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<p>Conteudista: Prof.ª M.ª Daniela Pogogelski</p><p>Revisão Textual: Esp. Danilo Coutinho de Almeida Cavalcante</p><p>Objetivo da Unidade:</p><p>Apoiar o(a) aluno(a) a conhecer e a desenvolver pensamento crítico-reflexivo</p><p>sobre a infância, as perspectivas e os desafios históricos e contemporâneos, bem</p><p>como a relação disso com os sujeitos-alvos de intervenção da Terapia</p><p>Ocupacional.</p><p>📄 Material Teórico</p><p>📄 Material Complementar</p><p>📄 Referências</p><p>Perspectivas Sobre a Infância – Por Onde</p><p>Caminha o Olhar do Terapeuta Ocupacional?</p><p>Página 1 de 3</p><p>📄 Material Teórico</p><p>Trocando Ideias...</p><p>Iniciar e guiar a construção do conhecimento dos futuros terapeutas</p><p>ocupacionais sobre o desenvolvimento infantil é, para mim, um</p><p>privilégio e uma enorme responsabilidade.</p><p>Sabendo o quanto alguns dilemas e questionamentos sobre as</p><p>dificuldades que se tornam barreiras para o desenvolvimento infantil</p><p>serão realidade nas práticas futuras, escolhi iniciar esta disciplina</p><p>abordando a construção sócio-histórica da infância, correndo o risco</p><p>de “desromantizar” a percepção da criança típica e atípica e</p><p>desmistificar a forma como a conhecemos e acreditamos atualmente.</p><p>Essa trajetória é importante, pois diversas “dores” que atravessarão</p><p>o cotidiano de trabalho dos(as) futuros(as) terapeutas ocupacionais,</p><p>poderão ser mais bem compreendidas a partir dessa reflexão sócio-</p><p>histórica. Assim, espero que as estratégias de cuidado ofertadas por</p><p>vocês possam ser elaboradas na integralidade das dimensões que</p><p>apoiam a vida e a funcionalidade, sem correr o risco de serem</p><p>enviesadas e compreendidas apenas à luz das problemáticas atuais e</p><p>de alguns paradoxos.</p><p>Muitos de nós são apaixonados pelos seres maravilhosos e</p><p>encantadores que chamamos de crianças, piá, guri ou curumim.</p><p>Somos tomados por um senso de cuidado, proteção e amor no</p><p>primeiro instante que pousamos nossos olhos sobre eles, e um senso</p><p>forte de justiça, urgência de resolução e indignação toma conta dos</p><p>nossos pensamentos e “instintos humanos” quando detectamos</p><p>qualquer fagulha de perigo que os ronde.</p><p>Tais sentimentos são suscitados também, ouso dizer, quando nos</p><p>concentramos na população atípica, e amplamente potencializados</p><p>quando, no centro das nossas práticas, está a criança com</p><p>deficiência.</p><p>A nossa construção de conhecimento e os nossos sentimentos acerca</p><p>das deficiências, e nestas se incluem os transtornos do</p><p>desenvolvimento, também foram historicamente construídas; e,</p><p>assim como a infância, foram atravessados por momentos sociais</p><p>que até hoje refletem marcas nem sempre favoráveis à cidadania e à</p><p>aquisição de direitos, servindo, inclusive, para a manutenção de</p><p>estigmas que enfatizam práticas de exclusão e segregação social.</p><p>No entanto, queridos(as) alunos(as), como formadora ética e</p><p>apoiadora da construção acadêmica da profissão que escolheram,</p><p>preciso lhes contar que todas essas percepções e sentimentos que nos</p><p>permeiam foram historicamente construídos. Sim! E construídos</p><p>socialmente!</p><p>Mas por que é importante trazer isso à luz? Exatamente para destacar</p><p>a importância da neutralidade moral, das reflexões e das críticas</p><p>quando esses sentimentos nos tomarem durante a atuação na</p><p>infância. Para nos lembrar do lugar social, da construção de</p><p>pertencimento, da inclusão e do direito ao acesso à educação, à</p><p>saúde, ao afeto cuidado e à cidadania. Assim garantimos tudo que</p><p>podemos ofertar enquanto membros da mesma sociedade e</p><p>proporcionamos as melhores oportunidades de apoio ao</p><p>desenvolvimento que as crianças são dignas de acessar, por direitos</p><p>igualmente historicamente construídos.</p><p>A partir do conhecimento histórico e social, podemos evitar que</p><p>nossas práticas sejam permeadas de moralismos e julgamentos</p><p>enraizados apenas no que conhecemos dos tempos atuais.</p><p>Reflita</p><p>Antes de iniciar esta Unidade, tome alguns minutos para refletir: o</p><p>que você pensa sobre o desenvolvimento infantil? Anote tudo no seu</p><p>caderno; retomaremos este ponto mais à frente!</p><p>A Construção Sociológica da Infância</p><p>Os estudos de J.P. Ariès (1973) nomeiam o “sentimento de infância” como um</p><p>construto social e que ocorre na modernidade. Apesar do estranhamento que esse</p><p>termo possa nos causar, é necessário ampliar os horizontes do quanto ele nos importa</p><p>e compreender a complexidade social que o embasa.</p><p>Esse autor estudou especialmente a infância na França, e foi pioneiro no campo da</p><p>sociologia da infância ao publicar a obra: A História Social da Criança e da Família.</p><p>A ideia central de Ariès (1973) rondou a construção sócio-histórica do sentimento de</p><p>infância. Para tal, reconstruiu historicamente o papel das crianças nas comunidades</p><p>estudadas e nos contou, por meio de seus estudos, como as crianças eram tratadas.</p><p>As crianças eram vistas como miniadultos. Participavam de tarefas de trabalho</p><p>domésticas ou rurais, como também assistiam ou interagiam em práticas sexuais com</p><p>a mesma naturalidade dos adultos. É importante lembrar que Portugal, o país que nos</p><p>colonizou, sofreu forte influência da cultura francesa, e que os modos de vida lá</p><p>adotados permeavam a sociedade portuguesa da época com a mesma naturalidade.</p><p>Os primeiros dados sobre a história da infância no Brasil se relacionam ao período da</p><p>colonização e carregam a marca de violências, abusos, negligência, exploração e</p><p>moralismo. De um lado, as crianças portuguesas que viajavam em embarcações para o</p><p>“Novo Mundo” precisavam sobreviver aos riscos de adoecimento, fome, saques,</p><p>exploração física e sexual inerentes à viagem. Vítimas de maus tratos, muitas</p><p>sucumbiam e morriam. De outro lado, as que aqui viviam com as comunidades</p><p>indígenas foram evangelizadas com o propósito de serem “salvas” de sua cultura pagã</p><p>e de seus hábitos “primitivos” por meio da educação cristã, que tornaria as “crianças</p><p>da terra” adultos dóceis e alinhados com os preceitos da coroa (MELO, 2020).</p><p>A historiadora Mary Del Priore (2010) complementa que os meninos que viviam nas</p><p>ruas próximas ao porto foram trazidos ao Brasil para aprender a língua dos nativos e</p><p>desempenhar o papel de tradutores e construtores da comunicação com as crianças</p><p>indígenas evangelizadas. Enquanto as meninas filhas de famílias pobres foram doadas</p><p>ou vendidas para servirem aos portugueses que vieram construir a vida em terras</p><p>tupiniquins.</p><p>Ainda segundo Melo (2020), na busca da Igreja por evangelizar e “educar” os</p><p>indígenas, encontram-se os primeiros indícios da percepção da criança como uma</p><p>“folha em branco” na qual os adultos depositam o conhecimento; uma percepção</p><p>influenciada pela mudança europeia de concepção da infância e da educação que se</p><p>iniciou em torno do século XV e atingiu seu auge no século XVII.</p><p>Ariès e seus contemporâneos fazem menção às mudanças na expectativa de</p><p>estruturação social na forma da família, mais próxima de como conhecemos hoje, e no</p><p>papel atribuído socialmente à mulher, que apresenta inegavelmente uma relação</p><p>intrínseca com os cuidados e as atribuições de afeto à criança. Inicia-se aqui também a</p><p>construção social do bebê como um pequeno ser dependente de um outro que se ocupe</p><p>de sua sobrevivência; e que, se “vingasse” e viesse a tornar-se uma criança, os</p><p>desafios de continuidade ou sobrevivência da família lhe seriam apresentados.</p><p>Del Priore (2010) nos indica que a noção de “amor materno” também foi socialmente</p><p>construída para servir às necessidades de mudanças sociais no período de ascensão da</p><p>burguesia. Até então, as normas sociais da criação dos filhos consistiam na entrega do</p><p>recém-nascido para a ama-de-leite, que o nutria e cuidava enquanto a mãe retomava o</p><p>papel social que lhe cabia até então, acompanhando o marido em eventos sociais e lhe</p><p>servindo sexualmente. O bebê, se vingasse e se tornasse uma criança, era educado em</p><p>casa por um preceptor e, no início da adolescência, se mudava para a casa de um</p><p>professor que lhe ensinava um ofício nobre. Essas três passagens de vida associadas a</p><p>diferentes cuidadores ficaram conhecidas na literatura como as três fases do</p><p>abandono.</p><p>No entanto, a influência da criadagem fez as crianças criadas por eles se tornarem</p><p>adultos que lutavam por mudanças sociais. A partir de então, a figura da ama-de-leite</p><p>foi desestimulada pela sociedade médica da época, e a construção da mãe que</p><p>amamenta, cria e educa o filho, e que o ama acima de tudo passou a ser estimulada</p><p>pelos representantes do poder. Nascia aqui a construção social do instinto materno e o</p><p>sonho de ser mãe e “do lar” (DEL PRIORE, 2010).</p><p>Agregou-se a ideia da família nuclear, centrada na figura de mãe, pai e filhos como</p><p>conhecemos hoje. A valorização da “sagrada família católica” foi destacada para</p><p>construir as famílias nucleares que se configuram até os dias atuais. A partir do</p><p>batismo, a criança era livrada do pecado original que a gerou, e na primeira comunhão,</p><p>alinhava os seus ideais de vida e moral com os da Igreja e do Estado. O termo</p><p>“esperança” permeava as infâncias da época, havia falta de saneamento básico e</p><p>poucas condições de saúde. Os hábitos culturais de cuidados das crianças eram ainda</p><p>pautados em tradições culturais que mais ofereciam riscos de contaminações do que as</p><p>protegiam, e as vivências das pestes assolavam e dizimavam a população infantil (DEL</p><p>PRIORE, 2010).</p><p>As diferentes classes sociais definiam as infâncias. As crianças que nasciam nas</p><p>famílias de elite tinham uma agenda de atividades cotidianas mais próxima da</p><p>realidade atual. Essas crianças tinham acesso a práticas educativas em torno de</p><p>atividades acadêmicas e artísticas, e aproximavam-se da figura de “reizinhos dos</p><p>lares”. Já os filhos de escravos ou agricultores, “tão logo se colocassem de pé”</p><p>acompanhavam os pais nas tarefas de trabalho. Alguns senhores de terras</p><p>contratavam “escolas de ofícios” que serviam para a produção de mão de obra</p><p>específica e necessária, tais como costureiras, cabeleireiros, ferreiros, criadores de</p><p>animais, cozinheiros, sapateiros, entre muitos outros (DEL PRIORE, 2010).</p><p>Ainda no século XIX, tem início a importação de artigos de luxo, como as roupas</p><p>infantis adornadas, que começam a aparecer nas vitrines de lojas dedicadas à</p><p>burguesia e demonstram o início dos artigos de luxo dedicados para crianças. Os</p><p>mascates, comerciantes viajantes da época, começam a levar para o interior essa noção</p><p>de moda.</p><p>Lojas de brinquedos importados começam a se instalar e substituem os brinquedos</p><p>“naturais” ou feitos com materiais do cotidiano. Dessa forma a moda da criança loura</p><p>foi inserida na nossa sociedade, desvalorizando as características físicas e culturais da</p><p>população brasileira e disseminando a ideia de que a “beleza estrangeira” prevalecia.</p><p>No decorrer das décadas do último século, as práticas que existiam nas áreas rurais</p><p>tomaram as áreas urbanas no período da industrialização. As fábricas têxteis eram</p><p>permeadas de trabalhadores imigrantes, que viviam análogos a escravos, e a infância</p><p>das crianças pobres passou a ser roubada pelo capitalismo; seja nascendo e crescendo</p><p>junto às suas mães que trabalhavam nas fábricas ou roças, ou pertencendo ao lar para</p><p>cuidar dos irmãos menores e dos afazeres domésticos, de tarefas das ruas e dos</p><p>comércios existentes.</p><p>A infância foi um período desvalorizado até recentemente. Nos anos 80 as crianças</p><p>pobres ainda eram empregadas como mão de obra, seja nos lares, nas fábricas ou nos</p><p>comércios.</p><p>Sarmento e Gouvea (2008) complementam que apenas no último quarto do século XX</p><p>a infância passou a ser considerada como categoria social, com maior destaque a partir</p><p>da década de 1990, tendo sido invisível no discurso social até antes disso.</p><p>A partir da promulgação da Constituição Federal, em 1988, declara-se o acesso</p><p>universal à saúde, incluindo as crianças. O Estatuto da Criança e do Adolescente foi</p><p>promulgado em 13 de julho de 1990. Durante a Assembleia Geral da ONU, em novembro</p><p>de 1989, foi criada a Convenção Sobre os Direitos da Criança, que foi ratificada no</p><p>Brasil em 24 de setembro de 1990.</p><p>Foi assegurado à criança o direito à proteção, à alimentação, ao cuidado, de acesso à</p><p>saúde, à educação, e a tudo mais que pudesse garantir a dignidade humana e que não</p><p>influenciasse negativamente o seu desenvolvimento.</p><p>A infância começou a ser vislumbrada como um grupo social para o qual se produzia</p><p>itens de consumo em larga escala, como brinquedos e roupas. Além disso, o acesso à</p><p>educação abaixo do período de escolarização foi consolidado para responder à</p><p>necessidade crescente de cuidados de bebês e crianças pequenas em virtude da entrada</p><p>cada vez maior da mulher no mercado de trabalho.</p><p>Qvortup (1991, 1995) destaca que o aumento de produtos destinados à infância, o</p><p>aumento dos trabalhadores que atuam nos anos iniciais da vida e a diminuição do</p><p>número de crianças nas sociedades ao longo do tempo trouxeram uma</p><p>supervalorização desse período da vida, bem como o lugar de ator social e de valor para</p><p>as crianças.</p><p>“Nunca, como atualmente, as crianças foram objeto de tantos cuidados e atenções e</p><p>nunca como hoje a infância se apresentou como a geração onde se acumulam</p><p>exponencialmente os indicadores de exclusão e sofrimento” (SARMENTO; GOUVEA,</p><p>2008, p. 19).</p><p>Atualmente os fatores que permeiam a infância e podem ser causadores de diferenças</p><p>sociais, de cuidado, de assistência e de proteção são diferenças inerentes a: classes</p><p>sociais, gênero, nível de instrução dos pais, zona urbana ou rural, universo linguístico</p><p>e religioso.</p><p>Domínios do Desenvolvimento Infantil,</p><p>Aprendizagens e Saúde</p><p>Para dar sequência aos nossos estudos sobre o desenvolvimento infantil, abordaremos</p><p>brevemente os períodos iniciais da infância. Na módulo 2, os domínios e áreas</p><p>desenvolvimento serão detalhados e aprofundados quanto à neurofisiologia e aos</p><p>componentes do desempenho ocupacional. Por enquanto, iniciaremos com o olhar</p><p>mais abrangente sobre o bebê.</p><p>“Nesse sentido, pensar os bebês em uma perspectiva sociológica,</p><p>nesse momento, nos parece desejável porque nossas relações</p><p>cotidianas com eles nos mostram o quão rica pode ser a experiência de</p><p>As crianças, desde muito cedo, agem no mundo, reconfiguram os espaços em que</p><p>vivem e estabelecem relações por intermédio de seus modos específicos de ser, estar e</p><p>se relacionar. Para compreender como demonstram suas múltiplas expressões de</p><p>pertencimento social, é preciso viabilizar a participação social dos bebês. Para</p><p>conquistar visibilidade e se tornar cada vez mais potente, é preciso acolher e significar</p><p>as ações realizadas pelos bebês nos ambientes que convivem: escola e domicílio.</p><p>Ambientes estes que precisam também considerar o bebê como sujeito social, com</p><p>direito à participação ativa em sua própria educação (VARGAS; BARBOSA, 2016).</p><p>O bebê está a construir seu mundo, um mundo que já estava aí, mas que ele o encontra</p><p>e o recria a cada instante mediante uma enorme tarefa de aprendizado, que é também</p><p>uma operação criadora (LIMA, 2012).</p><p>- TEBET, 2019, p. 23</p><p>- VARGAS; BARBOSA, 2016, p. 1</p><p>um bebê com seu corpo, com o espaço, com o tempo, com as pessoas</p><p>com as quais convivem e com a sociedade de modo geral.”</p><p>“Os bebês, em seu estatuto social de recém-chegados ao mundo, ainda</p><p>são vistos como seres incompletos e dependentes, que nada ou pouco</p><p>sabem. Por serem considerados frágeis e indefesos considera-se que</p><p>precisam ser socializados e aculturados pelos adultos, aqueles que já</p><p>sabem e conhecem tudo. Esta visão de uma socialização</p><p>exclusivamente vertical é a base de todo o projeto escolar.”</p><p>Segundo Pelizon (2014), desde recém-nascida, a criança é um aprendiz voraz, com</p><p>cem bilhões de neurônios que estão prontos para se conectar por meio de sinapses.</p><p>Aos quatro anos, o cérebro poderá atingir a metade de seu potencial de quando adulto.</p><p>Para favorecer o desenvolvimento, é importante que os cuidadores ofereçam à criança</p><p>ambientes adequados, com estímulos globais, relacionais e afetivos, além de</p><p>oportunidades para que ela se desenvolva com autonomia.</p><p>Maranhão (2010) alerta que é preciso ressignificar as concepções de saúde que foram</p><p>construídas ao longo do tempo por intermédio dos meios de comunicação e</p><p>influências culturais. Devemos ainda nos conscientizar de que as escolhas individuais</p><p>e coletivas ao planejar, organizar e operar a rotina cotidiana relativa às atitudes e aos</p><p>procedimentos dos cuidados, às brincadeiras e às atividades, podem influenciar as</p><p>práticas culturais de cuidado infantil, da saúde individual e coletiva das crianças e da</p><p>comunidade em que estão inseridas.</p><p>Compreendendo a saúde e a doença como um processo dinâmico e determinado pelos</p><p>modos de vida socialmente construídos, e em parte por nossa responsabilidade como</p><p>profissionais e cidadãos (MARANHÃO, 2010), deseja-se construir a ideia de saúde a</p><p>partir do favorecimento de práticas de apoio ao desenvolvimento infantil.</p><p>A saúde é produzida socialmente e determinada por fatores biológicos, sociais,</p><p>ambientais, econômicos e culturais. É tida como componente central do</p><p>desenvolvimento humano. São inúmeras as discussões sobre como construir, manter</p><p>ou alcançar o que se define por saúde. Especificamente em relação à criança, os fatores</p><p>relacionados a ela são evidenciados no curso de seu desenvolvimento e acabam por</p><p>impactar e construir o que se nomeia como qualidade de vida. O desenvolvimento do</p><p>bebê é compreendido como um dos indicadores de saúde. Portanto, conhecê-lo de</p><p>forma mais detalhada e apoiá-lo configura-se, dessa forma, como uma estratégia de</p><p>promoção da saúde (FIGUEIRA et al., 2005).</p><p>Com relação aos consagrados marcos do desenvolvimento, determinantes</p><p>cronológicos do alcance de habilidades psicomotoras e relacionais, podemos</p><p>considerar a forma com que eles são apresentados no Manual de Vigilância do</p><p>Desenvolvimento da Organização Pan-americana de Saúde (FIGUEIRA et al., 2005).</p><p>Embora seja demarcada uma faixa de tempo para que o desenvolvimento aconteça, isso</p><p>é apresentado de forma flexível e mais relacionada à oferta de estímulos ambientais e</p><p>relacionais do que a uma perspectiva temporal estática.</p><p>Conforme essa linha de raciocínio, é por meio do desenvolvimento infantil que a</p><p>criança demonstra dificuldades que podem ser indicativas de algum agravo à saúde ou</p><p>possibilidades de deficiências; mas que nem sempre o serão, já que a oferta de</p><p>estímulos ambientais para apoiar o desenvolvimento infantil é considerada a primeira</p><p>estratégia de ação em saúde. Posteriormente, se as alterações do desenvolvimento</p><p>persistirem, faz-se necessário investigar fatores intrínsecos que impactam o curso do</p><p>desenvolvimento (FIGUEIRA et al., 2005).</p><p>A perspectiva sobre ambiente inclui os sujeitos (pais, demais familiares e lidadores,</p><p>educadores infantis e as crianças), materiais (mobiliários, brinquedos, objetos, entre</p><p>outros), trocas (relacionais, afetivas e papéis sociais), rotinas (organização diária</p><p>domiciliar e das atividades pedagógicas) e características ambientais (espaço físico,</p><p>segurança, cores, temperatura, ventilação etc.).</p><p>A Funcionalidade pelas Lentes da Ocupação</p><p>Reflita</p><p>Nesta altura dos estudos, os convido a refletir: como o conceito de</p><p>funcionalidade se constrói pela perspectiva da ocupação? Como uma</p><p>criança nos mostra que está se desenvolvendo de forma funcional?</p><p>Segundo a Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF, 2019), a funcionalidade</p><p>é um termo abrangente que envolve os seguintes componentes: participação,</p><p>atividades, funções do corpo, estruturas do corpo, condições de saúde, fatores</p><p>ambientais e pessoais.</p><p>Agora é importante refletirmos:</p><p>Como os bebês ou as crianças participam do</p><p>ambiente no qual vivem? Eles são sujeitos ativos</p><p>no próprio processo de desenvolvimento,</p><p>descoberta das habilidades e aprendizagens nos</p><p>diversos ambientes em que estão inseridos?</p><p>Quais são as atividades que lhes são possíveis? São brincadeiras</p><p>descobertas a partir do corpo? Dos objetos? De brinquedos</p><p>prontos? De interações?</p><p>As funções e estruturas corporais existem em sua plenitude? Há</p><p>alguma diferença decorrente de diversidades genéticas? Há</p><p>diferenças na forma com que se desenvolvem? Há alguma função</p><p>ou estrutura corporal que se desenvolve de forma diferente da</p><p>maioria das crianças ou bebês? A partir de qual perspectiva do</p><p>desenvolvimento tomaremos o típico e o atípico?</p><p>Quais são os fatores ambientais que podem ser facilitadores ou</p><p>dificultadores do desenvolvimento? O que podemos fazer para</p><p>apoiá-los? Podemos modificá-los para favorecer o</p><p>desenvolvimento infantil? Por onde começar?</p><p>Quais são os fatores pessoais? De quais atividades a criança gosta?</p><p>Quais poderiam apoiar o desenvolvimento infantil? E, a partir das</p><p>atividades em que se engaja, as quais apoiariam a sua participação</p><p>e a sua visibilidade como sujeito social pertencente a um grupo</p><p>(família, turma da escola ou berçário, por exemplo)? Quais são</p><p>Os (As) terapeutas ocupacionais se debruçam constantemente sobre esses</p><p>questionamentos, e, claro, se especializam em áreas com as quais se identificam, mas</p><p>sem nunca perder de vista as respostas aos questionamentos acima.</p><p>Equilibrar-se entre o Esperado e o Inesperado</p><p>O desenvolvimento infantil passou a ser amplamente estudado para além dos aspectos</p><p>biológicos (funcionamento celular) e de crescimento físico a partir da década de 1980.</p><p>Essa mudança ganhou ainda mais intensidade nos anos 90, quando as instituições</p><p>escolares se ampliaram para idades cada vez mais precoces e os profissionais da</p><p>educação se especializaram nas singularidades da criança em diferentes idades.</p><p>Alguns estudiosos organizaram os estudos sobre o desenvolvimento infantil a partir</p><p>de divisões dos anos da infância. A “primeiríssima infância” foi atribuída aos</p><p>primeiros mil dias de vida, para destacar as singularidades do bebê, tanto para a oferta</p><p>de estímulos, afeto, inserção na cultura e cuidados básicos, como higiene e</p><p>alimentação.</p><p>As pesquisas ao longo das últimas décadas se aprofundaram nos domínios do</p><p>desenvolvimento. Teóricos de diversos campos da saúde e da educação criaram teorias</p><p>sobre o desenvolvimento infantil que guiaram práticas educativas e terapêuticas,</p><p>pautadas, a princípio, no modelo biomédico e divididas em áreas, refletindo o</p><p>cartesianismo do século XX. Dentre esses teóricos se destacam:</p><p>Gesell e Ames (1947) e a Teoria da Maturação: para esses autores, a maturação do</p><p>sistema nervoso era o preditor do desenvolvimento infantil. Eles consideravam a</p><p>prontidão inata de toda criança para se desenvolver, que, espontaneamente e de forma</p><p>gradual numa sequência hierárquica prevista, construiria a complexidade das ações</p><p>motoras e cognitivas que possibilitariam a interação com o ambiente. As diferentes</p><p>importantes para sua cultura? Quais papéis desempenha e quais</p><p>pode vir a desempenhar (filho, irmão, brincante ou aluno)?</p><p>etapas do desenvolvimento são definidas pela genética da espécie humana e se dividem</p><p>em 24 etapas entre 4 semanas e 36 meses. Contemplam as seguintes habilidades:</p><p>Sigmund Freud, em 1920 (1996), e a Teoria do Desenvolvimento Psicossexual: esse</p><p>autor inaugurou a psicanálise e propôs que experiências da infância influenciariam a</p><p>construção da personalidade nos 5 primeiros anos, bem como o comportamento ao</p><p>longo da vida. Freud concentrou-se especialmente na relação da criança com os</p><p>genitores e com a satisfação e percepção de necessidades corporais e emocionais</p><p>básicas. O desenvolvimento infantil ocorreria por diferentes etapas relacionadas ao</p><p>prazer percebido em diferentes áreas do corpo, também conhecidas como zonas</p><p>erógenas. A fases são divididas em:</p><p>Comportamento adaptativo: organização e</p><p>adaptação sensório-motora, e cognição;</p><p>Comportamento motor grosso e fino: sustentação da cabeça,</p><p>sentar-se, engatinhar, andar e manipulação de objetos com as</p><p>mãos;</p><p>Comportamento de linguagem: expressiva ou receptiva;</p><p>Comportamento pessoal-social: relação com o meio-ambiente.</p><p>Fase oral: corresponde especialmente ao</p><p>primeiro ano de vida, no qual a boca é a área</p><p>corporal da satisfação de necessidades básicas,</p><p>como fome e aconchego, bem como o</p><p>meio de</p><p>explorar, conhecer e interagir com o mundo;</p><p>Fase anal: contempla dos 2 aos 4 anos. Relaciona-se com o</p><p>controle dos esfíncteres, e a zona erógena é o ânus. Ocorre a</p><p>amplificação das percepções corporais e o início da</p><p>As dificuldades do desenvolvimento nessa perspectiva ocorrem quando a criança não</p><p>consegue passar por todas as fases, vivenciando as experiências relacionadas e</p><p>fixando-se em uma dessas passagens.</p><p>Erikson (1972) e a Teoria do Desenvolvimento Psicossocial: esse autor foi discípulo de</p><p>Freud e defendeu a importância da interação social como aspecto principal para a</p><p>passagem de etapas ao longo do desenvolvimento. Assim como na teoria de Freud, a</p><p>fixação em uma das oito fases acarretaria dificuldades ao longo da vida. As fases</p><p>descritas por Erikson são:</p><p>independência para resolver ações simples, como a vontade de ir</p><p>ao banheiro ou de saciar a fome e a sede;</p><p>Fase fálica: entre 4 e 6 anos, a zona erógena é o órgão genital. O</p><p>interesse pelas diferenças corporais é o centro dessa fase;</p><p>Fase da latência: entre 6 e 11 anos. A energia que</p><p>guia o desenvolvimento da psique, conhecida</p><p>também como libido, desloca-se para as</p><p>atividades de interação e de aprendizado escolar;</p><p>Fase genital: a partir de 11 anos. O interesse recai sobre os</p><p>impulsos sexuais e a construção da identidade.</p><p>Confiança e desconfiança: dá-se entre 0 e 2 anos.</p><p>O desenvolvimento é nutrido pela interação com</p><p>os cuidadores;</p><p>Autonomia & vergonha e dúvida: ocorre entre 2 e 3 anos, sendo a</p><p>fase na qual se constroem a linguagem e o senso de autonomia. As</p><p>repreensões nesta idade geram tristezas, ansiedade e reflexões;</p><p>Os demais períodos do desenvolvimento correspondem a fases da idade adulta e</p><p>contemplam: intimidade e isolamento (entre 20 e 40 anos); generatividade &</p><p>estagnação (entre 40 e 60); integridade & desespero (dos 60 anos até o fim da vida).</p><p>Apesar dos nomes atribuídos às fases causarem estranhamento, no período em que a</p><p>teoria foi elaborada, elas refletiam conceitos morais da época.</p><p>Winnicot (1982), um pediatra e psicanalista, desenvolveu a Teoria das Relações</p><p>Objetais e Desenvolvimento Infantil. Elaborou o conceito de holding, no qual a relação</p><p>do cuidador principal (geralmente considerado a mãe) com o bebê é imersa em</p><p>sensibilidade para detectar e atender às necessidades fisiológicas e emocionais da</p><p>Iniciativa & culpa: entre os 4 e os 5 anos. A criança coloca em</p><p>prática as aprendizagens anteriores e testa o resultado da</p><p>iniciativa no ambiente. A partir dessas ações, ocorre a expansão</p><p>da criatividade e da interação social;</p><p>Diligência & inferioridade: entre 6 e 11 anos.</p><p>Nesse período a criança adquire maior controle</p><p>da criatividade para se ajustar às normas de</p><p>educação e interação. Esse período também é</p><p>marcado pelo aumento do senso de autocobrança,</p><p>o que pode construir uma importante perspectiva</p><p>de inferioridade quando o indivíduo percebe suas</p><p>ações como falhas na interação social e com o</p><p>ambiente;</p><p>Identidade & confusão da identidade: entre 12 e 18 anos. Abarca</p><p>os anos da adolescência. Nesse período o adolescente precisa</p><p>equilibrar os desafios entre se compreender como diferente e</p><p>tentar se ajustar a um grupo, às mudanças biológicas, hormonais</p><p>e de construção da identidade com a cobrança e expectativa dos</p><p>papéis sociais da idade adulta.</p><p>criança. Quando a “maternagem” era “suficientemente boa” para atender ao bebê, a</p><p>criança se desenvolveria saudável.</p><p>Skinner (ABIB, 1985) foi um ícone da construção da teoria comportamental e propôs</p><p>que o desenvolvimento se dá pela interação da criança com o ambiente, e que as</p><p>habilidades são geradas, amadurecidas e condicionadas pela resposta fornecida pelo</p><p>ambiente. Essa resposta condiciona naturalmente ou classicamente a evolução da</p><p>criança por meio das aprendizagens gradualmente mais complexas.</p><p>Piaget (1973) iniciou a teoria do desenvolvimento cognitivo, considerando que a</p><p>criança constrói o pensamento e a percepção do ambiente de forma distinta do adulto.</p><p>Ele compreendeu fases distintas da evolução da criança, nomeando-as da seguinte</p><p>forma:</p><p>Período sensório motor: entre 0 e 2 anos. Período</p><p>no qual a criança constrói o conhecimento do</p><p>ambiente a partir das respostas motoras e dos</p><p>estímulos sensoriais que vivencia;</p><p>Período pré-operacional: entre 2 e 6 anos. Dá-se pelo</p><p>amadurecimento da linguagem e da interação. Aqui a construção</p><p>do conhecimento se dá por experiências concretas no ambiente;</p><p>Período operacional concreto: entre 7 e 11 anos. Nesse período</p><p>ocorre o amadurecimento das habilidades cognitivas, que se</p><p>tornam cada vez mais complexas e abstratas;</p><p>Período operacional formal: entre 12 anos e a</p><p>idade adulta. Contempla a coexistência de</p><p>habilidades cognitivas complexas e conceitos</p><p>abstratos.</p><p>Bowlby (1989) considerou o desenvolvimento infantil a partir da Teoria do Apego, cuja</p><p>perspectiva social foca especialmente na vinculação entre o bebê e os cuidadores como</p><p>o motor propulsor do desenvolvimento. Nessa perspectiva, os primeiros</p><p>relacionamentos com os cuidados se dão para garantir a sobrevivência e o</p><p>atendimento de necessidades básicas de cuidado e proteção; esses relacionamentos</p><p>refletem a forma como o sujeito construirá suas relações na vida adulta.</p><p>Bandura (1986) construiu a teoria do aprendizado social, acreditando que a</p><p>aprendizagem humana se dá por meio da observação do ambiente, seguimento de</p><p>dicas verbais e da modelagem de comportamentos, que, por sua vez, geram novos</p><p>conhecimentos.</p><p>Vygotsky (1996) elaborou a Teoria Sociocultural, que considerava as experiências</p><p>práticas da criança imersa numa cultura e numa rede de relações como as responsáveis</p><p>pelo desenvolvimento de habilidades cognitivas e interacionais cada vez mais</p><p>complexas. O desenvolvimento infantil passaria pela zona de desenvolvimento</p><p>proximal, que representava a transição da extrema dependência de um lidador para a</p><p>realização independente, e esse processo progressivo ampliaria as demais habilidades,</p><p>assim como a compreensão do ambiente e de como agir sobre ele.</p><p>As diversas teorias investigam faces distintas do desenvolvimento infantil, com</p><p>profundidade num domínio sem excluir os demais. Dessa forma, encontramos dados</p><p>que se complementam ou se atualizam, sem ignorar que a genética, a maturação do</p><p>sistema nervoso central, a vinculação com os cuidadores, a interação social e a</p><p>exposição a estímulos e oportunidades para interagir apoiam e influenciam o</p><p>desenvolvimento.</p><p>Muitas das teorias citadas, como a sociocultural, por exemplo, não só estabeleceram</p><p>uma forma para compreender o desenvolvimento infantil, como também criaram</p><p>instrumentos para avaliar as habilidades desenvolvidas associadas às idades de</p><p>surgimento dessas habilidades, ferramentas que são amplamente utilizadas pelos</p><p>terapeutas ocupacionais.</p><p>Na contramão do desenvolvimento das teorias sobre o desenvolvimento infantil, o</p><p>desenvolvimento atípico de pessoas que hoje seriam consideradas sindrômicas, com</p><p>deficiências motoras, sensoriais ou intelectuais, ou com transtornos graves e</p><p>perceptíveis do desenvolvimento chamava a atenção de alguns grupos populacionais</p><p>desde os tempos da Idade Média.</p><p>Os relatos de morte intencional ou abandono de bebês que nasciam com más-</p><p>formações são encontrados em muitas culturas quando investigamos a construção</p><p>sócio-histórica das deficiências.</p><p>O cristianismo trouxe a noção de que as crianças que nasciam com deficiências eram</p><p>também “filhas de Deus”, portanto as práticas antigas de abandono à própria sorte ou</p><p>morte não poderiam, a partir da influência da Igreja, ser aplicadas sem configurar um</p><p>pecado capital. Ao mesmo tempo, ter uma pessoa com deficiência na família era</p><p>considerado uma penitência para os pecados dos quais deveriam se culpar e</p><p>envergonhar publicamente. Dessa forma, os destinos possíveis para a criança que</p><p>nascia com deficiência eram:</p><p>O confinamento domiciliar, a rejeição de filiação,</p><p>e a punição por ter nascido imperfeito, com</p><p>escravização</p><p>e maus-tratos;</p><p>A doação dos “corpos e sujeitos” para estudo da medicina, que via</p><p>nos corpos desviantes do padrão uma oportunidade para estudar a</p><p>anatomia, a neuroanatomia e as reações a experiências de</p><p>extremo risco à vida, tal qual faziam com animais e pessoas</p><p>acometidas por doenças diversas;</p><p>“Adoção” da Igreja para “cuidar” das pessoas com deficiência</p><p>desde crianças em abrigos e aproveitá-las em tarefas braçais</p><p>quando adultas. Tal responsabilização justificava a cobrança de</p><p>dízimos altíssimos, bem como a apropriação da herança dessas</p><p>crianças como uma contrapartida por cuidá-las e por livrar a</p><p>família da exposição de sua culpa e penitência por ter uma criança</p><p>com deficiência;</p><p>Para aqueles que nasciam fisicamente diferentes ou demonstravam os prejuízos</p><p>intelectuais ao longo dos primeiros anos de vida, nem mesmo a vivência social do</p><p>sentimento de infância foi realidade.</p><p>Ainda no século XX, foram comuns os registros físicos e fotográficos de internações</p><p>de crianças com deficiência intelectual e autismo em hospitais psiquiátricos, não só no</p><p>Brasil como em diversos países.</p><p>Foi apenas na década de 1990, em consonância com a promulgação da Carta de</p><p>Salamanca e com a consolidação de ações para a garantia de direitos das crianças, que</p><p>instituições como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) começaram</p><p>timidamente a surgir, adotando um viés assistencialista a princípio, mas mudando</p><p>gradualmente para fins terapêuticos.</p><p>Na década final do século XX e início do século XXI, os estudos e ensaios para atuação</p><p>no campo das divergências do desenvolvimento começaram a ganhar destaque. A</p><p>partir de teorias e estudos do desenvolvimento infantil, intervenções terapêuticas</p><p>focadas nos diferentes domínios do desenvolvimento começaram a ganhar forma para</p><p>trabalhadores do campo da Terapia Ocupacional, Psicologia, Fisioterapia e</p><p>Fonoaudiologia no âmbito clínico, e dos educadores infantis e pedagogos em âmbito</p><p>educacional.</p><p>A infância possível para as crianças com alterações do desenvolvimento é um</p><p>fenômeno social novo e inédito para a sociedade contemporânea, bem como a infância</p><p>tal qual a concebemos hoje. Esses fenômenos se configuraram e se fortaleceram</p><p>Tornar-se propriedade do rei. No período</p><p>colonial, era comum a doação de crianças e</p><p>pessoas com deficiência para o trabalho na corte,</p><p>seja para atividades braçais ou para</p><p>divertimento, na figura de bobo da corte.</p><p>socialmente nas últimas décadas, mas carecem ainda de garantias de direitos a</p><p>cuidado, saúde, habilitação, reabilitação, lazer, educação e cidadania.</p><p>A visibilidade atual conquistada para a infância trouxe, sem dúvida, inúmeros</p><p>benefícios para a vigilância do progresso e o fornecimento de estímulos diversos para</p><p>o desenvolvimento, bem como a atenção precoce para diversas condições que serão</p><p>aprofundadas nas próximas Unidades.</p><p>No entanto, os modos atuais de vida, com jornadas de trabalho muito longas para os</p><p>cuidadores, exposição intensiva a telas e atividades passivas, cada vez mais com</p><p>tecnologias e menos interação humana; além da vivência de períodos intensos e</p><p>longos de privação do contato social e interação em grupos que a pandemia da COVID</p><p>19 trouxe para os dias atuais, podem ocasionar desafios e impactos no</p><p>desenvolvimento infantil até então não estudados ou esperados.</p><p>As necessidades de apoio ao desenvolvimento precisam ser amplamente difundidas</p><p>para que ocorra a conscientização e a participação ativa de todos os atores sociais</p><p>envolvidos com a infância. Da mesma maneira, devem ser empregadas todas as</p><p>terapêuticas possíveis de apoio para as que apresentam alterações no curso esperado</p><p>da aquisição de habilidades motoras, cognitivas, sensoriais, emocionais, relacionais e</p><p>culturais.</p><p>A partir das sensibilizações geradas por esse aprofundamento na história do</p><p>desenvolvimento típico e atípico, assim como pelas principais teorias que podem</p><p>permear as futuras práticas clínicas no campo da Terapia Ocupacional, gostaria de</p><p>convidá-los a ler o texto abaixo e a refletir sobre como seria a vida de “O Menino” se</p><p>ele não se movesse? E se ele não compreendesse suas ações no mundo? Ou até mesmo</p><p>se ele não ouvisse a mãe o chamando? E se ele não se reconhecesse nas fotografias do</p><p>ambiente? E se fosse muito difícil integrar os estímulos do corpo e dos deslocamentos</p><p>no ambiente?</p><p>Enfim, os convido agora a desdobrar o pensamento em tudo que poderia ser diferente</p><p>para “O Menino” e sua família, e o que essas diferenças poderiam causar no curso do</p><p>desenvolvimento dele.</p><p>Saiba Mais</p><p>Menino a Bico de Pena</p><p>“Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se</p><p>deteriore, e só então ele estará ao meu alcance. Lá está ele, um ponto no infinito.</p><p>Ninguém conhecerá o hoje dele.</p><p>Nem ele próprio. Quanto a mim, olho, e é inútil: não consigo entender coisa</p><p>apenas atual, totalmente atual. O que conheço dele é a sua situação: o menino é</p><p>aquele em quem acabaram de nascer os primeiros dentes e é o mesmo que será</p><p>médico ou carpinteiro. Enquanto isso – lá está ele sentado no chão, de um real</p><p>que tenho de chamar de vegetativo para poder entender. Trinta mil desses</p><p>meninos sentados no chão, teriam eles a chance de construir um mundo outro,</p><p>um que levasse em conta a memória da atualidade absoluta a que um dia já</p><p>pertencemos? A união faria a força. Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo,</p><p>mas para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de</p><p>realmente iniciar.</p><p>Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois</p><p>até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema</p><p>atualidade em que ele vive.</p><p>Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim</p><p>fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é</p><p>- LISPECTOR, 1999, p. 240-241</p><p>esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o</p><p>seu auto sacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim continuará</p><p>progredindo até que, pouco a pouco – pela bondade necessária com que nos</p><p>salvamos – ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à</p><p>expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. Eu</p><p>não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para construir o</p><p>possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura.</p><p>Mas por enquanto ei-lo sentado no chão, imerso num vazio profundo.</p><p>Da cozinha a mãe se certifica: você está quietinho aí? Chamado ao trabalho, o</p><p>menino ergue-se com dificuldade. Cambaleia sobre as pernas, com a atenção</p><p>inteira para dentro: todo o seu equilíbrio é interno. Conseguido isso, agora a</p><p>inteira atenção para fora: ele observa o que o ato de se erguer provocou. Pois</p><p>levantar-se teve consequências e consequências: o chão move-se incerto, uma</p><p>cadeira o supera, a parede o delimita. E na parede tem o retrato de O Menino. É</p><p>difícil olhar para o retrato alto sem apoiar-se num móvel, isso ele ainda não</p><p>treinou. Mas eis que sua própria dificuldade lhe serve de apoio: o que o mantém de</p><p>pé é exatamente prender a atenção ao retrato alto, olhar para cima lhe serve de</p><p>guindaste. Mas ele comete um erro: pestaneja. Ter pestanejado desliga-o por uma</p><p>fração de segundo do retrato que o sustentava. O equilíbrio se desfaz – num único</p><p>gesto total, ele cai sentado. Da boca entreaberta pelo esforço de vida a baba clara</p><p>escorre e pinga no chão. Olha o pingo bem de perto, como a uma formiga. O braço</p><p>ergue-se, avança em árduo mecanismo de etapas. E de súbito, como para prender</p><p>um inefável, com inesperada violência ele achata a baba com a palma da mão.</p><p>Pestaneja, espera. Finalmente, passado o tempo necessário que se tem de esperar</p><p>pelas coisas, ele destampa cuidadosamente a mão e olha no assoalho o fruto da</p><p>experiência. O chão está vazio. Em nova brusca etapa, olha a mão: o pingo de baba</p><p>está, pois, colado na palma. Agora ele sabe disso também. Então, de olhos bem</p><p>abertos, lambe a baba</p><p>que pertence ao menino. Ele pensa bem alto: menino.”</p><p>Reflita</p><p>Após essa longa jornada pela infância, reflita e anote em seu caderno,</p><p>como você compreende o desenvolvimento infantil ao final desta</p><p>Unidade? Compare com as suas reflexões iniciais, e destaque para si</p><p>mesmo: quais foram as diferenças?</p><p>Trocando Ideias...</p><p>Por que as crianças são encaminhadas para a Terapia Ocupacional?</p><p>Nos tempos atuais, o(a) terapeuta ocupacional atua com crianças</p><p>com risco de ter o seu cotidiano e desenvolvimento interrompidos ou</p><p>afetados pela existência de alterações motoras, cognitivas,</p><p>sensoriais, emocionais, relacionais e sociais que as coloquem em</p><p>desvantagem de participação, seja em decorrência da existência de</p><p>diagnósticos no campo das deficiências e doenças ou de situações de</p><p>vida que as coloquem em risco de exclusão social.</p><p>Agora podemos nos perguntar: mas como saberemos se isso está</p><p>acontecendo com uma criança?</p><p>A resposta reside em conhecer bem as habilidades e domínios do</p><p>desenvolvimento infantil.</p><p>Quando uma criança não conseguir desenvolver habilidades que são</p><p>importantes para a exploração do ambiente, ou quando não atingir a</p><p>evolução das etapas do desenvolvimento, a realização dos seus papéis</p><p>ocupacionais, o desempenho do brincar, da interação com o meio e</p><p>das atividades de autocuidado condizentes com a sua idade e suas</p><p>possibilidades de performance, ela precisará de um(a) terapeuta</p><p>ocupacional. Esse(a) profissional vai auxiliá-la na transposição</p><p>dessas dificuldades para o desempenho autônomo e o mais</p><p>independente possível, sempre respeitando suas singularidades.</p><p>Nas próximas Unidades, aprofundaremos nosso diálogo sobre</p><p>avaliações, intervenções e sobre as especificidades de cada domínio</p><p>do desenvolvimento infantil.</p><p>Para expandir os conhecimentos dessa Unidade, acesse os</p><p>conteúdos complementares abaixo:</p><p>Sites</p><p>Convenção sobre os Direitos da Criança – UNICEF</p><p>Clique no botão para conferir o conteúdo.</p><p>ACESSE</p><p>Classificação Internacional de Funcionalidade,</p><p>Incapacidade e Saúde (CIF)</p><p>Clique no botão para conferir o conteúdo.</p><p>ACESSE</p><p>Página 2 de 3</p><p>📄 Material Complementar</p><p>https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca</p><p>https://pt.slideshare.net/portaldeboaspraticas/classificao-internacional-de-funcionalidade-incapacidade-e-sade-cif</p><p>Vídeos</p><p>A Construção Social da Infância</p><p>Estudos de Bebês: Linhas e Perspectivas</p><p>A Construção Social da InfânciaA Construção Social da Infância</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=UmKmcOZlgRo</p><p>Estudos de Bebês: Linhas e PerspectivasEstudos de Bebês: Linhas e Perspectivas</p><p>https://www.youtube.com/watch?v=Ri34ZjNVoCA</p><p>ABIB, J. A. D. Skinner, naturalismo e positivismo. 1985. p. 216. Tese (Doutorado em</p><p>Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1985.</p><p>ARIÈS, J. P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.</p><p>BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. In: BADINTER, E. Um</p><p>amor conquistado: o mito do amor materno. [S. l.]: Editora Nova Fronteira, 1985. p.</p><p>370.</p><p>BANDURA, A. Fundamentos sociais do pensamento e da ação: uma teoria social</p><p>cognitiva. Englewood Cli�s, NJ: Prentice-Hall, 1986.</p><p>BOWLBY, J. Uma base segura: aplicações clínicas da teoria do apego. Trad. S. M. Barros.</p><p>Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. (Trabalho original publicado em 1988).</p><p>DEL PRIORE, M. História das crianças no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2010.</p><p>DONZELOT, J. A polícia das famílias. In: DONZELOT, J. A polícia das famílias. Rio de</p><p>Janeiro: Editora Graal, 1980. p. 209.</p><p>ERIKSON, E. H. Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.</p><p>Página 3 de 3</p><p>📄 Referências</p><p>FIGUEIRA, A. C. et al. Manual para vigilância do desenvolvimento infantil no contexto</p><p>da AIDPI. Washington, D.C.: OPAS, 2005.</p><p>FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: FREUD, S. Além do Princípio de</p><p>Prazer, Psicologia de Grupo e outros Trabalhos (1920-1922). Rio de Janeiro: Imago,</p><p>1996. v. XVIII. p. 11-75. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de</p><p>Sigmund Freud).</p><p>GESELL, A.; AMATRUDA, C. S. Diagnóstico do desenvolvimento: avaliação do</p><p>desenvolvimento neuropsicológico no lactente e na criança pequena: o normal e o</p><p>patológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 2000.</p><p>GESELL, A.; AMES, L. B. The development of handiness. J. Genet. Psychol., [S. l.], v. 70, p.</p><p>155-175, 1947.</p><p>LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2004.</p><p>LEONTIEV, A. N. 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Estudos da infância: educação e práticas sociais. Rio</p><p>de Janeiro: Editora Vozes, 2008.</p><p>TEBET, G. Estudos de bebês e os diálogos com a sociologia. São Carlos: Editora Pedro e</p><p>João, 2019.</p><p>TOLSTIJ, A. El hombre y la edad. Moscou: Editorial Progresso, 1989.</p><p>VARGAS, G.; BARBOSA, M. C. Os bebês e a educação de crianças pequenas: início de</p><p>novas possibilidades. UAB, 2016. Disponível em:</p><p><http://ddd.uab.cat/pub/caplli/2016/158334/RZR62UVargas_Gardia_Barbosa_Maria</p><p>_Carmen_OK_.pdf>. Acesso em: 20/08/2023.</p><p>VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000.</p><p>VYGOTSKY, L. S. Obras Escogidas. Madrid: Visor, 1996. Tomo 4.</p><p>WINNICOTT, D. W. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.</p><p>WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes</p><p>Médicas, 1982.</p>