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CAPA 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 3 2 OBJETIVOS DA EXPOSIÇÃO 4 1 TEOLOGIA: DEFINIÇÕES E DIMENSÕES DE CIENTIFICIDADE. 5 1.1 A singular natureza da teologia e a experiência religiosa 10 1.2 Características da prática teológica 14 1.3 O objeto da teologia 15 2 TEOLOGIA E CIÊNCIA DAS RELIGIÕES: DIFERENÇAS, PROXIMIDADES E ALIANÇAS. 18 2.1Parâmetros de cientificidade para o conhecimento teológico 19 2.2 Abordagens específicas da teologia e das ciências da religião 22 2.3 Convergências entre teologia e ciências da religião 24 2.4 Aplicação das ciências da religião para a teologia 28 3 TEOLOGIA, FILOSOFIA E HERMENÊUTICA: AS CONTRIBUIÇÕES DA FENOMENOLOGIA E DA DESCONSTRUÇÃO 31 3.1 Fé e teologia: a busca da verdade na religião e na filosofia 39 3.2 A teologia enquanto ciência hermenêutica 44 4 TEOLOGIA E CIDADANIA: MOVIMENTOS E TENDÊNCIAS. 47 4.1 Os principais movimentos teológicos do século XX 48 4.2 Os movimentos teológicos evangélicos 54 4.3 A teologia da libertação 59 5 TEOLOGIA, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA 64 5.1 A doutrina social da igreja católica e os direitos humanos 66 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 71 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 OBJETIVOS DA EXPOSIÇÃO A teologia é uma área milenar do saber humano. A investigação teológica é aquela que se esforça para compreender a Divindade e as formas pelas quais os seres humanos se relacionam com sua fé e religiosidade. Os conhecimentos construídos pela teologia não se submetem de modo exclusivo e acrítico à cientificidade acadêmica ou tradicional, mas se desenvolve através de metodologias próprias, com as quais procura manter seu caráter de ciência reconhecida socialmente e academicamente, apresentando-se, assim, como resultado de uma longa tradição e acúmulo teórico. Estudar teologia possibilita a ampliação do conhecimento sobre a fé professada, de modo que ela possa se fortalecer e solidificar conforme sua inserção na vida do teólogo e seu papel na comunidade religiosa a qual pertence. A teologia parte do pressuposto de que a experiência da fé possui e busca sua própria inteligibilidade, entendendo que a razão tem um papel a posteriori no que diz respeito à elucidação do fenômeno religioso e da crença. Nesta exposição, estudaremos alguns dos aspectos fundamentais da teologia enquanto ciência e também como práxis existencial, tratando das suas relações com o tema da cidadania e sua complexidade no mundo contemporâneo. Nosso estudo está dividido em cinco momentos: - Teologia: definições, dimensões e cientificidade, no qual apresentamos ao estudante conceitos e conteúdos básicos com o objetivo de possibilitar seu entendimento do que é a teologia e sua importância. - Teologia e ciências das religiões: diferenças, proximidades e alianças, na qual são apresentadas as diferenças entre uma abordagem teológica do fenômeno da fé e os objetivos e práticas das ciências da religião no mundo contemporâneo. - Teologia, filosofia e hermenêutica, onde tratamos das contribuições da filosofia a reflexão teológica no mundo contemporâneo, voltando-nos para duas correntes filosóficas fundamentais: a fenomenologia e a desconstrução. 5 - Teologia e cidadania: movimentos e tendências, onde apresentamos conteúdos sobre o sentido social dos movimentos teológicos e seus impactos políticos na sociedade contemporânea, tendo em vista o conceito e a prática de cidadania que eles tornam possíveis. - Teologia, direitos e humanos, no qual são apresentados ao estudante a relação existente no mundo contemporâneo entre teologia, direitos humanos e cidadania, dando ênfase à doutrina social da Igreja Católica, na medida em que ela é um fenômeno que vai impactar também outras tendências e instituições religiosas, no que tange a necessidade de uma consideração da ética cristã como prática voltada à fraternidade. 1 TEOLOGIA: DEFINIÇÕES E DIMENSÕES DE CIENTIFICIDADE. Fonte: peloevangelho.org Nomear uma experiência é uma forma de compartilhá-la, colocando em cena os seus sentidos e significados, tornando-a um sistema de eventos intersubjetivos, fazendo surgir seu alcance social e cultural. Partindo desta perspectiva, uma das maneiras de compreender o sentido de uma disciplina, prática ou experiência humana é considerar a raiz etimológica das palavras pelas quais elas são reconhecidas e expressas, pois cada palavra nasce atrelada a um significado social, existencial, 6 cultural e etimológico. A raiz etimológica de uma palavra, atravessa o seu significado, ainda que seus sentidos sejam ampliados ao longo do tempo. Desta maneira, estudar a etimologia é adentrar nos usos e práticas a quais ela se refere, constituindo, assim, um bom caminho para começar entender os conteúdos e objetivos de uma disciplina. De acordo Líbano e Murad (1996, p. 63), a palavra teologia é composta “[…] etimologicamente de dois termos, que lhe definem a natureza: Théos + logía = Deus + ciência (ou linguagem quando consideramos que logia surge da modificação da palavra logos que pode ser pensamento, linguagem, estudo, indicando a capacidade loggia humana de tomar um aspecto da vida enquanto questão a ser pensado). Estritamente, portanto, teologia significa ciência ou estudo sobre Deus, tendo como base um léxico, isto é, um uso da linguagem e uma tradição exegética específicas. Em sua gênese sociocultural, o termo teologia não nasceu vinculado a significados e práticas judaico-cristãs, mas nos remete a cultura grega e pagã, situando-nos em raízes distantes da cultura religiosa da maioria dos ocidentais, mas que também diz muito sobre nossa formação cultural e histórica. Nas palavras Líbano e Murad (1996), o termo teologia […] lança suas raízes no mundo grego pagão. No teatro, havia acima do palco um lugar onde os deuses apareciam “theologeion”. O verbo “theologȇo” significava discursar sobre os deuses ou sobre cosmologia ou referir-se a uma influência divina. O termo “theologia” exprimia a ciência das coisas divinas ou a oração em louvor de um deus ou o encantamento e invocação de um deus (LIBANIO; MURAD, 1996, p. 65) Em sentido filosófico, a palavra já tinha sido citada por Platão e Aristóteles Apesar de se referir ao estudo dos deuses, ela tinha uma conotação metafísica e filosófica. No caso de Platão, ele adquire um sentido em sua teoria do Demiurgo enquanto artífice do universo; em Aristóteles, ela se liga à teoria das quatro causas e às concepções metafísicas pelas quais o filósofo busca entender a causa de todas as coisas. Na era cristã, sobretudo no contexto da Idade Média, nas construções filosóficas da patrística e escolástica, a teologia adquiriu contornos convergentes com a tradição cristãe se desenvolveu enquanto uma disciplina científica preocupada com questões relacionadas a fé e a Divindade. 7 O conceito teologia situa-se, portanto, numa sequência de movimentos históricos e conceituais que terminam em sua configuração tal com pensada pela tradição filosófica medieval e suas preocupações em justificar a doutrina cristã em relação a outras tradições religiosas e filosóficas. Trata-se, por outro lado, de operação intelectual humana, fundada pelo esforço de compreensão através da fé (LIBANIO; MURAD, 1996, p. 67) Trata-se de uma ciência que está diretamente relacionada à experiência religiosa de crença. Essa experiência passa por uma reflexão sistemática e uma justificação racional e intelectual. No entanto, não se esgota através de práticas explicativas, mas num aprofundamento da fé enquanto vivência existencial e comunitária. Para Libanio e Murad (1996, p. 69), “A teologia se faz a partir de uma atitude de fé. No sentido estrito, não faria teologia alguém que duvidasse da revelação. Não faria teologia quem não tivesse em busca de uma certeza na fé que não tem”. Sob essa perspectiva, a teologia é uma atividade de fé que, mesmo sistemática e científica, não se esvazia em um discurso. A teologia é uma ciência, já que parte de uma fé inteligível amadurecida e uma racionalidade encarnada. No entanto, não se configura conforme o conceito de cientificidade mais constante e aceito no âmbito das tradições do pensamento moderno. O modelo cientificista naturalista em que o fenômeno é verificável, contestável e sujeito a uma comprovação metodológica é distinto e insuficiente ao horizonte teórico-prático da teologia. A cientificidade da teologia aceita uma multiplicidade de linguagem, e sua estruturação metodológica é conduzida e construída de maneiras próprias. Nesse horizonte singular, a metodologia teológica acolhe se esforça por compreender as experiências humanas, estando mais próxima metodologicamente de disciplinas como antropologia e as ciências da religião, ainda que seja fundamental compreender que a profissão de um ato de fé a torna uma forma de conhecimento específica em relação a essas ciências. Além disso, não é necessário se distanciar da vida vivida e experimentada no cotidiano para se fazer teologia. É necessário, apenas, estar de acordo com as bases confessionais e eclesiais das experiências religiosas e institucionais. Os teólogos estão em consonância com a tradição das suas religiões, critério de inclusão e 8 reconhecimento do fazer científico de sua ciência. O teólogo de perspectiva católica romana necessita fazer através da teologia de aprofundamento da sua fé e da comunidade religiosa em que está inserido, contemplando, assim, a tradição e o magistério de sua escolha religiosa. Do mesmo modo, em qualquer outra tendência religiosa só é possível fazer teologia quando se têm, isto é, acredita-se na existência daquele que se pretende conhecer, ou seja, Deus. Na atualidade, os estudos teológicos têm se ampliado. A teologia das religiões, e não apenas da religião católica, tem ganhado destaque. Segundo Ribeiro e Souza (2012, p. 28) “Há, desde os anos de 1990, um florescer de novas concepções teológicas oriundas das preocupações com o encontro e o desencontro do cristianismo com as demais religiões”. Numa perspectiva ecumênica, a teologia tem ganhado espaço em detrimento dos horizontes mais fundamentalistas e sectários. O grupo de teólogos têm, assim, aberto seus horizontes investigativos, partindo de situações mais experienciais e, talvez, menos fundamentalistas e tradicionais. Ao falar sobre teólogos da contemporaneidade, Ribeiro e Souza (2012, p. 89), indicam: […] sabemos que as ideias, concepções e formulações desses(as) pensadores(as) não saíram do conforto de escritórios, mas sim da trajetória de vida, marcada por desafios, descobertas, aberturas para o diálogo, alegrias de vivências e convivências dialógicas, reconhecimento de limites e também por incompreensões, crises e até mesmo enfrentamentos jurídicos e virulentas oposições. Apesar de haver disciplinas mais sistemáticas e dogmáticas, bem como teólogos com posturas mais apologéticas, também tem crescido um fazer teológico com uma postura de valorização da alteridade e do ecumenismo, que considera e fomenta a pluralidade das experiências humanas de fé. O fenômeno religioso tem sido cada vez mais plural, visto que as experiências religiosas, na atualidade, se constituem enquanto bricolagens, encontros de diversas religiões e práticas rituais, o que torna a experiência religiosa o sintoma de apropriações culturais que também manifestam, ao seu modo, a universalidade da fé, mas pelos modos múltiplos e contraditórios de sua manifestação. A bricolagem é, assim, marca da experiência religiosa no mundo contemporâneo. A religião, antes atrelada e ajustada em uma perspectiva 9 institucional, agora pode ser vivenciada sem essa necessária correlação com as instituições religiosas, o que leva a formação de comunidades religiosas de pequeno porte em que aspectos doutrinais são vividos de modo singular e espontâneo. Logo, os adeptos, em busca de sentido para as suas vidas e significado para as suas histórias, acabam por fazer do fenômeno religioso uma bricolagem: recortes das várias possibilidades de expressão religiosa, que de algum modo correspondam aos seus anseios de vida. Fonte: revistasenso.com Esses novos formatos oferecem às ciências da religião e também a teologia novos campos e temas de investigação. No entanto, para a teologia, ainda é apresentado o desafio de se construir atenta e fomentada pelo ecumenismo e sensível ao diálogo inter-religioso. Para os teólogos ecumênicos, “[…] o caráter de apologia, de sectarismo ou de exclusivismo, é ou deve ser evitado” (RIBEIRO; SOUZA, 2012, p. 201). Essa postura ecumênica evoca atitudes metodológicas e experienciais da fé, também ecumênicas e plurais, no que tange aos estudos teológicos. O desafio é pensar em aprofundamentos da fé, partindo do pressuposto de que as instituições religiosas e a fé estão encarnadas em um mundo real, cheio de especificidades, que elas não são perfeitas e configuram práticas sociais e, por isso, humanas. 10 1.1 A singular natureza da teologia e a experiência religiosa Fonte: diocesedeosasco.com Razão ou experiência? Ao longo da história do pensamento e das práticas de saber, grande parte das discussões sobre essas duas dimensões foram perpassadas por uma compreensão dicotômica, ou seja, como se elas fossem dimensões opostas em necessária contradição. Nesse embate, algumas vezes, a balança pendeu para a razão e, em outros momentos, para a experiência, como se fosse possível, facilmente, estabelecer cisões, fronteiras e contornos distintivos e definitivos entre elas, esquecendo que elas se mostram fortemente ligadas à nossa existência. A consideração dicotômica foi reforçada por Descartes e sua concepção dualística da existência humana. Assim, a experiência, entendida apenas como abertura sensorial ao mundo, foi colocada em situação de inferioridade em relação à razão, apresentada como uma potência capaz de superar e transformar os obstáculos cognitivos e epistemológicos impostos pela experiência sensorial. Duas coisas devem ser notadas sobre esse ponto: primeiramente, o caráter restritivo da noção de experiência, entendida apenas como algo advindo dos sentidos. Por outro lado, a desvalorização do aparelho sensorial humano enquanto fonte de conhecimento. As duas posições têm fundamentação questionável. Em uma noção ampliada de 11 experiência temos que considerar não apenas a abertura do aparelho sensorial ao mundo, mas formas de configuração pelas quais o ser humano se faz um ser de múltiplas dimensões enquanto capaz de experiência dememória e conhecimento, por exemplo. A desvalorização dos sentidos também é uma posição demasiadamente equívoca, já que se é preciso não considerar a aparência e o mundo dos sentidos como sinônimo de verdade, é preciso, por outro, compreender que é pelos sentidos que começamos a experimentar e a pensar o mundo. Nessa perspectiva, a ideia de que apenas com o exercício racional se poderia chegar às verdades válidas parece uma incongruência, ainda que não seja possível reduzir todos os objetos ou fenômenos a serem conhecidos a ideia de que eles devam primeiramente passar pelos sentidos. Com as revoluções científicas, o surgimento das discussões propostas pelas ciências humanas e sociais, a fenomenologia e o pós-estruturalismo, as compreensões da modernidade clássica sobre dimensão fenomênica e sensorial da experiência e conceito de verdade têm sido questionadas. Algumas perspectivas epistemológicas têm se esforçado para argumentar sobre a correlação entre a razão e a experiência, sem que haja uma distância entre elas, mas uma complementaridade. Para a fenomenologia, em uma perspectiva heideggeriana, por exemplo, a mutabilidade do fenômeno não pressupõe um equívoco, mas é o modo próprio do desvelamento do ser e do ente (CRITELLI, 2007). Além dos muros acadêmicos, há aqueles que superestimam as experiências, pondo em dúvida a necessidade de que também sejam compreendidas e aprofundadas. No senso comum, ainda se questiona sobre a necessidade de aprofundar alguns aspectos da vida, como se não necessitasse do conhecimento teórico e elucidação, ou que não pudessem também ser objeto de uma reflexão pessoal que tive em vista o amadurecimento de nossas relações uns com os outros. A famosa frase “Política, futebol e religião não se discutem” parte do pressuposto de que essas áreas não precisam se tornarem objetos de reflexão. No entanto, aprofundar essas temáticas possibilita uma adesão política mais consistente, sobretudo porque essa área afeta diversas esferas da vida humana. A discussão sobre futebol, por exemplo, possibilita a compreensão do simbolismo 12 cultural, social e as ressonâncias econômicas do que ele representa e afeta. Por outro lado, o mais importante para a nossa discussão, o âmbito religioso pode ser melhor vivido quando a fé é aprofundada em compreensões sistemáticas. Os livros bíblicos judaicos e cristãos lembram constantemente que a sabedoria advém do aprofundamento da experiência, por isso, é importante notar que a teologia enquanto ciência também é uma experiência. Não se trata, portanto, apenas de construir explicações que possam dogmaticamente se contrapor à experiência, mas de aprofundar a fé a partir do conhecimento adquirido e oferecido pelo campo teológico. A teologia, como campo fundamental para o estudo da experiência religiosa e sua relação com a Divindade, possibilita, assim, o aprofundamento da fé e da experiência religiosa nas diferentes tradições e instituições. No âmbito específico do conhecimento teológico, a experiência tem papel fundamental, visto que é dessa experiência com o divino que nasce a própria possibilidade de fazer teologia, mas trata-se de um conceito amplo de experiência que não se restringe à ideia de abertura ao mundo através do nosso aparelho sensorial. Não há teologia fora de uma experiência encarnada de fé. Segundo Machado (2012, p. 87): A teologia pauta-se na experiência de Deus. Deus se auto comunica, fazendo-se acessível ao ser humano enquanto criatura capaz de Deus. Este ser humano é um ser transcendental, que se realiza na abertura a este outro. Da tentativa de exprimir esta experiência surge a teologia. Ela é uma palavra sobre o Mistério que se auto comunicou a nós, esforço para dizer algo sobre aquilo que é inexprimível e inesgotável. No campo experiencial, a fé ganha, portanto, contornos singulares e subjetivos, sendo necessário considerar o que ela significa para a pessoa humana. Para aqueles que buscam reconhecimento dos afetos e emoções através da fé, a satisfação religiosa advém de uma religião que busca afetividade na experiência com Deus. Os pragmáticos são homens e mulheres das obras, que buscam em Deus um sentido para o seu fazer e porquê fazer. O agir é extremamente importante nesse experienciar religioso e o trabalho em comunidade tem o objetivo de expandir a doutrina através de ações que efetiva a presença da religião na vida social. Há aqueles que são sociáveis e comunicáveis e experienciam o fenômeno religioso dentro de um horizonte comunitária pela troca com seus outros e o reconhecimento de que é com o outro que 13 a fé tende a se desenvolver e fortalecer. Há, ainda, os misericordiosos, em que a dimensão amorosa é a centralidade da sua vivência, preocupados com a caridade, fixam-se em uma visão de mundo escatológica e se mantém conectados à eterna esperança de um mundo melhor. As reflexões oriundas do campo teológico ajudam no aprofundamento da fé em suas múltiplas dimensões, isto é, nas formas variadas pelas quais ela se manifesta e significa para uma pessoa ou conjunto de pessoas. Durante muito tempo, as análises e as temáticas sob as quais a teologia se dedicava eram estruturadas de forma cristalizada e não histórica, para defender apenas premissas de fé e dogmática. No entanto, uma perspectiva dogmática pode facilmente excluir a diversidade da experiência da fé. Atualmente, a tendência é valorizar as várias formas pelas quais indivíduos e comunidades sistematizam para si uma vivência religiosa e o sentido de sua fé. O teólogo em sua pesquisa deve considerar as duas dimensões: o lado dogmático da doutrina e a maneira pela qual as pessoas vivem seus afetos religiosos. As defesas doutrinais e, portanto, as posturas apologéticas contribuíram com um tempo específico, mas que foi superado em termos sociais e que necessita ser superado em termos teológicos. As fórmulas defendidas, em consonância com o depósito tríade da fé (escritura, magistério e tradição), eram importantes e, em certo grau, continuam sendo, mas precisam ser constantemente revisitadas e perspectivadas conforme a vivência da pessoa humana. Sobre a atualização necessária no campo teológico e sua relação com as experiências religiosas, Machado (2012, p. 91), citando Gustavo Gutiérrez, um dos teólogos da libertação, explica que: Gustavo Gutierrez nos lembra que a teologia pensada como inteligência da mera afirmação de verdades necessita ser hoje um compromisso, uma atitude global em favor da vida, para que possa ser novamente relevante. Trata-se de um olhar atento à realidade concreta do povo, percebendo as maravilhas que são realizadas como também as dificuldades, lutas e desafios do povo lançando luzes de consolação e esperança. Uma linguagem abstrata, teórica e descontextualizada, que não diz nada para o ser humano de hoje nem mesmo quando este ainda se afirmar cristão. Este tipo de teologia faz a Igreja cair num descrédito em relação à sociedade e limita a reflexão e atuação da Igreja à “sacristia”; teologia sem influxo algum na sociedade e na cultura 14 Entende-se, assim, que a natureza da teologia é o aprofundamento da fé, mas um aprofundamento encarnado, histórico, que revisita suas formulações com vistas a construir diálogos frutíferos com as instituições religiosas, comunidades de fiéis e conjunto da sociedade. 1.2 Características da prática teológica As práticas humanas são ações executadas em consonância com uma determinada perspectiva e alinhadas com os respectivos objetivos da ação. Isto é, pressuposto e objetivo se articulam para oferecer os contornos necessários à práxis, sejam em ações vinculadas ao senso comum ou aos arcabouços técnicos e científicos de um determinado saber. Entende-se, assim, que toda práxis tem um caráter singular, formulada e executada segundo uma finalidade e um fundode sustentação, o que não é diferente com a práxis teológica. Os objetivos e pressupostos no campo teológico podem ser muitos. A teologia, enquanto uma práxis humana é uma ciência, têm diversos horizontes, apresentando, assim como sistemática, fundamental, dogmática, negativa, pastoral, entre outras caraterísticas. Cada área, se caracteriza por possuir uma perspectiva indutiva ou dedutiva, compreendendo e traçando de forma específica o objetivo de suas ações. Independentemente da área, a teologia tem como funções básicas aprender, aprender a fazer, fazer e viver (LIBANIO; MURAD, 1996). Quanto ao método, a teologia pode ser indutiva e dedutiva, sendo este um dos caracteres fundamentais pelas quais elas podem ser reconhecidas, vividas e praticadas no interior de uma comunidade ou instituição religiosa. A teologia dedutiva parte de linhas gerais e fundamentais. Uma ciência dedutiva é aquela que parte de axiomas e tenta a partir deles construir todo arcabouço teórico de seu saber. Considerada nesses termos, a teologia em seu aspecto dedutivo deve ter algumas premissas fundamentais, como a existência de Deus, por exemplo, para que seu conteúdo teórico possa ser desenvolvido. É um conhecimento que vem de cima e se aplica aos casos particulares, determinando as condições de análise dos fenômenos particulares. Suas teorias explicativas são universais e trabalham com silogismos. Em 15 sua formulação metodológica, pressupõe sistematizar, definir, expor e explicar as verdades reveladas. A Teologia indutiva, por outro lado, nasce da concretude da existência e considera aspectos sociais, culturais e políticos. Uma ciência indutiva tem caráter empírico imediato, ou seja, ela parte dos fenômenos particulares para conseguir traçar regras universais ou contextualmente válidas. Compreende, assim, que a experiência de fé das pessoas está situada em uma teia de relações humanas e, portanto, a teologia se vê no compromisso de iluminar tais realidades com a luz da revelação. Numa atitude de ver, julgar e agir, essa perspectiva teológica procura construir compreensões que vão da experiência para o dogma. As duas formas de consideração não contraditórias, mas devem ser consideradas positivamente pelo teólogo, pois não há ciência do universal que não tenha de lidar com o particular. Por outro lado, o particular deve se referir a um sentido que possa aos seus olhos ter um alcance universal ou contextualmente válido. 1.3 O objeto da teologia Na perspectiva do objeto, a teologia tem como região de estudo a verdade revelada. No entanto, existem matérias-primas e documentos humanos que esboçam a verdade tal como o conhecimento teológico busca reconhecer. São os materiais aos quais o teólogo pode tomar como caminho para realização de seu esforço de compreensão porque eles podem manifestar a presença da Divindade e sua relação com nossa humanidade. Os materiais para análise teológica são as fontes já analisadas ao longo da história; esses materiais constituem tradições formadas por ideias, conceitos, experiências, práticas inteligíveis e até elementos já elaborados teologicamente. Esses materiais são submetidos a novos estudos analíticos com metodologias próprias e podem sofrer novas interpretações. Se fizermos uma correlação com a filosofia, poderíamos lembrar da dialética Hegel. Resguardando as devidas proporcionalidades e diferenças encontramos na análise teológica um movimento dialético acerca dos documentos que podem se revelar, conforme a interpretação dos 16 seus conteúdos, teses, antíteses e sínteses, apresentando-se, portanto, como um constante movimento. Em teologia, portanto, também encontramos teses contrapostas, isto é, que formam sistemas de negação e espelhamento que através de antíteses geram novas teses e sínteses. Ou seja, no campo do saber teológico os documentos não tem um significado último, mas exprimem um contínuo movimento em que a verdade revelada exibe seus mais diversos perfis, respondendo às necessidades humanas que também são contextuais e históricas. As matérias-primas que serão estudadas podem conter discursos religiosos, em vez de análises teológicas. Importante diferenciar as duas coisas. Um discurso religioso não tem preocupação científica, mas tem o intuito de expressar a verdade revelada e através disso alimentar a fé daquele que já professa a crença e convencer a outros da verdade contida e expressa através da palavra religiosa. Portanto, os discursos religiosos são construídos espontaneamente, sem limites metodológicos, ainda que tenham função fundamental na conformação de uma tradição religiosa e sua teologia. As análises teológicas, por outro lado, pressupõem uma metodologia; são submetidas ao crivo da ciência e da hermenêutica, mesmo que com metodologias próprias. Nesse caso, é importante ao teólogo considerar os documentos naquilo que eles são e, ao mesmo tempo, saber fazer em sua própria prática a diferença entre o uso apologético da doutrina e o esforço de compreendê-la cientificamente. A prática teológica, portanto, não é a simples transformação de dados pré-teológicos em teológicos, mas se configura também enquanto releitura de dados teológicos em outra versão ou destinação teológica (LIBANIO E MURAD 1996, p. 99). Deste modo, os teólogos contemporâneos têm se preocupado em construir novos quadros esquemáticos e analíticos para tornar a prática teológica atual, no sentido de responder às urgências de cada tempo, sem perder de vista o dado fundamental teológico, que é a verdade da fé. Nas urgências modernas, há algumas bases para o desenvolvimento do saber teológico. Essa perspectiva tem: [...] uma tradução muito concreta: uma teologia que, numa nova era, procura ser ao mesmo tempo: a) “Católica”, continuamente preocupada pela “totalidade”, pela “universalidade” da Igreja, e, ao mesmo tempo “evangélica” em estrita referência à Escritura e ao Evangelho. b) Tradicional, sempre responsável perante a história, e, ao mesmo tempo ‘de acordo com a época, 17 encarando seriamente os problemas do presente. c) Cristocêntrica, em todo momento cristã, e, ao mesmo tempo, “ecumênica”, aberta à ecumene, a todo mundo habitado, todas as igrejas, religiões e regiões. d) teórico-científica, dedicada à doutrina e à verdade, e, ao mesmo tempo, prático-pastoral, preocupada com a vida, com a renovação e com a reforma (RIBEIRO; SOUZA, 2012, p. 392) A urgência de fazer uma teologia que encare os problemas presentes e que seja ecumênica também abre o convite para uma teologia que saiba estabelecer diálogos inter-religiosos. A visão prática e missionária da teologia aponta sobre a importância de que a teologia tenha o passado como história gerando conhecimento sobre os acertos e erros e que, além de aprender com erros históricos, possa se abrir para a alteridade, o respeito e o diálogo com outras religiões. Segundo Ribeiro e Souza (2012), a fé cristã precisa se submeter a reflexões atuais, amplas e encarnadas. Precisa se submeter a diálogos Inter-religiosos com vias a reorientar as práticas e superar os encarceramentos. Fonte: domtotal.com Muitas pessoas podem se confundir sobre os significados do ecumenismo, diálogo inter-credal e diálogo inter-religioso. O ecumenismo se estabelece com o diálogo entre religiões cristãs. Esse diálogo é conhecido por intramundo, por não extrapolar as fronteiras do cristianismo. Diálogo inter-credal se dá entre religiões 18 monoteístas, como islamismo, judaísmo e cristianismo. O diálogo inter-religioso requer um pouco mais de maturidade e esforço, visto que se estabelece entre religiões não cristãs e não monoteístas. O diálogo é estabelecido com tradições religiosas de matrizes distintas das mencionadas anteriormente, como candomblé, umbanda, religiões indígenas e orientais (budismo ehinduísmo) (CALDAS FILHO, 2017). No entanto, é importante entender que esses aprofundamentos para o diálogo inter-religioso, na perspectiva da teologia estará sempre iluminada pelo lugar circunstanciado dos teólogos. Por mais que se queira superar e transcender sua perspectiva religiosa, os teólogos são seres situados e conformados com sua fé. Soares (2007), ao discutir sobre as ações e investigações sobre a teologia, retomando as discussões de Greschat (2005) sobre o papel dos teólogos, indica que esses investigam e se dedicam à religião à qual pertencem, buscam formas práticas de enriquecer suas tradições religiosas e necessitam, de certo modo, dar satisfação às instâncias superiores de sua tradição religiosa. Assim, ao estabelecer um diálogo inter-religioso, os teólogos tomam como referência a própria fé, pois “[…] com seus critérios, avaliarão se os demais sistemas são ‘mais próximos’ ou mais distantes de sua própria religião” (SOARES, 2007). No entanto, a questão do diálogo e da alteridade tem seu significado profundo exatamente quando pensamos que é entre os verdadeiramente diferentes que é preciso uma atitude de respeito e abertura ao modo como uma crença e uma fé se constituem. O grande desafio, nesse sentido, colocado ao teólogo contemporâneo é o entendimento desse radicalmente outro que pertence a uma religião que não tem nenhum parentesco com a sua, além da dimensão da necessidade da fé. 2 TEOLOGIA E CIÊNCIA DAS RELIGIÕES: DIFERENÇAS, PROXIMIDADES E ALIANÇAS. Neste tópico, estudaremos o estatuto teórico-científico da teologia e seu diálogo com as ciências da religião. Ainda que pertencentes à mesma área de avaliação em órgãos governamentais e de gestão educacional, são áreas que possuem distinções 19 teóricas demarcadas, o que não as impede de atuarem em conjunto quando analisadas a partir de uma prática dialogal e sistemática. Fonte: agenciabrasil.ebc.com 2.1 Parâmetros de cientificidade para o conhecimento teológico O questionamento sobre as diferenças entre ciência da religião e teologia acompanha o estudo dessas disciplinas há muito tempo. Tomás de Aquino, por exemplo, dedicou a primeira questão da primeira parte da sua Suma teológica a fundamentar a teologia como verdadeira ciência (AQUINO, 2001). Nessa questão, sua tese é a de que a teologia poderia sim ser considerada uma ciência, no seu sentido latino, de um conhecimento que busca certo grau de certeza e sistematicidade. Obviamente, entendemos, que a concepção de ciência utilizada pelo grande teólogo não era aquela utilizada na modernidade clássica e que ainda está no horizonte do mundo contemporâneo. No entanto, isso não quer dizer que ela seja insuficiente ou que, em certo sentido, seja mais ampla do que aquela que passou a se tornar vigente a partir da modernidade e da filosofia cartesiana. Para compreender de que modo Tomás fundamenta a cientificidade da doutrina sagrada, é necessário, primeiro, ter em mente o que ele entende por ciência — raiz que nos levará à fundamentação das ciências da religião e também a uma ampliação 20 da nossa concepção modernidade de ciência, que muitas vezes se apresenta restrita a imagem de cientificidade posta pelas ciências físicas e naturais. De acordo com Nicolas (2001), por scientia Tomás entende não somente um conhecimento certo e seguro, obtido a partir de princípios evidentes e necessários, mas também e, sobretudo, um conhecimento adquirido pelas próprias causas das coisas: Ela significa para Sto. Tomás não somente o conhecimento perfeito, certo, absolutamente objetivo e para todos demonstrável, mas o conhecimento pelas causas, isto é, pelas razões internas. Neste sentido, conhecer cientificamente é não somente saber, mas explicar pela essência e pela natureza das coisas, passar dos fatos e dos fenômenos (ponto de partida obrigatório para o espírito humano) ao próprio ser e à razão de ser (NICOLAS, 2001, p. 211). Tendo concebido a doutrina sagrada como uma ciência necessária, deve-se também questionar seu caráter propriamente científico. Tomás afirma ser a doutrina sagrada uma ciência, mas em termos específicos. Assim, ele recorre a teoria das causas de Aristóteles e nesse sentido traça parâmetros para a subalternização das ciências ao conhecimento teológico. Nessa perspectiva, a teologia é tratada enquanto uma ciência superior que prima pela abstração em seu mais alto nível, capaz de fornecer os princípios aplicáveis às ciências intermediárias, ou seja, subalternas. É a ciência de Deus que dá os fundamentos explicativos das causas das coisas na doutrina sagrada e, portanto, determina o valor e o alcance do trabalho de explicitação objetivado pelo teólogo. Estando fundamentado na ciência de Deus, enquanto intérprete também da doutrina sagrada, a teologia é uma ciência sublime e autêntica, pois, segundo a tradição tomista, ninguém pode duvidar da fé, porque a dimensão estritamente humana pode falhar, mas a ciência de Deus é sempre forte e verdadeira. Essa perspectiva de compreensão da cientificidade, que dava sustentação à possibilidade de uma função científica à teologia começa a ser questionada a partir da Idade moderna, mais precisamente da modernidade clássica. Como dissemos na apresentação da exposição, os termos modernidade clássicos e modernidade tardia referem-se a momentos distintos de uma única modernidade que começa no século XV e se estende aos dias de hoje. A modernidade clássica começa com o Renascimento enquanto momento de transição e se estende até o iluminismo, 21 momento no qual podemos marcar o começo do mundo contemporâneo através do iluminismo e da consolidação do mundo capitalista. Fonte: conhecimentocientifico.com Uma das características da modernidade clássica é o surgimento de uma nova cientificidade dada pelos desenvolvimentos da física e da matemática, através de figuras notáveis como Newton e Galileu Galilei. Nesse caso, os conhecimentos da Idade Média serão todos questionados por se basearem apenas na autoridade religiosa, e não na razão e na experiência. O saber teológico será julgado insuficiente, o que não quer dizer que a questão da divindade não tenha sido vivida e problematizada no período. O que há é a dificuldade de se desenvolver algo como uma teologia. A teologia e as ciências são realidades históricas, como vimos até agora. Sua relação depende fundamentalmente do conceito que se tem de ciência e de teologia nos diferentes momentos da história. É uma relação de cientificidade que possui uma dinâmica contínua da história do pensamento, em geral, bastante sensível para a heterogeneidade cultural dos contextos em que ambas disciplinas se articulam e buscam manter suas identidades infalíveis. No decorrer da segunda metade do século XIX, por exemplo, aumentaram os sinais de uma consciência disciplinar religiosa cada 22 vez mais consolidada, o que demonstra uma mudança de perspectiva em relação à ciência e uma necessidade de uma teologia científica. Uma das primeiras expressões dessa tendência encontra-se no uso aperfeiçoado do termo ciência em consonância com o termo religião. Deixa de ser uma nomenclatura vaga e aleatória e assume uma conotação específica apontando para uma matéria acadêmica específica. Ao mesmo tempo, retira-se da teologia a única possibilidade hermenêutica e metodológica a essa área do conhecimento, mas colocando-a novamente no âmbito de uma discussão científica e não apenas metafísica. O cristianismo foi quem construiu a teologia como prática integrante da vivência da fé e da estruturação institucional de suas Igrejas e da formação de seus quadros. Já as ciências da religião têm como objeto as religiões, enfocadas como fenômeno social, cultural ou econômico, procurando fazer abstração dos seus aspectos propriamente teológicos. É claroque as religiões em geral formulam saberes e desenvolvem atividades reflexivas. Entretanto, desde os primórdios de sua existência, as igrejas cristãs se engajaram na reflexão teológica, tanto para o consumo interno quanto para debate externo. As ciências da religião, por outro lado, surgem em consonância como uma realidade mais plural. Detentoras de cosmovisões, metodologias e interesses específicos situados, a teologia e ciências da religião já viveram momentos de indisposição teórica e um longo período de íntima ligação. Em tempos de crise da fé, ciências da religião e teologia podem desempenhar um papel de unificação das demandas sociais, se não perderem de vista o conhecimento científico e o sentido existencial de suas perspectivas, tendo como base uma cientificidade aberta e não dogmática, considerando criativamente às novas configurações reflexivas que os cenários religiosos exigem em sua constante modificação histórica e social. 2.2 Abordagens específicas da teologia e das ciências da religião A teologia se configura pela sua autocompreensão, suas tendências e escolas. Em um campo tão complexo e diversificado, é impossível oferecer uma definição de teologia que satisfaça a todos os interessados. Justifica-se falar da teologia em termos 23 confessionais e, no âmbito cristão, dividi-la em teologia católica e teologia protestante. A partir daí, outras muitas subdivisões são possíveis. A teologia se distingue do dogma e da doutrina: enquanto estes possuem um caráter oficial, aquela não possui. São várias as oportunidades profissionais para quem se dedica à teologia. A mais conhecida e mais comum é a atividade ministerial ou sacerdotal. Padres, frades, freiras, pastores, missionários e missionárias, dirigentes eclesiásticos são as opções mais comuns. Fonte: www.culturagenial.com O campo das ciências da religião é também bastante plural. Praticam-se, principalmente, a sociologia da religião, a antropologia da religião, a fenomenologia, a filosofia da religião e a história das religiões. As questões relativas ao objeto e à metodologia variam de conformidade com a ciência específica a partir da qual se estuda o fenômeno religioso. Relacionam a religião com as visões de mundo, investigando suas articulações com as demais formas de representação nas diferentes estruturas e organizações sociais. Tais relações se articulam entre o individual e o coletivo e se revestem de variadas formas de poder. O espaço de atuação profissional das ciências da religião é quase exclusivamente acadêmico e editorial e se distribui de forma bastante variada nas universidades. Há um grande número de departamentos e cursos que dedicam espaço significativo à religião, bem 24 como em editoras que publicam obras desse campo (SILVEIRA; GHIRALDELLI JR., 2004). 2.3 Convergências entre teologia e ciências da religião A teologia é um saber amparado nos pilares das escrituras sagradas, na tradição institucional que perpassa as comunidades religiosas e na doutrina estabelecida pela autoridade religiosa, mas não trata esses aspectos de modo dogmático apenas, pois tende a convergir para o estudo de tais elementos como dimensões que estruturam condições para experiência da fé. A sua racionalidade está ligada a um aspecto concreto chamado experiência da fé, o que dá ao teólogo também a condição de mistagogo, isto é, aquele que inicia os outros no mistério da fé porque balbucia o mistério experimentado para os demais, conduzindo-os à vivência dele. Este é o logos, ou seja, a palavra que mantém a estrutura da teologia um campo unificado de experiência e práxis. Assim, quando a possibilidade da teologia se configurar enquanto ciência, ela deve como logos ser esclarecedora da verdade e, por isso, necessita utilizar um logos histórico, hermenêutico e especulativo, e deve recorrer ao instrumento filosófico, histórico (LIBANIO E MURAD, 1996, p. 242). No entanto, é preciso sempre ter em vista que somente dentro e não sobre a fé que se pode elaborar autenticamente teologia, expressando, em termos de racionalidade e razoabilidade, a fé vivida. Assim, apenas em segundo momento, este igualmente importante, é que o teólogo deve lançar mão de meios filosóficos e científicos com métodos rigorosos, controláveis e comunicáveis no âmbito de uma comunidade acadêmica. Nesse segundo momento, portanto, a investigação teológica deve se assentar nos recursos das ciências da religião para exercer sua operacionalização e, portanto, na troca entre as duas disciplinas. Em outras palavras, o ato primeiro é a fé professada na comunidade; o ato segundo é a abertura sistemática aos elementos das ciências humanas e a conformação da disciplina à aspectos necessários à sua aceitabilidade em uma comunidade cientistas e acadêmicos, o que envolve sempre sua inserção em mundo orientado pela retórica, pela argumentação e pelas relações entre saber e poder. Essa orientação só é 25 possível a partir da modernidade, quando a teologia, naturalmente, foi levada a abandonar a rigidez metafísica da escolástica. Fonte: todamateria.com A teologia e as ciências da religião possuem como ponto de separação o seu lugar de origem. Enquanto o primeiro é necessariamente saber que responde a uma tradição religiosa e participante de uma experiência de fé, o segundo especula sistematicamente o objeto religião e os fenômenos religiosos, sem necessário vínculo comunitário. Sem precisar confundir-se com os que creem, o cientista da religião pode, nesse sentido, encontrar no teólogo alguém com quem se pode estabelecer importante intercâmbio teórico. Em tempos de intolerância, essa convergência realça o seu valor, já que, por vezes, experiências religiosas são forjadas em radicalismos fundamentalistas, fechadas em si mesmas. As ciências da religião por si, ainda que realizem um alcance significativo com suas abordagens, pouco avançam nessa dimensão, na medida em que o fundamentalismo é, sobretudo, uma atitude defensiva diante das ciências. É nesse quadro que o teólogo é convidado a uma posição de serviço à tolerância, à paz e à objetividade científica, mostrando a especificidade do seu trabalho e sua relação direta com o problema da fé, evitando que sua perspectiva confessional seja 26 confundida ou mascarada pela ideia de que a teologia é apenas mais um campo de tratamento do problema religioso. Fonte: www.jornal.usp Para superar as comparações com as ciências da religião e mesmo com a filosofia, a teologia precisa, assim, demarcar o seu lócus no meio científico. Essa autonomia acontece mediante a formulação de seu objeto de pesquisa, diferente daquele que outras disciplinas elegem para si. Estabelece-se, então, um escopo de condições e inventário especializado, o mais abrangente possível, com o juízo em suspenso, cujo objeto principal é a experiência da fé enquanto verdade revelada e a experiência existencial com a Divindade, sem perder de vista o aspecto comunitário, social e intersubjetivo da experiência religiosa. Outra diferença importante entre teologia e ciências da religião é que a teologia tem uma matriz cristã. Ela surge a partir das aproximações da religião cristã com formas de pensamento oriundas da cultura grega, principalmente a filosofia, mas buscando resguardar o sentido da fé cristã enquanto palavra revelada. As ciências da religião, por outro lado, surgem no âmbito das ciências humanas e seu desenvolvimento, lançando mão de todas as ferramentas que a história, a sociologia e a antropologia podem fornecer para pensar as religiões. Quanto à filosofia, se existe uma proximidade histórica, já grandes teólogos eram também, em muitos casos, 27 grandes filósofos, ela valoriza primeiramente a racionalidade como instrumento de investigação. A teologia, por outrolado, entende que a racionalidade, no estudo teológico tem um papel segundo em relação à fé e seu aspecto confessional. Assim, elas se diferenciam também pelas suas tarefas. Os cientistas da religião têm como tarefa pesquisar, analisar e investigar as religiões universais e populares, proféticas e aborígenes, as tradicionais e aquelas recém-fundadas no mundo inteiro. A teologia, por outro lado, existe conforme a necessidade de manter sua relação de proximidade comunitária com a tradição religiosa que lhe compete. No primeiro caso, é necessário distância, ainda que em uma perspectiva antropológica, a mistura do cientista da religião pode ser vista como uma estratégia qualitativa de pesquisa. Na teologia, por outro lado, a proximidade é a própria base da investigação, pois diz respeito ao próprio sentido da teologia enquanto experiência comunitária. Fonte: agenciabrasil.ebc.com Cabe ainda salientar, que as ciências da religião trazem em seu proceder processos de comunicação, que, ao integrarem a linguagem teológica, contribuem como elemento de reorganização desejável na relação das religiões umas com as outras. Na prática, isso pode acontecer por instigação orientada de pesquisa de campo, pelo rompimento de preconceitos e estereótipos, pela transmissão de novos 28 padrões hermenêuticos e por gerar, a partir da academia, à toda sociedade, uma visão abrangente e matizada de religiões. 2.4 Aplicação das ciências da religião para a teologia A diversidade de experiências e expressões da existência no mundo atual urge que o teólogo faça constantemente uma análise crítica das transformações, sem cair nas armadilhas dos discursos vazios aparentemente racionais e desvinculados do conteúdo da fé. Assim, o teólogo contemporâneo deve saber circular em diferentes contextos institucionais, já que sua posição é interpelada não somente pelos ambientes religiosos, mas também pelos meios de comunicação, pelas mídias virtuais, pelas associações de pesquisadores e, sobretudo, pela Universidade. Fonte: sociologialiquida.org Assim, a construção de uma determinada identidade teologal, bem como da qualificação para o exercício da função proposta, passa necessariamente pela construção de instrumentos para uma prática teológica plural e dialógica, muito próxima de alguns parâmetros e instrumentos mobilizados pelas ciências da religião e da filosofia, mas que devem resguardar a fé como princípio e seu fortalecimento como objetivo. 29 De acordo com Dierken (2009), integra os fundamentos das ciências da religião a sua distinção em relação à teologia. Do mesmo modo, a teologia tem sua identidade fundada na diferença que pode mante e sustentar em relação aos formatos de investigação proposta pelas ciências da religião. A questão da identidade das duas disciplinas se dá, portanto, pela sua diferenciação, o que deve e precisa ser pensado através de conteúdos epistemológicos de origem filosófica. Entretanto, é necessário manter os laços de unidade quanto aos pontos de divergência e divergência que tem como vimos até agora fundo epistemológico e existência. A teologia só tem sentido enquanto experiência de fé que busca sua própria inteligibilidade e sistematicidade. As ciências da religião se inserem nessa abertura posta pelas ciências humanas a partir da qual o fenômeno humano é diverso e marcado pela diferença. A relação entre as duas disciplinas é complexa e dependente das demandas conjecturais, acadêmicas e comunitárias. Há situações em que as ciências da religião podem contribuir para ampliação e desenvolvimento da teologia e vice-versa, mas outras em que a demarcação entre as disciplinas pode significar necessidade de distanciamento. O teólogo não dispõe de meios para controlar e determinar a produção de suas identidades epistemológica e profissional. Ele não é apenas sujeito desse processo, é também objeto, enquanto o ente social é o sujeito e o objeto do seu fazer teológico e que ele partilha com todos os seres humanos de um mesmo destino ontológico marcado pela cultura e pela histórica, circunstanciado, em sentido amplo. No entanto, ainda como indivíduo ele pode retomar e transformar o ambiente no qual sua disciplina está inserida, transformando espaços de aceitação ou não aceitação, tornando as especificidades da teologia aceitáveis academicamente, e também preservando sua identidade que é algo em movimento, que ele pode conhecer, mas não pode simplesmente abandonar. A prática teológica, considerada nesses termos, apresenta-se como uma fazer na multiplicidade, caracterizando-se por vários aspectos, algumas vezes contraditórios. Se partirmos de um olhar propositivo, podemos afirmar que existem basicamente três práticas teológicas: a teologia do teólogo, a teologia do púlpito e a teologia do povo e elas são os aspectos que conformam a identidade do teólogo e sua disciplina. Este tripé corresponde à imagem de três paralelas que se identificam no 30 olhar para a divindade. Enquanto o teólogo faz teologia para um determinado grupo social, este lhe concede o papel de construtor do pensar sobre a sua identidade. Tal formatação identitária depende da colaboração do cientista da religião, a partir de suas referências sinalizadas em um conjunto pluriconfessional de símbolos, de noções, de círculos hermenêuticos em que funda e significa o mundo e a existência. A teologia, portanto, é diferente da ciência da religião. Isto deve ser reforçado de modo enfático justamente para os muitos casos em que os métodos científicos de ambas as áreas não se diferenciam e seu destino metodológico se apartam. Todavia, que se constitui enquanto ciência e as ações que lhe são pertinentes, não se resolve apenas a partir de seus métodos ou segundo pontos de vista isolados, e sim a partir de sua função no contexto maior da realidade circundante. (BERGER, 1999, p. 87) No mundo atual, o teólogo é chamado a se posicionar diante às demais ciências, respeitando a autonomia de suas abordagens, sem que uma seja instrumentalizada ou confundida pelas outras. Para dialogar com as ciências, pressupõe-se uma razão aberta e capaz de articular a questão de Deus. Deus não é, nem pode ser, uma fórmula científica. É um mistério, não um objeto do nosso conhecimento. A teologia ajuda o ser humano na busca de sentido: sentido do mundo, sentido da vida e sentido de si mesmo. A questão do sentido afeta as ciências, mas não pode ser respondida por elas mesmas. Fonte: agirtres.com. 31 Até o século XIII, a teologia esteve mais próxima da noção de sapientia do que da de scientia. Essa compreensão do filósofo Agostinho avaliava as ciências como promotoras de um saber provisório, enquanto a sapientia estava mais próxima de um saber universal e divino. Procurava-se, nesses termos, o bem supremo, o eterno, Deus. Agostinho procura conciliar a fé como condição prioritária para alcançar a divindade. A razão (ou seja, a filosofia) colabora ao entendimento da fé. Daí a afirmação na obra O livre-arbítrio: “Crê para que a fé ajude o intelecto a entender; entender, para que o intelecto procure a fé” (AGOSTINHO, 1995, II, 2, 6). Assim, o tema da cientificidade foi, com o tempo, aumentando a sua importância para a teologia, e a teologia a sua relevância em relação ao mundo como proposta viável de conhecimento da verdade. Com Tomas de Aquino, tentou-se uma cientificidade dada pela ideia de que a verdadeira ciência estava na sabedoria de Deus. Assim, a teologia era mais divina das disciplinas porque a mais próxima do saber de Deus. O momento atual, ao contrário, é o de superar a fase do fechamento, que postulou o saber teológico como um saber autônomo e desvinculado das demais fontes do conhecimento humano. Para isso, as ciências das religiões interessadas no aperfeiçoamento das suas reflexõesteóricas sobre as possibilidades e os limites do encontro inter-religioso e suas implicações práticas têm ótimos motivos para ouvir o que o teólogo têm para dizer. 3 TEOLOGIA, FILOSOFIA E HERMENÊUTICA: AS CONTRIBUIÇÕES DA FENOMENOLOGIA E DA DESCONSTRUÇÃO Desde o advento da modernidade, a relação que se estabeleceu entre conhecimento científico e teologia foi marcada por processos de ruptura. Se até aquele momento, que foi precedido pela Idade Média, a religião exercia grande poder sobre o conhecimento disponível, a partir da modernidade a religião, e consequentemente seu estudo, passou a ser relegada a segundo plano, colocando dificuldade no que diz respeito ao tratamento da teologia como uma ciência. Isso significou ainda que todas as áreas do saber, além de se fragmentarem em busca de seu próprio desenvolvimento, passaram a pensar a si mesmas tomando 32 como base uma epistemologia científica que se ordenava segundo os parâmetros das ciências física, principalmente segundo o impacto que a física de Galileu e Newton tiveram na concepção de mundo e ciência da modernidade. É importante ressaltar que esse período, sobretudo, a partir do chamado Século das Luzes (XVIII), em referência direta ao movimento iluminista, tinha como objetivo formar o indivíduo com vistas à conquista de sua maioridade intelectual, aquilo que Kant tematiza em seu pequeno, mas valoroso texto “O que é esclarecimento’’ de 1783, entendendo que a autoridade enquanto suposto fundamento no campo do saber deveria ser questionadas através do uso autônomo do entendimento. Essa situação começou a se modificar no mundo contemporâneo, principalmente no século XX, principalmente através de novas interpretações do sentido da menoridade e maioridade intelectual proposta por Kant e do pensamento iluminista como um todo. Assim, por mais que a religião tenha se tornado, a partir da modernidade, um objeto de estudo pouco considerado, na contemporaneidade observamos um movimento de resgate das problematizações acerca da teorização do ser, da existência e das representações científicas do mundo — o que tem possibilitado uma reflexão sobre a diversidade religiosa na vida humana e mesmo uma teologia negativa, que trouxeram de volta o debate acerca da verdade religiosa, da ciência e do lugar da religião cristã e das religiões em geral na vida do sujeito contemporâneo. Fonte: jornal.usp.br 33 A questão é que aquela a imagem do mundo construída a partir da ciência tal como entendida na modernidade clássica, parece não se conformar com todos os aspectos da vida humana no mundo contemporâneo. A esperança de que a ciência pudesse se desdobrar em uma visão de mundo unitária, capaz desdobrar em uma nova metafísica e para alguns autores até uma nova religião (Comte, por exemplo), se mostrou um frágil preconceito, ainda que um objeto de especulação bastante importante. Pintura A igreja positivista do Brasil ou Pátria (1919), do pintor Pedro Bruno. Fonte: appai.org. Nesse caso, o surgimento de uma cientificidade aberta e problematizada segundo o modo como as diversas ciências, isto é, humanas e naturais, se voltam para seus objetos têm aberto possibilidades para o tratamento mais específico da teologia como uma ciência, o que se torna possível também a partir do impacto da hermenêutica no âmbito das ciências humanas e da filosofia. A hermenêutica é, antes de tudo, um método de interpretação baseado na leitura do sentido múltiplo dos símbolos, ícones e signos pelos quais uma cultura se expressa. Ela tem como objeto específico os textos escritos, os documentos o campo simbólico de uma cultura e a partir do quais grupos humanos agem sobre sua identidade e lugar no mundo. Quando falamos em hermenêutica no campo dos 34 estudos teológicos estamos, assim, tratando da possibilidade de uma interpretação dos textos religiosos em sua significação, simbologia e função comunitária. A hermenêutica, portanto, é uma disciplina de caráter semiótico, científico e filológico que trata do problema da interpretação e que opera em relação aos textos filosóficos antigos e textos considerados sagrados. Adotando uma perspectiva hermenêutica, a teologia encontra a possibilidade de captação de seu objeto e interpretação da realidade do fenômeno religioso como ele se manifesta em um material humano, mais precisamente as formas de expressão e sedimentação do sentido através da linguagem. Contudo, se nos voltarmos ao problema da representação — isto é, do pensamento que busca ser representado por meio da linguagem — chegamos a uma grande problematização que podem ser enfaticamente condensadas em dois grupos de questões que são sempre pertinentes a prática da hermenêutica: a) Como representar na linguagem uma imagem-pensamento de Deus, ou ainda de um Uno, uma unidade predecessora e sucessora a tudo? b) Como a experiência da fé pode ser explicitada e conhecida teologicamente por meio da sua linguagem? c) Ou ainda, qual a identidade assumida através de uma linguagem por aqueles que se tornam membros de uma comunidade de fé? É nesse sentido que a teologia se encontra a hermenêutica. O primeiro questionamento se refere à própria possibilidade de expressão de um fenômeno que assume para o teólogo o sentido de sua tarefa e campo de estudo. Nesse sentido, é pela sua fé e pela constante reflexão de seus métodos que o teólogo poderá responder a primeira questão e colocar em movimento os métodos necessários a conquista e sistematização do saber teológico. O segundo complementa o segundo, já que é através de uma experiência de fé que se pode falar da Divindade enquanto unidade predecessora e sucessora de tudo. Quanto ao terceiro, ele se refere ao papel que teologia pode assumir dentro de uma comunidade religiosa. Interessante notar, que esses três grupos de questões se referem primeiramente à possibilidade de 35 tratamento do ‘objeto’ que a teologia precisa investigar. Um objeto que não é um objeto em sentido científico e filosófico, mas algo outro que se manifesta enquanto força viva para aquele que pertence a uma comunidade religiosa. Assim se consideramos enquanto ciência somente o que é representável em medição e fundamentação empírica, capaz, portanto, de ser expresso sistematicamente por um discurso que espelhe a realidade ou tenha esse objetivo, podemos imaginar que o que falta à teologia para ser uma ciência são fundamentos que comprovem e unifiquem Deus como objeto de estudo. No entanto, como vimos anteriormente, Deus não pode se constituir como objeto, pois é outra coisa que uma determinação da experiência humana, para o teólogo, trata-se da possibilidade de qualquer ser ou coisa existente. A questão que se coloca é acerca do modelo de ciência. Dessa perspectiva, uma das ideias a serem observadas é que o modelo de ciência moderno não é o único possível. A hermenêutica abre espaço para outras considerações sobre a cientificidade das disciplinas de conhecimento e, nesse sentido, pode dar a teologia a possibilidade de pensar sua própria cientificidade enquanto práxis humana de conhecimento. Leibniz, o gênio universal. Fonte: www.deutschland.br O teólogo enquanto ser humano perpassado por uma experiência de fé, entende que Deus não é um objeto; a divindade ultrapassa a concepção de objeto 36 porque não se confunde com o mundo. Assim, ela não pode ser descrita através de uma abordagem empírica direta; conforme o que é a sua existência ela ultrapassa a existência humana e seus instrumentos de intervenção e conhecimento do universo. No sentido mais analítico do conceito de ciência, podemos entender como fundamento da cientificidade aquilo que Leibniz denomina de princípio de razão suficiente: isto é, possui cientificidade uma disciplina que sustentee expresse com fundamento aquilo que a coisa é estrutural e fisicamente (REALE, 2006, p. 185). Contudo, se esse fundamento não pode ser aplicado à experiência teológica, aspecto amplamente reconhecido a partir do século XX, em especial por filósofos como Maurice Blanchot, Jacques Derrida, Emmanuel Levinhas e Gilles Deleuze. Em um ambiente de questionamento dos parâmetros de cientificidade e reconhecimento dos saberes tais como ungidos pela modernidade clássica, esses autores colocam, cada um ao seu modo, a questão da ausência ou de impossibilidade de representação pela linguagem. Ou seja, na perspectiva aberta por eles, quando falamos sobre algo, quando objetivamos transpor para escrita nossos pensamentos, o que está em jogo não é captação da estrutura essencial do fenômeno ou dos objetos, pois, não conseguimos captar pela linguagem sua forma fundamental de ser ou mesmo exaurir o sentido sua existência falando sobre ele. Trata-se, antes, de uma forma mesma de expressão a partir da qual pensamento e ciência se realizam. O fenômeno teológico, pela sua natureza profunda e imaterial, também escapa à palavra e ultrapassa, assim, as condições mais imediatas da existência humana, permanecendo necessário que a cientificidade da teologia tenha relação com a experiência de fé da qual o teólogo parte. Nesse contexto, a noção de Deus, por mais que, em grande medida, não seja estritamente a preocupação dos filósofos citados, pode ser pensada a partir de sua ausência de sentido representacional no mundo físico, algo que é frisado pro suas filosofias. Portanto, não caberia pensar a teologia a partir de parâmetros de cientificidade dados pelas ciências naturais, e sim a partir da ausência de um objeto formal, segundo o qual se reconhece o discurso sobre algo, mas sem um referente físico. É dessa forma que a crise da representação fornece à teologia a afirmação de 37 um objeto ausente, ou seja, a comunicação sobre um ausente, mas que se apresenta através da fé e da teologia enquanto sua intérprete. Podemos remontar essa compreensão à própria crise da modernidade que parece ter nascido no momento mesmo em que ela se torna possível. Até aquele momento, pensar a verdade das coisas não estava necessariamente ligado à estrutura formal do objeto, o que começa a ser realizado a partir de questionamentos que têm como base a investigação sobre o entendimento humano e suas possibilidades. Os filósofos empiristas, David Hume e Locke, por exemplo, irão escrever obras específicas sobre a experiência do conhecimento humano. Embora essa orientação já tivesse ganhado sua base no Renascimento (momento humanista, antropocentrista), foi no final da modernidade clássica que o conhecimento passou a ser entendido como uma concordância com a lei natural oriunda de uma estrutura própria ao sujeito que conhece. O pensador que mais determinou o pensamento epistemológico nesse sentido, foi Kant. Kant nasceu em 22 de abril de 1724, em Königsberg, Prússia. Fonte: http://editoraunesp.com Segundo o Kant, o conhecimento e a exterioridade dos objetos de conhecimento estão calcados em condições que operam no sentido do atemporal para o temporal. Nesse contexto, por exemplo, para Kant, o tempo e o espaço são formas de experiência a priori que não dependem da inserção do indivíduo no mundo material, 38 mas estão com ele desde que possamos falar de sua existência enquanto ser aberto ao mundo. Isso acontece na ciência e na vida afetiva, pois ambas as esferas encontram suas condições em uma configuração transcendental do sujeito da experiência que acompanha e determina todas as representações que produz. Com isso, Kant aponta não apenas para uma operação unitária entre objeto indefinido (atemporal) e objeto formal (temporal), mas também para uma impossibilidade de dissociação entre ciência e subjetividade, categoria que compreende também a experiência religiosa (MOTA, 2011). A partir da tese kantiana, compreende-se que o conhecimento é fruto daquilo que o intelecto produz em sua performatividade abstrata. A filosofia kantiana, como bom exemplo da modernidade e do movimento iluminista consegue alcançar, dessa forma, a “[...] abstração do conhecimento como fato, que não se dá à compreensão, não é mais a realização do desejo racional, mas sim o indivíduo, que se encontra livre diante de si mesmo e da tirania das suas categorias determinantes” (MOTA, 2011). A operação kantiana permite, assim, que se afirme de uma só vez a realidade formal em si e a individualidade subjetiva que restaura de forma singular o fundamento da realidade através de condições próprias ao indivíduo compreende como portador de uma esfera transcendental de experiência. Percebe-se, assim, que o questionamento acerca da cientificidade da teologia não se constituiu de forma solitária, mas inclui o questionamento de todo sistema de representação do mundo surgido na modernidade clássica. Na modernidade, encontramos essa crise de legitimação científica em todos os saberes que queriam se fazer essenciais. Contudo, a teologia sofre uma crise, em especial a partir de certas compreensões iluministas, de que o conhecimento válido é aquele que metodologicamente passa pelas etapas de observação, experimentação e verificação enquanto objeto formal, algo que começa a se fragmentar com Kant já que é preciso remeter todo conhecimento ao sujeito e não ao mundo para encontrar seu fundamento. 39 Fonte: ww.cfnews.com.br 3.1 Fé e teologia: a busca da verdade na religião e na filosofia O pensamento sobre a divindade esteve sempre presente no imaginário humano. Se voltarmos às sociedades mais antigas, veremos que as bases de suas crenças estão ligadas às respostas sobre a realidade, se confundem, portanto, com o esforço de compreender o universo e o mundo ao seu redor. Portanto, a experiência com a divindade sempre veio acompanhada por questionamentos metafísicos sobre a existência e a essência das coisas, o que faz da filosofia e da teologia disciplinas que tem apesar de toda distância alguns pontos de convergência e proximidade. Essa curiosidade humana possibilitou as mais distintas formulações, que possibilitaram o desenvolvimento das sociedades em diversos aspectos: filosófico, antropológico, artístico e também científico. Foi assim que se iniciou o conhecimento humano, quando a realidade por si só não satisfazia o sentido sobre ela. A relação entre conhecimento e realidade passou, assim, a se fundamentar em uma noção de verdade que foi pensada de muitas formas no decorrer da história. Umas formas de se conceber a verdade, admitida pela ciência e a filosofia é concepção de verdade enquanto adequação que se assenta na filosofia aristotélica. 40 A Escola de Atenas de Rafael Sanzio (entre 1509-510) Fonte: descontexto.com Na obra Metafísica, do filósofo grego Aristóteles, postula o antagonismo entre falsidade e validade para a atribuição do que é verdadeiro, postulando o antagonismo entre as duas dimensões para a atribuição do que pode ser dado como verdade e o que estaria na esfera da falsidade e do equívoco. Para ser verdadeira, a premissa pode ser negativa ou falsa: verdade é aquilo que é dito sobre o que é e sobre o que não é, de acordo com aquilo que a coisa é em suas estruturas fundamentais. Com isso, admite-se também a questão da substância, enquanto parâmetro para avaliação das preposições e juízos acerca do real: a concordância entre o que se pensa como verdade e a realidade da coisa é o que determina as condições de validade de uma teoria. Surge, assim, a ideia clássica da verdade enquanto adequação, que será posteriormente retoma por Tomas de Aquino na perspectiva de que o verdadeiro no campo da teoria é o discurso que se apresenta enquanto uma plena expressão da adequaçãoe correspondência a substância e o intelecto. A filosofia e ciência se desenvolveram durante muito tempo através de iniciativas que cunharam, cada um à sua maneira, importantes teorias que buscaram justificar a ideia de verdade como adequação. Apenas no final século XIX surgiram teorias e práticas de pensamento que buscavam questionar esse princípio, apontando sua insuficiência em alguns campos de experiência. Podemos destacar a psicanálise de Freud, a Fenomenologia de Husserl e a filosofia de Nietzsche, por exemplo. No 41 século XX, destaca-se nesse contexto, um filho rebelde da fenomenologia de Husserl, Martin Heidegger. Em seu texto Sobre a essência da verdade, publicado originalmente em 1930, o filósofo alemão apresenta a tese de que a enunciação é a condição intermediária para que a manifestação do ente (entenda-se aqui como objeto ou tudo que se creia existir) se torne adequada em sua apresentação. Essa concepção traz o seguinte deslocamento em relação à concepção da verdade como adequação: “De onde recebe a enunciação apresentativa a ordem de se orientar para o objeto, de se pôr de acordo segundo a lei da conformidade?” (HEIDEGGER, 1999, p. 159). É necessária, então, uma doação prévia do ente no mundo para que ela possa manifestar a si e, dessa forma, a possibilidade de vincular- se a uma apresentação de si enquanto forma de conhecimento. Tal doação, para uma medida que lhe será conforme, só é possível se se está livre para ser manifestado: “Abertura que mantém o comportamento, aquilo que torna intrinsecamente possível a conformidade, se funda na liberdade. A essência da verdade é a liberdade” (HEIDEGGER, 1999, p. 159–160). Com isso, afirma-se que a ação de enunciação sobre um ente só acontece pela aceitação dessa enunciação. Porém, quando Heidegger reconhece na liberdade a essência da verdade, não se trata de pensar o conceito de liberdade como verdade, e sim de compreender que a “essência” da verdade — enquanto conformidade entre coisa e proposição — precisa ser livre para se adequar e que isso não é condição última para o conhecimento, mas um de seus processos, isto é, uma condição necessária, mas não suficiente. Nesse sentido, a noção tradicional de verdade que se calca em uma conformidade real, segundo a qual existiria uma realidade objetiva das coisas que o pensamento deveria ser capaz de captar, passa a ser objeto de questionamento na modernidade tardia ou pós-modernidade. Segundo Vattimo (1999), a ambição heideggeriana em superar essa concepção metafísica da presença está associada à rejeição do pensamento a partir da presença e da objetividade. Ou seja, a partir da presença de um objeto se postula metafisicamente o acesso ao seu ser, de modo que ele só possa se dar de um modo: se algo é, é impossível que não seja possível de se tornar presente. 42 Para teologia, o importante desta discussão é que a partir dela se pode considera melhor a singularidade da presença teológica, conforme sua diferença essencial em relação ao mundo material e também a forma de ser da subjetividade humana. A presença de Deus não é material ou direta, mas se dá pela fé. No sentido heideggeriano, podemos dizer que a fé se configura, assim, enquanto uma verdade que não se dá por adequação, pois nosso conhecimento não é adequado a Deus, mas somente uma experiência de aproximação. Não se trata de falar sobre algo objetivamente, de um conhecimento adequável à realidade formal, mas de uma verdade de caráter hermenêutica ao ponto em que a fé é uma forma de relação existente entre a não apresentação da divindade e sua experimentação que os seres humanos podem tentar comunicar através da linguagem. Partindo das leituras de Heidegger acerca da verdade, ou de sua essência, falaremos agora da obra de Paul Tillich (1886-1955) para pensar a fé em sua relação com a noção de verdade. Em sua obra Dinâmica da fé (2001), o teólogo afirma que ter fé é de alguma forma estar em contato, ou, nos seus próprios termos, “possuído”, pelo que nos toca de forma incondicional. Nesse sentido, o autor quer nos chamar a atenção para o uso do termo incondicional atrelado à experiência da fé. Ou seja, Tillich pensa o termo como aquilo que constitui a preocupação fundamental da existência humana: ser e não ser. Deus é, portanto, o que o autor entende como incondicional, aquele que ocupa o “entre lugar” e que, por isso, não pode ser expresso como as outras coisas que são ou que simplesmente não são. A fé parte desse pressuposto ao compreender Deus no sentido simbólico do incondicional: Deus simboliza aquilo que não pode ser simplesmente conceituado como qualquer outro tipo de conhecimento; portanto, só pode ser dito de forma igualmente simbólica, metafórica, ou seja, conflui com a nossa experiência da linguagem. Do mesmo modo, Tillich (2001) defende que a experiência da fé frente ao incondicional é o que a alimenta. Ao passo que a inexatidão do que está entre ser e não ser nos impõe o questionamento acerca da fé e seu fundamento, Tillich compreende ser dessa forma que a divindade nos toca. Outra abordagem interessante sobre a questão se encontra na obra de Derrida e em sua leitura da obra de Edmund Husserl. Segundo Derrida, Husserl, em L’origine 43 de la géométrique (1962), compreende que a consciência humana, em posicionamento transcendental e fenomenológica, ao se deter no esforço de compreender o Logos absoluto (Deus) através da razão, conforme um uso teológico e teleológico (finalidade), acaba por possibilitar uma operação para compreender a coexistência entre a história e a subjetividade transcendental em nossa experiência empírica, podendo, assim, manifestar ou exprimir uma relação com o logos divino, que se apresenta misturado ao nosso mundo, na medida que o experimentamos através de uma fé que se converte em linguagem. Nesse caso, temos uma relação bastante profunda entre as duas dimensões, isto é, entre a história e o logos divino. De um lado, temos a intuição de logos absoluto e universal que pode ser considerado o Logos da divindade. Por outro lado, temos um esforço de conhecimento que é humano e finito, mesmo que queira ser mais. Esse contato das duas possibilita uma manifestação do Logos Divino na experiência humana. Trata-se de um movimento histórico, onde esse logos universal se comunica aos seres humanos através dos modos de expressão pelos quais os seres humanos tentam expressá-lo e entendê-lo. A teologia seria, portanto, uma ciência capaz de dar vazão a essa encarnação do Logos divino na história por meio de sua linguagem, que deve ser interpretada e vivida e comunicada pela linguagem humana. Esse seria o papel possível da teologia no mundo contemporâneo, o que se converte nas inúmeras entradas da ciência teológica na vida cotidiana. Ela manifesta através de uma linguagem específica a presença do Logos Divino que através de sua palavra misteriosa toca a linguagem humana e se manifesta na história, podendo ter um sentido político e social para as comunidades religiosas, como também um sentido existencial para cada fiel em sua necessidade de encontro com aquilo que ultrapassa sua existência e sua visão mais imediata do mundo e das coisas. Em 1963, Derrida ministrou um curso sobre as relações entre a fenomenologia de Husserl e a teologia. O curso intitula-se: "Fenomenologia, teologia e teleologia em Husserl''. Nesse curso, o filósofo argumenta que na fenomenologia husserliana a figura de Deus aparece como legitimadora do sistema de experiência que o filósofo alemão tenta constituir através do método fenomenológico. Ou seja, Deus para Husserl é considerado um transcendental em si que se concebe desta forma e que, 44 portanto, determina a figura do transcendental na filosofia, pois confirma a existência de um mundo de ideias e experienciaque não dependem ou são determinadas pela contingência do mundo material. Contudo, como poderíamos nós, humanos exteriores e finitos elevar-nos a uma consciência transcendental, conceber uma transcendentalidade? Dito de outro modo, se Husserl pensa Deus como transcendental, como pode uma consciência não transcendental pensar essa transcendentalidade? Para Derrida, essa limitação demonstra que Deus só pode ser pensado pela sua diferença, isto é, pelo seu fora em relação à humanidade. Só podemos pensar em Deus em seu sentido, não em sua transcendentalidade, pois somos finitos e não transcendentais quando o pensamos. Em uma perspectiva como esta, a razão e a fé não se opõem, mas se interligam: sendo a fé um ato humano, ela participa do ser tal qual a razão. Sendo a fé e a razão partes constitutivas do humano, elas fundamentam a experiência e o conhecimento teológico na linguagem, por meio da realização da experiência humana enquanto fonte de sentido que se orienta para aquilo que não está conforme suas limitações. Na contemporaneidade, portanto, a partir da filosofia de Derrida, leitor de Husserl, podemos entender a teologia não como passível de ser aprendida e, portanto, versada, mas antes, o rastro como possibilidade de sentido. Assim, em vez de Deus como presente, devemos pensá-lo como aquele que não está na realidade, pois a tudo precede. Trata-se do inapreensível, e de uma teologia negativa, onde apenas se pode dizer sobre o que Deus não é, na medida em que escapa a palavra, mas também só pode ser vivenciado por nós humanos através dela. 3.2 A teologia enquanto ciência hermenêutica 45 Fonte: acgabriele.jusbrasil.com.br Na modernidade tardia ou pós-modernidade, ou seja, em parte do século XX e nos dias em que vivemos, a cisão entre teologia e ciência tem sido problematizada e alguns casos combatida com um contra senso. No entanto, como vimos até agora, esse debate só se tornou possível através de uma crise do conceito de cientificidade adotado pela modernidade clássica e por filosofias que questionaram a noção de verdade enquanto adequação, tais como Heidegger e Derrida. A hermenêutica surge para teologia, isto é, aparece em seu campo conceitual, a partir dos problemas colocados pela ruptura entre ciência e conhecimento teológico. Assim, longe de buscar uma realocação de ambas, a hermenêutica possibilita à teologia, a análise e aprofundamento acerca dos limites da metodologia das ciências naturais, o que permite uma postura crítica em relação a necessidade de tratar o científico como se fosse propriedade de tais formas de conhecimento. A esse deslocamento contextual e temporal que se efetivou como pós-modernidade foi dado o nome de virada hermenêutica, que é quando a certeza das ciências exatas é preterida ou questionada em favor de uma ontologia e uma fenomenologia voltada a descrição do sentido da experiência humana, sem a pressuposição de que está ou aquela experiência tem maior ou menor valor cognitivo e teórico em relação as outras. Dessa forma, fez-se necessária a rejeição de quaisquer verdades ou unidades absolutas, argumentos especialmente sensíveis após o pensamento fenomenológico. 46 No entanto, a teologia, ainda com a mudança de paradigma, continuou a afirmar a ideia de Uno enquanto Deus como princípio absoluto e base de sua investigação. Nesse sentido, encontramos no campo da teologia algumas limitações que a hermenêutica postula ao discurso teológico. A mais contundente é: nenhum discurso deve se iniciar por uma afirmação, uma certeza, o que de antemão já encerra a possibilidade de diálogo, ou seja, seria uma ambiguidade a postulação de uma concepção dogmática de fé logo em seu começo. Portanto, pensar a afirmação da revelação divina como pressuposto para a existência de Deus encerraria qualquer diálogo hermenêutico. Outro ponto que deve ser admitido pelo saber teológico consiste em sua relação com a filosofia. Há correntes de pensamento teológico que não reconhecem na filosofia a reflexão acerca da existência de Deus muito antes do surgimento da teologia, no entanto, o diálogo com a filosofia fundamental, pois, a própria origem da hermenêutica e da teologia estão remetidas ao questionamento filosófico e seu desejo de ‘sistematização’ da experiência. Essa é uma das condições impostas pela hermenêutica. Assim, se podemos traçar um diálogo entre a ciência e a teologia, esse se dá a partir da existência. Contudo, cabe às ciências humanas se ocupar dessa existência de modo a dar-lhe sentido. Por sua vez, a inversão que ocorre após a virada hermenêutica é a retirada do sentido do objeto e a transferência desse sentido ao seu observador, o existente. Isso acaba por operar o surgimento da hermenêutica a partir do desaparecimento do objeto: o problema agora é a razão que pensa o objeto, inclusive a percepção causal do objeto. Não há, portanto, como afirmar que a razão e sua representação discursiva podem compreender o objeto por inteiro. Conclui-se que tanto a teologia quanto a ciência necessitam de uma pressuposição como condição para suas realizações como ciências. Ao passo que a ciência requer da teologia um objeto formal para reconhecê-la, a teologia entende que a ciência formal necessita de uma hipótese para dar uma representação formal sobre a realidade. Após a virada hermenêutica: [...] toda ciência é fundada sob o domínio do uno. Uma condição decisiva para dar unidade a objetos diferentes. Enquanto que a modernidade eliminou este 47 tema do seu horizonte, a pós-modernidade reconhece ser este um princípio da razão humana, e, logo, concernente à existência (MOTA, 2011, documento on-line). Dessa forma, a teologia ocupa o importante lugar de pensar Deus não mais como um objeto, ou a tentativa de comprová-lo, e sim de refletir sobre a relação entre o humano e a divindade. Assim, a teologia se entende livre da obrigação imputada pela ciência de provar a existência de Deus, bastando estabelecer uma ontologia fundamental como base para uma afirmação teórica de seu sentido. 4 TEOLOGIA E CIDADANIA: MOVIMENTOS E TENDÊNCIAS. Caravaggio 'A Ceia em Emaús'. Fonte: www.bbc.com Desde o surgimento do cristianismo como religião e doutrina, a teologia tem desempenhado um papel fundamental tanto na consolidação da religião quanto nos desafios surgidos em contextos culturais e políticos. No mundo contemporâneo, ela contribuído para reavaliação do papel da sociedade civil, das instituições religiosas e das práticas no que tange a constituição e fortalecimento da cidadania em diversos níveis e dimensões. Tendo em vista esse aspecto, nesta seção, trabalharemos tópicos relacionados ao desenvolvimento histórico da teologia enquanto prática social, levando em conta suas formulações sobre o sentido da fé cristã e o papel do teólogo 48 na história. Falaremos, ainda, de alguns dos principais movimentos teológicos, dando especial atenção às teologias protestantes e católicas no Brasil e na América Latina. 4.1 Os principais movimentos teológicos do século XX Em um breve panorama contextual do século XX, podemos observar que a teologia cristã foi fonte de distintas interpretações. Rompendo com o caráter medievo da teologia, a religião, já na Idade Moderna, deixa de ser protegida pelo status sagrado. Ou seja, a religião cristã perde seu suposto caráter imutável, eterno e indiscutível e começa a abrir espaço para as ciências humanas e sociais, que, em seus estudos, orientam a teologia para uma dimensão epistemológica de valorização das condições de produção e circulação das práticas e doutrinas religiosas. Assim, surgem movimentos teológicos em praticamente todos os continentes, ressaltando-se os movimentos europeus, que deram as bases para diversos outros: a teologia política de Karl Rahner (1968); a teologia dialéticade Karl Barth (1919); a teologia existencial de Rudolf Bultmann (1941); até os movimentos da teologia da libertação latinos de viés marxista e com forte impacto nas comunidades católicas. Teólogo Karl Rahner (1904-1984). Fonte. teologiabrasileira.com 49 Nesse contexto, por exemplo, tal como ressalta Rosino Gibellini (1998), a união entre a teologia e a libertação ressignificou a força e a presença do cristianismo na América Latina. Nos Estados Unidos, por outro lado, em meados dos anos 1950, a influência dos avanços tecnológicos e científicos ressoam sobre a população, que, em grande parte, acreditava que, após a ciência, dificilmente as religiões poderiam continuar a manter a mesma força e lugar na sociedade. No entanto, nos anos 70, o fundamentalismo religioso começa a crescer e, inesperadamente, as religiões passam a retomar muito de sua força, enquanto justificativa e instrumento para combater as formas de vida ‘rebelde’ existentes naquele período. Fonte: esquerda.net Esse peculiar movimento de embate entre conservadorismo e ‘liberalismo’, é atribuído às ameaças que a ciência simbolizava à conservação da vida tal como ela era. Outro aspecto determinante foram os movimentos de liberação sexual que aconteceram e que reivindicavam uma aceitação maior do sexo para além das formas instituídas socialmente; do mesmo modo, as revoluções farmacêuticas desse período também causaram um choque social para os mais conservadores com a difusão de medicamentos contraceptivos e a administração de hormônios. A indústria pornográfica também se encontrava em seu auge e muitos países lidavam com a problematização acerca de se criar uma legislação para esses profissionais ou não. 50 Todo esse cenário fez a teologia debater sobre como as instituições religiosas poderiam lidar com essas questões culturais e sociais para além da postura intransigente que defendeu até aquele momento da história, fazendo aparecer sua função enquanto força formativa de formas de inserção dos sujeitos em sua sociedade, o que emerge conforme uma leitura do papel do ‘cidadão’ religioso em sua cultura. Para tanto, a teologia deixou o seu caráter mais hegemônico, ou seja, de se apresentar enquanto uma visão mais restrita que deveria repetir e mesmo justificar as posições oficiais da das congregações e instituições religiosas, e passou a se dividir em muitas tendências e vertentes, tornando-se, assim vinculada a movimentos sociais e comunidades religiosas de pequeno porte e marcadas pela diversidade em relação à interpretação e uso da doutrina bíblica, o que caracteriza, atualmente, muitas formas de organização religiosa presentes na sociedade brasileira. Rosino Gibellini (1998) defende que os movimentos teológicos e o pensamento cristão se constituíram a partir de quatro modos de compreender a sociedade e a cultura. São formas históricas que se constituíram através de necessidades postas pelas sociedades e suas condições culturais, econômicas e políticas. Observando o seu desenvolvimento, podemos compreender o papel da teologia no mundo atual. Aliás, essas formas de compreensão teológica são ainda praticadas e consideradas no âmbito dos estudos teológicos atualmente. Fonte. teologiabrasileira.com 51 Em primeiro lugar, temos o modo interpretativo filosófico. Trata-se de um dos grandes domínios da teologia, desde o período renascentista. Quando os europeus decidiram sair em busca de novos territórios, o trabalho dos teólogos, em grande parte, consistia em fazer traduções e anotações. Porém, um dos grandes marcos se deu quando Lutero traduziu a bíblia para o alemão e afirmou o direito do fiel à livre interpretação da palavra. Encontramos, aqui, um deslocamento fundamental. Se com Igreja católica o direito a interpretação da palavra se restringia aos membros eclesiais, constituindo uma tradição inacessível a maioria dos fiéis, no máximo repetida por eles. Através de Lutero, passa-se, a considerar a fé do indivíduo como base e fundamento para o direito à interpretação. No século XX, tal ideia permanece relacionada à teologia, e, nesse sentido, a teologia hermenêutica se mantém como uma das principais formas de fazer teologia e reivindicar ao conhecimento teológico valor científico. A capacidade de traduzir, interpretar e compreender as Escrituras continua a fundamentar a teologia de acordo com o argumento de que a hermenêutica é uma forma de Deus se revelar pela palavra. Segundo Gibellini (1998), o trabalho do teólogo só se efetiva quando pode compreender e falar sobre o que compreendeu no Evangelho, assim, a relação com Deus se dá pela fé que só pode ser exercida depois que a sua palavra é compreendida. O teólogo e filósofo Paul Tillich (1886-1945) Fonte: ibs.teo. 52 Outro movimento significativo na teologia do século XX se deu com base em uma possível teologia da cultura. Um dos principais expoentes dessa vertente foi o teólogo alemão-estadunidense Paul Tillich (1886-1965), que citamos anteriormente. Em sua abordagem, ele argumentava que a religião e a cultura são movimentos, conceitos e esferas distintas que devem e precisam ser aproximados. Tillich procurava, portanto, em seu livro Teologia da Cultura, diminuir a distância existente entre a fé e a cultura, mostrando que o físico e o material são dimensões fortemente afetadas e transformadas pela espiritualidade humana. Para se entender a cultura, é necessário perceber como a teologia percorre a superfície e profundidade das expressões humanas. Nesse sentido, deus pode ser encontrado através da “correlação da mensagem cristã e a situação existencial, o aspecto simbólico da linguagem religiosa que evita a apropriação, o dogmatismo e a idolatria, e o princípio protestante, que define a justiça como incondicionalidade” (TILLICH, 2009, p. 23). Apesar da grande crise que se iniciou na modernidade acerca da compreensão da realidade não mais pelo Evangelho, mas, sim, pela verdade científica, a teologia conseguiu ter muitos ganhos teóricos e impactar a vida social d muitos modos, o que vimos pela sua presença não apenas de teólogos declarados e fundamentais como Tillich, mas também pela sua presença em filosofias tão desconcertantes como as de Heidegger e Derrida. Há, ainda, nesse sentido, uma compreensão teológica relacionada à história, chamado de teologia da história. Cabe ressaltar que o argumento histórico sempre se manteve como uma preocupação teológica. Nos primórdios do cristianismo, Paulo, por exemplo, se mostrava demasiado preocupado com que a fé cristã fosse combatida com as verdades históricas e filosóficas. No século XX, a preocupação se mantém entre os teólogos, uma vez que esse embate entre realidade e verdade epistemológica ainda se coloca em contraposição à religião. A saída teológica se constrói sobre a narrativa interpretativa de que “Deus se mostra nos fatos”, que ele está na história. Assim, a postura histórica em teologia acaba por estar remetida ação hermenêutica, já que é preciso interpretar os fatos para que se possa compreender como e quando Deus se manifesta na história. Seria, portanto, uma negação da verdade cristã não compreender a ação de Deus pela língua dos fatos em distintos períodos históricos, do mesmo modo, na realidade. 53 Pintura de Caravaggio Prisão de Cristo ou o Beijo de Judas. Fonte: folha.uol.com Ressaltam-se também movimentos de caráter político (GIBELLINI,1998). Nesse sentido, a teologia política surge com a função de fazer as instituições pensarem em si como importantes esferas da sociedade. À Igreja é reclamada a reflexão sobre o seu lugar no mundo atual. Para tanto, repensar os erros cometidos em nome da fé e o apoio institucional da instituição a diversos movimentos, por vezes massacres, é colocado em questãopor essa vertente. A tarefa proposta, assim, é retornar aos valores cristãos de fraternidade, tomando a fé como motivação para a denúncia dos atos errôneos nas sociedades. Desse modo, muitos representantes da Igreja buscam repensar a missão pública do cristianismo de acordo com equívocos cometidos, como, por exemplo, o apoio da instituição à ditadura na Argentina, entre outros. É por meio dessa problematização acerca da conduta ética da instituição católica que também se dá a teologia da libertação, que se coloca em oposição aos movimentos conservadores da sociedade e dos poderes desiguais instituídos. Tal movimento acaba por contribuir para a emancipação do indivíduo e, portanto, da mulher dentro do estudo teológico. Ou seja, teologizar em decorrência da práxis passa a ser uma importante ferramenta no processo de emancipação feminina. Vale ressaltar que, no contexto da agricultura familiar — assim como uma das bandeiras pela reforma agrária — a mulher, em grande parte das famílias, mantém a 54 todos e lidera o trabalho da agricultura. Contudo, um dos maiores desafios para as teólogas feministas é repensar os dogmas doutrinários e demonstrar o caráter sexista e patriarcal do cristianismo. Entende-se, desse modo, que a teologia cristã e os contextos sociais são correlativos. Assim, cabe à teologia não somente acompanhar as mudanças para manter os fiéis, mas, antes, compreender a hermenêutica de determinado contexto de acordo com a obra de Deus. Para tanto, o diálogo e o debate entre distintas vertentes demonstram formas de pensar em Deus e em sua relação com a sociedade. 4.2 Os movimentos teológicos evangélicos Quando tratamos de assuntos relacionados à teologia, muitas vezes, eles são associados à Igreja Católica. Contudo, desde Lutero, a teologia protestante vem se intensificando e se relacionando estruturalmente aos modos de vida da sociedade. No caso de Lutero, sua contribuição foi dar resposta ao problema da interpretação bíblica através da valorização da experiência da pessoa humana. Já no contexto da Revolução Industrial, com o aumento da secularização, o protestantismo teve uma grande aderência, pois suas doutrinas, em grande parte, concordavam com o desenvolvimento econômico capitalista da sociedade. Nesse sentido, é importante ressaltar que, desde a Reforma Protestante, os protestantes vinham conquistando cada vez mais espaço nas sociedades europeias. Com a colonização da América do Norte, o continente se tornou hegemonicamente protestante, e isso guiou os valores sociais e culturais estadunidenses. Em relação ao Brasil, desde os anos 1980, as missões protestantes advindas dos Estados Unidos e da Inglaterra, chamadas de protestantismo de missão, não tiveram grande aderência social. Isso porque a missão evangélica era pensada apenas como pregação para conversão dos indivíduos e para livrá-los dos pecados. Assim, os grupos evangélicos dessas correntes acabavam por se fechar em guetos culturais por rejeitarem tudo aquilo que era tido como mundano. Tais missionários acreditavam que a mudança do mundo se daria pela transformação das mentes e dos 55 corações e, para tanto, a pregação da palavra, o estudo bíblico e a oração seriam capazes de transformar os indivíduos. Fonte: veja.abril.com Assim como Durkheim elucida em As formas elementares da vida religiosa (2005), a religião surge, antes de tudo, de uma forma elementar identitária. Tal reflexão durkheimiana, aplica-se ao corpo social evangélico formado durante as últimas décadas do século XX: os evangélicos, em sua grande maioria, não se identificavam com a cultura, com o consumo de qualquer substância entorpecente, mesmo as legalizadas, e não podiam praticar jogos de azar; além disso, não se posicionavam politicamente ou acreditavam em argumentos científicos. De acordo com Cavalcante (2010), todas essas práticas eram consideradas pelos grupos evangélicos como mundanas. Porém, à mesma época, alguns setores do movimento evangélico começaram a se envolver com questões públicas e culturais, o que, desde o censo realizado em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), vem demonstrando uma forte presença evangélica em nossa sociedade que, sem dúvidas, intensificou- se nos últimos anos, respectivamente no século XXI. Autores como Giumbelli (2013) caracterizam a participação dos evangélicos no tecido social pelo termo “cultura pública”. Tal expressão se refere à produção cultural evangélica, que se intensificou 56 com o surgimento de canais evangélicos, com a participação de evangélicos em programas de TV e outras mídias. Quando não assumem programas próprios como apresentadores, ou mesmo pastores, assumem também locais de pregações que vão desde praças públicas a presídios e hospitais, entre outros lugares nos quais as pessoas se encontram fragilizadas e descrentes de melhora; há também intervenção urbana, que se dá com a construção de templos grandiosos. Desse modo, Giumbelli (2013) caracteriza essa cultura pública como uma cultura guiada por uma ética de domínio. Fonte: oglobo.globo.com Nesse sentido, observamos uma grande alteração no modo de interação evangélica com a sociedade. Se antes o corpo evangélico considerava o tecido social e as suas produções como mundanas, atualmente, esse mesmo corpo deixou de se setorizar em guetos para disputar o espaço social e cultural e ocupá-lo com a pregação de sua crença. Assim, o espaço público passa a ser entendido como um lugar de batalha espiritual, e o evangélico, como discípulo de sua igreja e do senhor, deve engajar-se. A ética protestante, nesse contexto, atua em relação a uma prática de moralização dos costumes por meio dos princípios evangélicos e, assim, exerce significativo impacto sobre a esfera pública. Contudo, tal inserção também causou um impacto em grupos evangélicos que ressignificam a religião. 57 Esse grupo que opta por outra ética que não a do domínio ou ética protestante tradicional, é chamado de sociorreligioso. Ou seja, seu posicionamento ético é integrativo, pois almeja mudar a sociedade de acordo com os princípios democráticos, de direitos humanos e de justiça social, valorizando a mensagem cristã como uma mensagem de justiça, igualdade e amor. Tal grupo busca aproximar-se mais do que as Escrituras pregam no contexto dos valores cristãos. Portanto, os evangélicos sociorreligiosos são entendidos como progressistas, já que entendem a fé cristã como um canal de respostas aos anseios sociais, que envolvem, segundo Alencar (2019, p. 178): [...] desigualdade, violência urbana, pobreza, desemprego, corrupção, analfabetismo, mortalidade infantil, entre outros, e Alencar: Grupos protestantes e engajamento social ter como missão a concretização do Reino de Deus entendido como uma realidade de paz e justiça para todos – temas econômicos, políticos e sociais. Podemos dizer, então, que os evangélicos progressistas não atuam no sentido de converter os indivíduos à sua religião apenas, mas, sim, de alterar a consciência dos evangélicos mais intolerantes. Para tanto, seu exercício ético e cidadão consiste muito mais na conciliação entre consciência religiosa, questões sociais e políticas nas quais a fé pode agir. Desde 1950, surgiram grupos e instituições de cunho progressista que buscam problematizar a relação entre fé, igreja e o contexto social, tais como a Visão Mundial, a Associação Evangélica Brasileira (AEVB) e a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS), que tomam para si a missão de ressignificar a cultura e a religião evangélica. Outrossim, de acordo com Conrado (2006), desde 1988, com o período de redemocratização brasileira, as redes evangélicas que prestam serviços de assistência à sociedade empreenderam fortes campanhas entre os fiéis, esclarecendo-osacerca das demandas sociais e solicitando que participassem das ações de ONGs, movimentos sociais, entre outras entidades que atuam auxiliando quem se encontra em qualquer situação de vulnerabilidade social, educacional, de saúde, etc. Assim, entre os anos 1990 e 2000, uma das maneiras de os grupos sociorreligiosos se integrarem à sociedade foi mediante ações sociais e filantrópicas. 58 Fonte: ww1.folha.uol.com. Existem alguns grupos que se destacam no cenário progressista, a começar pelo grupo surgido durante o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016. A Frente Evangélica Pelo Estado de Direito (FEED) é formada por líderes cristãos e coordenada pelo pastor Ariovaldo Ramos, que se destacou por suas pregações adeptas da teologia da missão integral (TMI). Vale ressaltar que esse grupo se formou enquanto oposição ao impeachment e denunciando-o como um golpe de Estado. Já em relação à TMI, trata-se de uma teologia surgida nos anos 1970 que buscava modificar o ideal de missão protestante, tornando-o mais ligado aos problemas sociais e tendo como contexto originário a oposição entre dois grupos evangélicos: os fundamentalistas e os liberais. Enquanto os liberais defendiam agendas como os aspectos individuais da religião e os aspectos sociais que a instituição religiosa deveria ter, os fundamentalistas defendem o não envolvimento da religião com a questão da sociedade. No entanto, muitos líderes desses têm assumido papel ativo na sociedade, na medida em que ganham eleições e se tornam políticos de carreira. Outro grupo a se destacar dentro dos movimentos evangélicos é o Entre.nós, liderado pelo pastor Henrique Vieira, que é conhecido no Rio de Janeiro, onde iniciou sua carreira, como um pastor progressista por tratar temas polêmicos entre os evangélicos de forma contemporânea. Atualmente, Vieira atua como pastor na Igreja 59 Batista do Caminho, que se tornou independente em 2012, justamente por lidar com questões tabus de forma distinta. O pastor Henrique também é conhecido por seu cunho político e é filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (Psol), pelo qual foi vereador do RJ entre os anos de 2013 e 2016, assumindo como tantos outros líderes evangélicos um papel de liderança social, o que nos permite compreender como a religião evangélica impacta na formação do cidadão na sociedade brasileira. Por fim, podemos elencar o grupo Esperançar, que se fundamenta nos seguintes movimentos teológicos: a teologia da libertação e as teologias contextuais. Enquanto a primeira se associa às causas sociais ligadas à população de baixa-renda, a segunda se refere a um desdobramento da primeira, ou seja, a teologia contextual, como seu próprio nome anseia, busca pensar o contexto social em sua amplitude. Assim, ao trazer o contexto para a reflexão teológica, a teologia contextual é matriz de outras correntes teológicas que interagem com ela: teologia negra, teologia queer, teologia feminista, teologia LGBTQ+. Ou seja, as pautas por uma teologia progressista também se difundem por meio de pautas identitárias, contudo, em oposição à agenda conservadora fundamentalista. Conclui-se que a presença evangélica no Brasil, desde os anos 1980, vem interagindo e movimentando peças na esfera social e política, elas participam, portanto, do que se constitui no Brasil como cidadania. Vemos que, assim como no catolicismo, a religião evangélica teve de se debruçar teologicamente sobre a realidade e os seus avanços para melhor compreendê-los. Nesse sentido, podemos observar que a mudança temporal e contextual sempre apresenta grandes desafios à sociedade. De acordo com as correntes mais progressistas, se a teologia não buscar compreender a obra divina por meio da realidade posta, não há como se manter como lugar de acolhimento e fraternidade entre fiéis. 4.3 A teologia da libertação A teologia da libertação surgiu oficialmente em 1971, com a publicação do livro de um padre peruano, Gustavo Gutiérrez, A teologia da libertação. Contudo, a teologia da libertação é um movimento que já vinha acontecendo antes de sua oficialização, 60 principalmente após o Concílio do Vaticano (1962) e da Conferência de Medellín (1968), que consistiram em encontros oficiais para discutir colaboração que as ciências humanas e sociais poderiam dar à Igreja em relação à teologia e ao acesso dos mais pobres (SANT’ANNA, 2004). Gustavo Gutiérrez sendo comprimento pelo Papa Francisco, encontro em 2014. Fonte: vaticanonews.com Apesar da corrente mais conhecida ser a de viés marxista, outras correntes também se constituíram, mas com outras interpretações: antropológicas, relativistas, materialistas, entre outras. Todas se debruçaram sobre os mesmos problemas e sobre os ensinamentos de Jesus Cristo, mas com interpretações diferentes. Faz-se necessário, nesse contexto, retomar a história da religião enquanto instituição na América Latina, ainda que brevemente. Autores como Sant’Anna (2004) resgatam a história do cristianismo na América Latina a partir de três marcos: (1492– 1808) o cristianismo colonial; (1808–1960) o cristianismo novo; (1970–1978) a crise do cristianismo. O primeiro momento de nossa história se refere ao período da colonização. Com a chegada dos portugueses e espanhóis em nosso continente, suas crenças passaram a ser impostas. No século XIV, Portugal e Espanha eram países 61 hegemonicamente católicos; não obstante, a Igreja Católica era uma força predominante em toda a Europa. Nesse sentido, não se submetia às coroas de ambos os países nem de qualquer país europeu. Nesse contexto, a Igreja tinha acesso às sociedades, a estratos sociais que nem mesmo a Coroa conseguia ter. A colonização se deu como uma difusão impositiva da exploração e do modo de vida europeu e, a partir de então, a Igreja empreendeu formas de legitimar a si enquanto instituição e religião e também os interesses monárquicos. Missões religiosas foram estabelecidas com vistas à catequização dos povos “selvagens” (os povos indígenas), em que muitos eram castigados por se recusarem a aderir às crenças cristãs, por demorarem para aprender as línguas portuguesa ou espanhola, entre outros motivos. Contudo, a Igreja foi se fragmentando enquanto instituição na América Latina. No ano de 1534, surge a chamada Companhia de Jesus, de origem francesa — seu fundador foi Iñigo López de Loyola, de origem basca (entre França e a Espanha) e aluno da Universidade de Paris —, que tinha como fundamento o trabalho missionário em defesa dos povos oprimidos. A Companhia de Jesus passa a representar um risco aos interesses das Coroas portuguesa e espanhola, o que culmina, no século XVII, com a expulsão dos jesuítas, uma vez que representavam uma denúncia contra a união entre Estado e Igreja no processo de exploração. Já o segundo momento de nossa história latina (1808–1960) é caracterizado pela disputa imperialista entre a França e a Inglaterra ao nível mundial (SANT’ANNA, 2004). O continente latino-americano passa a estar cada dia mais presente em meio às disputas territoriais, econômicas e aos movimentos emancipacionistas. Trata-se do período em que várias transformações aconteciam no mundo e que acabaram por afetar o poder monárquico. Em 1789, aconteceu a Revolução Francesa e, após esse acontecimento, Napoleão Bonaparte iniciou guerras contra diversos países em alianças. Portugal e Espanha encontravam-se enfraquecidos em seus regimes políticos, isto é, em suas monarquias. É nesse período que a América Latina passa a adquirir maior independência e apoio dos ingleses, e a Inglaterra passa a impor diversas mudanças estruturais nos países latinos, como, por exemplo, fim do regime escravagista. Impõe-se também aspectos econômicos e um modelo industrial, visto 62 que, há pouco,a Revolução Industrial vinha acontecendo no país — tudo isso acaba contribuindo para o enfraquecimento da narrativa católica. Em 1870, surgem, na América Latina, os Estados oligárquicos (SANT’ANNA, 2004), já que, nesse período, não havia um conceito de país estável latino. Como exemplo dessas oligarquias, temos o governo mexicano, com José de la Cruz Porfirio Día Mory à frente; o governo peruano chefiado pelo partido civilista, e o governo argentino, que tinha Julio Argentino Roca como seu presidente. Tal momento ficou marcado por uma concentração de capital sob o domínio de uma restrita elite. Porém, é também em meio a tamanha desigualdade que os movimentos sociais e religiosos aparecem, assim como a Guerra de Canudos (1896–1897). De 1930 a 1960, vários acontecimentos influenciam o cenário latino. Em 1929, ocorre a queda da bolsa de Nova York e, com isso, o processo de industrialização se acelera, levando a fenômenos sociais negativos, tais como o êxodo rural. Surgem movimentos com apelo populista, de caráter nacionalista e com pautas desenvolvimentistas. No caso do Brasil, o modelo desenvolvimentista teve aspectos positivos, pois é a partir destes projetos que se pode falar de industrialização e modernização da sociedade brasileira. A Igreja católica se vê em um lugar ambíguo: por um lado, vê nesses novos movimentos uma oportunidade de romper com o oligarquismo e, de outro, a possibilidade de esses movimentos sufocarem os anseios da oposição, dos movimentos sociais de caráter mais socialista na América Latina. É assim que, em 1960, inicia-se a crise do cristianismo. No Brasil, especificamente, ocorreu em 1964 o golpe militar e a implementação de uma ditadura. Com isso, a aliança entre Igreja e Estado foi rompida, pois a ideologia militar, e de parte da sociedade que apoiava ao golpe, era incompatível com os ideais religiosos, principalmente com práticas como as de tortura, o que não impediu que amplos setores da igreja apoiassem de modo acrítico o regime militar. Por outro lado, diversos setores da Igreja passaram a se unir e instituíram como pauta de luta uma aliança que colocasse em prática movimentos de libertação pela América Latina (SANT’ANNA, 2004). Assim, setores mais conservadores da Igreja e que apoiavam os movimentos desenvolvimentistas e nacionalistas passaram a ser ineficazes socialmente, visto que a parte da igreja católica latino-americana passou a 63 simbolizar a resistência aos governos ditadores da América Latina. No Brasil, a adesão estudantil a esses movimentos foi grande. A Ação Popular (AP) de 1962 surgiu, em grande parte, da juventude cristã progressista. Tal ação conseguiu estabelecer um diálogo com os trabalhadores rurais e com a população mais distante dos grandes centros. Após perseguida pelo regime militar, em 1964, a AP, em 1965, assumiu um viés mais radical de caráter marxista. Para tanto, por mais que tivessem sido feitas tentativas de unir a ideologia política com a religião católica, a AP acabou por se desvincular do catolicismo e se declarar mais próxima à revolução cultural chinesa de Mao Tse-Tung, uma posição bastante enviesada porque não era clara naquele momento o que era a Revolução cultural Chinesa. Em 1972, a AP se incorporou ao Partido PC do B, e os que discordavam dessa associação acabaram por se organizarem como a AP–Socialista. Em 1955, ocorreu a Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino- Americano. Tal conferência se deu em grande parte porque a Igreja Católica não tinha atuação significativa na América Latina, apesar de seu grande número de fiéis. Nessa conferência, criou-se a Comissão para a América Latina, que, mesmo sediada em Roma, tratava dos problemas da Igreja no continente. Foi esse o marco para uma ruptura mais radical, a Conferência de Medellín, em 1968, a partir da qual parte da Igreja assumiu um discurso anti-imperialista, decolonial e o papel de se tornar libertadora por meio de sua teologia. Surge, então, a teologia da libertação, cujo ideal era unir a fé à conscientização dos povos oprimidos desde as colonizações. O teólogo Leonardo Boff se torna um dos protagonistas no movimento de libertação. Ao lado de Gutiérrez, Boff se engaja nas lutas sociais dos movimentos e os dois, buscam, juntos, pensar uma forma de reestruturar a Igreja na América Latina, respeitando as características das sociedades e culturas que se formaram ao longo dos séculos em nosso continente. Para Boff (1986, p. 13–14): “[...] por detrás da Teologia da Libertação existe a opção profética e solidária com a vida, a causa e as lutas destes milhões de humilhados e ofendidos em vista da superação desta iniqüidade histórico-social”. 64 5 TEOLOGIA, DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA Fonte:globo.com Os direitos humanos no século XIX não estão mais centrados somente na noção de tolerância, como foi no século XX. Atualmente, busca-se reconhecimento e aceitação, bem como liberdade de vivenciar publicamente as escolhas e crenças individuais. Nesse contexto, o conceito de direitos humanos sofre um alargamento, na medida em que não se trata mais de apenas aceitar a existência de opiniões diferentes, mas de aceitar opiniões diferentes, buscando garantir sua sobrevivência cultural e social daqueles que ocupam socialmente lugares de vulnerabilidade. No que tange a reflexão sobre os direitos humanos é preciso compreender que ela significa uma discussão que deve necessariamente ser interdisciplinar. Portanto, os direitos humanos não podem ser pensados como uma disciplina exclusiva do Direito, embora permaneçam vinculados a essa área do conhecimento; eles devem ser situados ainda numa perspectiva formativa, entendendo que os direitos humanos em nossa sociedade estão ligados ao problema da cidadania enquanto ideal político das sociedades democráticas, o que envolve também discussões sobre as condições de vida real dos indivíduos em sociedades que não pautam suas práticas pelos valores que são publicamente defendidos. 65 Nesses termos, entende-se, que o núcleo dos direitos humanos vai além da esfera jurídica, uma vez que ele diz respeito à organização social humana, e isso implica em uma abordagem que considere múltiplas áreas de conhecimento, como a teologia, por exemplo. Um conceito muito importante para a Teologia é o de intersubjetividade, ou alteridade. Não é possível pensar em direitos humanos sem levar em consideração os outros — aliás, todos os outros e principalmente os radicalmente outros. Aqui entra em jogo um princípio da universalidade: o respeito à dignidade da vida humana sem exceção. Além disso, os direitos humanos devem ser absolutos. Eles não se restringem à discussão sobre a validade ou invalidez de normas e preceitos, porque “[...] o absoluto dos direitos humanos está na vida. Nessa ordem de ideias, o fundamento dos direitos humanos está no mundo da vida, na possibilidade de uma vida digna, porque a vida é o fundamento absoluto dos direitos humanos (CORREDOR, 2005). A dignidade e a sacralidade da vida, nas quais se fundamentam teologicamente os direitos humanos, não seguem uma lógica de mercado, mas valorizam uma perspectiva democrática e de compreensão da cidadania como uma das dimensões fundamentais pelas quais é possível falar de direitos humanos em nossa sociedade. Em outras palavras, a vida humana não é uma coisa, um produto comercializável: a vida tem valor, as coisas têm preço, e não devemos inverter essa ordem. Um exemplo de vida humana como produto de mercado é a escravidão, um lugar social que retira do sujeito todas as suas possibilidades, inclusive, a possibilidade de se considerar como membro de uma ‘cidadania’ e portador de uma identidade enquanto ator político que pode e deve discutir as questões sociais e políticas que dizem respeito a sua comunidade e a sociedade na qual ela está inserida.Apesar de já termos superado quase por completo o problema da escravidão, vivemos um período de profundas injustiças, que tornam o ser humano sofrido e desamparado, por conta das angústias, do desespero, da dor e da fome. Por exemplo, em torno de 800 milhões de pessoas passam fome no mundo. Outros grupos de pessoas que ficam marginalizadas, sem dignidade, são, por exemplo, as vítimas de violência física e psíquica, da indústria das armas e da guerra e, também, de desastres 66 naturais. Essas pessoas frequentemente ficam excluídas, são exploradas e marginalizadas. Diante disso, se coloca a questão sobre a maneira como Deus está presente no cotidiano das pessoas, inclusive por meio do reconhecimento dos direitos de cada ser humano. Nesse caso, a Teologia contribui por meio de “[...] uma leitura libertadora que fundamenta os direitos humanos, porque é na dor, na injustiça, na solidão de seu povo que Deus a escuta, e seu clamor exige justiça”, segundo ensina Corredor (2005). 5.1 A doutrina social da igreja católica e os direitos humanos Fonte: aleteia.org A Doutrina Social da Igreja católica foi construída à medida que ela se sentiu com a missão de oferecer uma resposta aos problemas sociais e políticos que surgiram ao longo dos últimos 20 séculos. Sendo assim, ela é fruto de uma construção histórica, constituída por ensinamentos presentes na Sagrada Escritura (Bíblia) e em muitas encíclicas, bulas e pronunciamentos dos papas. A Doutrina Social da Igreja estabelece princípios para nortear as organizações sociais e políticas, convidando as pessoas a agirem, a fazerem algo pelos outros, sobretudo pelos mais excluídos. Os principais temas abordados pela Doutrina Social da Igreja são: o bem comum, a solidariedade, o cuidado com o meio ambiente, o respeito pelos povos e suas culturas, a promoção da paz, da justiça e da liberdade e o respeito pela família, 67 pelos direitos e pela dignidade humana. Ou seja, são todos temas que visam a cidadania, seja como capacidade de discussão de tais temáticas ou como finalidades a serem desejadas por todos os cidadãos. Fonte: www.brasil1.com Um exemplo que podemos trazer da modernidade é o do Papa Gregório XVI (1831–1846), que condenou a escravidão dos negros, com a bula In Supremo Apostolatus, escrita em 1839. Dessa forma, ele também contribuiu para a abolição da escravatura no mundo. O Papa Leão XIII (1810–1903) também tem grande destaque nesse contexto. Durante seu papado, ele deu ênfase para as questões sociais. Atento observador da realidade sofrida da vida humana de seu tempo, Leão XIII procurava inspiração não apenas no cotidiano, mas na tradição da Igreja, buscando iluminação na Bíblia. Rerum Novarum: sobre a condição dos operários é o título da encíclica escrita por Leão XIII em 1891 e considerada um dos mais importantes documentos sobre a Doutrina Social da Igreja. O núcleo desta encíclica é “[...] a dignidade da pessoa humana e do trabalhador, o direito inalienável à propriedade privada e a função social dos bens, o papel do Estado social de direito à livre associação”, conforme afirma Corredor (2005, p. 133). 68 Após a encíclica de Leão XIII, outros papas produziram encíclicas com temas fundamentais em torno dos direitos humanos. Bento XV (1854–1922), na encíclica Ad Beatissimi Apostolorum, de 1914, convoca os cristãos para a paz, pois estavam no contexto da Primeira Guerra Mundial. Sobre essa mesma temática, em 1920, Bento XV escreveu a encíclica Pacem Dei Munus: sobre a restauração da paz. Pio XI (1857–1939) escreveu três encíclicas envolvendo a Doutrina Social da Igreja e os direitos humanos: Ubi Arcano (1922), Quas Primas (1925) e Quadragesimo Anno (1931). Nessas encíclicas, ele condena a imoralidade, as revoluções e a exploração do trabalho, defendendo o direito ao salário digno e à propriedade privada. Além disso, o Papa Pio XI escreveu contra os totalitarismos de direita e de esquerda na encíclica Non abbiamo bisogno, na qual se posicionou contra o fascismo italiano; também combateu o nazismo alemão, com a encíclica Mit brenender sorge, e, ainda, atacou o comunismo soviético, com a encíclica Divini Redemptoris. Pio XII (1876–1958) abomina o racismo na encíclica Summi Pontificatus (1939). Também foi um pregador incansável pela defesa da dignidade humana e, inclusive, enumerou uma lista dos direitos fundamentais da pessoa, em sua mensagem radiofônica de Natal, no ano de 1942. Com isso, ele se antecipa à Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 (ONU, [2018]). Outro Papa de extrema relevância para a Doutrina Social da Igreja foi João XXIII (1958–1963). Em 1963, ele publicou a encíclica Pacem in Terris, por ocasião dos 15 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, para a qual faz uma menção positiva (JOÃO XXIII, 1963). No entanto, ele acrescenta direitos não presentes na declaração e, principalmente, acrescenta nela os respectivos deveres do ser humano. No parágrafo nove da encíclica, João XXIII declara que: [...] em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis e inalienáveis (JOÃO XXIII, 1963, documento on-line). 69 Depois disso, João XXIII ainda convocou o Concílio Vaticano II, que significou uma abertura da Igreja para o mundo, valorizando as descobertas da ciência e aprimorando o diálogo entre fé e razão. Durante o concílio, foram elaborados muitos documentos pelos cardeais. Dentre eles, a Constituição Gaudium et spes. Nessa Constituição (NAVARRO, 2018), a Igreja novamente ressalta a importância da paz, mediante a ameaça da guerra. Além disso, ressalta que, em quaisquer situações de conflitos armados, os direitos das pessoas não podem ser violados. Nesse caso, se houver violação dos direitos, haverá crime de guerra. A constituição acentua ainda a valoração da vida humana, baseada em um ordenamento social que possibilite uma vida digna para todos. No parágrafo 73 dessa mesma Constituição, podemos ler que: A consciência mais sentida da dignidade humana dá origem em diversas regiões do mundo ao desejo de instaurar uma ordem político-jurídica em que os direitos da pessoa na vida pública sejam melhor assegurados, tais como os direitos de livre reunião e associação, de expressão das próprias opiniões e de profissão privada e pública da religião. A salvaguarda dos direitos da pessoa é, com efeito, uma condição necessária para que os cidadãos, quer individualmente quer em grupo, possam participar ativamente na vida e gestão da coisa pública (NAVARRO, 2018, documento on-line). Em toda a América Latina, devido à influência da encíclica Pacem in Terris e do Concílio Vaticano II, a Igreja está, desde os anos 1960, trabalhando exponencialmente em prol dos direitos humanos, por meio da sua opção preferencial pelos pobres. Esta se manifesta nos movimentos e nas comunidades, bem como nas propostas de campanhas nacionais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, como a Campanha da Fraternidade, no Brasil. As conferências realizadas pelos bispos latino-americanos em Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida também tiveram como resultado documentos que promovem e defendem os direitos humanos. Destacamos aqui o Documento de Medellín e o Documento de Aparecida. No primeiro, os bispos destacam 13 objetivos a atingir (também chamados de linhas pastorais) com a missão da Igreja. Dentre eles, o segundo objetivo diz o seguinte: “Defender, segundo o mandato Evangélico, os direitos dos pobres e oprimidos,urgindo os nossos governos e classes dirigentes que eliminem tudo o quanto destrua a paz social: injustiça, inércia, venalidade, 70 insensibilidade” (MEDELLÍN, 2018). No Documento de Aparecida também são defendidos os direitos humanos. No parágrafo 387, os bispos destacam que: [...] a cultura atual tende a propor estilos de ser e viver contrários à natureza e dignidade do ser humano. O impacto dominante dos ídolos do poder, da riqueza e do prazer efêmero se transformaram, acima do valor da pessoa, em norma máxima de funcionamento e em critério decisivo na organização social. Diante dessa realidade, anunciamos, uma vez mais, o valor supremo de cada homem e de cada mulher. Na verdade, o Criador, ao colocar a serviço do ser humano tudo o que foi criado, manifesta a dignidade da pessoa humana e convida a respeitá-la (CONSELHO EPISCOPAL LATINO- AMERICANO, 2012). No Documento de Aparecida também são mencionados com destaque aqueles que não podem usufruir plenamente de seus direitos, os excluídos e os pobres: “[...] à luz do Evangelho reconhecemos sua imensa dignidade e seu valor sagrado aos olhos de Cristo, pobre como eles e excluído como eles. Desta experiência cristã compartilharemos com eles a defesa de seus direitos” (CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, 2012). Diante disso, vemos que a atuação da Igreja Católica tem sido de enorme importância para a consolidação dos valores dos Direitos Humanos e uma concepção de cidadania, que não atinge apenas aos católicos, mas outras tendências religiosas e o conjunto da sociedade. Atualmente, a Igreja está intensificando ainda mais essa atuação, lutando pela defesa dos pobres e oprimidos e para que a justiça seja efetiva para todos, garantindo que todos possam usufruir da dignidade humana em sentido material e espiritual. 71 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995. ALENCAR, G. Grupos protestantes e engajamento social. uma análise dos discursos e ações de coletivos evangélicos progressistas. Religião & Sociedade, v. 39, n. 03, p. 173-196. 2019. AQUINO, T. de. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2001. BERGER, K. 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