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<p>L se A Terra e os Devaneios da Vonta as combina- de Noemi Favassa da sem des</p><p>do To Gaston Bachelard into A Terra e os Devaneios da Vontade Ensaio sobre a imaginação das forças Tradução MARIA ERMANTINA GALVÃO Martins Fontes São Paulo 2001</p><p>LA TERRE ET LES DE LA VOLONTE Copyright by São esta edição fevereiro de 1991 edição de 2001 ÍNDICE Tradução MARIA ERMANTINA GALVÃO Revisão da tradução Revisão gráfica Cardoso PREFÁCIO PARA DOIS LIVROS Produção gráfica Geraldo A imaginação material e a imaginação falada I Dados de Catalogação Publicação (CIP) Brasileira Livro, PRIMEIRA PARTE A terra e os devancios da vontade : ensaio sobre a imaginação das forças / Gaston Bachelard : Maria Ermantina - ed. São Paulo : Martins (Tópicos) I. A dialética do energetismo imaginário. O mundo re- sistente 15 original: La et les de la II. A vontade incisiva e as matérias duras. O caráter agres- ISBN sivo das ferramentas 29 Imaginação 2. Matéria Aspectos psicológicos 3. III. As metáforas da dureza 51 4. Terra IV. A massa 61 01-0839 V. As matérias da moleza. A valorização da lama 85 para catálogo 1. Imaginação das forças : Psicologia VI. O lirismo dinâmico do ferreiro 107 Todos direitos desta edição para a portuguesa reservados à Livraria Editora Ltda. Rua Conselheiro 01325-000 São Paulo SP Brasil SEGUNDA PARTE Tel. (II) 239.3677 Fax 3105.6867 VII. O rochedo 147 VIII. O devaneio petrificante 165</p><p>IX. metalismo e o mineralismo 187 X. Os cristais. O devaneio cristalino 229 XI. O orvalho e a pérola 257 TERCEIRA PARTE PREFÁCIO PARA DOIS LIVROS XII. A psicologia da gravidade 271 A IMAGINAÇÃO MATERIAL E A IMAGINAÇÃO FALADA Todo símbolo tem uma carne, nho uma O. L'amoureuse initiation I Aqui está, em dois livros, a quarta obra que consagramos à imaginação da matéria, à imaginação dos quatro elementos mate- riais que a filosofia e as ciências antigas, seguidas pela alquimia, colocaram na base de todas as coisas. Nos livros anteriores, tenta- mos classificar e aprofundar, sucessivamente, as imagens do fogo, da água, do ar. Restava a tarefa de estudar as imagens da terra. Essas imagens da matéria terrestre oferecem-se a nós em profu- são num mundo de metal e de pedra, de madeira e de gomas; são estáveis e tranquilas; temo-las sob os olhos; sentimo-las nas mãos, despertam em nós alegrias musculares assim que tomamos o gosto de Portanto, parece ser fácil a tarefa que nos resta fa- zer para ilustrar, através de imagens, a filosofia dos quatro elemen- tos. Parece que podemos, passando das experiências positivas às experiências estéticas, mostrar com mil exemplos o interesse apai- xonado do devaneio pelos belos sólidos que "posam" infinitamente diante de nossos olhos, pelas belas matérias que obedecem fielmente ao esforço criador de nossos dedos. E no entanto, com as imagens materializadas da imaginação "terrestre" começam, para as nos- sas teses da imaginação material e da imaginação dinâmica, difi- culdades e paradoxos sem fim.</p><p>2 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE IMAGINAÇÃO MATERIAL E A IMAGINAÇÃO FALADA 3 De fato, diante dos espetáculos do fogo, da água, do céu, palavra especial para designar a imagem imaginada. Tudo aquilo que devancio que busca a substância nos aspectos não era de é dito nos manuais sobre a imaginação reprodutora deve ser credi- modo algum bloqueado pela Estávamos verdadeiramente tado à percepção e à memória. A imaginação criadora tem funções diante de um problema da imaginação; tratava-se precisamente de totalmente diferentes daquelas da imaginação reprodutora. Cabe sonhar numa substância profunda o fogo tão vivo e tão colorido; a ela essa função do irreal que é psiquicamente tão útil como a função tratava-se de imobilizar, diante de uma água fugidia, a substância do real evocada com tanta pelos psicólogos para caracte- dessa fluidez; enfim, era preciso, diante de todos os conselhos de rizar a adaptação de um espírito a uma realidade marcada pelos leveza que nos dão as brisas e os imaginar em nós a própria valores sociais. Esta função do irreal irá reconhecer, precisamente, substância dessa leveza, a própria substância da liberdade aérea. valores de solidão. O devaneio comum é um de seus aspectos mais Em suma, matérias sem dúvida reais, mas inconsistentes e móveis, simples. Mas teremos muitos outros exemplos de sua atividade se reclamavam ser imaginadas em profundidade, numa intimidade aceitarmos seguir a imaginação imaginante em sua busca de ima- da substância e da força. Mas com a substância da terra, a matéria traz tantas experiências positivas, a forma é tão tão evi- gens imaginadas. Como o devaneio é sempre considerado pelo aspecto de uma dente, tão real, que não se vê claramente como se pode dar corpo descontração, ignoram-se esses sonhos de ação precisa que desig- a devaneios relativos à intimidade da matéria. Como diz Baude- naremos como devaneios da vontade. E mais, quando o real se faz pre- laire: "Quanto mais a matéria é, em aparência, positiva e sólida, sente, com toda a sua força, com toda a sua matéria terrestre, pode- mais sutil e laborioso é trabalho da imaginação." se crer facilmente que a função do real descarta a função do Em suma, com a imaginação da matéria terrestre, nosso longo Esquecem-se então as pulsões inconscientes, as forças oníricas que debate sobre a função da imagem se reanima, e desta vez nosso se extravasam sem cessar na vida consciente. Teremos, pois, de adversário tern inumeráveis argumentos, sua tese afigura-se imba- redobrar a atenção se quisermos descobrir a atividade prospectiva tível: tanto para a filosofia realista como para comum dos psicó- das imagens, se quisermos colocar a imagem antes mesmo da per- logos, é a percepção das imagens que determina os processos da ima- cepção, como uma aventura da percepção. ginação. Para eles, vemos as coisas primeiro, imaginamo-las de- pois; combinamos, pela imaginação, fragmentos do real percebi- do, lembranças do real vivido, mas não atingir o do- II mínio de uma imaginação fundamentalmente criadora. Para com- binar ricamente, é mister ter visto muito. O conselho de bem Para nós, debate que queremos encetar sobre a primitivida- que forma o fundo da cultura realista, domina sem dificuldade o de da imagem é imediatamente decisivo, pois vinculamos a vida nosso paradoxal conselho de bem sonhar, de sonhar permanecendo própria das imagens aos arquétipos cuja atividade foi mostrada pela fiel ao onirismo dos arquétipos que estão enraizados no inconsciente As imagens imaginadas são antes sublimações dos ar- humano. quétipos do que reproduções da realidade. E como a sublimação Entretanto, vamos empregar a presente obra em refutar essa é o dinamismo mais normal do psiquismo, poderemos mostrar que doutrina nítida e clara e em tentar, no terreno que nos é mais des- as imagens saem do próprio fundo humano. Portanto, diremos com favorável, estabelecer uma tese que afirma o caráter primitivo, o "Da imaginação produtora devem ser deduzidas todas caráter psiquicamente fundamental da imaginação criadora. Em as faculdades, todas as atividades do mundo interior e do mundo outras palavras, para nós, a imagem percebida e a imagem criada Como dizer melhor que a imagem tem uma dupla rea- são duas instâncias psíquicas muito diferentes e seria preciso uma 2. Novalis, Schriften, II, p. 3. Cf. Henry Vaughan, Hermetical Work, ed. 1914, P 574: 1. Baudelaire, Curiosités p. 317. tion is a star excited in the firmament of man by some external Object."</p><p>4 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A IMAGINAÇÃO MATERIAL E A IMAGINAÇÃO FALADA 5 lidade: uma realidade e uma realidade física? É pela ima- trabalho geral consiste em classificar essas imagens fundamentais gem que o ser imaginante e o ser imaginado estão mais próximos. mas cada uma das imagens que surgem sob a pena de um escri- O psiquismo humano formula-se primitivamente em imagens. Ci- tor deve ter a sua diferencial de novidade. Uma imagem literária tando esse pensamento de Novalis, pensamento que predomina no diz o que nunca será imaginado duas vezes. Pode-se ter algum mé- idealismo mágico, Spenlé lembra4 que Novalis desejava que Fichte rito em recopiar um quadro. Não se terá nenhum em repetir uma tivesse fundado uma "Fantástica Então a imagi- imagem literária. nação teria a sua metafísica. Reanimar uma linguagem criando novas imagens, esta é a fun- Não tomaremos as coisas de tão alto e nos bastará encontrar ção da literatura e da poesia. Jacobi escreveu: "Filosofar nunca nas imagens os elementos de um metapsiquismo. ao que tendem, é mais do que descobrir as origens da e Unamuno parece-nos, os belos trabalhos de C. G. Jung que descobre, por assinala explicitamente a ação de um metapsiquismo na origem da exemplo, a ação dos arquétipos do insconsciente nas imagens da linguagem: "Que fartura de filosofia inconsciente nos alquimia. Nesse campo, teremos inúmeros exemplos de imagens da linguagem! O futuro procurará o rejuvenescimento da que se tornam Poderemos, pois, examinar toda a região psi- sica na metalingüística, que é uma verdadeira metalógica." Ora, quica intermediária entre as pulsões inconscientes e as primeiras toda imagem literária nova é um texto original da linguagem. Pa- imagens que afloram na consciência. Veremos então que o proces- ra perceber-lhe a ação, não é necessário ter os conhecimentos de so de sublimação encontrado pela psicanálise é um processo psi- um lingüista. A imagem literária nos dá a experiência de uma cria- quico Através da sublimação desenvolvem-se os va- ção de linguagem. Se examinamos uma imagem literária com uma lores estéticos que se nos afigurarão valores indispensáveis para a consciência de linguagem, recebemos dela um dinamismo psíquico no- atividade psíquica normal. vo. Portanto, acreditamos ter a possibilidade, no simples exame das imagens literárias, de descobrir uma ação eminente da ima- ginação. III Ora, estamos num século da imagem. Para o bem ou para o mal, estamos mais do que nunca sujeitos à ação da imagem. E se Mas, já que estamos limitando o nosso assunto, digamos por admitirmos considerar a imagem em seu esforço literário, em seu que, nos livros sobre a imaginação, restringimo-nos a considerar esforço para no primeiro plano as proezas da ex- a imaginação literária. pressão, apreciaremos talvez melhor esse impeto literário que ca- Há para isso, em primeiro lugar, uma razão de competência. racteriza os tempos modernos. Parece que já há zonas em que a Ambicionamos apenas uma: a competência de leitura. Não passa- literatura se revela como uma explosão da linguagem. Os químicos mos de um leitor, de um ledor. E passamos horas, dias, a ler em prevêem uma explosão quando a probabilidade de ramificação lenta leitura os livros linha por linha, resistindo o mais que podemos torna-se maior do que a probabilidade de término. Ora, no impeto à sedução das histórias (isto é, à parte claramente consciente dos e no fulgor das imagens literárias, as ramificações se multiplicam; livros) para estarmos bem certos de habitar as imagens novas, as as palavras já não são simples termos. Não se terminam por pen- imagens que renovam os arquétipos inconscientes. samentos; têm o porvir da imagem. A poesia faz o sentido da pala- Pois essa novidade é evidentemente o signo da potência criado- vra ramificar-se, envolvendo-a numa atmosfera de imagens. Mos- ra da imaginação. Uma imagem literária imitada perde a sua vir- traram que a maior parte das rimas de Victor Hugo suscitava ima- tude de animação. A literatura deve surpreender. Certamente, as gens; entre duas palavras que rimam intervém uma espécie de obri- imagens literárias podem explorar imagens fundamentais - e nosso gação de metáfora: assim as imagens se associam apenas em virtu- 4. Spenlé, p. 147. 5. Unamuno, L'essence de trad. fr., p. 69.</p><p>6 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A IMAGINAÇÃO MATERIAL E A IMAGINAÇÃO FALADA 7 de da sonoridade das palavras. Numa poesia mais livre, como o surrealismo, a linguagem está em plena ramificação. Então o poe- centrado no interior das Pretensões que não podem valer ma é um cacho de imagens. senão como atos da linguagem, empregando Tais Mas teremos a oportunidade de dar nesta obra inúmeros exem- serão portanto, para nós, os objetos: centros de poemas. Tal será plos de imagens que lançam o espírito em várias direções, que agru- portanto, para nós, a matéria: a intimidade da energia do traba- pam elementos inconscientes diversos, que realizam sobreposições lhador. Os objetos da terra nos devolvem eco de nossa promessa de sentidos de maneira que a imaginação literária tenha também de energia. O trabalho da matéria, assim que lhe devolvemos todo seus O que queríamos indicar, nestas visões pre- o seu onirismo, desperta em nós um narcisismo de nossa coragem. liminares, é que a expressão literária tem vida autônoma e que a Mas só quisemos neste prefácio precisar filosoficamente nosso imaginação literária não é uma imaginação de segunda posição, assunto e inserir nossos dois novos livros na de Ensaios vindo depois das imagens visuais registradas pela percepção. Por- que estamos publicando há vários anos sobre a imaginação da ma- tanto, foi uma tarefa precisa, para nós, limitar nossos trabalhos so- téria. Ensaios que deveriam constituir pouco a pouco os elementos bre a imaginação de maneira a só considerar a imaginação literária. de uma filosofia da imagem literária. Tais empreendimentos pra- Além do mais, quando pudermos chegar ao fim de nosso pa- ticamente só podem ser julgados nos detalhes dos argumentos e na radoxo, reconheceremos que a linguagem está no posto de coman- abundância dos pontos de vista. Vamos pois indicar brevemente do da imaginação. Daremos um amplo espaço, sobretudo em nos- os diversos capítulos dos dois novos Ensaios, tentando mostrar a sa primeira obra, ao trabalho falado. Examinaremos as imagens do ligação entre eles. trabalho, os devaneios da vontade humana, o onirismo que acom- panha as tarefas materiais. Mostraremos que a linguagem poética, IV quando traduz imagens materiais, é um verdadeiro encantamento de energia. Naturalmente, não entra em nossos projetos isolar as faculda- Decidimos dividir a nossa pesquisa em dois livros, porque na des Demonstraremos, pelo contrário, que a imaginação evolução dessa pesquisa encontramos o sinal bastante nítido dos dois movimentos tão claramente distinguidos pela psicanálise: a ex- e a vontade, que poderiam, numa visão elementar, passar por an- titéticas, são, no fundo, estreitamente interdependentes. Só gosta- troversão e a introversão; de forma que no primeiro livro a imagi- mos daquilo que imaginamos ricamente, daquilo que cobrimos de nação aparece antes como extrovertida, e no segundo como intro- belezas Assim trabalho enérgico das matérias duras vertida. Na primeira obra seguiremos sobretudo os devaneios ati- e das massas amassadas pacientemente é animado por belezas pro- vos que nos convidam a agir sobre a matéria. No segundo, o deva- neio fluirá ao longo de uma inclinação mais comum; seguirá essa metidas. aparecer um pancalismo ativo, um pancalismo que deve prometer, que deve projetar belo além do útil, logo, um pan- involução que nos traz de volta aos primeiros refúgios, que valoriza calismo que deve falar. todas as imagens da intimidade. Grosso modo, teremos então o Há uma grande diferença entre uma imagem literária que des- tico do trabalho e do repouso. Mas mal acabamos de fazer uma distinção tão nítida e cum- creve uma beleza já realizada, uma beleza que encontrou sua ple- na forma, e uma imagem literária que trabalha no mistério da ma- pre lembrar que os devaneios de introversão e os devaneios de ex- troversão estão raramente isolados. Afinal, todas as imagens se de- téria e quer mais sugerir do que descrever. Por isso a nossa posição senvolvem entre os dois pólos, vivem dialeticamente seduções do particular, apesar de suas limitações, oferece muitas vantagens. Dei- universo e certezas da intimidade. Logo, faríamos uma obra xemos a outros o cuidado de estudar a beleza das formas; quere- cia se não déssemos às imagens seu duplo movimento de extrover- mos consagrar nossos esforços a determinar a beleza íntima das ma- são e de introversão, se não esclarecêssemos a ambivalência delas. térias; sua massa de atrativos ocultos, todo esse espaço afetivo con- Cada imagem, seja qual for a parte em que estiver estudo, deve-</p><p>8 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A IMAGINAÇÃO MATERIAL E A IMAGINAÇÃO FALADA 9 rá portanto receber todos os seus valores. As imagens mais belas ças. Decidimos portanto começar pelas imagens da dureza. Aliás, são amiúde focos de se fosse preciso dizer tudo sobre uma escolha bem assente entre as imagens de mole e duro, faríamos muitas confidências sobre a nossa vida íntima. V Entre os dois pólos da imaginação das matérias duras e das matérias moles, uma síntese se oferecia com a matéria forjada. Vejamos então a dos estudos reunidos sob o título: Os devaneios da nhamos aí a oportunidade de mostrar os valores dinâmicos de um ofício completo do ponto de vista da imaginação material, porquanto Num primeiro capítulo, quisemos apresentar, de uma manei- utiliza os quatro elementos - um ofício heróico que dá ao homem ra decerto um tanto sistemática demais, a dialética do duro e do os poderes de um demiurgo. Consagramos um longo capítulo às mole, dialética que rege todas as imagens da matéria terrestre. A imagens da forja; elas regem um dinamismo masculino que marca terra, com efeito, ao contrário dos outros três elementos, tem como profundamente o inconsciente. Esse capítulo serve de conclusão para primeira característica uma Os outros elementos podem a primeira parte do livro onde estão estreitamente reunidos os ca- ser hostis, mas não são sempre hostis. Para conhecê-los inteiramen- racteres da imaginação da matéria e os da imaginação das forças. te, é preciso sonhá-los numa ambivalência de brandura e de ma- A segunda parte do primeiro livro examina imagens em que A resistência da matéria terrestre, pelo contrário, é o ser que imagina envolve-se A propósito de certas ima- diata e constante. E de imediato parceiro objetivo e franco de gens literárias do Rochedo e da Petrificação tratadas nos capítulos nossa vontade. Nada mais claro, para classificar as vontades, do VII e VIII, poder-se-ia mesmo notar uma recusa de participação: que as matérias trabalhadas pela mão do homem. Tentamos por- as formas do rochedo são imaginadas à distância, tomando-se re- tanto caracterizar, no limiar de nosso estudo, o mundo resistente. cuo. Mas o sonho das matérias não se contenta com a contempla- Dos quatro capítulos seguintes, dois são dedicados ao traba- ção longínqua. Os sonhos de pedra procuram forças O lho e às imagens das matérias duras, dois às imagens da massa e nhador apossa-se dessas forças e, quando as dominou, sente bro- às matérias da moleza. Hesitamos muito tempo sobre que ordem tar nele um devaneio da vontade de poder que apresentamos como dar a esses dois pares de capítulos. A imaginação da matéria incli- um verdadeiro complexo de Medusa. na a ver na massa a matéria primitiva, a prima materies. E assim Desses sonhos de pedra sempre um pouco ou mais que se evoca uma primitividade, abrem-se ao sonho inumeráveis ou menos ligados às formas exteriores passamos para o exame das Por exemplo, Fabre escreve: "A letra M, co- imagens do metalismo. Mostramos que as intuições vitalistas que locada no começo das palavras, pinta tudo o que é local e desempenharam um papel tão grande na alquimia estão normal- A Mão, a Matéria, a Mãe, o Mar teriam assim a ini- mente ativas na imaginação humana, e que encontramos o efeito cial da Não quisemos seguir imediatamente tais de- delas em numerosas imagens literárias relativas aos minerais. vaneios de primitividade, e primeiro consideramos a imaginação Fizemos a mesma demonstração, em dois pequenos capítulos, da energia, imaginação que se forma mais naturalmente nos com- para o sonho das substâncias cristalinas e para as imagens da péro- bates do trabalho contra a matéria dura. Abordando de imediato la. Não é difícil, nos devaneios relativos a essas matérias, mostrar a dialética Imaginação e Vontade, preparamos as possibilidades de a valorização imaginária das pedras preciosas. A polivalência do uma síntese da imaginação das matérias e da imaginação das for- valor está aqui sem limites. A jóia é uma monstruosidade psicoló- 6. Fabre d'Olivet, La langue hébraique Paris, 1932, t. II, p. 75. Um gica da valorização. Limitamo-nos a pôr em evidência os valores outro arqueólogo do alfabeto diz que a letra M representa as ondas do mar. Desta imaginários formados pela imaginação material. opinião de Fabre d'Olivet, vê-se a dualidade de uma imaginação da forma A terceira parte do primeiro livro comporta apenas um capí- de uma imaginação da matéria. tulo. Nele tratamos de uma psicologia da gravidade. É um proble-</p><p>10 A TERRA E os DA VONTADE A IMAGINAÇÃO MATERIAL E A IMAGINAÇÃO FALADA 11 ma que deve ser tratado duas vezes: uma primeira vez, em psico- logia aérea, como tema de uma segunda vez, em psicologia oportunidade para apresentar, de uma forma simples, a lei da iso- morfia das imagens da profundidade. Um psicanalista não terá di- terrestre, como tema de queda. Mas esses dois temas, tão contrá- rios logicamente, estão ligados nas imagens, e assim como havía- ficuldade em provar que essa isomorfia provém de uma mesma ten- dência inconsciente: a volta à mãe. Mas tal diagnóstico prejudica mos falado da queda em nosso livro o an os sonhos, precisaremos, o valor próprio das imagens. Pareceu-nos que seria conveniente es- no presente livro, consagrado às imagens dinâmicas da imagina- tudar separadamente os três itinerários dessa volta à mãe. Não é ção terrestre, falar das forças de reduzindo o psiquismo a suas tendências profundas que se explica- De qualquer modo, um ensaio sobre a imaginação das forças rá seu desenvolvimento em imagens múltiplas, superabundantes, encontra a sua conclusão normal numa imagem das lutas do ho- sempre renovadas. mem contra a gravidade, na atividade de um complexo que desig- Depois de tratar as imagens literárias da gruta, examinamos namos o complexo de Atlas. uma camada inconsciente mais profunda, com menos imagens. Com o título labirinto, seguimos sonhos mais tumultuosos, mais tortuosos, menos que dialetizam o sonho dos refúgios VI mais espaçosos. Sob muitos aspectos os sonhos da gruta e os do labirinto são contrários. A gruta é um repouso. O labirinto repõe O segundo volume, que deve concluir nossos estudos sobre a o sonhador em movimento. imaginação da terra, tem por título A terra e devaneios do repouso, Numa terceira e última parte, agrupamos três pequenos estu- e por subtítulo Ensaio sobre as imagens da dos que trazem três exemplos daquilo que poderia ser uma enci- No primeiro capítulo reunimos e classificamos as imagens, sem- clopédia das imagens. Os dois primeiros estudos sobre a serpente e pre renovadas, que queremos nos fazer do interior das A sobre a raiz podem aliás ser associados ao dinamismo do pesadelo imaginação está, nessas imagens, inteiramente dedicada à sua ta- labiríntico. Com a serpente - labirinto animal e com a raiz refa de superação. Quer ver o invisível, apalpar o grão das subs- labirinto vegetal - encontramos todas as imagens dinâmicas do Valoriza extratos, tinturas. Vai ao fundo das coisas, como movimento retorcido. A interdependência desses estudos de dois se devesse encontrar, numa imagem final, o repouso de imaginar. seres terrestres com os estudos desenvolvidos em A e devaneios Julgamos útil fazer em seguida algumas observações sobre a da vontade fica, a partir daí, manifesta. intimidade em conflito. O segundo capítulo apresenta-se, pois, como O último capítulo sobre vinho a vinha dos alquimistas tende uma dialética do primeiro. Sob uma superfície sempre a mostrar que é um concreto, um que concre- ficamos admirados de encontrar uma matéria agitada. O repouso tiza os valores mais O devaneio das essências poderia for- e a agitação têm assim as suas imagens muitas vezes justapostas. necer naturalmente o tema de inúmeras monografias. Apresentando Foi numa dialética semelhante que desenvolvemos terceiro o esboço de tal monografia, quisemos provar que a imaginação não capítulo sobre a imaginação das qualidades substanciais. Essa ima- é necessariamente uma atividade desordenada, mas que, pelo con- ginação das qualidades nos parece inseparável de uma verdadeira trário, encontra toda a sua força quando se concentra numa ima- tonalização do sujeito Reencontramos muitos temas gem privilegiada. já encontrados nos da vontade. Em suma, na imagina- ção das qualidades, o sujeito quer apreender, com pretensões de gas- trônomo, o fundo das substâncias, e ao mesmo tempo vive na dia- VII lética dos matizes. Numa segunda parte, estudamos, em três capítulos, as gran- Antes de terminar essas observações gerais, vamos dar expli- des imagens do a casa, o ventre, a Encontramos uma cações sobre uma omissão que por certo nos será censurada. Não</p><p>12 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE coligimos, num livro sobre a terra, as imagens da lavoura. Sem dúvida, não é por falta de apego à terra. Muito pelo contrário, pareceu-nos que seria trair o pomar e o jardim falar deles num curto capítulo. Seria preciso um livro inteiro para discorrer sobre a agri- cultura imaginária, sobre as alegrias da enxada e do ancinho. a poesia estereotipada do arado mascara tantos valores que seria PRIMEIRA PARTE necessário uma psicanálise para livrar a literatura de seus falsos la- vradores. Mas temos de nos desculpar por certas insuficiências de análi- se nos próprios detalhes de nossos estudos. A razão é que julgamos não dever fragmentar alguns de nossos documentos literários. Quan- do nos pareceu que uma imagem se desenvolvia em vários regis- tros, agrupamo-lhe as características, apesar do risco de perder a homogeneidade dos capítulos. Com efeito, a imagem não deve ser estudada em fragmentos. Ela é, precisamente, um tema de totali- dade. Requer a convergência das impressões mais diversas, das im- pressões que vêm de vários sentidos. É com essa condição que a imagem assume valores de sinceridade e seduz o ser em sua totali- dade. Esperamos que o leitor perdoe as digressões e as extensões - até mesmo as repetições - acarretadas pelo cuidado de não ti- rar das imagens sua vida ao mesmo tempo múltipla e profunda.</p><p>CAPÍTULO I A DO ENERGETISMO O MUNDO RESISTENTE A hostilidade mais próxima do que RILKE, Elegias de Duíno, IV trabalho manual é o estudo do mundo exterior. EMERSON I A dialética do duro e do mole rege todas as imagens que nós fazemos da matéria íntima das coisas. Essa dialética anima pois só tem seu verdadeiro sentido numa animação - todas as imagens mediante as quais participamos ativamente, ardentemente, da in- timidade das Duro e mole são os primeiros qualificati- vos recebidos pela resistência da matéria, a primeira existência mica do mundo resistente. No conhecimento dinâmico da matéria - e correlativamente nos conhecimentos dos valores dinâmicos de nos- so ser - nada fica claro se não colocamos de início os dois termos duro e mole. Vêm em seguida experiências mais ricas, mais sutis, um imenso campo de experiências Mas na ordem da matéria, o sim e o não se dizem mole e duro. Não há imagens da matéria sem essa dialética de convite e de exclusão, dialética que a imaginação a inumeráveis metáforas, dialética que às vezes se inverterá sob a ação de curiosas ambivalências até definir,</p><p>16 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A DO ENERGETISMO IMAGINÁRIO 17 por exemplo, uma hostilidade hipócrita da moleza ou um convite resistência é material. A assim como a psicologia, não provocador da dureza. Mas as bases da imaginação material resi- soube encontrar bons meios para avaliar as forças. Falta-lhe esse dem nas imagens primitivas da dureza e da moleza. Essas imagens dinamômetro psíquico representado pelo trabalho efetivo da são tão verdadeiramente elementares que sempre poderemos ria. Ela está, como a psicologia descritiva, reduzida a uma espécie encontrá-las apesar de todas as transposições, a despeito de toda de topologia psíquica: determina níveis, camadas, associações, com- inversão, no fundo de todas as metáforas. plexos, símbolos. verdade que ela avalia, por seus resultados, as E se é verdade, como daremos muitas provas disso, que a ima- pulsões Mas não preparou os meios de uma verdadei- ginação da resistência que atribuímos às coisas confere a primeira coor- ra dinamologia psíquica, de uma dinamologia detalhada que entre na denação às violências que a nossa vontade exerce contra as coisas, individualidade das imagens. Noutras palavras, a psicanálise se con- torna-se evidente que é no trabalho excitado de modos tão diferen- tenta em definir as imagens por seu simbolismo. Mal é detectada tes pelas matérias duras e pelas matérias moles que tomamos cons- uma imagem pulsional, mal é descoberta uma lembrança trauma- ciência de nossas próprias potências dinâmicas, de suas varieda- tizante, a psicanálise coloca o problema da interpretação social. Omi- des, de suas contradições. Através do duro e do mole aprendemos te todo um campo de pesquisas: o próprio campo da imaginação. a pluralidade dos devires, recebendo provas bem diferentes da efi- Ora, o psiquismo é animado por uma verdadeira fome de imagens. cácia do tempo. A dureza e a moleza das coisas nos Ele quer Em suma, sob a imagem, a psicanálise busca a rea- à força a tipos de vidas dinâmicas bem O mundo re- lidade; omite a investigação inversa: sobre a realidade buscar a positi- sistente nos impulsiona para fora do ser estático, para fora do ser. vidade da imagem. É nessa investigação que detectamos essa ener- E começam os mistérios da Somos desde então seres des- gia de imagem que é a própria marca do psiquismo ativo. Com o martelo ou a colher de pedreiro na mão, já não esta- Com muita o psicanalista considera que a fabula- mos sozinhos, temos um adversário, temos algo a fazer. Por pouco ção oculta É um disfarce. É portanto uma função secundá- que seja, temos, por isso, um destino cósmico. "O tijolo e a arga- ria. Ora, assim que a mão toma parte da fabulação, assim que as massa, diz encobrem segredos mais profundos que a flo- energias reais estão envolvidas numa obra, assim que a imagina- resta e a montanha, doce Todos esses objetos resistentes tra- ção atualiza suas imagens, o centro do ser perde a sua substância zem a marca das ambivalências da ajuda e do São seres de infelicidade. A ação se torna no mesmo instante o nada da infe- por Dão-nos o ser de nossa perícia, o ser de nossa energia. licidade. O problema que se coloca é então a manutenção de um estado dinâmico, o restabelecimento das vontades dinâmicas nu- ma ritmanálise de ofensividade e de domínio. A imagem é sempre II uma promoção do ser. Imaginação e excitação são Por certo infelizmente! há excitações sem imagens, mas mesmo as- Os psicanalistas nos farão prontamente uma dirão que sim não há imagens sem excitação. os verdadeiros adversários são humanos, que a criança encontra as Tentemos, pois, caracterizar rapidamente, antes de primeiras proibições na família, e que em geral as resistências que mal- ver longamente o seu estudo, a imaginação da resistência, a subs- tratam o psiquismo são sociais. Mas restringir-se, como faz tancialidade imaginária do contra. temente a à tradução humana dos símbolos, é esque- cer toda uma esfera de exame a autonomia do simbolismo para a qual queremos precisamente chamar a atenção. Se no mun- III do dos símbolos a resistência é humana, no mundo da energia a Que seria uma resistência se não tivesse uma persistência, uma 1. H. Melville, Pierre, trad. fr., p. 261. profundidade substancial, a profundidade mesma da matéria? Os</p><p>18 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A DO ENERGETISMO IMAGINÁRIO 19 psicólogos podem muito bem repetir que a criança repentinamen- gressos regulares da tarefa. Assim a luta do trabalho é a mais cerra- te enfurecida bate na mesa contra a qual acaba de se Es- da das lutas; a duração do gesto trabalhador é a mais plena das du- se gesto, essa cólera efêmera, solta depressa demais a agressividade rações, aquela em que o impulso visa mais exatamente e mais con- para que aí encontremos as verdadeiras imagens da imaginação cretamente seu alvo. Aquela também em que há o maior poder de agressiva. Veremos mais adiante os achados imaginários da cólera integração. Ao ser que está trabalhando, o gesto do trabalho inte- discursiva, da cólera que anima o trabalhador contra a matéria sem- gra de algum modo o objeto resistente, a própria resistência da ma- pre rebelde, primitivamente rebelde. Mas, desde agora, deve-se téria. Uma matéria-duração é aqui uma emergência dinâmica aci- compreender que a imaginação ativa não começa como uma sim- ma de um E mais uma vez, nessa matéria-duração, ples reação, como um reflexo. A imaginação precisa de um ani- se realiza antes como devir do que como ser. Conhece mismo dialético, vivido ao encontrar no objeto respostas às violên- uma promoção de ser. cias intencionais, dando ao trabalhador a iniciativa da provocação. O projeto acompanhado por uma jovem energia se fixa direto A imaginação material e dinâmica nos faz viver uma adversidade no objeto, agarra-se a ele, prende-se nele. Por isso o projeto em provocada, uma psicologia do contra que não se contenta com a pan- execução (o projeto material) tem, no fim de contas, uma estrutu- cada, com o choque, mas que se promete a dominação sobre a pró- ra temporal diferente daquela do projeto intelectual. O projeto in- pria intimidade da matéria. Assim a dureza sonhada é uma dureza telectual, em geral, distingue-se demais da execução. É o projeto de atacada incessantemente, e uma dureza que renova sem cessar as um chefe que comanda executantes. Repete a suas excitações. Considerar a dureza como um mero motivo de uma dialética hegeliana do senhor e do escravo, sem se beneficiar da exclusão, em seu primeiro não, é sonhá-la em sua forma exterior, síntese que é o domínio do trabalho que se adquire no trabalho con- em sua forma intangível. Para um sonhador da dureza íntima, o tra a matéria. granito é um tipo de provocação, sua dureza ofende, uma ofensa que não se vingará sem armas, sem ferramentas, sem os meios da astúcia humana. Não se trata o granito com uma cólera infantil. IV Será preciso estriá-lo ou poli-lo, nova dialética em que a dinamo- logia do contra encontrará a oportunidade de múltiplos matizes. As- Assim a matéria nos revela as nossas forças. Sugere uma colo- sim que devaneamos trabalhando, assim que vivemos um devaneio cação de nossas forças em categorias Dá não só uma da vontade, o tempo assume uma realidade material. Há um substância duradoura à nossa vontade, mas também esquemas do granito, assim como na filosofia hegeliana da Natureza há um porais bem definidos à nossa paciência. De imediato, a matéria re- "pirocronos", um tempo do fogo. Esse tempo da dureza das pe- cebe de nossos sonhos todo um futuro de trabalho; queremos vencê- dras, esse litocronos, não pode se definir senão como o tempo ativo la trabalhando. Desfrutamos de antemão a eficácia de nossa von- de um trabalho, um tempo que se dialetiza no esforço do trabalha- tade. Não se espantem, pois, de que sonhar imagens materiais dor e na resistência da pedra; ele se manifesta como uma espécie isso mesmo, simplesmente sonhá-las é imediatamente tonificar de ritmo natural, de ritmo bem condicionado. E é por esse ritmo a vontade. Impossível ficar distraído, ausente, indiferente, quan- que o trabalho obtém ao mesmo tempo a sua eficácia objetiva e do se sonha uma matéria resistente nitidamente designada. Não a sua tonicidade subjetiva. A temporalidade do contra recebe aqui se poderia imaginar gratuitamente uma resistência. As matérias di- eminentes inscrições. A consciência do trabalho aí se precisa simulta- versas, que se estendem entre os pólos dialéticos extremos do duro neamente nos músculos e nas articulações do trabalhador e nos pro- e do mole, designam numerosíssimos tipos de adversidades. Reci- procamente, todas as adversidades que se crêem profundamente humanas, com suas violências cínicas ou sorrateiras, com seu tu- 2. Será verdadeiramente uma experiência tão natural? Quantos pais ensinam eles mesmos essa pueril vingança aos filhos! multo ou sua hipocrisia, vêm, nas ações contra as matérias inani-</p><p>20 A TERRA E DA VONTADE A DO ENERGETISMO IMAGINÁRIO 21 madas particulares, encontrar seu Melhor que qualquer mento de todas as modificações sintéticas do indivíduo." Assim, outro complemento, o complemento de matéria especifica a hosti- lidade. Por exemplo: bater como gesso* designa de pronto o ato para o idealismo mágico de Novalis, é ser humano que desperta a matéria, é o contato da mão maravilhosa, o contato dotado de de uma violência macilenta, sem coragem, pálida embriaguez pul- verizada. todos os sonhos do tato imaginante que dá vida às qualidades que estão adormecidas nas coisas. Mas não há necessidade alguma de Ao estudar as imagens materiais, descobriremos - para falar dar a iniciativa ao imaginante como faz o idealismo mágico. Que como psicanalista a imago de nossa energia. Em outras palavras, importa realmente quem começa as lutas e os diálogos, quando es- a matéria é nosso espelho energético; é um espelho que focaliza as sas lutas e esses diálogos encontram sua força e sua vivacidade em nossas potências iluminando-as com alegrias imaginárias. E-como num livro sobre as imagens sem dúvida é permitido abusar das ima- sua dialética multiplicada, em seu contínuo ricochetear. E nossa ta- refa, muito mais simples, consistirá em mostrar a alegria das ima- gens, diríamos de grado que o corpo duro que dispersa todos gens que superam a realidade. os golpes é o espelho convexo de nossa energia, ao passo que o corpo Mas, evidentemente, a realidade material nos instrui. De tanto mole é o seu espelho O certo é que os devaneios materiais manejar matérias muito diversas e bem individualizadas, podemos mudam a dimensão de nossas potências; dão-nos as ilusões da oni- adquirir tipos individualizados de flexibilidade e de decisão. Não potência. Essas ilusões são úteis, pois já são um encorajamento pa- só nos tornamos destros na feitura das formas, mas também nos ra atacar a matéria em seu âmago. Do ferreiro ao oleiro, sobre ferro e na massa, mostraremos mais adiante a fecundidade dos so- tornamos materialmente hábeis ao agir no ponto de equilíbrio de nossa força e da resistência da matéria. Matéria e Mão devem estar unidas nhos do trabalho. Experimentando no trabalho de uma matéria essa para formar o ponto essencial do dualismo energético, dualismo ativo curiosa condensação das imagens e das forças, viveremos a síntese que tem uma tonalidade bem diferente daquela do dualismo clás- da imaginação e da vontade. Esta síntese, que tão pouca atenção sico do objeto e do sujeito, ambos enfraquecidos pela contempla- recebeu por parte dos filósofos, é contudo a primeira das sínteses ção, um em sua inércia, outro em sua ociosidade. a ser considerada numa dinamologia do psiquismo especificamente De fato, a mão que trabalha o objeto numa ordem nova, humano. Não se quer bem senão àquilo que se imagina ricamente. na emergência de sua existência dinamizada. Nesse reino, tudo é De fato, é talvez em seu aspecto de energia imaginada que o aquisição, toda imagem é uma aceleração, ou seja, a imaginação é dualismo filosófico do sujeito e do objeto se apresenta no mais franco o "acelerador" do psiquismo. A imaginação vai, sistematicamen- equilíbrio. Noutras palavras: no reino da imaginação, pode-se di- te, depressa demais. Esta é uma característica bem banal, tão banal zer da mesma forma que a resistência real suscita devaneios dinã- que esquecem de assinalá-la como essencial. Se considerássemos micos ou que os devancios dinâmicos vão despertar uma resistên- melhor essa franja móvel em torno da realidade e, correlativamen- cia adormecida nas profundezas da matéria. Novalis publicou em te, essa superação do ser causada pela atividade imaginante, com- Athenaeum algumas páginas que esclarecem essa lei da igualdade de preenderíamos que o psiquismo humano se especifica como uma ação e reação transposta à lei da imaginação. Para Novalis, "em força de acionamento. A simples existência é então como que re- cada contato engendra-se uma substância, cujo efeito dura por to- cuada, é apenas uma inércia, um peso, um resíduo de passado, e do o tempo que durar o toque". É o mesmo que dizer que a subs- a função positiva da imaginação equivale a dissipar essa soma de tância é dotada do ato de nos tocar. Ela nos toca assim como a to- hábitos inertes, a acordar essa massa pesada, a abrir o ser para no- camos, dura ou Novalis continua: é o funda- vos alimentos. A imaginação é um princípio de multiplicação dos atributos para a intimidade das também vontade de No original, battre comme expressão idiomática que significa "bater ser mais, de modo algum evasiva, mas pródiga, de modo algum con- Traduzimos literalmente para destacar o elemento material que traditória, mas ébria de oposição. A imagem é o ser que se diferen- está na origem da expressão. (N. T.) cia para estar certo de vir a ser. E é com a imaginação literária</p><p>22 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A DIALÉTICA DO ENERGETISMO IMAGINÁRIO 23 que essa diferenciação fica imediatamente nítida. Uma imagem li- [...] a linha curva é a A imaginação humana é um terária destrói as imagens preguiçosas da percepção. A imagina- reino novo, o reino que totaliza todos os princípios de imagens em ção literária desimagina para melhor reimaginar. ação nos três reinos mineral, vegetal, animal. Graças às imagens, Então, tudo fica positivo. O lento não é rápido freado. O lento o homem é apto para terminar a geometria interna, a geometria imaginado também quer seu O lento é imaginado num verdadeiramente material de todas as Pela imagina- exagero da lentidão, e o ser imaginante usufrui não a lentidão, mas ção, o homem se dá a ilusão de excitar as potências formadoras o exagero da desaceleração. Vejam como os seus olhos brilham, de todas as matérias: ele mobiliza a flecha do duro e a bola do mo- leiam no seu rosto a alegria fulgurante de imaginar a lentidão, a le - aguça a mineralidade hostil do duro e amadurece o fruto re- alegria de desacelerar tempo, de impor ao tempo um futuro de dondo do mole. De qualquer modo, as imagens materiais as ima- suavidade, de silêncio, de quietude. O lento recebe assim, a seu gens que nós fazemos da matéria - são eminentemente ativas. Não modo, o signo do demais, próprio timbre do Basta en- se fala muito disso; mas elas nos sustentam assim que começamos contrar a massa que substancializa essa lentidão desejada, essa len- a confiar na energia de nossas mãos. tidão sonhada, para exagerar-lhe ainda mais a rio, poeta de mão modelante, trabalha docemente essa matéria da V elasticidade preguiçosa até momento em que nela descobre essa atividade extraordinária de fina ligação, essa alegria muito íntima Se a dialética do duro e do mole classifica com tanta facilidade dos pequeninos fios de matéria. Poucas são as crianças que não te- as solicitações que nos vêm da matéria e que decidem da vontade nham brincado com essa viscosidade entre o polegar e o indicador. de trabalho, devemos poder verificar, nas preferências pelas ima- De tais alegrias substanciais, daremos mais adiante muitas provas. gens do duro e pelas imagens do mole assim como na compla- queremos, por ora, enquadrar todos os exageros materiais en- cência por certos estados mesomorfos inúmeras deduções da ca- tre esses dois pólos de exageros que são o duro demais e o mole de- racterologia. Por certo, o caráter é, em grande parte, uma produ- mais. Esses pólos não são fixos, porquanto deles partem forças de ção do meio humano; sua psicanálise prende-se sobretudo ao meio provocação. As forças da mão operária reagem a elas e de ambos na família, nos grupos sociais mais fechados que ve- os lados empreendem estender o nosso imperialismo sobre a mos desenvolver-se a psicologia social do contra. Sob muitos aspec- matéria. tos, pode-se mesmo definir o caráter como um sistema de defesa A imaginação quer sempre comandar. Ela não poderia do indivíduo contra a sociedade, como um processo de oposição meter ao ser das coisas. Se aceita as suas primeiras imagens, é pa- a uma Uma psicologia do contra deveria portanto estu- ra modificá-las, exagerá-las. Veremos isso melhor quando estudar- dar sobretudo os conflitos do ego e do superego. mos as transcendências ativas da Quão precioso é para a Mas pretendemos trazer apenas uma contribuição muito li- nossa tese este pensamento de Tristan Tzara (Minuits pour Géant, mitada a tão vasto problema. O caráter se confirma nas horas de XVIII): "Ele preferia amassar uma rajada de vento a se entregar solidão tão favoráveis às proezas imaginárias. Essas horas de total à moleza." solidão são automaticamente horas de universo. O ser humano, que Grosso modo, e para preparar dialéticas mais sutis, pode-se di- abandona os homens e vai até o fundo de seus devaneios, olha en- zer que a agressividade que o duro excita é uma agressividade reta, ao passo que a hostilidade surda do mole é uma agressividade 3. Cf. Hegel, Philosophie de la nature, trad. fr., Vera, I, p. Um geôme- O mineralogista Romé de l'Isle escrevia: "A linha reta é particu- tra (Tobias Dantzig, A la recherche de trad. fr., 206) à linha larmente reservada ao reino mineral. [...] No reino vegetal, a redonda do Não se compreenderia bem esses valores morais se se esquecesse o papel da imaginação encontra-se ainda a linha reta com bastante mas sem- 4. Lacan, "Les complexes familiaux dans la formation de pre acompanhada pela linha curva. Enfim, nas substâncias animais (Encyclopédie t. VIII: Sur la vie mentale).</p><p>24 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A DO ENERGETISMO IMAGINÁRIO 25 as coisas. Devolvido assim à natureza, o homem é devolvido rialista da vontade humana. O trabalho sobre os objetos, contra suas potências transformadoras, à sua função de transformação a matéria, é uma espécie de psicanálise natural. Oferece chances material, mas somente se ele vai à solidão não como a um retiro de cura rápida porque a matéria não nos permite enganarmo-nos longe dos homens, mas com as próprias forças do Um sobre nossas próprias forças. dos maiores atrativos do romance Robinson Crusoé é ser a narrativa De qualquer forma, à margem da realidade social, antes mes- de uma vida laboriosa, de uma vida industriosa. Na solidão ativa, o mo que as matérias sejam designadas pelos ofícios instaurados na homem quer cavar a terra, furar a pedra, talhar a madeira. Quer sociedade, precisamos considerar as realidades materiais verdadei- trabalhar a matéria, transformar a matéria. Então o homem não ramente primordiais, tais como nos são oferecidas pela natureza, é mais um simples filósofo diante do universo, é uma força infatigável como convites para exercer as nossas forças. Somente então, re- contra o universo, contra a substância das coisas. montamos às funções dinâmicas das mãos, longe, profundamente, resumindo um trabalho de Benveniste e Renou, no inconsciente da energia humana, antes dos recalques da razão diz que adversário do deus indo-iraniano da vitória é "antes um prudente. A imaginação é então cortante ou ligante, separa ou sol- neutro ('A do que um masculino, antes um conceito da. Basta dar a uma criança substâncias bastante variadas para ver inanimado do que um demônio, [...] (o combate) é essencialmente se apresentarem as potências dialéticas do trabalho manual. Cum- aquele do deus assaltante, ofensivo, móvel [...] e de 'algo' resis- pre conhecer essas forças primordiais nos músculos de trabalho para tente, pesado, Assim, o mundo resistente não tem de ime- avaliar em seguida sua economia nas obras refletidas. diato direito à personalidade; é preciso que ele seja provocado pe- Aqui fazemos, pois, uma escolha que vai limitar los deuses do trabalho para sair da lentidão anônima. Dumézil lem- te campo de nossas pesquisas. Entre o homem chefe de e o bra o deus-carpinteiro Tvastar que tem, como "filhos", as suas homem mestre de forjas, escolhemos o mestre operário, aquele que obras. A "criação" é, portanto, apreendida em seu sentido poli- participa do combate contra as substâncias. A vontade de poder valente. Sua imagem está gasta, e também encoberta por muita inspirada pela dominação social não é nosso problema. Quem qui- abstração. Mas, no trabalho efetivo, recobra um valor que irradia ser estudar A vontade de poder é fatalmente obrigado a examinar pri- nos mais diversos campos. No trabalho, o homem satisfaz uma po- meiro os signos da majestade. Ao fazer isso, o filósofo da vontade tência de criação que se multiplica por numerosas metáforas. de poder entrega-se ao hipnotismo das aparências; é seduzido pela Quando uma matéria sempre nova em sua resistência impede-o paranóia das utopias sociais. A vontade que queremos es- de tornar-se maquinal, trabalho de nossas mãos restitui a nosso tudar nesta obra nos desembaraça imediatamente dos ouropéis da corpo, a nossas energias, a nossas expressões, às próprias palavras majestade, ultrapassa necessariamente o campo dos signos e das de nossa linguagem, forças originais. Através do trabalho da ma- aparências, o campo das formas. téria, nosso caráter adere de novo a nosso temperamento. De fato, Claro, a vontade de trabalho não pode ser delegada, não pode as proezas sociais tendem, no mais das vezes, a criar em nós um usufruir o trabalho dos outros. Prefere fazer a mandar fazer. En- caráter oposto ao nosso temperamento. O caráter é, então, o grupo das com- tão o trabalho cria as imagens de suas forças, anima o trabalhador pensações que devem encobrir todas as fraquezas do temperamento. por meio das imagens materiais. O trabalho o trabalhador no Quando as compensações são muito mal feitas, muito mal associa- centro de um universo e não mais no centro de uma sociedade. E das, a psicanálise deve entrar em cena. Mas quantas desarmonias se o trabalhador precisa, para ser vigoroso, das imagens excessivas, lhe escapam, pelo simples fato de ela só se ocupar praticamente com é da paranóia do demiurgo que vai tirá-las. O demiurgo do vulca- instâncias sociais do caráter! A psicanálise, nascida em meio bur- nismo e o demiurgo do netunismo a terra flamejante ou a terra guês, negligencia muito amiúde o aspecto realista, o aspecto mate- molhada - oferecem seus excessos contrários à imaginação que trabalha o duro e àquela que trabalha mole. O ferreiro e o oleiro 5. Dumézil, Mythes et dieux des germains, 97. comandam dois mundos diferentes. Pela própria matéria de seu tra-</p><p>26 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A DO ENERGETISMO IMAGINÁRIO 27 balho, na proeza de suas forças, eles têm visões de universo, as vi- ao se O ser que trabalha vive necessa- contemporâneas de uma Criação. é - no próprio riamente a sucessão do esforço e do sucesso Enquanto fundo das substâncias Recria imaginativamente na adversidade humana todo fracasso, por menor que seja, mediante as imagens materiais que o animam, a própria matéria raja o introvertido, na adversidade objetiva a resistência excita o que se opõe a seus esforços. O homo faber em seu trabalho da maté- operário, na medida mesmo em que seu orgulho de perícia marca-o ria não se contenta com um pensamento geométrico de de uma introversão. No trabalho, uma forte introversão é o pe- to; desfruta a solidez íntima dos materiais básicos; desfruta a malea- nhor de enérgica extroversão. Aliás, uma matéria bem escolhida, bilidade de todas as matérias que deve vergar. E toda essa fruição conferindo ao ritmo de introversão e de extroversão a sua verda- já se encontra nas imagens prévias que encorajam ao trabalho. Ela deira mobilidade, proporciona um meio de no sentido não é um simples atestado de bom rendimento que segue um trabalho em que Pinheiro dos Santos emprega esse termo6. No trabalho efetuado. A imagem material é um dos fatores do trabalho; é o fu- no trabalho com seus sonhos certos, com os sonhos que não fogem turo muito próximo, o futuro materialmente prefigurado, de cada ao trabalho - essa mobilidade não é nem gratuita, nem está uma de nossas ações sobre a matéria. Pelas imagens do trabalho situada entre as dialéticas extremas do duro demais e do mole de- da matéria, o operário aprecia tão sutilmente as qualidades mate- mais, no ponto apropriado para as forças favoráveis do trabalhador. riais, participa tanto dos valores materiais, que se pode bem dizer É a propósito dessas forças, no arrebatamento psíquico geral des- que os conhece geneticamente, como se prestasse testemunho de sas forças aplicadas com perícia, que o ser se realiza como imagi- sua fidelidade às matérias elementares. nação Então conhecemos a um só tempo a imaginação amarrada e a imaginação penetrante. preciso estar ocioso para VI falar da imaginação vadia. Por certo, a imaginação só penetra nas profundezas totalmente Já a sensação tátil que esquadrinha a substância, que descobre, imaginárias; mas desejo de penetrar é indicado por suas imagens; sob as formas e as cores, a matéria, prepara a ilusão de tocar fun- tira das imagens de penetração material uma dinâmica que o espe- do da matéria. De imediato a imaginação material nos abre po- cifica, dinâmica feita de prudência e de A psicanálise clás- da substância, nos entrega riquezas Uma ima- sica terá interesse em estudar de perto essas imagens de penetra- gem material dinamicamente vivida, apaixonadamente adotada, ção que acompanham a ação sobre diversas matérias, em estudá- pacientemente esquadrinhada, é uma abertura em todos os sentidos las por elas mesmas, sem se precipitar, como faz com muita do termo, no sentido real, no sentido figurado. Garante a realida- cia, na sua interpretação. Então a imaginação não mais será ta- de psicológica do figurado, do imaginário. A imagem material é chada de simples potência de substituição. Aparecerá como uma uma superação do ser imediato, um aprofundamento do ser super- necessidade de imagens, como um instinto de imagens que acom- ficial. E esse aprofundamento abre uma dupla perspectiva: para panha, com toda a normalidade, instintos mais rústicos, mais gros- a intimidade do sujeito atuante e no interior substancial do objeto seiros - por exemplo, instintos tão lentos como os instintos inerte encontrado pela percepção. Então, no trabalho da matéria, A constante oportunidade da imaginação que se renova inverte-se essa dupla perspectiva; as intimidades do sujeito e do ob- e se multiplica nas imagens materiais diversas não deixará de apa- jeto se trocam entre si; nasce assim na alma do trabalhador um recer se estudarmos as imagens mais ativas, as da penetração ma- ritmo salutar de introversão e de extroversão. Mas se concentrar- terial. Veremos então a utilidade psicológica de uma aproximação mos realmente nossa energia num objeto, se lhe impusermos, apesar de sua resistência, uma forma, a introversão e a extroversão não são simples direções, simples indicadores designando dois tipos 6. Cf. Bachelard, La dialectique de la durée, cap. VIII. 7. Seguindo o lento amadurecimento dos desejos, vemos bem que a conquista opostos da vida São tipos de energia. Essas energias é É a derrota que é breve. desejo lentamente formado se desfaz num</p><p>28 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE da vontade de penetração às imagens que encorajam a penetração efetiva. Essa aproximação nos colocará no âmago da reciprocida- de em que as imagens se tornam "pulsionais" e em que os impul- sos podem aumentar a sua satisfação mediante as imagens. O ato e sua imagem, eis um mais-que-ser, uma existência dinâmica que recalca a existência estática tão nitidamente que a passividade não é mais que um nada. Definitivamente, a imagem nos estimula, nos aumenta; nos dá devir do aumento de si. CAPÍTULO II Assim, para nós, a imaginação é o próprio centro de onde par- tem as duas direções de toda ambivalência: a extroversão e a intro- versão. E se seguirmos as imagens em seus pormenores, percebe- A VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS remos que os valores estéticos e morais conferidos às imagens espe- cializam as As imagens sagazmente, com DURAS. O CARÁTER AGRESSIVO uma astúcia essencial mostrando e escondendo as espessas DAS FERRAMENTAS vontades que lutam no fundo do ser. Por exemplo, numa imagem visual acarinhada pode-se descobrir essa escoptofilia assinalada por certos psicanalistas (cf. Lacan, loc. cit.), na qual se reúnem as duas Tens um coração para a esperança e mãos tendências de e de E também, quantas imagens plenas para o de ostentação que não passam de máscaras! Mas, naturalmente, V. DE L. MILOSZ, Mañara as imagens materiais são mais engajadas. Representam te o engajamento Quando se chega às intimidades da I matéria, a agressividade franca ou ardilosa, reta ou fica carregada dos valores contrários da força e da destreza, encontrando na experiência da força todas as certezas extrovertidas, na cons- Que um objeto inerte, que um objeto duro dê ocasião não só ciência da destreza todas as introvertidas. A obra e o a uma rivalidade imediata, mas também a uma luta renitente, ar- operário se determinam mutuamente nisso, verdade decerto banal, dilosa, renovada, eis uma observação que sempre poderemos fazer se dermos uma ferramenta a uma criança solitária. A ferramenta mas que se multiplica em tão numerosos matizes que serão preci- sas longas pesquisas para especificá-la. terá imediatamente um complemento de destruição, um coeficien- Vamos dar, no capítulo seguinte, um primeiro esboço, um pi- de agressão contra a matéria. Virão em seguida tarefas felizes meiro pretexto dessa determinação mútua, apresentando primeiro sobre uma matéria dominada, mas a primeira superioridade apa- algumas observações sobre a vontade incisiva, sobre a vontade de rece como uma consciência de ponta ou de cinzel, como a cons- talhar e de entalhar, fazendo depois uma rápida incursão no tra- ciência de torção tão viva no cabo de uma A ferramenta balho real das matérias para chamar a atenção sobre caráter di- desperta a necessidade de agir contra uma coisa dura. nâmico das ferramentas, consideradas com muita em De mão vazia, as coisas são fortes demais. A força humana então se reserva. Os olhos em paz vêem as coisas, delineiam-nas seu mero aspecto formal. Teremos assim um primeiro esboço da sobre um fundo de universo, e a filosofia ofício dos olhos to- dupla perspectiva que já indicamos e que será definida primeiro por uma espécie de pesquisa psicanalítica e, em seguida, por uma re- ma a consciência de espetáculo. O filósofo coloca um não-eu de- flexão sobre as condições dinâmicas dos primeiros êxitos do traba- fronte do eu. A resistência do mundo é apenas uma metáfora, não lho das matérias. é muito mais do que uma "obscuridade", do que uma irracionali- dade. A palavra contra só tem então um aspecto de o re-</p><p>30 A TERRA E os DA VONTADE A VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS DURAS 31 trato está contra a parede. A palavra contra não virtude mica alguma: a imaginação dinâmica não a anima, não a diferen- incisiva. Mas podemos da mesma forma pretender que a imagem Mas se temos uma faca na mão, entendemos imediatamente desperta o instinto entorpecido, que a imagem material nos provo- a provocação das ca e que o mundo resistente atrai a nossa agressão. De qualquer Nunca seria demais insistir na importância da distinção entre modo deve-se concluir que a imaginação e a vontade estão aqui a mão nua e a mão Pense que pensar disso uma psicolo- o mais próximas gia naturalista, há uma descontinuidade entre a unha e arpéu. De fato, que quietude vamos encontrar nesse sadismo "con- arpéu engancha para dar campo livre a uma agressividade su- trito" voltado contra um objeto sem defesa humana. Esse sadismo plementar. O apetrecho confere um futuro à agressão. A psicolo- se exerce com bons pretextos, independentemente de qualquer ação gia da mão apetrechada deve ser instaurada em primeira do superego. Lembramo-nos da lição de moral recebida pelo jovem A mão apetrechada recalca todas as violências da mão nua. A Franklin que experimentava a sua machadinha contra as árvores mão bem apetrechada torna a mão mal apetrechada. A boa do jardim. Mas há tantos salgueiros no campo, tantas ferramenta manejada desajeitadamente provoca o riso de toda uma varas nos matagais que não foram precavidas pelo superego! Esses Uma ferramenta tem um coeficiente de valentia e um objetos da região material livre, esses objetos que não receberam as ficiente de inteligência. E um valor para um operário valoroso, Os proibições sociais, nos provocam mesmo assim. Para compreender verdadeiros devaneios da vontade são então devaneios apetrecha- essa provocação direta de um objeto do mundo resistente, cumpriria dos, devaneios que projetam tarefas sucessivas, tarefas bem orde- definir uma instância material nova, uma espécie de superid contra o qual queremos exercer as nossas forças, não só na exuberância Eles não se absorvem na contemplação do objetivo, que é precisamente o caso do veleidoso, do devaneador que não tem a de nosso extravasamento de energia, mas também no próprio exer- cício de nossa vontade incisiva, de nossa vontade acumulada sobre excitação da matéria efetiva, que não vive a dialética da resistên- cia e da ação, que não tem acesso à instância dinâmica do contra. o gume de uma ferramenta. Os devaneios da vontade operária amam os meios tanto quanto os Por certo nenhum psicanalista aceitará tal instância. Os psi- fins. Por meio deles a imaginação dinâmica tem uma história, conta canalistas traduzem tudo em sua interpretação social. Não terão histórias a si mesma. dificuldade em mostrar que toda ação contra as coisas vem como substituição hipócrita de uma ação contra superego. Mas isso é Mas antes dessas façanhas da ferramenta triunfante, vejamos os devaneios da primeira faca. esquecer um componente das imagens, apresentar somente seus as- Em quatro páginas de bela densidade de pensamento, Geor- pectos instintuais e seus aspectos sociais. E desse esquecimento que ges Blin deu os elementos principais de uma psicanálise material provém evemerismo* da que lhe faz designar todos os do desejo de seus complexos pelo nome de heróis Pelo contrário, uma doutrina da imaginação material e da imaginação dinâmica O problema está colocado em toda a sua nitidez já nas pri- deve apreender homem no mundo das matérias e das forças. A meiras linhas: máscula satisfação que nasce do gesto de enta- luta contra o real é a mais direta das lutas, a mais franca. O mun- lhar deve ser relacionada com certas formas contritas de nosso sa- do resistente promove sujeito ao reino da existência dinâmica, dismo. Qualquer integridade nos provoca." Pode-se discutir infi- à existência pelo devir ativo, donde um existencialismo da força. nitamente sobre a primazia do instinto sádico ou sobre a primazia Claro, a provocação tem mil E próprio da provocação das imagens sedutoras. Podemos dizer aqui, para defender pri- misturar os gêneros, multiplicar os vocábulos, converter-se em li- meiro ponto de vista, que o sadismo procura objetos para entalhar, para ferir. O instinto sempre tem à sua disposição uma vontade Sistemas filosóficos de Evêmero (séc. III a.C.), segundo o qual as persona- gens mitológicas são consideradas como seres humanos divinizados pelos povos. 1. Poésie 45, 28, pp. 44 e ss. (N. T.)</p><p>32 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS DURAS 33 teratura, e essa integridade da matéria dura que nos provoca vai ser atacada não somente pela mão armada, mas pelos olhos arden- à outra. É graças a essa dualidade que sadismo encontra seus subs- tes, pelas injúrias. O ardor combativo, o neikos, é Mas titutos pacíficos e disfarçados, seus "inocentes Pode- não devemos esquecer seu valor primordial, a própria raiz da for- se dizer tudo no registro matéria inerte, que seria a confissão de um ça desperta, ao mesmo tempo em nós e fora de grande crime no registro carne. Blin vai justamente de um a outro, Para a imaginação dinâmica há, com toda a evidência, além aproveitando a deliciosamente da provocação: da coisa, a supercoisa, no mesmo estilo em que o ego é dominado "O gesto de fazer uma incisão comporta em muitos casos algo de por um superego. Esse pedaço de madeira que deixa minha mão desleal que não é feito para desagradar. O verdadeiro entalhe indiferente não passa de uma coisa, está mesmo perto de não ser o entalhe de atravessado, 'em - pega no ponto fra- senão o conceito de uma coisa. Mas se minha faca se diverte em co, enviesado, em diagonal, a linha que ele rompe. O machado do essa mesma madeira é imediatamente mais do que ela lenhador conhece bem essa perfídia do Nunca ataca de mesma, é uma supercoisa, assume nela todas as forças da provoca- frente, em ângulo reto, o galho no qual insere seu golpe." Vere- ção do mundo resistente, recebe naturalmente todas as metáforas mos com pormenores, na parte objetiva do presente díptico, todo da agressão. Um bergsoniano veria aí apenas o recorte formal, ao o alcance desses golpes toda a artimanha do trabalho vo- passo que o objeto, o superobjeto, vem me incitar e me constituir luntariamente indireto. Essa psicologia do bisel é notada aqui por Georges Blin em seu caráter desleal profundo. Entalhando o galho como grupo das vontades agressivas num verdadeiro hipnotismo da força. de salgueiro em chanfradura a criança já realiza nessa madeira in- Se seguimos então a imaginação material nas diferenças tão fantil a deslealdade humana. Operando sobre a matéria, desvenda mesmo um caráter oculto da má fé. Com efeito, numerosas das matérias moles e das matérias duras, compreende- mos que elas determinam no ser sonhante uma anatomia das ins- enquanto a má fé nas relações humanas é quase sempre defensiva, tâncias múltiplas da vontade de Enquanto os psicólogos não quase sempre lúgubre, a má fé assume aqui seu valor de ataque, tiverem estudado minuciosamente as diferentes formas de vontade o seu sentido agressivo, feliz, sádico, ativo. de poder material, estarão mal instrumentados para discernir to- Não é de admirar que experiências psicologicamente tão ati- dos os matizes da vontade de poder Só com essa condição vas sejam revividas em campos tão diferentes. Numa forma um podem pesquisar as relações entre a realidade e a metáfora, anali- pouco sintética demais, Georges Blin resume as lições do cripto- sar as forças de convicção em ação na linguagem. grama natural material do entalhe: "A voluptuosidade de entalhar deve ser em grande parte devida ao prazer que se sente ao sobre- Por exemplo, os termos que Georges Blin emprega deixam su- pujar uma resistência objetiva: alegria de ser ou de manejar o ins- por que se trata do entalhe de uma carne suscetível de satisfazer trumento mais duro, de agir no sentido da saliência mais contun- sadismo Mas, lendo melhor, veremos que um mar- dente e de imprimir o seu projeto na matéria que cede. Imperialis- ceneiro pode aceitar essa visão de cirurgião: lâmina percorre mo ofuscante do relevo mais resistente: do arado, do diamante, do a pele como um raio bem dirigido ou, mais insistente, avança se- guindo a dialética em dois tempos do serrote. Deixa um sulco tão punhal, dos dentes." Percebe-se bem que apenas uma análise material poderia dar seguro, tão pertinentemente científico, que espírito se sente mui- todas as funções de semelhante texto. Nossa vida está repieta des- to à vontade com isso enquanto a carne padece..." sas experiências curiosas, dessas experiências que calamos e que Essa ciência, essa lentidão, essa comparação dos go- dirigem devancios sem fim em nosso inconsciente. E existem subs- zos da faca e do serrote - todos esses sonhos - foram natural- tâncias tão especiais que ao atacá-las com uma fina lâmina conhece- mente tiradas do entalhe das matérias, numa madeira tenra. Mas se uma agressividade nova. É só pensar na fenda nítida e fremente parece que as imagens têm aqui dois complementos diretos: a ma- de uma geléia atravessada pela faca, bela carne que não sangra deira tenra e a carne rechonchuda. Metáforas materiais vão de uma Será por isso que duro e puro Axel, de Villiers de l'Isle-Adam,</p><p>34 A TERRA E DEVANEIOS DA VONTADE VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS DURAS 35 servia ao hóspede um pernil de javali guarnecido de geléia de marmelo? sa indústria das matérias plásticas nos oferece agora milhares de Essa matéria de sadismo num prato, essa matéria que deixa matérias com características bem determinadas, instituindo um ver- a faca sonhadora trabalhar com um bom pretexto, é uma matéria dadeiro materialismo racional que estudaremos numa outra obra. Mas de inconsciente que a psicanálise material deve especificar. Se pres- o problema do trabalho primitivo é completamente diferente. En- tarmos um pouco de atenção à matéria, a suas formas múltiplas, tão, é a matéria que sugere. O osso, cipó - o rígido e o flexível veremos que essa psicanálise está diante de uma tarefa considerá- querem furar ou ligar. A agulha e o fio continuam o projeto vel. Neste simples ensaio só podemos evocar alguns exemplos par- inscrito nessas matérias. Quando surgem as artes do fogo, a fundi- ção do minério e a moldagem, a fenomenologia do contra complica- se estranhamente. Parece mesmo que se assiste a uma inversão da fenomenologia. Com efeito, pelo fogo, o mundo resistente é de al- II gum modo vencido pelo interior. E homem que oferece agora ao metal vencido a solidez das A conformação do sólido duro Passemos agora a sucintas observações sobre trabalho efeti- e a moldagem do corpo mole solidificado apresentam-se então nu- vo da ma dialética material das mais nítidas, dialética que subverte to- Se quisermos obter um enfoque um tanto sintético do traba- das as perspectivas bergsonianas. A participação do operário me- lho humano, é na referência às matérias trabalhadas que teremos talúrgico na metalicidade assume uma profundidade insigne. maior garantia de não deixar escapar nenhuma característica dele. Encontrá-la-emos quando estudarmos a imaginação material do me- Em particular, a classificação das ferramentas segundo a sua for- tal. a indicamos aqui para mostrar a variedade do problema das ma definitiva consagrada por um longo uso não oferece um bom imagens materiais. Por ora queremos tratar apenas da fenomeno- contexto para estudar os progressos Um especialista co- logia direta e só considerar a resistência de primeiro aspecto, a du- mo Leroi-Gourhan admitiu a incerteza de uma cronologia das fer- reza inicial. ramentas pré-históricas de acordo com a sua constituição. Segun- Compreende-se, é claro, que esta fenomenologia seja essen- do ele, a matéria que condiciona todas as e a etno- cialmente uma dinamologia e que qualquer análise materialista do logia primitiva se esclarece na seguinte classificação: trabalho acompanhe-se de uma análise energética. Parece que a 1. Sólidos estáveis pedra, osso, madeira. matéria tem dois seres: seu ser de repouso e seu ser de resistência. 2. Sólidos que adquirem através do calor uma Encontramos um na contemplação, o outro na ação. O pluralismo certa plasticidade (metais), das imagens da matéria é, por isso, ainda mais multiplicado. As- 3. Sólidos plásticos que adquirem dureza ao secar sim, como observa Leroi-Gourhan, a percussão (ato humano por micas, vernizes, colas. excelência) realiza-se por meio de três tipos de ferramentas, con- forme se trate de: 4. Sólidos maleáveis - peles, fios, tecidos, vime e Diante de tal pluralidade de substâncias nas quais o trabalho 1. uma percussão assentada, tal como a faca apoiada na madei- se interessa, vê-se a extensão do problema para uma análise mate- ra que dá um talhe preciso, mas pouco enérgico; rialista do trabalho que quisesse remontar à primitividade de inte- 2. uma percussão lançada, tal como o talhe a golpes de foice resses tão A era científica em que vivemos nos afasta dos que dá um talhe impreciso, mas enérgico; a priori De fato, a técnica cria as matérias exatas que res- 3. uma percussão assentada com percussor: a talhadeira tem seu pondem a necessidades bem definidas. Por exemplo, a maravilho- gume assentado sobre a madeira, o martelo bate na talhadeira. Aqui começa a dialética das ferramentas e sua síntese. Reuniram-se as 2. Leroi-Gourhan, L'homme la matière, p. 18. vantagens da percussão assentada (precisão) e da percussão da</p><p>36 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS DURAS 37 Percebe-se que três psiquismos diferentes, três dinamismos do algum modo a extroversão. A forma por estabelecer cha- contra encontram aqui o seu caráter ativo dominante. ma a atenção, por assim dizer, para a ponta da extroversão. Duas mente, o trabalho do terceiro nos faz ter acesso a um conheci- razões para que a dialética da introversão e da extroversão, tão mó- mento e a uma potência que nos colocam num reino novo: reino da força administrada. As duas mãos aparecem em seu respectivo pri- vel, tão rítmica na vida ociosa, seja fortemente polarizada em pro- vilégio: uma tem a força, a outra a destreza. Já na diferenciação veito da medida que redondo vai se tornando das mãos se prepara a dialética do senhor e do escravo. lo, que o buraco vai tomando a forma nitidamente circular, as ima- Toda ofensividade especificamente humana ataca o adversá- gens do devaneio libidinoso apagam-se, de sorte que se poderia di- rio de duas maneiras ao mesmo tempo. Por exemplo, compreender- zer que o espírito geométrico é um fator de auto-análise. Isto se se-ia melhor a domesticação animal se a como a torna materialmente bem mais se buraco deve ter for- mas mais complicadas: quadrado, estrela, polígono... cooperação de dois homens. O cavaleiro diz ao palafreneiro: Mas o debate entre a introversão e a extroversão não é encer- "Ponha-lhe o aziar, eu saltarei no dorso e o cavalo é atacado Parece que o animal não é dotado, pela natureza, de rado com tanta facilidade. As seduções de introversão permane- reflexos sintéticos que possam defendê-lo contra um ataque com- cem possíveis mesmo depois dos esforços sobre o objeto material binado, tão pouco natural, tão humano. O trabalho a duas mãos e trabalho Por vezes no cantinho do quadrado, na reclama as mesmas observações. As duas mãos que não se diferen- ponta da estrela, sátiro vem dar risada... ciam no trabalho da massa - trabalho feminino - assumirão am- Em geral a dificuldade psicanalisa e a facilidade infantiliza. Por isso é bem difícil caracterizar psicologicamente a perfuração por bas o seu valor dinâmico particular no trabalho do terceiro gênero, É uma enorme invenção técnica. Determina certamente uma contra uma matéria É por isso que a matéria dura nos irá derivação dos devaneios sexuais que acompanham ser revelada como uma grande educadora da vontade humana, co- te a perfuração Entretanto, que alegria ambígua de ser mo a reguladora da dinamogenia do trabalho, no próprio sentido da virilização. senhor de uma máquina que faz a broca entrar na chapa metálica com uma violência tão suave, de uma forma tão suave que entra como na Há portanto a substituição, pela imagi- III nação, de um complemento de matéria. Essas substituições deter- minam sempre devancios polivalentes, marcas da importância da De fato, com trabalho hábil, com a destreza no trabalho da imaginação material. Esses devaneios atuam na maior das contra- matéria dura, podem-se eliminar muitas das fantasias denuncia- dições: a contradição das matérias resistentes. Esses devaneios des- das pela psicanálise. Para empregar um exemplo preciso, esboce- pertam na alma do trabalhador impressões demiúrgicas. Parece que mos algumas observações à margem de toda a literatura acu- o real é vencido no próprio âmago de suas substâncias, e finalmen- mulada pela psicanálise em torno dos devaneios do À margem do que se diz, sugerimos dar importância ao que te essa grande vitória faz esquecer a sua facilidade e promove tra- balhador ás regiões da vontade livre das fantasias dos impulsos pri- se faz num trabalho preciso e num trabalho forte. Não se pode então mitivos. deixar de ver os devaneios de tendências anais ou sexuais serem Assim, logo que tivermos devolvido ao trabalho seus aspectos pouco a pouco suplantados - e não recalcados - à medida que psicologicamente dinâmicos, associando imediatamente a consciên- vão se desenvolvendo as ações de um trabalho efetivo, sobretudo cia do ser ativo a todas as ações, compreenderemos que a fenome- quando esse trabalho visa a atingir formas geométricas bem defi- nologia do buraco não poderá ocorrer baseada apenas na feno- nidas, realizadas numa matéria resistente. A matéria dura fixa de menologia visual. A referência às pulsões orgânicas tampouco co- local Q problema real da dinamologia ativa. É preciso, em nossa opi- 3. Cf. Juliette Boutonier, passim. nião, estreitar a união forma e força e atingir essa eficácia de ação</p><p>38 TERRA E DEVANEIOS DA VONTADE A VONTADE INCISIVA E MATÉRIAS DURAS 39 que ajusta preço dos a priori do trabalho, a priori que dão origem a uma vontade de agir utilmente, realmente, materialmente, de- se qualificam como trabalhos educadores que poderiam facilmente terminando no real o complemento direto de todo projeto subjetivo. fornecer testes diferentes de dureza. São indispensáveis para um Logo, não devemos ficar surpresos se a escala de dureza das adolescente. Se tivéssemos de propor uma psicanálise para os psi- matérias trabalhadas é em muitos aspectos uma escala de maturi- quismos que se demoram na idade da massa, aconselharíamos os dade psicológica. O buraco feito na areia, depois na terra movedi- buracos na madeira, do alburno do freixo - madeira sem nós - ça, corresponde a uma necessidade psíquica da alma infantil. A até cerne do carvalho. Viriam em seguida, no extremo ideal da criança precisa viver a idade da areia. Vivê-la é a melhor maneira virilidade de manejo, os buracos na pedra e no ferro. de superá-la. Proibições a esse respeito podem ser nocivas. E inte- Nessa escala das durezas, que queríamos demonstrar é que ressante ver um Ruskin, cuja juventude foi rigorosamente vigia- são envolvidos valores psíquicos bem diferentes quando se passa da, escrever: "O que eu gostava acima de tudo era cavar buracos, de uma matéria a outras, sobretudo quando se modifica a forma forma de jardinagem que, infelizmente, não contava com a apro- do ataque. Avaliemos isso apenas sob o signo da velocidade. vação materna.' Ruskin parece racionalizar num tom de brin- Encontramo-nos diante deste paradoxo: a ferramenta deverá ad- cadeira a proibição materna. Admite que é preciso proibir a crian- quirir tanto mais velocidade quanto mais duro for o corpo a ata- ça "de andar pelos Daí esse paradoxo de uma criança car. O trabalho com a rabeca resolve esse paradoxo. A perfuração que possuía um jardim e nele não encontrava a natureza! E no en- por rotação rápida nos faz viver num tempo muito especial, ensina- tanto as tendências da criança para a natureza são tão naturais que nos a ser operários da André Leroi-Gourhan (op. cit., é preciso muito pouco espaço, muito pouca terra para que a ima- 54) mostrou bem a importância de tal conquista humana e a sua ginação crie raízes. Num jardim de algumas crianças ima- extraordinária expansão por toda a superfície do globo: "A perfu- ginadas por Philippe Soupault têm todas as atividades dos qua- ração das substâncias duras, particularmente das pedras, excitou tro elementos materiais, de modo que o escritor condensa numa muito cedo o senso inventivo dos homens; a colocação de cabo nos única frase a tetravalência da imaginação material: "O jardim fi- machados, nas maças, nos cacetes, impeliu a indústria para esse cava encantado. Para suas brincadeiras, eles subjugaram qua- meio (o trabalho com a rabeca) que permite cavar os corpos mais tro elementos: canais, fornos de selvagens, moinhos, compactos. O trabalho do jade, comum a todo o Pacífico, provo- De fato, a mãe de Ruskin queria uma criança Teremos cou várias descobertas capitais." a oportunidade de voltar a esse Mas que educação mais es- Sem que haja necessidade de insistirmos, percebe bem que tranha é essa que impede uma criança, quando já tem força para a hierarquia de ferramentas apropriadas para uma hierarquia de isso, quando as suas forças reclamam essa façanha, de fazer bura- matérias duras acarreta uma hierarquia de eficácia totalmente psi- cológica, que nos oferece realmente uma história de nosso dina- cos na terra, com o pretexto de que a terra é suja. Seguindo as re- mismo. Infelizmente só nossos sonhos de ociosidade, sen- cordações do escritor inglês, compreenderemos ao mesmo tempo timos saudade de uma indolente. Para manter o sentido as primeiras tendências do adolescente para a geologia, para do- mínio proibido, e fato de terem permanecido nele veleidades de das alegrias do vigor, cumpriria reencontrar a recordação de nos- sas lutas contra o mundo resistente. O trabalho, ao nos obrigar a essas lutas, oferece-nos uma espécie de psicanálise natural. Essa Ao lado desse infantilismo que se assinala por uma recorda- ção tingida de pesar, o dinamismo do buraco na madeira parece psicanálise leva seus poderes de liberação a todas as camadas do o signo de uma maturidade bem normal. Os trabalhos na madeira ser. Permite compreender em detalhe, através de múltiplos exem- plos, essa grande verdade de Novalis que se opõe a tantas teses modernas: "É a preguiça que nos acorrenta aos estados peno- 4. Ruskin, Practerita, souvenirs de jeunesse, p. 58. 5. Philippe Soupault, Les Durandeau, p. 90. 6. Citado por Ricarda Huch, Les romantiques allemands, 24.</p><p>40 TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS DURAS 41 Graças a essa psicanálise, o trabalhador se desembaraça dos devaneios ociosos e pesados por três meios: próprio trabalho matéria dura, as ações desses dois pólos são inseparáveis. É preci- gico, domínio evidente sobre a matéria, a forma du- so nunca ter segurado uma lima na mão para caracterizar a psico- ramente realizada. logia do faber unicamente pela finalidade de um modelo geo- Uma enciclopédica dos valores psicanalíticos do trabalho tam- métrico. A administração das forças requer singular prudência, lenta bém deveria examinar os valores da paciência. Ao lado da forma integração dos atos parciais, muito delicada quando a peça foi des- desbastada viria o estudo da forma polida. Um novo aspecto tempo- bastada. Então começa um duelo de duas vontades. Queremos li- ral deveria então ser incorporado ao objeto O polimento mar reto, queremos impor planos retangulares. Mas parece que a é uma estranha transação entre o sujeito e objeto. Assim, quan- matéria, por sua vez, quer conservar uma rotundidade. Defende tos sonhos podem estar contidos neste belo dístico metafísico de Paul a sua redondeza, a sua massa redonda. Recusa, com evidente má Eluard (Liore ouvert, II, p. 121): vontade, a geometria elementar. S6 o trabalhador sabe por que deli- cados ataques, por que retenção de suas forças, conquista a simpli- cidade com que marca o objeto. Cinzas, bruni a pedra Devemos então dar-nos conta de que a imaginação inteligen- que brune o dedo te das formas impostas pelo trabalho à matéria deve estar acompa- nhada pelo energetismo de uma imaginação das forças. Como é que uma filosofia da ação, como a filosofia bergsoniana, pôde mu- tilar a psicologia do homo faber a ponto de desprezar-lhe a metade IV e precisamente a parte temporal, aquela que organiza o tempo do trabalho, que faz dele uma duração voluntária e regulada? Uma Julgamo-nos, pois, fundamentados para falar de um onirismo ferramenta requer velocidade - uma outra lentidão. Uma ferra- ativo, isto de do trabalho fascinante, de um trabalho menta consome a força ao longo de um grande gesto - outra a que abre perspectivas à vontade. Nesse onirismo ativo estão uni- absorve no momento de uma percussão. Que há de mais ridículo das as duas grandes funções psíquicas: imaginação e vontade. To- do que o operário esbaforido? E quanto se debocha de um operá- do ser é mobilizado pela imaginação, como reconheceu Baude- rio que banca o mata-mouros, a quem falta precisamente a inteli- laire: "Todas as faculdades da alma humana devem ser subordi- gência das forças, o conhecimento das relações dinâmicas entre a nadas à imaginação que as requisita todas ao mesmo tempo. ferramenta e a matéria! Descrevendo a união da imaginação e da vontade em exemplos bem Quando se tiver compreendido que a ferramenta implica uma precisos, esclarecemos a psicologia de um sonho, por assim dizer, dinamização do trabalhador, se verá que o gesto operário não tem superacordado, durante o qual o ser trabalhador apega-se imedia- a mesma psicologia do gesto gratuito, do gesto sem obstáculo que pre- tamente ao objeto, penetra com todos os seus desejos na matéria, tende dar uma figura à nossa duração íntima, como se não estivés- tornando-se assim tão solitário como no sono mais profundo. semos ligados ao mundo resistente. As ferramentas colocadas en- Nossas observações talvez fiquem mais claras se lhes dermos tre operário e a matéria resistente estão no ponto exato em que uma feição nitidamente dialética, apresentando juntos os dois pó- se trocam a ação e a reação tão profundamente estudadas por He- los da psicologia do trabalho: pólo intelectual e o pólo voluntário gel, ação e reação que precisamos fazer passar do reino físico os pensamentos claros e os devaneios de poder. para o reino psicológico. As ferramentas, verdadeiros temas de Primeiramente deve ficar bem entendido que, no trabalho da nos viver tempos instantâneos, tempos prolongados, tempos ritmados, tempos mordazes, tempos pacien- 7. Citado por Nicolas Calas, Foyers 115. 8. Cf. Merleau-Ponty, de la perception, p. 123.</p><p>42 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS DURAS 43 tes. As formas não são suficientes para sugerir essas riquezas tem- porais, esses valores dinâmicos. Por exemplo, uma psicologia do melhança, apagar esse fantasma de modelo. E Alain irá con- homo faber que permanecesse por demais limitada à geometria dos cluir: "Não se esculpe o que se quer; eu diria que antes se esculpe produtos do trabalho e à simples cinemática dos atos, esquecendo o que a coisa quer." Assim Alain caracteriza muito bem uma es- a resistência da matéria, poria sob o mesmo rótulo a tesoura do pécie de escultura natural, de escultura sonhada que nos a fa- funileiro e a tesoura da costureira. São, diz a inteligência, duas ala- ca na mão diante de uma estrutura íntima já esboçada na natureza. vancas do primeiro gênero. Mas o complemento direto dessas ferra- A contemplação das belas matérias é beneficiada naturalmen- mentas muda completamente a psicologia do sujeito que trabalha. te pelas imagens do trabalho. Diante desse móvel de madeira poli- A tesoura do latoeiro quase não aparece nos símbolos de castra- da, fixado na intimidade de suas fibras e de seus nós, pomo-nos ção, enquanto a tesoura da costureira, pela facilidade de sua a trabalhar pela imaginação. Acodem-nos as imagens dinâmicas dia, vinga inconscientemente almas O funcionamento da goiva e da plaina, da garlopa e da grosa - todas elas ferramen- das duas ferramentas é compreendido da mesma forma. Mas as duas tas com nomes tão duros, tão curtos, que todo ouvido as ouve ferramentas não o mesmo Assim uma ferramenta deve ser considerada em ligação com Eis, pois, a descoberto sobre a prancha aplainada o turbilhão o seu complemento de matéria, na exata dinâmica do impulso manual do nó, a torção heróica da vida incrustada, a vontade lenhosa que, e da resistência material. Ela desperta necessariamente um mundo para além das petulâncias da seiva, venceu a própria dureza. Uma de imagens materiais. E é em função da matéria, de sua resistên- dialética de torção e de fuso livre fica visível nos jogos da madeira cia, de sua dureza que se forma na alma do trabalhador, ao lado escura e da madeira clara. Como contemplar o desenho dessa ma- de uma consciência de destreza, uma consciência de poder.-Des- téria Vamos ver nele apenas belas imagens, apenas uma treza e poder não andam uma sem o outro, no onirismo do traba- associação bem feita das fibras? Não, para quem trabalhou um pou- lho, nos devaneios da vontade. A ferramenta lhes estabelece a união CO a madeira, o painel de carvalho é um grande quadro dinâmico: de uma matéria tão nítida que se pode dizer que, se cada matéria fornece um desenho de energia. Então, entre as áreas externas da ma- tem um coeficiente de adversidade, cada ferramenta determina na al- deira tenra e pálida e o nó duro e brunido, há mais do que um ma do operário um coeficiente de domínio. contraste de cores. Vive-se aí, na própria ordem da imaginação ma- Se a matéria trabalhada, se a madeira, por exemplo, revela-se terial, uma transposição da teoria dialética da forma e do fundo. numa espécie de hierarquia interna da dureza, com áreas externas A matéria dura é aqui dinamicamente contemplada como um cleo material resistente" sobre um "fundo material de massa mo- mais tenras e cernes mais duros, a luta do trabalho multiplica os devaneios ativos. Parece que escultor de madeira busca, ao mes- le" Reencontraremos esse problema no capítulo seguinte quando estudarmos as metáforas do carvalho nodoso. Mas queríamos aqui mo tempo que a finalidade das formas, a finalidade da matéria dura. Quer isolar as potências materiais superiores, desembaraçá-las dos demonstrar que essa dialética do duro e do mole é direta mesmo invólucros inúteis. Como um pintor que utiliza manchas, há es- quando simplesmente reconhecida pelos olhos. Esse quadro material cultores de madeira que utilizam durezas. A respeito disso, Alain fala ao ser dinâmico que é o operário. Através da imaginação ma- terial e dinâmica, vivemos uma experiência em que a forma exter- reanima uma velha imagem aristotélica desgastada pelo emprego abstrato que lhe deram os filósofos. Ele mostra a ação sobre a ima- na do nó suscita em nós uma força interna que deseja a vitória. Es- ginação dessas linhas inscritas naturalmente na madeira: "Todos sa força interna, ao privilegiar vontades musculares, dá uma estru- aqueles que esculpiram alguma cana, ou cabeças de marionetes em 9. Alain, Vingt sur les 224 e raízes, compreenderão; todo mundo compreenderá. Trata-se de 10. Não esquecemos os ruídos das ferramentas quando sua vogal foi uma vez fazer uma estátua que se pareça cada vez mais consigo mesma. Daí apreendida. Em La pierre d'Horeb, Georges Duhamel nos oferece a verdadeira sono- um trabalho cheio de prudência. Pois poder-se-ia perder essa se- ridade da oficina do marceneiro: "Sua garlopa soltava um grito longo e chiante mo que para aterrorizar os</p><p>44 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS DURAS 45 tura a nosso ser É que Maurice Merleau-Pont viu mui- to "Em última análise, se meu corpo pode ser uma forma ferramenta. Acharemos no livro de Charles-Lo Philippe, Clau- e se pode haver diante dele figuras privilegiadas sobre fundos indi- de Blanchard, páginas tanto mais interessantes por terem sido reto- ferentes, é na medida em que existe para elas, que ele se concentra madas várias vezes antes de sua redação definitiva. em si mesmo para atingir seu Mas a percepção designa Parece que o primeiro esboço literário só conseguiu produzir as tarefas, não as faz. Ela é justamente descrita pela fenomenolo- chavões. Nele lemos as alegrias do trabalho bem feito; é mostrado gia do para. Para descrever a vontade em seu ato - melhor, em o tamanqueiro orgulhoso de sua obra, acariciando as linhas do ta- seu trabalho - é mister acentuar um pouco o texto de Merleau- manco bem arredondado, com perfil bem curvado, com ponta bem irônica. Ponty e seguir uma dinamologia do contra. Em nós mesmos surge Numa outra redação, lemos um ditirambo sobre a técnica in- então uma "forma de vontade sobre um fundo de não- teligente do trabalho bem conduzido. As ferramentas são apresen- querer, ou, como diz ainda Merleau-Ponty, "um gesto de destre- tadas numa ordem racional; figuram todas as etapas da destreza za como figura sobre o fundo maciço do inteligente do trabalhador. Mas ainda o próprio escritor perce- Assim a imaginação material nos envolve Na be que foi apenas um visitante ocioso contemplando a loja inerte ordem da matéria imaginada tudo ganha vida: a matéria não é iner- dos tamancos à venda ou a oficina em repouso, a oficina em ordem. te e a pantomima que a traduz não pode permanecer superficial. Cumpre mais uma vez recomeçar e escritor se enfim ao Quem ama as substâncias, ao designá-las já as trabalha. trabalho com o tamanqueiro. De repente resplandece a página de Esse gestaltismo dinâmico da imaginação material que reúne singular originalidade, eminente modelo de imaginação dinâmica: uma intensidade substancial a uma forma só será negado por aqueles "Os tamancos não se fazem sozinhos. A madeira é mais dura que não têm sentido do Se a imaginação material é por do que as pedras, dir-se-ia que faz frente ao operário e se aferra vezes tão fraca, a culpa não será desses móveis laqueados que nos em tornar-lhe a vida difícil. Baptiste atacava-a como a um inimi- frustram devaneios em profundidade? Tantos objetos que nada mais go. Com um braço quando havia conseguido enfiar em são além de superfícies! Tantas matérias despersonalizadas por in- seu pedaço as cunhas de ferro, levantava o malho, e quando o abai- digentes vernizes! Como dizia a Daniel Halévy um "A xava, parecia, numa luta corpo a corpo, lançar-se sobre a madeira madeira não é como o ferro, cada pedaço, é preciso julgá-lo." Se ao mesmo tempo. Era preciso que um dos dois cedesse, que as cu- a julgamos mal, a madeira A honra profissional do tonelei- nhas entrassem até fim da fibra rebentada, ou que o homem, ven- ro - desse artesão que tem a grande, a remota, a insondável res- cido pela resistência, rebentasse em vez da madeira. O homem não ponsabilidade do vinho - está comprometida. E esse comprometi- rebentava: permanecia vivo para continuar a luta. Após largar o mento não é um mero juramento, é profundo, está inscrito numa malho e as cunhas, apoderava-se de um machado. A batalha era matéria, é solidário da moral da madeira. Chegam até aí os sonhos ardente, as ferramentas faziam pensar em armas. Num impeto con- do operário. tínuo, arrebatado por uma espécie de furor guerreiro, dir-se-ia que Baptiste se lançava, com a ferramenta numa mão, sobre o naco de madeira que segurava com a outra, e que, acertando-lhe golpes V certos, desta vez realizava enfim a sua Mas vejamos um belo documento literário em que um grande 13. Victor Hugo também notou em Les travailleurs de la mer (t. II, p. 63, ed. escritor nos revela o onirismo do trabalho, os valores ofensivos da Nelson) o caráter ofensivo das ferramentas: "Parecia-lhe que suas ferramentas eram Tinha o sentimento singular de um ataque latente que reprimia ou preve- Gilliat "sentiu-se cada vez menos operário e cada vez mais domador de 11. Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, p. 117. "Estava ali como domador. Quase o Desenvolvimento estra- 12. Daniel Visite aux paysans du centre, p. 225. nho para seu</p><p>46 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS DURAS 47 Assim a hostilidade da matéria dura é agora signo de um irrompe "um horroroso barulhinho, verdadeira serpente da acús- velho São todos os infortúnios da vida que se encontram tica e uma das piores violências cometidas ao ouvido humano" no tamanco do dia. Mas a cada aurora elevam-se as forças. O pri- Julgar assim é ser vítima de um reflexo nascido na passivida- meiro golpe da talhadeira é uma vontade incisiva. Aceita um desa- de. Basta ser ator, tomar a lima na mão, ranger dentes como con- fio. Libera uma ira. E Charles-Louis Philippe escreve este preceito vém na cólera trabalhadora, na cólera ativa, para deixar de ser fe- que merece tornar-se uma divisa da filosofia dos ofícios: "Para ser rido pelos rangidos da matéria dura. O trabalho é um inversor da tamanqueiro, cumpre estar hostilidade. O ruído que feria, excita. O operário multiplica os gol- Essa cólera não é somente uma força da Está no homem pes da lima, tem consciência de que é ele quem faz ranger a maté- todo, no homem concentrado em sua unidade dinâmica: "Por vezes, ria. Logo irá usufruir sua potência. Num instante está rindo da dirigindo para seu pedaço de madeira o rosto com violência, a bo- cara enervada do visitante que tapa os ouvidos. A psicologia clás- ca, a boca aberta, parecia que ele afinal se apercebesse de que pos- sica dirá muito depressa que operário habitua-se com ruídos sinis- suía uma mandíbula como os animais, e que havia esperado muito tros e Mas o duelo entre o operário e a matéria dura tempo: agora ia morder. Esperava-se com ansiedade o instante em não conhece as sonolências do hábito. Ele é incessantemente ativo que, louco de impotência, largaria tudo e, voltando sua raiva para e vivaz. Os gritos da matéria impelem a essa vivacidade. São os toda a humanidade, se precipitaria para a rua e saltaria na gar- gritos de aflição que excitam a ofensividade do trabalhador. A ma- ganta dos passantes como se fossem eles a causa de sua infelicidade." téria dura é dominada pela dureza colérica do trabalhador. A cóle- Como dizer melhor que à mão vigorosa se liga a mandíbula ra aqui é aceleradora. Aliás, na ordem do trabalhado, toda acele- contraída? E ainda mais: um tipo de trabalho manual está ligado ração reclama uma certa Mas a cólera do trabalho nada a uma contração particular do rosto. O facies do limador de metal quebra, permanece inteligente, faz-nos compreender este é tão diferente daquele do ferreiro! lo védico citado por Louis Renou: sob o efeito do soma, "Astúcia Como se está longe, na oficina ativa, dos gemidos que um Cha- e Cólera se alertam, ó licor." teaubriand escuta na matéria trabalhada pelos outros: "Faça o que E naturalmente essa cólera fala. Provoca a matéria. Insulta-a. fizer, homem nada pode, tudo lhe resiste; não pode curvar a ma- Triunfa. Ri. Ironiza. Converte-se em literatura. téria para seu uso sem que esta deixe de se lamentar e gemer: ele Ela produz até metafísica, pois sempre a cólera é uma revela- parece prender seus suspiros e seu coração tumultuado a todas as ção do ser. Na cólera, sentimo-nos novos, renovados, chamados suas obras. Suspiros de um trabalhador inábil, cansado no pró- a uma vida nova. "Todos nós temos a fonte da cólera e do azedu- prio limiar de uma tarefa um tanto rude. Há espectadores que não me na origem de nossa vida; de outro modo, não estaríamos podem suportar ruído rangente da lima sobre ferro. Acreditam normalmente que é um dos suplícios infligidos ao O abade diz do grito da mejengra, que é designada no Sul 16. Esta virtude de aceleração do trabalho colérico está indicada em várias da França por uma onomatopéia de seu grito: saraié páginas do romance de Josephine Johnson, Novembre (cf. trad. fr., p. 51): "Seu grito tem algo de triste e de Quando amola- lho pai era enredava-se nos arreios, sacudia e empurrava os cavalos até fazê dor afia tesouras e navalhas no romance de Nathaniel Hawthorne, los dar coices nas paredes da Karrin, a filha, fazia tudo isso para juntava as peças do arreio com presteza e cólera, mas sem hesitação nem manobra La maison aux sept pignons (A casa das sete torres, trad. fr., p. 181), falsa. Uma espécie de certeza Ela dava de comer aos cavalos ao meio dia, e lhes introduzia a aveia com gentileza, mas quase furiosamente, zombando da avidez 14. Chateaubriand, Génie du ed. Garnier, II, p. 305. Para Vico (trad. fr., Michelet, [. II, p. 244): "O primeiro sentido da palavra A mejengra também é chamada de chapim em português, além de vários cólera foi cultivar a terra." outros entre os quais ferreiro. Chapim também designa seu (N. T.) 17. Jacob Boehme, Des trois trad. fr., pelo Filósofo desconhecido, 15. Abade Vincelot, Lei des 1867, 290. II, 398.</p><p>48 A TERRA E os DEVANEJOS DA VONTADE A VONTADE INCISIVA E AS MATÉRIAS DURAS 49 Então, ao mesmo tempo, o trabalho, a cólera, a matéria, tu- Esse sentimento de vitória consumada proporcionado pela ma- do está aí. "Na verdade, aquele que não conhece a cólera nada téria domada no trabalho foi notado por Charles-Louis Philippe sabe. Não conhece o (op. cit., p. 84). Quando o tamanco está terminado, quando as apa- Daremos inúmeros depoimentos dessa ação falada nos capí- ras tornam-se mais miúdas, o operário perdoa a matéria rebelde. tulos que seguem. Por ora queríamos mostrar que a provocação O operário tem seu triunfo. Como diz Charles-Louis Philippe: "A da matéria é direta e acarreta uma cólera, uma cólera imediata contra matéria estava vencida; a natureza não era tão forte como ele." o objeto. Resistência e cólera estão vinculadas objetivamente. E as Pois é a natureza inteira que é vencida numa de suas maté- matérias duras são de nos fornecer, segundo a sua re- rias, e é a humanidade inteira que é vencedora na batalha de um sistência, uma grande variedade de metáforas que participam de dia. Então, na bela obra de Charles-Louis Philippe, uma medita- uma psicologia da cólera. Buffon escreve, por exemplo: "Há al- ção da oficina amplia-se até chegar a uma meditação do guns mármores ásperos cujo trabalho é muito difícil, os operários Para passante ocioso, indolente, a morada do tamanqueiro era chamam-nos de mármores altivos porque resistem muito às ferramen- "apenas uma das mais doces casas da aldeia de tas e só lhes cedem Um filósofo das superfícies e para quem quer que tivesse visto uma vez Baptiste traba- das cores só saberia falar da frieza e da brancura de um mármore, lhar, a casa estava situada em terras muito diferentes. Não era a nunca lhe descobriria a altivez, a con áspera, o súbito atmosfera repousante e um tanto triste do Centro da França que to. Em suma, aqui, como na maior parte dos exemplos, ser vos seduz numa certa idade e parece oferecer-se a vós. Ela estava má vontade que a matéria é O pessimismo schopenhaue- situada num mundo ativo.. riano crê se fundamentar numa vontade obtusa da matéria, numa Num mundo ativo, num mundo resistente, num mundo a ser vontade irracional. Mas esse pessimismo é humano, demasiado hu- transformado pela força humana. Esse mundo ativo é uma trans- mano. E o resultado de uma síntese confusa de todas as nossas ina- cendência do mundo em repouso. O homem que dele participa co- bilidades e de todas as nossas decepções. Substancializa os nossos nhece, acima do ser, a emergência da energia. primeiros acreditando encontrar aí uma real primitivida- de. Tal existencialismo da vontade não corresponde a um existen- cialismo envolvido no trabalho. De fato, o pessimismo material de Schopenhauer não tem sentido na oficina. Se a contemplação ocio- sa não pode superá-lo, a vontade de trabalho não é atingida por ele. A matéria é, para o operário, uma condensação dos sonhos da energia. O super-homem é aqui superoperário. E, afinal de con- tas, a lição filosófica é grande, pois mostra que qualquer contem- plação é uma visão superficial, uma atitude que nos impede de com- preender ativamente o universo, A ação, em suas formas prolonga- das, propicia lições mais importantes que a contemplação. De uma maneira mais particular: a filosofia do contra deve levar vantagem sobre a filosofia do para, pois é o contra que termina por designar homem em sua instância de vida feliz. 18. Henri Michaux, L'espace du dedans, p. 102. 19. Buffon, Minéraux, cap. 20. Sartre fala da "teimosia compacta da pedra" (Le p. 66).</p><p>CAPÍTULO III AS METÁFORAS DA DUREZA azevinho? - Ele é a raiva da VERHAEREN, Les douze mois. Avril I Para distinguir bem os problemas da imaginação e os da per- cepção, para mostrar em seguida como aquilo que imaginamos re- ge o que percebemos, para dar assim à imaginação o lugar que lhe cabe na atividade humana, o lugar principal, existem poucas pala- vras mais apropriadas do que a palavra duro. Afinal de contas, a dureza certamente é objeto de muito poucas experiências efetivas e, no entanto, é a fonte de um número incalculável de imagens. Uma espécie de trabalho imaginário se anima à menor impressão de dureza: Warte, ein Härtestes warnt aus der Ferne das Harte. Wehe abwesender Hammer holt aus! "Espera, o mais duro avisa de longe a dureza. Infortúnio - o martelo ausente se prepara para bater!" (RILKE, Sonetos a Orfeu, II, 12). martelo o martelo sem dono de Char, vem trabalhar na mão ociosa, assim que a palavra duro apenas é mur- murada. Com a palavra duro, mundo expressa a sua hostilidade e, em resposta, começam os devaneios da vontade.</p><p>52 A TERRA E os DA VONTADE AS DA DUREZA 53 As palavras duro, dureza, que aparecem tanto num juízo da rea- lidade como numa metáfora moral, revelam assim, muito simples- logia objetiva se em ordem quando imaginamos atrás das for- mente, as duas funções da linguagem: transmitir significações ob- mas a resistência das substâncias. Para prová-lo, só é necessário jetivas precisas - sugerir valores mais ou menos E dirigir-se aos poetas da energia. Eles nos darão valorizações proli- xas das metáforas do carvalho nodoso, duro, forte, resistente, ale- já nas primeiras trocas entre as imagens fervilhantes e as percep- ções claras, são as imagens, são as metáforas que vão multiplicar gremente sobrecarregado de anos. Vejamos, por exemplo, car- os valores, valorizar os valores. Quase sempre, a palavra duro é valho na poética de Verhaeren. ensejo de uma força humana, o signo de uma ira ou de um orgu- lho, às vezes de um desprezo. uma palavra que não pode perma- necer tranqüilamente nas Mas, fiel a nosso método habitual que só se propõe seus te- II mas filosóficos gerais acerca de casos precisos, daremos logo um exemplo em que uma percepção muito simples, muito próxima dos Com a luta cerrada das fibras no nó de madeira, em vez da desenhos e das formas, é imediatamente submergida pela enxurra- da de imagens variadas, envolvendo insensivelmente a vida mo- que estudamos em e os sonhos seguindo a imagina- ral. Tiramos este exemplo do livro do Dr. Willy ção aérea, aparece o vegetalismo terrestre, o vegetalismo duro. Ape- sar dos espetáculos da planície de Flandres, o carvalho de Verhae- "Quando falamos de um carvalho nodoso, não estamos pen- ren é um ser da montanha, surgido de um solo de granito, entre sando somente nas nodosidades verdadeiras que podem existir em as rochas. Ele se retorce em seu colo para sair da terra; enlaça-se seus galhos, mas queremos indicar a idéia de teimosia que a mes- para se apoiar, não mais num húmus rico e fraco, mas para se apoiar ma imagem sugere no tocante ao caráter de um homem. Assim, em si, nessa reserva de dureza que é um tronco nodoso. Torna-se du- a imagem cujo ponto de partida era a árvore volta a ela depois ro para durar. Só pode ficar duro concentrando-se em si, maltra- de ter sido transportada para a designação das particularidades psi- tando os próprios todos os preguiçosos impulsos do vege- cológicas do homem." Noutras palavras, a palavra nodoso é talismo verde e tenro. Charles Baudouin, em seu belo livro sobre apenas uma forma, impõe imediatas participações no humano. Não salientou esse combate do ser duro contra si mesmo, se pode compreender a palavra nodoso senão apertando o nó, endure- tão característico na evolução psíquica do poeta. Charles Baudouin cendo a matéria, testemunhando uma vontade de resistência às fra- mostra em ação uma espécie de sublimação da dureza imanente, cujo quezas que enterneceriam. E essa transposição ao humano, a par- tipo é precisamente cerne de um velho carvalho: "A árvore era, tir de uma base objetiva estreita, que queremos estudar em por- de início (numa das primeiras obras de Verhaeren, Les flamandes), menores. Examinando minuciosamente os pontos que ligam a rea- lidade à veremos que é através das da imagi- aquilo que é comumente, no dizer dos analistas: um dos símbolos do instinto bruto. Mas eis que esse instinto acirra-se contra si mes- nação, que a realidade assume os seus valores. E esse assumir va- mo, se consigo mesmo, como num corpo a corpo, se 're- lor é Já na intuição mais ingênua, na contemplação mais torce', se podemos dizer, entre os próprios braços. As árvores vão, ociosa, um conselho direto de dureza nos faz viver, numa espécie de simpatia pela dureza, com o carvalho nodoso. O mundo assim a partir daí (na obra poética de Verhaeren), aparecer nodosas e São a sensualidade que vence a si mesma vitória que assumido por um devaneio da vontade tem Oferece-nos be- ainda é uma voluptuosidade. Identificam-se com os monges que las imagens dinâmicas do caráter humano. Uma espécie de caractero- 'retorceram' neles a natureza, entre mãos crispadas de vontade fervorosa." E Charles Baudouin cita estes versos do poeta: 1. Willy Hellpach, humaine l'influence du temps, du clima, du sol et du trad. fr., p. 2. Charles Baudouin, Le symbole chez Verhaeren, p. 83.</p><p>54 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE AS DA DUREZA 55 Aqueles cujos lormentos deixaram coração "a libido é retirada dos objetos exteriores que, antes, Reentrées des moines uma poderosa força atrativa". Em outras palavras, exis- Tudo o que foi enorme nesses tempos sobre-humanos tem objetos que são apenas objetos de percepção; seus nomes per- deram as virtudes de intimidade que os tornavam partes integran- sob o de sua alma fecunda tes da imaginação humana. Pelo contrário, o tronco de um carva- E ficou retorcido como um grande carvalho entre suas lho atormenta em nós forças que almejam ser inabaláveis. É uma grande imagem da energia. Les Uma aléia invicta gigante de Essas árvores assim como monges III Soir religieux Sentiremos talvez melhor essa adesão apaixonada às certezas Pode parecer que tenhamos insensivelmente perdido as ima- de um objeto duro se virmos um sonhador encontrar a solidez de gens da dureza. Mas quem aprofundar a impressão encontrará es- seu ser na companhia da árvore inabalável. E assim que interpre- sas imagens atuantes. Não é a forma de uma árvore retorcida que tamos uma admirável página de Virginia "Ele soltou um faz a imagem, mas é a força de torção, e essa força de torção impli- profundo suspiro e arrojou-se violentamente havia uma paixão ca uma matéria dura, uma matéria que se endurece na torção. Emi- em seus movimentos que justifica esta palavra - ao chão, aos pés nente privilégio da imaginação material que trabalha com palavras do carvalho. Gostou de as vértebras da terra onde se esco- que não são as suas, com signos da imaginação das formas. rava; pois a dura raiz do carvalho era isso para ele, era também, Jamais o jogo do recalque e da sublimação foi mais cerrado pois a imagem sucedia a imagem, o dorso de um grande cavalo do que nessa valorização da dureza ligada, da dureza retorcida. que ele montava, ou o convés de um navio inclinado qualquer Estamos aqui no centro da ambivalência do nodoso e do em coisa, na verdade, que fosse dura, pois ele sentia necessidade de outras palavras, o nó é uma dessas "realidades que um algo onde amarrar seu coração indeciso." Kierkegaard gosta de fazer Faremos dela, segundo o hu- Como a escritora traduz bem essa comunhão das durezas ao mor, segundo a orientação imaginária, segundo a tonalização da redor de um núcleo de durezas! Carvalho, cavalo, navio estão uni- vontade, uma qualidade ou um defeito, uma força de apoio ou o dos apesar de suas formas heterogêneas, embora não tenham ne- tolhimento de um É precisamente porque o nó da madeira nhum traço visual comum, nenhum significado consciente comum. dura é dotado dessa ambivalência das imagens, que ele proporcio- A dureza, graças a seu poder sobre a imaginação material, graças na uma a seu imperialismo, estende as suas imagens ao longe, indo do ou- O crítico literário deve meditar sobre essa palavra reveladora. teiro sólido onde cresce o carvalho à planície onde galopa o cavalo, Essa palavra mede a participação do sonhador na dureza do mundo ao mar onde se refugia, sobre o convés do navio, toda a solidez. ou então a sua repulsa diante das imagens Cumpre inseri-la A compreensão material, a compreensão absoluta da imagem da du- no registro das palavras sensibilizadas com as quais se pode deter- reza sustenta essa louca extensão que nenhum lógico poderia legiti- minar a orientação das potências imaginantes. Essas palavras não mar. É realmente a marca das imagens materiais primordiais - são tão numerosas como se poderia acreditar. A linguagem arrasta a dureza é uma delas - receber sem dificuldades as formas mais em seu curso grande número de palavras gastas oniricamente, pa- diversas. A matéria é um centro de sonhos. lavras que não mais encontrarão seu poeta. Como diz Ania 3. Ania Teillard, Le symbolisme du p. 221. Em (nodoso) e (N. T.) 4. Virginia Woolf, Orlando, trad. fr., p. 20.</p><p>56 A TERRA E DEVANEIOS DA VONTADE AS DA DUREZA 57 Veremos, aliás, examinando detalhadamente a página de Vir- o sonhador amarra um coração indeciso ao coração da árvore, mas ginia Woolf, um bom exemplo dos dois desenvolvimentos das ima- a árvore o arrasta no lento e seguro movimento de sua vida pró- gens, conforme as imagens correm como os conceitos de uma coisa pria. Repentinamente o sonhador que vive a dureza íntima da ár- para outra ou, num outro impulso, vivem da vida total de um ser vore compreende que a árvore não é dura sem razão - como são mui- particular. to amiúde os corações A árvore é dura para levar ao alto De fato, seguindo esta última evolução, depois de uma volta a sua coroa aérea, a sua folhagem alada. Ela proporciona aos ho- à imagem inicial do tronco duro, Virginia Woolf nos confia toda mens a grande imagem de um orgulho legítimo. Sua imagem psi- a sua imaginação da Apoiado ao tronco duro e estável do canalisa toda a dureza carrancuda, toda a dureza inútil, e nos de- carvalho, Orlando sente o coração apaziguar-se; participa da vir- volve à paz da solidez. tude apaziguadora da árvore da árvore que a paisagem. O carvalho não detém até a nuvem que está passan- do? "As pequenas folhas permaneceram suspensas; o gamo parou; IV as pálidas nuvens estivais se imobilizaram; os membros de Orlan- do se tornaram pesados no chão, e ele permanecia deitado em ta- Assim, a análise de uma imagem aparentemente tão especial manha quietude que, passo a passo, o gamo se foi aproximando, como uma árvore nodosa revela uma força de apelo para imagens as gralhas giraram sobre a sua cabeça, as andorinhas baixaram em coerentes nas quais ser imaginante se envolve cada vez círculos, o vôo dos moscardos zumbiu, como se toda a fertilidade Concebe-se com muita a imaginação como uma produ- e a atividade amorosas de uma tarde de verão tecessem a sua teia ção gratuita que se esgota no mesmo instante que suas imagens. em redor de seu Isso é desconhecer a tensão das forças psíquicas que levam à busca O sonhador beneficiou-se assim da solidez5 da árvore na pla- das imagens. Por isso um verdadeiro surrealismo que aceita a ima- nície com searas ondulantes; o tronco robusto, a raiz dura, eis um gem em todas as suas funções, tanto em seu impulso profundo co- centro fixo em cujo redor organiza-se a paisagem, em cujo redor mo em seu aspecto primaveril, acompanha-se necessariamente de tece-se a tela do quadro literário, de um mundo O carva- um O surrealismo - ou a imaginação no ato lho de Orlando é realmente, como sugerem as ilustrações da edição, vai à imagem nova em virtude de um de renovação. Mas uma personagem do romance de Virginia Woolf. Para bem compreen- numa recorrência das primitividades da linguagem, surrealismo der o seu papel, é preciso, pelo menos uma vez na vida, ter amado confere a toda imagem nova uma insigne energia Livre uma árvore majestosa, ter sentido agir o seu conselho de solidez. da preocupação de significar, descobre todas as possibilidades Finalmente, apresentaríamos de bom grado essa página da ro- de imaginar. O ser que vivencia suas imagens em sua força pri- mancista inglesa como um modelo de psicanálise figurada, de psi- mordial sente bem que nenhuma imagem é ocasional, que qual- canálise material. A árvore aqui é dura e grande, é grande porque é quer imagem devolvida à sua realidade psíquica tem raiz profun- É um grande destino de dura Por mais dura que da - é a percepção que é uma ocasião a convite dessa percep- seja a raiz do carvalho, a árvore arrebata mesmo assim o ser que so- ção ocasional a imaginação volta a suas imagens fundamentais, sen- nha com a sua dureza até em suas folhas rudes e barulhentas. do cada uma delas provida de sua dinâmica própria. A esse sonhador imobilizado no chão, a árvore devolve a mobili- Assim que as imagens são estudadas em seu aspectos dinâmi- dade dos pássaros e do céu. Novo exemplo do devaneio amarrado, cos e correlativamente experimentadas em suas funções psiquica- mente dinamizantes, a antiga expressão, que não cessa de ser 5. Um verso de Laprade petida - uma paisagem é um estado de alma recebe novíssi- Le a repos, l'homme a la liberté. mos significados. De fato, a expressão quase que só visava a esta- (O carvalho tem o repouso, o homem a liberdade.) des contemplativos, como se a paisagem só tivesse por função ser</p><p>58 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE AS DA DUREZA 59 contemplada, como se fosse o mero dicionário de todas as palavras evasivas, aspirações para a evasão. Pelo contrário, com os de- dada, ao contrário, reclama adversários. Quando o ser acorda, é vaneios da vontade se desenvolvem temas necessariamente preci- nas imagens dos objetos duros que começam as alegrias fortes. As matérias duras são o mundo resistente ao alcance das mãos. Com da construção demiúrgica: a paisagem um a compreendemos dinamicamente se a vontade participa da sua cons- mundo resistente, a vida nervosa em nós associa-se à vida muscu- trução, com a alegria de assegurar-lhe as bases, de medir-lhe as lar. A matéria se mostra como a imagem realizada de nossos mús- resistências e as forças. Teremos muitas outras provas, no decor- culos. Parece que a imaginação que vai trabalhar esfola mundo rer desta obra, da caracterologia figurada da qual a dureza, como da matéria. Tira-lhe os tegumentos para ver bem as linhas de for- dizíamos mais acima, dá um primeiro exemplo. Insistamos ainda, ças. Os objetos, todos os objetos têm energia. Devolvem-nos o vi- antes de passar a uma outra ordem de idéias, sobre a influência gor imaginário que lhes oferecemos através de nossas imagens di- dinamizante do sonho de um objeto nâmicas. Assim recomeça a vida dinâmica, a vida que sonha inter- Certas imagens - o carvalho nodoso é uma delas - são es- vir no mundo resistente. Virginia Woolf viveu esse despertar do sencialmente imagens do despertar. O carvalho é curvado, e eis que ser através da juventude de uma imagem: "Meu espírito deixado ele nos apruma. O mimetismo energético se encontra assim na an- aos pedaços se sente reconstruído por uma percepção repentina. títese do mimetismo das formas. O velho carvalho solicita uma re- Tomo as as nuvens como testemunhas de minha comple- crudescência de atividade. Feliz aquele que, de manhã, para ini- ta integração. Essa integração só é verdadeiramente possível se ciar sua jornada, tem sob os olhos não somente belas imagens, mas acarreta atos coordenados, atos produtivos, em suma, os próprios imagens fortes. atos do ser que trabalha. De uma maneira mais precisa, podemos verificar que, em nos- próprios sonhos, as imagens da dureza são com muita regulari- dade imagens do despertar; em outras palavras, a dureza não pode per- manecer inconsciente, reclama a nossa atividade. Parece que so- no não pode prosseguir, mesmo nos pesadelos, sem uma certa mo- leza em seus fantasmas, sem uma certa fluidez das mais negras ima- gens. Como dizíamos outrora, confessando o nosso temperamento onírico: não se dorme bem senão na água, senão numa grande água tépida. Uma forma dura tolhe o sonho que só vive de deformações. Gérard de Nerval observava que o sol nunca brilha nos sonhos. Os raios são, também eles, duros demais, geométricos demais pa- ra iluminar, sem risco de despertar, espetáculo Os cor- pos iluminados com muita nitidez, os corpos sólidos, os corpos du- ros, devem ser expulsos de nossa vida São objetos de nia. Não se deve pensar à noite no ferro, na pedra, na madeira du- ra, em todas essas matérias prestes a nos Mas a vida acor- 6. Jean Moréas (Paysages souvenirs, p. 229) sofre com um dia em que lhe é "impossível dar uma verdadeira figura trágica à paisagem sem energia que me ro- falta-me força para transmudar em arte a maldade da 7. Virginia Woolf, Les vagues, trad. fr., p. 43.</p><p>CAPÍTULO IV A MASSA É preciso ver o seu interior atacando a concu- piscência. Que padeiro mergulhou jamais mãos tão enormes em sua masseira? Que padeiro vi- mos igualmente acabrunhado pela montanha movediça, ascendente, desmoronante, da mas- sa? Uma massa que busca o teto e o HENRI Plume I Já examinamos em nosso livro A água sonhos alguns dos que se formam no lento trabalho da amassadura, no jo- go múltiplo das formas que se dá à massa por modelar. Parecera- nos indispensável, colocando-nos do ponto de vista da imaginação material dos elementos, estudar um devaneio mesomorfo, um de- vaneio intermediário entre a água e a terra. Com efeito, pode-se captar uma espécie de cooperação de dois elementos imaginários, cooperação cheia de incidentes, de contrariedades, conforme a água abranda a terra ou a terra confere à água a sua consistência. Para a imaginação material, inteiramente voltada a suas preferências, por mais que se misture os dois elementos, um é sempre o sujeito ativo, o outro sofre a ação. Em outras palavras belo exemplo dessa ambivalência pro- funda que marca a adesão íntima do sonhador às suas imagens ma- teriais essa cooperação das substâncias pode, em certos casos, dar origem a uma verdadeira luta: pode ser contra a terra um desa- fio da potência dissolvente, da água dominadora - ou então con- tra a água um desafio da potência absorvente, da terra que seca. A esponja, a estopa, o pincel podem ser armas nas mãos de um</p><p>62 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE MASSA 63 sonhador terrestre. A esponja confere a vitória contra um dilúvio. "A terra, diz Virginia Woolf (Les vagues, trad. fr., p. 259), bebe gurando na mão o canto do papel untuoso, feltroso, sem fibras, lentamente a cor como uma esponja absorve a água. Ela arredonda- aproxima-o sorrateiramente da mancha de tinta. Um físico dirá que o escolar se interessa pelos fenômenos da capilaridade. Um psicana- se, espessa-se, encontra seu equilíbrio e oscila sob os nossos pés no está, pois, a terra, esponja enorme, esponja triunfante! lista suspeitará de uma necessidade de macular. Na verdade, os Assim as lutas entre a água e a terra, o casamento entre a água sonhos são maiores: ultrapassam as razões e os símbolos. Os so- e a terra, as trocas infindáveis entre o masoquismo e sadismo des- nhos são imensos. Têm, por uma fatalidade de grandeza, uma cos- ses dois elementos, forneceriam inumeráveis documentos para uma micidade. A criança com seca o mar Vermelho. O mata- psicanálise das imagens materiais e O pincel e a espon- borrão maculado é o mapa de um continente, é a própria terra que ja são considerados símbolos suficientemente claros em psicanáli- acaba de absorver o mar. E infinitamente, o escolar sentado em se. Um é essencialmente masculino, outro essencialmente femi- seu banco, mas tendo partido para gazear, para as viagens da geo- Essas atribuições são tão nítidas que podem nos ajudar, de grafia dinâmica, para essa geografia sonhada que o consola da geo- grafia decorada, escolar sonhante trabalha no limite de dois uni- passagem, a mostrar a diferença que subsiste entre as imagens, tais como as que estudamos nas teses sobre a imaginação, e os símbo- versos: universo da água e o universo da terra. O sonho faz as- los da psicanálise clássica. sim águas-fortes em papel Um símbolo psicanalítico, por mais proteiforme que seja, é Avaliaremos a potência das pequenas imagens se captarmos contudo um centro fixo, propende para o conceito; em suma, é com a seguinte imagem de Sartre: perder-se no mundo é se "fazer be- suficiente precisão um conceito sexual Poder-se-ia dizer que o sím- ber pelas coisas como a tinta por um et le néant, bolo é uma abstração sexual realizada no sentido mesmo em que os p. 317) antigos psicólogos falavam "de abstrações realizadas". De qual- Assim, o interesse que um sonhador dá às lutas de duas maté- rias indica uma verdadeira ambivalência Não se pode viver quer maneira, para o psicanalista, o valor de signifi- cado psicológico. a ambivalência material senão dando alternadamente a vitória aos A imagem é diferente. A imagem tem uma função mais ativa. dois elementos. Se pudéssemos caracterizar a ambivalência de uma Por certo tem um sentido na vida inconsciente, por certo designa alma nas mais simples de suas imagens, longe dos dilaceramentos instintos profundos. Mas, além disso, vive de uma necessidade po- da paixão humana, como tornaríamos compreensível o caráter fun- damental da ambivalência! sitiva de imaginar. Pode servir dialeticamente para ocultar e para Não é, de fato, seguindo os borboleteamentos da ambivalên- mostrar. Mas é preciso mostrar muito para ocultar pouco, e é do lado dessa mostra prodigiosa que temos de estudar a imaginação. cia que se pode sentir o dinamismo que se estabelece entre uma E, em particular, a vida literária é ornamento, ostentação, exube- imagem atraente e uma imagem repulsiva? No campo da imagi- rância. Desenvolve-se incessantemente no mundo da Pode nação sensibilizada, pode-se considerar uma espécie de princípio de muito bem, também ela, revelar, como dizem os psicanalistas, fi- indeterminação da afetividade no mesmo sentido em que a xações, mas na ação que procura ter sobre o leitor, pretende-se des- ca propõe um de incerteza que limita a determinação simul- fixação, se me permitirem usar - uma vez não é costume - do tânea das descrições estáticas e das descrições Por exem- direito ao No mesmo instante em que a liberdade de plo: queremos sentir mais de perto uma nuança verdadeiramente expressão recalca no autor forças complexuais, ela tende a desfixar sutil da antipatia, e eis que ela agrada. Inversamente, queremos no leitor imagens inertes fixadas nas dedicar-nos com muita intensidade a uma impressão de simpatia nuançada, e eis que ela aborrece. Veremos esse princípio intervir Mas vamos voltar a nossas imagens e dar um exemplo de de- com muita tão logo consentirmos praticar a micropsi- vaneio mesomorfo entre a terra e a água. Tomemos uma pequena imagem que chamaremos a criança com o Lá está cla se- cologia ao trabalhar no nível de nossas pequenas imagens. Então compreenderemos melhor que a ambivalência das imagens é bem</p><p>64 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A MASSA 65 mais ativa do que a antítese das Voltaremos muitas vezes a esse problema quando se apresentarem os exemplos de ambiva- A intimidade de tal sonho de uma massa perfeita vai tão lon- lências sutis. Aliás, surgirão exemplos em que não teremos neces- ge, as que proporciona são tão profundas, que se sidade de um conflito de matérias, como são as lutas entre a água pode falar de um cogito amassador. Os filósofos nos ensinaram a estender a outras experiências que não o pensamento o cogito carte- ato. A seu e a terra, para surpreender a ambivalência da imaginação em própria massa, a massa tomada em sua unidade, irá nos siano. Falam-nos particularmente do cogito biraniano no qual o ser permitir especificar imediatamente o problema. encontra a prova da sua existência no próprio ato de seu esforço. A consciência da atividade para um Maine de Biran é tão direta II como a consciência de ser um ser pensante. Mas as mais belas ex- periências, será preciso obtê-las nos esforços bem sucedidos. A-fe- De fato, independentemente de toda idéia de mistura da terra nomenologia do contra é uma daquelas que nos fazem melhor com- com a água, parece que se pode afirmar a existência de um verda- preender os envolvimentos do sujeito e do objeto. Contudo, não deiro protótipo da massa imaginária no reino da imaginação mate- concede esforço as suas evidências mais convincentes, as suas evi- rial. Na imaginação de cada um de nós existe a imagem material dências de algum modo redobradas, quando o ser age sobre si? E de uma massa ideal, uma perfeita síntese de resistência e de malea- eis então, em sua mais estreita conexão, o cogito amassador: há uma bilidade, um maravilhoso equilíbrio das forças que aceitam e das maneira de apertar o punho para que nossa própria carne se revele forças que A partir desse estado de equilíbrio que confere como essa massa primordial, essa massa perfeita que resiste e cede uma imediata alacridade à mão trabalhadora, têm origem os juí- ao mesmo tempo. Para o estóico, a geometria da mão aberta, da zos pejorativos inversos do mole demais e do duro do mão fechada, fornecia símbolos da meditação. Para o filósofo que mesmo modo que no centro desses dois excessos contrários, a mão não hesita em basear as provas de seu ser nos próprios sonhos, a conhece por instinto a massa perfeita. Uma imaginação material nor- dinâmica do punho fechado sem violência e sem moleza lhe dá tanto mal segura imediatamente essa massa ótima na mão To- seu ser como seu Assim, encontrando sei lá que massa pri- do sonhador da massa conhece essa massa perfeita tão evidente para mordial em minhas mãos vazias, todo meu sonho manual, mur- a mão como sólido perfeito o é aos olhos do Dessa massa muro: "Tudo me é massa, sou massa em mim mesmo, meu equilibrada, íntima, d'Annunzio seguiu como poeta a constituição: devir é minha própria matéria, minha própria matéria é ação e pai- O padeiro, "tendo experimentado a mistura, verteu na masseira xão, sou verdadeiramente uma massa primordial." um pouco mais de água para diluir a mistura de fermento e fari- Se o homem sonhante pode ter tão belas impressões, não é de nha, sua mão era tão firme na exatidão da combinação, tão hábil espantar que a imaginação material e dinâmica disponha de uma em inclinar cântaro, que vi a água clara desenhar entre o lábio espécie de massa em si, de um barro primitivo, apto para receber e pa- da argila e a flor da farinha um arco de cristal sem trincas, perfei- ra conservar a forma de qualquer coisa. Tal imagem material, tão porque a massa está exatamente diluída que o quadro simples, tão intensa, tão vivaz, é naturalmente espreitada pelo tá tão exatamente desenhado; a água cai na masseira numa curva conceito. E este o destino de todas as imagens fundamentais. E o de geômetra. As belezas materiais e as belezas das formas se atraem. conceito de uma massa que se deforma sob os nossos olhos é tão cla- A massa perfeita é então o elemento material primordial do mate- ro e tão geral que torna inútil a participação na imagem dinâmica rialismo, como o sólido perfeito é elemento formal primordial do primitiva. As imagens visuais recuperam então sua primazia. O geometrismo. Todo filósofo que recusa essa primitividade não en- olho - esse inspetor - vem nos impedir de trabalhar. tra verdadeiramente na filosofia materialista. Se a poesia deve reanimar na alma as virtudes da criação, se deve nos ajudar a reviver, em toda a sua intensidade e em todas as suas funções, nossos sonhos naturais, precisamos compreender 1. D'Annunzio, Le dit du sound et Roma, p. que a mão, assim como o olhar, tem seus devaneios e sua poesia.</p><p>66 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE 67 A MASSA Deveremos portanto descobrir os poemas do tato, os poemas da aquelas massas moles, que estavam coaguladas há uma hora. Elas mão que amassa. se esmagavam em meus dedos e toda a sua opulência rebentava lentamente em minhas mãos, como o suco de uvas muito madu- ras. Eu aspirava aquele aroma sem máculas; ele era igualzinho ao III odor das violetas da primavera. Naquele momento, afirmo-o, sentia- me como num prado Assim, o sonho da mão Como testemunho de uma mão bem sucedida, como claro exem- um prado sobre mar. Como em todos os grandes sonhos, as ima- plo de uma mão virilmente psicanalisada pelo trabalho efetivo da gens elevam-se ao nível de um universo. Uma maciez cósmica en- matéria, vamos comentar um longa página de Herman Melville. che e depois rodeia punho que está amassando. A primavera per- Esta página de exaltação da amassadura é tanto mais impressio- fumada nasce na mão feliz. nante por estar intercalada numa obra tensa e dura que nos revela Desde a antigüidade até os nossos dias, conta-se de navegado- a vida heróica de um caçador de baleias. No capítulo de Moby Dick res que, para acalmar o furor das vagas, deitam óleo no mar. Um intitulado "O aperto de mão" (cap. XCIV, trad. fr., p. 384), Mel- autor do século XIX diz que bastam alguns latões para assegurar ville descreve assim o amassamento do espermacete: a calma durante toda a travessia do A imaginação é uma "Nossa função era esmagar aqueles grumos na mão para grande coisa. Ao amassar o espermacete, Melville sabe bem que los voltarem a ser Um doce e untuoso Não é faz o baleeiro "deslizar" com mais facilidade; todo entregue à sua de espantar que o espermacete tenha sido outrora um cosmético vontade de brandura, ele deita sobre o mar um óleo imaginário. tão apreciado, pois é tão macio, tão claro, tão deliciosamente mo- E a felicidade continua: "Eu banhava as mãos e o coração na- le." Então, ao contato dessa deliciosa moleza, surge uma partici- quela indescritível matéria. Estava prestes a acreditar na velha su- pação dinâmica profunda que é verdadeiramente a felicidade na perstição paracelsiana que pretende que o espermacete possui a rara mão, no sentido material dos termos: "Após ter mantido minhas virtude de temperar ardor da cólera. Enquanto mergulhava na- mãos ali por apenas alguns minutos, meus dedos haviam se torna- quele banho, sentia-me divinamente liberto de todo amargor, de do maleáveis como enguias e senti-os começarem (por assim dizer) toda impaciência e de toda espécie de malícia." A participação é serpentear e Como dizer melhor essa maleabilidade da ple- tão total que mergulhar a mão na matéria certa é mergulhar nela nitude, essa maleabilidade que enche a mão, que se reflete infinda- todo o ser. Ah! se compreendêssemos que as fontes de nossa ener- velmente da matéria para a mão e da mão para a matéria. Viven- gia e de nossa saúde estão em nossas próprias imagens dinâmicas, do tal alegria da mão, os dois mal-estares inversos encontrariam nas imagens que são o futuro muito próximo de nosso psiquismo, seu Seriam, com efeito, facilmente curados tanto escutaríamos conselho do bom trabalho. Inútil procurar qualida- o delírio de viscosidade como certos frenesis de Lautréamont, sen- des ocultas, A evidência da imagem síveis nestas simples palavras: furor nos secos metacarpos" (Les material, a imagem vivida materialmente, eis o que basta para nos chants de Maldoror, p. 185). Essa certeza do equilíbrio entre a mão provar que a matéria suave suaviza as nossas cóleras. Como a fú- e a matéria é um belo exemplo de cogito amassador. Como os dedos ria não tem nenhum objeto no trabalho dessa esplêndida moleza, se alongam nessa maciez da massa perfeita, como se tornam de- o sujeito torna-se um sujeito de suavidade. dos, consciência de dedos infinitos e livres! Não nos espantemos Então um tipo de simpatia humana nasce no trabalho da massa então se vemos agora os dedos imaginarem, se sentimos a mão criar perfeita: "Apertar! Apertar! Apertar!..." exclama o sonhador de suas próprias imagens: Melville. "Passei a manhã inteira apertando o espermacete, tanto "Eu estava sentado lá, as pernas cruzadas sobre o soalho do que no fim eu mesmo me fundi nele. Eu apertava até que uma es- convés. O barco com velas indolentes deslizava serenamente so- tranha loucura se apoderasse de mim. Surpreendi-me apertando bre a água num céu azul e calmo. Eu mergulhava as mãos entre sem querer as mãos de meus companheiros, tomando-as por sua-</p><p>68 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE 69 A MASSA ção, afetuosamente amigável, tão terno, que, finalmente, sem interrup- tão ves grumos, Essa ocupação fez nascer um sentimento tão forte, pelo menos o caráter. Por conseguinte compreende-se que o traba- lho de uma massa ótima possa psicanalisar a mão tirando-lhe pou- eu apertava as mãos deles, olhando-os nos olhos com ternura tinuar como para lhes dizer: bem-amados semelhantes, por a pouco sua dando-lh pouco a pouco, fibra por fibra, alimentando as injustiças sociais e a nos demonstrar que reci- con- os músculos da generosidade. procamente mãos o menor mau-humor ou ciúme. Vamos, apertemo-nos IV nos as em roda; fundamo-nos universalmente uns nos outros até tornarmos um esparmecete, um leite de Guiados assim pelo sono de Melville, poderemos levar o O cozimento das massas vai complicar ainda mais o estudo também da massa não somente ao nível da consciência de um universo, cogito dos valores imaginários. Não só um novo elemento, fogo, vem ao de uma metafísica do eu-tu. A massa trabalhada dois mas perar para a constituição de uma matéria que já reuniu os sonhos mão, nos revela irmãos de trabalho. Na solidão, a massa nos a elementares da terra e da água, mas também, com o fogo, é o tem- rudeza, francamente. Na modéstia de sua matéria, a massa é toda sem ensinou-nos como se deve apertar uma mão, sem moleza, apertou a po que vem individualizar fortemente a matéria. tempo de cozi- mento é uma das durações mais circunstanciadas, uma duração su- autenticidade. A ternura humana é legitimada como uma metáfo- tilmente sensibilizada. O cozimento é assim um grande devir ma- muitas ra muito próxima de suas belas imagens Como terial, um devir que vai da palidez ao dourado, da massa à crosta. Tem um começo e um fim como um gesto humano. Não foi Brillat- dos vezes, o pancalismo da matéria oferece suas veremos os valores humanos. imagens 9 a to- Savarin quem escreveu: "A gente se torna cozinheiro, mas se nas- Assim, o texto de Melvillé é, do ponto de vista da imaginação ce assador"? duz material das e dinâmica, maravilhosamente completo, já que nos Um historiador dos alimentos vegetais, Maurizio, em vez de substância alegrias da mão às alegrias do coração, da simpatia con- descrever a pré-história com os títulos: idade da pedra, idade do tanto das coisas à simpatia pelo coração dos homens. É pela bronze, idade do ferro, propunha as grandes etapas culinárias: idade um texto desconhecido por muitos leitores. Ouvi várias entre- do trigo esmagado, idade do mingau, idade do biscoito. Reviva- zes objetarem que ele tornava lenta a narrativa dramática das ve- mos à nossa maneira, com todas as suas imagens, a idade do bis- de turas tão numerosas no romance Moby Dick. Tais objeções aven- coito. Voltemos, pois, ao gineceu nas horas em que as mulheres, uma concepção do drama em alta tensão, como se o ser partem huma- a mãe, a a tia, a criada, estão preparando os festins. Os pre- no só fosse dinamizado em suas crises, como se as rivalidades dos parativos da festa não são parte integrante da festa, a festa em sua esforços cotidianos não delineassem todas as formas de seu múlti- manhã? Não é na cozinha que se sonha melhor com a gastrono- ciência plo envolvimento! A tomada de caráter ocorre sobretudo na mia? A imaginação culinária se forma precisamente graças ao in- das longas jornadas, e a realidade não nos permite ludibriar- pa- teresse pelo problema ao ligar os molhos, ao misturar a farinha, a manteiga e o açúcar. E na cozinha que se realiza a mão nos acerca de nossas potências, acerca de nossa coragem. Ler na fusão do materialismo copioso e do materialismo delicado. estendida, na mão passiva, como fazem as quiromantes, é o destino muito por alto. A palma da mão é uma prodigiosa flores- ver Compreende-se então o entusiasmo de um Michelet (La mon- romancia da mão em extensão não desvenda os sonhos da mão vi- ta A menor esperança de ação a faz estremecer. A qui- tagne, p. 304): "Não há nada mais complicado que as artes da massa. Nada que se regre menos, que se aprenda menos. É preciso ser to. Tudo é dom da Afastar a criança da cozinha é condená- líbrio va. Pelo contrário, a quiromancia da mão encurvada, no exato equi- la a um exílio que a aparta dos sonhos que nunca conhecerá. Os da descontração e da tensão, com os dedos prontos para valores oníricos dos alimentos ativam-se ao se acompanhar a pre- gar, para apertar, para estreitar, para amassar, prontos para pe- rer, em suma, a quiromancia dinâmica revela, se não o destino, que- paração. Quando estudarmos os sonhos da casa natal, veremos a persistência dos sonhos da cozinha. Esses sonhos mergulham num</p><p>70 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE 71 A MASSA volta" da dona de casa! longínquo Feliz o homem que, em criança, "rodou em ram. Cumpre dar às exalações produzidas pelo fermento o tem- As artes do açúcar também podem suscitar imagens da sutile- po de Tais devancios nos colocam diante de ambiva- leira za material. Na mesma página escrita nos Alpes diante da "ge- lências que precedem sucesso dos grandes valores. Michelet evoca madrigal de Ve- lunar coberta de vidrilhos de açúcar; poderemos então perceber paisagem remos mais adiante desprezo de um Huysmans pela VI há mo uma imagem pode revelar dois temperamentos. Que amargor co- no coração de um ser que a docura Vamos examinar a imagem dinâmica dos fermentos, vamos Em seu livro Une enfance (trad. fr., p. 42), Hans Carossa examiná-la um tanto longamente num texto recente, num exem- seu interesse pela massa do confeiteiro. Que alegria seguir a massa anota plo em que ela está deslocada. Poderemos assim apreciar melhor quente e cheirosa em seu esticamento! Como ela se dobra! E esse desejo de uma matéria preparada, esse tempo incubado, esse fida a tesoura que a corta em pedaços se mostra de repente de uma como pér- futuro acarinhado que toda a imagem material do fermento repre- liça, redonda e, depois, nas duas bordas, conservando o rastro ro- in- brutalidade! Como é estranha a forma da bala puxa-puxa, senta. Vamos estudar, num outro livro de Hans Carossa (Les se- crets de la maturité), algumas passagens nas quais o autor descreve teiramente reto da tesoura. Nunca se acaba de sonhar com elas! uma visita a uma fábrica de porcelana. Como no texto de Melvil- le, esperamos mostrar que imagens inertes, para leitores que não foram sensibilizados por devancios materiais, assumem pelo con- trário uma vida inegável quando queremos nos interessar pela subs- tância das coisas. Hans Carossa não segue direito as explicações técnicas do enge- pão. Em nossas leituras observamos grande número delas. Mas Aqui, dispensamos o leitor de um sobre as imagens do nheiro guia a sua visita. Mal entrou na já sonha. E o sonho e não a realidade técnica que será para ele o que sistema de de acúmulo exala a monotonia. As imagens do pão crocante, e seu aroma É do pão quentinho, eis o que se repete de uma página gran- a referência para todas as imagens adventícias. O escritor vai inte- sem acreditar nisso, comparamos a côdea ao ouro. outra. uma composição francesa elementar. Todos nós a fizemos e, grar todas as observações objetivas a seu sonho a um so- nho longínquo que já deixou seu rastro numa cena de infância que Bem mais raros são os devaneios do fermento. São menos nu- relataremos em seguida. Vamos portanto seguir um procedimento merosos aqueles que seguiram com seus sonhos a massa que está que se desenrola às avessas da habitual racionalização, porquanto aqui crescendo nos cestos. Todos os devaneios da dilatação vêm associar- se trata de partir de fenômenos objetivos particularmente bem ex- se aos devaneios da massa, de forma que a massa que está crescen- plicados e de traduzi-los no sentido de um devaneio intimista. do é uma matéria com três elementos: a terra, a água e o ar. Espe- Diante do fosso de massa de porcelana, o sonhador tem ime- - ra a quarta: o fogo. Quem conhece todos esses sonhos compreende diatamente (trad. fr., p. 80) impressão de uma criação viva da à sua maneira - que o pão é um alimento completo. qual gostaria de Pensa numa duração obscura, numa O pão camponês, redondo, sob a ação do fermento se estica duração perturbada "de decomposição e de fermentação" Sem essa como um Por vezes a fermentação trabalha esse ventre dupla agitação de pulverização e de ebulição, sem essa luta do seco mo um borborigmo; uma bolha vem estourar no Tais acon- co- e do graxo, do pó e da bolha, puras qualidades espirituais da tecimentos não ocorrem com a massa ázima. "Boerhaave diz porcelana" não poderiam de modo algum "atingir a um vapor emanado do pão quente colocado num local muito que Decomposição e fermentação, dois tempos materiais bem dife- queno e bem fechado sufocou imediatamente os que lá entra- pe- 2. Sage, Analyse des 1776, 46.</p><p>72 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A MASSA 73 rentes, trabalham dialeticamente a matéria como uma e uma nhece esse detalhe, mantido sob juramento; ele trabalha num local diástole trabalham um coração. Aí está realmente a marca de uma particular e fechado: é lá que dosa a matéria e a faz fermentar". duração de uma duração que encontra seus apenas Esse mestre do fermento para a massa de modelar, para o pão na busca sucessiva de dois interesses contrários, aqui primeiro da terra, não devemos chamá-lo de mestre-sonhador da o movimento - o refinamento destruidor que quer pó, e - se- guardião do onirismo dos trabalhadores. São dele as potências cós- gundo movimento - a ligação refinada dos fermentos que prepa- micas, a justa terra, a água dos equinócios, é dele o domínio alter- ram as Mediante esse duplo movimento, parece que nativo da porcelana de primavera e da porcelana de outono! a própria massa se Em outras páginas da Encyclopédie, a racionalização é que é mais O sonhador de Carossa está então preparado para com- forte. Por exemplo, o autor nega-se a crer numa prática, também preender "as histórias legendárias da velha China. Lá deixavam ela carregada de onirismo: "É um erro acreditar que a porcelana, fermentar por dezenas de anos as misturas de porcelana e obtinham para ser perfeita, deva ter sido encerrada por muito tempo na ter- assim uma delicadeza Como então não se encon- Mas a luta entre as potências do sonho e as potências da refle- trariam nessa indústria permeável às lendas os antigos devancios xão não terminou com essa declaração; o autor sente necessidade da vida mineral, vida mais lenta que todas, vida que quer a lenti- de racionalizar o velho costume nestes termos: "Somente é verda- dão, vida que não devemos apressar se quisermos recolher-lhe to- de que, escavando nas ruínas de velhas construções, sobre- da a fecundidade? Em sua jazida, o caulim trabalha, o caulim vive tudo limpando velhos poços abandonados, ali por vezes são encon- um sonho de brancura e de homogeneidade, leva tempo que for tradas velhas peças de porcelana que foram escondidas em tempos preciso para inserir tão grande sonho em sua realidade material. de A matéria pura vive, sonha, pensa e se esforça como um bom ope- Tal explicação deixa intatos todos os sonhos. É verdadeira- rário. O sonho da amassadura eleva-se assim ao nível no mente externa. O devaneio íntimo continua e segue, com secreta sim- sonho do ceramista, a mina de argila é uma imensa masseira onde patia, a velha prática que recoloca na terra o vaso após a cocção, as terras diversas se amalgamam e se misturam aos fermentos. para que ele se impregne de uma nova virtude terrestre depois das Havendo interesse em seguir um tanto longamente o ohiris- provas muito ardentes do fogo, para que, no seio da terra, acumu- mo do trabalho do ceramista, seria interessante estudar com deta- le em sua frágil substância valores de solidez e Um psica- lhes o artigo Porcelana na Encyclopédie de d'Alembert e Diderot, ar- nalista verá nisso vestígio da fantasia da volta à mãe, desejo tigo que Carossa na verdade não leu, pois as páginas de Carossa de um segundo A Encyclopédie só quer ver um ama- estão marcadas pela sinceridade dos sonhos. Ver-se-á precisamen- durecimento artificial, um método de pátina. "Tudo que a por- te no artigo Porcelana, como nas página de Carossa, a luta da racio- celana adquire envelhecendo na terra é alguma mudança que ocorre nalização nascente contra a lenda animista da massa. Essa massa em sua cor, ou, se quisermos, em sua pintura, que mostra que é na qual se quer manter uma espécie de correlação entre a putrefa- velha. O mesmo acontece ao mármore e ao Viver len- ção e a fermentação - esses dois grandes princípios dinâmicos do tamente, envelhecer suavemente, eis a lei temporal dos objetos da devir substancial na química do século XVIII - é preparada, diz terra, da matéria terrestre. A imaginação terrestre vive esse tempo en- o autor do artigo, só duas vezes por ano, dois equinócios, por- terrado. Poderíamos segui-lo, esse tempo de lenta e notória intimi- que se acredita ter observado que nessa época a água da chuva é dade, desde a massa fluida até a massa espessa, até a massa que, mais apropriada para a fermentação; conserva-se sempre um pou- solidificada, guarda todo o seu passado. CO da massa antiga para servir de fermento à nova; e não se em- É fácil perceber que os que se prendem ao trabalho prega para fazer vasos senão a massa que tenha ao menos seis me- de uma matéria terrestre são muito mais complexos do que supõem ses; é nisso que consiste a manipulação secreta que se esconde cui- uma filosofia positiva e uma filosofia Tão logo temos dadosamente. Há apenas um único homem na manufatura que co- poder sobre sua substância, os mais inertes objetos atraem sonhos.</p><p>74 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A MASSA 75 Assim compreenderemos que, visitada por um autêntico sonhador to, a sua qualidade ativa, a sua qualificante, eis o que imuniza con- como Carossa, a fábrica mais simples revela em seus detalhes - tra os próprios excessos do fogo. O operário não é mais servidor em todos os seus objetos e em todas as suas funções uma potên- do fogo, é o seu senhor. cia de simbolismo psicológico que seria uma pena desperdiçar. Até Assim a operário apaixonado, o operário enriquecido de to- aquele isolador telegráfico que se ergue como uma gota de lírio- dos os valores dinâmicos do sonho, vive tempo dinamizado da do-vale ao longo da estrada-de-ferro, Carossa imagina-o como uma cocção. Termina voluntariamente, ativamente, destino da massa. pequena criatura que "seria, diz ele, do mesmo sangue que Conheceu-a mole e plástica. Ele a quer firme e reta. Segue em sua Viu-o nascer, e sonhos nasceram em sua alma, enquanto caminhava surpresa e em sua prudência a investida do fogo que pega a peça perto das cubas, perto dos fornos da fábrica solitária, perdida nos bosques da Boêmia. por toda parte, suavemente, fortemente. Durante cada fornada ele revive toda a história de um Bernard Palissy. Talvez não a tenha Fornos! Cubas! No meio das florestas! Ah! quem nos recolo- lido; mas a sabe. Ela é uma contextura de sonho e de habilidade. cará a fábrica no campo, perto da argila do valezinho, naquele mes- É uma convergência de forças naturais. O que nasceu na água mo valezinho onde, criança, eu punha bolinhas para assar.. acaba-se no fogo. A terra, a água e o fogo vêm cooperar para pro- Todos nós exploramos minas, todos nós sonhamos nossa fá- brica que assaria a terra fértil num instante. duzir um objeto usual. Paralelamente, grandes sonhos elementa- res vêm unir-se numa alma simples e dar-lhe uma grandeza de de- Quanta profundidade nessa observação de Carossa! Aquela miurgo. fábrica da Boêmia, diz ele, "atende tão poderosamente as antigas Retire os sonhos, e você abaterá o operário. Negligencie as aspirações da Também ela, como a oficina do tamanquei- potências oníricas do trabalho, você diminuirá, aniquilará o tra- ro, está num universo balhador. Cada trabalho tem seu onirismo, cada matéria trabalha- Ante tanta simpatia pela matéria, não é de admirar que Ca- da suscita seus devancios íntimos. O respeito das forças psicológi- rossa tenha vivido essa participação dinâmica nas violências dos elementos, participação que permite mudar eixo do cas profundas deve nos conduzir a preservar de qualquer ataque o onirismo do trabalho. Não se faz nada de bom a contragosto, is- Daremos outros exemplos dessa Mas não deixemos a fá- to é, a contra-sonho. O onirismo do trabalho é a própria condição brica de porcelana sem receber dela a magnífica lição. da integridade mental do trabalhador. Você está lá, passivamente, como visitante ocioso, na atmos- Ah! virá um tempo em que cada ofício terá seu sonhador titu- fera sufocante do forno de porcelana; então a angústia do calor lar, seu guia onírico, em que cada manufatura terá seu escritório apodera-se de você. Você recua. Não quer mais ver. Tem medo das faíscas. Julga-se no poético! A vontade de quem não sabe sonhar é cega e limitada. Sem os devaneios da vontade, a vontade não é verdadeiramente Ao contrário, aproxime-se. Aceite através da imaginação tra- uma força humana, é uma brutalidade. balho do operário. Imagine-se colocando a madeira dentro do for- no, atulhe o forno de carvão com pás cheias, provoque o forno nu- ma rivalidade de energia. Em resumo, seja ardente e o ardor da VII fornalha perderá suas flechas contra seu peito, você ficará tonali- zado pelo combate. O fogo pode apenas devolver seus golpes. A Até aqui pudemos estudar alguns documentos psicológicos e psicologia do contra tonaliza o "Como eu invejava, diz literários relativos ao trabalho da matéria sem que tenha- Carossa, os operários que trabalhavam naquele forno de purifica- mos precisado nos ocupar dos problemas da forma. Podermos as- ção! Contra eles, os ativos, ele parece não ter nenhum poder." sim separar as alegrias da amassadura e as alegrias da modelagem Participar do calor não mais como estado, mas do calor como prova, a nossos olhos, que a imaginação material corresponde a uma crescimento, ajudar, com arrebatamento, o seu devir de crescimen- atividade específica evidente. A amassadura é, em certos ângulos,</p><p>76 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A MASSA 77 a da modelagem. Tende a destruir as Para Platão, amassar é destruir figuras íntimas para obter uma massa apta para nação literária, todas as artes são Um belo adjetivo bem co- receber figuras externas (Timeu, trad. Budé, p. 169). "Da mesma locado, bem iluminado, soando na harmonia certa das vogais, e forma também, aqueles que se aplicam a imprimir figuras em al- eis uma substância. Um traço de estilo, eis um caráter, um guma substância mole, não deixam de início subsistir nenhuma homem. Falar, escrever! Dizer, contar! Inventar o passado! figura visível nessa substância, e a modelam e a unem primeira- Recordar-se com a pena na mão, com um cuidado confesso, evi- mente até deixá-la tão lisa quanto possível." dente de bem escrever, de compor, de embelezar, para estar bem certo Mas naturalmente a tomada de forma, a modelagem, é uma de que se ultrapassa a autobiografia de um real acontecido e de tal alegria dos dedos, leva a tamanhas valorizações, que uma psi- que se reencontra a autobiografia das possibilidades perdidas, ou cologia da imaginação dinâmica deveria estudá-la minuciosamen- seja, os próprios sonhos, os sonhos verdadeiros, os sonhos reais, te. Entretanto não iremos muio adiante nesse Isso por- os sonhos que foram vividos com complacência e lentidão. A esté- que nossas pesquisas não visam à imaginação das formas. Há nes- tica específica da literatura é essa. A literatura é uma função de se campo tantos estudos excelentes que acreditamos poder nos li- suplementação. Torna a dar vida às oportunidades fracassadas. Tal mitar ao campo que circunscrevemos desde nossas primeiras in- romancista, por exemplo, pela graça da página branca, aberta a vestigações sobre a imaginação da matéria. Portanto, só tratare- todas as aventuras, é um dom Juan satisfeito. Mas voltemos a nos- mos da modelagem em seus primeiros tateamentos, quando a ma- sas imagens. téria se revela como um convite para modelar, quando a mão so- Para nos colocar de imediato no plano onírico e no plano lite- nhadora usufrui as primeiras pressões construtivas. E inclusive só rário normalmente confundidos, vamos comentar um sonho de mo- chamaremos a atenção nos limites do sonho e da realidade, ten- delagem, uma cena de modelagem reconstituída pela imaginação. tando surpreender antes os sonhos de modelagem do que o sucesso Extraímos essas páginas do livro Une enfance (trad. fr., p. 136) de de uma mão sábia e destra, hábil em repetir o modelo oferecido Carossa. De Carossa, a vida fez um médico e um romancista. Ve- aos olhos. jamos como ele sonhou ser escultor. Modelagem! sonho de infância, sonho que nos leva de volta Num sonho noturno, longamente contado, herói do livro vê à nossa infância! Foi dito que a criança reunia to- aparecer um tio que lhe diz à queima-roupa: "Estás aí, mestre mo- das as possibilidades. Crianças, éramos pintor, modelador, delador?" e tio na mão do jovem sonhador "três bolinhas nico, escultor, arquiteto, caçador, explorador. E o que aconteceu de uma mistura branca avermelhada", recomendando-lhe "fazer com tudo isso? com elas uma bela Há entretanto um meio, no centro mesmo da maturidade, de Compreendamos principalmente que, já no início da narrati- reencontrar essas possibilidades perdidas. Um meio? Quê! Seria va onírica, estamos diante do arquétipo da matéria. Essas três bo- eu um grande pintor? - Sim, você seria um grande pintor algu- linhas são realmente o barro primitivo, a terra primordial, a maté- mas horas, por dia. - Eu faria grandes obras? - Sim, faria gran- ria necessária e suficiente "para fazer uma bela Criar des obras admiráveis, obras que lhe proporcionariam as alegrias - termo forte - é criar uma criança. No sonho, as palavras reen- diretas da admiração, obras que levariam de volta aos tempos contram amiúde o seu sentido antropomórfico profundo. Aliás, felizes em que o mundo causa pode-se observar que a modelagem inconsciente não é coisista; é Esse meio é a literatura. Basta escrever a obra pintada; basta animalista. A criança entregue a si mesma modela a galinha ou o coelho. Cria a vida. escrever a estátua. Com a pena na mão desde que queiramos ser sinceros - reencontramos todos os poderes da juventude, revive- O sonho, porém, trabalha depressa; o modelador adormecido mos esses poderes como eram, em sua ingênua confiança, com suas logo termina assim sua narrativa onírica: "Amassei e sovei a mas- alegrias rápidas, esquemáticas, Pelo expediente da imagi- sa um instante e de repente tinha na mão um homenzinho maravi- lhosamente O homunculus malaxado por certo provocará fá-</p><p>78 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A MASSA 79 ceis comentários Mas para nós, como a continua- zer, a nossa liberdade, essa liberdade que os profetas "do ser en- ção da narrativa irá prová-lo, ele é aqui o signo de um impulso querem sistematicamente perigosa, dramática. Se vemos estético profundo. a liberdade no trabalho, na alegria do trabalho livre sentimos a des- De fato, tendo ainda na mão, numa mão de sonho, aquele "ho- contração. Sonhamos os sucessos prolixos do trabalho antes de tra- menzinho maravilhosamente o adormecido desperta. Pas- balhar e trabalhando. Por que estranho esquecimento os samos então do onirismo noturno para devaneio diurno, e Ca- gos desprezaram o estudo desses sentimentos de confiança, o pró- rossa vai desenvolver uma narrativa que pretende mostrar a conti- prio tecido da perseverança, da perseverança ativa, envolvida nas nuidade dos dois mundos. Eis esse despertar no entusiasmo de seu coisas? A palavra ideal, neste caso, é intelectual demais, a palavra ato poético: objetivo, utilitária demais. A vontade é mais bem administrada por "Despertando no mesmo instante, vi que o fogo já estava aceso, um devaneio que une o esforço e a esperança, por um devaneio levantei-me de um pulo só, peguei o resto de cera que estava no que já gosta dos meios independentemente de seu fim. O devaneio peitoril da janela e me acocorei perto da claridade do fogo, pene- ativo alimenta a coragem através dos encorajamentos constante- trado da fé de que conseguiria infalivelmente fazer acordado que mente verificados no trabalho. Para uma obra um pouco clara, um acabara de fazer em meu Sentia na ponta dos dedos os ges- pouco longa, certamente é preciso pensar antes de agir, mas é pre- tos criadores do meu sonho, aquecedor difundia um forte calor ciso também sonhar muito antes de tomar interesse em pensar. A psi- que ajudava a amolecer a massa, e o que surgiu ao cabo de alguns cologia de tais interesses só pode ser feita se esquadrinhamos o in- minutos era um rostinho nítido e agradável, sem ser precisamente consciente. Assim, as mais fecundas decisões vinculam-se aos so- belo; só tive que circundar a cabeça com um pouco de marrom, nhos noturnos. noite, voltamos à pátria do repouso confiante, indicar os olhos, as narinas, colorir as bochechas com duas goti- vivemos a confiança, sono. Aquele que dorme mal não pode ter con- nhas de vinho tinto; tal qual, parecia um jovem pastor muito fiança em si. Na verdade, sono, que é considerado uma inter- correto. rupção da consciência, liga-nos a nós mesmos. O sonho normal, "Acordei meus pais e fui de tarde procurar Eva para lhe mos- o sonho verdadeiro, é assim o prelúdio, e não a trar a primeira criatura humana que eu mesmo fizera e seqüela, de nossa vida ativa. ra como minha. Ela lhe agradou bastante...' Quando se vive realmente essa confiança dada pelos deva- Por certo, os psicólogos racionalistas que sempre acreditam que neios elementares, aqueles que têm a confiança dos elementos, sonhamos à noite apenas o que fizemos de dia, acusarão o narra- compreende-se que se possa falar de um a priori onírico, de sonhos dor de perturbar a ordem da causalidade psicológica. Dirão que típicos, de sonhos de primeira animação. a criança por certo amassou muito tempo cera em suas brincadei- Cumpre acrescentar, ao reler as páginas de Carossa, que elas ras acordadas, e que assim a realidade rege o são a marca de uma confiança bastante sólida para que nar- Há, em tais juízos, um desdém pelo onirismo que acaba por rador tenha tido confiança de interessar seu leitor por confidências cegar os melhores psicólogos. O excesso de racionalismo apaga ma- tão parcas. Mas Carossa sabe por instinto que os grandes sonhos tizes psicológicas importantes. Assim, como não sentir nesse texto são compartilhados por inúmeras almas. Assim como nos comuni- a ação evidente da confiança onírica? O devaneio da vontade tem, camos através de nossos devaneios, comunicamo-nos através de nos- realmente, por função direta nos dar em nós mesmos, con- sas De uma infância podemos contar tudo, temos certe- fiança em nossa potência laboriosa. Desdramatiza, se ousamos di- za de interessar. E todo leitor que souber abrir as portas de uma infância sonhadora, se interessará pelo livro de Carossa. O interesse é uma realidade do dinamismo psíquico que tem uma evidência 3. Lembramos que o sonho de vôo nos dá tal confiança em nossa leveza que somos levados a tentar de dia o que conseguimos à noite. Cf. o sonhos, incontestável. cap. "O sonho de Se agora estudarmos mais de perto o texto de Carossa, perce-</p><p>80 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A MASSA 81 beremos facilmente que a endosmose do onirismo e do pensamen- modelado, um desejo de nascer para a forma. Um fogo, uma vida, to claro mistura e turva várias imagens. Pode-se denunciar nele um sopro é uma potência na argila fria, inerte, pesada. A argila, a influência de algumas racionalizações, pode-se criticar-lhe algu- a cera, têm um potencial de formas. Gérard de Nerval, em Aurelia mas anotações que, apoiando-se em realidades do psiquismo cla- (Ed. José Corti, pp. 44-45), traduziu essa vontade íntima de ser ro, ocultam-nos as realidades do sonho. por exem- modelado pelo equilíbrio entre um impulso interior e a ação do mo- plo, quem acendeu, antes de os pais levantarem, um fogo tão vivo delador: "Entrei numa oficina onde vi uns operários que estavam para amolecer a cera que se encontra no peitoril da janela. O leitor modelando na argila um animal enorme com a forma de uma lha- sensível à continuidade do inconsciente terá, antes, a impressão de que ma, mas que parecia ser dotada de grandes asas. Aquele monstro aquele calor ambiente continua o calor do leito, sentirá em sua lei- estava como que atravessado por um jato de fogo que o animava tura que os dedos do sonhador continuam a amassar a mas- pouco a pouco, de forma que ele se retorcia, penetrado por mil re- sa imaginária da noite na cera luminosa. flexos púrpuras, que formavam as veias e as artérias e fecundavam, Como também não ficar impressionado com o excesso do tex- por assim dizer, a inerte matéria, que se revestia de uma vegeta- to quando o autor descreve atos reais? Teremos com muita ção instantânca de apêndices fibrosos, de barbatanas e de tufos la- cia, a outros respeitos, a oportunidade de denunciar esses excessos nosos. Fiquei parado contemplando aquela obra-prima, em que pa- de imagens que ocultam as características imaginárias dominantes. reciam ter sido surpreendidos os segredos da criação divina. - É Por exemplo, é concebível que se possa colorir a cera de abelha que nós temos aqui, disseram-me, o fogo primitivo que animou os com "duas gotinhas de vinho Seria preciso uma cor mais primeiros seres... Gérard de Nerval conduziu seu leitor a essa ce- incisiva. Mas vinho - esse sangue vegetal! - é uma tinta que na de modelagem no seio da Terra, onde se modelam os seres. guarda a sua marca A cera e vinho continuam material- Daríamos de bom grado texto de Gérard de Neval como um mente na vida acordada a mistura "branca avermelhada" dada exemplo de modelagem em literatura, para ser juntado ao museu pelo tio ao jovem mestre modelador durante o sonho. O devaneio das estátuas literárias. A modelagem falada na forma ativa os da criança acordada nada perdeu - sobretudo nenhuma matéria! verbos da matéria modelada. O monstro se por uma força dos sonhos da criança adormecida. O sonho noturno e o deva- Se olhamos a imagem, se a recebemos passivamente, com neio da manhã - pois é um devaneio que trabalha - têm aqui seus apêndices fibrosos e seus tufos lanosos, o monstro não passa a mesma tonalidade de criação O objeto modelado não é a de uma caricatura. Mas a imaginação que fala, a imaginação que cópia de um pastor, é a substância de uma explica, a imaginação literária nos ajuda a viver um desejo Daí a reivindicação viril do jovem O herói de Caros- de formas como se tivéssemos o poder de conhecer os segredos da sa vai mostrar ao próprio pai o que ele já consegue fazer. A Eva criação do vivente. - uma amiga mais velha, que o domina através de um psiquismo De fato, a imaginação material está, a bem dizer, sempre em de singular sadismo vai mostrar primeira criatura humana" ato. Não pode se satisfazer com a obra realizada. A imaginação que "ele mesmo" fez, que reconhece como das formas repousa em seu fim. Uma vez realizada, a forma se en- riquece de valores tão objetivos, tão socialmente intercambiáveis, VIII que drama da valorização se distende. Pelo contrário, o sonho de modelagem é um sonho que conserva as suas possibilidades. Esse Assim, nesse exemplo privilegiado, vemos que a criação de uma sonho serve de base para o trabalho do escultor. Escutemos um poe- obra guarda um tanto da tonalidade da procriação de uma crian- ta nos contar esse tormento das possibilidades. ça. É na modelagem de um barro primitivo que a Gênese encontra as suas Em suma, o verdadeiro modelador sente, por ó jogo leve dessa massa pesada assim dizer, animar-se sob seus dedos, na massa, um desejo de ser E de duas mãos que a estão trabalhando!</p><p>82 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE A MASSA 83 Com uma onda sem fim de imagens próprio sonho, dá a impressão de haver ultrapassado a região dos Vai torturar meus dedos dormentes, meus olhos signos para abraçar uma vontade de significar. Não reproduz, no transformarem-se em águas vivas sentido imitativo do termo: produz. Manifesta um poder criador. Os duros relevos de mais Uma modelagem tão intimista apresenta caracteres dinâmi- Ah! deter-se! Ah! encontrar sólido, cos impressionantes, como se verá ao simples exame de uma das A fronte fechada sob os cabelos do vento! reproduções do livro de Löwenfeld (p. 232). A obra foi realizada JEAN TARDIEU, au por um cego de nascença. Tem como título Moço implorante, e re- Accents presenta um moço de corpo nu, reto sobre as pernas curvadas, er- Quando leio versos assim, tenho a impressão de que atuam guendo para o céu duas mãos implorantes. As mãos são maiores em mim como reflexos condicionados. Dinamizam regiões profun- que antebraço, que por sua vez é maior que o braço. "Sentimos, das e músculos Parece-me que todas as lembranças manuais diz Löwenfeld, o vigor das forças elementares incorporadas nessa voltam a ficar ativas em minhas mãos quando leio estes dois versos forma quando seguimos com o olhar crescimento gradual das pro- de Jean Tardieu: porções de suas A forma parte da base estreita de pernas delicadas e eleva-se como um hino para o céu, hino que encontra sua forte ressonância nas grandes A base foi, por assim di- Os dedos duplicados por uma lembrança de argila zer, desmaterializada: o ser não está ligado à terra, e estamos so- Em movimento sob o desejo das mãos mente diante do sentimento: Ante essas rupturas de escala que a "vigilância" dos olhos proi- biria, temos realmente a impressão de que sonhador que modela se- IX gue melhor os interesses do devaneio do que sonhador que contempla. Aqui é verdadeiramente a mão que implora; é porque Como dizíamos mais acima, seria preciso, para terminar uma se estende que ela aumenta. E que é preciso salientar é que te- psicologia da massa, dirigir a indagação para o artista modelador. mos imediatamente o sentimento de que não se trata, aqui, de um Seria preciso suscitar confidências dos escultores. Mas os esculto- procedimento, de uma idéia refletida. É verdadeiramente uma for- res escrevem tão pouco. As páginas de um Rodin são tão pobres. ma vivenciada por um cego, vivenciada de dentro, ela vive ao ani- Entretanto, para trazer um pouco de luz ao sonho puramente ma- mar realmente os da E exemplo que evocamos nual, seria interessante, cremos, prosseguir os belos estudos que representa uma lei geral da modelagem dos cegos de nascença. En- Viktor Löwenfeld empreendeu sobre a escultura e a modelagem contraremos no livro de Münz e de Löwenfeld: Plastiche Arbeiten Blin- feitas por cegos. Os indivíduos simplesmente deficientes do ponto der, muitos outros exemplos de modelagem em que as emoções fluem de vista visual - seja essa deficiência orgânica ou psíquica pro- de algum modo na massa modelada e resultam em crescimentos cedem aliás como os cegos de nascença: tanto uns como outros que controle das formas pela visão reduziria. A monstruosidade delam de certa maneira a partir do Por exemplo, fazem formal pode ser uma grande verdade dinâmica. Se o sonho produz os olhos e colocam em seguida, por cima, as pálpebras, - fazem monstros, é porque traduz forças. a boca, colocando-lhe a seguir os dentes e acrescentando enfim os lábios. As vezes os dentes são modelados até mesmo quando os lá- bios estão fechados (cf. Viktor Löwenfeld, The Nature of Creative Acti- vity, Londres, 1939, p. 116). O trabalho da massa, fora do contro- le dos olhos, consiste assim em trabalhar de certa maneira a partir do interior, como a vida. O modelador, quando o seguimos em seu</p><p>CAPÍTULO V AS MATÉRIAS DA MOLEZA. A VALORIZAÇÃO DA LAMA Minh'alma é formada de lama, de ternura e de melancolia. A lama não é um QUENEAU, N.R.F., 1936 I Agora que já apresentamos em seu valor ótimo os devaneios da dureza e da massa, falta-nos considerar imagens mais pesadas, ou mais brutais, que perdem o sentido da felicidade e da força há- bil. Certos psiquismos sobrecarregados exprimem sua infelicidade pelo próprio estilo de suas imagens. A psicanálise naturalmente en- controu esses vícios da representação por imagens, por exemplo, a regressão para as matérias sujas. Encontraremos, em particular, muitos documentos no livro de Karl Abraham que estudou cuida- dosamente a fixação anal. Vamos nos limitar a abordar o proble- ma em suas relações com a imaginação muito mais evoluída, ten tando mostrar que a imaginação positiva é uma evolução das ima- gens que triunfa sobre toda "fixação" Aliás, a psicanálise, se se pudesse sistematizá-la em seus es- forços de psicologia normativa, não mais se mostraria somente mo uma mera investigação sobre a regressão dos instintos. Segui- damente se esquece que ela é um método de cura, de endireita- mento psíquico, de mudança total de interesses. A psicanálise, acer-</p><p>86 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE AS MATÉRIAS DA A VALORIZAÇÃO DA LAMA 87 ca do assunto muito estritamente definido deste capítulo, propõe- do do inegável interesse da criança pequena por suas fezes, nos uma verdadeira sublimação material, um progressivo endureci- constituir-se com segurança e regularidade surpreendentes um in- mento das matérias oferecidas à imaginação humana. teresse pelos bolos de areia. A criança normal segue um devir de De fato, a psicanálise, no exame de certas neuroses, encon- limpeza. Torna-se limpa não só pela ação do meio social, mas tam- trou oposto dessa sublimação material - um alquimista diria que a bém por uma espécie de regulação psíquica. É uma evolução que clínica apresenta casos de descensão das imagens materiais. Se agora Juliette Boutonier apresentou com muita clareza em sua tese sobre prestarmos atenção às normalizações de imagens conjuntamente a Angústia (cap. VIII): "Mesmo admitindo que a criança pequena às fixações anormais, seremos levados a distinguir uma catapsica- não mostra espontaneamente repugnância pelos produtos da de- nálise e uma anapsicanálise, a primeira designando as observações fecção hesitamos em acreditar que, entregue a si mesma, pode- tão importantes para detectar todas as fixações anais, a segunda ria encontrar por muito tempo com o que satisfazer as aspirações devendo, no campo que estamos estudando, fornecer enfoques obje- de sua natureza em semelhantes objetos. bem verdade que o be- tivos e dirigir os interesses para as matérias do mundo exterior. bê gosta de brincar na lama e de se sujar precisamente na idade Mas, de qualquer maneira, cumpre que os psicólogos se dedi- em que está renunciando à livre atividade de seus esfíncteres e às quem atentamente às primitividades do instinto plástico. Por exem- manifestações de interesse que estes provocam nele. Entretanto, por plo, seria interessante dosar os elementos inconscientes de uma teo- mais rudimentar que seja ainda sua atividade, já se vê esboçar uma ria como a de Hegel. Hegel estuda o instinto plástico depois do pro- outra exigência que não a de manipular coisas sujas e moles, pois cesso digestivo, e escreve (Philosophie de la nature, trad. fr., Vera, t. a criança procura dar uma forma a essa matéria, por mais desajei- III, p. 388): "O instinto plástico como a excreção, um ato em tadamente que seja. Conhece-se o sucesso dos bolos de areia que que o animal torna-se como que exterior a si mesmo", e na p. 389: sucedem, aliás, a um período de manipulações que, mais grossei- "O animal excreta matérias com a finalidade de produzir forma- ramente ainda, tendem a uma transformação das coisas. E a au- ções com sua própria E não é nojo que impele ex- tora evoca uma educação bem compreendida, "mais preocupada cretar assim; mas as excreções, ao saírem do animal, são moldadas em superar do que em recalcar uma Aqui a superação por ele para satisfazer suas Um pouco de é precisamente o trabalho de uma matéria plástica. A educação deve nos afasta da natureza, muita metafísica nos reaproxima entregar no tempo certo à criança as matérias de determinada plasti- cidade que convenham mais às primeiras atividades materialistas. Sublima-se assim a matéria mediante a matéria. Infelizmente o nos- II so ensino, mesmo o mais inovador, fixa-se em conceitos: nossas es- colas elementares só oferecem um tipo de terra para modelar. A Mas sigamos com mais atenção a anapsicanálise natural que separa ser humano das fixações infantis. Então veremos, partin- plasticidade da imagem material necessitaria de mais variedade de moleza. As idades materiais poderiam ter determinações mais acura- das se se multiplicassem os estudos sobre a imaginação material. 1. Podemos no livro de Frederick J. Powicke, The Cambridge Platonists (p. 153), esta confidência de um outro idealista, Henry More: "According to his own account his body was posseded of strange properties. Certain products of it had na- mais retêm uma porção de espírito vital, e por conseguinte não se lhes poderia recu- the flavour of Há uma "Like those of the famous Valen- sar a Essa vida é da mesma espécie que a vida animal... Há encre o corpo tine Greatrakes Ward", pp. 123-125. "Segundo seu próprio diz e os excrementos um encadeamento de espíritos e irradiações. A vitalidade dura o texto; é realmente de presumir que ele não fez com que outros verificassem essa enquanto as dejeções não se modificam corpos de uma natureza (ci- propriedade. narcisismo da matéria é solitário. tada por van Swinden, Analogie de et du t. II, 366). A valorização pode ocasionar estranhas teorias. Um autor inglês do século O coronel de Rochas cita longamente as explanações desse texto, retomado XVII, William Maxwell, não hesita em escrever: "Os excrementos dos corpos ani- por Durville em seu Traité expérimental du</p><p>88 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE AS MATÉRIAS DA A VALORIZAÇÃO DA LAMA 89 Mais tarde, uma imaginação normal deverá endurecer, precisará conhecer tanto a madeira como a pedra, o ferro afinal, se quiser Bastaria voltar um século no passado para encontrar textos um ter acesso à virilidade Mas a imaginação se forma me- pouco mais marcados. escreve: "Dizem que uma espé- lhor tendo vivido um período suficientemente longo de trabalho cie de boi selvagem, chamado Bonasus, lança contra o caçador ex- plástico. Quem manipula a massa na hora certa tem chances de crementos ardentes como o fogo, e que a garça-real joga contra o se tornar uma boa massa. A passagem do mole para o duro é deli- gavião que a persegue um excremento que queima e lhe estraga cada. As tendências para a destruição surgem sobretudo como de- as penas." Eis uma ofensa que, afinal de contas, não é muito dife- safios contra os objetos sólidos. A massa não tem inimigos. rente da malvada Martichoras formada na imaginação de Flau- Notemos, entretanto, que é numa regressão para o estágio da Martichoras lança os espinhos de sua cauda que se su- primeira infância, para a fixação anal, que se pode caracterizar o cedem como (Tentation de saint Antoine, primeira ver- sadismo triste, sadismo sujo. facilmente em cer- são, p. 158). Todas essas ofensivas anais, caudais, encontram sua tos neuróticos uma agressão através da que lembra certos força e seu centro na mesma zona inconsciente. procedimentos Buffon citou inúmeros exemplos de ani- Não é o caso de discutir aqui esse finalismo da imundície, ca- mais que, em fuga, espalham uma urina nauseabunda, até mesmo so particular do finalismo do medo. Já é interessante, do ponto de excrementos cujo fedor lhes serve, diz ele, como meio de defesa vista da imaginação, que esse finalismo da imundície não deixe dú- contra os inimigos, vidas para Buffon. Encontraremos em sua mesma simplicidade uma Buffon cita determinado animal que "tem como única defesa observação similar no livro de Trabalhando mais o seu traseiro, que vira primeiramente para aquele que se aproxi- sa zona psicológica inferior, compreenderia melhor cer- ma dele, e de onde faz sair excrementos do odor mais detestável tos aspectos escatológicos das injúrias humanas. Mas a psicologia que há no Buffon descreve o coase que "estrangula as da injúria, a etimologia obscura, a literatura dos re- aves, das quais come apenas cérebro: quando está irritado ou as- clamariam uma obra especial. Basta-nos ter indicado de passagem sustado, solta um odor abominável; é um meio seguro de defesa, as suas relações com a psicanálise da matéria. nem os homens nem os cães ousam aproximar-se: sua urina que Quanto ao mais, mesmo sem descer até o nível inconsciente se mistura aparentemente com esse vapor empestado mancha e in- normalmente recalcado, não deixa de ser verdade que toda maté- fecta de modo Cita um viajante que pretende que o ani- ria mole está sempre exposta a estranhas inversões de valor pelas mal espalha "sua urina sobre a cauda e serve-se dela como de uma quais se manifestam as participações inconscientes que acabamos broxa para a propagar e fazer os inimigos fugirem com esse odor de indicar. Eis uma página em que um poeta efetua de certo modo a ambivalência de uma matéria mole, manifestando alternadamente uma atração e uma recusa. Henri de Régnier (Sujets et paysages, p. 2. É de notar que a imaginação feminina não tem acesso à idade do ferro. 91) exprime assim a dialética das medusas, conforme elas vivam A mulher não faz imagens relativas à forja. nas águas gregas ou nas águas armoricanas: 3. Emily Bronte, Les hauts de (O morro dos ventos uivantes, trad. fr., Delebecque, 86). A personagem mais dura do romance dizia em sua cia: "Serei sujo se isso me agradar; gosto de estar sujo, e quero ser sujo." Berlim, 1930, 133, citado por Medar Boss, Sinn und Gehalt der sexuellen Perversio- lia e da coprofobia, tanto mais que só é considerado de um ponto de vista muito 3a. Naturalmente não podemos abordar de passagem o problema da coprofi- p. 21). As observações que fazemos são, pois, observações Dizem respeito aos valores literários de Buffon, à maneira pela qual Buffon seu Ans- restrito pela psicanálise clássica. A psicanálise, não tendo estudado suficientemente da animalidade. o problema da valorização das imagens, praticamente não pode apreciar a dupla 3b. Duncan, La chymie naturelle ou l'explication chymique et méchanique de la desvalorização do sadismo e do masoquismo. O comportamento animal, em parti- ture de l'animal, 254. cular, e mesmo o comportamento da criança, de nada servem para a colocação do 4. Flaubert, em Tentation de saint (primeira versão, p. 160), fala da "gran- problema. É que observa com muita justeza E. Strauss (Geschehnis and Erlebnis, de doninha Pastinaca que mata as árvores com seu cheiro" 4a. W. H. Hudson, Le naturalists à la Plata, ed. Stock.</p><p>90 A TERRA E os DEVANEIOS DA VONTADE AS MATÉRIAS DA A VALORIZAÇÃO DA LAMA 91 Na Grécia, as medusas na água, moles, dissolvidas, É, pelo contrário, seguindo uma direção oposta, indo da ambi- semelhantes a pedaços de um gelo irisado e fundente. Elas flutuam, à contradição que Sartre desenvolve seu romance de psicólo- leitosas, nacaradas e inconsistentes, opalas fluidas do colar de An- go. Apresenta-nos uma personagem que, na ordem da imaginação fitrite. material, não pode ter acesso ao e que, conseqüen- "Reencontrei-as aqui, aquelas medusas do golfo de Corinto, temente, nunca poderá manter na vida uma atitude firme. Roquen- na pequena praia da Bretanha... mas aqui não são mais irisadas tin está doente no próprio mundo de suas imagens materiais, isto é, em e cambiantes. Suas massas pegajosas perderam seus matizes com sua vontade de estabelecer uma relação eficaz com a substância das a torrente que as trouxe e as abandonou na areia. Inertes, imun- coisas. Atribuirá à substância das coisas qualidades contraditórias, das e glaucas, fazem pensar nos excrementos de algum fabuloso porque ao abordar as coisas, ele mesmo está dividido por uma am- gado marinho. É como se os rebanhos de Netuno tivessem deixado bivalência. Mas vejamos mais precisamente a ambivalência no ní- sobre a areia seus vestígios noturnos." vel da imagem da consciência das coisas. Na mesma página (p. De Anfitrite a Netuno, que desgraça! Como se percebe bem Jean-Paul Sartre mostra o herói de La nausée no ato de "apanhar que o escritor não diz tudo de uma só vez! Sob a medusa de opala, as castanhas, os velhos de erguer "papéis pesados e sun- lisa como uma pérola, encontraremos sempre, numa manhã de tris- tuosos" guarnecidos de imundície. E, no entanto, ei-lo com repug- teza, a massa a pasta "imunda" nância de tocar num cascalho apanhado na praia, um cascalho le- vado pelo O nojo e a atração habituais estão aqui material- mente invertidos. Essa inversão vai excitar interesses irregulares III e, por conseguinte, apaixonados. Uma massa infeliz basta para dar a um homem infeliz a consciência de sua infelicidade. Vamos agora, permanecendo ainda nos estudos da massa tris- Naturalmente é preciso assinalar que aquilo que o escritor des- te, tentar caracterizar do ponto de vista da imaginação da matéria creve sucessivamente pela lei inelutável das narrativas é imaginado uma obra literária que contém grandes verdades psicológicas. simultaneamente. Sob muitos aspectos, reconhecemos essa parte da Em La nausée, Jean-Paul Sartre apresentou uma personagem simultaneidade que confere existência aos heróis sartrianos. Aqui, realiza com singular nitidez um tipo Essa per- mal foi indicada a nota infantil e aparece a reação do psiquismo sonagem pode nos servir para distinguir, de um lado, a originali- amadurecido. Roquentin é infantil às A ambivalência da dade psicológica fundamentada no inconsciente, em profundida- atração e do nojo atua no próprio nível da tentação suja (p. 25): de, e do outro, a originalidade trucada como se vê tanto nos ro- No momento de apanhar um papel que "desaparecia sob uma crosta mances dos escritores Com efeito, lendo muitos ro- de lama" "abaixei-me, já me alegrava de tocar aquela massa mances, vemos romancistas carregar seus heróis com inúmeras con- macia e fresca que se enrolaria sob meus dedos em bolinhas cin- tradições. Acreditam unicamente graças às ações zas. Não Mas nem todas as contradições proporcionam ambiva- Não devemos nos espantar de que tal toque, tão dolorosamente E uma contradição que não é fundamentada numa ambi- sensibilizado pelo drama material da imundície, reaja a contatos valência é um simples incidente psicológico. normalmente indiferentes (p. 25): "Os objetos, a gente não deve- ria já que não vivem. A gente se serve deles, recoloca-os 5. Essa personagem é agora um tipo psicológico tão bem definido que se deve no lugar, vive no meio deles: eles são úteis, nada mais. E a mim julgá-la sem referência alguma a seu criador. Tem realmente vida própria. Subs- eles tocam, é insuportável. Tenho medo de entrar em contato com crevemos a esse respeito a observação de Emmanuel Mounier julho de 1946, eles como se fossem animais vivos. p. 82): "Não se deve tomar essa observação por uma psicanálise existencial do pen- samento de Sartre: não há necessariamente laços diretos entre uma personalidade "Agora estou vendo; lembro-me melhor do que senti, outro e as idéias que esta Está na hora de libertar o criador de suas dia, na praia, quando segurava aquele cascalho. Era uma espécie</p><p>92 TERRA E os DA VONTADE AS MATÉRIAS DA A VALORIZAÇÃO DA LAMA 93 de adocicado. Como era desagradável! E aquilo vinha do cas- calho, tenho certeza, passava do cascalho para minhas mãos. tiplicadas. Do grude ao mel, seriam precisos, depois de um estudo é isso, é isso mesmo: uma espécie de nas global sobre o viscoso, estudos particulares que nos revelassem a potência de individualização da matéria. O grude, por exemplo, A náusea na mão! Texto capital para uma psicologia da mas- sa infeliz, para uma doutrina da imaginação manual da mão en- permanece uma matéria de constante cólera, é uma melancolia agressiva, uma melancolia no sentido material do termo. E basta- fraquecida. Essa mão à qual talvez se tenha dado no tempo certo rá ler a obra do sapateiro Jacob Boehme para reconhecer que o um trabalho objetivo, uma matéria atraente, constitui mal o mun- grude é, no sentido de Sartre, uma chave para a obra do material. Diante de uma matéria um tanto insidiosa ou fugidia, Mas podemos, sobre o tema do viscoso, apreender uma dife- a separação do sujeito e do objeto é mal feita, tateante e o tatea- rença entre o existencialismo da matéria real e uma doutrina da do se individualizam mal, um é lento demais, outro é mole de- matéria imaginada. Para nós, a imaginação material da massa é mais. O mundo é minha náusea, diria um Schopenhauer sartria- essencialmente trabalhadora. O viscoso não passa então de uma no. O mundo é uma cola, um grude, uma massa para sempre mo- ofensa passageira, de uma escaramuça do real contra o trabalha- le demais, uma massa amassada molemente pelo amassador e que dor, e o trabalhador é bastante dinâmico para estar certo de sua sugere à mão - absurdo material - desapertar seu aperto, renegar seu trabalho. vitória. A imaginação material ativista não é tocada nem de ras- pão pela vertigem assinalada por Sartre. Ele escreve (p. 700) sobre a existência no viscoso: uma atividade mole, babosa e femini- na de vive obscuramente sob meus dedos e sinto co- IV mo que uma vertigem, ele me atrai como o fundo de um precipício poderia atrair-me. Há como que uma fascinação tátil do viscoso. Jean-Paul Sartre voltou a um estudo existencialista do pega- Não tenho mais o poder de deter o processo de apropriação. Ele con- joso, do viscoso em et le néant (pp. 694 a 704). Desta vez, já tinua." - Continua, decerto, se nada fizermos, se vivermos vis- não se trata de uma personagem de romance com direito a todas coso em sua existência! Mas tudo muda se o Pri- as singularidades. O filósofo toma verdadeiramente o viscoso meiramente, na amassadura, se a massa grudar nos dedos, um pu- mo um objeto de estudo, provando pela densidade de suas obser- nhado de farinha basta para limpar a mão. Domesticamos visco- vações todo o valor de uma experiência positiva, real, para a me- so pelo ataque indireto de uma matéria seca. Somos demiurgos pe- ditação concreta em filosofia... O autor, trabalhando de algum mo- rante a masseira. Regulamos o devir das matérias. do sobre o tema, vê bem que a matéria é reveladora de ser, isto No fundo, nossa luta contra o viscoso só pode ser descrita por é, reveladora do ser humano: "A simples revelação da matéria (dos objetos) amplia o horizonte (da criança) até os extremos limites do colocações entre parênteses. Apenas a visão pode "colocar entre ser e dota ao mesmo tempo de um conjunto de chaves para deci- frar o ser de todos os fatos humanos." Isso porque a matéria nos 7. Cf. Paul Eluard, Le II, 112: Odeur de suie plafond de poix dá o sentido de uma profundidade oculta, impõe que desmascare- mos o ser superficial. E precisamente Jean-Paul Sartre desmascara Crépuscule de la o viscoso. Sem dúvida, nessa linha as pesquisas poderiam ser mul- (Odor de fuligem teto de grude / Crepúsculo do furor.) 7a. Coloquemos no do viscoso esta página de Thomas Hardy (Les 6. Não se pode esquecer que a imaginação também suas Cada restiers, trad. fr., p. 163), que define rapidamente as atitudes femininas e as atitudes cascalho na praia pode encontrar o seu Eis o que Milosz apanha (Amou- masculinas diante do Eis uma porta pintada há pouco onde "os mosquitos p. 83): "O amor habita no coração das pedras, e é com um pobre vêm colar e morrer" Como abrir essa porta? "No tocante aos homens, não era cascalho todo penetrado de ternura e apanhado numa praia solitária que os dentes muito variado: um pontapé e eles As mulheres eram mais diferentes. da Mentira e do Orgulho serão quebrados no dia a Conforme o seu temperamento, aquela barreira colante era para clas uma barrica- da, um objeto de nojo, uma ameaça, uma</p>