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<p>REABILITAÇÃO EDIÇÃO NO D a primeira revolução a pinelia- na de 1793, que substitui a metáfora "pos- ANA PITTA sessão" pela metáfora "doença" (passando pela ORGANIZADORA segunda, a das "comunidades terapêuticas" dos anos trinta, e pela terceira, a da "psiquiatria comunitária" ou "psicofarmacológica" do pós- guerra), talvez estejamos vivendo a quarta revo- lução da psiquiatria, quando a metáfora "doença" vai sendo substituída por outra igualmente com- plexa - Já não está em relevo a exuberância dos sinais e sintomas, equacionados pelas neurociências, mas os "modos de viver a vida" de pessoas doentes, sim, com limitações muitas vezes, que, entretanto, seguem com seus contratos afetivos e sociais a cumprir. Este livro fala da Reabilitação Psicossocial, à brasileira, como um novo tratado ético-estético que negocia uma clínica cuidadosa a inúmeras iniciativas de convívio, lazer, moradia e trabalho que favorecem trocas intersubjetivas e são tam- bém espaços de exercício de cidadania ativa. B 302 ISBN 85-271-0380-X EDITORA HUCITEC HUCITEC</p><p>ANA PITTA ORGANIZADORA Biblioteca Comunitária CARLOS REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL NO BRASIL SEGUNDA EDIÇÃO BC - UFSCar 10145621 EDITORA HUCITEC São Paulo, 2001</p><p>e Direitos autorais, 1996, de Ana Maria Fernandes Pitta. Direitos de publicação reservados pela Editora Hucitec Ltda., Rua Gil Eanes, 713 04601-042 Campo Belo, São Paulo, Brasil. Telefones: (55 (geral): 5543-5810 (ven- das): 5093-5938 (fac-simile). e-mail: home-page: ISBN 85-271-0380-X Foi feito o Depósito Legal Ouripedes Gallene PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO 007/03. 18,00 18896 DENF D esde sua primeira edição, essa traz como maior carac- teristica ser de autores que sonham porque fazem. Seguem sendo sujeitos da reforma da assistência psiquiátrica brasileira desempe- nhando novos papéis, fazendo algo mais para torná-la Irreversível no sentido do cuidar sim, excluir não, lemas desse 145621 Ano Internacional da Saúde Mental, e desafiadora, quando examina- mos quanto algo mais muitos terão de fazer para superar a de de chances de sobrevida digna que enfrentam os usuários das instituições manicomiais no país. Sempre lembrando que Reabilita- ção Psicossocial acontece melhor nas casas, nos mercados, nos tem- plos, no trabalho, nos serviços comunitários de saúde, que em qual- quer hospital que limite sua atenção nos seus muros. Hoje, milhares de brasileiros se encontram internados de modo aviltante em hospitais psiquiátricos e/ou cárceres; milhões de ou- tros brasileiros, não internados, experimentam isolamento afetivo e social nas ruas ou em suas casas por falta de condições de desempe- nhar protagonismos positivos, condizentes com seus limites e possi- bilidades, e, ainda, outros milhões de brasileiros privados da espe- rança, incluam-se aqui os trabalhadores da saúde, de um dia pode- rem viver numa sociedade mais justa e humana na qual a ética da so- lidariedade e da responsabilidade sobre o outro excluído, prevaleça. Nunca uma ação imediata, cotidiana, miúda que vá dando sentido 5</p><p>6 DA SEGUNDA EDIÇÃO a projetos de vida, liberdade, autonomia, alegria, felicidade, amor, se faz tão Nos pequenos gestos, em sutis delicadezas, aproveitando a Lei, recém-aprovada, que modifica as regras para tratamento CO no país, as portarias ministeriais, as resoluções de secretarias de saúde de estados e que instituem residências terapêuti- cas pequenas, comunitárias, decentes; supervisionadas por serviços SUMÁRIO comunitários potentes, comprometidos com as necessidades das pessoas em seu entorno, criativos, resolutivos, retaguarda confiável para equipes de saúde da família e agentes comunitários de saúde nas tarefas de bem cuidar e não excluir. PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO 5 Sendo a Reabilitação Psicossocial um conjunto de práticas inter- setoriais de saúde, previdência, moradia, trabalho, escola, lazer, cul- APRESENTAÇÃO 9 tura, e outros, muito há que fazer. Entretanto é estimulante saber que, desde sua última edição, esse livro já dispõe de inúmeros auto- PERSPECTIVAS DA REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL 11 res anônimos e sem obra escrita, que estão fazendo, nos seus luga- res, algo mais em diferentes cantos do país, se juntando a Benedetto 1. Reabilitação Psicossocial: Uma Estratégia para Saraceno, agora dirigindo o Departamento de Saúde Mental da Or- a Passagem do 13 ganização Mundial de Saúde, em Genebra, e todos os autores expli- Benedetto Saraceno citos dessa coletânea, nossos editores, para semear ações reabilita- 2. o que é Reabilitação Psicossocial no Brasil, hoje? 19 doras, povoando todo o com práticas decentes. Ana Maria Fernandes Pitta Em algum lugar, David Capistrano da Costa Filho, fazendo algo 3. Por um Programa Brasileiro de Apoio à Desospitalização 27 mais para atrelar saúde mental à saúde da família, dando aos brasilei- Domingos Sávio Nascimento Alves ros a chance de ter saúde como um direito inalienável, deve estar dando seu nesse ano que é também do voluntaria- II. REPENSANDO ESTRATÉGIAS REABILITADORAS 31 do, ou seja, de mulheres e homens com vontade de produzir bons acontecimentos! 1. Reabilitação Como Processo - o Centro de Atenção Psicossocial 33 Ana Pitta, Jairo Idel Goldberg 2. A Reabilitação Psicossocial em Campinas 48 2001, ano mundial da saúde mental Willians Valentini Cenise Monte Vicente 3. Contratualidade e Reabilitação Psicossocial 55 Roberto Tykanori 4. Um Outro Modo de Olhar 60 João Ferreira da Silva Filho 5. Vazio Vivo 63 Lula Vanderlei</p><p>8 III. DE REABILITAÇÃO NO BRASIL 73 1. No Meio do Caminho Tinha uma Pedra 75 Geraldo 2. De Volta para Casa 80 Gina Ferreira PREFÁCIO DA EDIÇÃO 3. o Instituto de Saúde Mental do Distrito Federal 89 Augusto de Farias Costa Marisa Pacini Costa Jaqueline M. Fontes Sampaio Reabilitação Psicossocial implica numa ética de solidariedade que 4. Consórcio Intermunicipal de Saúde da Micro-Região facilite aos sujeitos com limitações para os afazeres cotidianos, de- de São Lourenço 96 corrente de transtornos mentais severos e persistentes, o aumento José Edmo Coli Dias da contratualidade afetiva, social e econômica que viabilize o melhor 5. Reabilitação Psicossocial e a Reforma Psiquiátrica nível possível de autonomia para a vida na comunidade. em Juiz de Fora 104 As estratégias para implementá-la são múltiplas e adquirem, em Antonio Jorge de Souza Marques todo o mundo, a marca de pessoas e/ou movimentos sociais que as 6. Experiência de Pernambuco na área de Reabilitação contextualizam. Não seria diferente no Brasil, país que se notabiliza Psicossocial 113 pela diversidade quando não desigualdade de solo, de clima, de cul- Couto e outros turas, de riquezas, de 7. Um Trabalho na CIASPA no Pará 120 Esta testemunha a um só tempo duas circunstâncias: os Benedito Paulo Bezerra trabalhos desenvolvidos no I Encontro de Reabilitação Psicossocial, Mario José da Rocha Machado realizado em junho de 1995 no Teatro da Faculdade de Medicina da 8. A Experiência do Centro de Atenção Psicossocial Universidade de São Paulo, iniciativa do Brasileiro da World e o Movimento Brasileiro de Reforma 127 Association for Psychosocial Rehabilitation, e também, como pes- José Jackson Sampaio soas, grupos e/ou instituições se aproximam ou afastam dos para- Antonio Weimar Gomes dos Santos digmas da Reabilitação Psicossocial nesse final de Colaboraram para a edição desses textos, além dos autores, Paula IV. REABILITANDO CONCEITOS E CLÍNICA 135 Galeano, Sandra Fischetti Barrição, Barros, Andreia Nascimen- to, de Souza, Gabriel Ribeiro e Marisa Cambraia. 1. A Clínica e a Reabilitação Psicossocial 137 A Associação Mundial de Reabilitação Psicossocial, a Organiza- Benilton Bezerra ção Panamericana de Saúde, o Ministério da Saúde, a Secretaria do 2. Terapia Ocupacional e Reabilitação Psicossocial: Estado de Saúde, a Prefeitura da Cidade de Santos, o Departamento Uma Relação 143 de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, o Centro Maria Benetton Colaborador da OMS da Escola de Enfermagem da USP, e a Asso- 3. Reabilitação Psicossocial: Uma Prática à Espera de Teoria ciação Franco Basaglia, viabilizaram o encontro de pessoas, expe- 150 Benedetto Saraceno idéias cujo debate se pereniza nessa publicação, visando 4 Em Busca de uma Identidade para a Reabilitação delinear o que vem a ser Reabilitação Psicossocial no Brasil, hoje. Psicossocial 155 José Manoel Bertolote Ana Pitta 9</p><p>PARTE I PERSPECTIVAS DA REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL</p><p>1 REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL: UMA ESTRATEGIA PARA A PASSAGEM DO BENEDETTO P enso efetivamente que para lançar novamente na instituição o problema da reabilitação é necessário, antes de tudo, um concerto dos distintos protagonistas da sociedade e da comunidade de profissionais Parece que a mesa aqui formada, bem como o público que está presente ao I ENCONTRO BRASILEIRO DE REABILITA- ÇÃO tem que garantir a rede de heterogeneidade do concerto, necessária à discussão acerca do Porque a reabi- litação é apenas uma técnica, entre Se a tarefa fosse discutir uma técnica entre várias, não seria necessária a presença de um representante da OMS, nem um representante do Ministério da precisariamos somente de profissionais discutindo inova- ções técnicas, mercado de trabalho, tratamento, etc. Não é este o A reabilitação é considerada, antes de tudo e neste momento, em todo mundo, uma necessidade ética, é uma exigência E. portanto, deve pertencer a um grupo de profissio- nais que tem como prioridade a abordagem ética do problema da Presidente da World Association for Psychosocial Rehabilitation is</p><p>14 BENEDETTO SARACENO REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL 15 saúde mental. Todos têm o direito e o dever de estarem envolvidos menor. Alguns mais contratualidade com seus maridos, outros na discussão sobre o que é reabilitação, o que é reabilitar? Não pode têm Alguns filhos têm mais contratualidade com seus pais, haver um psiquiatra a dizer: "Eu não me interesso por reabilitação, outros têm menos contratualidade com seus Em resumo, num porque me interesso por Eu não me interesso por cenário de contratualidade, todos têm mais ou menos um determi- reabilitação porque me interesso por psicoterapia". Não tem senti- nado de habilidade. Porém, numa cidade como São Paulo, do, isso não é uma tecnologia, isso é uma abordagem, uma estraté- demora-se de 40 a 50 minutos para que possamos chegar ao trabalho gia que implica muito que simplesmente passar um usuário, e, imprescindivelmente, temos que sair de casa, deste espaço inti- um paciente, de um estado de a um estado de "habi- mo, com um maravilhoso café com sua mulher e seus Temos lidade", de um estado de incapacidade a um estado de capacidade. que sair de casa, pegar o automóvel e, para onde vamos? Para o Se fora somente isso, efetivamente, não seria necessário tantos trabalho. Vestimos um uniforme para irmos ao trabalho, e depois momentos de reflexão ao redor da reabilitação, considerando-a não outro uniforme para outra Vários cenário como uma estratégia técnica, e sim como uma estratégia global. Isso da produção da sociedade, tem o reconhecimento de um produto de tem uma primeira muito importante. Implica numa valor social, ou seja, felizes ou não, todos querem um salário, e com mudança total de toda a dos serviços de saúde ou sem reconhecimento, mudam de cenário e vão ao trabalho. A Então, essa politica geral de serviços de saúde mental, são os pro- possibilidade de mudança está sempre presente, isto é, podemos gramas, através dos quais tais se aplicam, se realizam, e são mudar de trabalho, porém, se nos oferecem outro trabalho, e res- estas que tem que ser Por isso, reabilitação engloba a pondemos: "Não obrigado, prefiro ganhar menos, pois aqui sinto todos nós profissionais e a todos os atores do processo de saúde- que minha capacidade profissional de produzir um valor social é doença, ou seja, todos os usuários, todas as famílias dos usuários e temos ai, mais ou menos, uma medida da nossa capa- finalmente a comunidade inteira. Agora, se temos que gerar o con- cidade contratual. Isto é, material de produção de valor social, uns teúdo da palavra reabilitação, corremos o risco de sermos portado- tem mais, outros menos. res de uma técnica específica: "sou terapeuta ocupacional, sou capaz cenário a que me refiro, não termina sempre em casa, onde de fazer carpintaria com psicótico; sou terapeuta ocupacional e sou colocamos o pijama e tomamos café, o cenário é algo mais complexo capaz de fazer teatro com sou e faço grupos de de se definir, pois é um espaço de troca, espaço de tratamento, que psicoterapia com pacientes". pode, por exemplo, ser o supermercado, onde há mercadorias a E neste ponto que faremos uma primeira Os profissio- serem compradas e consumidas, espaço social onde temos as rela- nais, mais ou menos, não são incapacitados, ou "desabilitados", tem ções, e estas podem também apresentar um nivel contratual alto ou habilidades e Então, podemos também, que eles Há pessoas onde a vivência na rede social é mais limitada às não são capacitados completamente. Evidentemente que esta ma- suas necessidades materiais, outras que por serem pobres têm nhã eles acordaram em suas casas e, dentro de seu espaço privado, menos acesso à vida material e portanto aumentam seus espaços de tiveram um poder de negociação. Nos seus banheiros, nas suas troca social, etc. De forma esquemática, todos nós atuamos em três cozinhas prepararam seu café e conversaram com seus familiares, cenários: cenário habitat, cenário mercado e o cenário de trabalho. com seu marido, com sua mulher ou filhos, neste espaço extrema- E dentro destes cenários que temos o desenrolar das cenas, das mente seus lares. Todos têm um determinado nivel contratu- histórias, dos efeitos de todos os elementos: dinheiro, afetos, pode- al. Claro que alguns têm uma casa maior, e outros têm uma casa res, etc. Cada um com seu poder de aquisição neste mundo onde, às vezes, somos mais hábeis ou menos hábeis, mais Desabilidade Tradução do termo de origem inglesa usado em psi- habilitados ou menos E há, também, a "desabilidade" quiatria para caracterizar a perda de possibilidades de sobrevida decorrentes da por falta de poder contratual. E é ai que precisamos ser reabilitados, doença ou da iatrogenia dos porém, não todos. Este é o modelo de referência da reabilitação.</p><p>16 BENEDETTO SARACENO REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL 17 Muitos pacientes um nível de contratualidade no seu espaço ente na comunidade, em suma, quais as variáveis que realmente habitacional que tende a zero, ou porque não têm casa e isso é um influem sobre o efeito da melhora ou piora dos pacientes? Sabemos marco, ou porque casa e sua casa é um marco, ou porque não de que não são as técnicas de reabilitação que operam este rede social, ou porque não sabem, não podem, ou porque têm efeito, que dão melhores Não importa se estamos em- uma capacidade de produção social muito baixa, muito limitada, e pregando a técnica de Liberman, ou a técnica de Farkas, não precisa- então perdem no nível da contratualidade. Essa é a grande troca mos nem Creio que estamos aqui lidando com outros afetiva e material do ser humano; a habilidade do em elementos. As variáveis que determinam os resultados são as que se efetuar suas trocas. distribuem em dois grandes extremos: um micro e um macro. o processo de reabilitação seria, então, um processo de recons- micro está no nível da afetividade, da continuidade, é o real vínculo trução, um exercício pleno da cidadania, e, também, de plena contra- paciente-profissional, ou seja, o gasto de tempo, energia, afetividade, tualidade nos três grandes cenários: habitat, rede social e trabalho etc. que se tem nesta relação. Por outro lado há o macro, isto é, a com valor social. Pense nisso na hora de atender seus pacientes que maneira como o serviço está organizado, se está aberto 24h ou 12h, fazem parte do programa de reabilitação. Porque um esquizofrênico se está aberto à comunidade, se ele tem a aprovação de seus usuá- teria que, além da desgraça de ser ter a desgraça de rios, se satisfaz minimamente às pessoas que atende e, também, aos ser ator, tocador de piano, artista plástico... Não necessitamos de profissionais que nele se inserem, se ele se utiliza de recursos esquizofrênicos pintores, necessitamos de cidadãos, vindos da comunidade, ou somente recursos institucionais. Estas não necessitamos que façam cinzeiros, necessitamos que exerçam a grandes variáveis, que são variáveis de políticas de saúde mental, cidadania. o que não quer dizer que uma etapa para reconstrução da determinam se as técnicas, sejam elas quais forem, estão funcionan- contratualidade passe por teatro, por artes plásticas, por fazer cinzei- do ou Pois não é raro vermos serviços que se utilizam da técnica ros, passe por, não termine As vezes me dizem: "Dr. Saraceno, de Libermann e são um desastre e outros que usam a mesma técnica estamos desenvolvendo uma experiência muito linda onde fazemos e são uma maravilha. Ou seja, a variável não é a técnica de Liberman. artes Tudo bem, ou tudo Em si, a arte, o teatro não é A variável é esse marco da saúde pública, o marco da do nem bom, nem mal. E uma transição que passa por uma construção programa, da organização, do tipo de trabalho, de quem atua no até o grande final onde, efetivamente, haja uma maior contratualida- serviço. A reabilitação não é uma técnica que se pode aplicar inde- de entre os três grandes cenários: casa, trabalho e rede Tem pendentemente de um marco organizacional, estrutural, gente que há 25 anos está fazendo cinzeiros, fazendo comida. E que se dá em saúde mental numa determinada região, cidade, bairro teremos gente muito gorda e muito Os gordos fumado- ou Então, para vocês poderem me curar com seu programa de res, nos antigos hospitais psiquiátricos, perguntam-se para onde vai reabilitação, não é necessário que me cure com sua técnica de a reabilitação? problema é que a reabilitação não está finalizada, reabilitador, muito antes é preciso apreender um sentido para a não está como transição para a plena Essa é a primeira reabilitação. Discutir a reabilitação não é discutir teatro, não é discutir a Como primeiro passo em direção a esta nova proposta reabilita- rádio TAM TAM de Santos, esse é o de uma grande reabilita- dora torna-se necessária a modificação do marco do serviço em que ção. Através da rádio se constrói um pedaço que é apenas um se atua para que as técnicas, mais ou menos sofisticadas de controle fragmento do exercicio da Isso vale para mil déem um resultado significativo. Esse é um problema de mudança Tecnologia de reabilitação não vale para nada. Ai começa, ai termi- na organização dos serviços. na. Esta é a minha primeira A construção da plena cidadania, ponto fundamental da reabilita- A minha segunda reflexão é sobre a epidemiologia que podería- ção psicossocial, depende de variáveis que operam contra, ou ope- mos obter a partir dos efeitos e resultados da reabilitação, ou seja, a favor da contratualidade em casa, no trabalho e na rede social. como destruir a cronicidade, como aumentar a capacidade do paci- Tudo que está contra isso, está contra a reabilitação. Tudo que está a</p><p>18 BENEDETTO SARACENO favor disso, é uma variável que coopera para reabilitação. Onde estão essas variáveis? Elas estão na organização do pessoal dentro de um serviço, em quanto tempo se está exercendo sua prática, em qual é a sua área de atuação, na hospitalidade que se oferece, na liberdade que se dá para que se esconda uma vassoura, ou Estas são variáveis que determinam a reabilitação. Finalmente, deixo para um desafio como 1 pensar a palavra Em italiano, entretenimento signi- fica duas Significa entreter dançando, entreter entreter bebendo, com uma boa música, diversão. Na sua raiz QUE É REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL latina, entretenimento, também, significa manter E ai que NO BRASIL, HOJE? está o desafio da reabilitação. Entreter para manter dentro, pode ser manter dentro da hospitalização, dentro da cultura que no lugar de produzir saúde reproduz enfermidade. Então, a reabilita- ção é essa conspiração clara contra o entretenimento para manter ANA MARIA FERNANDES PITTA' dentro, para reproduzir a lógica que nunca termina, manter a lógica da enfermidade, tornando-nos cúmplices deste tipo de entreteni- mento. Devemos tomar outra direção. Podemos ser os que rompem com esse Pois, no momento em que se assume os A história é recente. Fala-se em Reabilitação Psicossocial há no grandes cenários: a casa, trabalho, a rede social, damo-nos conta de máximo quatro décadas, no entanto, muitos são os usos que têm que não há mais tempo para este entretenimento, que isto nada mais sido feitos em seu nome. Não se pode esgotar aqui os seus múltiplos é que um adestramento um adestramento mental. cabe-nos apenas destacar, a de pássaro, um pouco de Concluindo, em tempos internacionais de dispersão, de frustra- sua história, seus conceitos, suas práticas com o sentido de explorar- ção, de momento de perda de entusiasmo, de atraso, de retorno à mos o que dele nos seja útil num momento que tentamos levar a coisas antigas, como se a possibilidade de seguir, a sério uma reforma das instituições no Brasil. reabilitação passa por esse estímulo importante em manter um No seu sentido instrumental a Reabilitação Psicossocial repre- de expectativas, para que possamos crer que há uma senta um conjunto de meios (programas e serviços) que se de- esperança, manter a utopia... Esperança utópica como ponto de senvolvem para facilitar a vida de pessoas com problemas seve- chegada, ao qual nunca se chega, permitindo manter uma atenção ros e persistentes. Numa definição clássica da International Asso- ético-técnica ciation of Psychosocial Rehabilitation Services, de 1985, seria "o processo de facilitar ao individuo com limitações, a restauração, no melhor nível possível de autonomia do exercício de suas funções na comunidade... o processo enfatizaria as partes mais sadias e a totalidade de potenciais do mediante uma abordagem compreensiva e um suporte vocacional, social, recrea- Secretaria Nacional para o Brasil e atual Vice-Presidente para as da World Association for Psychosocial</p><p>20 ANA MARIA FERNANDES QUE REABILITAÇÃO SOCIAL NO HOJE? 21 cional, educacional, ajustados as demandas singulares de cada indi- seria mais caro e complexo e envolveria alternativas residenciais, e cada situação de modo personalizado". programas de suporte comunitário (trabalho, educação, transporte, Definição e pressupostos suscitam interpretações e, se lazer, etc.) Neste sentido para a OMS a Reabilitação Psicossocial observarmos as diferentes experiências que tem usado a sigla Rea- seria o conjunto de atividades capazes de maximizar oportunidades bilitação Psicossocial para se legitimarem, podemos perceber que, de recuperação de individuos e minimizar os efeitos desabilitantes tantas serão as versões quantas sejam as experiências concretas que da cronificação das doenças através do desenvolvimento de insumos foram ou estejam sendo desenvolvidas nos diferentes lugares no individuais, familiares e comunitários (WHO, 1987; De Girolamo, Planeta (um relatório de 1985 da mesma IAPRS já identificava 800 1989) experiências focadas em Reabilitação Psicossocial no mundo, Vai se constituindo assim como um arcabouço conceitual que Cnaan, 1985). anima pessoas, grupos e paises a desenvolverem programas, etica- Fundamentalmente tal denominação está associada a um sem mente responsáveis, no sentido de dar conta da totalidade das deman- número de iniciativas mais ou menos articuladas que buscam redu- das que os problemas mentais severos e persistentes requerem. zir o poder cronificador e desabilitante dos tradicionais tratamentos, Não se trata porém de técnicas para populações especifi- desenvolvendo-se dentro e fora dos hospitais e se utilizando de um Reabilitação Psicossocial é uma atitude estratégica, uma vontade sem número de técnicas (skill terapia vocacional, psicoe- politica, uma modalidade compreensiva, complexa e delicada de ducação, grupos operativos, ateliés terapêuticos, etc., etc.) cuidados para pessoas vulneráveis aos modos de sociabilidade habi- Para pensarmos Reabilitação Psicossocial é necessário que se tuais que necessitam cuidados igualmente complexos e defina quem será o sujeito das políticas e práticas reabilitadoras: o Por sua vez, também, Reabilitação Psicossocial embora partindo exército de cronificados moradores dos Hospitais Psiquiátricos? os de um movimento iniciado por individuos, tem sido integrada a milhares de "des-habilitados" que se vão produzindo às margens de politicas oficiais (Mercier & White, não podendo ser um uma sociedade desigual e intolerante para os seus homens e suas mero e voluntário tratado de idiossincrasias? que como alternativa de sobrevivência uma via Como referência para a organização de práticas de cuidados marginal, "louca" sem jamais ter tido chances de se "habilitar" para cotidianos estariamos com Saraceno & Sternai, 1987, aproveitando qualquer coisa? três metáforas operacionais úteis: casa, bazar, competência parental. A Organização Mundial de Saúde na tentativa de priorizar esta A de casa traz consigo experiências concretas e complexas de questão nas suas ações, estabelece distinções importantes no senti- reaprendizagem do uso de tempo e espaço com ritmos domésticos e do de classificar suas atuações: a) Impairment alteração, deteriora- afetivos, o uso de objetos e oportunidades da vida diária não centra- ção, diminuição da função psicológica, social, anatômica ou fisiológica, dos nas diretrizes massivas de cuidado, mas, justo o contrário, determinada por algum dano orgânico ou funcional que necessitaria centrado nas demandas singulares de cada um, como acontece com de farmacoterapia, psicoterapia, fisioterapia, etc., como estratégias os diferentes moradores de uma conceito de bazar, merca- competentes para o seu cuidado; b) Disability, sem até o momento do, campo de trocas, também e útil para pensarmos espaços de uma palavra que traduza para o nosso idioma o seu sentido, é a cuidados cheios de gente e negociações afetivas, mercantis, de restrição ou carência de habilidades para o desempenho de ativida- poder: "Não existe melhor centro de Saúde Mental que um mercado des socialmente exigidas decorrentes do dano (impairment) anteri- no Senegal ou em Eu gostaria de entender melhor por- or onde a laborterapia, trainning in social reabilitação que é assim. Certamente tem a ver com o fato de que lá as classes vocacional seriam as melhores armas de enfrentamento; c) para o sociais se misturam, trocam, olham uns para os outros, jogam, handicap já instalado (a desvantagem resultante de uma alteração trabalham (e eles podem ser até mesmo verdadeiramente impairment e ou disabilidades-disabilities resultante de uma o bom mercado é um dos poucos lugares onde todo o corpo social alteração prolongada do estado "normal" do individuo) o remédio se reconhece, existe como um todo, e todos sabem da dificuldade de</p><p>22 ANA MARIA FERNANDES QUE REABILITAÇÃO SOCIAL NO HOJE? 23 se escapar do fascinio de toda aquela gente junta" (Rotteli, 1986). finir o seu que fazer cotidiano. E importante que Reabilitação Psicos- terceiro conceito, de competência parental, tem, particularmente em social não se tome um novo jargão a batizar velhas práticas. países onde o cuidado com a prole é missão exclusiva da uma dificuldade de se definir como uma 1. Reabilitação Psicossocial Brasil Maternagem, que não é precisamente uma técnica, é comparável ao que os pais fazem habitualmente para cuidar de seus filhos: nutri- Em brasileiro Reabilitação Psicossocial traz consigo de los, prover suas necessidades elementares, assisti-los, encorajá-los valor e sentido se examinarmos etimologicamente seus significados. para crescer. o prefixo latino RE evoca um movimento pare também, Se existir uma técnica em Reabilitação Psicossocial ela teria que traduz a idéia de repetição, mudança de estado e realce, algumas aproveitar de todas as técnicas disponíveis para estabelecer as me- vezes. HABILITAÇÃO, por sua vez, é o ato ou efeito de habilitar-se negociações entre as "necessidades" dos pacientes, e as "opor- através de um conjunto de conhecimentos, aptidões, capacidades. do contexto. Wing e, mais sistematicamen- Juridicamente, a palavra implicaria ainda nas formalidades te, Ciompi falam em: 1) optimum stimulation: que é o balanço entre rias para aquisição de um direito ou demonstração de uma capacida- a falta de estimulação (como o que acontece nos hospitais tradicio- de legal para o desempenho de alguma atividade. nais) e a superestimulação quando se exige dos pacientes uma so- Quando juntos na palavra Reabilitação, impõe um sentido de reco- brecarga de estímulos e cobrança de performances por parte dos brança de crédito, estima ou bom conceito perante a sociedade. Re- profissionais reabilitadores; 2) impedimento específico: que são todos cupera faculdades físicas ou psíquicas dos incapacitados e é este sen- aqueles obstáculos que existem antes da doença se instalar ou mes- tido "ortopédico" de reabilitação de funções o que mais facil- mo se potencializam na decorrência dos tratamentos; e, ainda, 3) as mente ocorre no imaginário brasileiro. Os serviços de reabilitação expectativas dos trabalhadores de Saúde Mental com os resultados de existem concretamente e são conhecidos e utilizados pelos suas intervenções reabilitantes muitas vezes mais ajustadas às suas usuários, prevalecendo um modelo mecânico de concerto de disfun- profecias e verdades que às modestas aspirações dos seus pacientes ções, fraturas, buscando um retorno à fisiologia "normal". (Saraceno, Barbato, De Luca, 1985). Com o modelo teórico de "retomada da normalidade" ainda se o Os contextos onde essas práticas reabilitadoras acontecem tem utiliza, juridicamente, para definir uma das formas de extinção de variado de settings e ideologias. As práticas territoriais têm sido mais punibilidade a qual consiste em cancelar a pena acessória da interdi- coerentes com os propósitos reabilitadores articulando diferentes ção de direitos, e, segundo alguns, apagar os outros efeitos da sen- serviços centros ou núcleos de atenção psicossocial, tença condenatória, reintegrando os direitos que a mesma sentença cooperativas de trabalho, moradias assistidas, terapêuticos e limitou. centros de ajuda diária de diferentes tipos. Justapondo a dimensão psicossocial a reabilitação, esta se reveste A transformação dos antigos hospitais psiquiátricos em espaços de uma dimensão ainda mais vasta e e muitos são os usos e de acolhida e tratamento tem sido um dispendioso desafio econômi- estímulos que ela suscita. e tecnológico. Os serviços de atenção primária integrados aos Provocar técnicos e sociedade sobre a vocação dos nos- cuidados gerais de saúde e as unidades de cuidados psiquiátricos serviços talvez seja um bom destino para a decifração desses em hospitais gerais algumas delas, buscado articular-se a um vocábulos, no Brasil, hoje. sistema reabilitador. Para Saraceno, 1995, o enunciado da expressão Reabilitação 2. Um Novo Tratado Ético-Estético Psicossocial praticamente desaparece na medida em que se vai Nas chamadas democracias emergentes, quando se enfatiza a saindo do enquadre hospitalar para as instalações equidade como a possibilidade de atender igualmente o direito de Trabalhadores e usuários vão encontrando novas palavras para de cada um, singularizado e subjetivado, Reabilitação Psicossocial pode-</p><p>24 ANA MARIA FERNANDES QUE É REABILITAÇÃO SOCIAL NO HOJE? 25 rá significar justamente um tratado ético-estético que anime os sua maioria trabalha a maior parte do tempo para ganhar a vida, e, se projetos pare alcançarmos a utopia de uma sociedade algumas horas lhe ficam, horas tão preciosas, são de tal forma justa com chances iguais para todos. pesadas que busca-todo os meios para as ver passar" (Werther, Embora incoerente com as bandeiras revolucionárias desde o sé- Goethe). culo XVIII de liberdade, igualdade, fraternidade, um de reto- Trato de evocar Werther para sintetizar um "ethos prometéico" mar posições higiênicas, anatomicamente impecáveis para se ser que pontifica nossos ideais de inserção social onde o mundo do tra- aceito, é forte e está presente em muitos dos projetos técnico-politi- balho, e, mais especificamente, o mundo do trabalho assalariado se cos para os "desabilitados" no país. constitui no modelo quase exclusivo de possibilidade de um indivi- A ausência de uma administração estruturada e serviços especia- duo ser aceito, ser amado, ser compreendido na sociedade atual. lizados para atender aos miseráveis, aos loucos, aos emprego regular, o retorno pecuniário igualmente regular, tem propicia uma relação de vassalagem que se constitui numa estraté- sido historicamente o paradigma de um funcionamento social har- gia competente de controlar riscos e convulsões sociais. onde trabalho amor organizam e modelam a vida dos A atomização, a fragmentação, são modos competentes de geren- homens. ciar a desigualdade quando sabemos que os excluídos, com laços As décadas de 80 e 90 agudizaram profundas transformações no familiares precários, com rede de vizinhança e inscrição territorial mundo do trabalho, a ponto da classe-que-vive-do-trabalho ter sido inexistentes, são mais vulneráveis às agressões externas e necessi- atingida não apenas na sua materialidade (salários, modos de inser- tam Cuidados esses personalizados e delicados, que res- ção, formas de representação, etc.) como na no seu postas globais e pouco diferenciadas costumam passar ao largo des- modo de sentir e ser no mundo. sas pessoas e das suas grande salto tecnológico com a automação, a robótica, a micro- Nas sociedades concretas, a brasileira em especial, a pobreza de eletrônica invadindo os espaços de trabalho e até mesmo a cena do- investimentos na área social irá determinar que alguns recebam cui- méstica impõe, revoluções profundas e instáveis, determinando um dados e outros sejam rejeitados pelo sistema de atenção. Serão mais conjunto de experimentos mais ou menos intensos, mais ou menos rejeitados os que revelarem uma absoluta inaptidão para o trabalho, consolidados, mais ou menos embrionários. já que, no horizonte de expectativas, a inserção no mercado formal E é neste contexto que em diferentes lugares no mundo, e, no ou informal de trabalho entra como indicador positivo em quase to- Brasil em diferentes cidades, pessoas, grupos, organizações, movi- dos os projetos de mentos de usuários, profissionais e governos vêm produzindo uma Essa transição de milênio em relevo, como ponto de fratura onde solidariedade e responsabilidade para com pes- dos vínculos sociais, a organização e os modos de trabalhos nestas soas que têm suas atividades limitadas por transtornos mentais, Estamos falando da precariedade dos laços, a vulnerabi- atualizando no país uma rede histórica que tem em Ulisses Pernam- lidade às agressões, a exclusão, a segregação e a desafiliação que bucano, Osório Cessar, Luiz Cerqueira, Nise da Silveira e movimen- Robert Castel cuidadosamente revela ao examinar as metamorfoses tos sociais com Rede de Alternativas à Psiquiatria, Movimento de da questão social neste século, excluindo um contingente cada vez Trabalhadores de Saúde Mental, Movimento pelos Direitos Huma- maior do acesso à chamada "sociedade salarial" (Castel, 1995). nos dos Doentes Mentais, SOSINTRAS, Associação Franco Basaglia, o homem moderno, acriticamente, persegue formas de inclusão Associação Franco Rotteli e outras que se multiplicam no país e tra- social pelo trabalho, desconsiderando o fato desse trabalho não ser tam de encontrar formas de trabalho e vida para pessoas que sofrem nem tão nem tão flexível para suportar as diferentes de- de limitações para a vida em sociedade. mandas individuais e coletivas que a sociedade moderna A World Association for Psychosocial Rehabilitation (WAPR) cria- "Se me perguntares como é a gente daqui responder-te-ei: como da em 1986 na França e apoiada pela Organização Mundial de em toda parte. A espécie humana é uma desoladora uniformidade; a Saúde e Organização Internacional do Trabalho chega ao país</p><p>26 ANA MARIA FERNANDES em 1995, rearticulando as organizações existentes, agregando no- vas pessoas e grupos, umas mais criticas, habituadas às descontinui- dades e recuos dos nossos movimentos, outras militantes de maio- res esperanças, ancorando-se num modo de levar adiante seus São quase quatrocentos filiados no que, ultra- passando os temores de adesão a mais um chamariz de atualizam seus compromissos de transformações de práticas de as- 3 sistência em encontros, feiras, boletins, numa rede de interesses e Falar em Reabilitação Psicossocial no Brasil, hoje, é estar a um só POR UM PROGRAMA BRASILEIRO tempo falando de amor, ira e Amor pela possibilidade de DE APOIO À DESOSPITALIZAÇÃO seguirmos sendo sujeitos amorosos, capazes de exercitar a criativi- Programa de Apoio à Desospitalização (PAD) dade, amizade, fraternidade no nosso "que fazer" ira tra- duzida nesta indignação saudável contra o cinismo das nossas politi- Enquanto Estratégia Nacional de Reabilitação cas técnicas e sociais para a inclusão dos e dinheiro para transformar as do desejo em políticas do agir, estando aqui incluída a preocupação com um destino eticamente DOMINGOS SÁVIO NASCIMENTO para os recursos pequeninos que devem ter a incumbência de redu- zin as formas de violência que exclui e segrega um número sempre significativo de Inicialmente gostaria de registrar a honra de participar desta Referências Mesa de Abertura, e cumprimentar, em nome do Sr. Ministro da Saúde, as organizações do evento, Dras. Ana Pitta e Barros, e Castel, R. (1995) Metamorphosis de la question sociale. Paris: a todos os presentes. Cnaan, R. et alii (1985) Psychosocial Toward a Vários Interlocutores têm nos perguntado qual é segredo de, há cial Rehabilitation quase cinco anos, a mesma equipe coordenar o Programa de Saúde Maslen, D. (1982) Rehabilitation Training for Communitary Living Concepts Mental do Ministério da Saúde. Tenho respondido que, dificilmente and Techniques, Occupational Terapy in Mental Health, & D. (1995) La politique de santé mentale et la uma autoridade sanitária do governo tenha coragem de não aderir tion des services Santé Mentale de imediato à conclamação da Declaração de Pitta, A. M. E (1994) Os Centros de Atenção Psicossocial: espaços de reabilitação? A simplicidade e clareza daquele documento não admitem tergi- Brasileiro de versação. Rotteli, F L'istituzione inventata. In La pratica tra modello ripro- Para recordar resumindo: duzione Centro di B.: Barbato, & DeLuca, (1995) Evaluation of Psychiatric Rehabilitation 1. Diversificar as possibilidades na oferta de serviços, superando as Formalization of the "Everyday" of (paper). a crença consolidada de que o hospital é o lugar ideal Saraceno, B. & Sternai, E. (1987) Questioni di Rivista Sperimentale di para o tratamento das pessoas com transtornos 2. Oferecer no hospital enquanto este existir, trata- WHO (1987) Care for the Mentally III. WHO Collaborating Douglas Hospital Montreal, Coordenador de Saúde Mental do Ministério da 27</p><p>28 DOMINGOS NASCIMENTO ALVES POR UM PROGRAMA BRASILEIRO DE A DESOSPITALIZAÇÃO 29 mento e não confinamento e que foram a marca destes E nessa linha que se o Programa de Apoio à Desospitaliza- serviços; ção, o PAD. Em resumo, o Programa destina-se a pessoas internadas 3. Respeitar e ampliar os direitos das pessoas com transtornos a mais de cinco anos ininterruptos ou 10 anos com pequenos interva- mentais, incorporando-as como sujeitos no processo de superação los de alta, em hospitais e que tenham condições de de suas beneficiar-se de tratamento e cuidados fora do Dos cerca Assim, amparadas nesta adesão dos diversos ministros que nos dos 77.000 leitos em hospitais estima-se que 20 mil dirigiram, pudemos dar continuidade ao Programa utilizando estra- encontrem-se ocupados por clientela dita "cativa", ou seja, pessoas tégias que considero simples, mas também claras, de adesão ou que, sem necessidade de permanecerem internadas estão impossi- oposição imediata, que são: bilitadas de alta por falta de apoio familiar e social. Portanto, o PAD 1. Alterar o financiamento das ações de saúde mental, alterando a tem como principal objetivo a reintegração social e familiar destas Tabela de Procedimentos do SIA e SII pessoas. 2. Constituir um colegiado permanente de coordenadores ou o Programa será financiado com redirecionamento dos recursos assessores estaduais de saúde mental para execução conjunta do financeiros que hoje vão para os hospitais da seguinte processo de restruturação da forma: metade do gasto mensal por paciente vai para este ou sua 3. Pactuar com a sociedade o processo de mudança, convocando família e a outra metade para a Secretaria Municipal de seu a Conferência Nacional de Saúde Mental. pio, para prover assistência extra-hospitalar para sua população. Hoje é afirmar com grande margem de acerto: custo médio mensal, hoje, da internação está em 1. A necessidade de mudança na assistência no país é torno de Cerca de iriam então para a Secretaria um consenso; Municipal de Saúde e R$150,00 para o cliente incluído no o conjunto dos atos administrativos nos níveis do SUS que representa um salário mínimo e Programa, pela sua sido, no sentido da mudança; complexidade, será coordenado e executado conjuntamenete pelos 3. com os recursos financeiros hoje existentes, se redireciona- níveis gestores do com responsabilidades e competências dos, é substituir o atual parque manicomial por uma rede explicitadas em portarias. Gostaria de destacar que o Programa não substitutiva; é compulsório e para incluir-se nos seus o cliente opta, a 4. A mobilização dos usuários, familiares e profissionais da saúde família original ou substituta aceita e o poder público municipal engajados, conferiu ao processo uma dinâmica responsabiliza por prover cuidados na forma determinada pelo PAD. Nestes quatro anos, cerca de 30 hospitais psiquiátricos foram Dado seu ineditismo e sua já referida complexidade, o processo fechados, desativando-se 16.000 todos foram recadastrados, terá normas rigidas de inclusão e exclusão de Por exem- ou desclassificados, impedidos de manter celas-for- plo, só poderão ingresso no Programa os que tes, violar correspondência dos internos ou impedir visitas. Quase oferecerem uma rede de cuidados intensivos extra-hospitalares e/ 100 serviços substitutivos Centros de Atenção psicossocial, ou leitos psiquiátricos em hospital geral e que tenham, em funciona- cleos de Atenção Psicossocial e Hospitais-Dias funcionam hoje em mento regular e comprovado, Conselho Municipal de Saúde, órgão todo Uma Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica, colegiado, com participação da sociedade, que fiscalizará o cadastra- da ao Conselho Nacional de Saúde, delibera a de saúde mento dos mental desde dezembro de 1993. PAD além de promover a reinserção das pessoas incluidas por No entanto, se alguns resultados são inegáveis, é também flagrante longos anos do convívio social, permite, com o redirecionamento necessidade de reverter a situação injusta, social das pessoas internadas por longo tempo nos hospicios, por ausên- cia de políticas públicas que as "incluam" em beneficios sociais. salário R$100,00 à</p><p>30 DOMINGOS NASCIMENTO ALVES dos recurso, facilitar implantação nos municípios de uma forma de atenção em saúde mental mais substituindo pro- gressivamente a presença hoje hegemônica do hospital psiquiátrico no tratamento das pessoas com transtornos mentais. o PAD seguramente terá profunda repercussão na vida de milha- res de pessoas, além de determinar mudanças no comportamento dos gestores da saúde pública, das famílias e da Esta é a nossa expectativa. PARTE REPENSANDO REABILITADORAS</p><p>1 REABILITAÇÃO COMO PROCESSO - O CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL - CAPS JAIRO O projeto original do Centro de Atenção Prof. Luiz da Rocha foi elaborado há dez anos, em setembro de 1986. Em março do ano seguinte foi oficialmente inau- gurado e no mês de junho iniciou suas atividades com Desde sua criação é um serviço de assistência, ensino e pesquisa, Médico psicanalista. diretor do Centro de Atenção Psicossocial Prof. Luiz da Rocha Cerqueira em São autor do livro Clínica projeto no rede Rio de Janeiro, Editora Te Corá, ed. Centro de Atenção Psicossocial: nome emprestado aos centros existentes na onde "equipes interdisciplinares cumprem tarefas de prevenção, tratamento e reabilitação". H. "Nicarágua: processo de constituição da atenção In: Temas São Paulo, A aplicação brasileira dessa designação foi sugerida pela Ana Maria Fernandes Dr. Luiz Rocha Cerqueira (1911-1984): médico nascido em Alago formado na Bahia, com longa história institucional no hospicio da Semeador de reformas em Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Preto e São Coordenador de Saúde Mental do Estado de São (1972). CAPS: sigla criada pelos pacientes que o Centro de Atenção no ano de</p><p>34 JAIRO GOLDBERG REABILITAÇÃO COMO PROCESSO 35 inserido na rede pública de à saúde Destina-se ao Um ségundo fator diz respeito à experiência que se tinha acumu- atendimento de pacientes Ao longo dos anos foi ampliando lado na observação dos cuidados habitualmente oferecidos em hos- suas funções: formando para a rede de atendimento, ofere- pitais especialmente no que concerne à noção de cendo estágio para estudantes e desenvolvendo sua vocação como adoecimento mental e, em última à noção de individuo local de reabilitação. pressuposta por seus profissionais. hospital parecia colocar-se A noção de reabilitação aos poucos no CAPS, como um como a autoridade capaz de garantir o caráter cientifico do tratamen- aprendizado e uma conquista naturais, e só pôde tomar forma quan- de tal maneira que a figura do paciente tendia a se apresentar do a instituição já estava em funcionamento, quando já existiam como objeto de um aparato institucional dotado de um saber e uma condições para que tal noção ser vislumbrada e chamada a tecnologia postos a o tratamento, por sua vez, via-se absorvi- operar, e estas condições, sua vez, amadureceram no próprio do no âmbito de uma relação sujeito-objeto, interessada nos efeitos desenrolar dos trabalhos no Elas se apresentaram porque a de práticas tidas como e na confirmação da teoria que as certa altura houve uma precipitação de fenômenos as sustenta, o que conduzia a uma preocupação do profissional somen- práticas ultrapassavam os internos, constituia-se uma equi- te com aquilo que se apresentava sob a autoridade da "ciência" em pe de cuidados, todos incorporavam a instituição como espaço de sua relação com o "objeto". Desse modo, percebia-se como a referência para pacientes e clareava-se a idéia do tratar e, cia psiquiátrica" tomava como foco de atenção o sintoma, e despreo- principalmente, emergia um local de tratamento que se desenvolvia cupava-se do "resto": o sujeito e sua singularidade, sua história, sua junto com os pacientes. A reabilitação foi percebida, neste contexto, cultura, sua vida cotidiana, elementos que constituem precisamente como um processo articulado de práticas (sustentadas por uma o campo de inerência de tais tratamento despersonaliza- trama de que não Se deteria até que a pessoa acometida do e desinteressado em hospitais e ambulatórios é por problemas mentais pudesse sedimentar uma relação mais au- desta atitude. tônoma com a instituição. enfim, de procedimentos Um fator a se destacar são as práticas estereotipadas que que iam se consolidando e sendo articulados por uma instituição na em todas as profissões ligadas a saúde mental. Muitas qual o tratamento não era dimensionado segundo um limite no vezes cristalizam-se procedimentos que não têm qualquer relação tempo, e onde se garantia a participação do paciente em todo o pro- com o tratamento do paciente. Os casos ditos crônicos, por exem- cesso. plo, são tratados com menos intervenções profissionais; os casos de o entrecruzamento de alguns fatores, verificado nos momentos psicose são considerados exclusivos da esfera médica e a hierarqui- iniciais de implantação do foi importante subsídio na consti- zação de práticas junto aos pacientes leva à impressão de que minis- tuição do CAPS. destes fatores diz respeito à observação, trar remédios é mais importante do que sair com o paciente, do que por parte da equipe, de que procedimentos adotados pela A tal maneira de se realizar as práticas denominamos Psiquiatria apresentavam resultados insatisfatórios no seguimento a preconceito tecnológico, um preconceito que leva cada profissional a longo prazo dos pacientes graves. Estes procedimentos levavam, fazer exatamente o que assimilou de um repertório de comporta- basicamente, à internação do Paciente em locais inadequados e por mentos convencionalmente moldado por sua profissão, sem se preo- periodos prolongados, sem seguimento pela mesma impli- cupar de fato com o paciente que está sob seus cuidados. Assim, cavam, além disso, consultas com intervalos longos, centra- redundaria num não tratar tudo o que se fizesse fora deste lizando-se o tratamento apenas no médico e no remédio. Chegávamos rio o que em muitos casos implica atender o paciente e afastar à conclusão, a partir destas que era preciso desmontar atitudes profissionais solidamente estabelecidas. pouco a pouco um certo saber negativo da Psiquiatria, e que deveria- Outro também enfrentado no momento inicial de implanta- mos nos ao mesmo tempo, disponíveis ao florescimen- ção do diz respeito à nossa convivência com procedimentos to de um outro saber. administrativos, financeiros e de planejamento, no</p><p>36 JAIRO GOLDBERG COMO PROCESSO 37 curto ciclo de renovação da Saúde Mental no Estado de São adequado, acolhendo para tratamento, diariamente, pessoas com no principio da década de oitenta. Tal convivência seguramente quadro mental grave; o serviço posto como referência para paci- favoreceu uma visão critica do funcionamento e permi- ente e articulando as práticas já instituidas da psicoterapia, tiu equacionar melhor o que seria o tratamento no horizonte de uma dos grupos e da medicação, com outras práticas capazes de valorizar instituição renovada. A intervenção que conduziu a este episódio de o paciente, como reuniões de usuários e atividades expressivas renovação dos equipamentos públicos propiciou uma observação acontecendo num ambiente terapêutico. Em suma, o curiosa: os programas de saúde mental estratificados entre muitas material prático e teórico então existente sobre projetos de renova- instituições não conseguiam a adesão dos pacientes psicóticos e, ção em saúde mental, e aproveitou-se o que poderia contribuir com tornavam o seguimento dessa clientela. Vale dizer uma modalidade diferente de tratamento institucional para o pacien- que esta continuava sem lugar para se te adulto e psicótico. Percebiamos, a partir dessa que o que cabia cons- Decorridos quase 10 anos do das atividades do CAPS junto truir não era um espaço mas um lugar que estes aos pacientes pode-se dizer que o projeto passou por muitas modifica- pacientes psicóticos reconhecessem como referência e ambiente de ções, e que a possibilidade deste redirecionamento constante de misto de burocracia e planejamento que dominou a perspectiva acabou por se uma característica do trabalho. Não estratégia de reogarnização institucional não conseguiu trazer à demorou para que que uma proposta de tal magni- tona a especificidade do campo de conhecimentos da Psiquiatria, tude, transcorrido um certo de tempo, apresentava certa desconsiderou a individualidade dos usuários deste sistema pro- acomodação. Duas puderam ser evidenciadas nesta pondo soluções globais e Tudo isto demostrava, en- situação, uma favorável, outra frustrante e problemática. A primeira fim, o desconhecimento de uma clínica da psicose, enquanto conjunto refere-se ao conjunto de rotinas que possibilitava aos pacientes orga- de saberes especializados, que poderia subsidiar tais Um nizarem-se dentro da instituição, dando a esta corpo e último fator que criou condições favoráveis à implantação do CAPS A segunda, complexa e emergia no momento em foi a contribuição dos conhecimentos práticos e dissemina- que a instituição reconhecia que o tratamento dos pacientes não dos por manuais, livros, revistas, relatos e Os profissionais avançava, produzindo insatisfação na equipe. Mas o que importava envolvidos com o projeto do CAPS puderam, então, realizar a leitura era identificar tal insatisfação como a chance que se oferecia de deste material cotejando-o com a experiência extraída do curto ciclo rever o funcionamento da equipe e também o desenho institucional, de renovação da saúde já citado, e com as conclusões que a sem porém, os pressupostos que fundavam o projeto. A participação neste ciclo proporcionou mudança, a renovação, a reconstrução são próprias da concepção do Estes fatores apontam, em linhas gerais, para o contexto que trabalho com a psicose. Jean Oury, retomando Freud e Lacan em envolveu o momento inicial de organização do Dessa manei- seu livro Création schizophrénie, expõe esta perspectiva: o trabalho com pacientes iniciou-se a partir de certas condições "Uma esquizofrenia é uma que se apresenta; uma instituição própria, inserida na rede pública, um local 'totalmente como dizia Bleuler... Para retomar outra expres- pode-se dizer que há, em determinado momento, uma espécie Reformulação da Saúde Mental no Estado de São Paulo que se deu na primeira de bifurcação da existência. Há, como afirmava Lacan, um eleição no Brasil após a Um modelo baseado no (termo empregado em sua tese de 1932)". hospital psiquiátrico (hospitalocêntrico) seria modificado por uma rede de servi- "Ora, esta fratura é mais ou menos patente, Ela correspon- extra-hospitalares (ambulatórios de saúde equipe de saúde mental de que Tosquelles chama de existencial'. Ele não um e assistente social em centros de inventou este termo, mas valorizou o fato de que tal catástrofe é emergência e recuperação dos leitos públicos) que funcionariam como filtro para internação em vivida como um de Em todas as esqui- Noção presente na obra de Jean Paris: Coll. 1978 zofrenias, mesmo que não seja imediatamente balizado, há algo</p><p>38 JAIRO GOLDBERG COMO PROCESSO 39 dessa Essa catástrofe existencial pode ser vivida como um pessoas em uma fase de muita angústia, o que assinala a transição de desabamento o mundo desabando em alguns segundos ou, um registro a outras, que procuram no mundo fragmentos ao contrário, como alguma coisa bem progressiva, espécie de implo- para reconstruir este aparelho (às vezes e ou- são que pode durar meses e meses". tras, ainda, que estabilizaram-se num registro "Seja o que for, a ela segue-se um tempo de da A proposta do tratamento de psicóticos deve levar em como depois do Essa reconstrução pode consideração tais variantes, e essa diversidade exige múltiplas inter- tomar uma forma uma forma de restrição dos campos, venções que só poderiam ser desenvolvidas em uma instituição. restrição do mundo, mudança total das crenças, com a utilização de Não em qualquer instituição para tratamento de problemas psiquiá- toda a cultura com empréstimos à mitologia ou à tricos que, como já vimos, tende a reduzir um problema tão comple- ao, mundo Tudo isto faz, com que haja a práticas fixas e estereotipadas, ou a adotar o diagnóstico, de um vivido de absoluta' da Depois da forma exclusiva e auto-suficiente, para a implementação de fárma- catástrofe triam-se materiais para E tal reconstrução cos. o tratamento desses pacientes requer um projeto individualiza- que parece a coisa mais importante. E dessa perspectiva que vem à do que não perca de vista a noção de conjunto, devendo demonstrar-se tona tudo aquilo que se chama de no nível da psicopatolo- atento ao tempo de cada um, com perspectivas de possibilitar ao bem gia, tendo ou não valor e que pode servir para que vejamos longo do processo o aumento de seu coeficiente de autonomia, de mais finamente aquilo que está em jogo nesta escolha. Há muitas maneiras de se abordar tal questão, e elas depen- "Pode-se tratar de uma reconstrução sujei- dem do perfil dos profissionais que trabalham, das características to assume ter sido escolhido por Deus para salvar o Há uma e institucionais do local, da cultura regional, da vontade espécie de entre o si e o mundo! Logo, salvar o e principalmente deste dado que é a resposta dos mundo é uma maneira mais ou menos metafórica de salvar-se a si tomar o que Freud disse sobre o sentido do delirio: é possível descrever de várias maneiras o que se faz no CAPS; uma espécie de esforço desesperado em direção à uma estabi- como se trata de um trabalho que vai tomando forma mediante a lização em um certo Este longo trecho de J. Oury aponta convergência de diversas linhas de ação, examinemos um dos mo- para o processo de criação e de reconstrução na constituição do mentos que organizam tal que é justamente a Reunião sujeito Geral, da qual participam todas as pessoas que estejam presentes no A reconstrução do aparelho desmoronado sob as con- as que ai acorrem diariamente ou esporadicamente e tam- tingências do processo vai realizar-se de maneira muito bém aquelas que estão participando de projetos extra-muros. Coor- própria, não havendo parâmetros para compará-la com as formas de denada por um membro da equipe e um usuário inicia-se pela leitura funcionamento do aparelho dos indivíduos Re- da ata da reunião anterior e depois disto, se não há dúvidas, segue-se ferenciais anteriores como desejo, pulsão, linguagem, vão subme- a exposição de breves informes de interesse dos usuários, visando ter-se a outras instâncias nesse novo processo. Assim, o sujeito manté-los informados sobre as pessoas que estão no Nessa esquizofrênico passará por um complexo percurso de resignificação ocasião anuncia-se, por exemplo, a chegada de um paciente novo, a dos desejos, das pulsões e da anteriormente inscritos entrada ou de um profissional, férias, afastamentos e novida- em outro Isto faz com que nos deparemos, a cada momento des na vida de um usuário que deseje com o conjun- do percurso de resignificação, com a emergência de aspectos muito to das pessoas. peculiares nesses Podemos por exemplo, Em seguida monta-se uma pauta de assuntos ligados que fazem parte da instituição: limpeza, agressões, festa, torneios, pro- blemas e outros temas; às vezes, tal discussão é atropelada por um Création et Paris: p. do paciente que se inscreve para denunciar que, segundo seu ponto de</p><p>42 JAIRO GOLDBERG REABILITAÇÃO COMO PROCESSO 43 próprias condições a que as pessoas estão submetidas, de alhea- e a percepção da urgência com que a instituição deveria responder mento e de exclusão, impedem que tenham acesso a um substrato aos necessitados de tratamento levou-nos a procurar parceria com a de linguagem no qual possam esboçar um Pessoas que iniciativa privada, de modo a agilizar alguns destes projetos. Assim passaram muito tempo em casa não assunto para conversar. nasceu a Associação Franco Basaglia AFB. Foi fundada há 8 anos Assim, no dia-a-dia da instituição procura-se proporcionar um núme- por pacientes, familiares, profissionais e interessados e hoje é reco- ro grande de projetos, uma circulação intensa de experiências, que nhecida como organismo não governamental (ONG). o crescimen- atendam aos pedidos dos usuários: lidar com roupas, atividades de to da AFB resultou da participação dedicada e intensa dos familiares cozinha, de fim de semana, marcenaria, xerox e outras, A preocupa- no cotidiano das reuniões, festas, na condição de representantes dos ção central é que possam sedimentar uma cultura, um ambiente interesses dos pacientes em eventos e, principalmente, auxiliando capaz de ser falado provendo um suporte para que na criação de outras associações as questões apareçam. As psicoterapias grupais e individuais podem A Associação, em conjunto com o CAPS, passou a desenvolver ser o lugar no qual tais questões podem ser projetos de interesse mútuo, que são discutidos nos dois espaços; Nesse contexto, a medicação deve ser um conhecimento dissemi- um projeto que se originou na AFB e contagiou o CAPS foi a idéia de nado por todos que participam da instituição, que muitas vezes, se fazer um clube. Assim nascia o "Clube do Basaglia", direcionado a auxiliam na tarefa da distribuição de medicamentos, todos os usuários de serviços de saúde mental da cidade de São sobretudo, como um momento importante de contato com o pacien- As programações do clube neste momento se distribuem pela atendimento às famílias realiza-se na modalidade que for mais semana e incluem o Trata-se de oficinas com profissionais indicada: nuclear, grupal, auto-ajuda e sistema administra- oficineiros coordenando atividades como rádio, ritmo, dança tivo sustenta o cotidiano da instituição e não se pode, de maneira rica, marcenaria e outras. alguma, concebé-lo como instância dissociada do contato com os Alguns mecanismos burocráticos e administrativos são importan- usuários: cabe a ele a função de guardar dinheiro, prestar auxílio tes na maneira de atuar do CAPS, e indicam o esforço por torná-los quanto a documentos e aceitar aqueles que querem colaborar em "leves" e reversiveis quando se demonstram inoperantes. Um deles diz respeito, por exemplo, ao consenso em tomar-se a instituição Um trabalho com este perfil de forte sentido processual só como referência: uma vez que o paciente está ligado ao CAPS, se pode acontecer juntamente com uma proposta de ensino e pesquisa, necessário ele ai poderá sempre retornar, posteriormente à sua alta associando-se à Universidade para formar alunos da graduação no ou afastamento, sem ter de submeter-se aos procedimentos de tria- dessa nova proposta. Tende a acumular uma complexidade gem. CAPS será uma referência para o paciente e sua família. Um de práticas e conhecimentos teóricos capaz de atrair igualmente segundo mecanismo que procura garantir a fluência da vida institu- uma área de constituindo um complexo campo de cional concerne ao fato de que as atividades terapêuticas ocorrem investigação para pesquisadores Um dos projetos todas num mesmo local, facilitando o seguimento do paciente, que fundamentais ligados a tal eixo de formação e pesquisa destina-se a assim não precisa deslocar-se entre várias instituições. terceiro, preparar profissionais para trabalhar neste novo contexto, que é decorrência deste, refere-se ao fato de que o CAPS não se do-lhes estágios curtos ou longos, como é o caso do que se realiza desvincula de seus pacientes; quando os encaminha a outro serviço, por intermédio da FUNDAP, com duração de dois para tratamento, mantém um acompanhamento até seu retorno, por A conhecida instabilidade nos projetos ligados ao serviço público, meio das equipes encarregadas da atenção a tais pacientes. Para finalizar, é importante abordar duas noções centrais em todo tratamento: alta e cura. Esta terminologia tem tradição na Medicina Fundação de Desenvolvimento entidade de economia mista, e sua aplicação na Psiquiatria, em face das especificidades que que oferece bolsas de estudo para programas de aprimoramento profissional nas instituições acabamos de discutir, precisa ser redefinida. A perspectiva da alta</p><p>44 JAIRO GOLDBERG REABILITAÇÃO COMO PROCESSO 45 pode encontrar seu termo quando o paciente quer tratar-se em outro numa fase em que o Centro já funcionava há algum tempo. Foi uma serviço e a instituição, família e paciente entram em Isto não noção incorporada a posteriori, passado um longo de convi- significa Por outro lado a noção de cura como restitutio ad diária com os pacientes, e já verificada a mudança do projeto integrum que se aplica à doença médica é estreita na aplicação para segundo o que ele absorvera da leitura cotidiana do processo tera- pessoas que estão buscando uma estabilização do aparelho psiqui- A tarefa com a qual nos defrontamos cotidianamente é a de co, pois às vezes nos defrontamos com um horizonte de cura que oferecer cuidados para pessoas que tiveram suas vidas marcadas pode ter a duração da vida do No geralmente, por uma cunha, uma inflexão drástica. Tal inflexão terá marcado de aeparamo-nos com pessoas que apresentam um problema mental maneira particular o caminho de cada uma Cada uma requer, com evolução lenta e prolongada, mas que não são elas então, uma abordagem Sob tal ponto de vista não se trata, jamais deixam de tentar reconstruir aquilo que desabou. Notamos, apenas, de encarar a reabilitação como algo que (considerando as também, que tais problemas não as impede de desempenho deixadas por uma doença) visaria terciária (como social: saem sós de casa, vão e retornam do tratamento, participam na na qual estas pessoas precisariam ser reabilitadas de das atividades segundo seu estilo e, frequentemente, após anos de acordo com o que nelas teria restado de saudável. Muito menos seguimento, surpreendem profissionais e familiares com iniciativas como algo que se ocuparia de resgatar uma perda de habilidades que antes estavam infligida pela doença mental, como se reabilitar fosse recuperar A perspectiva do tratamento dessas pessoas tem como objetivo habilidades proporcionar que atinjam patamares cada vez mais altos de geren- Entendemos, que para um paciente com intensa dificuldade de- ciamento de suas vidas, possibilidades sempre maiores de autono- corrente de sua doença, é bastante e dificil estabelecer mia, qualquer que seja a medida desta para eles; aumentar-lhes laços com pessoas novas e com lugares desconhecidos é assim enfim a capacidade de escolha. Na prática cotidiana das institui- que se apresentam os locais de tratamento. Nesse uma vez ções estas noções podem ser traduzidas num gráfico, tendo no que se consiga um vínculo em uma instituição, este deve ser manti- eixo das abcissas (ou "x") a autonomia dos pacientes (próxima ao do, e os procedimentos de tamento/reabilitação devem ocorrer zero: pouca autonomia; a partir dai um incremento da autonomia), num mesmo local, com a mesma equipe. no eixo das ordenadas (ou "y") a instituição (próxima do zero: uma A psicose é uma condição que evolui e está sempre oferta pequena de tratamento; a partir dai um incremento de ofer- Percebemos a reabilitação como um processo que não tem um fim tas). Um paciente com autonomia baixa vai necessitar muito inves- Não há também um momento preciso a partir do qual este timento institucional pode exigir, por exemplo, quase todos os deva principiar. Cuidar de uma pessoa psicótica é empreender uma dispositivos do serviço, vir diariamente à instituição, participar de jornada, desde o momento que se toma contato com ela. Reabilita- grupos, receber visitas domiciliares, acompanhamento terapêutico ção, tomada dessa maneira, consiste em oferecer todas as possibili- e Já um paciente com autonomia alta, mas com problemáti- dades de tratamento que estejam disponíveis, Chega-se onde o ca intermitente, pode manter-se bem com medicação e terapia paciente quer chegar e não onde a equipe de cuidados previamente grupal. Não faria sentido ele acorrer diariamente à instituição, pois estabelece. Tratar e reabilitar são perspectivas Para consegue ter um desempenho grande na instância social. Assim, se reabilitar um paciente é necessário oferecer continuamente trata- pode-se traçar uma curva inversamente proporcional que se apro- mento. xima de sem que nunca o toque. Isto significa que estas De resto, cabe invocar mais duas noções importantes. Jean pessoas caminham no eixo da autonomia, que a instituição tem de em bem o que implica dizer diz que acompanhar este progresso e que a dimensão do tempo adquire ela vem como um suplemento natural; não se pode só com outros valores. um fusil, com qualquer coisa (...) o que está em questão na assim Como foi mencionado, a noção de reabilitação no CAPS surgiu chamada cura é a questão do a psicose é o sujeito que</p><p>46 JAIRO GOLDBERG REABILITAÇÃO descarrilhou, ele descarrilhou no Valeria Amim e João do IPUB, Rio de Janeiro, Ferreira da Silva Filho, em da Ergonomia à Clínica Tosquelles, F. (1986) de la fin dans La R.D. (1991) entre Monografi reabilitação não pode ser considerada como uma técnica estan- Universidade Santa Rio de Janeiro. que, desenvolvida Ela se desenvolve no nosso coti- A. T. A. (1990) Sobre a no diano, desde os hábitos mais simples de cuidado pessoal a questões hospital-dia do Instituto de Dissertação de do trabalho, fazendo-se necessária, portanto, a construção de um Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janei novo olhar para ela" J.S. (1992) Pensando depressão de população favelada NO Rio de Janeiro. D apresentada ao Instituto de Psiquiatria da Universidade I Bibliografia Rio de Janeiro, Teixeira, (1996) Algumas reflexões sobre o conceito & Silva Filho, J. F. (1995) Reabilitação: da ergonomia à Cadernos do Cadernos do IPUB, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, G. (1978) o normal e o Rio de ria. Cavalcanti, M. T. (1992) o tear das cinzas: MM estado entre instituição Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Rio de Costa, J. F. (1989) História da no Brasil: corte Rio de Xenon, ed. Psiquiatria duas ou coisas que sei In: Aragão, (ed.). (1991) Clínica do São Paulo: J. (1992) A doença mental as a de Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São São (1996) da psicose - MM projeto Rio de Janeiro: Te Corá, ed. (1994) Repenser l'institution publique de santé mentale au le centre d'assistance psychosociale - CAPS à São In: Actualité de la Pierre Maine-et-Loire: Matrice p. 93- 128. (1996) Modelos de assistência e reforma o risco, Belo Hori- zonte, Associação Mineira de IX(1). J. (1978) Done Paris: Coll. 1018. (1989) Création et Paris: Saraceno, B. (1996) Teorias modelos Tradução de Ana Luisa Aranha e Silva e Marina Peduzzi, mimeo. Serpa Jr., D. (1992) A de a clínica no Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de F. (1995) Considerações sobre a assistência no Instituto de Psiquiatria da 1018, p. 70. Tradução do autor. Amim, V. & Silva Filho, J. F. "Reabilitação: da Ergonomia à Clinica". Cadernos do IPUB, Rio de Janeiro, 1(2):103,</p><p>A REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL EM CAMPINAS 49 dade pressupõe uma relação entre desiguais: doadores e destinatá- rios. Duas idéias costumam permear as práticas A pri- meira é de que a atenção é "de e a segunda idéia é formulada nos seguintes termos: "é melhor isto do que nada", produzindo uma invalidação de qualquer A critica a este modelo levou instituições pare uma nova condi- 2 ção, a saber, de Organização Não Governamental (ONG). Tal postu- ra expressou-se na elaboração da Carta Magna de 1988, em que o A REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL reconhecimento dos direitos civis e sociais atingiu a plenitude devi- EM CAMPINAS do em grande parte ao trabalho politico de organismos não governa- mentais juntamente com o movimento sindical e movimentos popu- lares. Quando o homem em condição de pobreza ou exclusão social passa WILLIANS A. H. VALENTINI JR. à condição de sujeito de direitos, os sentimentos humanitários pas- CENISE MONTE sam a se expressar pela solidariedade. modo de perceber o outro é de relacionamento entre diferentes transforma-se Tal transformação facilita o questionamento dos dispositivos de exclu- O são social e recoloca a questão da reabilitação psicossocial na pauta Serviço de Saúde "Dr. Cândido Ferreira" (SSCF) e o proces- das so de co-gestão instituição e prefeitura municipal - iniciado em A passagem da caridade (negação de direitos) para a solidarieda- maio de 1990, em Campinas -SP, o locus de nossas de (o louco enquanto sujeito de direitos) e acompanhada de múlti- Pretende-se articular neste artigo experiência em reabilitação plas transformações que atingem as representações sociais e os pro- psicossocial e o conceito de jetos. Substitui-se o dos conflitos sociais realizado pelo SSCF tem seu e seu desenvolvimento marcado pela manicômio por modelos alternativos abertos e participativos. Além Este caráter sempre permitiu uma articulação direta ou disso, o modelo de conhecimento abandona o ponto de vista natura- conveniada com o sistema público, visto que a clientela a que se lista para assumir o ponto de vista fenomenológico e cultural. destina não difere da clientela dos hospitais psiquiátricos públicos Com a cidadania, emerge um novo olhar para a subjetividade ou privados visto que a singularidade abre a discussão sobre os vínculos, a se- A caridade contém um desejo de assistir, mas convive, muitas xualidade, a expressão, a convivência familiar e Esta- vezes, pacificamente com a negação de mos nos aproximando de pensar sobre o direito à ternura (Restre- no contexto para suprimir a não-oferta ou a po, reconhecendo a importância da afetividade para a saúde oferta irregular de serviços no campo da Seguridade Social. A cari- Um conceito fundamental pare o processo da reabilitação e o de RESILIÊNCIA: contribuição do conceito enquanto perspectiva em Superintendente do Serviço de Saúde "Dr. em Reabilitação SP, Brasil, e membro da World Association for Psychosocial Este termo pertence originalmente ao campo da física, e significa: Psicóloga Docente do Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP-USP "propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo defor- e membro da World Association for Psychosocial Rehabilitation mado é devolvida quando cessa a tensão causadora da deformação elástica". Enquanto conceito psicológico tem sido utilizado para</p><p>50 VALENTINI JR. & VICENTE A REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL EM CAMPINAS 51 designar a capacidade de alguns individuos de enfrentarem adversi- e de caminhos de resolução. modelo habitual utilizado no dades acumuladas e stress sem para seu desenvolvimento mio é o modelo do dano. A observação, o registro, o diagnóstico e (Rutter, 1985, Losel et 1994). sido estudados prognóstico centram-se nas nas nas tanto fatores individuais quanto psicossociais (Dablin et al., 1990; Esta visão tem condicionado as perspectivas de resolução dos pro- Dunn, 1992) que permitiriam a determinadas pessoas não adoece- blemas em profecias negativas, criando um "futuro anunciado" rem quando submetidas a condições (Didonet, 1993). Tal fenômeno se manifesta, por exemplo, na forma Mais do que discutir os fatores, ou fixá-los na condição de risco de pensar sobre a evolução da psicopatologia, nas perspectivas para ou de proteção, a evolução do conceito passou a enfatizar os meca- os pacientes que oscilam entre o embotamento afetivo, traços resi- nismos e as dinâmicas envolvidas (Luthar, 1993). duais e cronificação. Obviamente, o ponto de vista naturalista tem A família tem papel central em diversos tipos de adversidades papel fundamental na construção deste (Neighbors et al., 1993; Thomasgard & 1993) e de ambientes Com o conceito de o modelo deixa de ser o dano e estressantes (Goodyer, 1990; Blanz et al., 1991; Arnett & Balle- passa a ser o do As considerações sobre os problemas são Jensen, Também, pode promover a resiliência em seus mem- acompanhadas do reconhecimento de possibilidades de enfrenta- bros e em si própria enquanto grupo (Fonagy, et 1992; Dubois, Substitui-se a profecia sobre o futuro centrada na doença et 1992) pelo reconhecimento das diferenças individuais, da variedade de processo de reabilitação deve pensar as condições adversas tipos de rede de pertinência dos sujeitos, pela análise das condições enfrentadas pelos pacientes antes, durante e após a internação. e propostas dos projetos pela dinâmica Do ponto de vista do "que-fazer", conhecer a dinâmica da pelo processo de desinternação, etc. cia com o objetivo de promové-la nos pacientes e nas famílias consti- A perspectiva terapêutica deixa de ser a de perdas profetizadas tui uma interessante perspectiva em reabilitação psicossocial. Do "cientificamente" e passa a ser a procura de recursos escondidos que já se sabe sobre resiliência, nos parece especialmente importan- (Saraceno, 1995) ou o reconhecimento dos recursos negados. te o conceito de Paradigma da Desesperança, de Seligman (Apud Neste modelo o futuro não é conhecido ou pré-concebido. Ele preci- Luthar, 1991): "quando as pessoas acreditam que elas são impoten- sa ser Esta construção fundamenta-se no sentimento de tes para controlar o que acontece com elas tornam-se passivas e esperança, que passa a ser coletiva quando está presente na equipe restritas em suas habilidades de Por outro lado, ou na instituição. quando os acreditam que os eventos e resultados são A substituição do modelo do dano para o modelo do desafio altera controláveis, o aprendizado da desesperança é evitado, e, ao invés imediatamente o processo de elaboração de prognóstico, mas muito disso, tentativas ativas para vencer situações adversas são realiza- mais do que isto implica numa mudança cultural da equipe e da das". Neste caso, promove-se a instituição. o olhar pessimista fixado e reduzido nos problemas é Em nossa opinião, na transição do autoritarismo para a democra- por um olhar aberto que inclui universo de possibilida- cia, em termos macrossociais, e na transição da instituição total para des, a diversidade de necessidades e de modos de resolução. Com os equipamentos na comunidade, em termos microssociais, muito isto descronifica-se a equipe, a família pode participar de uma nova de desesperança tem que ser e não somente entre função, e a comunidade pode ser, não mais mera doadora, e sim internos, mas, muitas vezes, principalmente, entre as equipes de interlocutora, cooperadora. saúde mental. A desesperança se expressa no sentimento de impo- Pode-se dizer que a instituição torna-se resiliente quando passa a tência civil. Neste sentido a reabilitação psicossocial é um processo funcionar com a própria do modelo de que deve ser vivido por pacientes, equipes, famílias e comunidade. processo de transformação do modelo assistencial do SSCF Basicamente, com a concepção de resiliência e de sua promoção, a desesperança, ou o sentimento de impotência civil, propõe-se uma mudança de modelo de interpretação dos problemas por meio do modelo de gestão, pelos projetos terapêuticos individu</p><p>52 VALENTINI JR. & VICENTE A EM CAMPINAS 53 ais e pela interação com a Desde o inicio as proposi- mobilizados. Progressivamente, os paciente foram incluídos ções foram dirigidas no sentido de incrementar as trocas entre todos nos acontecimentos coletivos - na feira de artesanato, no bloco os Estão contidos nas trocas, o resgate do poder carnavalesco, etc. Além disso, por meio do trabalho (remunerado) deliberativo, a elaboração de contratos, a busca de consenso em que realizam em atividades terciárias e em chácaras e jardins, o torno de objetivos fundamentais, a convivência com as diferenças e cotidiano é repleto de interações. Mas, em nossa a flexibili- com os conflitos. dade da comunidade aumenta sensivelmente quando a televisão Incrementar as trocas e a diversidade na implica na divulga algum projeto ou programa da instituição. A população redefinição dos espaços e dos A divisão dos espaços em passou a sentir orgulho de ter em seu território uma experiência pátio masculino e feminino é rompidacom a introdução da convivên- que é respeitada pelos veículos de comunicação de massa devido à cia mista em todos os Como era de se esperar surgiu um defesa e promoção dos direitos humanos. processo de discussão interno sobre a sexualidade. o direito à A construção e manutenção da auto-estima (Rutter, que a convivência quotidiana entre homens e mulheres sempre tratado nosso ver tem estado presente nas dimensões individual, institucio- como risco passa a ser compreendido como universo de possibilida- nal e comunitária, consiste em outro aspecto fundamental no des interativas. meno de Do ponto de vista da gestão, a relação de convênio possibilitou Para finalizar, o conceito e a promoção da resiliência, individual e rever os estatutos da instituição, criando instâncias decisórias que coletiva, pode ter um papel fundamental nas experiências de desins- contemplam a participação de novos atores no processo. Assim, o Conselho Diretor conta com representantes dos funcionários, elei- tos diretamente, de Secretaria Municipal de de duas Univer- Bibliografia sidades (UNICAMP e do Governo do Estado, e do Conselho Deliberativo, que é exclusivamente composto por sócios 1. M. & Balle-Jensen, (1993) Family Relationships, Life Events and Child da Irmandade (eleitos entre seus pares). Child A entrada desses novos atores repercutiu sobre a forma de geren- Asioli, Saraceno, & Tognoni, G. Manual de Saúde São Paulo: Hucitec, ciamento. De um gerenciamento hierarquizado e centra- lizador, com chefias médica, de enfermagem e de finanças, passou-se B.: Shimidt, M. H. & Esser, G. (1991) Familial Adversities and Child Psyquia- tric Journal Child Psychiatric, ao gerenciamento no equipes multidiciplinares Dablin, L: Cederblad, Antonovsky, A. & Hagnell, (1990) Child Vulnerability tanto nas áreas-fim quanto nas áreas-meio planejavam, executam e and Adult Ad Psychiatric Scand, avaliam as ações de acordo com as necessidades geradas pelos Didonet, (1993) A Crianca de 0 a 6 anos no Brasil e seu atendimento educacional Projetos Terapêuticos dos pacientes. - questões a considerar. Revista de Crescimento Humano A partir de 1993, organiza-se mais um fórum deliberativo, desta CDH, Dubois, D. Felter, R. L: Brand, A. M. & Evans, E. G. (1992) A vez, com autonomia em relação à instituição. Trata-se da Associação Prospective Study of Life Stress, Social and Adaptation in Early Adoles "Cornelia Vlieg" composta por doentes mentais, familiares, técnicos cence. Child e demais interessados na questão da saúde Desde 1994, esta B. (1993) Growing with a Psychotic Mother: a Retrospective American ONG tem convênio com o SSCF, onde várias parcerias são reali- Journal 6 (20), Fonagy, P.: M.: Higgit, A. & M. (1992) The Emanuel Miller Memorial Lecture 1992. The Theory and Practice of Journal Child Psychol A comunidade circunvizinha - o Distrito de Souzas - procurou a equipe, no do processo, preocupada com a presença dos M. (1990) Family Relationships, Life Events and Childhood pacientes no espaço Foram realizadas diversas reuniões no Journal Child sentido de escutar, compreender e informar estes formadores de Losel, F.: Bender, D. & Bliesener, T (1994) Risk and Protective Factors in Adoles- cents from Multiproblem Paper in the 13th Biennial Meeting of the</p><p>54 VALENTINI JR. & VICENTE Internacional Society for the Study Behavioral Development, June July Netherlands uthar, Child (1991) Vulnerability a Study of High Risk Childhood (1993) Annotetion: and Conceptual Issues in on eighbors, cents and M. S. B. S. D. (1993) Resilients Journal M. (1994) El desrecho a Arango Interparental Journal to (1985) Resilience in Face Protective Factors and Resistence 3 British of Psychiatry, nal Psychiatry, of (1987) Psychossocial Protective Mechanisms CONTRATUALIDADE E REABILITAÇÃO (1993) Some Considerations Journal of PSICOSSOCIAL aceno, B. p. (1995) La fine Milano: RCS Libri & Grand Opere magard, M. & Metz, W. (1993) Overprotection Child Develo- ROBERTO TYKANORI Psychiatry and Human Gostaria de retomar algumas idéias, já apresentadas em outras ocasiões, a partir das quais podemos iniciar uma discussão sobre reabilitação. Refiro-me à idéia que, quando discutiamos a social, sempre pusemos a questão como um problema de produção d valor, referido aos pacientes. Partimos do pressuposto que, no un verso social, as relações de trocas são realizadas a partir de um valo previamente para cada individuo dentro do campo como pré-condição para qualquer processo de Est valor pressuposto é o que daria-lhe o seu poder Para ist apontávamos três dimensões que considerávamos trocas de bens, de mensagens e de afetos. No caso particular da pessoa que recebe o atributo de mental, enuncia-se simultaneamente a sua negatividade; esta enu ciação invalida ou torna negativo este valor pressuposto, anula-se seu poder de contrato: - os bens dos loucos tornam-se suspeitos, as mensagens incompreensiveis, : Coordenador do Programa de Saúde Mental da Prefeitura Municipal de San (1989-1995).</p><p>56 ROBERTO TYKANORI KINOSHITA CONTRATUALIDADE PSICOSSOCIAL 57 os afetos usuário ou Depois pela capacidade de se elaborar projetos, isto tornando praticamente impossível qualquer possibilidade de ações práticas que modifiquem as condições concretas de vida, de doente mental passa a ter positividade apenas na sua dimensão modo a que a subjetividade do usuário possa enriquecer-se, assim de doente, de suporte da doença. Em suma, anula-se qualquer valor como, para que as abordagens terapêuticas possam con- da pessoa que o assegure como sujeito social (de trocas). textualizar-se. Creio que podemos retomar estas idéias e colocá-las no plano da Entendemos a autonomia como a capacidade de um individuo o que seria reabilitar senão reconstruir estes valores, gerar normas, ordens para a sua vida, conforme as diversas situa- aumentar o poder contratual do usuário? Criar as condições de ções que enfrente. Assim não se trata de confundir autonomia com possibilidade para que um paciente possa, de alguma maneira parti- auto-suficiência nem com Dependentes somos to- cipar do processo de trocas sociais? Produzir dispositivos em que, a questão dos usuários é antes uma questão quantitativa: depen- desde uma situação de desvalor quase absoluto pos- dem excessivamente de apenas poucas Esta situação sa-se passar por experimentações, mediações, que busquem adjudi- de dependência restrita/restritiva é que diminui a sua autonomia. car valores aptos para o Ou seja, modificar o pressuposto Somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas mais de desvalor natural para um pressuposto de valor proposto coisas pudermos ser, pois isto amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida. Sem dúvida é fundamental que se inicie pela desconstrução do Creio que estas simples carecem de clareza. Assim you dispositivo que produz e mantém aquele desvalor, o dispositivo tentar ilustrar estas noções com uma história. Sem dúvida, não se manicomial. Os manicômios tem a capacidade de transformar qual- trata de um relato de caso com pretensão de retratar "a verdade" do quer manifestação de poder (positivo) por parte do paciente em caso mas apenas uma história... negatividade pura do sintoma. E por isto que é o lugar da troca zero. Há uns seis anos um caso nos foi apresentado como problema: Mas, em nossa experiência destes últimos anos, o grande desafio um homem havia sido preso, acusado formalmente por ameaça con- está exatamente ultrapassado este momento inicial, preencher a tra a vida de uma mulher. Este homem, que vamos denominar como lacuna gerada pela desmontagem daquele dispositivo. que fazer G.H., telefonava para a mulher e fazia ameaças no seguinte quando não há mais o manicômio? Não tem sido automática a "se você continuar me ameaçando, falando mal de mim por eu passagem de uma situação de desvalor para uma situação de partici- te pação efetiva no intercâmbio social. Ao contrário, é mais presente a Este tipo de ação/ameaça repetira-se por diversas vezes até que a tendência a estacionarmos em um patamar de assistência humaniza- mulher resolveu chamar a policia e armou uma situação para que o da, mais tolerante, eventualmente até mais belo, porém igualmente flagrante se efetuasse. o detalhe é que G.H. desconhecia a mulher e excluída e desvalida. Tem sido um esforço grande a busca por Talvez por morarem no mesmo bairro, por algum acaso, formas de atuação que indiquem um caminho para além deste ele a tivesse visto na patamar. Creio que é neste contexto que a reabilitação torna-se uma fato é que ele encontrava-se preso, em flagrante, acusado de temática importante. ameaçar a vida de uma mulher. o serviço de saúde mental foi Reabilitar pode ser então entendido como um processo de resti acionado por pessoas que o conheciam, sabedores da proposta de tuição do poder contratual do usuário, com vistas a ampliar a sua reintegração e defesa dos direitos de A primeira demanda autonomia. Como se daria este processo? E como alguém doente era clara: "é preciso tirar G.H. da cadeia, pois é um doente pode ser autônomo? Se não aceitavam a prisão, o mesmo não se dava em relação ao A contratualidade do usuário, primeiramente vai estar determina- hospital psiquiátrico. da pela relação estabelecida pelos próprios profissionais que o aten- Fomos procurados pelo advogado de G.H. que propunha que Se estes podem usar de seu poder para aumentar o poder do sua insanidade para livrá-lo do processo criminal. Ar-</p><p>58 ROBERTO TYKANORI KINOSHITA CONTRATUALIDADE E REABILITAÇÃO 59 gumentamos que se seguissemos aquele caminho, o caso termina- lo folgado, mimado vagabundo, prepotente, exibido etc. ria numa internação em manicômio judiciário, pois, de fato, G.H. era outros propunham como era. Neste momento foi um doente grave. que se buscasse uma negociação rio uma grande que durou semanas até que se a com o juiz corregedor, a fim de garantir o tratamento e, simultanea- proposição uma abordagem. mente, no processo a doença pudesse servir apenas como atenuante Até então, a relacionava-se com G.H. como nais um para a Entendiamos que utilizar-se do da inimputa- usuário, mais um Isto é, um louco paranóide, do qual deve- bilidade seria, além de ratificar a sua condição de não-cidadão, uma riamos garantir a os seus direitos, mas que gela sua operação de alto risco. o advogado, não obstante, seguiu a trilha da desvalia, acabava receber o desprezo da equipe. Afinal, mesmo inimputabilidade, mas conseguiu que G.H. fosse encaminhado para com tantas ele não melhorava, nem mesmo com apsicote- a Casa de Saúde Anchieta (ainda estava para um rapia. Podemos apontar aqui que a equipe reconhecia apenas de internação, como medida de segurança. Aceitamos a pela sua falta de valor. E, por isso, não o considerava, de fato, um custódia do paciente que o tempo de interna- sujeito de trocas, um assistido. Ou melhor, não se conta ção e as formas de tratamento seriam determinados pela equipe do que, mais que a paranóia, a grande questão era que G.H. não conse- hospital. guia estabelecer real, a não ser reiterando o Tratava-se de um caso de paranóia, clássico, com ideação deliran- seu lugar de de exótico, de doente. As suas os te, auto-referida, idéias de grandeza, Após um certo tempo de problemas que não eram levados a sério, nem suas tratamento com neurolépticos, embora os sintomas mais floridos (delirios? Desejos?). Decidiu-se, então, por tivessem desaparecidos, a forma geral da paranóia não se modifica- uma revisão total do caso, procurando recuperar o sentido das suas va, como sempre. demandas, pesquisando o seu habitat, a sua história, os sonhos/ Optamos pela alta, pois G.H. já começava a incorporar comporta- fantasias a partir que deveria-se construir projetos práticos que mentos tipicamente manicomiais (dependência, manipulação, etc.) pudessem restabelecer o seu poder contratual. A equipe passaria a para continuar o seu tratamento através de um dos Naps, onde foi fazer as mediações necessárias para que tais projetos acompanhado durante anos, sem mais ter sido internado em hospi- efetivar-se. A isto denominamos "emprestar" poder contratual; isto tal psiquiátrico. utilizar o a delegação social, o saber reconhecido pela Tornou-se uma figura bizarra, pelas suas atitudes sempre pauta- sociedade aos profissionais, para possibilitar relações e das por idéias de grandeza. Passou a ser tolerado nos espaços cias renovadas aos usuários. Começando pela sua casa, que encon- públicos, depois até eleito para participar de conferências munici- trava-se em situação absolutamente irregular, seja do de vista pais dos mais variados Esta participação nos espaços formal, seja nas coisas mais concretas (falta de água, luz, comunitários, embora muito significativas, na realidade não iam limpeza) até projetos para se tentar alguma renda. As terapias passa- além da Afinal era um "louco com direitos". Isto foi ram a se orientar em função deste novo enquadre. Após alguns pelo trabalho de sustentação, de suporte, que o Naps pode meses, pela primeira vez, começou-se a notar mudanças importan- garantir por este longo Mas, a equipe, que não via grandes tes no hard core do seu comportamento paranóide. Na última Confe- progressos na do "paciente", criticava-se pelo "assis- Municipal de Saúde, G.H. foi eleito como delegado, porém a tencialismo". Buscou-se então organizar um processo sua participação não foi marcada pela bizarria, mas pelo respeito que tico, com vistas a enfrentar a doença, a modificar o seu compor- conseguiu Este processo desestabilizou a situação de G.H e da equipe, gerando uma situação de dificil manejo. Chegou-se a propor a expul- são de G.H., pois alguns membros da equipe passaram a considerá-</p><p>UM OUTRO MODO DE OLHAR 61 subjetividade imbricam-se trazendo fundamentais para a nossa A questão do fundamentalismo preocupa também a nós terapeu- tas pois contra o discurso dos fanáticos há que se opor um pensamento livre, leigo, vivo e múltiplo, com o máximo possível de traços escritos o que não é fácil, pois além das ameaças que chegam à morte, há os obstáculos colocados pelo Inconsciente de 4 cada um, onde nenhuma disciplina emancipadora é supérflua. Mas, quem é Outro na nova ordem mundial? o Outro comunista UM OUTRO MODO DE OLHAR reclama sua inserção no Eu, o "Grande Eu do deixando vago o lugar do inimigo. Mas poder uma sociedade sobreviver sem a imagem do inimigo é o verdadeiro cerne do liame social, uma vez JOÃO FERREIRA DA SILVA FILHO que toda ligação se funda, em algum ponto, sobre uma opressão. Mas quem ocupará então este lugar de ameaça que garante a "unida- de" do mundo? "A pobreza, a miséria, o ódio e a violência resultan- Assim, a ameaça deixa de ser e e passa a ser Gostaria de recuperar a de Fanon, originalmente social, étnica, cultural e religiosa, localizando-se espacialmente no Sul são todos aqueles que fazem parte dos 10 a 15% da psiquiatra, mas sobretudo revolucionário, para repensar questões população integrados ao sistema econômico mundial. A questão é que fazem com que hoje a tendo escapado ao colonialismo que não há como integrar esta massa, a modernidade seus proces- explicito, se debata com o fundamentalismo religioso segundo o sos produtivos não como o bode expiatório assim está psiquiatra argelino Benouniche: "não há, sobre o plano da dimensão histórica, a instância repetitiva de uma história que, ontem com o pronto: a origem geográfica, a cor da pele, a cultura religiosa, o modo de Isto é, não há mais um contato com o Outro ponto de colonialismo, hoje com o fundamentalismo religioso, coloca em encontro apenas adversidade, diferença, cena mecanismos de alienação coletiva"? A importância de recu- Estão eu proponho que escutemos a profecia de um psicótico. perar a história e a memória e neste texto a recuperação se dá Talvez encontremos algumas saídas para a ordem despótica a que através da história e da obra de Fanon é justamente a reintrodu- estamos submetidos. Uma civilização se mede e se julga pela manei- ção de um terceiro elemento que venha se contrapor ou servir de ra como aborda a questão do psicótico. Além disso, nós, enquanto mediador para o discurso puramente imaginário, integralista. drama do colonizado, e sobretudo do intelectual colonizado, é como terapeutas de psicóticos, somos os garantidores da emergência progressiva de uma ordem pacificadora. No fundo, o psicótico sofre recuperar a cultura nacional, sem no entanto cair na exaltação de algum Como construir, mais do que se inicialmente uma dilaceração, verbalizada apenas depois, dos confli- esta nova identidade cultural e social? E ainda Benouniche que nos tos que agitam todo o sujeito A velha luta do Bem contra o Mal. Ultrapassar esta luta na maior parte do tempo, buscar um aponta então para a importância de pensarmos que o movimento de de harmonia do qual nós terapeutas temos que ser os significação dos fatores da cultura se faz em duas vias, uma das quais garantidores. Esta harmonização dos contrários, por falta de um reflete a subjetivação de significações sociais impessoais que pas- terceiro, conduz em geral o sujeito à profecia privada. sam a ser de um sentido pessoal. Assim, prática social e Mario, um psicótico profeta, pensa como Joseph Conrad que todo homem cometeu uma falta na vida, uma falta grave. E a partir disto Diretor do Instituto de de UFRJ. divide os homens entre aquele pequeno número que passa a vida</p><p>62 FERREIRA DA SILVA FILHO tentando reparar esta e aqueles que ocultam a falta, os "imó- veis". Para ele há quatro papéis a um homem na sua relação com o mundo: louco, rei, poeta ou capitão. Mário louco divide a loucura em duas: loucura-sofrimento e loucura-criação. Mas a verdadeira loucura universal é a ilusão de uma "pseudo-racionali- dade" do o que é o Homem? A pior loucura de fato é está totalização, este desconhecimento da falha interna do ser, pois é apenas do reconhecimento desta falha que se poder germinar uma 5 loucura de criação pacificada. o Mario poeta recita o poema de seu destino e acredita que todo homem deveria viver sonhando a sua VAZIO VIVO vida e transmitindo este Isto daria à humanidade a imortali- dade, pois se o homem é mortal, o sonho não é. o Mário capitão é aquele que acredita que "toda a arte do capitalismo consiste não em guiar um navio, um grupo, mas em se deixar guiar". Todos os LULA homens são vítimas de erros fatais de sistemas dos quais eles não sabem como sair. A única possibilidade é um sonho de sabedoria ao qual cada um deve se conformar para ser seu próprio salvador. A partir disso, é conveniente dispor sua vida de acordo com esse A arte sempre ocupou um espaço significativo entre Cada um poderia então trabalhar. Cada um se tornaria capi- interesses. E como no mundo ela perdeu a pr Eu concluo constando que ao longo do périplo de novas vidas, de seus limites, aproximando-se do gesto criativo em si, bus nossa longa frequentação a loucura nos ensinou a situar o avesso do tocar em forças sociais, psicológicas e corporais, mundo onde a maioria o direito. E a produzir "uma revoltação criar formas interpessoais de comunicação, tendo a arte con nestes tempos de tempestades quando ocorre a Anunciação". trumento. o contato com Nise da Silveira me fez levar essas nio Conselheiro). riências para um trabalho com esquizofrênicos em h Lá, a solidariedade tão especial que senti para Bibliografia pessoas fez com que me entregasse, com paixão, na busca d nhos de para aqueles que sofrem uma experiência psic Benouniche, A. (1994) Fanon, histoire, Na busca de acesso às vivências psicóticas, na muitas informações teóricas existentes, tentei ver a essên coisas, tomando minha sensibilidade como principal instrum trabalho. Só assim poderia fazer a ligação entre o sentir e o entre a arte e ciência, através do meu olhar próprio, condiçã pensável para que eu não perca minha identidade criadora. Esse "olhar" direto fez com que o corpo fosse escolhid ponto de partida, onde achava poder encontrar a forma mais mais concreta do sofrimento psicótico. Psiquiatra, Artista Plástico do Centro Psiquiátrico Pedro</p><p>64 LULA o VAZIO VIVO 65 Quando meu no Centro Psiquiátrico Pedro (Museu de Imagens do Inconsciente) começou a me revelar possibilidades na em imagem que embora compreensíveis, tinha uma conotação sin- busca de compreensão do sofrimento fui obrigado, por gular e desconsertante. Lembro-me que certa espontaneamen- divergência a Em caráter punitivo fui trans- te, disse que sentia o sofrimento como uma "navalhada na ferido para uma enfermaria de estrutura autoritária. Sentia-se bem quando, junto com ele, tentávamos traduzir essa sua Nessa enfermaria, a M1. conheci um grupo de profissionais que linguagem. como eu resistiam à intervenção do Governo Federal para sustar a Havia em Romilson uma queixa dificil de ser traduzida por nós transformação modernizadora que, na época, acontecia no que trabalhávamos na enfermaria. Era algo no estômago, talvez uma Com eles aprendi muito e também pude contribuir, transmitindo, dor, que provocava vómitos constantes. Dizia ter dentro de si um outras maneira de usar pequenos objetos de "vazio cheio" e pedia Consultou-se um clínico geral que pluri-sensorialidade táctil para abrir passagem através da fragmenta- diagnosticou gastrite e prescreveu a medicação descri- ção do corpo e preencher vazios da alma. ção do que sentia era tão subjetiva e tão estranha, que começamos a o Objetos Relacionais, criados por Lygia Clark, são objetos sem supor não ser o mal de natureza puramente definição alguma que encontram significado na relação que estabe- Não era ter uma dor. Romilson parecia ser a própria dor. Essa lecem com o corpo, "num dentro imaginário". Desta eles descrição de sensações era uma forma, talvez a única, de falar de si quebram a fronteira entre o corpo, o objeto e a fantasia, entre o numa linguagem concreta, a partir de seu corpo. Isso nos levou a dentro e o fora, entre o tempo e o espaço, etc. E assim criada uma escutá-lo na linguagem dos Objetos vivência de totalidade que, ao meu ver, é perdida na expe- Durante a "ESTRUTURAÇÃO DO SELF": riência Vem dai o meu interesse de experimentar os (Como é chamada a utilização dos Objetos no contexto Objetos Relacionais no hospital para um contato com co) psicóticos. 1. Na apresentação, ao primeiro contato com os Objetos, asso- ciou, imediatamente a si mesmo o Objeto LEVE-PESADO dizendo Dilatações e Contrações do Coração ser ele "leve pesado como eu". Em outro momento, no respectivo Objeto, "vazio-e-cheio como Alto e muito forte, Romilson tinha então 22 Era a sua Ao final da sessão, disse sentir-se como uma jarra: um buraco na segunda internação em hospital A primeira se dera cabeça e o corpo todo vazio, apontando a cabeça, o coração e os porque "enlouquecera" depois de uma grande paixão não corres- órgãos pondida por uma vizinha (segundo o relato de uma tia de quem A tensão em Romilson era de tal intensidade que pensamos em Romilson gostava muito). Entrou numa tristeza profunda e depois recuar. na incomunicabilidade que o levou à primeira internação. 2. Disse que passou o final de semana em casa da família; que não Inicialmente permanecia sempre na cama, indiferente ao ambien- havia feito nada e nada tinha acontecido. te ao seu redor. Obedecia à rotina do hospital e aceitava a pessoa Sentiu novamente o buraco na cabeça ao primeiro contato com os que lhe foi a indicada como terapeuta. Era como se fosse uma Colocamos uma pedrinha em sua testa por baixo do Objeto Tinhamos dificuldade em tal era a dificul- leve-e-pesado que tampava seus olhos. Depois de algum tempo dade em senti-lo. Dizia sempre que não ouvia, não via e nem sentia disse que a cabeça e que tinha areia dentro A parte pesada gosto ou cheiro e que "dormir era a mesma coisa que ficar acorda- do Objeto sobre sua testa, que vendava seus olhos continha justa- do", "que sentar era a mesma coisa que fica em pé". mente areia. Essa maneira incomum com que estruturava frases quando que- Colocamos sobre seu tórax um Objeto contendo água. Alguns ria falar de si era característica de Romilsom. Eram todas baseadas objetos leves, outros pesados sobre e ao redor da área genital e um objeto de pedra e ar sobre o umbigo. Durante boa parte da sessão</p><p>66 LULA VANDERLET o VAZIO VIVO 67 pressionamos a sola de seus pés e tocamos suavemente sua cabeça. Quando já se preparava para deitar, disse, alegre, que naquela Disse-nos que essa experiência fora totalmente diferente das tinha visto o céu, que o céu o tocara na sua cabeça e nos pés. Sentiu como se tivesse dentro de si uma estrutura de "papagaio- Assim que coloquei uma pedra em seu umbigo, informou que pipa" apontando para o tórax transversal e Em sentia agulhas saindo do seu umbigo. Sentiu um boneco explodindo outro momento disse que tinha um "peso de areia" dentro de si, da em seu tórax e fez no ar o desenho do boneco. Vivenciou, também, cabeça até a barriga. Em outro instante, disse que a areia no seu no peito, um objeto de ar com areia dentro. Surgiu novamente a corpo estava dentro de um saco de ar. Contou que se sentira tenso, cabeça de vaca. Mas, desta vez, viva e com cabelos na orelha. que suas pernas chegaram a tremer. Pela primeira vez diz que sentiu alguma coisa do mundo, o céu, Penso que nasce agora em Romilson uma estrutura de sustenta- justo na cabeça e nos pés, onde o tocávamos sempre durante a "Es- ção da imagem do corpo, o que me leva a crer que há uma constru- truturação do Self". ção em curso no relacionamento dele com os Objetos. Nas vivências Há também, pela primeira vez em seu corpo, um movimento de de Romilson é tudo muito Enquanto outros sentem os dentro para fora, tanto na agulha que expulsa, como no boneco que Objetos sumirem no corpo, ele descreve um buraco no corpo onde o explode. objeto se aloja. No caso, o que mais impressiona é que a matéria do 6. Continua muito apegado ao que ele chama de colocar os "seu objeto" é a mesma contida no Objeto Relacional. Nada é super- que ajudam e que não tem na clínica em que foi internado ficie, a comunicação parece se dar de um dentro para outro dentro. nem no Exército". Está sempre atento ao dia e à hora de fazermos a 3. Mantivemos o mesmo ritual da sessão anterior, inclusive o toque na cabeça e nos pés. Disse que sentia apenas uma madeira Conversamos um pouco. Contou um sonho em que estava ven- transversa dentro de si, de ombro a ombro, e sua cabeça como o dendo cigarros numa padaria onde já trabalhou o primeiro e esqueleto da cabeça de uma vaca morta. único emprego. Era um cigarro muito fino. Recordou seu trabalho Quando perguntamos se havia descansado, disse que se sentiu na padaria e demonstrou desejo de voltar a trabalhar lá. Pareceu-me bem enquanto deitado. Respondeu que "deitado é a mesma coisa mais disposto e mais alegre, sem aquele tom que sentado". Quando procuramos incentivar a que saisse no fim-de- Há ainda uma "distância" dificil de descrever, de identificar. semana e rever os amigos, respondeu que não faria o de Queixou-se de estar dormindo pouco porque uma "luzinha" fica sentir as pessoas". acesa em sua cabeça e que em seu peito algumas vezes aparecem 4. Pede-me insistentemente que encontre um "remédio" que o pequenas luzes "como aquelas de santo que tem nos centros de livre da "agonia" que sente. Todos os que foram prescritos não tive- candomblé". Queixa-se também de não ouvir. ram sucesso. Acreditava que se comesse vidro ou pedra ficaria cu- No contato com o "Objeto Relacional", manteve-se mais tranquilo rado. do que de Disse que seu corpo parecia uma "tábua" sem Na ausência da imagem do corpo onde situa o pensamento, a "maciez" e que permanecia uma luz acesa em sua cabeça. Como das emoção e a sexualidade, na impossibilidade de sentir o mundo outras vezes, ficou muito tempo passando o objeto de ar na orgânico, deve estar a razão de buscar ajuda no mundo mineral. Nos lugares onde antes existiam totais vazios (cabeça e 5. Antes de entrarmos na sala, Romilson estava ansioso por saber já existe luz imagem de que, no entanto, o perturba. quando colocar os em cima dele. Os "Objetos Relacionais" já não são incorporados tão concretamente Entrou pedindo um remédio que curasse tudo. Pede sempre de quanto antes. forma ingênua e insistente. Diz que não não ouve, não sente 7. Continua, mais menos "distante". Descobriu que tem cheiro nem gosto. E pede remédio. Disse que tentou comer um dentro de si um grande coração, que pulsa com força, que vai do pedaço de lâmpada quebrada em casa, mas que sua mãe não tórax até ao abdómen. Tem pedido sempre um remédio para poder sentir a sensualidade das imagens das novelas de televisão.</p><p>68 LULA VAZIO VIVO 69 No contato com os "Objetos pela primeira vez levan- 11. Mantém a mesma postura distante. Disse que teve um sonho tou-se e declarou que foi bom, Dizendo apenas que viu imagens que com uma mulher que ele acha muito bonita. Que atualmente os vergonha de sons, mesmo os cotidianos, esbarram em seu corpo A energia desordenada tem agora uma fonte propulsora orgânica: Durante a sessão, seu corpo manteve-se o coração. Creio que o trabalho da Estruturação do Self em Romilson 12. Tem sido muito dificil atender Romilson. Seu vazio nos esva- criou "órgãos" num corpo que antes era totalmente vazio. E isso deve zia tanto, que não fizemos ter, de alguma forma, relação com o aprender a sentir, o que possibili- 13. Está mais calado ainda. Diz gostar de vir a nossas sessões. Diz la o retorno da sexualidade como indicio de um corpo reconstruido que sua mãe insiste para que deixe o tratamento - ela não entende para o desejo e para o outro. Primeiro foi a matéria pura inorgânica, o que é "tratamento de Ela acha melhor que Romilson se contida no Objeto Relacional, que serviu a Romilson para referência a interne em um hospital. sua imagem de corpo. Agora o Objeto Relacional abre passagens em Durante esta sessão, Romilson sentiu o vazio na cabeça e no seu corpo adquirindo organicidade, parecendo ser a própria vida que peito. surge na forma de um contato afetivo com a realidade. Ao final da mesma, perguntei se queria deixar o De 8. Sua mãe nos contou do projeto de manter uma barraca de pronto disse que não. Que ainda queria sentir o "sabor da vida", e venda de ovos para Romilson e ele aceitou, desde que fosse ajudado que se ficasse sem os "pêsinhos" morreria. pelos Enquanto nossa pergunta era uma demonstração de desesperan- Ao término da sessão, disse-nos que foi "tudo Disse que só ça quanto ao resultado da "Estruturação do Self", nosso desejo de quando tocamos em sua cabeça, sentiu um vazio, Lembrou-se do dia encerrar, tal qual o da sua mãe, representava a morte. Fomos surpre- em que, ao sua cabeça, ele sentiu como se tivesse a cabeça endidos pela resposta de Romilson que transmitia sua perseverança de uma vaca peluda. e esperança, seu desejo de ainda chegar a "sentir o sabor da Foi nesta sessão que tivemos a conversa mais agradável com Percebemos o quanto há por detrás desse "vazio" e nos reanimamos Romilson. Embora persistisse o vazio, mostrou-se mais alegre. a continuar a ser suportes para ele. 9. Novamente "distante". Queixou-se de não ter amigos e de que 14. Mais bem disposto, disse que tomava um fortificante igual ao eu deveria lhe dar remédios para que fizesse amigos. da sua sobrinha e que "ficou Acha que tem "um menos" Ao final da sessão, informou que seu corpo esteve bem, sem dentro de Diz que não "comeu direito" quando e que por qualquer vazio, mas que não conseguiu relaxar. isso cresceu com "falta de alguma coisa". Ele e a Sendo que ela Nesse período, Romilson ficou mais tempo em casa do que no cresceu e "ficou bem", ele E a primeira vez que Romilson dá hospital. Recusou a experiência do trabalho na barraca de explicação de seu sofrimento a partir de sua História: ter um "me- Talvez a expectativa de sua mãe tenha feito com que se fechasse nos" porque não "comeu direito quando Vem dai sua dificul- dade em uma paixão não correspondida e sua fragmentação 10. Chegou se queixando de que fica em casa sem amigos, sem posterior. nada para Refere todo o seu problema a uma falta de força, de energia. Por Ao final da sessão, disse que fora bom. E nada mais. Quando, isso busca um remédio ou um fortificante anunciado na televisão. E durante a sessão, colocamos conchas junto a seus ouvidos, disse na televisão que encontra tudo aquilo que sempre quis "ver". E imediatamente que não precisava, pois já "tenho as conchas em através dela que espera encontrar os fortificantes que vão curá-lo. meus ouvidos, Ao final da sessão, disse apenas que foi bom, e que esteve bem as sessões, Romilson sente o corpo "preenchido": não 15. Chegou bastante alegre e muito queimado de sol. Contou, mais os vazios que o angustiavam. E no entanto, no seu cotidiano, com muito entusiasmo, que montou uma laje na casa da tia. Disse parece que continua a não sentir o mundo. que só começar é que foi depois foi tudo Que está</p><p>70 LULA VAZIO VIVO 71 aprendendo a paquerar as garotas e que isto também não outro, que por sua vez estaria ligado do ombro à cintura de uma Diz que está alegre porque teve uma felicidade e, fazendo gesto outra pessoa. Desta maneira, aquelas pessoas, ao vestirem os maca- com as nãos, mostrou como ela, sinuosamente, surgiu de dentro de criariam um "Corpo Coletivo" sem forma definida, com um seu corpo e nos envolveu.Está frequentando uma igreja protestante centro de gravidade "Corpo" que se desloca, se contorce, e diz receber boas energia do vai ao chão em busca deste CENTRO, sempre móvel, sem um Pela primeira vez adormeceu durante a sessão suporte que o defina. Recriá-lo permanentemente é o próprio senti- 19- Durante as últimas sessões, manteve um contato afetivo com do da proposta, um eterno vir-a- ser - o a realidade e julgamos oportuno encerrar as sessões com Seguimos acompanhando, até hoje, suas atividades em o Artista Sem Obra outras propostas Caso tivéssemos interrompido a experiência com Romilsom no A Expansão de Todos os Começos inicio, quando seu corpo revelou-se vazio, ficariamos com a imagem de alguém em Restaria apenas utilizarmos as "eficazes" terapi- Se uma terapia em Romilson consiste em "ensiná-lo a sentir as biológicas como forma de "taparmos os buracos". A instituição novamente", por certo ela não se restringiria a uma pedagogia de que criariamos para abrigá-lo poderia ter a forma de sentimentos, ela buscaria a possibilidade de criar para hospital-dia, mas não se do grande, velho e insano asilo. que vivia em um corpo Objeto Relacional cria Ao prosseguir, atendendo a um pedido do próprio Romilsom, fendas em seu corpo e, por entre se aloja num "interior imaginá- descobrimos que o desmembramento do corpo de alguém na expe- rio" adquirindo riência psicótica cria um vazio que impossibilita este corpo ser A "ESTRUTURAÇÃO DO de Romilson estava intimamen- vivido. Ao mesmo tempo este vazio é um espaço potencial criador ao te ligada à passagem de sua referência com um mundo devorar o mundo exterior em seu ventre-abrigo e metabolizá-lo para o mundo onde poderia novamente sentir. simbolicamente. A psicose é, também, uma vivência potencial cria- E o que é essa passagem senão a vida, quando alguém vive uma dora. Isto nos obriga a um novo olhar sobre a loucura, a uma nova psicose como morte? A vida como expansão de todos os começos ética. dos quais o sentir é apenas um deles. com suas dilata- vazio da experiência psicótica (agressividade e sofrimento) ções e contrações surge no interior de Romilson quando ele pode projeta-se sobre a vida cotidiana A instituição que sentir o universo no toque de nossas mãos em seu corpoe no nosso devemos criar para abrigar as pessoas que vivem esta experiência, afeto por ele. terá que revitalizar o cotidiano a partir da criatividade e afeto. A interessante também refletir que quando falamos de corpo, divisão do tempo e do espaço que organizará este cotidiano poderá sempre temos em mente algo com a aquisição de uma forma defini- ser feita através de oficinas criativas que exercitarão diversas lingua- da. No entanto, com Romilson, o corpo não se revela assim. Ele se gens, indo da palavra que se escuta e se fala ao corpo que se toca e se expande ese contrai, é tanto dentro quanto Jogo de envolve. ção que lembra, ao imaginá-la em um plano, as dobras e as borra- Em poucas palavras, este é o percurso que fizemos ao destruir a Enfermaria criando sobre ela o ESPAÇO ABERTO AO TEM- "Corpo proposta de Lygia Clark realizada em PO. traz uma imagem para mim esclarecedora para esta Nela, um grupo de participantes veste macações de cores diferentes que são ligados entre si por uma costura, mas com um de que uma pernade um dos macações poderia estar ligada às costas de um</p><p>PARTE III EXPERIENCIAS DE REABILITAÇÃO NO BRASIL</p><p>1 NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA GERALDO "No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho Nunca me esquecerei deste acontecimento Que ficou gravado Nas minhas retinas tão fatigadas Nunca me Que no meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho No meio do caminho tinha uma Carlos de Andrade A Associação Franco Basaglia é uma entidade sem fins lucrati- vos que reúne usuários, ex-usuários, familiares e trabalhadores de Saúde Ela foi criada em maio de 1989, com a finalidade de abrir um espaço de expressão em que seus participantes pudessem, de forma significativa, buscar melhorias no atendimento à Saúde Mental. Ela se propõe também a desenvolver projetos de trabalho em oficinas de artes e artesanatos, visando colaborar no processo terapêutico dos Vice-Presidente da Associação Franco Basaglia e representante dos familiares na Comissão da Reforma em 75</p><p>76 GERALDO PEIXOTO No MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA 77 Maiores detalhes técnicos sobre a Associação já estão sendo di- ainda, existe a violência do atendente despreparado, impaciente, so- vulgados pelos técnicos que dirigem essas Eu não te- brecarregado muitas vezes pelo número excessivo de nho condições de falar exclusivamente da Associação, sem falar do No CAPS e na Associação Franco Basaglia, ao contrário, existe a CAPS e do A minha fala é a fala do familiar. E a fala da confraternização, existe o lúdico, existe, também, prazer e alegria. E minha experiência. Do que aprendi com tudo que temos vivido eu e um espaço aberto onde muitos, que lá vão pela primeira vez, sentem- filho, paciente há vários anos do Centro de Atenção Psicosso- se embaraçados por não saberem quem é paciente e quem não é. cial, o CAPS Luiz Cerqueira. Os espaços de tratamento alternativo aos são exata- Por isso, é impossível falar da Associação isoladamente, pois ela é mente o oposto em termos de propostas de Nestes novos um desdobramento do próprio Ela é também uma forma al- espaços a terapia é continua. paciente está sempre em tratamento, ternativa ao tratamento oferecido pelos Hospitais mesmo quando isso não esteja acontecendo formalmente. Todas as E incrivel a diferença!!! E é sobre isso que falar. Sobre toda a suas manifestações são observadas e incorporadas ao processo tera- mudança, crescimento, melhora nas relações, enfim, ao contrário do que acontece nos fechados, de sobre tudo o que pode ser feito através destas novas formas substitu- rigida e insuportável hierarquia, no CAPS e na A.F.B. os canais de tivas ao manicômio tradicional. comunicação entre nós, usuários e familiares, e o corpo terapêutico Tudo dentro do Hospicio é massificado, não existe a individuali- estão sempre abertos. dade, não existe a pessoa. Tudo é feito em um único local, com auto- Meu filho esteve internado duas vezes em um "excelente" mani- ritarismo e rigidez. Os grupos são grandes, as pessoas são tratadas cômio e eu conheço muito bem essa situação. Eu sei do que estou da mesma forma, obrigadas a fazerem as mesmas Os horá- falando. Eu nunca podia dirigir-me ao Era obrigado a rios são muito Todas as atividades são impostas, sem con- aguardar que ele me chamasse. Muitas vezes, na minha ansiedade sulta alguma às preferências dos pacientes, sem se preocupar em de ter notícias mais claras sobre a situação, era obrigado a pedir a saber se aquilo que está sendo feito é do seu interesse, ou não. São interferência de algum funcionário implorando um atendimento pes- muitas as regras, não deixando espaço para que o imprevisível acon- soal. Quantas e quantas vezes estive à espera, nos corredores e nas As pessoas que ali trabalham não sabem como lidar com a de- ante-salas, aguardando uma passagem do médico para ob- sordem e com o inesperado, elementos corriqueiros no dia-a-dia das ter alguma informação. Se o CAPS e a Associação Franco Basaglia pessoas com problemas de Saúde não tivessem surgido nas nossas vidas, provavelmente eu ainda Testemunhamos exatamente o oposto na Associação Franco Basa- estaria sentado lá, sem a consciência de que existem outras formas glia e no CAPS, lugar onde cada paciente é um individuo, com sua for- terapêuticas. ma de ser, com sua personalidade, com suas características próprias. Tantas coisas definem as diferenças que existem entre esses dois o que acontece dentro do manicômio resulta de uma posição tipos de lugares: básica lá, as pessoas não são tratadas, são vigiadas. Por Enquanto um é lúgubre, em geral escuro, úmido e mal cheiroso, qualquer infração são punidas e às vezes, todos nós sabemos muito o outro é leve, claro, ventilado e bem cuidado. bem, de forma violenta e desumana. Existe a contenção, onde a Enquanto um serve alimentos de péssima aparência e sabor, o pessoa é amarrada em sua cama pelos pulsos e Existe a outro serve uma alimentação saborosa, balanceada e nutritiva. "Cela onde a pessoa é abandonada, sozinha, com a sua loucu- Enquanto em um o paciente come com colher, sob o argumento ra, por dias seguidos, sem cama, sem sanitário, sendo obrigada a de periculosidade, no outro todos os talheres são usados, sem esse dormir no chão frio sobre as próprias existe o "sosse- pressuposto. ga leão", existe a sedação, que nada mais é do que uma camisa-de- Enquanto um segrega e aprisiona por trás de muros, o força química, existe o choque elétrico, assunto tão polêmico, frente outro, de portas escancaradas, é a continuação da rua, e com ela se ao qual me posiciono de forma categoricamente E, mais mistura. Ou será a rua que é a continuação dele?</p><p>78 GERALDO No MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA 79 Enquanto em um o direito de circulação é limitado, em outro a oficinas e Projeto de Trabalho desenvolvidos pela Associação (que circulação é livre. dependem de verbas nem sempre disponíveis para a sua realização) Enquanto em um existe uma equipe distanciada do paciente, atingem plenamente seus objetivos o engajamento em "superior", controlando e disciplinando, no outro existe qualquer um deles é totalmente E disto resulta muito uma equipe circulando entre todos, interagindo todo o tempo pelos entusiasmo e alegria nessa participação. espaços da casa, sem a arrogância e a prepotência do conhecimento Todos estes comentários são o fruto do meu próprio desenvolvi- cientifico. mento destes anos que tenho vivido junto de meu filho, Lá, dentro do Hospicio, o contato com o mundo exterior é mini- participando ativamente de suas terapias. Depois da manifestação da Aqui, contato com o mundo é permanente e paciente doença, o que aconteceu quando ele tinha pouco mais de vinte anos, participante da vida, entrelaçado com os eventos do eu me transformei em outra pessoa. Lá existem planos e regras formais, projetos terapêuticos que Ele foi internado em um e tudo começou quando pela soluções primeira vez dolorosamente transpus aquele portão que separa e Aqui, não se trata a doença e sim a pessoa doente, de forma estigmatiza. Este, sem dúvida, foi um dos fatos mais marcantes de buscando-se a melhor solução, o melhor atendimen- minha vida. Tive a felicidade, após muita procura, de encontrar o to para aquele doente, único em suas aflições, dificuldades e ansie- CAPS e por conseguinte a Tive a felicidade de encontrar ali pessoas maravilhosas que tem Lá o paciente não sabe o que está sendo proposto para a sua nos ajudado muito nesse caminhar. Hoje sou um outro homem e meu filho seguramente também é. Aqui, ele participa de sua Todas as decisões são discuti- Acredito com a maior no trabalho desenvolvido pelo das e aprovadas em assembléia, CAPS e pela A.F.B. Não tenho dúvida da excelência do que é feito ali Lamentavelmente são pouquissimas as possibilidades que as fa- Precisamos preservar lugares como estes, criar centenas de mílias tem de encontrar estas formas alternativas de tratamento outros por este país E dificil dizer, em tão curto espaço de substitutivas ao hospital psiquiátrico. tempo, tudo o que temos vivido nesta entidade. Agradeço a Quando alguém é internado em uma instituição fechada além do todos, familiares e usuários, a Sandra, Jonas, Arnaldo, Ana direito à vida em liberdade também perde muitas vezes o direito às Luiza, Malu, Jairo, Adalberto, Silva, Sérgio e funcionários do CAPS e suas coisas de uso Será esta a razão pela qual muitos da A.F.B., por terem me dado forças e solidariedade nesta luta que preferem a nudez? nos irmana a todos. Não posso me esquecer de meus companheiros Na valorização do ser humano, único, individualizado que é o do S.O.S. Saúde Mental, Fórum da Saúde Mental e da Luta Antima- nisto repousa a diferença maior do que acontece no CAPS nicomial. e na Associação Franco Basaglia. o objetivo primordial da A.F.B. é Não podemos também jamais nos esquecer, enquanto estamos levar ao maior número de usuários e familiares a certeza de aqui em liberdade, daqueles que estão trancafiados dentro do Hospi- que existem formas alternativas de tratamento com a possibilidade cio, sem terem cometido crime algum. até de cura De que estas pessoas precisam ser tratadas com digni- A doença mental não autoriza ninguém a tirar a liberdade de seu dade, e em Nós nos recusamos a aceitar a loucura como um destino imutável, de que esta pessoa precisa ser excluída da Falei do meu ponto de vista pessoal, estou inserido na Associa- Também queremos abrir um espaço de encontro onde ção, foi principalmente isto que descobri lá: que se deve tratar a nós, familiares, possamos partilhar nossas ansiedades, informar so- pessoa que tem um sofrimento mental e não querer ficar colocando bre nossos sucessos, participar cotidianamente da terapia dos nos- em prática teorias que muitas vezes são somente teorias. filhos e manter viva a esperança. Os programas de Arte, as</p><p>DE VOLTA PARA CASA 81 pero como produto da fome e da miséria, obtendo como resposta o Hospital Através desse panorama surge a exigência da Reforma Sanitária e o reverso do modelo hopitalar-custodial com a progressiva diminui- ção de leitos, já pautando, assim, uma politica de desospitalização que viria a se desenvolver. E nesse contexto histórico que a Prefeitura Municipal de Angra 2 dos Reis, em 1989, implementa a reforma sanitária, rompendo com o modelo tradicional, individual e mecanizador, passando a garantir o DE VOLTA PARA CASA acesso da população aos serviços e privilegiando as ações coletivas e Prática de Reabilitação com Pacientes Crônicos preventivas, proporcionando uma assistência integral com enfoque em Saúde Mental social do processo de saúde. A partir de foi criada a primeira equipe de saúde mental que teve como principal meta a reorganização do atendimento na situa- ção de crise no Pronto Socorro do Hospital Geral, por ser este a GINA FERREIRA porta de entrada dos graves acometimentos psiquicos. Até então, toda a sorte de transtornos era enviada de forma indiscri- minada à internação chegando a prevalecer em quase 100% o número de A assistência no Brasil tem percorrido um longo Por não existir um hospital psiquiátrico em Angra dos Reis as caminho de transformação que nos leva a pensar sobre o que ante- internações eram feitas fora do município, em localidades distantes riormente, de uma forma equivocada, era chamada de ação reabilita- favorecendo a permanência destes casos por mais de dois dora, diante de uma visão em que o manejo técnico da psicose estava Esses longos periodos de internação eram provocados em sua maio- distanciado de uma prática e social. ria pela dificuldade de visitas dos familiares a fim de evitar os gastos modelo de intervenção medicalizador, o sistema manicomial com passagem, além de diminuir as despesas com o paciente no como função excludente do homem enquanto ser social e o elevado próprio Paralelamente ao treinamento de equipe do Pron- indice de internações psiquiátricas são as principais denúncias que to Socorro para o atendimento a situação de crise e à elaboração de se evidenciam durante esse percurso. Surgem a partir disso alterna- um roteiro de emergência foi organizado o tivas extra-hospitalares sem diminuir as ações medicalizadoras, as rio para a continuidade do tratamento, assim como foram implanta- internações e muito menos evitando a cronificação e o das as Equipes Distritais de Saúde Essas Equipes Deflagra-se a crise da Saúde Mental e percebe-se, então, que a são compostas por um psicólogo e um assistente social e são distri- preocupação no gerenciamento da saúde não dá conta de uma buídas nas unidades de saúde de cada distrito, onde uma de suas demanda que reflete a falência da organização social, num país onde funções é realizar visitas domiciliares aos casos de transtornos psi- a população tem como oferta de condições de vida o desemprego, o quicos impossibilitados de de aumento tributário, a impossibilidade do lazer e, sobretudo, o deses- Após a criação desses serviços o número de internações para Uma vez consolidados esses níveis de atenção, criou-se o Cen- tro de Atenção Integrada em Saúde Trata-se de um Coordenadora de Saúde Mental da prefeitura de Angra dos Reis hospital-dia para funcionando de 8:30 às 16:30 com Autora do Projeto de Reabilitação de Pacientes Crônicos "De Volta Para Casa". ofertas de atendimento ambulatorial, de oficinas de expressão criati-</p><p>82 GINA FERREIRA DE VOLTA PARA CASA 83 va e trabalhos produtivos (pintura, cerámica, tapeçaria, bordado, aqui ser acolhidos e socialmente reabilitados, de maneira que suas aula de expressão corporal, ginástica, música, oficina da palavra diferenças não sejam violentadas e que haja a possibilidade de onde um tema é escolhido para ser desenvolvido através da escrita, comunicação e respeito. Que possam, também, obter formas de nas quais são discutidos o cotidiano de cada paciente e produção adequadas à sua essência e ser reconhecidos como sujei- a relação destes com as oficinas). Atualmente frequentam o centro tos capazes de produzir, além de permitir-lhes recontactar sua natu- 188 usuários inscritos, mantendo uma média diária de 36 participan- reza através de sua terra, sua cultura, de maneira que reconheçam a tes em tempo integral. liberdade em si No entanto, este conjunto de ações não efetua de forma completa Portanto, foi criado dentro do Programa de Saúde Mental o a intenção de um programa da saúde mental baseado na de Projeto "De Volta para Casa"2, com o objetivo de resgatar os pacien- desospitalização, pois a questão não está na diminuição administrati- tes crônicos que há muito tempo estão fora do Município, tendo sido va de leitos, ou mesmo na subtração das AIH's (guias de internação) organizada, ainda, uma equipe com a responsabilidade de emitidas pelos municípios, mas sim em uma questão muito mais fazer o primeiro levantamento para determinar o total de pacientes ética e profunda que atravessa a organização social. E que, para nós, incluídos nessa condição. significa questionar o teor terapêutico das internações de longa Esse levantamento a principio está sendo feito atrarés da averi- permanência e propiciar a volta daqueles que, considerados doentes guação das guias de internação (AIH's), constantemente renovadas, mentais, deixaram de conviver com a sua comunidade para perma- principalmente as antigas guias de longa permanência. A partir necer nos pavilhões desse levantamento é estabelecido um cronograma de visitas às Não quero aqui remeter à qualidade da atenção dada à população instituições onde se encontram esses pacientes com a finalidade de de baixa renda nas Instituições ou qualquer outra realizar uma avaliação do programa terapêutico oferecido pelas Instituição mercantilista da loucura. Pois, seja qual for a atenção, é mesmas. Essa avaliação está centrada nos seguintes a evidente que a forma mais cruel e eficaz de promover a doença pesquisa da atenção, que abrange desde os cuidados básicos de mental é a exclusão social, quer pela falta de visão de um futuro higiene e alimentação até a evolução e inserção social. Aque- melhor causado pela desqualificação estigmatizada do sujeito e pela las instituições que não oferecem um programa que cumpra com os inércia atada à marca de uma improdutividade forçada, quer pela critérios têm seus pacientes removidos para outras duas instituições ausência do contato afetivo que se produz com o afastamento dos de referência do Projeto Espaço Aberto ao Tempo-CPPII e a Clinica amigos e de Volta Redonda. Paralelamente, é realizado pela equipe um levan- Não importa o tempo de internação, a qualidade da assistência, tamento das famílias desses pacientes no Município, objetivando ou se a Instituição reproduz o panorama de uma vida traçar um perfil e cultural assim como averiguar a social Importa, sim, mudar os conceitos de bem-estar estrutura emocional em que essas famílias se A finalida- social, de doença, de produtividade, ou mudar os paradigmas para de é oferecer um suporte que possibilite à família resgatar seus uma "sociedade feliz" onde a miséria deve se contentar com as afetivos com esses pacientes, propiciando o retorno à sua ofertas caridosas de casa e comida, fazendo dessa população eternos comunidade de origem. o preparo da receptividade da família em carenciados desprovidos de paixão. Digo isto porque considero que relação a uma possível alta é gradativa. Começa com visitas até a na essência humana esta implicita a paixão como forma de se rela- Instituição uma vez por semana e prossegue com a visita do paciente cionar com a vida, com o meio humano, com o trabalho e com a à sua casa nos finais de semana. que se deseja é que essas visitas sejam acrescidas de uma maior periodicidade no decorrer do pro- Não espero que as instituições onde permanecem nossos pacientes possam mudar suas formas de atenção. Mas cabe do Projeto "De polta para Gina Ferreira, Sobihe planejarmos fora delas os meios pelos quais esses pacientes possam Cláudia Pereira e Norma Braga de</p><p>84 GINA FERREIRA DE VOLTA CASA 85 de cesso, quando o paciente começar a o Centro nosso relato, de não pressioná-la Sob nenhu- Atividades Integradas em Saúde Mental CAIS de ma condição, mas sim aproveitamos a oportunidade para dissipar Essa ao CAIS irá aumentando de acordo com o qualquer sentimento ameaçador que viesse interferir em nossas mento de suas visitas à sua casa, até que esses pacientes au- relações. Mesmo porque estava claro para nós que não deveriamos permanecer definitivamente em casa, com o acompanhamento possam per- ter nenhuma intenção de forjar a alta de qualquer paciente sem que manente do Programa de Saúde Mental do a família estivesse preparada, ou pelo menos de E que, No entanto, para que esse trabalho tenha continuidade é também, não deveriamos transmitir a apologia pois rio que o acolhimento não se restrinja ao meio familiar, mas à toda para a maioria das pessoas o Hospital Psiquiátrico o E importante que sociedade repense seus valores "Protetor" que mantisha afastado do familiar o "Fantasma sociais, muita vezes responsáveis pela exclusão do doente da Pedimos ao familiar que falasse sobre o seu cotidiano e No do Projeto organizamos nas ruas de Angra vários suas preocupações, passamos a confortá-la através de escuta tros com a população através de Mostras de encon- Per- mais atenciosa e mostramos nossa disponibilidade em refletir juntos formance, Exposições de incentivando a população a sobre as questões existenciais que a afligiam. Nas reuniões seguin- debater conosco questões sobre a loucura e qual a melhor forma somaram-se outros familiares responsáveis pelos demais pa- Nesse momento entendemos que é hora de de cientes, proporcionando uma aproximação que se dava pouco a trar nossas atenções em discussões com a população organizada, concen- e Dessa forma, a primeira pessoa a ao grupo de dos Distritos portanto, realizarmos nossos encontros nos Conselhos de Saúde maneira tão assustada passou a convidar outros membros da família e a situação problemática foi se clarificando. Após as primeiras visitas da Equipe aos domicilios dos familiares, Esse núcleo familiar era formado por 10 pessoas, habitando o passamos a convocá-los para participar de uma uma vez espaço de uma casa de 3 cômodos, que minava água pelas paredes semana no objetivo inicial foi evitar o deslocamento por da devido a uma infiltração não identificada. Sem apresentar estrutura equipe que se dava de uma forma para vários Distritos emocional e movida pelas dificuldades do momento, a não do pois as famílias moravam distantes umas das Também, acreditávamos que o trabalho em grupo facilitava conseguia obter condições internas que a levassem a considerar a necessidade do paciente de fazer visitas à sua casa e muito menos o crônicos pela nhecimento de um problema em comum: "pacientes considerados o reco- seu retorno. Uma vez esclarecida sobre o direito de obter da Prefeitura meios Na primeira reunião, somente um membro familiar A principio tentou evitar entrar no recinto, mostrando-se desconfia- de melhor organização social e auxiliada pela equipe em algumas do e reagindo bruscamente ao meu Esse familiar ações de ordem como ir à Defesa Civil pedir a avaliação possui dois irmãos internados no mesmo hospital, há da infiltração, encaminhamento do Laudo Técnico ao Departamento de Habitação, cesta básica de material, etc., assim como passagens sem ter tido a possibilidade de voltar nem mesmo para nove uma visita. anos, Apresentamos nossas observações sobre os dois pacientes interna- para a visita do paciente, conseguimos depois de 9 anos de ausência, dos por ocasião de nossas visitas à sobre que os dois familiares internados passassem os finais de semana em quadro a relação destes com Instituição de internação casa, com a ao Um outro exemplo acontecia no mesmo grupo. A Ivone, que desejo demonstrado de retornar à Angra. No entanto, tivemos e a o se apresentava como tia de uma paciente internada há 12 anos e com curtos de intervalos entre uma e outra Instituição, queixa- Eventos Mostra sobre Hospital do fotografo Hugo va-se da responsabilidade que os outros membros da família lhe de Habitação e Desenvolvimento Social da PMAR intitulados "A a realizados em parceria com em a Secretaria impunham, uma vez que a mãe da paciente havia falecido, e o pai havia constituído uma outra família, abandonando a paciente no</p><p>86 GINA FERREIRA DE VOLTA PARA CASA 87 hospital. Os outros parentes justificavam a sua omissão usando uma a) medicação adequada; idéia de descrédito sobre a reabilitação da paciente, negando-se até b) oferta de exercícios fisicos que auxiliem a percepção do pa- mesmo a visitá-la. Com o incentivo do grupo a Sra. Ivone localizou o ciente sobre o movimento e o uso do corpo Gogos, ginástica, dança e pai da paciente que recebeu a nossa visita em seu Deve-se expressão corporal): dizer que o acesso ao local foi uma prova de fogo, pois se tratava do c) oficinas de trabalho produtivo, levando em conta o desenvolvi- Sertão do Frade, uma região montanhosa e recortada, que a Toyota mento do potencial criativo e a busca de sua própria essência, numa que nos conduziu alcançava até certo ponto, a partir do qual tivemos tarefa em que ele possa se identificar com o que faz; que seguir 3 km e meio a pé, subindo e Mas o importante d) lazer (como uma das instâncias sociais que se perde durante a é que através dessa visita, somado ao fato dos familiares passarem a internação, digo isto por considerar moradia, trabalho e lazer três receber o nosso auxílio para exames de saúde, tanto para o pai da instâncias paciente quanto para a esposa e mais encaminhamento psicológico e) Inserção social, propiciando a interação do paciente na comu- para um dos filhos com dificuldade de aprendizagem na escola, a nidade (através de acompanhado por familiares ou algum desses familiares ao grupo ficou muito facilitada, Eles membro da Equipe, na periferia do hospital evitando dessa forma o passaram, também, a receber financeiro para as passagens, o isolamento). que possibilitou a manutenção de visitas constantes à paciente inter- Temos através desses encontros constatado mudanças na condu- ta de alguns Por exemplo: 42 anos, 18 de internação, Verificamos que o grupo passou a ter uma importância maior do 14 sem visitar a família, removido para uma das enfermarias de base. que obter simplesmente as nossas observações. De forma especial Durante as nossas visitas de avaliação, Léo apresentava-se hipobúli- passou a contar com as experiências relatadas entre si. o hospital já (sem nenhuma vontade evitando o cumprimento de não era para eles um "santo questionavam-se as normas mãos, alegando estar doente e somando queixas generalizadas, com consideradas terapêuticas por essas as visitas mais uma fala perseverante (insistindo a todo o momento que fazia uso de frequentes aos pacientes passaram a ser motivo de orgulho. As toda a medicação). Não conseguimos, nos primeiros encontros que visitas dos pacientes ao núcleo familiar, começaram a ser prepara- permanecesse por 5 minutos, preferia ficar no leito, demorando-se das pelo grupo, que decidia as seguintes questões: pouco nas atividades externas. Qual a melhor forma de acolhé-los em casa; Entendiamos bem porque Léo nos repetia sua fala sobre o uso da Quem cuidaria da medicação; medicação, parecia que ao longo dos anos o único diálogo possível Quem os levaria ao CAIS, ou de volta à era com quem as prescrevia, restringindo o interesse sobre si à A permanência definitiva junto à família já começava a ser pensa- obediência de uma conduta técnica de seu antigo interlocutor. Mos- da, porém sem um prazo determinado, num tempo ainda desconhe- tramos que Léo poderia falar sobre outras coisas, sobre o que ele cido. Provavelmente este passo dependeria muito do nosso trabalho. pensava e sentia a respeito da vida. Queriamos ouvi-lo, saber de sua Sem dúvida nenhuma, somava-se a este grupo algo muito maior experiência e de seus Você sabe que pode sonhar? do que o número de frequentadores, somava-se algo que conferia a Durante os nossos cumprimentos, passamos a prolongar o toque eles a qualidade de um grupo de ajuda das mãos tentando de forma suave diminuir a sua aflição e, também, Dos nove pacientes visitados, através da emissão das AIH's, dois porque deveriamos despertar naquele corpo ignorado, o desejo de foram removidos para uma das enfermarias de base. primeiro por reconhecimento da existência. não obter a assistência adequada pela má qualidade do serviço, e o Passamos a montar juntos com a equipe do hospital (Clinica de segundo por ter obtido alta indevida. Durante as visitas de avaliação, Volta Redonda) estratégias que diminuissem a anulação de si mes- procura-se discutir com a equipe assistente os de reabili- mo, como por exemplo, saidas com os familiares pela periferia do tação que ao meu ver devem ser baseados em: Hospital com o propósito de comprar objetos de sua necessidade</p><p>86 GINA DE VOLTA PARA CASA 87 Os outros parentes justificavam a sua omissão usando uma idéia de sobre a reabilitação da paciente, negando-se até a) medicação b) oferta de exercícios fisicos que auxiliem a percepção do pa- mesmo a Com o incentivo do grupo a Sra. Ivone localizou o ciente sobre o movimento e o uso do corpo (jogos, ginástica, dança e pai da pacienteque recebeu a nossa visita em seu Deve-se dizer que o ao local foi uma prova de fogo, pois se tratava do expressão c) oficinas de trabalho produtivo, levando em conta o desenvolvi- Sertão do uma região montanhosa e recortada, que a Toyota mento do potencial criativo e a busca de sua própria essência, numa que nos alcançava até certo ponto, a partir do qual tivemos tarefa em que ele possa se identificar com o que faz; que seguir 3 km emeio a pé, subindo e subindo... Mas o importante d) lazer (como uma das instâncias sociais que se perde durante a é que através dessa visita, somado ao fato dos familiares passarem a internação, digo isto por considerar moradia, trabalho e lazer receber o auxílio para exames de saúde, tanto para o pai da instâncias sociais); paciente quanto para a esposa e mais encaminhamento psicológico e) Inserção social, propiciando a interação do paciente na comu- para um dos filhos com dificuldade de aprendizagem na escola, a nidade (através de saídas acompanhado por familiares ou algum desses familiares ao grupo ficou muito facilitada. Eles membro da Equipe, na periferia do hospital evitando dessa forma o passaram, a receber auxílio financeiro para as passagens, o isolamento). que possibilitou a manutenção de visitas constantes à paciente inter- Temos através desses encontros constatado mudanças na condu- ta de alguns Por exemplo: 42 anos, 18 de internação, Verificamos que o grupo passou a ter uma importância maior do 14 sem visitar a família, removido para uma das enfermarias de base. que obter simplesmente as nossas observações. De forma especial Durante as nossas visitas de avaliação, Léo apresentava-se hipobúli- passou a contar com as experiências relatadas entre si. hospital já CO (sem nenhuma vontade evitando o cumprimento de não era para eles um "santo questionavam-se as normas mãos, alegando estar doente e somando queixas generalizadas, com consideradas por essas as visitas mais uma fala perseverante (insistindo a todo o momento que fazia uso de frequentes aos pacientes passaram a ser motivo de orgulho. As toda a medicação). Não conseguimos, nos primeiros encontros que visitas dos pacientes ao núcleo familiar, começaram a ser prepara- das pelo grupo, que decidia as seguintes questões: permanecesse por 5 minutos, preferia ficar no leito, demorando-se Qual a melhor forma de em casa; pouco nas atividades externas. Entendiamos bem porque Léo nos repetia sua fala sobre o uso da Quem cuidaria da medicação; medicação, parecia que ao longo dos anos o único diálogo possível Quem os levaria ao CAIS, ou de volta à era com quem as prescrevia, restringindo o interesse sobre si à A permanência definitiva junto à família já começava a ser pensa- obediência de uma conduta técnica de seu antigo interlocutor. Mos- da, porém sem um prazo determinado, num tempo ainda desconhe- tramos que Léo poderia falar sobre outras coisas, sobre o que ele cido. Provavelmente este passo dependeria muito do nosso trabalho. pensava e sentia a respeito da vida. Queriamos ouvi-lo, saber de sua Sem dúvida somava-se a este grupo algo muito maior experiência e de seus sonhos. Você sabe que pode sonhar? do que o número de frequentadores, somava-se algo que conferia a Durante os nossos cumprimentos, passamos a prolongar o toque eles a qualidade de um grupo de ajuda mútua. das mãos tentando de forma suave diminuir a sua aflição e, também, Dos nove pacientes visitados, através da emissão das AIH's, dois porque deveriamos despertar naquele corpo ignorado, o desejo de foram removidos para uma das de base. primeiro por reconhecimento da não obter a assistência adequada pela má qualidade do serviço, e o Passamos a montar juntos com a equipe do hospital (Clínica de segundo por ter obtido alta indevida, Durante as visitas de avaliação, Volta Redonda) estratégias que diminuissem a anulação de si mes- procura-se discutir com a equipe assistente os princípios de reabili- mo, como por exemplo, saídas com os familiares pela periferia do tação que ao meu ver devem ser baseados em: Hospital com o propósito de comprar objetos de sua necessidade</p><p>88 GINA FERREIRA pessoal a partir de sua própria escolha. Nas vistas que se seguiram Léo já se mostrava mais disponível para as oficinas, e está saindo para lanchar com a família e ao cinema e já nos fala de sua participação nas aulas de teatro e na ginástica, bem como já resgata em sua memória as peças que realizava junto com o pai antes de adoecer. No entanto, negava-se a in para Angra, até o momento em que tomado de surpresa percebeu que não estava internado há cinco meses como pensava, mas há dezoito anos! A partir dai, tem passado 3 o dia de segunda-feira conosco, percorrido a o CAIS, tendo permanecido no dia anterior em sua casa com a INSTITUTO DE SAÚDE MENTAL Não sabemos do sucesso desse projeto, mas sabemos da obriga- ção ética de tentar Considerando-se que em Saúde Mental DO DISTRITO FEDERAL as formas de adoecer estão implicitas na história social do nenhum manejo técnico para nós está fragmentado de uma prática politica, que venha reconhecer e fazer respeitar os direitos do Doen- AUGUSTO DE FARIAS COSTA te Mental enquanto cidadão, respeitar a sua diferença e reconhecer MARISA PACINI a sua JAQUELINE MARIA FONTES Referências Amarante, P. D. (1992) sistemas locais de saúde e reforma ca. In: Saúde e Cidadania no dos Sistemas de São Paulo: Histórico Cerqueira, M.P. (1993) Emergência Dissertação de mestrado defendi- inicio de Brasília, o Governo do Distrito Federal criou da na Rio de estruturas de granjas destinadas a projetos agropecuários. Foram Delgado, (1987) Perspectivas da psiquiatria pós-asilar no In: então as Granjas do Torto, das Oliveiras e do Riacho de Saúde Mental NO Ferreira, (1994) Reabilitação de pacientes saúde mental ou localizadas em regiões apraziveis, com mananciais, florestas "caminho de para Rio de Janeiro, ricas em animais silvestres e flora diversificada. Com a eclosão do Brasileiro de 43(8). Rio de (1994) Centro de atividades integradas em saúde Golpe Militar de 1964. estas granjas foram requisitadas para servi- rem de residência oficial para os altos da presidência da República. Com o inicio do processo de redemocratização, em estas mesmas granjas foram destinadas à utilização social, sendo a do Riacho Fundo transformada na sede do recém criado Instituto de Saúde Mental (ISM). o unidade integrante da Fundação Hospitalar do Distrito Federal (FHDF), tem como atribuições regimentais a Médico Diretor Geral do Instituto de Saúde Médica Epidemiologista, Vice-diretora do Instituto de Saúde Chefe da de projetos e pesquisa do Instituto de Saúde</p><p>90 FARIAS COSTA, PACINI COSTA & SAMPAIO INSTITUTO DE SAÚDE MENTAL (ISM) 91 a capacitação de recursos humanos e o desenvolvimento de pes- ção da saúde integral possibilitando a participação da mesma nas quisa na área da saúde mental. Nestes seus oito anos de existência, diversas fases do processo terapêutico. o ISM vem desenvolvendo uma política de saúde mental inserida no movimento antimanicomial instalado a partir da década de Estrutura quando foram derrubados os muros do manicômio de na A Granja do Riacho Fundo, onde está instalado o ISM, tem uma A partir de 1993, o instituto amplia a sua estrutura, com a criação área de 26 Na sede da Granja, a Casa Grande, funcionam os do Centros de Estudos em Saúde Mental (CESM); Núcleo de Rein- consultórios, salas de reuniões, biblioteca e os setores técnicos. Em serção Social Franco Basaglia (NRSFB), e com organismos de su- outro prédios funcionam a Administração, a Diretoria, as oficinas porte como a Cooperativa Beneficente e Social de Saúde Mental terapêuticas e de capacitação e produção, o salão de convivência (a (CABESSA), e Conselho Comunitário do ISM. A estes organismos Querência dos Maragatos, nome herdado da condição de residência se juntam a Associação dos Amigos da Saúde Mental (ASSIM). oficial dos presidentes militares) e o ISM dispõe, na sua criada em 1988, e a Associação dos Usuários de Saúde Mental área externa, de quadra de esportes, piscina de água natural, lago e (ASSUME), em processo de fundação. fonte de água mineral. Funcionam, também na Granja do Riacho Naquele ano ainda, o ISM inova com seu plano de ação elaborado Fundo, a cooperativa CABESSA, a o projeto de fisiotera- por um grupo de trabalho interdisciplinar. Nos anos subsequentes, pia da FHDF e a Associação Terapêutica Educacional para Crianças foram promovidos Seminários Institucionais ao final de cada Autistas (ASTECA). cio, para a elaboração do Plano Diretor (94 e 95) norteador da A estrutura Assistencial atual compreende um hospital-dia, com de saúde do instituto para o ano seguinte, com a participação 90 vagas; um ambulatório, com 120 vagas, e Núcleo de Reinserção de usuários, familiares, corpo técnico-administrativo e os organis- Social, com 50 vagas estes dois últimos setores estão sendo fundi- mos de suporte já dos para a criação de um centro de Atenção Psicossocial (CAPS). hospital-dia do ISM atende a uma clientela oriunda de todo o Distrito Objetivos Federal: no CAPS o atendimento será regionalizado, como já aconte- ce no Desenvolver uma prática de atenção Saúde Mental em conso- náncia com a politica anti-manicomial; Clientela e Funcionamento Possibilitar ao usuário uma nova postura em relação a sua condi- ção atual, resgatando sua autonomia e capacidade de assumir novos A admissão no ISM é feita após triagem pelo Serviço Social e papéis; avaliação conduzida por um ou psiquiatra, referendada Expandir os limites intra-muro da assistência, comprometendo por um Colegiado Interdisciplinar de Avaliação. usuários, familiares e comunidade dentro de suas redes sociais com Este Colegiado é composto pelos avaliadores; Diretoria de Recur- o processo de reinserção e recontextualização psicossocial. sos Médicos Assistenciais; Chefia de Diagnose e Terapia, do Ambu- Proporcionar que toda atividade resgate a identidade, respeite a latório, do Núcleo de Reinserção Social, da Enfermagem e do Serviço dignidade do usuário e tenha caráter terapêutico Social, garantindo a interdisciplinaridade. Enfatizar a convivência como fator fundamental da essência tera- avaliador apresenta o caso e o seu parecer diagnóstico (DSM 3-R e e os demais membros discutem, questionando Possibilitar um aprimoramento contínuo da equipe, objetivando a pontos não esclarecidos e levantando a hipótese diagnóstica do grupo, bem como a conduta e o encaminhamento. Facilitar a interação e o envolvimento da comunidade na promo-</p><p>92 FARIAS PACINI COSTA & SAMPAIO INSTITUTO DE MENTAL (ISM) 93 atendimento psiquiátrico individual ou grupal (grupo de medica- Hospital-Dia (HD) reuniões de grupos de famílias e trabalho na rede social. ambulatório funciona como uma nova etapa do tratamento São admitidos no HD individuos com transtornos mentais dando continuidade ao HD, sendo que alguns individuos podem ticos e neuróticos graves) associado a no desempeno social entrar diretamente através de encaminhamento feito pelo Colegiado e funcional. Interdisciplinar de Avaliação, ou pelo Grupo de Inserção o HD funciona com 90 vagas, de segunda a sexta, e dá ao usuário a A frequência é semanal, quando o usuário está inserido em psico- possibilidade de manter os vínculos familiares e com a comunidade terapia de grupo e quinzenal, mensal ou bimestral, quando em que o cerca. Os usuários recém admitidos participam, inicialmente, acompanhamento essencialmente medicamentoso. do Grupo de Inserção onde permanecem por uma Este grupo tem como objetivo acolher o usuário e familiares, apresentar o Núcleo de Reinserção Social Franco Basaglia (NRSFB) espaço e os diversos serviços do HD. Ao término deste programa, o usuário será encaminhado para os grupos de referência D ou o NRSFB funciona com 50 vagas no periodo da tarde de terças e E denominados UNIR (Unidade Interdisciplinar de onde quintas-feiras. Sua clientela é formada por individuos oriundos do ficará até sua alta. Participam em cada no máximo 15 usuários HD, do ambulatório ou de outros serviços de saúde ou, ainda, da que são assistidos por uma equipe comunidade com necessidade de acompanhamento a médio ou a As atividades do HD estão distribuidas em: grupo-terapia, grupo de longo prazo. atendimentos individuais, reuniões diárias para avaliação o Núcleo tem como objetivo traçar plano de ressocialização das atividades, oficinas terapêuticas (Livre-Expressão e Ecologia): individualizado, interdisciplinar, mapeando as demandas e mobili- esportes, terapia corporal, trabalho nas redes sociais, atividades zando os recursos existentes, articulando-se com as redes sociais munitárias (passeios externos, atividades culturais e festas primárias e secundárias do usuário. São oferecidas atividades de e celebração de datas comemorativas, etc.); grupos de chegada e oficinas de capacitação e produção (jornal, marcenaria, bijouteria, saída (assembléia envolvendo todos os técnicos e usuários do HD); culinária, artesanato, ecologia, arte-integrada, música. teatro e dan- reuniões familiares e atendimentos individuais às Diariamen- São espaços estruturados onde o individuo tem a possibilidade te a equipe do UNIR se reúne para avaliação do de ser capacitado de forma criativa e não alienada, para a execução usuário deverá, em principio, entrar em contato com as várias de um trabalho remunerado ou não. Mais recentemente, foi incluida atividades do HD. Posteriormente, será feito um plano terapêutico a Equoterapia como uma das atividades individualizado onde o usuário e seus familiares juntos com os técnicos definem o objetivo do tratamento e as atividades nas quais o Equipe usuário irá se engajar. Este plano é avaliado o tempo atual de permanência no HD é de 10 meses, mas deverá o corpo técnico administrativo do ISM é composto por: 7 assis- ser reduzido com a implantação da reforma psiquiátrica no Distrito tentes sociais e 3 auxiliares; 6 enfermeiros e 18 auxiliares; 1 farma- Federal, quando serão criadas outras estruturas como o CAPS, que 1 médica epidemiologista; 1 médico pediatra/homeopata/ garantirão um fluxo de referência e psicoterapeuta; 5 médicos psiquiatras; 3 nutricionistas e 3 auxilia- res; 10 2 marceneiros; 2 auxiliares de arte-terapia; 1 Ambulatório administrador; 8 agentes 3 motoristas; 2 importante salientar que, além das atividades profissionais o ambulatório tem 120 vagas e funciona no da tarde nas disciplinares o corpo técnico-administrativo é estimulado a desen- segundas e quartas-feiras, com atividades de psicoterapia em grupo, volver a interdisciplinariedade, superando o modelo da multidisci-</p><p>94 FARIAS COSTA, PACINI COSTA & INSTITUTO DE SAÚDE MENTAL (ISM) 95 plinariedade, cuja concepção do individuo é vista de forma fragmen- Da Comunidade Terapêutica herdou-se a idéia do potencial tera- A interdisciplinaridade pressupõe uma aproximação e uma do Profissionais e usuários passam a se relacionar articulação das diferentes áreas do conhecimento em cada setor, em uma perspectiva dialógica, na dimensão do e não no "eu- reconhecendo que nenhum deles tem uma visão completa do indivi- isso" (Buber, 1974). Atentos ao risco de que o modelo de "vida ideal", em substituição ao "mundo levaria a uma isolamento do Esta articulação, troca de conhecimentos e ações possibilita a sistema, essa concepção foi posta de lado para dar lugar ao investi- distribuição de poder e de responsabilidade entre os membros da mento no retorno do à sociedade, favorecendo sua rein- equipe, mas não descaracteriza a especificidade do papel de cada serção e recontextualização social. um. A interdisciplinariedade, no entanto, ainda não se estabeleceu Assimilando o pressuposto básico da Anti-psiquiatria, de que a "In totum". Existem obstáculos que vão desde uma "interdisciplina- prática da segregação deva ser superada, pautou-se a de com crise na identidade interdisciplinar, até a homogenei- atenção a Saúde Mental pela de "liberdade com responsabilida- zação/universalização dos conceitos, muitas vezes o estabelecimento pleno da interdisciplinariedade passa pela A ênfase na importância do trabalho de promoção e prevenção da mudança do paradigma cartesiano para o de toda socieda- saúde, desenvolvida no serviço, referendou-se na Psiquiatria Comu- de. A troca, o diálogo, a humildade diante do desconhecido, são no entanto, não se ater ao conceito de "História instrumentos básicos para lidar com este desafio. Natural da Doença", superando a contradição do enfoque linear do adoecimento. Do Hospital-Dia para além da Comunidade Terapêutica A busca de uma verdadeira vida em sociedade, pautada pela Psiquiatria Democrática, apresenta-se hoje como o principal alvo ISM fundamenta sua atenção em Saúde Mental nos principios ideológico da proposta de assistência norteadora do ressaltan- anti-manicomiais de co- participação, co-responsabili- do a premência em sensibilizar, envolver e comprometer usuários, dade, desalienação com a ressocialização e recontextualização do familiares e a comunidade neste desafio. indivíduo no meio social. seu funcionamento não se restringe a um modelo preestabelecido, mas sim a uma e cuidadosa reflexão e aprimoramento sobre sua Vem nestes últimos anos criando seu próprio modelo, incorporando aspectos das expe- já existentes e adequando-as à nossa realidade Contextualizando o modelo então desenvolvido, na prática preco- nizada pela "Psiquiatria de Setor", incorporou-se à assistência a priorização do vínculo clientela-equipe, a prestação de serviço extra- hospitalar de cuidados (trabalho de rede social) e instalação de oficinas terapêuticas e protegidas. A partir do modelo de Análise Institucional, introduziu-se no tratamento a concepção de que a equipe é o melhor instrumento de trabalho e que a reunião de equipe é o melhor elemento na recons- trução da Por isso, busca-se que toda atividade seja terapêutica e que cada membro tenha uma atuação de agente pro- motor de saúde, possibilitando a horizontalidade na relação e rom- pendo com a fronteira entre profissionais e assistidos.</p><p>PROGRAMA MICRO-REGIONAL DE SAÚDE MENTAL 97 Lei 11.802 (Lei Carlão) pela Legislativa e a sua homolo- gação pelo governo do estado já vem, felizmente, A nossa expectativa ao elaborar este programa, jamais foi a de esgotar a padronização de condutas dos diversos profissionais que atuam nesta área assistencial, mas, sim, a de criar um mecanismo institucional que estabeleça parâmetros referenciais para nortear, 4 ou mesmo introduzir, a atenção à Saúde Mental em cada da nossa PROGRAMA MICRO-REGIONAL Considerando a heterogeneidade dos tanto em ter- DE SAÚDE MENTAL CONSÓRCIO mos de densidade populacional quando a estruturação sanitária, gostariamos de propor condições viáveis para que este programa INTERMUNICIPAL DE SAÚDE DA MICRO atinja seu real objetivo: uma nova ordem no entendimento e no REGIÃO DE SÃO MG atendimento ao cidadão acometido de patologia Esperamos que este documento, resultante da leitura e da visão critica das inúmeras experiências conhecidas no Brasil, até este momento, possa servir de suporte às práticas e avaliações do Siste- JOSÉ EDMO ma de Saúde Mental que ora Introdução Apresentação A necessidade de planejar, organizar e programar ações de saúde O tem sido uma demanda crescente nas últimas décadas na medida que ora vivenciamos de descentralização da conduta em que as necessidades sociais crescem e se tornam mais comple- e gerenciamento das politicas de saúde, transforma em verdadeiro xas. Para onde estamos caminhando? que queremos? Estamos desafio, em áreas como a da Saúde Mental, sem fazendo o suficiente para alcançá-lo? São questões que não estão nenhuma tradição de medir ou parametrizar seus episódios de aten- apenas na cabeça de meia de planejadores, mas preocupam ção, a tarefa de instrumentalizar os municípios na gestão do Sistema que se debruçam sobre a administração pública com a Unico de Saúde pautada em diretrizes nacionais de uma "Poli- intenção de responder, o melhor possível, aos problemas postos, ou tica de Saúde não marginalizadora e não seja, todos os envolvidos na prestação de serviços de saúde. Consórcio Intermunicipal de Saúde, criado com o objetivo de Para Matus os homens não improvisam, fazem geralmente um ampliar esforços para a melhorar as propostas de saúde destinadas cálculo que precede e preside a ação planejar seria refletir antes de aos municípios associados, atenuando as dificuldades de recursos fazer extrapolando desta forma o improviso e a antecipação que, se capacitação gerenciamento e baixo in- útil na medida que estimula a intuição e a vontade de fazer, pode não dice de acredita na elaboração e implantação de da forma mais eficaz e duradoura e, portanto, socialmente mais "Programa de Saúde Mental" que venha atender as necessidades um Como ele, estaremos chamando de planejamento o cálcu- prementes do momento, haja visto as mudanças que a aprovação da lo situacional sistemático que relaciona o presente com o futuro, o conhecimento com a ação tentando evitar os caminhos imediatistas, Coordenador de Saúde Mental da Região de São democráticos e parciais a que estamos todos tentados quando nos dispomos a lidar com demandas em saúde/doença mental. 96</p><p>98 EDMO Cou PROGRAMA MICRO-REGIONAL SAÚDE 99 A idéia não é criar uma camisa de força queiprisione técnicos em serviços de saúde, englobando regiões urbanas e rurais, através de números e estatísticas, mas sim, intrumentos de qualifi- "filtros" assistenciais adequados. cação do problema e respectivas planos e metas 3. Realizar investigações epidemiológicas, que permitam bem circunstanciados, que uma vez seconstituem em cer melhor os problemas nesta área. rosos instrumentos democráticos de controle social dos técnicos 4. Incorporar atividades de saúde mental nos serviços de envolvidos e dos usuários do sistema, que ter claro o que se saúde, com vistas a alcançar cobertura a toda a população de risco. pretende alcançar, participando ativamente na sia construção. 5. Incluir ações de prevenção primária, secundária e de Numa área em que não se tem tradição de explicitar o que se Saúde Mental em cada uma das atividades de que se execute. pretende, sob a alegação de que se tratam dequestões subjetivas, Para consecução de tais objetivos estabelecemos como estratégias: imprecisas, não consensuais, não deixa de o espaço ocupado por diretrizes da coordenação e Estadual de Saú- No Plano Assistencial de Mental, tendo a frente os doutores Domirgos Sávio do Nasci- mento Alves e Gisele Onete Marani Bahia, respectivamente; um precioso suporte para que gerentes e regionais de saúde estejam alertados a responder uma demanda de saúde que, a) Que o médico em seu atendimento diátrio possa sendo pelos estudos epidemiológicos atingir de treinado a diagnosticar e dar um atendimento primário ao 20% da população. menor. Os parâmetros aqui utilizados e propostos foram elaborados a b) Que unidades básicas de saúde também mereçam treinamento partir de estudos de diversos serviços já em funcionamento e o e supervisão com esta embasamento teórico formulado em levantamentos epidemiológi- c) Formação de equipe mínima nos municípios com população cos estruturados para a nossa Estão neste momento reu- acima de 10 mil habitantes, composta por 1 psiquiatra, 1 1 nidas diversas experiências assistenciais, desenvolvidas por assistente social ou enfermeiro, especializada e capacitada a prestar profissionais de saúde de diferentes categorias, transformadas em atenção parâmetros e cabe neste momento normativo do planejamento, pro- testá-los para que, mediante avaliações repetidas da sua SECUNDÁRIO eficácia, possam direcionar as práticas dos trabalhadores de saúde. Unidade ambulatorial especializada de maior como Diretrizes Gerais e Estratégicas referência secundária às unidades primárias municipais ou atenden- do demandas oriundas de outros que não a tenham desenvolvimento de um Sistema de Saúde que implique na abaixo de 10 mil habitantes). atenção e resolutividade dos agravos à Saúde Mental, pressupõe um Necessariamente, tais unidades deverão desenvolver programas planejamento, execução e avaliação a nível local, adequados à de- assistenciais para a clientela referida. quando houver ne- manda especifica de cada região, no nosso caso de cada cessidade, expansão para programas extra-hospitalares como oficina integrada a uma "Política de Saúde Mental". articulada pelo nível terapêutica, centros de atenção psicossocial, lares abrigados, etc. central, neste caso o consórcio, que possa: Tal serviço deverá se estruturar para contar com 2.000 pacientes 1. Estimular o diagnóstico precoce e o tratamento oportuno de aderidos, 1.320 atendimentos/mês em equipe composta de todos os pacientes nesta área, onde a estratégia se baseia, funda- tras (3), assistente social terapeuta ocupacional mentalmente, na elevação da cobertura e enfermeiro fonoaudiólogos visitadores domiciliares (2), 2. Atender de maneira adequada a toda demanda espontânea em técnico em enfermagem (1) e auxiliar (1).</p>