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<p>PARA 0 ENSINO SUPERIOR PORTUGUES CARLOS ALBERTO FARACO</p><p>Direção: ANDRÉIA CUSTÓDIO Editores TOMMASO [UFMG] CELSO FERRAREZI JR. [UNIFAL-MG] Diagramação e capa: TELMA CUSTÓDIO Revisão: THIAGO PASSERINI CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F225h Faraco, Carlos Alberto História do português / Carlos Alberto Faraco ; editores científicos Tommaso Raso, Celso Ferrarezi Jr. - 1. ed. São Paulo : Parábola, 2019. 192 p. ; 23 cm. (Linguística para o ensino superior ; 3) Inclui bibliografia ISBN 978-85-7934-164-9 1. Língua portuguesa - 2. Língua portuguesa Variação. 3. Linguística histórica. 4. Sociolinguística. I. Raso, II. Ferrarezi Jr., Celso. III. Título IV. 19-56435 CDD: CDU: 811.134.3(09) Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária CRB-7/6644 Direitos reservados à PARÁBOLA EDITORIAL Rua Dr. Mário Vicente, 394 - Ipiranga 04270-000 São Paulo, SP pabx: [11] 5061-9262 5061-8075 fax: 2589-9263 home page: www.parabolaeditorial.com.br e-mail: parabola@parabolaeditorial.com.b Todos incluindo ou transmitida direitos por reservados. qualquer forma Nenhuma e/ou qualsquer parte desta melos obra (eletrônico pode ser reproduzida dados sem fotocópia permissão e gravação) por escrito ou da arquivada Editorial em qualquer Ltda. sistema ou ou banco de ISBN: 978-85-7934-164-9 do texto: Carlos Alberto Faraco, 2019. da edição: Parábola Editorial, São Paulo, 2019.</p><p>CAPÍTULO 1 Sociedade, estado-nação, língua, cultura Como ponto de partida, assumimos o grande pressuposto de que ninguém vive num vácuo. ser humano é caracteristicamente um ente social, um ente que vive em sociedade. 1.1 Sociedade Entendemos sociedade como uma totalidade complexa no interior da qual transcorre a vida humana em todos os seus aspectos (eco- nômicos, políticos, culturais e psicológicos); nela se dão as práticas coletivas dos grupos e das classes sociais. Ela é, por isso (e aqui estamos pensando, principalmente, nas sociedades industriais e pós-industriais contemporâneas), uma totalidade heterogênea, contraditória, simultaneamente integrada e fragmentada e em constante devir: heterogênea porque é constituída por diferentes grupos envol- vidos nas mais diversas atividades e manifestando os mais dis- tintos padrões de comportamento e concepções ideológicas; contraditória porque os distintos grupos e classes sociais sendo ocupantes de diferentes posições nas hierarquias socio- econômicas e nas consequentes redes de poder e dominação têm interesses e valores distintos que conflitam entre si; simultaneamente integrada (porque há fatores que agregam, como a ordem jurídica e o imaginário compartilhado) e frag- mentada (porque há fatores que diferenciam e dividem, como 15</p><p>HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto Faraco 16 as desigualdades econômicas, os desequilíbrios nos mecanis- mos de poder e as diferenças de concepções ideológicas); em constante devir porque as dinâmicas heterogêneas e con- traditórias das incontáveis atividades que ocorrem em seu in- terior lhe dão movimento no eixo do tempo, provocando mu- danças em suas configurações. Em outras palavras, as sociedades têm história. É no interior des- sas totalidades que as línguas existem. Elas são, por consequência, também heterogêneas, contraditórias, simultaneamente integradas, fragmentadas e em constante devir. Da mesma forma, é no interior dessas totalidades que se realizam as práticas culturais. Por isso, as culturas são também heterogêneas, contraditórias, simultaneamente integradas e fragmentadas e em constante devir. Vamos, mais adiante, expandir essa discussão sobre língua e cultura. 1.2 Estado-nação Desde que os modernos estados-nação se consolidaram a partir do século XVIII, há uma tendência, nos estudos de natureza sociológica, a associar sociedade e estado-nação. Ou seja, delimitam-se totalida- des sociais pelas fronteiras dos estados-nação. São estes entes que, em princípio, dão à sociedade seu ordenamento político-jurídico. Podemos, então, conceituar o estado-nação como o conjunto de ins- tituições através das quais se exerce o poder político em nome do povo (da nação) sobre determinado território e sobre a formação social que ocupa esse território. Na contemporaneidade, vivemos num estado-nação (é dele que re- cebemos a nacionalidade e a cidadania) em meio a outros muitos estados-nação. mapa político do mundo é, hoje, um mosaico colo- rido de estados-nação. Esse ente político, moldado na Europa ocidental em substituição ao estado dinástico e absolutista, se disseminou de tal forma pelo mun- do que acabou se tornando não só o principal modelo de ordem polí-</p><p>tica, como também a principal referência para organizarmos nossos estudos das sociedades, das culturas e das próprias línguas. Modernamente, desde o século XVIII, associou-se o estado à nação (ao povo) e não mais a um monarca (que, supostamente, exercia o poder absoluto por concessão divina). No formato dinástico e absolutista, que predominou na Europa en- tre os séculos XV e XVIII, o estado era patrimonial (entendido como propriedade da dinastia reinante); o monarca personificava o estado e legitimava seu poder principalmente pela doutrina da concessão divina. Os habitantes dos territórios dinásticos eram considerados súditos do monarca, a quem deviam lealdade de tipo pessoal (o mo- narca era, por vezes, tratado como o pai do povo). Numa tal configuração sociopolítica, o conceito de nação, confor- me surgiu no século XVIII, não fazia sentido. panorama mudou com o processo histórico, que foi transformando as concepções políticas e as formas de governo no correr dos séculos XVII e XVIII, processo que passou pela Revolução Gloriosa (Inglaterra, 1688), pela Revolução Americana (a guerra da independência dos Esta- dos Unidos, 1776) e teve na Revolução Francesa (1789) um de seus momentos cruciais. Desse processo resultaram o progressivo desmonte do absolutismo, o desenvolvimento da doutrina da soberania popular (ou seja, a con- cepção de que o poder político emana do povo e não de concessão divina), a instauração do constitucionalismo (a limitação do poder dos governantes por um conjunto de leis tendo no seu topo uma lei magna a Constituição do estado) e a compreensão da sociedade como composta de cidadãos detentores de direitos civis e políticos e não mais de súditos de um monarca. centro político se deslocou da pessoa do soberano para a entidade impessoal da nação ou do povo, entidades essas nem sempre clara- mente definidas, mas sempre imaginadas como totalidades coletivas e solidárias em que, por meio de vários instrumentos jurídicos, cul- turais e simbólicos, se dissemina um senso de pertencimento e de identidade nacional. 17 SOCIEDADE, LÍNGUA, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO 18 Carlos Alberto Faraco Em outras palavras, acredita-se que, sem um senso de identificação nacional, o sujeito moderno experimentaria um profundo sentimen- to de perda subjetiva. Ou seja, na passagem da condição de súdito de um monarca a cidadão de um estado, o sentimento de identificação nacional substitui, na impessoalidade do estado-nação, o vínculo an- tes pessoal com o soberano. E essas mudanças todas tiveram reflexos sobre a compreensão das realidades linguísticas. No estado dinástico, não fazia sentido falar em língua nacional ou língua oficial do estado. Quando muito se fazia referência à língua do príncipe ou língua do soberano sem, contudo, pressupor que ela fosse necessária e obrigatoriamente a língua de todos os súditos, considerando que não poucas vezes o domínio di- nástico abrangia populações de línguas diversas da do soberano. Com o surgimento do estado-nação, a unidade linguística foi, muitas vezes, posta como ingrediente fundamental da unidade e da identifi- cação nacional. Um povo, um estado, uma língua foi um slogan muito repetido no século XVIII e se tornou política de estado na França da Revolução de 1789. Ele também esteve diretamente agregado às ide- ologias nacionalistas do século XIX e, já no século XX, ao redesenho do mapa político da Europa depois da Primeira Guerra Mundial; à com- plexa questão linguística dos novos estados pós-coloniais surgidos de- pois da Segunda Guerra Mundial e dos vários estados que emergiram da derrocada da União Soviética e da na década de 1990. Para apreender melhor essa complexa realidade histórica e política, voltemos um pouco no tempo. estado moderno centralizado é uma instituição política que subs- tituiu, na Europa, a ordem feudal. Sua emergência teve várias causas e foi se concretizando em cada lugar em diferentes momentos e em diferentes formas. Pode-se dizer que o processo começou pelo sécu- lo XII/XIII e se concluiu no século XVIII. Na Península Ibérica, por exemplo, a centralização decorreu do processo da chamada Reconquista (como veremos em mais deta- lhes no capítulo 2, itens 2.1 a 2.3). A progressiva incorporação aos reinos cristãos do Norte dos territórios que estavam sob o domínio</p><p>deu origem a Portugal (1249) e Espanha (1492) como estados centralizados. Em outras partes da Europa (na França, por exemplo), foi mais deci- siva a expansão do comércio a partir dos séculos XII/XIII, que tornou obsoleta a fragmentação característica do feudalismo. A expansão eco- nômica foi impondo uma progressiva unificação dos mercados e, por consequência, fez emergir a necessidade de centralização do poder po- lítico e a concentração do poder nas mãos de um soberano absolutista. A centralização política foi também trazendo para o centro das aten- ções a percepção de que era preciso enfrentar a fragmentação lin- guística, própria da ordem feudal. Passou-se a defender a doutrina de que um estado centralizado deveria ter também uma língua uni- ficada. Em outras palavras, a centralização política fez com que se começasse a estabelecer vínculos entre língua e poder. A primeira manifestação dessa doutrina parece ter sido de António de Nebrija (1441-1522), autor da primeira gramática do castelhano, datada de 1492. No texto em que apresentou e dedicou seu trabalho à rainha Isabel de Castela, ele usou o célebre enunciado: "A língua é companheira do império", ou seja, língua e poder caminham juntos. No entanto, o estado europeu moderno só vai desenvolver mais siste- maticamente políticas impositivas de uma língua depois da Revolução Francesa de 1789. Antes disso, porém, vários eventos foram criando condições para que essas políticas pudessem ocorrer a partir do fim do século XVIII. Trata-se de um conjunto de eventos que puseram as línguas vernáculas em primeiro plano, descartando, progressivamen- te, o uso do latim como a grande língua de cultura da Europa. início da escrita da documentação jurídico-administrativa e nota- rial nas línguas vernáculas (em progressiva substituição ao latim) em vários pontos da Europa na virada do século XII para o XIII foi um desses eventos. 0 uso na escrita das línguas até então apenas faladas lhes ampliou o prestígio social. Começaram também a ser traduzidos para elas textos da antiguidade clássica escritos em latim (por exemplo, as obras do grande orador ro- mano Marco Túlio Cícero). Ao mesmo tempo, começou a haver traduções CULTURA 19</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto Faraco 20 entre elas (como, por exemplo, a tradução, no século XIII, do francês para a língua vernácula de Portugal, do Romance do Graal, narrativa dos feitos do rei Artur e seus cavaleiros na busca do Santo Graal). A invenção da prensa com tipos móveis por Johannes Gutenberg (1400-1468), na metade do século XV, foi certamente um dos even- tos com maiores consequências nesse processo todo. A nova tecno- logia se espalhou rapidamente pela Europa. Trouxe como resultado a impressão de livros em grande escala, ampliando significativamente a circulação das informações e do conhecimento. Estava criada a cultura do livro que, desde então, permitiu uma grande reconfiguração da história da Humanidade, começando pelo desenvolvimento do Renascimento e da Reforma Protestante no sé- culo XVI, desencadeando a Revolução Científica dos séculos XVII e XVIII, motivando a Era do Iluminismo no século XVIII e lançando as bases do que viria a ser o desenvolvimento tecnológico do século XIX e seguintes. A expansão da economia do livro acelerou também o uso das línguas vernáculas. Na virada do século XV para o XVI, o conhecimento de la- tim estava restrito a uma porcentagem ínfima da população instruí- da. Assim, a maioria dos livros era publicada nas línguas vernáculas para alcançar um público mais amplo. Dessa forma, consolidou-se um processo que vinha dos séculos XII/XIII: a Era Moderna na Euro- pa é também a Era da vitória das línguas vernáculas. A Reforma Protestante, no século XVI, foi outro desses eventos que contribuíram para consolidar as línguas vernáculas na Europa. Os re- formadores entendiam que todos os fiéis deveriam ter acesso ao texto da Bíblia. Assim, desencadearam, nos países em que se tornaram he- gemônicos, um amplo programa de alfabetização da população e um grande ciclo de traduções do texto bíblico para as línguas vernáculas. A primeira dessas traduções foi feita para o alemão pelo próprio Martinho Lutero (1483-1546). Sua tradução do Novo Testamento foi publicada em 1522 e a da Bíblia completa em 1534. Esta tradução, pela sua qualidade estilística, se tornou a principal referência para a consolidação da norma moderna da língua alemã.</p><p>mesmo pode ser dito sobre a tradução para o inglês patrocinada pelo rei James I (1566-1625), conhecida pelo título Authorized King James Version (Tradução Autorizada do Rei James), publicada em 1611. É o livro mais publicado em língua inglesa e considerado um dos textos mais importantes para o desenvolvimento da cultura e da norma de referência do inglês moderno. Outras várias traduções foram feitas ainda no século XVI - primeiro do Novo Testamento (datas indicadas entre parênteses) e, em segui- da, do Antigo entre as quais se podem mencionar as seguintes: para o dinamarquês (1524), o holandês (1526), o sueco (1526), o islandês (1540), o húngaro (1541), o tcheco (1564). Em geral, essas traduções tiveram, pelo seu porte, um impacto cultural muito gran- de, sendo consideradas marcos fundamentais da construção da res- pectiva língua escrita em suas feições modernas. Os países em que prevaleceu o catolicismo romano demoraram a ter traduções autorizadas pela Igreja nas suas línguas vernáculas (oficial- mente isso só ocorreu a partir do século XVIII). Assim, as traduções para o francês (1535), o espanhol (1565/1602) e o italiano (1607) foram publicadas em países em que a Reforma era hegemônica. 0 mesmo ocorreu com a tradução do Novo Testamento para o portu- guês. Ela foi feita por João Ferreira de Almeida (1628-1691) e publi- cada em Amsterdam em 1681. Seu autor havia emigrado, em 1624, de Portugal para Batávia (atual Jacarta, capital da Indonésia). Essa cidade havia sido um dos muitos entrepostos portugueses na Ásia. Foi conquistada pelos holandeses em 1619 (que lhe deram o nome de Batávia) e ali estabeleceram a sede administrativa do seu império colonial. Ela se tornou o centro do poder holandês na Ásia e assim permaneceu até 1949, ano em que se constituiu a Indonésia independente, passando a cidade a se chamar Jacarta. Depois da conquista holandesa, continuou ali, como em vários ou- tros pontos incorporados ao novo império colonial, uma população de fala portuguesa. A ela se juntou João Ferreira de Almeida, Tra- balhou como pregador na congregação de fala portuguesa da Igreja Cristã Reformada e se dedicou a traduzir a Seu texto foi publi- 21 CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto Faraco 22 cado sob o patrocínio da Companhia Holandesa das Índias Orientais para uso das igrejas reformadas de fala portuguesa que a Companhia havia estabelecido em suas colônias asiáticas conquistadas aos por- tugueses no início do século XVII. Foi também o movimento da Reforma que contribuiu para instaurar o ensino nas línguas vernáculas. Enquanto os jesuítas ordem reli- giosa católica criada em 1534, dedicada principalmente à educação ainda organizavam o ensino em seus colégios em latim, os refor- madores propugnavam uma educação nas línguas vernáculas. A síntese dessa nova pedagogia foi dada pelo grande pensador da educação moderna, Jan Comenius (1592-1670), em sua portentosa obra Didactica Magna, publicada em 1627, não em latim, como até então era praxe, mas em sua língua vernácula, o tcheco. A versão em latim apareceu quatro anos depois, em 1621. A educação linguístico-literária concebida por Comenius colocava a língua vernácula no centro da educação básica, deixando o estudo do latim para etapas posteriores da escolarização. Apenas na metade do século XVIII (mais de cem anos depois de Come- nius) é que começou em Portugal a defesa efetiva do ensino da língua vernácula como primordial. pioneiro a fazer essa defesa foi Luís An- tónio Verney (1713-1792) no seu grande (e polêmico) tratado Verda- deiro método de estudar, publicado em 1746. Essa tese foi adotada, em parte, pelo marquês de Pombal (1699-1782), o poderoso ministro do rei José I, nas suas reformas educacionais, mas só se concretizou de fato, no sistema educacional português durante o século XIX. Voltando ao século XVI, é importante destacar o processo da gramati- zação das línguas vernáculas pelo qual se iniciou a escrita de cas, dicionários e ortografias para cada uma delas. A primeira ca do escrita por Fernão de Oliveira, foi publicada em 1536. temente Nesse momento histórico, as línguas vernáculas já estavam suficien- passou e produzir os instrumentos de gramatização a ser uma consequência natural desse prestígio sociocultural. tivo Como das parte desse processo, criaram-se Academias voltadas ao cul- línguas vernáculas e ao desenvolvimento daqueles instru-</p><p>mentos. A primeira delas foi a Accademia della Crusca, criada em Florença, em 1583, que publicou o primeiro vocabulário do toscano (já identificado como língua italiana) em 1612, trabalho que serviu de referência para vários dicionários posteriores de outras línguas. A segunda foi a Academia Francesa (Académie Française), criada em 1635 por iniciativa do Cardeal Richelieu (1585-1642), o poderoso ministro do rei Luís XIII e grande artífice do poder real absolutista na França. A gestão das questões de língua idealizada por Richelieu, isto é, a fixação de um modelo uniforme de língua para ser impos- to à sociedade, fazia parte da consolidação do poder centralizador e absolutista. A Academia Francesa publicou a primeira edição de seu dicionário em 1694. Dentro do mesmo projeto político, está também a criação da Real Academia Española em 1713, que, nos anos seguintes, fixou a orto- grafia do espanhol (1741), publicou a primeira edição de sua gramá- tica de referência (1771) e de seu dicionário (1780). Em Portugal, foi criada em 1779 a Academia das Ciências de Lisboa. Em- bora tenha, desde seus inícios, uma Seção de Letras, nunca se destacou na construção de instrumentos de gramatização do português. Basta lembrar que só publicou um dicionário sob sua chancela em 2001. As línguas vernáculas europeias, num espaço de tempo de aproxima- damente meio milênio - de meados do século XII ao século XVIII foram ocupando todas as chamadas funções sociais e culturais ele- vadas em substituição ao latim: passaram a ser usadas na escrita, na documentação jurídico-administrativa, nas atividades literárias e de tradução, na historiografia, no comércio, nas ciências, no ensino. Em consequência, foram também recebendo instrumentos de gramati- zação, com o objetivo de fixar-lhes normas de referência gramatical, lexical e ortográfica. Ao lado da unificação e centralização do estado, investiu-se na construção de uma língua para o estado. Se essa já era uma questão nos fins do século XV e no XVI, ela se acir- rou a partir da Revolução Francesa (1789), quando se estabeleceu um vínculo estreito entre língua e estado (com a difusão do concei- to de língua nacional e, depois, de língua oficial) e se desenvolveu a doutrina política de que o estado pode e deve legislar sobre a língua. 23 CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto 24 Na nova configuração sociopolítica do estado-nação, a unidade lin- guística foi posta, muitas vezes, como ingrediente fundamental da unidade e identificação nacional. Assim o foi na França da Revolução pela voz pioneira do abade Henri Grégoire (1750-1831). No início de 1790, um ano depois da Revolução, os camponeses do Sul do país começaram a praticar atos de violência por acharem que os decretos do ano anterior aboliam todos os tributos devidos ao dono da terra, sem perceber as sutis distinções que a Assembleia ti- vera o cuidado de estabelecer entre serviços pessoais e o que agora passara a ser obrigações de arrendatários. Em seu pronunciamento na Assembleia, Grégoire atribuiu esse mal- -entendido à ignorância da língua francesa numa região onde se fa- lavam variantes da língua occitana (provençal), típicas do Sul, ou 0 chamado patoá local (a palavra francesa patois, aportuguesada como é usada na França para designar variedades linguísticas locais ou regionais, em geral de origem rural, usadas apenas oralmente e sobre as quais costuma recair forte estigma). Era preciso, dizia Gré- goire, que a Revolução unificasse a nação através de uma ativa cam- panha de difusão da língua francesa por todo o país. Vale a pena repassar brevemente os eventos desse período, conside- rando que a Revolução Francesa abriu várias das sendas ideológicas que vieram acompanhando a consolidação do estado-nação moder- no no que diz respeito ao trato das questões linguísticas. Logo de início, diante do caráter multilíngue da França, a Assembleia determinou (em 1790) que a sua legislação fosse encaminhada a to- das as regiões do país e fosse traduzida para conhecimento das po- pulações locais sempre que a língua francesa não fosse de uso geral. francês não era, portanto, a língua de toda a nação, isto é, de todo o corpo político constitutivo da França. Não era, nesse sentido, a lín- gua nacional. No entanto, os revolucionários acabaram por definir que o francês deveria se tornar a língua nacional a se sobrepor a toda a diversidade linguística da França. Em 1792, por iniciativa do deputado François Lanthenas (1754- 1799), do Comitê de Instrução Pública, a Convenção Nacional apro-</p><p>you uma lei sobre a organização das escolas primárias na qual havia disposições especiais para o ensino da língua francesa. Se o artigo primeiro estabelecia que ensino público será por toda parte dirigido de maneira que um de seus primeiros benefícios seja que a língua francesa se torne em pouco tempo a língua familiar de todas as partes da República", os demais artigos determinavam em detalhes, para as regiões em que a língua francesa não fosse a língua familiar da população, a prática de uma educação bilíngue. Nenhuma dessas decisões legislativas teve, de fato, efeitos imediatos concretos: faltavam recursos financeiros para estabelecer a preten- dida rede escolar (o que só viria a ocorrer cem anos depois); falta- vam docentes qualificados para o ensino de francês e para o ensino bilíngue; faltavam igualmente pessoas com conhecimento suficiente de francês para traduzir os textos legais para as línguas locais. Des- se modo, ambas foram abandonadas em seguida e substituídas por uma legislação promotora exclusiva do monolinguismo. ano de 1794 foi particularmente pródigo na produção de relató- rios e diretrizes para alcançar esse objetivo nos quais, não obstan- te os poucos resultados práticos imediatos, se consolidou toda uma base conceitual sobre língua nacional - entendida não mais como língua da grei, mas como língua do corpo político constitutivo da Re- pública - e se lançaram os fundamentos da intervenção estatal em matéria linguística. Disso resultou, no fim do século XIX, o conceito de língua oficial do estado, no sentido da língua usada no funciona- mento dos poderes do estado. Já no dia 27 de janeiro de 1794, Bertrand Barère de Vieuzac (1755- -1841), em nome do Comitê de Salvação Nacional, fez um discurso na Convenção em que declarava guerra aberta às línguas regionais. Citava expressamente o bretão, o basco, o corso, o italiano e o alemão e se referia aos patoás em geral - "esses jargões bárbaros e idiomas toscos que só servem aos fanáticos e contrarrevolucionários" E acres- centava: "[são] línguas que perpetuam o reino do fanatismo e de su- perstições, asseguram o domínio do clero e dos nobres e impedem a revolução de penetrar nessas regiões e podem favorecer os inimigos da França". Convocava, então, os membros da Convenção a "destroçar esses instrumentos de dano e erro". 25 SOCIEDADE, ESTADO-NAÇÃO, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto Foraco 26 Já por ser "a mais bela língua da Europa", assim classificada por ele de início, fazia Barère a apologia da língua francesa acima de tudo, em razão de ter sido a primeira a consagrar os direitos do homem e do cidadão, a se encarregar "de transmitir ao mundo os mais sublimes pensamentos da liberdade e as maiores especulações da mas também por ser ela a única que poderia garantir a consolidação da República e, por isso, teria de ser falada em todo o seu Se ao despotismo interessava a variedade de idiomas ("há apenas uma língua universal para o tirano: a da força para assegurar a obe- diência e a dos impostos para assegurar o dinheiro"), na democracia "a vigilância do governo é confiada a cada cidadão; para vigiá-lo é preciso conhecê-lo, é preciso sobretudo conhecer-lhe a língua". Assim, "a língua de um povo livre deve ser uma e a mesma para todos". Por isso, acrescentava ele: "Deixar os cidadãos na ignorância da lín- gua nacional é trair a pátria". Propunha então que, por meio da educação elementar para todos, se ensinasse a língua francesa em todas as regiões do país. Concluía seu discurso com o texto de um decreto da Convenção que, em seu artigo primeiro, instituía, em dez dias a contar de sua publicação, um professor de língua francesa, a ser remunerado com recursos pú- blicos, em cada comunidade das várias regiões em que a população falava outra língua; e terminava por convocar as sociedades popula- res a propagar o estabelecimento de clubes voltados a multiplicar os meios para difundir o conhecimento da língua francesa nas regiões rurais remotas. No dia 4 de junho daquele ano, o abade Henri Grégoire, depois de ter realizado por correspondência uma enquete sobre a situação tica das regiões da França, apresentou à Convenção o seu Rapport sur la nécessité et les moyens d'anéantir les patois, et de universaliser l'usage de la langue française (Relatório sobre a necessidade e os meios para aniquilar os patoás e de universalizar o uso da língua francesa). Lamentava, de início, que a língua francesa fosse ainda desconhecida de grande parte dos No entanto, dizia ele, se é quimérico ter uma língua de para todos os povos do mundo, não é impossível uniformizar a uma grande Se tal projeto nunca foi realizado antes por</p><p>nenhum povo, ele é digno do povo francês: "Consagrar, numa República una e indivisível, o uso único e invariável da língua da liberdade". Fazia, em seguida, referência ao decreto de 27 de janeiro, que con- siderava muito salutar, embora não alcançasse todos os lugares em que se falava Deveria, por isso, ser secundado pelo zelo dos cidadãos para acelerar a chegada da época do desaparecimento des- ses idiomas "inferiores". Grégoire considerava que um dos meios para entusiasmar os cida- dãos nessa obra era provar a eles que o conhecimento e o uso da língua nacional eram fundamentais para a conservação da liberdade, para garantir seus direitos e até mesmo para o progresso econômi- Por isso, condenava as decisões anteriores de mandar traduzir a legislação (medida que apenas prolongaria a existência dos idiomas que se queria proscrever) e reiterava que a unidade da língua era parte integrante da Revolução ("Nossa língua e nossos corações de- vem ser uníssonos"). Terminava seu arrazoado sugerindo caminhos para "revolucionar" a língua francesa, uniformizando as terminologias técnicas, ampliando o vocabulário com empréstimos de outras línguas, neutralizando as pronúncias regionais, superando os estilos viciosos dos cortesãos e, até mesmo (num verdadeiro delírio de racionalismo "geométrico"), fazendo desaparecer as anomalias morfológicas da língua. Propôs, então, à Convenção o decreto que determinava ao Comitê de Instrução Pública providências para a escrita de uma nova gramática e um novo dicionário da língua francesa, que lhe dessem "o caráter que convém à língua da liberdade". Finalmente, no dia 20 de julho, nos estertores do regime do Terror, Robespierre, a poucos dias de sua prisão e execução na guilhotina, publicou o decreto que determinava que todo e qualquer ato público só ser escrito em francês e estabelecia penas para os agentes públicos que a ele desobedecessem. Embora esse decreto tenha sido revogado em seguida e as demais decisões da Convenção sobre matéria linguística não tenham tido re- sultados concretos imediatos, deixaram consolidado na mentalidade 27 SOCIEDADE, LÍNGUA, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto Faraco 28 francesa um conjunto de conceitos que progressivamente se ou no todo, por outros pontos da Europa (principalmente na no fase na parte período colonialismo do mundo sejam: do nacionalismo do século XIX); e (principalmente do desmonte do europeu), quais (a) a associação entre língua e nação (o francês como a língua da unidade nacional, como o cimento da nação); (b) a inferiorização e descrédito das línguas regionais; (c) a defesa do monolinguismo; (d) a transformação das questões linguísticas em assunto de Estado; (e) a crença no poder de intervenção estatal em matéria de língua. Se o conceito moderno de língua nacional estava presente na legisla- ção linguística da Revolução Francesa, a expressão língua oficial só vai aparecer, no âmbito constitucional, pela primeira vez, no século XIX, mais precisamente na primeira Constituição do Império Otomano, de 1867, cujo artigo 18 dizia: "A elegibilidade a cargos públicos está con- dicionada ao conhecimento do turco, que é a língua oficial do Estado". constitucionalismo moderno, como vimos antes, se desencadeou no século XVII (com a Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra), avançou com a Constituição dos Estados Unidos da América (1787), alcançou alta efervescência durante a Revolução Francesa (a Fran- ça teve quatro Constituições num espaço de oito anos, entre 1791 e 1799) e se expandiu com o liberalismo político, principalmente a partir da Constituição de Cádiz (1812), que instituiu, por breve perí- odo, uma monarquia constitucional na Espanha. Em geral, essas primeiras Constituições não trataram especifica- mente de questões linguísticas. A primeira a fazê-lo foi a da Norue- ga (1814), que restringiu os cargos públicos a cidadãos que falas- sem a "língua do país", nos termos do artigo 92: "Para cargos oficiais superiores do Estado só podem ser indicados cidadãos noruegueses, homens ou mulheres, que falem a língua do país". Não se usava aí a expressão língua oficial, mas língua do país, que, de certa forma, está mais próxima da expressão língua nacional. A Constituição da Confederação Helvética (1848) foi a próxima a tra- tar de questões Não o fazia, porém, estabelecendo restri- Seu texto declarava multilíngue país, listando as suas línguas</p><p>nacionais. Seu artigo CIX, dizia: "As três línguas correntes da Suíça o alemão, o francês e o italiano são as línguas nacionais da União". No ano seguinte, a Constituição do Império Austro-Húngaro (que não chegou a vigorar porque o imperador Francisco José começou, já em seguida, a governar como um monarca absolutista) dizia, em seu artigo V: "Todas as nacionalidades são iguais e cada nacionalidade tem o direito inalienável de preservar e promover sua nacionalidade e sua língua". A Constituição austro-húngara de 1867 (de caráter liberal), em seu artigo 19, repetiu esse princípio, ampliando-o: 1. Todas as nacionalidades são iguais e cada nacionalidade tem o direito inalienável de preservar e promover sua nacionalidade e sua língua. 2. A igualdade de todas as línguas usadas correntemente numa região particular nas áreas da educação, administração e vida pública é garantida pelo Estado. Em regiões em que várias nacionalidades vivem juntas, deve ser assegurado que as instituições educacionais do Estado sejam organizadas de tal modo que cada uma dessas nacionalidades seja instruída em sua própria língua, sob nenhuma pressão para aprender uma segunda língua regional. Fazia-se aí, num Estado multiétnico, multirreligioso, multicultural e multilíngue, um esforço para delinear uma política das naciona- lidades, buscando garantir um caminho igualitário que evitasse os conflitos entre elas, conflitos que pairavam como contínua ameaça à unidade do Império Habsburgo. Diferentemente do vizinho Império Otomano, igualmente multiétnico, multirreligioso, multicultural e multilíngue, mas que não se reconhe- ceu como tal e declarou o turco língua oficial, o Império Austro-Hún- garo não definiu constitucionalmente uma língua oficial, reconhecen- do antes todas as línguas do Império em cada uma das suas regiões. E mais: garantiu, em regiões em que várias nacionalidades e línguas conviviam, o direito à educação na língua de cada uma, sem que hou- vesse pressão para o aprendizado de uma segunda língua regional. Apesar de tudo isso, não se conseguiu, de fato, evitar os confli- tos e as tensões entre os interesses da população de fala alemã 29 SOCIEDADE, LÍNGUA, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto Faraco 30 (que dominava o centro do Império) e os interesses das outras nacionalidades e mesmo os interesses destas, umas em relação às outras, o que serve para ilustrar como são complexas as questões político-linguísticas. De qualquer forma, o constitucionalismo do século XIX foi progressi- vamente incorporando questões linguísticas nos textos constitucio- nais. As primeiras Constituições a fazê-lo já delimitaram, de certo modo, algumas das grandes questões de política linguística que os séculos seguintes continuaram tendo de enfrentar: (a) reconhecer (ou não) o multilinguismo; (b) definir (ou não) uma língua oficial; (c) restringir (ou não) o exercício de certos direitos a falantes de determinada língua. 1.2.1 Pondo em questão estado-nação monolíngue A concepção do estado-nação monolíngue, embora ainda muito pre- sente nas políticas de estado, vem sendo submetida a forte crítica nas últimas décadas, desde, pelo menos, a Convenção Cultural Euro- peia, assinada em 1954, pela qual o Conselho da Europa passou a estimular o estudo das várias línguas europeias em todos os estados- -membros. Essa política contribuiu para deixar evidente a importân- cia do multilinguismo para a sociedade e para o indivíduo. o Conselho da Europa antecipava, assim, a política das línguas da União Europeia (UE), que explicitamente promove o multilinguis- mo e a diversidade linguística. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (proclamada em 2000) declara o respeito pela "di- versidade cultural, religiosa e linguística" (art. e proíbe qualquer discriminação, inclusive a linguística (art. No plano educacional, a UE recomenda, desde 2002, que os estados- -membros adotem uma política que garanta que todos os alunos aprendam pelo menos duas línguas estrangeiras desde crianças. Trata-se do ideal designado pelo lema "língua materna + duas", que deixa claro: o conhecimento de uma só língua adicional à materna deixou de ser considerado suficiente no contexto europeu.</p><p>Na mesma direção da progressiva promoção do multilinguismo e da diversidade linguística, o Conselho da Europa aprovou, em 1992, a Carta Europeia das Línguas Minoritárias ou Regionais (subsequen- temente incorporada, em 2000, pela União Europeia), que define as diretrizes para a preservação das aproximadamente 60 línguas re- gionais ou minoritárias do continente europeu. Essa Carta não abrange ainda as línguas dos imigrantes, mas tão so- mente as línguas tradicional e historicamente presentes no espaço europeu. Há ainda, portanto, uma lacuna na política da UE de pro- moção do multilinguismo, considerando que o continente europeu tem sido o destino de um fluxo de imigrantes contínuo, diversificado e numericamente significativo. Por outro lado, em 1996, com o patrocínio da UNESCO, foi procla- mada a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, que baliza o necessário reconhecimento da igualdade de todas as línguas, subli- nhando-se o papel insubstituível destas na identidade individual e coletiva das comunidades. Essa Declaração desdobra o artigo 2° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. Nele se afirma que ninguém pode ser discriminado, entre outros fatores, pela língua que fala. A doutrina dos Direitos Linguísticos, vistos como integrantes dos Di- reitos Humanos, destaca a importância da diversidade linguística e a necessidade de estimulá-la como alternativa a uma situação linguis- ticamente monolítica. Cabe aos diferentes estados-nação, mesmo tendo uma ou mais lín- guas oficiais, não permitir o desaparecimento das outras línguas fa- ladas em seu território. Ou seja, cabe a eles compatibilizar a diver- sidade linguística presente em seu território com a difusão de uma língua comum de intercomunicação. Não há, no mundo, salvo uma ou outra exceção, estados-nação mo- nolíngues. Basta lembrar que há aproximadamente sete mil línguas sendo faladas no mundo e apenas 193 estados-nação reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Essa enorme diferença 31 LÍNGUA, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto 32 quantitativa sinaliza, por si só, a quase impossibilidade de -nação serem monolíngues ou incentivarem o monolinguismo A diversidade linguística no interior das fronteiras de um -nação é, portanto, o normal, o esperável e não o Apesar disso, a diversidade linguística tanto quanto a diversidade religiosa, cultural etc. tem sido fonte de tensão e conflitos e vivida como um problema social (decorrente da concepção de ção monolíngue, uniforme, homogêneo), quando deveria ser vista como um patrimônio da coletividade. Há ainda, portanto, um longo caminho para as sociedades aceitarem a sua diversidade, deixando de tratá-la como um problema. 1.2.2 estado-nação na berlinda Embora o estado-nação seja ainda um ente político forte, nada é es- tático. Com as transformações econômicas que caracterizam 0 cha- mado capitalismo tardio, em especial o progressivo desmonte das fronteiras econômicas com a globalização da produção, do comér- cio e do fluxo de capitais, além da difusão com alcance mundial das tecnologias da informação e da comunicação, o ente político estado- -nação tem sido desafiado a se reconfigurar no contexto da econo- mia e da sociedade global. Acrescentem-se a isso outras dimensões, como as alterações climáticas e o aquecimento global, cujos efeitos não respeitam fronteiras políticas. Isso tudo não significa que o estado-nação desapareceu ou vá desa- parecer em breve. Significa apenas que, na atualidade, nossas cate- gorias de análise não se limitam mais só a ele, mas precisam incorpo- rar a forte que, com a globalização, criou entre extensão os estados-nação, relativizando suas fronteiras políticas se e mesmo a de sua soberania. e Se implicações é preciso considerar que acima do estado-nação estão dimensões perder de da economia e da sociedade as também não A vista que nenhum estado-nação global, é é preciso e mente sociedade associada a cada um deles social é culturalmente dade está E entre os muitos indicadores sempre heterogenei- multilinguismo característico de praticamente dessa todos eles.</p><p>fato de haver em alguns estados-nação uma língua majoritária e hegemônica não deve obscurecer nossa percepção do multilinguis- mo ali existente. Muitas vezes, as estruturas do estado não reconhe- cem oficialmente a diversidade linguística interna de sua sociedade. E mais que isso: criam políticas assentadas na promoção do mono- linguismo, das quais resulta uma série de problemas para os falantes das línguas minorizadas, até mesmo a sua sobrevivência. Por isso, é fundamental, mesmo tendo o estado-nação como a prin- cipal categoria ordenadora de nossas análises, reconhecer sua hete- rogeneidade interna e, em consequência, desenvolver sempre uma atitude crítica frente a qualquer manifestação homogeneizante no trato de sua formação social, de suas práticas culturais e de sua rea- lidade sociolinguística. *** Todas essas considerações repercutem na história da língua portu- guesa e de suas culturas. Um primeiro aspecto a considerar é que ne- nhum dos estados-nação em que o português é falado e tem caráter oficial abriga uma sociedade monolíngue. E isso é fato também nos dois únicos em que o português é língua majoritária e hegemônica (Portugal e Brasil). No Brasil, há quase duas centenas de línguas indígenas (muitas em processo de desaparecimento, é verdade) e dezenas de línguas de he- rança vindas nos fluxos migratórios mais antigos (italianos, alemães, japoneses) ou nos mais recentes (holandeses, coreanos, bolivianos, haitianos e, bem agora, os refugiados sírios e os venezuelanos, leva esta última que inclui muitos membros de nações indígenas que ha- bitam aquele território vizinho). Em Portugal, além do mirandês, língua da comunidade de Miran- da (reconhecida oficialmente pela lei n. 7/1999), há as várias lín- guas das comunidades de imigrantes instaladas no país nas últimas décadas (entre outras, o cabo-verdiano, o guineense, o romeno, o ucraníano etc.). Somem-se a essas todas, as línguas das respectivas comunidades surdas - a língua brasileira de sinais (reconhecida oficialmente pela 33 SOCIEDADE, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto 34 lei n. 10.436/2002) e a língua gestual portuguesa (reconhecida pelo art. 74, n. 2, letra h da Constituição Portuguesa). Um segundo aspecto são as especificidades do panorama guístico das sociedades em que o português, embora língua oficial, não é majoritário e hegemônico. Em todos esses contextos, há dife- rentes implicações sociais, políticas e culturais do convívio (muitas vezes conflitivo) do português com as outras línguas ditas nacio- nais. maior desafio é evitar que o português, amparado pelas es- truturas de estado, acabe provocando um enorme glotocídio (uma extinção de línguas). Um terceiro aspecto é a situação do português como língua internacio- nal em meio às demais línguas internacionais (inglês, espanhol, francês etc.) no contexto da sociedade global e do mundo multipolar que emer- giu com o colapso da União Soviética (em 1991) e o fim da guerra fria. Embora com menos fatores atrativos do que, por exemplo, o inglês e 0 espanhol, o português como língua estrangeira de dimensão internacio- nal vem experimentando um crescente interesse em várias partes do mundo (na América Latina, na Europa, na China, nos países africanos vizinhos de Angola e Moçambique e até mesmo nos Estados Unidos). Por fim, é preciso considerar que, em muitos países, há comunidades de imigrantes algumas mais antigas, como na França e na Ale- manha; outras mais recentes, resultantes da intensificação dos pro- cessos migratórios das últimas décadas, como no Japão, nos Estados Unidos, na África do Sul, no Paraguai e na Austrália que têm o por- tuguês como língua de herança em contextos em que predominam outras línguas. Temos, nesses quatro aspectos referentes à língua dimensões internas aos estados-nação e outras que ultrapassam suas fronteiras (em especial, as relacionadas à sua internacionali- zação e aos diferentes aspectos migratórios). O estado-nação, mesmo relativizado, continua sendo uma categoria analítica importante para construirmos nossas discussões sobre ciedade, cultura e É ele que abriga uma formação social he- terogênea, contraditória e em movimento, no interior da qual se de- senvolvem as mais diversas práticas culturais e linguísticas.</p><p>1.3 Língua Recortar uma língua, como estamos fazendo neste livro, e atribuir- -lhe um nome não é tarefa fácil. Isso porque não há critérios exclusi- vamente linguísticos para tal recorte. Uma língua é, na verdade, uma construção imaginária em que se mesclam fatos linguísticos com fatores históricos, políticos, sociais e culturais. É esse complexo de elementos entrecruzados que leva os falantes a identificar suas va- riedades linguísticas como constitutivas de uma língua determinada. Em outras palavras, falantes de diferentes variedades linguísticas se reconhecem, por razões históricas, políticas e socioculturais, como falantes de uma mesma língua, ainda que haja poucas semelhanças léxico-gramaticais entre as variedades e, em certas situações, não haja sequer mútua inteligibilidade, como no caso dos falantes de mandarim e de cantonês, que se consideram todos falantes de chi- nês; ou dos falantes do iraquiano e do marroquino, que se conside- ram todos falantes de árabe. contrário também ocorre, ou seja, variedades que, por critérios es- tritamente linguísticos, poderiam ser consideradas constitutivas de uma mesma língua, são assumidas por seus falantes como línguas diferentes por razões históricas, políticas e socioculturais. É o caso do sérvio e do croata, do romeno e do moldávio. Uma língua é, então, um conjunto de variedades (e só assim pode ser definida) distribuídas no espaço geográfico e social e no eixo do tempo, conjunto que os falantes, por razões históricas, políticas e so- cioculturais, idealizam como uma realidade una onde não há, efeti- vamente, unidade. Muitas vezes, o imaginário social, para manter essa idealização em pé, confunde uma determinada variedade com a língua. É a chamada ideo- logia da norma-padrão. Ao identificar a língua exclusivamente com as formas padronizadas, esse modelo ideológico tenta apagar ou desqua- lificar a heterogeneidade linguística e os processos de mudança. A variação e a mudança, inerentes a qualquer realidade linguística, passam a ser consideradas como deterioração, corrupção, deprecia- ção da "verdadeira" língua e, por isso, são alvo de rejeição, despres- tígio ou estigma social. 35 SOCIEDADE, LINGUA, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto 30 Esse estigma pode emergir no quadro das próprias relações socio- interacionais, mas, no geral, encontram também reforço pela forma como as gramáticas normativas apresentam a língua (condenando, por exemplo, certas construções como "erro") e como esse discurso se reproduz no sistema escolar e nos meios de comunicação. Em suma, no plano empírico e por critérios estritamente linguísticos, a realidade recortada e identificada como uma língua é constituída por um conjunto de variedades. Do ponto de vista estritamente lin- guístico, não existe língua para além ou acima do conjunto das suas variedades constitutivas, nem existe a língua de um lado e as varie- dades de outro, como muitas vezes acredita o senso comum. Os linguistas estruturalistas - inspirados na distinção que Saussure propôs entre langue e parole, ou seja, entre a estrutura linguística e seu uso nos atos de fala - trabalhavam com a hipótese de que existe um nível teórico abstrato acima das variedades que constitui o siste- ma. No entanto, a prática analítica tem demonstrado senão a invia- bilidade, pelo menos a extrema dificuldade de se alcançar tal nível abstrato a pairar sobre todas as variedades reunidas sob um nome comum. Se tal nível fosse materializável e se fosse único, poderia jus- tificar linguisticamente o conceito de língua - uma língua equivale- ria ao sistema abstrato do qual todas as variedades derivariam. Como até hoje não foi possível materializar tal nível (e, talvez, nun- ca cheguemos a ele; talvez haja aí, de fato, um pressuposto vel de ser sustentado e que, no fundo, é apenas um efeito, no plano teórico, da ideologia da norma-padrão), é preferível continuarmos assumindo que uma língua é indefinível por critérios puramente lin- guísticos e que qualquer recorte a que se dê um nome singular será sempre um conjunto de diferentes variedades. Se não perdermos de vista essa perspectiva da heterogeneidade intrín- seca do que chamamos de língua, podemos, em princípio, continuar a usar, por razões práticas, esse termo e suas designações singulares - o que vamos fazer na sequência da nossa exposição neste livro. Dizer isso tudo não implica afirmar que a constituição e o funciona- mento sociocultural do ente língua não sejam relevantes. Ao contrá-</p><p>rio: destrinçar o emaranhado de critérios socioculturais e políticos que historicamente dá forma ao conceito imaginário de língua (una, homogênea, uniforme), assim como explicitar seu funcionamento sociocultural, constitui também tarefas da linguística. Nesse caso, porém, os linguistas não podem trabalhar de forma iso- lada. Não sendo a língua uma entidade estritamente linguística, é ne- cessário reunir pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento para compreender os mecanismos pelos quais um conjunto hetero- gêneo de variedades sociais passa a ser reconhecido por seus falantes como constituindo uma só língua. Os linguistas precisam se associar a historiadores, antropólogos, sociólogos e psicólogos sociais. Só uma investigação multidisciplinar pode esclarecer essa intrincada questão. 1.3.1 Língua e sociedade A dinâmica da língua (a "vida" da língua, como alguns dizem) se materializa na grande rede de relações sociais constitutivas de uma sociedade. Como a sociedade é heterogênea, contraditória, simul- taneamente integrada e fragmentada e em constante devir, assim também é a língua. A sua heterogeneidade constitutiva está diretamente relacionada com a diversidade, seja das experiências históricas, seja das ativi- dades econômicas, sociais e culturais dos grupos humanos que se reconhecem como seus falantes. As variadas formas de ocupação demográfica de cada ponto do ter- ritório em que se assume que uma língua é falada; as diferentes circunstâncias históricas que se desenvolvem em cada um desses pontos; a variadíssima (quase infinita) dinâmica da vida econômica, social e cultural - essa diversidade tem sua contraparte linguística: resulta na diversidade das variedades faladas nas diferentes regiões de um país, em diferentes momentos de sua história, por diferen- tes segmentos sociais (identificados pelos mais variados critérios: faixas etárias, gênero, atividades profissionais e nível de renda, ex- periências de escolaridade, entre outros) e em diferentes contextos sociointeracionais (no trabalho, no lazer, nos meios de comunicação 37 SOCIEDADE, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto Faraco 38 social, nas esferas do funcionamento do Estado, nas atividades reli- giosas e assim por diante). A sociolinguística usa vários termos técnicos para identificar essas variedades. Elas serão: (a) diacrônicas (variedades distintas no eixo do tempo portu- guês do século XV ou português do século XVIII, por exemplo); (b) diatópicas (variedades distintas pela região em que são fala- das - português lisboeta, português carioca, português aço- riano); (c) diastráticas (variedades usadas por diferentes segmentos/ estratos sociais português chamado de 'culto' e português popular); (d) diafásicas (variedades correlacionadas a diferentes estilos e registros - variedades formais, variedades informais); (e) diamésicas (variedades correlacionadas aos diferentes meios com os quais a língua é veiculada variedades próprias da oralidade e variedades próprias da escrita). Isso posto, é importante destacar que as variedades não estão dis- postas num plano horizontal. Embora, do ponto de vista estritamen- te linguístico, haja total equivalência entre elas, do ponto de vista social, cria-se uma hierarquia entre as variedades. E isso decorre do fato de os distintos grupos e classes sociais sendo ocupantes de diferentes posições nas hierarquias socioeconômicas e nas conse- quentes redes de poder e dominação - usarem variedades linguís- ticas diferentes que são, por consequência, recobertas de valores distintos que conflitam entre si. Vejamos isso em mais detalhes. As sociedades humanas conhecem divisões internas em sua organi- zação decorrentes de vários fatores: econômicos, demográficos, so- ciopolíticos e culturais. A divisão social do trabalho, a distribuição da população no espaço geográfico, sua segmentação etária, as as- cendências étnicas, as identidades de gênero, as redes de relações de poder que perpassam as interações sociais, as diferentes escalas de valores, maior ou menor acesso à educação e ao patrimônio cultu- ral são alguns dos fatores que atravessam o todo social recortando, diferenciando e hierarquizando grupos em seu interior.</p><p>E os grupos daí resultantes costumam se identificar por diferentes marcas simbólicas: pelo formato das casas que habitam, pelas rou- pas que vestem, pelos objetos que usam, pelas formas de lazer que praticam, pelos ambientes que frequentam e, claro, pelas variedades linguísticas que praticam. modo como se fala uma língua é, assim, poderoso fator de identi- dade social, de senso de pertença a determinado grupo, de delimita- ção de fronteiras entre grupos sociais. E isso tem efeitos positivos basta abrir a boca para que o outro me perceba como um semelhante seu, como um membro do mesmo grupo. No entanto, pode ter também, eventualmente, efeitos negativos - ao abrir a boca, o falante revela sua dissemelhança, sua não pertença ao mesmo grupo do ouvinte ou do interlocutor e, por isso, pode ser alvo de estigma, marginalização, rejeição. 1.3.2 Plenitude formal e potencial semiótico Essa é uma questão que provoca muitos mal-entendidos no senso comum. Exige, portanto, que a deixemos o mais possível elucidada. Para isso, é preciso entender, primeiro, que qualquer uma das varie- dades de uma língua possui plenitude formal e é dotada de suficiente potencial semiótico. Em outras palavras, toda e qualquer variedade tem organização es- trutural (nesse sentido, não existe, como se ouve muitas vezes no senso comum, variedade "sem gramática"); e toda variedade está apta a atender às necessidades cognitivas, expressivas e comunica- cionais de seus falantes. Essa é uma das grandes descobertas da linguística moderna. Quanto mais se estudou a diversidade linguística (seja por meio da dialeto- logia, seja por meio da sociolinguística), mais ficou evidente que a organização estrutural é propriedade inerente, constitutiva de qual- quer variedade linguística, tenha ela ou não prestígio sociocultural, É preciso dar o devido destaque a esse grande achado das pesquisas linguísticas empíricas, porque ele revolucionou a compreensão que 39 SOCIEDADE, ESTADO-NAÇÃO, LÍNGUA, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto 40 temos da realidade linguística ao colocar exatamente no mesmo pa- tamar todas as variedades constitutivas de uma língua (e, claro, to- das as línguas), igualando, do ponto de vista estritamente linguístico, todos os falantes. Assim, qualquer hierarquização entre as variedades (e entre as guas) se dará por razões não linguísticas. Serão valores históricos, políticos e socioculturais que vão introduzir um desequilíbrio numa realidade que intrinsecamente não é desequilibrada. No fundo, a hie- rarquização das variedades linguísticas reflete a hierarquização eco- nômica, social e cultural que alcança os diferentes segmentos Os grupos sociais que impõem às variedades linguísticas uma hie- rarquia são os que estão em posição privilegiada econômica, social e culturalmente. Ocupam, por isso, posições de força nas redes de relações de poder e hegemonia. Atribuem superioridade a seu modo de vida e a seus valores. E adotam marcas simbólicas variadas para sinalizar suas diferenças e sua distância dos demais grupos sociais. Assim também (e não por acaso) esses grupos consideram suas variedades linguísticas melhores, superiores, mais corretas que as demais e recobrem com valores negativos (estigmatizam) as varie- dades usadas por grupos sociais desprivilegiados econômica, social e culturalmente. Essas últimas variedades são classificadas como in- feriores, erradas e até como não língua. Nesse processo, transforma-se a diferença em marca de inferio- ridade. Essa transformação provém, no fundo, da necessidade de manter estáveis e sob controle os parâmetros da identidade do grupo que se autoprestigia, o que envolve tanto a adesão aos moti- vos, aos comportamentos e aos valores que tornam tais parâmetros desejáveis, quanto a identificação dos outros grupos como piores, inferiores, desqualificados. Toda essa prática hierarquizadora é possível porque os grupos do- minantes, por ocuparem os pontos altos da hierarquia econômica, social e cultural, detêm também o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em seu esforço analítico de desvelar mecanismos da dominação social, chamou de poder simbólico isto os é, a capacidade</p><p>de construir e disseminar um modelo da realidade social mais ade- quado a seu modo de vida e a seus interesses. Esse modelo, embora relativo e arbitrário em suas bases (por ser representativo de um determinado e específico segmento social), é socialmente disseminado por esses grupos, graças à sua posição na rede dos poderes socieconômicos, como natural e universal e, por conseguinte, como devidamente legitimado e legitimador da ordem estabelecida, o que costuma ser assimilado como tal pelos grupos subalternizados. É por isso que se diz que as variedades linguísticas são estigmatiza- das não por si, mas porque seus falantes são estigmatizados. o estig- ma que os grupos sociais dominantes fazem recair sobre os grupos desprivilegiados (a quem atribuem, por exemplo, a pecha de igno- rantes) se estende ao modo como eles falam a língua (tratando as suas variedades como "erradas" e até como não língua). Cabe pontuar ainda que as línguas, como as sociedades em que são faladas, são simultaneamente integradas e fragmentadas. Há forças que puxam para um ponto homogeneizador. Estão nesses casos a norma-padrão e seus instrumentos (dicionários, gramáticas, orto- grafias, manuais de estilo) que, por meio do ensino e de outros me- canismos de controle social (em provas de concursos públicos ou na enunciação de juízos orais depreciativos, por exemplo) são usados num esforço de limitar e controlar a diversidade. E há outras forças que contribuem para diferenciar continuamente as variedades e as afastam de qualquer referência homogeneizante. funcionamento social da língua está, portanto, atravessado pela permanente tensão entre as forças centrípetas e as forças centrífugas. Por fim, é preciso destacar que a realidade linguística heterogênea, contraditória, simultaneamente integrada e fragmentada, está, por isso mesmo, em constante devir, isto é, muda permanentemente no eixo do tempo. As dinâmicas heterogêneas e contraditórias das in- contáveis atividades que ocorrem no interior da sociedade repercu- tem nas variedades linguísticas ali faladas e lhes dão movimento no eixo do tempo, provocando mudanças em suas configurações. Em outras palavras, as línguas têm história. 41 CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto 42 Se aplicarmos esses raciocínios analíticos à realidade da língua portuguesa, vamos encontrar extrema diversidade entre as va- riedades faladas em Portugal e no Brasil, bem como entre as va- riedades que se multiplicam nos demais estados-nação que têm o português como língua oficial e nos quais, em geral, predomina seu uso como língua segunda. Vamos ver, no capítulo 2, item 2.9.2, algumas dessas diferenças em relação ao português que se fala em Angola e Moçambique. A diversidade léxico-gramatical chega a ser de tal monta que não fal- tam linguistas a defender a tese de que não estamos mais diante de uma mesma língua, mas de uma família de línguas originárias dos an- tigos falares românicos do Noroeste da Península Ibérica (v. cap. 2). A questão, porém, como vimos anteriormente, não se limita nem se resolve por critérios apenas linguísticos. São ainda fortes as razões históricas, políticas e socioculturais que levam os falantes a identifi- car todas essas muitas variedades como constitutivas da mesma lín- gua. Nada impede, porém, que outra configuração de valores altere esse quadro no futuro. Nesse sentido, é interessante lembrar que, no passado, como discu- tiremos no capítulo 3, houve movimentos no Brasil que defendiam atribuir o nome de brasileiro ou língua brasileira ao conjunto das va- riedades linguísticas aqui faladas. Foram propostas que não conseguiram, porém, se consolidar porque, nos debates, prevaleceu o quadro de valores históricos, políticos e socioculturais que as entendem como pertencentes ao português ou à língua portuguesa. No entanto, para não se apagarem te as claras diferenças que o conjunto de variedades faladas no Bra- sil têm em relação às demais variedades da língua, tem sido forçoso usar a designação português brasileiro. Por outro lado, no interior de cada sociedade em que se fala por- tuguês, são facilmente identificadas hierarquias e conflitos entre as muitas variedades faladas, entre as recobertas de prestígio e as entre as que são características de falantes com alto grau de escolaridade e as usadas por falantes sem acesso à educa-</p><p>ção formal e à escrita. Desse modo, a língua, em sua heterogeneidade contraditória, ao refletir uma determinada ordenação do mundo so- cial com suas divisões, delimitações de espaços e conflitos, funciona como fator de estigma e discriminação. Ao se reconhecer isso, abre-se espaço para o debate crítico dos pre- conceitos que afetam, por exemplo, os falantes das variedades do chamado português popular no Brasil ou os imigrantes pobres que, oriundos dos diferentes países de língua oficial portuguesa, falam variedades não europeias da língua em Portugal. Abre-se espaço também para dar visibilidade aos ressentimentos e conflitos sociolinguísticos que refletem ainda a divisão social que o colonialismo impôs às sociedades africanas e que, no fundo, é sinali- zada pelas diferentes formas como a língua funciona socialmente, ou seja, os estratos que a têm como língua materna (uma minoria), os que a falam como segunda língua e os que não a conhecem. Em todas as sociedades que têm o português como língua oficial, há esforços normativos que tentam controlar a diversidade pela difusão (e imposição) de um ideal linguístico homogeneizante (mesmo que relativo e até quimérico, como o insistente discurso que se repete nas sociedades africanas de que sua norma-padrão é a do português europeu). E há também, simultaneamente, dinâmicas centrífugas (incontroláveis) que intensificam a diversidade. Por fim, é possível identificar processos de mudanças que se mani- festam, por diferentes caminhos, nas diversas variedades, ora apon- tando para confluências, ora para divergências, reconfigurando, de qualquer modo, o formato léxico-gramatical de cada uma delas. 1.4 Que características tem processo de mudança linguística? As línguas, ou melhor, as variedades identificadas como constitutivas de uma língua estão, como dissemos anteriormente, em permanente devir. A mudança linguística é contínua e inexorável: não há como escapar dela porque a própria sociedade está em permanente 43 SOCIEDADE, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto Faraco 44 As mudanças linguísticas têm algumas características bastante pecu- liares. Elas são lentas, graduais e localizadas. Em outras palavras. elas não se dão abruptamente, do dia para a noite, nem ocorrem de forma global e integral: as mudanças vão ocorrendo isto é, a cada vez, atingindo partes da língua e não sua totalida- de. E mais: a gradualidade do processo histórico se evidencia ainda pelo fato de que a substituição de uma forma (x) por outra (y) passa sempre por fases intermediárias. Há o momento (quase sempre lon- go) em que X e y coexistem como variantes; depois há o momento (também normalmente longo) da competição entre X e y seguida do desaparecimento de X e da implantação hegemônica de y. Por isso, nunca é possível dizer que num momento determinado 0 latim, por exemplo, deixou repentinamente de ser falado e foi inte- gralmente substituído pelo francês ou pelo português. As mudanças foram lenta, gradual e continuamente ocorrendo e resultaram, ao cabo de vários séculos, numa outra forma de falar. Outro aspecto que caracteriza a mudança linguística é a sua regula- ridade. Isto quer dizer que, dadas as mesmas condições (isto é, no mesmo contexto linguístico, no mesmo período de tempo e na mes- ma variedade), um elemento - quando em processo de mudança é, progressiva e normalmente, alcançado em todas as suas ocor- Em outras palavras, observa-se que as mudanças linguísti- cas não são fortuitas, nem se dão a esmo, sem rumo. Desencadeada de a mudança, forma há regularidade e generalidade no processo, atingindo bastante sistemática o mesmo elemento, dadas as mesmas condições, em todas as suas Assim, cio de por exemplo, os encontros consonantais /kl-/ e do iní- clave > chave; plenu> cheio; plicare> chegar. soante (grafada ch) em Assim, clamare> chamar; con- palavras 15-1 em latim se transformaram regularmente /pl-/ na ca, Embora ela não a regularidade é necessariamente seja uma característica da mudança linguísti- modo não uniforme mas pode ser relativizada pelo interior das as palavras da variedade como (a mudança se dá a difusão de uma mudança, tanto to- no que contêm elemento nunca em alcança mutação), instantaneamente quanto entre os</p><p>diversos grupos de falantes (a mudança também nunca alcança instan- taneamente todo o espaço geográfico e/ou social em que a variedade é falada nem se espraia necessariamente por todas as outras variedades). Atrás dessa não uniformidade, há múltiplos fatores decorrentes das vicissitudes sociais e históricas das comunidades de fala, tais como: (a) a reação negativa dos falantes à mudança, com consequente estigmatização da forma inovadora; (b) a interpenetração de diferentes linhas evolutivas; (c) os empréstimos lexicais de outras línguas ou variedades; (d) movimentos populacionais com eventual alteração na compo- sição étnica e linguística de uma dada comunidade. São fatores que podem retardar, impedir ou até reverter uma mudan- ça e podem, portanto, afetar sua regularidade. Podemos exemplifi- car isso com o mesmo caso que discutimos anteriormente. Dissemos que os encontros consonantais /kl-/ e /pl-/ de início de palavras em latim se transformaram na consoante em português. Contudo, o português tem palavras de origem latina como plaga, pleno, clave e clamar, bem como praia (do latim plaga) e cravo (do latim clavum), em que não se observa aquela correspondência: ou o encontro se manteve ou foi substituído por /kr-/ ou /pr-/. Uma investigação mais detalhada vai revelar que o encontro conso- nantal se manteve inalterado em palavras tardiamente introduzidas no léxico. Trata-se de palavras que entraram na língua por incorpo- ração direta do latim literário (os chamados empréstimos eruditos) e numa época em que a mudança para já estava Os empréstimos eruditos entraram na língua portuguesa nos fins do século XV e XVI, ao tempo do Renascimento, o período histórico em que a Europa revalorizou suas fontes greco-latinas. Contrastam com as palavras que entraram no léxico por transmissão popular, ou seja, as que evoluíram no uso espontâneo da língua desde períodos remotos da história e tiveram os encontros consonantais iniciais transformados em talvez já no período tardio do latim falado no Noroeste da Península Ibérica. Por outro lado, os mesmos encontros consonantais ocorrem como /pr-/ ou /kr-/ em termos provavelmente adotados de variedades fa- ladas em regiões em que a mudança se deu de forma 45 ESTADO-NAÇÃO, LÍNGUA, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto 46 Desse modo, fica claro que as mudanças linguísticas não estão con- dicionadas apenas por fatores estruturais, mas estão também cor- relacionadas com fatores da história da sociedade que fala a língua, como, por exemplo, o intercâmbio entre falantes de variedades di- ferentes; o prestígio e o poder de certos grupos de falantes; as esco- lhas sociais preferenciais entre as muitas variedades; a lealdade a formas tradicionais etc. Daí se dizer, em linguística histórica, que, na descrição de qualquer mudança, é preciso delinear seu encaixamento estrutural e tam- bém seu encaixamento social. 1.5 que é, então, contar a história de uma língua? Para contar a história de uma língua, os linguistas seguem ainda, em linhas gerais, o duplo corte proposto por Ferdinand de Saussu- re (1857-1913), conforme se lê no Curso de linguística geral: de um lado, a distinção entre linguística sincrônica e linguística diacrô- nica; e, de outro, entre linguística externa e linguística interna. No primeiro corte, Saussure separava uma linguística estática de uma linguística evolutiva. Em outras palavras, separava o estudo de um estado de língua (sincronia) do estudo da sua história (diacro- nia). No segundo corte, ele separava o que seria próprio do sistema (da ordem própria da língua) de tudo o que lhe fosse estranho. Saussure considerava, em ambos os casos, que deveríamos manter as perspectivas rigorosamente separadas uma da outra. Ou seja, fazer o estudo sincrônico (ao focar um estado de língua), interessa ao rizam observar só e apenas o conjunto de relações sistêmicas caracte- critérios aquele determinado estado de língua sem trazer que a análise ao estudar diacrônicos, isto é, a história que o Por para lado, deve se later ao sistema (a organização imanente da língua), outro o parte condições linguísticas externas. e à distância conjunto as das relações que constituem, mantendo linguista à partir sistema, de si acreditava mesmo. Essa pode e deve ser estudado em si e a amplo desenvolvimento crença da linguística sincrônico-estrutural, desde a década de 1930, mate- o</p><p>rializada em vários modelos estruturalistas e, posteriormente, em sucessivos modelos gerativos. Saussure insistia: no estudo sistêmico (sincrônico, interno), não cabe deixar entrar considerações de ordem diacrônica (a diacronia é, em si, estranha ao sistema em si) nem referências externas a ele, à sociedade em que a língua é falada: sua geografia, história, cultura, política, economia etc. Em ambos os casos, Saussure usava o jogo de xadrez para tornar compreensíveis suas teses. Dizia que, nesse jogo, é fácil distinguir o interno do externo. fato de o jogo ter passado da Pérsia para a Europa é de ordem externa (e nada tem a ver com as regras em si); já tudo o que concerne ao sistema e às regras do jogo é de ordem in- terna. Mais à frente em sua exposição, ele retoma a comparação para clarificar o corte sincronia/diacronia Uma determinada posição do jogo, dizia ele, corresponde a um estado de língua; já o movimento de uma peça que equivale a um evento diacrônico leva o jogo de um estado a outro. Quando nos dedicamos ao estudo da história da língua, estamos nos concentrando nos movimentos, nas mudanças que vão alterando o sistema. Nós nos posicionamos, portanto, na perspectiva diacrônica do primeiro corte. Quando aplicamos o segundo corte à história da língua, vamos distinguir nela duas dimensões: a história interna e a história externa. A primeira estuda as sucessivas mudanças pelas quais passou ou está passando a organização sistêmica no eixo do tempo. Já a chamada história externa foca sua atenção nas mudanças que ocorreram ou estão ocorrendo na sociedade ou nas sociedades em que a língua é falada. Subjacente a esses cortes, está a percepção de que uma língua é ela e seus falantes; ela e a(s) sociedade(s) que a fala(m). Por isso, em prin- cípio, é possível construir duas histórias: uma da língua como siste- ma (história interna); e outra da língua atada às dinâmicas histórico- -políticas e às elaborações imaginário-ideológicas da(s) sociedade(s) em que é falada (história externa). Todos esses cortes saussurianos ajudam, sem dúvida, a organizar metodologicamente nossos estudos de uma realidade tão complexa quanto a realidade linguística. 47 SOCIEDADE, CULTURA</p><p>48 HISTÓRIA DO Carlos Alberto Faraco No entanto, manter as perspectivas rigidamente separadas é menos defensável hoje do que foi no início. Em seu tempo, Saussure esta- va tentando contribuir para fazer a linguística avançar como projeto epistemológico. Ele vinha de uma formação e de uma experiência como estudioso da história das línguas, que foi o grande tema do sé- culo XIX. No entanto, intuía a possibilidade e a importância de um estudo não histórico, de um estudo da língua como um sistema. Daí o corte rígido entre sincronia e diacronia. Ao trabalhar com um conceito sistêmico de língua, ao recortar o que chamou de ordem própria da língua, Saussure necessariamente tinha de separar essa dimensão interna de qualquer elemento externo. A linguís- tica interna deveria focar o sistema em si, concebido, no fundo, como uma realidade imanente, única e homogênea. Contudo, ao propor uma linguística externa, Saussure deixava clara sua compreensão de que a questão linguística não se esgota no sistêmico, mas está vinculada tam- bém às suas condições sociopolíticas e culturais. A análise dessa vincu- lação deveria, porém, ser feita rigidamente separada da do sistema. Os estudos posteriores, à medida que ampliaram o escopo das obser- vações empíricas, indicaram a necessidade de suavizar a rigidez dos cortes saussurianos. A contribuição mais significativa nesse sentido tem sido dada pela sociolinguística laboviana desde seu surgimento na década de 1960. Diferentemente de uma linguística sistêmica, estrutural - que, na esteira das concepções saussurianas, recorta a língua como um obje- to único, homogêneo e fechado em si -, a sociolinguística postula caráter sempre heterogêneo de qualquer língua, isto é, a língua como um conjunto de variedades. Com não isso, a sociolinguística pôde perceber que a mudança linguística se dá apenas de uma sincronia para outra (no chamado real), mas acontece também no interior de uma única tempo chamado E tempo aparente). Passou-se a falar de uma diacronia sincronia sin- (no vivendo no isso mesmo porque se detectou que as variedades na con- mudança: tempo histórico, apresentam diferentes linguísticas, mais enquanto alguns grupos de falantes ainda estágios formas de antigas, outros já estão levando adiante processos conservam de mudança.</p><p>A mudança em tempo aparente pode ser detectada por meio do estu- do das variedades usadas por diferentes gerações de falantes que vi- vem no mesmo momento histórico. A idade é um dos fatores usados na sociolinguística para estratificar as amostras. Os dados podem, então, revelar uma correlação entre faixas etárias e a ocorrência de determinadas variantes. A predominância de uma variante entre os mais jovens e sua pouca (ou nula) ocorrência entre os mais velhos pode estar indicando uma mudança em progresso, isto é, uma va- riante mais antiga está sendo abandonada em favor de outra. Ao se perguntar sobre quais forças conduzem o contínuo movimento da mudança linguística, a sociolinguística percebe, pelas investiga- ções empíricas que desenvolve, que as mudanças que alcançam as variedades estão associadas com mudanças na organização social. Postula-se, então, a necessidade de um estudo do encaixamento das mudanças linguísticas na matriz mais ampla das relações sociais. Ou seja, o estudo de uma mudança não se limita a identificar fatores in- ternos ao sistema, mas também suas condições externas. Suaviza-se, assim, o rígido corte interno/externo das proposições saussurianas, sem, porém, anular sua relevância epistemológica. Até porque, ao voltar ao passado, detectamos, muitas vezes, mudanças estruturais, mas, pela distância temporal, nem sempre conseguimos definir seu encaixamento social. Ao tomarmos a língua em sua heterogeneidade, ficam, pois, eviden- tes as correlações entre diacronia e sincronia e entre o interno e o externo. No entanto, por limites de espaço e, principalmente, por li- mites empíricos, este nosso livro não vai se concentrar na descrição das mudanças estruturais ocorridas na língua portuguesa ao longo do tempo (e em seus eventuais encaixamentos sociais). Vamos sim acompanhar as mudanças nas condições sociopolíticas e culturais das várias sociedades em que a língua portuguesa, em suas diferen- tes variedades, é falada e nos impactos dessas mudanças na configu- ração dos caminhos que a língua veio tomando ao longo do tempo. Nosso objetivo é observar como as variedades linguísticas români- cas que emergiram das variedades do latim falado no Noroeste da Península Ibérica área que compreende hoje aproximadamente 49 SOCIEDADE, LÍNGUA, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO 50 Carlos Alberto os territórios da Galiza (Comunidade Autônoma da Espanha) e do norte de Portugal se expandiram para o sul, ocupando toda a fai- xa ocidental da Península; e, posteriormente, na esteira da expansão marítima e do colonialismo português, deixaram as fronteiras da Eu- ropa, instalando-se na Ásia, na África e na América e constituem hoje uma língua multinacional, pluricêntrica e Desenvolvemos aqui uma história da língua portuguesa que amos chamar de sociopolítica e cultural. Muitos são os caminhos que se podem tomar para fazer esse tipo de história, desde o fundado no que o historiador britânico Peter Burke designou de tópos do orgu- lho (isto é, um esquema discursivo que, ao tratar da língua, o faz por um viés cheio de orgulho a língua mais bela, a língua mais sonora, a língua mais perfeita, "minha pátria é minha língua" etc.), até um olhar que privilegia a crítica dessas narrativas porque o discurso do orgulho, para se manter em pé, precisa apagar parte da heterogenei- dade e dos conflitos sociolinguísticos. Foi este último o caminho que escolhemos, procurando trazer para a discussão boa parte da diver- sidade de opiniões e concepções sobre a língua portuguesa. 1.6 Cultura Não é fácil conceituar cultura. É frequente nos manuais que se pro- a fazê-lo a mera listagem de alguns elementos que compõem a cultura sem fornecer uma visão mais geral da questão. Por isso, é importante, primeiro, lembrar que não há sociedade humana sem cul- tura. Os antropólogos em geral defendem que o ser humano é o único animal a ter cultura, isto é, o único que ultrapassou o que lhe dá a natu- reza e cria, nas formações sociais de que faz parte, todo um complexo modo de vida como resposta às suas condições existenciais concretas. Mais recentemente, estudos sistemáticos de alguns outros ani- mais, como alguns primatas e alguns cetáceos, sugerem que há nessas espécies comportamentos a indicar a existência do que podería ser tomado como rudimentos constitutivos de práticas culturais (aspectos que, aparentemente, estão indo além do pura- mente instintivo e, mais importante, são, também aparentemente, transferidos para as gerações mais novas). No entanto, é bastante</p><p>evidente: a espécie humana alcançou patamares substancial e in- comparavelmente mais complexos em suas ações para além dos seus dispositivos naturais. Por isso, é preciso cautela frente ao que se observa em outras espécies animais para não simplificarmos o que é altamente complexo. Neste livro, vamos entender cultura como o conjunto de práticas e produtos que constituem o modo de vida de cada grupo humano. Esse conjunto engloba os aspectos materiais da vida humana, mas não só: ele inclui também sistemas de significações. Ou seja, o ser humano não apenas faz, mas também atribui valores e sentidos ao que faz e os expressa por meio de signos. ser humano é, pois, um ser de múltiplas linguagens. Os processos e produtos da ação humana se distribuem, portanto, entre os que estão numa esfera material (processos dos quais re- sultam "coisas", artefatos) e outros que estão numa esfera imagi- nário-discursiva (processos dos quais resultam sentidos, significa- ções e narrativas). Essas duas esferas estão, claro, interligadas: agimos, fazemos, produ- zimos e, ao mesmo tempo, recobrimos nosso fazer e seus produtos com uma densa trama de valores, imagens e discursos. Costuma-se dizer que a cultura tem uma face material e outra imaterial. Os dois adjetivos nos ajudam a ordenar a multiplicidade constitutiva de todo um modo de vida. No entanto, pode-se dizer que a face imaterial tem também sua materialidade, pois ela é feita de linguagens, de signos. Nossos fazeres estão sempre, portanto, entrecruzados por dinâmicas semióticas. Nesse sentido é que se diz que o ser humano não vive pro- priamente na biosfera, mas na semiosfera, ou seja, nossa vida transcorre num universo de signos e significações. Transitamos entre coisas e signos, entre práticas e representações, entre fazeres e linguagens. Fazem, então, parte da cultura as ferramentas e os artefatos, os cos- tumes e as práticas cotidianas, os processos produtivos (indústria e agricultura) e as práticas comerciais, a atividade política e as práticas científicas, os fazeres artísticos e as práticas jurídico-normativas, os hábitos alimentares e as práticas de saúde, as atividades esportivas e de lazer e os padrões de beleza, as crenças e os valores, os mitos e as SOCIEDADE, CULTURA 51</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto 52 narrativas e assim por diante quase ao infinito, dada a complexidade do modo de vida humano. 1.6.1 língua e cultura A língua, em sua heterogeneidade, é parte da cultura, é um dos ele- mentos constituintes da cultura. No entanto, ela é também constitu- tiva da cultura no sentido de ser ela o principal elemento semiótico que dá liga às inúmeras relações sociais e dá forma sígnica aos inú- meros processos imaginário-discursivos pelos quais os seres huma- nos, organizados socialmente, atribuem os mais diversos sentidos às suas condições existenciais e às suas experiências. Dessa forma, podemos afirmar que a língua expressa a cultura: ela juntamente com todas as linguagens não verbais (as artes visuais, a música, os gestos, expressões faciais e a dança, as artes escultó- ricas e arquitetônicas etc.) dá materialidade sígnica às práticas culturais, permitindo que os grupos humanos criem os universos de significações com os quais interpretam sua existência, ou seja, dão valores e sentidos ao que fazem e como fazem. Nesse sentido, se diz: o ser humano vive não apenas num ambiente natural (numa biosfe- ra), mas também numa grande semiosfera (num universo de signos). Se um objeto de cerâmica, por exemplo, encontrado por um arqueó- logo dá pistas materiais de uma determinada cultura perdida no tempo, são os universos de significações que revelam as escalas de valores, os construtos ideológicos, as interpretações, as visões de mundo de um grupo humano. Por isso se diz que, quando uma língua se extingue (e há muitas línguas indígenas em extinção no Brasil na atualidade), é toda uma cultura que se perde; é toda uma significati- va experiência humana que se apaga. Vivemos em sociedade, e é em meio às inúmeras relações sociais que a totalidade da cultura toma forma. E, assim como a sociedade é he- terogênea, e contraditória, simultaneamente integrada e fragmentada em constante devir, igualmente o é a cultura: heterogênea, porque os diferentes grupos que constituem a so- ciedade e estão envolvidos nas mais diversas atividades pro- duzem seus próprios modos de vida;</p><p>contraditória, porque os distintos grupos e classes sociais - sen- do ocupantes de diferentes posições nas hierarquias socioeconô- micas e nas consequentes redes de poder e dominação - pro- duzem modos de vida que não apenas são diferentes, mas que, expressando interesses e valores distintos, conflitam entre si; simultaneamente integrada e fragmentada, porque há, nos mo- dos de vida de determinada sociedade, elementos que contri- buem para a criação de uma unidade cultural imaginária (as chamadas tradições inventadas com as quais se busca fazer sobrepor uma unidade à diversidade); e há outros elementos que diferenciam, dividem, afastam os modos de vida e intensi- ficam a diversidade cultural; em constante devir, porque as dinâmicas socioeconômicas heterogêneas e contraditórias da sociedade repercutem nos modos de vida dos diferentes grupos sociais e lhes dão movi- mento no eixo do tempo, provocando mudanças em suas con- figurações. Em outras palavras, as culturas têm história. Considerando essas características, fica logo claro que é inadequado falar em cultura no singular. que há, no interior de cada sociedade, são muitos modos de vida, são muitas culturas. Contudo, é comum usar a palavra no singular e qualificá-la com um adjetivo que remete ao estado-nação. Assim é que se usam expres- sões como "cultura brasileira", "cultura japonesa", "cultura etc. Como vimos, o estado-nação tem sido uma quase inescapável ca- tegoria a balizar modernamente os estudos sociológicos e antropo- lógicos. Daí o esforço, muito frequente, de se tentar trabalhar sob o pressuposto de uma unidade e homogeneidade cultural de um modo muito semelhante ao que se faz com as línguas. Ora, a realidade cultural, tal como a realidade linguística, é carac- terizada por pluralidade e heterogeneidade, mesmo que atrelada a um determinado estado-nação. Se o português brasileiro, por exemplo, é de fato um conjunto de variedades linguísticas, assim também temos de entender a expressão singular e genérica "cul- tura ela recobre um conjunto de culturas diferentes, de modos de vida diferentes, de diferentes respostas que os grupos 53 LINGUA, CULTURA</p><p>54 HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto Faraco e classes sociais dão às suas respectivas condições existenciais no espaço do estado-nação Brasil. Comparem-se os modos de vida dos pobres e dos ricos, dos grupos urbanos e dos rurais, dos jovens e dos idosos, dos muito escolari- zados e dos pouco, dos ribeirinhos amazônicos e dos operários de São Paulo, das classes médias e das populações faveladas, dos povos indígenas e dos descendentes de imigrantes, e assim por diante. Mais que isso: entrecruzem-se todos esses segmentos sociais (pense-se, por exemplo, no modo de vida de jovens rurais, pobres, pouco escolari- zados e naquele de idosos urbanos, ricos, muito escolarizados) e logo fica clara a extrema diversidade cultural da sociedade em que 1.6.2 Falar a mesma língua é ter a mesma cultura? Outra questão frequente nos estudos de língua e cultura é saber se falar a mesma língua é ter a mesma cultura. Algumas vezes, se ouve que sim. No entanto, se considerarmos que tanto a língua quanto a cultura são heterogêneas e contraditórias, como procuramos de- monstrar neste capítulo, será difícil manter essa afirmação, toman- do-a em sentido absoluto. Diante das heterogeneidades apontadas aqui, o que é falar a mesma língua? 0 que é ter a mesma cultura? Para se sustentar, a afirmação de que falar a mesma língua é ter a mesma cultura pressupõe necessariamente unidade e homogenei- dade. E vimos que a unidade e a homogeneidade são criações imagi- nárias pairando sobre as realidades heterogêneas. Podemos ainda mais longe e perguntar se falantes de português dos diferentes países em que é língua oficial têm a mesma cultura: moçam- bicanos e brasileiros têm a mesma cultura pelo fato de falarem portu- guês? Ou portugueses e brasileiros? Ou cabo-verdianos e timorenses? Há um discurso idealizado e de exaltação que defende essa unidade de língua e cultura. Hoje ele se corporifica principalmente sob o termo lusofonia. Há, nesse discurso, uma ênfase no papel que a língua exerce, em tese, como elemento aglutinador dos povos que a falam e daquilo que haveria de chão comum, dado pelo colonizador</p><p>português, em suas respectivas culturas. Não se dá, obviamente, ên- fase à língua como indicadora, em sua heterogeneidade intrínseca, de uma específica ordenação do mundo social, com suas divisões, delimitações de territórios e conflitos. É curioso observar que mesmo num documentário brasileiro lauda- tório da língua como Além-Mar, feito em 1999, o que aparece recor- rentemente em todos os países de língua oficial portuguesa como fenômeno cultural comum são os rappers - que, obviamente, não constituem elemento do chamado "legado Esse legado é, até agora, muito mais mítico do que real: ele está ainda por ser empiricamente detalhado ou seja, ainda é preciso respon- der criticamente à pergunta sobre que legado positivo pode ter dei- xado um estado fundamentalmente patrimonialista, uma sociedade controlada durante trezentos anos pelo obscurantismo da Inquisi- ção, marcada por grande atraso educacional, científico, tecnológico, econômico e gerida por uma tradição política predominantemente autoritária. Apesar disso tudo, o dito "legado português" costuma ser apresentado sempre em tom acrítico de transbordante exaltação. E agora sob o ilusório termo lusofonia. 1.6.3 A ilusória lusofonia Diz-se lusofonia, alguma vezes, apenas para fazer referência ao con- junto dos falantes de português mundo afora, incluindo aí as diver- sas diásporas de fala portuguesa e mesmo, em alguns casos, a pró- pria Galiza (ou seja, incluindo toda a "família" de línguas saída do romanço originário da Gallaecia Magna). Trata-se, em princípio, de um uso apenas descritivo (de uma espécie de o nome delimita, com na uma "conforto terminológico") quantidade não base língua, maio- determinada e, aparentemente, carrega res implicações valorativas, pelo menos quando não estão atreladas ao termo as exacerbadas expressões do tópos do orgulho o que não é incomum. Mas lusofonia pode ser também o nome de certos projetos estraté- gicos de geopolítica que tomam a língua (teoricamente compartilha- 55 LINGUA, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto Faraco 56 da) como sua justificativa de base (a criação, por exemplo, de um organismo internacional que reúne os países de língua oficial portu- guesa: a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa); ou, algumas vezes interconectados com estes, de projetos essencialmen- te linguístico-culturais, centrados na promoção da língua e de suas expressões culturais. Os projetos linguístico-culturais costumam, em geral, ser justifica- dos com base numa pressuposta e idealizada (algo etérea) irmanda- de de "sentimentos e tradições", num senso de lírica pertença a uma indefinida comunidade transnacional e intercontinental, unida pelo imaginário da mesma língua e de tudo que o acompanha. Irmandade e comunidade que deveriam ser protegidas e promovi- das num mundo globalizado que acredita-se - estaria caminhan- do para uma perigosa uniformização linguística e cultural a que se deveria resistir, cultivando uma especificidade que, não raras vezes, é magnificada pelo tópos do orgulho. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra luso- fonia teve seu primeiro registro "conhecido ou estimado" só depois de 1950. No entanto, tudo leva a crer que foi só na virada da década de 1980 para a de 1990 que, no contexto português, a palavra começou a circular com mais frequência, aliada basicamente ao movimento de uma recomposição das relações de Portugal com suas ex-colônias africanas e com o Brasil. Nos primeiros anos do período pós-Revolução dos Cravos que, em 1974, derrubou a ditadura colonialista em Portugal -, pouco ou nada se fez para recompor essas relações: Portugal lutava para se estabili- zar política e economicamente; o Brasil, sob regime ditatorial ainda até 1984, via com suspeita a nova situação política portuguesa; os sen- timentos anticoloniais nos novos países africanos eram ainda muito grandes e, em parte deles, as guerras pela independência haviam sido seguidas por guerras civis em (que só conheceu a paz em 1992) e em Angola (cuja paz veio só em 2002); e, por fim, o Timor- -Leste estava sob ocupação militar da Indonésia desde 1975 (até 1999). Só no fim da década de 1980 é que esse panorama começou a mu- dar: Portugal integrado formalmente à Comunidade Europeia em</p><p>1986 voltou a se aproximar de suas ex-colônias africanas (já mais receptivas ao reatamento dos laços com a ex-metrópole) e do Brasil (redemocratizado). Não certamente por acaso esse é também o pe- ríodo em que em Portugal se começou a falar, com certa intensidade, de lusofonia - termo e tema que vão merecer ali muitas loas e tam- bém muitas críticas. próprio conceito de "país lusófono" é um ter- reno polêmico e nada consensual, principalmente quando aplicado aos países africanos e, pelas mesmas razões, ao Timor-Leste. A linguista Perpétua Gonçalves, em comunicação lida na mesa-redonda Discutindo Lusofonia durante o II Congresso Inter- nacional de Linguística Histórica (realizado em São Paulo de 7 a 10 de fevereiro de 2012), deixou claro que o uso do termo "lusófono" para designar os países africanos de língua oficial portuguesa é ina- dequado porque com ele se apagam do mapa linguístico as outras línguas faladas por vastas comunidades de todos esses países, dei- xando entender que o português é a língua materna majoritária das suas populações e, por conseguinte, é também a língua de cultura e de identidade a nível nacional. Com isso, se oblitera o multilinguismo e a multiculturalidade daqueles países. Ao fazer essa pertinente crítica, Perpétua Gonçalves ressalta que, com isso, não se está pondo em causa a escolha do português como língua ofi- cial dos países africanos, principalmente considerando que ele desem- penha funções que as línguas locais (ainda) não podem desempenhar. Não se trata, portanto, de conceber para esses países um cenário em que o português esteja ausente. 0 que está em causa é o recurso, relativamente abusivo, à lusofonia, para identificar genericamente o conjunto dos países de língua oficial portuguesa. português nesses países cumpre importantes funções políticas, so- ciais e culturais. No entanto, não é a língua nacional hegemônica como o é em Portugal e no Brasil (e só por isso é questionável classificá-los como "lusófonos"). Mais ainda: o português pode ter ali um efeito glo- tofágico se sua difusão não for acompanhada de políticas (como, por exemplo, a oferta de educação bilíngue) que respeitem e promovam a diversidade linguística e cultural de cada um desses países. SOCIEDADE, LÍNGUA, CULTURA 57</p><p>HISTÓRIA DO Carlos Alberto Faraco 58 Assim, um dos grandes desafios presentes nos países africanos de língua oficial portuguesa é justamente garantir que o estatuto de lín- gua oficial do português não redunde no silenciamento e no desapa- recimento das línguas nacionais, o que exige que a língua portuguesa partilhe com as demais línguas nacionais seu espaço na educação, na comunicação social e nos demais contextos públicos e privados. Se, no período colonial, as línguas locais eram consideradas pelo co- lonizador como obstáculos para a assimilação linguística e cultural das populações colonizadas (e, por isso, eram proibidas no espaço público); e, no imediato pós-independência, elas foram marginaliza- das porque os novos governantes consideravam a uniformização lin- guística e cultural como condição indispensável para a preservação da chamada "unidade nacional", nas últimas décadas, há um esforço para corrigir a política monolítica dos primeiros anos de indepen- dência com base num entendimento de que não cabe recusar a diver- sidade como forma de realizar a unidade, considerando que ela não deve ser entendida como uniformidade. Parece quimérico pensar num "mundo da língua portuguesa" que seja igualmente um mundo de culturas unificadas por traços comuns decorrentes de terem uma língua (teoricamente) compartilhada. 0 filósofo e ensaísta português Eduardo Lourenço, profundo estudioso das relações culturais entre Brasil e Portugal, argumentou, em vários de seus textos, que nada há de uno e uniforme que realmente se pos- sa designar por cultura ou comunidade lusófona. Do mesmo modo, o linguista português Ivo Castro, ao arrematar uma longa análise so- bre os muitos conceitos de lusofonia, afirma: "No mundo das coisas reais, não existe um reino maravilha chamado Lusofonia". Reforçando esses discursos críticos, a linguista brasileira Eni Orlan- di traz uma ponderação que sustenta o descarte do pressuposto de que falar a mesma língua é ter a mesma cultura. Ela considera que a transposição da língua portuguesa para o Brasil se deu por um novo processo de transposta para um novo contexto (ou- tras relações sociais, políticas, culturais não mera extensão, espe- lho ou reduplicação do país colonizador) -, a língua passou a signi- ficar de modo diferente. Ou, em outras palavras, passou a produzir,</p><p>nesse novo sítio de enunciação, efeitos de sentido diferentes a lín- gua passou a fazer sentido para sujeitos outros, incorporando outra memória discursiva, resultando daí uma descolonização linguística. Eni Orlandi estende essa sua análise a todos os países de coloniza- ção portuguesa - em todos se dão peculiares processos de histori- cização da língua e, por isso, esta se descoloniza em direções dife- rentes. Daí conclui não haver uma unidade homogênea que se possa chamar de lusofonia. Neste ponto, é pertinente voltarmos às reflexões do filósofo e ensaís- ta português Eduardo Lourenço, certamente um dos mais perspi- cazes intérpretes da complexidade subjacente às relações linguís- tico-culturais entre Brasil e Portugal. Lourenço desenvolveu suas reflexões sobre esses temas em vários textos e em épocas diferentes, principalmente depois do período que passou no Brasil como pro- fessor da Universidade Federal da Bahia nos fins da década de 1950. Reiteradas vezes, ele argumenta ser necessário abandonar critica- mente tanto a retórica sentimental, quanto a crença no pressuposto de uma unidade que não existe de fato. Segundo pensa Lourenço, para haver um "verdadeiro, fecundo, desejá- vel e necessário diálogo" entre Brasil e Portugal, é preciso reconhecer as profundas diferenças que separam as duas culturas, "a distorção, orgânica e fatal, das relações entre o mundo da cultura portuguesa e o mundo imenso da cultura brasileira". Lourenço conclui sua análise dizendo: quando portugueses e brasileiros se encontram, são duas realidades distintas que dialogam, são duas formas de consciência histórica profundamente diversas que se confrontam. Em outras pa- lavras, resultam de duas muito diversas (para apro- veitar a expressão de Eni Orlandi). Não há medida comum entre as realidades históricas e sociocultu- rais dos dois países porque cada qual seguiu percursos históricos e culturais divergentes, estando ambos em duas esferas (Europa e América do Sul) muito distintas em termos de economia, política, co- municações, trocas e presença cultural uma geopolítica que con- tribui pouco para reforçar os laços e acena para um futuro em que cada vez mais as duas sociedades se afastam para "galáxias culturais diferentes", numa deriva que talvez seja inevitável. 59 SOCIEDADE, CULTURA</p><p>HISTÓRIA DO PORTUGUÊS Carlos Alberto Faraco 60 considera que esses caminhos divergentes estavam já da- Lourenço dos desde o início da chegada dos portugueses ao território que viria a ser o Brasil. Ao vir para a América do Sul, eles não se deslocavam numa viagem do mesmo para o mesmo, de um Portugal para um Por- tugal maior, mas começavam a ser "outros", prenúncio dos ros em sentido forte que um dia seriam. Lourenço não nega a relevância da história partilhada durante três séculos. No entanto, também não peso absoluto na partilha lin- guística. Trata-se, para ele, de uma língua que "nos une e nos separa. Sem remissão". Por isso, expressa mais de uma vez sua concordância com a afirmação do então presidente brasileiro, o sociólogo Fernan- do Henrique Cardoso, de que "falar a mesma língua não significa ter a mesma cultura". Lourenço, do mesmo modo que Orlandi, estende essas reflexões ao conjunto dos países de língua oficial portuguesa e defende que, nesse contexto, é preciso pensar sempre no plural, quebrando a mitologia que se assenta no pressuposto da unidade, no pressuposto de uma imaginária cultura lusófona, harmoniosamente partilhada entre os povos que se assumem falantes da língua portuguesa. Se há (e imagina-se que possa haver) aspectos compartilhados (na medida em que a experiência linguística em sua heterogeneidade tem, pela sua historicidade, pontos de contato), é preciso buscá-los e caracterizá-los sem, no entanto, cair num discurso etéreo de "unidade de sentimentos e afetos" e sem perder a perspectiva da pluralidade. Quando se diz que falar a mesma língua não significa ter a mesma cultura, que está sob crítica é pressuposto da unidade e da unifor- midade linguístico-cultural; não os possíveis pontos comuns a atra- vessar eventualmente a</p>

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