovações ditas científicas mudava ser identificada e fichada. Assim é que, em abril de também o procedimento policial e o jurídico, com a 1907, se iniciou no Rio de Janeiro Serviço de Identi- finalidade de later-se mais profundamente na busca das ficação O que mais tarde seria o Gabinete de provas indiciais. No inquérito policial, os requisitos Identificação fornecia, em 1912, por exemplo, 62 básicos de investigação a serem preenchidos, nos ca- SOS de assassinato, eram: auto de descrição do local 16 Joaquim Albuquerque de da Faculdade de Direito do crime, corpo de delito no cadáver, auto de exame do do Recife, chefiou uma missão à Europa para, em vários países local do crime, auto de perguntas, despachos do chefe (França, Bélgica e Alemanha), estudar os "instrumentos antro- de Polícia, auto de busca e apreensão, auto da autópsia pométricos e suas aplicações". Cf.: AHN Gabinete do Minis- tro 8n-80 (Gifi). 19 17 Evaristo da Veiga, op. cit., p. 6. AHN Secretaria de Polícia do DF, Secção Fotográfica 6D- 18 155 (Gifi), quarta semana de fevereiro. Em 5 de novembro de 1931, seriam inauguradas as novas ins- 20 talações do Instituto de Identificação do Distrito Federal. Seu 21 AHN Secretaria de Polícia do DF 153 (Gifi). diretor era Leonildo Ribeiro. Octávio Ferreira Alves, Polícia de São Paulo, Revista de Crimi- nologia e Medicina Legal, ano I, n° 1, julho de 1928.</p><p>64 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 65 e interrogatório. inquérito preencheria os quesitos palmares e digitais que causaram grande revolução. da investigação judiciária. Até mesmo incêndios passaram a ser O que inicialmente vinha sendo feito pela obser- Nessas novas circunstâncias, o próprio Serviço vação dos agentes da lei passava agora a valer-se da tendia a adaptar-se. Manoel Antônio técnica. No exame do local do crime, a descrição mi- de Almeida, antes de escrever o seu de um nuciosa e o desenho do plano do local, com indicação sargento de milícias, assinalava em sua tese de douto- da colocação de móveis, portas, janelas, etc., foram ramento em Medicina, em 1855, que um relatório substituídos pela fotografia métrica e pela fotograme- médico-legal devia compor-se de: um preâmbulo Começava também a ser empregada a microfo- contendo nome, títulos e residência do autor, dia, hora tografia, principalmente nos estudos das particularida- e local do exame, nome da autoridade que requisitou o des dos documentos falsos e das escrituras, já que a médico e superintendente do exame, e dados sobre própria evolução da técnica fotográfica permitiu o mesmo exame, descrição com pormenores do objeto a observação de detalhes imperceptíveis a olho nu. a ser examinado e conclusões. Já em 1907, as condi- Introduziu-se, igualmente, a técnica de averiguação ções eram totalmente diversas, e tornara-se evidente a sobre a fisiologia da marca, estudo sobre o qual se integração dos serviços médicos, com o intuito de poderia, pelo exame de pegadas, chegar a uma série instrumentalizar a Polícia e o Judiciário, além de con- de indícios. E, além do auxílio da química nas análi- ferir-lhes o arcabouço técnico-científico. No formulá- ses, a Antropologia permitiu a constituição do retrato rio de auto de exame de corpo delito e do auto de falado, por meio do sistema de anotações de cada um exame cadavérico do Serviço Médico, os médicos dos traços fisionômicos introduzidos por Betillon, no deveriam proceder da seguinte forma: identificar os que passou a ser extremamente ajudada pelas fichas peritos e o escrivão; identificar o paciente ou o cadá- de identidade, constituídas pelas impressões digitais, pelas medidas antropométricas, pelas fotografias de 24 AHN Secretaria de Polícia do DF, Secção Fotográfica 6D- face e perfil, pelos sinais particulares e pela colorime- 155 (Gifi), fevereiro de 1912. tria (cor da íris e dos Sem dúvida alguma, 25 A Medicina Legal passou a ser lecionada no Brasil em 1832, não foram apenas avanços no estudo das impressões mas seu ensino prático só foi introduzido no final do século XIX. Os primeiros médicos nomeados como funcionários da Secretaria de Polícia da Corte foram registrados em meados do 22 Alfredo Niceforo, O romance policial e a investigação judiciária século XIX. Até então, os atos médicos legais (peritagens, lau- científica, Biblioteca do Boletim Policial, n° XXIII, Rio de Ja- dos, autópsias, verificação de morte violenta, etc.) eram feitos neiro, Imprensa Nacional, 1914, p. 5 e 6. o serviço de fotografia indistintamente pelos profissionais da Medicina. Cf.: Santos no local do crime foi introduzido, no Rio de Janeiro, em 1908. Filho, Lycurgo de Castro, História geral da medicina brasilei- CF.: Leonildo Ribeiro, op. cit. 23 Alfredo Niceforo, op. cit., p. 24 e 25. ra, São Paulo, Hucitec/Editora da Universidade de Paulo; 1991.</p><p>66 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 67 ver; anotar data; verificar se houve ofensa física ou pudesse ajuizar de seu acerto perante a lesão observa- morte; meio ocasionador; se foi ocasionada por vene- no, substância anestésica, incêndio, asfixia ou inunda- da. Quanto ao ferido, recolhidos todos os dados obje- ção; se a sede foi causa eficiente da morte ou se a tivos e subjetivos, deveria indagar-se de sua qualidade, constituição ou estado mórbido anterior do ofendido laços naturais (crimes familiares, maus-tratos domés- ocorreram por torná-lo irremediavelmente mortal; se ticos, sevícias nas crianças) ou sociais (magistrados, das condições personalíssimas do ofendido pode ter funcionários públicos, imprudência, negligência, im- resultado sua morte; se resultou morte, mutilação, perícia de artistas ou profissionais); dedução possível amputação, deformidade ou provação permanente de das intenções do culpado (ferimentos involuntários, algum órgão ou membro; se resultou enfermidade escusáveis, premeditados, perversos, canibais); anm- incurável e que privasse para sempre o ofendido de nese; diagnóstico (classificação motivada: leves, graves, poder exercer seu trabalho; se a morte resultou não mortais); prognóstico legal (complicações, influência pelo mal que fosse mortal, mas porque o ofendido dos tratamentos, cura); influências modificadoras dos tenha deixado de observar regime médico ferimentos: estudo nas causas penais; dano material e circunstancial O regulamento do Serviço Policial, decretado em março de 1907, exigia explicitamente que o exame O mesmo regulamento do Serviço Policial de pericial nos casos de lesão corporal compreendesse o 1907 exigia um exame rigorosíssimo dos ferimento e o ferido, e que deveriam ser minuciosa- Nele, os legistas deveriam fazer uma inspeção externa mente examinadas as lesões existentes, indicando (dados pessoais do morto), condições do meio em que número, precisando a sede, referindo-as a determina- se achava o cadáver, exame externo dos mesmos das regiões do corpo, descrevendo a forma, a exten- (vestes, posição, sinais de morte real e épo- são, a direção e a profundidade, quando possível. Des- ca provável em que aconteceu, sinais de identidade, se exame, o perito deveria concluir a causa provável indícios externos de morte violenta, atentado, acidente do traumatismo, apontando o instrumento causador da direção em que atuou, as condições de violência e a 27 Regulamento do Serviço Policial decretado em 30 de março de 1907. AHN idem, 6D -155 (Gifi). intenção com que pareciam ter sido praticadas. Tais 28 Neste ano de 1907; o Gabinete Médico-Legal foi transformado deduções não deveriam ser resultado de afirmação em Serviço Médico-Legal. 29 desacompanhada, embora categórica, mas suceder a Para observar bem as vítimas, ao contrário do que desejava a uma descrição minuciosa, e em termos, para que se Chefia de Polícia no Rio, os médicos legistas afirmavam que não poderiam proceder a autópsias, "sobretudo de uma popula- ção como a nossa, de pele mais ou menos pigmentada", senão à 26 AHN Secretaria de Polícia do DF, Serviço Médico-Legal do luz do dia. AHN Secretaria de Polícia do DF 6D 155 (Gifi), Distrito Federal 6D 155 (Gifi). carta dos sete médicos legistas do Serviço Médico-Legal a seu diretor, Afrânio Peixoto, em 27 de agosto de 1912.</p><p>68 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 69 ou doença, exame de crânio e encéfalo, face, olhos, Satisfeitos os requisitos científicos, chegava a vez ouvidos, boca, medula espinhal, pescoço, tórax, ab- da e, por isso, as secretarias de Polícia dome, pericárdio e coração, pescoço, epi- mantinham levantamentos exaustivos sobre as mortes ploon, baço, rins, cápsulas, supra-renais, ureteres, violentas examinadas pelos legistas. No caso da cida- órgãos geniturinários, duodeno, estômago, fígado e de do Rio de Janeiro, cujos dados eram os mais bem vesícula biliar, pâncreas, gânglios e plexos, intestinos estruturados do país, havia levantamento mensal sobre delgado e grosso, mesentério, vasos e esse tipo de cadáver. As fichas a serem preenchidas pediam dia, cor, idade, nacionalidade, profissão, dis- Os médicos legistas, na verdade, eram integrantes trito em que foi encontrado o morto, gênero e causa da do cotidiano policial e jurídico, pois realizavam desde morte, mas não especificavam o sexo. Pelo registro exames de flagrantes, nos quais sua presença era ne- dos nomes, entretanto, sabe-se que dos 76 casos re- cessária para a classificação do crime e a arbitragem gistrados, no mês de setembro de 1912, 52 eram de de até processos, nos quais eram importantes homens e 16 de mulheres (8 desconhecidos); deles, 52 as observações clínicas. Antes do século XX, segundo tinham cor branca, 13 eram pardos e 11 eram pretos. os deficientes registros de São Paulo, eles intervieram As causas das mortes violentas eram 51 acidentes, 12 em 2.600 casos distribuídos em 1.336 laudos sobre homicídios, 11 suicídios e uma dúvida quanto a homi- ferimentos e ofensas físicas, 118 autópsias e exames cídio e outra quanto a suicídio. Trinta e oito das pes- cadavéricos, 890 inspeções e exames de 68 soas que haviam morrido violentamente eram brasilei- casos de atentado ao pudor, 687 verificações de óbitos ras; 21, portuguesas; 5, italianas; 2, espanholas; uma, e um exame de americana e uma árabe; e 8 eram desconhecidas. Os dados quanto à profissão eram muito confusos, uma 30 Artigos 106, 107-112 do Serviço Policial de 1907. AHN idem, vez que não distinguiam profissão de atividade. Como 6D 155 (Gifi). trabalhadores mortos violentamente, estavam registra- 31 Cf.: Carta de Afrânio Peixoto, diretor do Serviço Médico-Legal, dos 14. Das três meretrizes classificadas, todas havi- ao chefe de Polícia, em 6 de setembro de 1912. AHN Secreta- ria de Polícia do DF 6D 155 (Gifi). am cometido suicídio. Os demais suicidas eram três 32 A maior parte destes exames de sanidade era entre indigentes, domésticas, um empregado da Light, um estudante, para que pudessem dar entrada na Casa de Misericórdia (194), e dois empregados no comércio e um trabalhador sem de indivíduos que se apresentavam para o alistamento da Guar- da Cívica da capital. Somente 15 foram para dar entrada em hospício. 33 Relatório correspondente ao ano de 1898, apresentado ao presi- da Justiça de São Paulo, São Paulo, Tipografia do Diário Oficial, 1899, p. 47. dente do Estado, Sr. Coronel Fernandes Prestes de Albuquer- 34 A estatística criminal foi formalmente introduzida no Brasil que, pelo Dr. José Pereira de Queiroz, secretário dos Negócios pelo Reg. 120 de 1842.</p><p>70 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 71 especificação. Três domésticas foram assassinadas, dois empregados no comércio, um estudante, um mili- metido à noite ou de dia?; em que dia o crime foi pra- tar, um negociante, um cocheiro e três ticado: em dia útil ou não?; houve qual seu valor?; notas e observações. Na década de 1910, a Polícia possuía um comple- XO formulário para a identificação dos crimes cometi- Este longo e formal questionário tentava respon- dos e para possibilitar a confecção estatística trimes- der às clássicas perguntas que faziam parte do univer- tral. Começava pelo número de ordem, e a seguir os de uma investigação: quem era a vítima, o exato lugar em que o fato ocorreu, como crime foi come- itens a serem observados eram: mês em que foi come- tido, com que arma e quais os meios empregados. tido o crime; quantas pessoas tomaram parte do crime; quando foi o ataque e qual a identidade da vítima e do essas pessoas eram conhecidas ou não; estão foragi- atacante. Reunidas as informações, elas iriam rechear das, presas ou soltas?; qual o crime (Código Penal)?; é os relatórios anuais das chefias de Polícia e das se- de cor branca, parda ou preta?; qual a se brasileira, em qual estado nasceu; é solteiro, casado cretarias de Justiça. Justificavam-se, então, as ações e as previsões orçamentárias. ou viúvo?; qual a superior, média, rudi- Existiam críticas severas em relação ao desenvol- mentar ou nula?; que idade tem?; qual profissão (ofí- vimento técnico do Serviço Estatístico. E se no Rio de cio, ocupação ou meio de vida, especificamente)?; houve flagrante ou em que local foi o crime Janeiro eles eram os melhores, até porque havia uma praticado (casas de família, de cômodos, de prisão, de centralização policial forte com empenho na elabora- prostituição, repartições públicas, prisões, auditórios ção de dados e porque o Distrito Federal estava es- de justiça, casas de comércio, botequins e tavernas, quadrinhado de maneira bastante nada estaleiros industriais, via pública, etc.)?; qual o meio 36 ou instrumento usado para praticar o crime especifi- Eram 29 Distritos Policiais: Candelária, Santa Rita, car bem os meios empregados na prática dos crimes Tiradentes, São José, Glória, Lagoa, Gamboa, Espírito Santo, contra a segurança de pessoa e vida (Arts. 294 e 314 São Cristóvão, Saúde, Santo Antônio, Santa Thereza, do Código Penal) e nos crimes de latrocínio (359) e Sant'Anna, Engenho Velho, Tijuca, Engenho Novo, Meyer, Piedade, Gávea, Inhaúma, Campo roubo (356), em relação a este último, dizer, por Grande, Guaratiba, Santa Cruz, Ilha do Ilha de Pa- exemplo, se houve arrombamento, emboscada, esca- quetá. AHN Gabinete de Investigação e Estatística 6J 91 lada, emprego de chaves falsas, etc.; o crime foi co- (Gifi). Já a cidade de São Paulo, em 1920, esquadrinhava-se em oito Relatório das delegacias da capital. Relató- rio apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Washington Luís Pereira de 35 AHN Secretaria de Polícia do DF, Serviço feito pelos médicos Sousa, presidente do Estado, pelo secretário da Justiça e da Se- legistas no mês de setembro de 1912 6D 155 (Gifi). Vide, gurança Pública, Francisco Cardoso Ribeiro, Estado de São igualmente, levantamento para o mês de agosto, com 72 casos. Paulo, Secretaria da Justiça e da Segurança Pública, Typografia Casa Garraux, 1921.</p><p>72 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 73 impedia que o ministro Goulart de Oliveira, procura- Mesmo antes desse acordo, um caso mostrava dor-geral do Distrito Federal, em seu relatório assina- bem como as autoridades legais encaravam o fato lasse que Um dos mais distintos delegados da chefatura esse serviço não foi sequer tentado, com eficiên- passada estava encarregado de uma diligência cia, entre nós. A Justiça tem o mais elementar importantíssima para a captura de um grande es- aparelhamento nesse sentido, donde meramente telionatário russo, que constava achar-se em São conjectural toda e qualquer conclusão a tirar dos Paulo e que havia praticado um crime de milhares números sem significação real, que servem de de libras esterlinas. dices de criminalidade aparente, extraídos de es- Trazia sinais gerais, como olhos azuis, barba criturações imperfeitas, irregulares e loura, alto, falando algumas línguas, russo de ori- gem, etc., e além disso uma fotografia. Os congressos policiais e jurídicos que se realiza- Foi fácil encontrar-se em um cavalheiro, ne- riam exemplificavam os avanços que as questões re- gociante (distintíssimo, aliás) todos aqueles si- lativas a crimes e a criminosos e os avanços científi- nais, que pertencem a muitos europeus do norte, e cos vinham atingindo. No Congresso Policial de 1905, grande semelhança com a fotografia enviada pela entre Argentina, Chile, Uruguai e Brasil, estabeleceu-se autoridade que requisitava a prisão. a permuta de antecedentes de "indivíduos perigosos", Convidado a chegar à polícia, foi então de perto confrontado com o retrato e com as indica- tendo como base o sistema de identificação datiloscó- ções recebidas, e dúvida alguma parecia estar so- pica, segundo o sistema Vucetich, filiação, dados civis, bre este fato. Era evidentemente ele o ladrão de descrição morfológica (Bertillon), dados judiciários e milhares de libras esterlinas que a polícia procu- fotografia de frente e de Tal acordo vinha ao rava, e foi detido. encontro das correntes observações policiais de que o Dando-se este fato às duas horas da tarde, Brasil, por suas características de país de imigrantes, houve tempo de se avisar alguns amigos desse muitos dos quais emigrados depois de terem passado comerciante, e em poucas horas a Polícia Central pela Argentina, precisava trocar informações. estava repleta de tudo o que há de melhor no co- mércio alemão, inclusive o cônsul, garantindo a todos que se tratava de um lastimável engano, por isso que o cavalheiro detido era alemão, filho de 37 Pronunciamento em 31 de março de 1932. Cf.: Roberto Lira, importante família de Hamburgo e domiciliado escolas penais. Síntese das idéias do passado. Aná- em São Paulo desde muitos anos, onde era chefe lise das propostas do presente. Perspectivas das realidades do de importante casa comercial. futuro, Rio de Janeiro, Editora Borsoi, 1956. Todos porém viam as atenções que a polícia 38 Leonildo Ribeiro, op. cit. dispensava ao detido, que se achava em uma sala</p><p>74 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 75 da delegacia com todo o conforto, e de certa for- as observações antropométricas, e mediam-se altura, ma desculpavam o erro pela grande semelhança que ele tinha com a fotografia recebida. (...). envergadura, busto, cabeça (comprimento e largura), Finalmente, depois de uma série de peripé- tamanho das orelhas, pés, dedos e braços; pesquisa- cias, alta noite conseguiu este cavalheiro sua li- vam-se olhos (auréola e coloração) para classificá-los berdade, o que certamente não se teria dado não segundo Bertillon, características dos cílios, fronte, se tratasse de pessoa tão altamente colocada (...) nariz (dorso, base, inclinação, largura), bordo da ore- (e) uma simples mensuração antropométrica. que lha, características de tamanho e dobras, lóbulos, ca- tivesse vindo com as informações sobre o estelio- racterísticas do perfil, cabelo, barba, pigmentação, natário, teria evitado todas estas contrariedades e constituição, maxilares, pernas, largura dos ombros e resolvido a questão garantindo os direitos de um características particulares, como calvície, presença de cidadão honesto e sinais, berrugas, direito ou destro, aparência geral, As autoridades, é bem verdade, tentavam provar Também era bastante comum que, depois de to- não só a importância de seu trabalho sob o ponto de marem os dados sinaléticos, os médicos os comparas- vista da higienização social, mas também demonstrar sem com as fotografias, numa combinação que deve- como se baseavam nas mais recentes inovações cientí- ria revelar as impressões conclusivas sobre tamanho ficas e como era fundamental para a segurança dos de crânio, as distâncias da boca e do nariz, espessura cidadãos honestos, especialmente para impedir que dos lábios, e outros detalhes julgados já eles fossem confundidos, aparelhar bem os órgãos que os laboratórios fotográficos da Polícia no Rio e que sustentavam o aparato legal da sociedade. Por em São Paulo passaram a ser providos de equipa- isso, identificavam-se as pessoas. E, por isso, também mento fotográfico métrico, de fotografia sinalética e criam-se, em março de 1907, instituições, como a de microfotografia para a análise química, compreen- Escola de Polícia do DF,40 e, em maio, a publicação do dendo uma espécie de complexo técnico, considerado, Boletim Policial. Naquele mesmo ano, inaugurar-se-ia a Escola de Polícia. por volta de 1914, como completo ou mesmo luxuo- Quando da identificação completa dos indivíduos, os médicos faziam o exame somático, tomando, em primeiro lugar, as indicações Essas eram 41 Relatório do Gabinete Antropométrico de São Paulo, sobre Augusto Perelli, assassino do Dr. Mário Camargo, edição parti- cular, 1889, p. 14 e 39 Idem, ibidem, p. 11. 42 Idem, ibidem. 40 Boletim Policial, ano VI, 01, 02 e 03, Rio de Janeiro, Im- 43 Elysio de Carvalho, L'organisation et le fonctionnement du prensa Nacional, 1912. service d'identification de Rio de Janeiro, p. 16 e SS.</p><p>76 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 77 Esse tipo de exame era fundamental, porque, se- Aproveite o senhor agora que é tempo gundo os médicos legistas, poderia revelar a verdadei- Agora que a mocidade e a Deus momo, ra personalidade do criminoso e, isso, indicar à A sapiência e a ciência seu talento, Justiça os caminhos mais precisos a ser seguidos. Era seu ilustre nome imortal e aclamo a ciência médica e a técnica a serviço da Justiça. Desejando-lhe um futuro brilhante e contente No caso do estudo realizado em Augusto Perelli, De em feliz avenir virtuoso um assassino, concluía-se que, a julgar-se pela con- Para tal fim nem voto apresento formação craniana e demais características, Perelli Para ser o senhor bom pai, bom filho e bom es- seria poso E virtuoso e mais bom um criminoso de ocasião que, levado por um Que venha o novo tempo brusco sentimento de ódio, despertando os cen- futuro ano novo tros impulsivos, executou o crime assassinando um ilustre moço, como praticaria qualquer outro qual estão repleto Queira o senhor ter ato de selvageria que seu instinto em momento aprazado indicasse. Com uma inteligência lúcida, Piedade ao meu desejo Desejando-lhe passar bem porém assaz ignorante, faltava-lhe na educação Nesses dias de festejos.44 moral o necessário corretivo para impedir, no momento tão desastrado, o luctoso acontecimento. Já as preocupações dos homens da ciência que Para comprovar o laudo, o médico incluiu em seu apoiavam o aparato judiciário e policial com os es- relatório a poesia que o preso lhe dedicava nas festas trangeiros eram recorrentes. Suspeitava-se que eles natalinas e que dava "a mostra do espírito" do assassino apresentassem características determinadas que os levassem à prática dos e comprovava o diagnóstico científico: próprio Congresso Policial de 1905 selara o mo- À saudade do ano que chega mento a partir do qual passou a ser ainda mais comum À primavera folgará sua idade a troca de informações e pedidos de informações acer- Felicidade e sorte à sua mão cheia Da sapiência, de ciência e de bondade. 44 Idem, ibidem, p. 23. 45 E uma e outra quando a vida volta As questões relativas à criação de um saber médico e do homem Irmãos parecem, mas não são iguais, criminoso aqui levantadas vão de encontro à sugestão de Boris A primavera passa e depois volta Fausto de que essas considerações viriam a se constituir apenas E a mocidade não nos volta mais em um elemento a mais de peso variável no jogo jurídico. Cf.: Boris Fausto, Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 92 e SS.</p><p>78 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 79 ca de indivíduos considerados perigosos por esses do tamanho natural. As impressões digitais deveriam países e entre os vários estados brasileiros. objetivo era o cerco sobre os estrangeiros imigrantes. É certo, ir em uma cédula ou ficha de 20 9, e os demais da- entretanto, que os tratados de extradição que vinham dos em folhas anexas. Os dados civis deveriam conter sendo assinados pelo Brasil, desde o século XIX, já os nomes e os apelidos de nascimento e os supostos, conferiam, de uma forma bastante clara, uma interli- as alcunhas, o nome e o apelido dos pais, a nacionali- gação, no sentido da ação policial, judiciária e diplo- dade, a província e o lugar de nascimento, a data de mática entre as nações.46 Nessa troca de informações, nascimento, o estado civil, a profissão, a instrução e o eram enquadrados também os militantes políticos, tempo de residência. Na descrição morfológica, as objeto de vigilância muito acurada dos agentes diplo- marcas particulares e as cicatrizes.48 A permuta de máticos. Foi na esteira desse entendimento que o Bra- informações policiais da Polícia paulista, em 1920 sil assinaria, em fevereiro de 1920, um novo convênio entre ofícios, fichas, informações e retratos -, com os internacional para troca de informações serviços de identificação do Brasil e do exterior che- gou a 23.691 A iniciativa era da Argentina que, além de pretender formar um Arquivo Internacional de Informações, Aliás, os convênios refletiam a tradição que aca- tendo como sede Buenos Aires, regulava esse inter- baria por fazer com que os acordos apenas selassem o câmbio com as informações sobre criminosos, expul- que já vinha acontecendo de fato: uma forte vigilância sobre os estrangeiros. sões e, principalmente, dados sobre anarquistas. De- ver-se-ia proceder ao envio de impressões digitais de Epitácio Pessoa receberia, enquanto ministro em acordo com a classificação de Vucetich; filiação e 1889, um apelo dos italianos. que seguia os parâme- dados civis; descrição morfológica, segundo o sistema tros da antropometria para a identificação do suspeito: "província de Buenos Aires"; dados judiciários e de O representante da Itália trouxe ao meu conheci- conduta e a fotografia, em duplicata de frente e perfil, mento que o anarquista Alessandro Tabanini ha- em placas de 9 X 13, e redução de Bertillon ao sétimo 48 46 Cf.: República dos Estados do Brasil, Estrangeiros: Cf.: Convênio assinado em 29 de fevereiro de 1920. Sobre troca legislação e bibliografia, Rio de Janeiro, Ministério da Justiça e de informações entre polícias no mundo, vide: Elizabeth Can- Negócios Interiores, 1950. celli, De uma sociedade policiada a um Estado policial: o cir- 47 O convênio foi assinado entre Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, cuito de informações das polícias nos anos 30, Revista Brasilei- Paraguai, Peru e Uruguai. Como representantes do Brasil em 49 ra de Política ano 36, 1, Brasília, 1993. Buenos Aires, no encontro de 20 a 28 de fevereiro de 1920, na Estado de São Paulo, Secretaria da Justiça e da Segurança Pú- sede do Departamento Central da Polícia argentina, foram envi- blica. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Washington Luís ados Francisco Eulálio do Nascimento e Silva Filho e o major Pereira de Sousa, presidente do Estado, pelo secretário da Justi- Carlos da Silva Reis. ça e da Segurança Pública, Francisco Cardoso Ribeiro, anno de 1920, São Paulo, Typografia Casa Garraux, 1921.</p><p>80 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 81 via embarcado em Marselha, com o falso nome Nem sempre, entretanto, a vigília sobre os estran- de Orestes Simoncioni, no vapor "Aquitaine", que geiros partia de uma ação conjunta entre os países. entrou no porto do Rio de Janeiro em 19 do mês Sob os efeitos da avalanche imigratória para as Amé- passado. Segundo averiguou-se na repartição da Polí- ricas, ela também representava todo cuidado e a cia, Tabanini seguiu para Santos no mesmo va- maneira pela qual muitos dos imigrantes estavam sen- por. Entretanto, o ministro da Itália recebeu do do encarados. Em 17 de novembro de 1898, a legação respectivo vice-cônsul ali, comunicação de que o do Brasil em Roma mandava ao ministro da Justiça oficial de polícia daquele porto, fundado em in- uma carta contendo relação de italianos "turbulentos" formações do comandante do "Aquitaine", afir- e que fatalmente foi parar nos arquivos da Polícia: mara ter Tabanini desembarcado nessa capital. À vista dessas informações contraditórias, Por diversas vezes tenho referido a V. Ex. a ma- referido agente diplomático pede que se promo- neira pouco escrupulosa como procede este go- vam as diligências necessárias no intuito de se verno para desembaraçar-se de socialistas, anar- verificar se aquele indivíduo acha-se no Rio de quistas e réus de polícia, expedindo-os para a Janeiro, podendo a este respeito prestar esclare- América. Ao Brasil tem tocado algumas centenas cimentos o comandante do mencionado vapor, desses indivíduos que ai vão contaminando o que deve tornar a este porto em seu regresso do elemento da colônia italiana. Buenos Aires. (...) Com grande cautela e toda a reserva, pude São os seguintes os sinais característicos de obter uma lista de alguns indivíduos condenados Alessandro Tabanini: idade, de 35 a 40 anos; es- pelos tribunais italianos, que foram embarcados tatura média; cabelos castanhos; olhos castanhos; para o Brasil, por conta dos cofres da República, nariz aquilino; rosto oval e magro; tez trigueira, nos anos de 1891 a 1893 e cujos registros poderão cor de tijolo; compleição robusta. Tem duas cica- ser obtidos em qualquer ocasião necessária. trizes, que parecem produzidas por navalha: uma Esta lista é feita em ordem alfabética com as longitudinal, desde a base do nariz até a venta es- anotações referentes a cada indivíduo. querda; outra triangular na face na região zigo- Atualmente este governo, atendendo às reite- mática direita, de cerca de cinco centímetros de radas reclamações dessa Legação, tem procurado extensão. Calva no centro da cabeça, assemelhan- coibir o abuso cometido pelas autoridades locais, do-se a uma pequena tonsura; pouco cabelo na fazendo incluir no número de imigrantes, recruta- fronte e nas têmporas. dos pelos respectivos agentes, aqueles réus de Olynto de polícia, aos quais eram dados certificados falsos de agricultor bem comportados, mas, por outra 50 AHN Rio de Janeiro, 3 de agosto de 1899 Gabinete do forma, tem todavia continuado a expedi-los para a América. Ministro, 5F -30 (Gifi).</p><p>82 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 83 Sei que, depois dos últimos sucessos de Mi- lão, no ano passado, o governo italiano expendeu lance de progresso deveras notável que forma a mais de 40 mil francos em viagens pagas para principal característica da nossa capital (...) Com extrair turbulentos. a população aumentada em 50% aproximada- mente, é de ver-se o embaraço das autoridades na Procuro obter a lista dos que partiram para o Brasil, a fim de mandá-la para vossa senhoria. prestação das garantias de segurança a que todos (...) os habitantes da cidade têm direito. São Paulo, como grande terra de trabalho, atrai a atividade de Francisco Regis de Oliveira mil procedências; como poderoso centro de ri- queza está sujeito à cobiça de elementos pernicio- Segue lista de 126 deletérios, sobre os quais nunca será excessiva a vigilância discreta dos agentes da A vigilância nos portos viria complementar esse trabalho de observação e vigilância sobre os estrangei- Ou, ainda, como afirmaria Otávio Ferreira Alves, ros. Desde 1887, a Polícia possuía um levantamento chefe do Gabinete de Investigações de São Paulo: completo, que deveria ser fornecido por cada embar- cação, sobre seus tripulantes e passageiros. A estes A atração que exerce a nossa cidade sobre o es- últimos pediam-se o nome, a nacionalidade; o destino trangeiro explica-se pela sua riqueza e pelo surto de progresso material que teve nos últimos vinte e a classe em que Em alguns casos, como o anos, só comparável ao das cidades de Chicago e do Lloyd Brasileiro, informavam-se também o sexo e São Francisco da Califórnia, na América do Nor- o número de passagens pagas por cada um dos pas- te, onde tudo é surpreendente. Isto constitui outro sageiros. O Munson Steamship Lines, por exemplo, dos fatores que dificultam a ação da polícia, pela fornecia à Polícia a idade, o sexo, o estado civil, a composição heterogênea que dá ao nosso povo. profissão, a nacionalidade e o Grossas correntes migratórias carreiam, ano Em relatório apresentado ao presidente do Estado por ano, massas enormes de indivíduos de todas de São Paulo, Washington Luís, em 1920, o secretário as procedências. desde o tipo mongól, com as su- de Justiça procurava ressaltar as observações do dele- as diferentes índoles, tendências, costumes, reli- ritos, qualidades e defeitos. São milhares gado geral de Polícia. Dizia que: de homens, a maior parte dos quais arruinados, Os serviços gerais de policiamento têm imperfei- ções causadoras de sérias apreensões diante do 53 Estado de São Paulo, Secretaria de Justiça e da Segurança Pú- blica. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Washington Luís 51 AHN Gabinete do Ministro 5F 30 (Gifi). Pereira de Sousa, presidente do Estado, pelo secretário da Justi- 52 AHN 6D 140 (Gifi). Informações de 1887 a 1930. ça e da Segurança Pública, Francisco Cardoso Ribeiro, ano de 1920, São Paulo, Typografia Casa Garraux, p. 75.</p><p>84 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 85 desgostosos, feridos pelas arestas duras da pobre- cana ou asiática; e a italiana, fruto da terra da camor- za nos países superpovoados, que reúnem os res- tos das energias e vêm tentar a vida no nosso ra, da máfia, da teppa, do bagarinaggio, da mano meio, seduzidos pela esperança da fortuna rápida, nera. Entretanto, de levantamento feito em 1898 para igual a dos felizes que cedo fizeram a São Paulo, capital, e para o interior, o relatório da Secretaria dos Negócios da Justiça registraria 12.076 A ação policial, invariavelmente, tinha endereço ocorrências registrando brasileiros no interior e 2.750 certo. E era a Polícia a apontar de onde vinham os na capital, contra 11.743 estrangeiros no interior e maiores males. A publicação carioca do Boletim Poli- 6.266 na Os italianos eram, segundo as esta- cial, de junho de 1913, era clara em várias de suas tísticas, os que registravam as maiores passagens. Dizia que "no Rio, quase todos os crimes Mas se neste caso os brasileiros tinham sido registra- sensacionais, os crimes de sangue, os crimes de roubo dos em 14.826 das ocorrências e os italianos em e os crime sexuais, são praticados por malfeitores de 18.009, as estatísticas de 1909 que se referiam a 11 origem estrangeira". A razão seria simples: mil contravenções reconheciam que 5.525 dessas contravenções teriam sido praticadas por brasileiros e A péssima qualidade das correntes imigratórias 3.248 por que afluem à nossa capital concorre, mais que As próprias estatísticas apresentadas por Elysio qualquer outra influência, para a recrudescência das de Carvalho em seu trabalho sobre A Phisionomia da formas violentas de do Rio (...) Sabe- mos que, em sua maioria, os imigrantes que se en- criminalidade carioca para os anos entre 1907 e 1912 caminham para o Brasil procedem de países onde o coeficiente de crimes de sangue é excessivo, como, 56 Relatório correspondente ao ano de 1898, apresentado ao presi- por exemplo, Portugal, Espanha e dente do Estado, Sr. Coronel Fernando Prestes de Albuquerque, O autor deste mesmo artigo, o influente Elysio de pelo Dr. José Pereira de Queiroz, secretário dos Negócios da Justiça de São Paulo, São Paulo, Tipografia do Diário Oficial, Carvalho, diretor do Gabinete de Identificação e Esta- 1889, p. 46. tística e da Escola de Polícia no Rio de Janeiro, não se 57 Italianos (4.203, capital, e 7.214, no interior), português (875 e furtaria em dizer que a criminalidade portuguesa era 1.850), espanhóis (638 e 1.413), alemães (152 e 302), franceses medieval; a espanhola, sobrevivente da barbárie afri- (83 e 149), austríacos (76 e 159), árabes (53 e 155), argentinos (54 e 82), chilenos (31 e 58), russos (17 e 27), suíços (16 e 28), ingle- ses (13 e 118), uruguaios (12 e 23), norte-americanos (11 e 25), 54 Otávio Ferreira Alves, Polícia de São Paulo, Revista de Crimi- peruanos (9 e 14), africanos (8 e 8), belgas (7 e 7), gregos (4 e 19), ignorados (1 e 82). Idem, ibidem. nologia e Medicina Legal, ano I, n° 1, julho de 1928. 55 58 Relatório apresentado ao Dr. M. J. de Albuquerque Lins, presi- Elysio de Carvalho, A dos estrangeiros, Boletin dente do Estado, pelo secretário da Justiça e da Segurança Pú- Policial, ano VII, n° 7, Gabinete de Identificação e Estatística, blica, Washington Luiz de Sousa, ano 1909, São Paulo, Secreta- Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, junho de 1913. ria da Justiça e da Segurança Pública.</p><p>86 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 87 tendiam a desmascarar o preconceito contra os estran- Contra a segurança da pessoa e da vida 9.544 geiros, já que, dos 14.103 criminosos registrados pela Contra a propriedade pública e particular 2.158 polícia,59 7.990 eram brasileiros e 6.113 Contra a pessoa e a propriedade 511 Mais contundentes ainda eram os dados de São Paulo Diversos crimes para o ano de 1920. Na classificação dos segundo a nacionalidade, dos 853 apresentados, 547 Seria uma mudança no estado de sutileza com eram brasileiros e 58 não haviam sido identificados. que estariam sendo praticados os crimes. Assim, o Portanto, apenas 248 eram estrangeiros. Entretanto, as crime de homicídio teria mudado de forma, transfor- mudanças de comportamento criminal tendiam a mando-se de violento em fraudulento; não se mataria apontar no sentido do Dizia-se que no mais com o punhal nem com o revólver, mas com o Rio de Janeiro aumentavam, principalmente, os cri- veneno, a chantagem, a fraude e a escroquerie; cri- mes contra a pessoa e os de sangue, que tanto ilustra- me teria passado a ser associativo e não mais indivi- vam as páginas dos jornais: dual e muito mais voltado contra as pessoas, e mais de sangue do que contra a propriedade. Agora, estaria se Contra a segurança interna da República 279 matando mais do que roubando. Uma "influência ne- Contra o livre exercício e gozo dos fasta do alcoolismo e dos nossos costumes políticos, direitos individuais 239 que apressaram a desmoralização do júri e dão garan- Contra a honra e a honestidade da família 1.516 tias à impunidade". Em função de toda a caracterização do crime e 59 A população do Rio de Janeiro em 1890 era de 522.641 pessoas, sua relação de causalidade com a presença de estran- sendo 150.058 imigrantes. Em 1906, 811.433 pessoas, sendo geiros, a Polícia carioca não se furtava em detectar 210.515 deles estrangeiros. Em 1920, dos 1.157.141, 139.129 uma determinada especialização para cada tipo de eram estrangeiros. In: Marcos Luiz Bretas, Ordem na cidade: o imigrante criminoso. Os espanhóis e os argentinos exército cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro (1907-1930), Rio de Janeiro, Rocco, 1997. Citação de Samuel seriam preguiçosos, escruchantes e escamoteadores. Adamo, The broken promisse. Race, helth and Justice in Rio de Aos portugueses a característica atribuída era de estu- Janeiro (1890-1940), PhD University of New Mexico, pradores e gravateiros; o latrocínio e a moeda falsa 1983. ficariam por conta dos italianos; o lenocínio seria 60 Elysio de Carvalho, op. cit. 61 Criminosos, e não detidos! especialidade de franceses, russos e alemães; o jogo 62 Discordamos da opinião de Boris quando este afirma do bicho estaria nas mãos de italianos e portugueses; e que a correlação discriminatória entre criminalidade e popula- ção estrangeira teria sido apenas conjuntural. Toda a nossa pes- 63 Dados relativos ao período de 1907 a 1912. In: Elysio de Car- quisa para o período nos leva a crer ao contrário. Cf.: Boris valho, op. cit. Fausto, op. cit., p. 63 e 64 Elysio de Carvalho, op. cit.</p><p>88 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 89 aos espanhóis caberia a aplicação dos mais inteligen- Acompanhar: acompanhar alguns dias pessoa que tes contos do vigário. devesse ser roubada Se existia de fato uma especialização ou não Afanar: roubar por nacionalidades, havia um tipo de especialização por Andantes: pernas prática criminal, na medida em que a profissionaliza- Bobo: relógio ção dos ladrões e dos demais criminosos, sob o ponto Bacano: pessoa rica em condições de ser roubada de vista da Polícia e das estatísticas, aumentava. Biaba: bordoada Baliza: mala de mão No caso específico dos ladrões, eles eram caracte- Brilha: brilhante rizados por mais de 14 tipos diferentes: escruchantes, Berrante: revólver baibistas, gravateiros, espadistas, ranas, descuidistas, Brét: pão sonambulistas, madruguistas, punguistas, topistas, Barra: conto do vigário por meio de pequenas vigaristas, ratos de hotel, banhistas, amostrequeiros, barras de metal dourado etc. Cada um com características próprias de agir, Broca: ferro que serve para auxiliar o arromba- faziam a festa do folclore da cidade e dos jornais, com mento de uma porta, ou pé-de-cabra notícias que geralmente tentavam enfatizar sua ousa- Carolas: libras esterlinas dia. Em São Paulo, por exemplo, contava-se que um Clafrá: soldado da polícia tal Fraga, batedor, havia sido preso em flagrante no Cana: prisão Canastra: cerco de gatunos Bexiga, quando batia o relógio de um passageiro. Capanha: gatuno que fica de vigia enquanto ou- Perguntado pelo delegado como fazia, Fraga teria tros roubam roubado o relógio do próprio delegado sem ele Espiantar-se: fugir para não ser presos Num ambiente que se modificava rapidamente, Estacio: indivíduo que se presta a ser roubado em que o anonimato já fazia parte da vida urbana, a Escracha: retrato inovação e a ousadia dos novos criminosos era aquilo Escrachado: gatuno que tem retrato na polícia que realmente fazia impressionar. A polícia demons- Fraga: flagrante trava espanto e procurava acompanhar a movimenta- Guita: dinheiro ção imposta pela criminalidade. Em 1908, a Polícia do Gambia: 100 mil-réis Distrito Federal publicava o estudo de Ernesto Sen- Grupo: mentira na,66 sobre gíria de ladrões, gatunos e pivetes: Intrujão: sujeito que compra roubo Limpo: pessoa que conhecendo o gatuno não denuncia, autoridade que convive com ele 65 Idem, Mina: mulher 66 In: Boletim Policial, ano I, Gabinete de Investigação e Estatísti- Minestra: mulher de gatuno ca, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, abril de 1908. Malandro: gatuno</p><p>90 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 91 Maróca: corrente de relógio Manjar: conhecer mas parece que a dos criminosos, em particu- Pivete: menor gatuno lar, refletia um estilo de vida cujo tipo lingüístico Punga: pessoa que é roubada sem sentir remonta ao cinismo. A gíria seria encarada então Pacco: embrulho de jornais velhos para o conto como grosseira e bestial, repleta de epítetos, como do vigário mina, para mulher, e onomatopéias, como tic, para Pisantes: botinas relógio. Sujo: indivíduo que aponta gatunos à polícia Em 1913, a Polícia carioca teria um cadastro de Toco: dinheiro para acobertar ladrão 20 mil delinqüentes e contraventores Ventana: janela Dentre eles, figuras importantes eram Santiago, Peres, Vichenco: pessoa tola Sacristão, Rocca, Carlito, Velhinho, Bacalhau, Jaburu, O estudo de Senna não era uma raridade. O Bole- Cara de Velho, Amarelinho, Camilo, Iglesias, Bexiga Fraca, Pigatti, Perdigão, Luís Araripe e Santo Urso- tim Policial anunciava, em 1912, que havia sido orga- nizada na Escola de Polícia uma listagem com o vo- cabulário empregado nas ruas pelos criminosos. Eram A avaliação policial era a de que, além da grande novidade do século XX, que era o estabelecimento 293 vocábulos, dando, inclusive, a derivação de mui- definitivo de quadrilhas internacionais, o caráter vio- tas palavras. Do espanhol teriam surgido afanar, ali- viar, biaba; do francês, pivete e simorflar (comer); do lento e profissional dos delitos, "em suas múltiplas italiano, ventanista, etc.; às freiras, os gatunos dariam formas, desde o latrocínio, o assalto à mão armada, o o apelido de baratas, provavelmente em função da roubo com arrombamento, até a transação aparência dos hábitos. o conto do vigário, o estelionato, a bancarrota, a in- dústria da moeda falsa" e o incêndio criminoso muda- Alguns dos vocábulos foram incorporados à lín- gua, e muitos deles demonstraram nitidamente a influ- vam a fisionomia, principalmente, das cidades, por- ência estrangeira. O fato de a Polícia prestar atenção à que, além de mudar o sentido do crime, abrigava matadores ferozes e terríveis desordeiros, uma verda- gíria dos criminosos é que era bastante interessante. deira colméia de ladrões, gatunos, estelionatários, Como bem o assinalava Gabriel Tarde, sociólogo, estatístico criminal e jurista francês tão caro à Escola falsários, patoteiros, moedeiros falsos, moços bonitos, toda a velha profissão tem sua gíria parti- proxenetas e receptadores, que em contínua atividade nal, uma vez que tinham muitas similaridades de preocupação. 67 Ruth Harris estranha, de certa maneira, o fato de franceses e Cf.: Ruth Harris, op. cit., p. 96. 68 italianos terem tido tantas discordâncias nos congressos interna- Gabriel Tarde, A criminalidade comparada, Rio de Janeiro, cionais de 1885 e 1889, em assuntos referentes à questão crimi- Editora Nacional do Direito, 1957, p. 58. 69 Elysio de Carvalho, A phisionomia da criminalidade.</p><p>92 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 93 se multiplicavam. Sem deixar de esquecer o lado onde as armas de fogo, a imprensa, a fotografia, a dinamite, a criminalidade se revelaria mais astuciosa: a subtra- a térmite, o telégrafo sem fio, o automóvel, o aeropla- ção fraudulenta do dinheiro público, ou do "delito no, o hipnotismo, os venenos novos, a infecção mi- financeiro", a invenção de transações audaciosas fei- crobiana, etc.", na própria ciência encontraríamos tas nas bolsas, na fundação de sociedades financeiras recursos valiosos, eficazes, capazes de, mais que a que dissimulavam nos estatutos a escroquerie, os che- repressão penal, atenuar os efeitos, diminuir os suces- ques falsos, a falsificação de moeda, de papéis de cré- SOS, combater os resultados da criminalidade contem- dito, de obras de arte, as trapaças nos clubes de jogos e a caça de dotes.70 Era preciso também, segundo a avaliação policial, Em 1929, o Primeiro Congresso de Criminologia que o Judiciário acompanhasse a eficácia que estaria consagraria as teses sobre a estreita ligação entre a sendo registrada pelo trabalho policial. Neste sentido, presença de estrangeiros e a criminalidade. Além de diziam as Notícias Policiais de 1913: se considerar que deveriam ser levadas em conta as influências mesológicas que não poderiam modificar A estatística criminal, de que uma parte é forma- nos indivíduos seus caracteres hereditários, pretendia-se da pelas contravenções, acusa um resultado de- que estudos dos aspectos econômicos, morais e antro- solador nos julgamentos finais, resultado esse as- pológicos fossem determinantes para selecionar a sinalado pelo digno Dr. Chefe de Polícia, em seu imigração. último relatório, para justificar a necessidade de A ligação da ciência com a criminalidade deveria retirar para as mãos dos juízes especiais o julga- ser sempre uma via de mão dupla. Não significava mento desses delitos, tornando assim mais eficaz a ação da autoridade apenas empregar os avanços científicos para aperfei- çoar o Direito, as leis, a Polícia, o sistema de penas, a estatística e os métodos de identificação criminal, mas Ainda por volta de 1948, Leonildo Ribeiro, um dos mais eminentes médicos legistas brasileiros, cha- fazer o que Elysio de Carvalho chamaria de para- doxo de uma ciência (que) servindo a Deus e ao Diabo mava a atenção para a importância que a Medicina trazia ao Direito e como ela se tornara imprescindível. renova(va) a lenda clássica de Aquiles que curava as Citando a tese de Afrânio Peixoto defendida em 1897, feridas que produzia". Isto é, se a civilização havia sobre Epilepsia e crime, Leonildo contava que forjado "novos instrumentos de criminalidade, como 70 Elysio de Carvalho, A luta technica contra o crime, Biblioteca 71 Elysio de Carvalho, A luta technica contra o crime, p. 25 e 26. do Boletim Policial, V. XXXII, Rio de Janeiro, Imprensa Nacio- 72 Notícias Policiais, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1913. nal, 1914, p. 16 e AHN 6J 92 (Gifi) e 1C 74 (Gifi).</p><p>94 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 95 um preto, de nome Adão Benedito dos Santos tória da legislação penal, dos procedimentos legal e "era empregado na fazenda do Bom tra- policial. Não só legitimavam e apontavam o caminho balhador, sem vícios, extremoso pai de família, muito querido de todos, certa vez foi agredido, a ser percorrido no combate aos distúrbios sociais recebendo várias pancadas na cabeça. Manifes- provocados pelo crime e pelos criminosos, como per- tou-se, logo após, uma série de crises convulsivas, mitiriam o estudo de cada caso em particular, pela seguidas de acessos de delírio ambulatório, que observação dos fatores físicos e psíquicos, identifi- obrigavam a vítima a internar-se no mato, atacada cando os verdadeiros alienados dos simples casos de de alucinações. Um dia, de regresso a um passeio deficiência mental, os hiperemotivos e os sugestioná- com a família, mata, sem motivo, a própria espo- veis facilmente influenciáveis pela ação do ambiente, sa e o filho, a pauladas. o professor Afrânio Pei- sem contar os perversos, os alcoolistas e os toxicôma- xoto conclui por afirmar que certamente a doença nos.74 provocada pelo traumatismo foi a causa única do A criminalidade tornara-se um grande laboratório experimental pela intervenção dos serviços de investi- A hipótese do médico era simples: nem a socie- gação, dos laboratórios de Antropologia Criminal dade, nem a justiça poderiam ser atendidas, em casos instalados nas prisões, dos anexos psiquiátricos das como o levantado, porque os juízes não possuíam penitenciárias, dos manicômios judiciários e de insti- tuições como o Laboratório de Biologia Infantil do conhecimento especializado; por isso, o socorro viera Juizado de Menores, criado no Rio de Janeiro, além do médico. Ou melhor, a questão era a de como os dispositivos penais poderiam ser aplicados em crimi- de farta literatura sobre o tema que circulava na época nosos aparentemente sãos, mas que eram doentes e que se fazia presente nos jornais. Dos diagnósticos confeccionados, procurava-se uma simbiose entre a mentais, ignorados ou latentes, cujo mal só poderia ser diagnosticado por especialistas idôneos, com o devido ciência e o Direito, a fim de que a ciência pudesse recurso ao contingente de dados das ciências biológi- responder às indagações sobre os supostos segredos íntimos da personalidade do criminoso em todas as cas no estudo das causas do crime e na aplicação das leis? O ponto de partida do era o de que a fases do ciclo judicial: a instrução, o julgamento e a Escola Positiva trouxera para as ciências do Direito os execução. Ou qué apontasse os fatores determinantes estudos e a contribuição da Antropologia Criminal, da a hereditariedade, a constituição bi- que, sem dúvida, inauguravam uma nova fase na his- ológica, as anomalias de inteligência e caráter, as psi- copatias, a epilepsia, as intoxicações, os traumatismos, 73 Leonildo Ribeiro, As modernas legislações penais e a contribui- ção da Antropologia Criminal, Revista Forense, 1948 (?). 74 Idem,</p><p>96 Elizabeth Cancelli as doenças infecciosas, as anomalias físicas ou a ação do meio social. Quanto à estatística, esta seria a ciência capaz de afirmar com toda a certeza as tendências e, por isso, Capítulo 3 determinar onde deveria se fazer a intervenção pre- ventiva: da Polícia, em nome da ciência; do Estado, "Quando o relógio do coração anda pelo bem da sociedade, em detrimento do indivíduo. mais atrasado do que o do os crimes de paixão Necrológico sobre os desiludidos do amor Os desiludidos do amor Estão desfechando tiros no peito. Do meu quarto ouço a fizilaria As amadas torcem-se de gozo. Oh quanta matéria para os jornais. Desiludidos mas fotografados, Escrevem cartas explicativas, Tomam todas as providências Para o remorso das amadas. Para pum pum adeus enjoada. Eu vou, tu ficas, mas nos veremos Seja no claro céu ou turvo inferno. Os médicos estão fazendo a autópsia Dos desiludidos que se mataram. Que grandes corações eles Viceras imensas, tripas sentimentais E um estômago cheio de poesia... 1 Frase atribuída a Tobias Barreto.</p><p>98 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 99 Agora vamos para o cemitério Atentado ao pudor 05 Levar os corpos dos desiludidos Defloramento Encaixotados completamente 21 (caixões de primeira e de segunda classe) Estupro 02 Rapto 10 Os desiludidos seguem iludidos, Lenocínio 23 Sem coração, sem tripas, sem Única fortuna, os seus dentes de ouro Ultraje ao pudor 70 Não servirão de lastro financeiro Homicídio 36 E cobertos de terra perderão o brilho Homicídio involuntário 05 Enquanto as amadas dançarão um samba Tentativa de homicídio 29 Bravo, violento, sobre a tumba deles. Infanticídio 02 Carlos Drumond de Andrade Lesões corporais leves 560 Lesões corporais graves 51 Lesões involuntárias 02 Na virada do século XIX para o século XX, a Dano 05 maior parte dos crimes praticados ou fundamental- Furto 624 mente registrados pelas estatísticas policiais eram os Furto de animais 7 assim chamados crimes comuns. Embora as estatísti- Roubo 15 cas do Estado de São Paulo fossem incompletas e Outros crimes 103 descoordenadas, podia-se ter uma idéia, pelo relatório Total 1.664 da Secretaria de Justiça e Segurança Pública de 1909,2 do quadro criminal oficializado pelos órgãos encarrega- Quanto às contravenções dos de administrar a violência social: Jogo 116 Quanto aos crimes Uso de armas 06 Mendicidade Resistência 142 1 Desobediência Embriaguez 3.573 22 Peculato Vadiagem 21 02 Moeda falsa Vadiagem reincidente 21 69 Desordem 2.577 Outras 41 2 Relatório apresentado ao Dr. M. J. de Albuquerque Lins, presi- Total 7.573 dente do Estado de São Paulo, pelo secretário de Justiça e da Segurança Pública, Washington Luiz de Sousa.</p><p>100 Elizabeth Cancelli A cultura do crime e da lei 101 Os mais de 9 mil delitos registrados evidencia- vam o que, aos olhos da Justiça e da Polícia, a socie- que a sociedade teve por bem apontar como sendo um dade da época considerava como inaceitável em ter- crime, mesmo que este tipo de agressão social fosse mos de segurança comunitária. pelo número e pela reação social por ele provocada considerado banal. Embora esses dados apenas tentassem sistemati- zar ocorrências para que uma ação global fosse ideali- Na virada daquele século, uma das grandes novi- zada em termos de prevenção e repressão criminal, dades em termos de reação social reveladora de uma sua escolha como alvo evidenciava a dimensão da espécie de conjunto de comportamento social sinto- violência ou da selvageria que, de certa maneira, pu- mático dizia respeito justamente à ocorrência fre- nha em xeque contrato civilizador de uma determi- qüente, à popularidade, à teatralidade e ao caráter nada sociedade. A maior parte desses delitos era extraordinário que ganharam os chamados crimes de paixão: assassinatos e suicídios. constituída de crimes comuns, infrações que desres- peitavam os preceitos sociais de proteção à proprieda- A imprensa do início do século XX retratava bem de e aos bons costumes e que, se não chegavam, de o estado hipnótico produzido por esses crimes entre a certa forma, a aterrorizar a sociedade, demonstravam massa urbana. Os jornais, já veículos de comunicação que parcela significativa desses crimes, ou da reação a de massa (o Rio de Janeiro possuía vinte jornais diári- eles, carregava tais características que os tornavam os em 1911), produziam cada vez mais e mais notícias peculiares ou emblemáticos, na medida em que pro- de crimes, suicídios e julgamentos. Havia, na verdade, duziam e geravam algum tipo de reação mais enfática também uma certa teatralidade na linguagem empre- dessa sociedade que valorizava cada vez mais a mo- gada nas notícias, e na maneira como eram e costu- dernidade, seus costumes e seus valores. mavam ser retratados os crimes. Certos crimes e cer- Os crimes comuns, de uma forma geral, diziam tos julgamentos chamavam tamanha atenção que respeito a pequenos furtos, a arrombamentos, a espan- figuravam como uma espécie de espetáculo público camento de mulheres, a alcoolismo, a falsificações, a sobre a condição humana. Eram um determinado tipo assaltos, a adultério, a envolvimento com drogas e de show, em nítida imitação dos espetáculos teatrais, prostituição, enfim, crimes que não seriam exclusivos que não só dramatizava a vida das personagens envol- deste período, mas que, embora a cada época pudes- vidas, mas que também punha a desnudo ritual dra- sem assumir formas mais ou menos padronizadas de mático da justiça Os jornais faziam questão de retratá-los. ser, crivam seu espectro de peculiaridade pela reação social que cada um desses crimes tipificados pela sociedade obteve. Na verdade, por trás do fato de a 3 Boris Fausto, por exemplo, ao retratar-se ao espetáculo do Tri- conceituação de crime ser estritamente legal está o bunal, refere-se ao julgamento de Albertina Barbosa São Pau- lo, 1910 em que o advogado de defesa "comparece trajando</p>

Mais conteúdos dessa disciplina