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<p>Lucídio Bianchetti Valdemar Sguissardi DA UNIVERSIDADE À COMMODITYCIDADE de como e quando, se a educação/formação é sacrificada no altar do mercado, o futuro da universidade se situaria em algum lugar do passado MERCADO R LETRAS</p><p>Esta obra puede ser como otra cronología del devenir milenario de la universidad, siguiendo un hilo discursivo que enlaza sucesivas configuraciones históricas del mercado de la educación superior, desde el primer encuentro entre oferta docente y demanda formativa en Bologna y Paris hasta el DA UNIVERSIDADE À capitalismo académico como proyecto COMMODITYCIDADE neoliberal global y sus versiones en clave local. ou Desde esta óptica, la palabra universitas evoca DE COMO E QUANDO, SE A una misma cosa académica EDUCAÇÃO/FORMAÇÃO É sustantiva que transita en un tiempo lineal por SACRIFICADA NO ALTAR DO una vía de sentido único y obligatorio -one way- MERCADO, FUTURO DA necesario y racional. Consiguientemente, la UNIVERSIDADE SE SITUARIA EM ALGUM LUGAR DO PASSADO academia capitalista aparece como un estadio evolutivo avanzado de aquella institución, empeñada en corregir presuntas deficiencias acumuladas en sus etapas anteriores de desarrollo a su acentuado carácter mediante la introyección en su cultura de valores instrumentales del mercado como los de productividad, eficiencia, competitividad, rentabilidad, orientación a la demanda, análisis coste-beneficio y evaluación por resultados. En contraste, también puede ser contemplada como una crónica hermenéutica de la colonización mercantil de la academia de la mano de la Nueva Gestión (Pública) neoliberal,</p><p>Lucídio Bianchetti Valdemar Sguissardi DA UNIVERSIDADE À COMMODITYCIDADE Conselho Editorial Educação Nacional Prof. Dr. Afrânio Mendes Catani - USP ou Prof. Dra. Anita Helena Schlesener - UFPR/UTP DE COMO E QUANDO, SE A Profa. Dra Elisabete Monteiro de Aguiar Pereira - Unicamp Prof. Dr. João dos Reis da Silva Junior - UFSCar EDUCAÇÃO/FORMAÇÃO É Prof. Dr. José Camilo dos Santos Filho - Unicamp SACRIFICADA NO ALTAR DO Prof. Dr. Lindomar Boneti - PUC / PR MERCADO, FUTURO DA Prof. Dr. Lucidio Bianchetti UFSC UNIVERSIDADE SE SITUARIA EM Profa. Dra. Dirce Djanira Pacheco Zan - Unicamp ALGUM LUGAR DO PASSADO Profa. Dra Maria de Lourdes Pinto de Almeida - Unoesc/Unicamp Dra. Maria Eugenia Montes Castanho - PUC / Campinas Profa. Dra. Maria Helena Salgado Bagnato - Unicamp Profa Dra. Margarita Victoria - UFMS Profa. Dra. Marilane Wolf Paim - UFFS Profa. Dra. Maria do Amparo Borges Ferro UFPI Prof. Dr. Renato Dagnino - Unicamp Prof. Dr. Sidney Reinaldo da Silva UTP / IFPR Profa. Dra. Vera Jacob - UFPA Conselho Editorial Educação Internacional Prof. Dr. Adrian Ascolani - Universidad Nacional do Rosário Prof. Dr. Antonio Bolivar - Facultad de Ciencias de la Prof. Dr. Antonio Cachapuz - Universidade de Aviero Prof. Dr. Antonio Teodoro - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Profa. Dra. Maria del Carmen López - Facultad de Ciencias de La Educación/Granada Profa. Dra Fatima Antunes - Universidade do Minho Profa Dra. María Rosa Misuraca - Universidad Nacional de Profa Silvina Larripa - Universidad Nacional de La Plata Dra Silvina Gvirtz - Universidad Nacional de La Plata LETRAS</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bianchetti, Lucídio Da universidade à commoditycidade : ou de como e quando, se a educação/formação é sacrificada no altar do mercado, o futuro da universidade se situaria em algum lugar do passado / Lucídio Bianchetti, Sguissardi. - Campinas, SP Mercado de Letras, 2017. Bibliografia ISBN: 978-85-7591-495-3 1. Educação 2. Ensino superior - - Brasil 3. Política edu- SUMÁRIO cacional - Brasil 4. Reforma do ensino - Brasil 5. Uni- versidades e escolas superiores - Brasil I. Sguissardi, II. 17-07462 CDD-378.81 Índices para catálogo sistemático: PREFÁCIO 7 1. Brasil : Universidades Ensino superior 378.81 Almerindo Janela Afonso capa e gerência editorial: Vande Rotta Gomide preparação dos originais: Editora Mercado de Letras INTRODUÇÃO 13 capítulo I UNIVERSIDADE, TUTELAS E POLÍTICAS EDUCACIONAIS: DA INSTITUIÇÃO MEDIEVAL À MODERNA. ALGUNS ANTECEDENTES DA SITUAÇÃO ATUAL 17 DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: capítulo II MERCADO DE LETRAS® BRASIL: DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO VR GOMIDE ME Rua João da Cruz e Souza, 53 SUPERIOR TUTELADAS PASSANDO Telefax: (19) 3241-7514 CEP 13070-116 POR EXPERIÊNCIAS FUNDANTES - Campinas SP Brasil À REGULAÇÃO 33 capítulo III À COMMODITYCIDADE 75 edição SETEMBRO/2017 CONCLUSÃO 107 IMPRESSÃO DIGITAL IMPRESSO NO BRASIL REFERÊNCIAS 111 Esta obra está protegida pela Lei 9610/98. SOBRE AUTORES 124 É proibida sua reprodução parcial ou total sem a autorização prévia do Editor. infrator estará sujeito às penalidades previstas na Lei.</p><p>Prefácio DA UNIVERSIDADE À COMMODITYCIDADE: MUDANÇA ou METAMORFOSE NA EDUCAÇÃO SUPERIOR? Com uma estrutura bem sequenciada, vai sen- do construída, desde as páginas iniciais do livro, uma argumentação muito consistente, quer do ponto de vista dos dados empíricos que sustentam a análise, quer no que diz respeito às perspetivas teórico-con- ceptuais (e políticas) que são convocadas. Começan- do por fazer uma leitura crítica e factual, muito útil e oportuna, sobre a génese e evolução das instituições superiores no Brasil - cujos elementos constituem um background indispensável, e que permitirá ao leitor uma compreensão rigorosa dos retrocessos que atra- vessam as universidades no momento atual -, os auto- res vão disponibilizando dados, cada vez mais recen- tes, que ilustram os desafios e dilemas que a educação superior tem pela frente, numa conjuntura marcada 7</p><p>por uma profunda rutura com o ethos da universida- de valores. Deste modo, "esta decisão, comum nas es- de como instituição moderna (assente não apenas na tratégias das empresas comerciais, ao ser aplicada à pesquisa científica e na docência, mas também numa compra e venda de um produto chamado ampla visão ética, educativa e cultural), para a seguir ensino', transforma esse em mercadoria/ caracterizarem o que chamarei de dark side emergente commodity, levando ao paroxismo a expressão 'mer- na universidade, induzido agora em função dos inte- cantilização da (p. 66). resses espúrios do capitalismo, crescentemente inter- Ao analisarem a fase atual de evolução das po- nacionalizado, que estão a transformar muito rapida- líticas de ensino superior no Brasil, a de mente a universidade numa organização subordinada Lucídio Bianchetti e de Valdemar Sguissardi vem de às lógicas mercantis e à financeirização da educação. encontro ao que eu próprio, há alguns anos, ainda de A este propósito, foi sem dúvida premonitória a forma forma exploratória, designei como sendo a terceira lúcida e problematizadora como Marilena Chauí, há fase na mudança ou reconfiguração do Estado-avalia- quase década e meia, descreveu a clivagem emergente dor - a fase pós-Estado-avaliador que poderia "vir entre a universidade como instituição e a universidade a inscrever-se, com crescente evidência, na continui- como organização, como lembram os autores. dade da expansão global capitalista das políticas de Nesse intervalo de tempo, todavia, a história da privatização e mercadorização da educação (e da ava- educação superior brasileira continuou a construir-se liação)" (Afonso 2013, p. confrontando pressões sociais, políticas, económicas Porque me distancio de qualquer perspetiva e educacionais ambíguas e contraditórias: mais neoli- evolucionista, funcionalista ou neomodernizadora, berais, nuns casos, mais neodesenvolvimentistas, nou- chamo a atenção para o facto de estas três etapas do tros; e, recentemente, mais típicas de um populismo Estado-avaliador (fase predominantemente nacional; autoritário. Sobretudo no último governo Fernando fase de presença e interferência crescente das or- Henrique Cardoso e segundo governo Lula da Silva (p. ganizações internacionais ou supranacionais; e fase 55), as ambiguidades e contradições políticas permiti- não manterem entre si qual- ram ainda a relativa criação de universidades e campi quer sequencialidade linear, antes constituindo um públicos. Mas os ímpetos mais nefastos da globaliza- primeiro draft tipológico para identificar mudanças ção financeira não foram obstaculizados, antes pelo que podem ou não coexistir, de forma contraditória contrário. É isso, aliás, que agora se exprime de uma ou complementar, em graus diversos, e no mesmo ou forma cada vez menos ambígua dado tratar-se de uma em diferentes momentos históricos. Como escrevi no "tendência que já se revela hegemônica" (p. 66). mesmo artigo que aqui convoco, o que designo como Hoje, a radicalização da mercadorização na educação superior é já evidente na fusão de empresas 1. "Mudanças no Estado-avaliador. Comparativismo internacional educacionais (nacionais e internacionais), gerando e teoria da modernização revisitada." Revista Brasileira de Edu- monopólios e oligopólios com ações cotadas na bolsa cação, 18(53). 9 8</p><p>sendo a fase pós-Estado-avaliador traduz a "exacer- Para o autor "A mudança implica que algumas coisas bação de processos de transnacionalização da educa- mudam, mas outras ficam iguais o capitalismo muda, ção e o aumento da mercadorização e mercantilização mas alguns dos seus aspetos continuam a ser como no âmbito do ensino superior", induzido ou ampliado sempre foram. A metamorfose implica uma transfor- pelos acordos da Organização Mundial do Comércio mação muito mais radical, na qual as velhas certezas (OMC) e de outras organizações similares. Nela se ins- da sociedade moderna desapareceram, e algo de novo creve igualmente "o novo do Banco Mundial na emerge" (Beck 2017, pp. 15-16). Significará a commo- promoção das políticas de privatização da educação, e ditycidade apenas uma outra fase da mudança, ou já a expansão da oferta educativa (superior e não supe- será uma metamorfose no mundo da educação supe- rior) em regime de franchising, bem como uma maior rior? Fica esta interrogação fundamental, não apenas tendência para a modularização e para todos nós, como também, e desde logo, para os curricular". Por referência a esta fase, também sugiro autores do livro. Eles poderão certamente dar o seu que ocorrerá "a ampliação da privatização dos siste- contributo para esta reflexão em futuros trabalhos. mas e agências de avaliação e sua conexão internacio- Lucídio Bianchetti, académico reconhecido e nal..." (Afonso 2013, p. 278). com uma publicação diversa e significativa no campo Muito embora este livro não tenha como objeto da educação, tem vindo a desenvolver pesquisas e a a avaliação (questão que não pode, todavia, ser pensa- estabelecer interlocuções muito produtivas, entre as da de forma descontextualizada), ele vem demonstrar quais se inclui o aprofundamento de problemáticas de uma forma muito contundente que a fase que desig- avançadas, direta ou indiretamente referenciáveis à nei de pós-Estado-avaliador tem agora uma tradução universidade e à educação superior. Valdemar Sguis- ainda mais radicalizada no "novo contexto da Commo- sardi é, comprovadamente, um dos nomes de referên- ditycidade" expressão que inicialmente parece ser cia nos estudos das políticas de educação superior. apenas um estranho neologismo, mas que no final ad- Com uma obra incontornável, fruto de formação sóli- quire um expressivo poder heurístico para perceber as da, humanista e erudita, construiu um percurso acadé- mudanças contemporâneas que estão desafiando (de mico sistemático e empenhado, de pesquisa empírica forma não impossível mas muito dificilmente reversí- e reflexão crítica, nas problemáticas da universidade. vel) as universidades e a educação superior. Sem qualquer perda de rigor ou profundidade, o No seu livro póstumo, A metamorfose do mundo, livro Da Universidade à Commoditycidade está escrito que acaba de ser publicado em Ulrich Beck de uma forma clara e de fácil leitura, o que nem sem- desestabiliza o velho conceito sociológico de mudança pre é frequente em trabalhos académicos, trazendo- mostrando que este não é suficiente para dar conta do nos uma perspetiva ampla, diacrónica, atual e prospe- que está acontecendo na sociedade e no mundo atuais. tiva sobre as questões da universidade, em particular, e da educação superior, em geral. Como leitor (cidadão 2. Disponível em: http://www.edicoes70.pt/site/node/683 e docente universitário) fui particularmente sensível 10 11</p><p>a esta dimensão de esclarecimento e sólido conheci- mento sobre os profundos dilemas e desafios com os quais se confronta hoje o nosso campo de investiga- ção, reflexão e prática profissional, deixando-me inter- rogar constantemente pela postura sustentada, crítica e prospetiva dos autores, que, estou certo, extravasará muito os pretendidos "limites de um texto para deba- te" (p. 8). INTRODUÇÃO Braga, início da primavera de 2017. Almerindo Janela Afonso Diretor do Departamento de Ciências Sociais da Educação A partir de uma tênue linha de tempo e nos li- Universidade do Minho, Portugal mites de um texto para debate, situa-se aqui o históri- Presidente da Sociedade da universidade, da medieval à atual. Destacam-se Portuguesa de Ciências da Educação aspectos relacionados ao quanto e ao como esta veio sendo tutelada, desrespeitada em sua proclamada au- tonomia, até chegar ao extremo de sua completa re- gulação heterônoma. Para resumir, dir-se-ia que esse locus espácio-temporal chamado universidade carac- teriza-se como um espaço-tempo colonizado. Após passar, em rápidas pinceladas pela questão dos mo- delos clássicos de universidade, visualiza-se como as instituições de educação superior se inserem no Brasil imperial e republicano. Em seguida destacam-se as três experiências de universidade - a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade do Distrito Fede- ral (UDF) e a Universidade de Brasília (UnB) -, todas públicas, embora de instâncias administrativas dife- rentes, que, a seu tempo, representaram o melhor com que o Brasil pôde contar como instituições universi- tárias, independentemente de terem sido suprimidas ou desviadas do seu desiderato fundacional. Daí se passa para uma breve focalização do Parecer 977/65, 13 12</p><p>do Conselho Federal de Educação (CFE), instrumento Valores constitui-se no "altar" onde essa metamorfose regulador da pós-graduação (PG) stricto sensu bra- chega ao paroxismo. sileira que oficializa o que se previa desde a criação Este neologismo commoditycidade será utiliza- da CAPES em 1951, isto é, que a PG seria o modo de do, neste escrito, cum grano salis, dado que derivado renovar, reconstruir, qualificar e transformar a insti- de commodity que, por sua vez, em termos estritamen- tuição universitária. A partir de então verifica-se que, te econômicos, significa qualquer mercadoria em esta- por iniciativas ou inércia, a educação superior pública do bruto ou produto primário, de origem agropecuá- estagna ou até reflui quanto ao que se concebe como ria, vegetal ou mineral como soja, trigo, café, acúcar, educação pública, gratuita, laica e universal, ao tempo cada tipo de minério, etc - produzido em larga escala, em que as instituições privadas de educação superior com características físicas homogêneas e cujos preços em especial as particulares ou mercantis vão tor- submetem-se à oferta e procura, isto é, às oscilações nar-se protagonistas de uma expansão quantitativa de do mercado instituições e matrículas sem precedentes, e de uma transformação essencial na definição e funcionamen- Embora o saber - produzido no âmbito da pes- to da universidade/educação superior que aqui, neste quisa, disseminado ou transmitido/apreendido no en- sino universitário/educação superior, em especial na estudo, será denominado por commoditycidade. pós-graduação não possa ser visto como uma sim- Inicialmente, pensou-se no neologismo privati- ples matéria-prima e, sim, como um "produto" de bai- cidade para designar a escalada privatizante na edu- XO, médio ou alto valor agregado, traduzi-lo pelo termo cação Visava-se conotar sua commodity e à educação superior/universidade por identidade customizada. Entretanto, após melhor pon- seu derivado commoditycidade é o modo de enfatizar deração, viu-se que, neste campo, ocorre algo que vai o fenômeno novo que estaria impondo a essas institui- muito além da mera privatização. A categoria privado ções o fim ou ocaso de um determinado "modelo" de não esgotaria o teor do que perpassa a educação supe- educação superior/universidade que se idealizou des- rior em âmbito mundial e, em especial, no Brasil, hoje. de meados do Século XIX, com os chamados "modelos Esta vive um efetivo processo de mercadorização/ clássicos", e que, no Brasil, puderam ser projetados e mercantilização sem precedentes. Assim, optou-se implantados, ainda que precariamente, nas pelo termo commoditycidade, dado que tudo na edu- cias pioneiras da Universidade de São Paulo (1934), da cação superior/universidade, incluindo as próprias Universidade do Distrito Federal (1935) e da Universi- instituições, é transformado em dade de Brasília (1962), como se verá adiante. dity submetida ao crivo do mercado, em que a Bolsa de 4. No entanto, não explicitamente tratada como commodity, mas como edu-business, mantém-se o neologimo a partir, entre ou- tras, da leitura da obra Educação Global S. A., de Stephen Ball 3. Sobre uso deste neologismo, veja-se sua justificativa adiante, (2014), em especial o capítulo 6 que trata da "Educação como nesta Introdução. um grande negócio". 14 15</p><p>E tudo isto sob suposta regulação, direta ou indiretamente, conduzida por instâncias do Estado. É tendo presente o histórico de iniciativas e decisões que vieram sendo tomadas ao longo das últimas dé- cadas que se conclui que, a continuarem o processo e ritmo atuais, o futuro da educação, em especial a de nível superior, sacrificada no altar do mercado, estaria em algum lugar do passado. Adicionalmente, é possí- Capítulo I vel questionar: a permanecer este quadro de escalada UNIVERSIDADE, TUTELAS E POLÍTICAS commodityzante, o que restará de superior na educa- EDUCACIONAIS: DA INSTITUIÇÃO ção superior brasileira? que restará de educação na MEDIEVAL À MODERNA. ALGUNS educação? Enfim, qual será o poder de barganha, com ANTECEDENTES DA SITUAÇÃO ATUAL seus patrões, dos trabalhadores munidos de uma for- mação, no mínimo, duvidosa, em mercado de trabalho mutante e cada vez mais exigente? Universidades foram criadas por todos os tipos de motivos: para preservar uma velha fé, para granjear prosélitos para uma nova fé, para treinar trabalhado- res habilitados, para melhorar o padrão de profissões, para expandir as fronteiras do conhecimento e mesmo para educar os jovens. (Robert Paul Wolff 1993, p. 25) Ao dispor-se ou ser convocado a falar sobre qualquer assunto, uma das exigências é situá-lo no es- paço-tempo e relacioná-lo a seus objetivos e justifica- tivas de sua constituição histórica. Não seria diferente se a temática fosse as políticas públicas de educação superior. Ocorre que, como no caso deste texto, em um primeiro momento, ao tomar a educação superior como sinônimo de universidade esta, por longo tem- po foi o locus do ensino superior -, parte-se da cons- tatação que, no contexto do mundo ocidental judaico- cristão, as universidades surgiram na Idade Média, na Europa.</p><p>Sua origem vincula-se à necessidade de a Igreja universidades no Novo a fim de estender a Cristã formar seus quadros e em função disto os pri- hegemonia por outros espaços e garantir o primado meiros loci da futura universidade são as escolas ca- dos dogmas, mantidos/reforçados pelo movimen- tedralícias ou episcopais, os seminários, enfim, insti- to contrarreformista e da atribuída origem divina da tuições onde eram formados os clérigos, com a auto/ autoridade papal e dos soberanos. E o que aconteceu heteronomia circunscrita à tutela da Igreja. A Univer- na América Portuguesa e não foi diferente sidade de Paris, por exemplo, criada no século XII, foi do ocorrido na Nova Inglaterra, quando a criação de organizada como o espaço por excelência do ensino universidades, com fins pragmáticos e utilitários, rela- da Teologia considerada "a mãe das ciências" (Rossato cionados aos idealizadores dessa instituição, que, pela 2005, p. 26). E, com o passar do tempo e a emergência denominação ou origem etimológica da palavra, de- de focos de oposição à hegemonia da Igreja, mais uni- veria ser universal. Porém, mesmo expandindo-se, no versidades foram criadas com o objetivo de reforçar espaço e no tempo, não se registram sinais robustos e proteger a fé contra as heresias. Ainda nas palavras deste autor, a universidade, curvando-se às necessida- des e imposições da Igreja, chegará ao final da Idade 1. Como a de Santo Domingo (1540), por exemplo, modelada pela de Salamanca (1220). Média autoproclamando-se "mãe de todas as ciências 2. São ilustrativas e sintetizadoras do assunto as palavras de e madrasta das Carpeaux (s.d.): "As universidades americanas têm a mesma origem. As velhas universidades da América Latina Lima, Mé- Com o advento dos movimentos reformista e xico, Bogotá, Córdova são fundações da Coroa de Espanha; contrarreformista, a universidade passará a ser mais mas foram, desde o início, confiadas aos frades, e já a primeira um dos instrumentos de continuidade ou busca de he- cédula de fundação, a ordem real do imperador Carlos V, de 21 de setembro de 1551, dá claramente a entender sentimen- gemonia por parte da Igreja católica ou protestante to da responsabilidade perante o espírito desinteressado da ou desta associada ao poder temporal, fosse qual fos- Universidade medieval: 'Para servir a Deus, Nosso Senhor, e ao se a opção dos soberanos quanto ao cisma que cindiu bem público de nossos reinos, convém que nossos vassalos, sú- ditos e naturais tenham Universidades e Estudos Gerais em que a Igreja Cristã no início do século XVI. Ampliaram-se, sejam instruídos e titulados em todas as ciências e faculdades, em quantidade e na diversidade de objetivos, os tu- e pelo muito amor e vontade que temos de honrar e favorecer aos de Nossas e desterrar deles as trevas da ignorância, teladores. E esse mecenato múltiplo continuou com criamos, fundamos e constituímos na cidade de Lima dos rei- exigências convergentes em termos de contributos, de nos do Peru, e na cidade de México da Nova Espanha, Universi- retornos que se esperavam da universidade e do ensi- dades e Estudos 3. Ainda de acordo com Carpeaux: "Nada mais eloquente, admi- no nela praticado. rável, do que semelhantes termos haverem sido empregados A Igreja Católica Apostólica Romana denomi- quando os puritanos fundaram, em 1636, a primeira universi- dade da América inglesa, a de Harvard: que Deus nos nação reforçada a partir do movimento reformista, tinha seguramente conduzido a e que constru- em explícita associação com os reis católicos, espe- ímos as nossas casas e estabelecemos um governo civil, uma das cialmente da Península Ibérica, mas não só criará nossas primeiras ocupações for estimular ensino e perpetuá to para a posteridade, com receio de deixar às igrejas um clero iletrado quando os nossos clérigos atuais jazerem em 18 19</p><p>de políticas públicas relacionadas à educação, espe- Os trabalhos da Academia cialmente por não se encontrarem, nas iniciativas das mais facilmente e com maior sucesso, se, em igrejas e associados, preocupações com a educação in- primeiro lugar, só para lá forem enviados os tensiva e extensiva a toda a população. As iniciativas engenhos mais seletos, a flor dos homens; são pontuais e direcionadas a determinadas parcelas os outros para a charrua, para da população. as profissões manuais, para o comércio, para que, aliás, nasceram. (Comenius 1987, Não se pode deixar de observar, contudo, que p. 173) há diferenças nas ações e associações dos reformistas, particularmente capitaneados por Martinho Lutero [1483-1546] e João Calvino [1509-1564] e os reis e Quase um século antes do surgimento daquilo príncipes que aderiram a esse ideário. Em suas inicia- que se pode considerar a síntese da pedagogia da Re- forma, a Igreja Católica havia confiado à Companhia de tivas, a preocupação com a educação pública, universal Jesus a principal missão educacional, seja na parte do e gratuita aparecerá. Porém, as instituições, sejam as continente europeu, que continuava católica, seja nos de educação básica, sejam as de nível superior, atuarão domínios de além-mar. As diretrizes estavam contidas sob a tutela da suposta "nova" e do poder tem- na Ratio Segundo Cambi (1999, p. 261), poral dos príncipes, reis, soberanos ou fosse qual fosse a denominação aristocrática que assumiram. Porém, mesmo que se tenha presente o ideário sintetizado na a ratio atque institutio studiorum Societatis máxima do "ensinar tudo a todos", defendido por João Jesu é um documento de trinta capítulos que Amós Comenius [1592-1670], na sua clássica Didáti- retoma, reelaborando-as, as considerações ca Magna, explicita-se que, de acordo com os limites e pedagógicas contidas nas Constituições da avanços do seu tempo, esse ideário continha gradações ou extremos, que iam do "todos", quando a referência 5. De acordo com Manacorda (1989), a regulamentação do sis- era a escola primária, aos "poucos", quando o foco era a tema escolástico dos toi concluída entre 1586 e 1599, universidade. Ou conforme o próprio autor: período em que a Ratio Studiorum De acordo com este autor, nesse documento estavam explicitadas "a orga- nização de classes, os horários, os programas e as disciplinas. Eram previstos seis anos de studia divididos em cinco cursos (três de gramática, um de humanidades ou um 4. As igrejas luterana, calvinista ou anglicana, sempre se (auto) de um de studia de filosofia denominaram de reformistas e assim foram tratadas nos regis- tros da história. Porém a igreja católica preferia denominar sua logia física, fisiologia. Após metafísica, repetitio superiora (lógica, psico- ética), um ano de e uma e um de postura de "reforma católica" e não de contrarreforma, como prática de magistério, passava-se estudo da que du- acabou sendo consagrada na literatura da área. Grafar "nova" rava quatro anos" (idem, p. 202). Os estudiosos da educação entre aspas é a forma de ressaltar que o novo esteve muito mais bem, contudo, que, onde quer que os fora da no ideário do que na práxis: as mudanças resultaram mais de Europa, os "studia superiora" eram concluídos a partir de uma questões históricas externas à Igreja do que propriamente de "viagem à Europa". E esta perspectiva eurocêntrica perdurar um movimento no seu interior. por séculos, continuando a nos dias de 20 21</p><p>Companhia de Jesus, que desse modo re- o domínio da Inquisição e a hegemonia da presentam as bases de um programa for- Companhia de Jesus no panorama universi- mativo de caráter católico que se estende a tário permanecem por mais de dois séculos. todos os colégios jesuíticos do mundo. (destaque nosso) século XVI marcará uma espécie de divisor de É com o surgir do Renascimento; com o afirmar águas entre o fim da universidade que se identificava, do Iluminismo; com o enfraquecer do teocentrismo; confundia, reforçava etc. com o medievo e o surgi- com o ascender do antropocentrismo; e com o domí- mento daquela que Magalhães (2006) denominará de nio hegemônico de uma nova classe em que a bur- universidade moderna ou da modernidade. Almeida- guesia se afirma, em termos econômicos e geopolíticos Filho (2012, p. 231), em síntese do que antecede e su- na conhecida fase comercial do capitalismo, com suas cede neste século, escreve: visões de sociedade, educação e cosmovisão que a es- trutura e as funções da universidade passarão por pro- No século XVI, as universidades fundas mudanças. Um dos marcos desse processo foi a muito contribuíram para a Reforma Pro- Revolução Francesa (1789), quando, além dos epítetos testante. As universidades inglesas (tanto de universal, pública e gratuita, agregou-se à educação a pioneira Oxford quanto sua dissidência, o termo "laica". Contudo, esta transformação não signi- Cambridge) se engajam no Cisma Anglica- fica que a educação/universidade tenha avançado no no. Doutra parte, é da reunião de docentes sentido de liberar-se da tutela ou da heteronomia que e alunos da Universidade de Paris que sur- a acompanha e caracteriza historicamente. ge a Companhia de Jesus, sob a liderança Um aspecto que chama a atenção, nesta linha de Inácio de Loyola, estudante de Teologia de tempo da condição de universidade tutelada, é o de no "Collège de Nôtre-Dame". o movimento que, desde o seu surgimento, até o século XIX, ela so- se difunde extensamente, ocupan- freu poucas mudanças que poderiam, pelo menos, ser do as universidades que permaneceram sob controle do Vaticano e, junto ao Santo consideradas como efetivas transformações nos seus Ofício (que operava a intrincada e temida objetivos e estrutura, isto é, no seu modo de organiza- rede de tribunais eclesiásticos conhecida ção e funcionamento. como a Santa Inquisição), deslancha a Con- Até o final do século XVIII, as universidades trarreforma. o julgamento e a execução de eram, geralmente, conhecidas pela cidade onde se lo- Giordano Bruno, frade dominicano, filósofo calizavam, a começar pelas primevas euro-universida- e professor itinerante de várias universida- des,6 desde o século XII e XIII (Bolonha, Paris, Oxford, des, em 1600, marcam o fim do modelo de universidade medieval. Não obstante, em Es- 6. panha, Portugal e suas colônias além-mar, Ao se falar em "euro", refere-se aqui à perspectiva eurocêntrica de universidade. Não confundir com uma das manifestações 22 23</p><p>Modena, Cambridge, Salamanca, Montpellier etc.): tá- que faziam os seus tuteladores do passado, a que se fez cita ou claramente, sabia-se ou se viria a saber a que menção, atribuem-lhe novas funções. Dentre estas ins- se dedicavam (Teologia, Direito, Medicina, Engenharia tituições, algumas continuarão claramente tuteladas, etc.) ou a serviço de quem haviam sido instituídas. En- (pré)formatadas, direcionadas, como exemplarmente tende-se assim, que era muito difícil, senão impossível, o são as universidades de cariz na Fran- que atuassem fora do Framework previamente estabe- ça. Outras serão direcionadas a fins diversos, como a lecido. Isto não será diferente, embora com nuances pesquisa e a prestação de serviços, por exemplo, de- próprias, com as universidades criadas no Novo Mun- rivados das concepções ou newmania- do, na América espanhola e na Nova Inglaterra. com o desafio de gestões ou regulações menos Contudo, o século XIX traz uma distinção em re- tuteladoras, podendo, mesmo que parcialmente, exer- lação aos precedentes: nele emerge a "questão social" (Teles basicamente caracterizada pelo desen- contro entre as promessas da burguesia e sua negação ou implemento parcial, embora com justificativas ide- 8. Conforme Almeida-Filho (2012, p. 234), "Marx, em 18 Bru- mário, usa a expressão idées napoléoniennes para designar o ológicas que retardam ou impedem o encontro entre legado de Napoleão Bonaparte que, além de ter sido um gênio o prometido e o realmente (Bian- militar e líder político ágil e eficiente, como reformador social chetti 2011). consolida nas instituições da sociedade e do Estado o poder político da burguesia no início do século XIX. A reordenação do É a partir desse século que vão ser criadas, de sistema francês de ensino foi uma dessas ideias, posta em prá- forma mais incisiva e crescente, universidades cuja tica em estreita articulação com o Estado laico regulador, com a sociedade pós-aristocrática e com o novo modo de produção. identidade passa a descolar-se do lugar, geografica- Nessa conjuntura, serve de exemplo para outros povos sub- mente falando, e que passarão a relacionar-se, além de metidos à poderosa influência ideológica e cultural da França, com o local, com protagonistas que, diversamente do principalmente a Europa meridional e os países recém-saídos da condição de colônia, como o Brasil do século XIX" (destaque nosso). Referência a Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand von mercantis que envolvem a instituição, de que trataremos pos- Humboldt [1767-1835], criador da Universidade de Berlin, teriormente, cuja explicitação aparece, por exemplo, na obra: caracterizando-a como uma instituição que deveria voltar-se à Euro-universidad. Mito y realidad del proceso de Bolonia (Car- investigação, à produção do conhecimento e, naquilo que aqui reras García 2006), em que a referência ao "euro" aponta para interessa, despreocupada com os vínculos deste com as neces- a moeda única da União Europeia. sidades imediatas do mercado (Humboldt 1997). 10. 7. Embora a autora não trate historicamente da temática, sua John Henry Newman [1801-1890], fundador da Universidade acurada análise e dados a respeito das manifestações atuais de Dublin, Irlanda. o protestante e depois católico Newman, desta "questão", levam a referenciar o seu texto como adequa- entre outros aspectos, propõe uma conciliação entre a fé e a do ao propósito deste estudo, uma vez que a realidade atual, ciência, para benefícios mais concretos à humanidade. Na or- sumariamente abordada, torna mais explícita a "questão ganização da universidade e nas proposições sobre sua inser- cial" seminal. Quanto à análise histórica da "questão social" e ção histórica e social, procura garantir que se produza conhe- particularmente vinculada às repercussões sobre o trabalho e cimento e que este seja aplicável, porém distanciando-se dos a educação, ver a "Parte Um", da obra: Juntos. Os rituais, os pra- princípios do utilitarismo de, entre outros, Jeremy Bentham zeres e a política da cooperação, de Richard Sennett (2012). [1748-1832]. 24 25</p><p>citar-se na tomada de decisões, no exercício de auto- no Império e nas Colônias, será reto- nomia. mada e reverberará, posteriormente, no Brasil, quan- Para além das menções pontuais e das notas de do da criação de algumas universidades, em especial rodapé a respeito dos modelos, destacamos a origina- católicas. lidade da institucionalização universitária na França, Nessa perspectiva, o século XIX poderia ser uma vez que, segundo Charle e Verger (1996), diferen- considerado um ponto de interseção, de chegada e de temente do que ocorreu em outros países europeus, partida em termos gerais e, naquilo que é aqui objeto modelo napoleônico foi "instruído a partir de uma tábua de exame, de políticas de ensino superior, de universi- (sic) rasa, ao passo que em outros lugares característi- dade/educação superior, em particular. É como se um cas medievais ou do Antigo Regime puderam subsistir tipo/modelo histórico de universidade, como extensão apesar das reformas parciais" (p. 76). Ainda de acordo ou mesmo representação de uma instituição como com estes autores, três preocupações presidiram a re- exemplarmente o foi da Igreja e do Estado absolutis- construção da educação superior francesa: "oferecer ao ta na Idade Média ou de ambos, com prolongamentos Estado e à sociedade pós-revolucionária os quadros ne- na Modernidade e para além -, cedesse espaço para cessários para a estabilização de um país conturbado; novas configurações, manifestações, novas testagens e controlar estritamente sua formação em conformidade atuações dessa instituição que agora deixa de ser ape- com a nova ordem social; impedir o renascimento de nas a e/ou disseminadora de conhecimentos, novas corporações profissionais" (p. 76). para assumir novas atribuições, em muitos sentidos; No que diz respeito à "universidade"/educação por um lado, por continuar próxima do seu significado superior no Brasil, tendo presente que no século XVIII etimológico de universitas e, por outro, por seu cami- os haviam sido expulsos da sede do Reino e das nhar em direção a uma ampliação de escala quanto ao Colônias portuguesas, o Rei D. João VI [1767-1826], ao número de ingressantes, e do escopo, e à abertura do chegar ao Brasil, em 1808, fugindo do exército napole- leque de suas E, nestes aspectos, contu- ônico, autoriza o funcionamento das primeiras escolas do, não se pode deixar de observar como, ao assumir superiores na Colônia agora elevada à condição de novas responsabilidades, em períodos que recuam um Reino Unido de Portugal e Algarves -, porém, com ca- pouco no tempo, coetânea com as exigências da divi- racterísticas de faculdades que atendem, pragmática e são técnica e social do trabalho que se veio impondo, utilitariamente, às necessidades da coroa portuguesa a universidade foi organizada e funcionou na direção (Direito, Medicina, Engenharia Naval, Mineralurgia etc.). A influência, em termos de educação superior, 11. Transformar o servo medieval em cidadão foi uma das aliciado- é claramente napoleônica. Contudo, como a expulsão ras promessas da burguesia, no contexto da nascente Moder- dos pelo Marquês de Pombal (Sebastião José nidade e, para tanto, a universidade foi uma das instituições demandadas a dar sua contribuição para o amalgamento dessa de Carvalho e Melo [1699-1782]) foi revertida quando nova identidade pessoal e de um coletivo que passaria a pau- D. Maria I assumiu o Trono Português, a influência je- tar-se pelo princípio liberal da igualdade. 26 27</p><p>de especializações, de terminalidades, de disciplina- madas atividades-fins ensino, pesquisa e prestação ridades, de áreas ou campos de saber insulares, uma de serviços ou extensão que passam a materializar- vez que a exigência do mercado era a da formação de se, com diferentes pesos e intensidades, no interior ou especialistas. entre as universidades, têm, nesse século, sua origem De modo diverso, em período mais recente há mais explícita e, nos seguintes, sua continuidade, em- indicações de passos na direção da formação de profis- bora com inúmeras idiossincrasias. Se, na Idade Mé- sionais mais "adequados", ao chamado pa- dia, a universidade foi medieval, com tudo o que isso radigma pós-fordista ou também da integração e flexi- impactou em termos de sua identidade, nas palavras bilidade (Berman 1986; Harvey 1993), com profundas de Magalhães (2006, p. 17), "é neste sentido que a fun- repercussões naquilo que se denomina de "ideal educa- dação narrativa do ensino superior de von Humboldt, tivo" (Cattani 2005), como uma das responsabilidades Newman ou do modelo napoleónico, são da universidade, questões estas que serão importantes para além das suas diferenças" (destaque nosso). ao ressaltar-se que a tutela é gradativamente repassada E, nesta perspectativa, se a sistematização e o e/ou assumida, predominantemente, por um novo ente, funcionamento desses modelos - napoleônico, hum- com fortes poderes indutores, chamado mercado. Mas boldtiano e newmaniano significaram uma espécie esta é uma temática que será retomada mais adiante. de síntese, na sequência vão surgir ramificações des- Assim sendo, o que queremos destacar é que ses modelos, com denominações e funções diversas, a passagem pelo século XIX configura-se como uma ora mantendo conexões, ora distanciando-se desses síntese histórica de formas de organização e funciona- clássicos. É o caso de modelos neonapoleônicos, neo mento da universidade - e da educação superior como -humboldtianos até "modelos de ocasião", como responsabilidade desta -, com inúmeras metamorfo- afirma Sguissardi (2009a) e outros híbridos e outros, ses, mas que de certa forma estabeleceu os modelos ainda, que vão distanciando-se, inclusive, daquilo que que, a partir daí, passarão a predominar, com mu- se entendia por uma instituição com as características danças que perpassam qualquer instituição que é ou diversas que se vem apontando. Neste sentido é que o procura ser coetânea de seu tempo. Mas, de qualquer leque de instituições vai ampliar-se em termos de ins- maneira, o reiteradamente repetido ou as cha- tâncias administrativas e formas jurídicas, responsá- veis pela universidade, que são mais conhecidas, como 12. Magalhães (2006, p. 14), ao falar do paradigma da adaptabili- 14. Nas palavras deste autor: "Os sistemas de ensino superior são dade, afirma: tanta adaptação que a especificidade acontecimentos modernos pelo menos de duas maneiras: pri- educativa e cognitiva deste tipo de instituições corre o risco de meiro, narrativamente, na medida em que as suas narrativas se transformar, indo para além daquilo que, em princípio, cons- fundadoras narrativas públicas e conceptuais articulam a titui a sua identidade". própria narrativa da modernidade. Em segundo lugar, na me- 13. Ver neste aspecto, embora referindo-se ao Brasil, a obra A uni- dida em que, enquanto sistemas, eles produzem recursos hu- versidade brasileira em busca da sua identidade, de Maria de manos que permitem a construção e consolidação do Estado- Lourdes Fávero, publicada pela Vozes, 1979. nação moderno" (Magalhães 2006, p. 20). 28 29</p><p>é o caso das públicas, das privadas (comunitárias, con- riência em termos de instituições tuteladoras dos stu- fessionais) e particulares (for profit). Porém, em perí- dia inferiora e superiora e modelos de universidades. De odo mais recente, vão aparecer as novidades, em que acordo com Neave (apud Magalhães 2006, p. 24): a característica de instituição social metamorfosear- se-á em organização social (Chauí 2003),15 dentre as quais podem-se apontar as universidades corporati- Estado-nação teve profundas consequên- vas (Quartiero e Bianchetti 2005), patrocinadas e tute- cias nos padrões de controlo e de adminis- ladas por empresas (Meister 1999) e as universidades tração no mundo universitário. Em primei- ro lugar, ao colocar a universidade no topo particulares, propriedades de uma ou mais pessoas ou das instituições que definem a identidade de grupos empresariais nacionais ou transnacionais, nacional, também colocam a educação su- que se dedicam a oferecer ensino, buscando auferir lu- perior no domínio da responsabilidade na- cros da educação como mercadoria. cional. A universidade foi assim submetida Conforme Magalhães (2006, p. 31), "as univer- à tutela da administração pública em vez de sidades, e as instituições do ensino superior em geral, ser objecto de privilégios reais. [...] A univer- são cada vez mais claramente administradas e geri- sidade foi integrada num sistema nacional de tutela e de controlo exercido através de das como organizações, e cada vez menos como ins- poderes legislativos, decretos e circulares mi- tituições educativas na sua especificidade". E em ou- nisteriais. E, não menos importante, o forjar tra parte do texto refere-se àquilo que chama de uma do Estado-nação aconteceu ao mesmo tem- crescente "adaptabilidade" da universidade, inspirada po que a academia era incorporada nas fi- na teoria dos sistemas e das organizações e gerida por leiras do serviço estatal, postulando assim a um modelo que denomina de "empreendedor-empre- obrigação implícita de prestação de serviço sarialista". Do seu ponto de vista, tanta à comunidade nacional. (destaque nosso) adaptação que a especificidade educativa e cognitiva deste tipo de instituições corre o risco de se transfor- Apesar disso, contudo, a diversidade de esta- mar, indo para além daquilo que, em princípio, consti- dos-nações europeus, com suas diferenças étnicas e tui a sua identidade" (idem, p. 14). culturais, com suas idiossincrasias, enfim, era respei- Neave, apud Magalhães (2006), faz uma síntese tada e a autonomia das Instituições de Ensino Supe- daquilo que sucedeu, a partir da criação do Estado-Na- rior era exercida com graus variados de intensidade. ção, e contando a Europa com uma quase milenar expe- tudo isto, com a implementação do Processo de Bolonha, a partir do final do século XX e início do XXI, com uma regulação centralizadora, passa a ser mais 15. Ver com esta autora a distância entre Instituição e Organiza- objeto de lembrança de um período que cada vez mais ção quando se faz referência à universidade, em uma discussão está ficando no passado, dadas a tutela, a regulação, que, conforme Chauí, inicia-se com Michel Freitag em Le nau- as determinações que emanam de Bruxelas, "capital" frage de l'université. (1996). 30 31</p><p>da União Europeia. Não é muito diferente o que ocorre nos Estados Unidos da América, embora a autonomia dos estados federados propicie uma maior diversida- de de instâncias educacionais e formas de regulação/ controle, porém mantendo-se idêntico propósito de efetiva implementação ou continuidade do modelo de Capítulo BRASIL: DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR TUTELADAS - PASSANDO POR EXPERIÊNCIAS FUNDANTES À REGULAÇÃO De facto, o ensino superior está a mudar a sua natu- reza através do estreitamento de suas relações com a sociedade. As pressões das exigências do pós-fordismo e a assunção do ensino superior como uma mercado- ria para consumo individual colocam, efectivamente, como dilema político a colonização do ensino superior pelas exigências económicas, pragmáticas, culturais 16. Doís documentos indicadores das reflexões e prescrições nes- etc. (...) o ensino superior não é redutível a uma ques- sa direção merecem ser referidos e, em condições propícias, tão de consumo individual, eventualmente destituído aprofundados para se compreender como o pensamento único de elementos críticos e reflexivos, devendo antes ser imperante em geral foi tomando conta também do campo edu- cacional. primeiro, de autoria de Adelman (2008), um nor- entendido como uma instituição social com o papel te-americano, que, desde o título "The Bologna Club: What crucial de apoiar e desenvolver a acção reflexiva, e U.S. Higher Education Can Learn from a Decade of European como uma importante reserva de pensamento Reconstruction" evidencia que os EUA poderiam aprender crítico, reflexivo e, mesmo, alternativo. com Framework único implementado na União Europeia. 0 (António Magalhães 2006, p. 33) outro documento, elaborado pelo Círculo Europeu de Empre- sários, publicado em dezembro de 2007, cujo título é Una uni- versidad al servicio de la sociedad, explicita que "La propuesta Como mencionado, pode-se falar que é com a de la Comisión Europea plantea la necessidad de modernizar la Universidad para flexibilizarla y adaptarla a los nuevos de- chegada da Corte Portuguesa, em 1808, que se inicia a incrementando la competitividad de la economia euro- história da educação superior no Brasil. Uma história pea". Disponível em: http://www.circulodeempresarios.org/ caracterizada pela tutela e pelo pragmatismo utilita- 33 32</p><p>rista dos cursos superiores que foram sendo 0 tas paragens. Anísio Teixeira (1988) enfatiza que, primeiro objetivo era atender às necessidades da Cor- enquanto a universidade europeia, em crise, renascia te e lançar as bases para a elevação da qualificação de pelas mão de Humboldt na Alemanha, com sua uni- quadros para determinadas áreas que poderiam auxi- versidade de ensino fundado na pesquisa, no Brasil, a liar a retirar o "Reino Unido a Portugal e Algarves" da educação superior apenas dava seus primeiros e dé- subalterna condição de dependência de instituições beis passos. E acrescenta que, não por acaso, não europeias para formar suas elites. ser esse "modelo" alemão a prevalecer nas primeiras o que ocorre é a criação de cursos em algumas escolas de educação superior no país e durante todo capitais ou cidades onde as elites poderiam garantir/ o Império. Apesar da presença da família real, da pro- ampliar sua condição e preservar seus direitos (saú- clamação da independência política, viveu-se, do pon- de, legislação etc.) e/ou a extração ou transformação to de vista econômico, político, cultural e educacional, de minerais (mineralurgia, engenharia etc.) ou ainda por mais um século, sob o peso e amarras coloníais ou medievais. o modelo das primeiras escolas superiores a construção de equipamentos para a defesa, entim, era o de Coimbra tipicamente medieval e dirigida pe- iniciativas que garantissem os privilégios dos já privi- los jesuítas onde as elites brasileiras - clero e nobre- legiados e contribuísse para retirar o "Reino" do atraso za formaram-se durante a Colônia e continuaram a histórico em que vicejava. formar-se durante o Império. Até a chegada da família Após tratar dos aspectos acima apontados, Al- real, segundo Anísio Teixeira, foram cerca de 2.500 os meida-Filho (2012, p. 237) afirma que, brasilerios formados nessa universidade. Reforçando os dizeres de Teixeira, Fávero (2000, com a abertura de faculdades de Direito em p. 29) escreve que, desde seu início, ensino superior, São Paulo e Recife, juntamente com escolas no Brasil, apresentou-se "desprovido de caráter nacio- de Minas e escolas politécnicas, consolida- nal, influenciado por um espírito colonialista e colo- se entre nós o modelo de educação superior nial". A herança recebida, nestas terras, não era apenas sem universidades, com cursos de gradua- cultural, "mas também uma herança e uma tradição de ção de currículo fechado e diplomas licen- dependência econômica e social. Mantinha-se o privilé- ciadores de profissões. (destaque nosso) gio de se fazer um curso superior, pela simples razão de persistir o privilégio de riqueza e de classe" (ibidem). E até o final do Império, embora muitas propos- Segundo Fávero (2000, pp. 30-31), a tas de criação de universidades tenham sido apresen- por mais de 300 anos, de instituições de ensino supe- tadas, o que acabou consolidando-se foi o modelo de faculdades isoladas. 1. Isto ocorria, em grande medida, em razão da Nas páginas que seguem faz-se uma pequena síntese do item 1.4 Da constituição da educação superior no país, do Estudo herança colonial que por três séculos pontificou nes- Diagnóstico da Política de Expansão da (e Acesso à) Educação Superior no Brasil 2002-2012 2014, p. 22 e ss.) 35 34</p><p>rior, de editoras ou da própria imprensa, tinha como Durante o Império, como durante o período co- razão o cuidado para que não se constituissem "focos as elites brasileiras, além de à Universidade de ou instrumentos de libertação dos colonos" e, ao con- Coimbra, podiam dirigir-se, para sua qualificação em trário, se reforçassem os laços de dependência. Ainda nível superior, às de Évora (PT), Aix-en-Provence e Pa- em 1605 houve recusa do Reino ao reconhecimento ris (FR) ou alhures. do "status de universidade ao Colégio da Bahia"; em Até 1920, além das experiências efêmeras de 1675, de que "graus conferidos naquele Colégio sejam Manaus, São Paulo e Curitiba, nenhuma universidade (fossem) equiparados aos de Coimbra"; e, em 1786, da foi criada no Brasil que pudesse equipará-lo minima- "criação de um curso médico na Província de Minas mente com países vizinhos, econômica e politicamen- Gerais". Acrescenta esta autora: "De modo explícito é te menos importantes na América Latina. dito também que a um curso de medicina certamente seguir-se-ia um de jurisprudência, até ao ponto de cor- A universidade, como já se viu, foi reivindicada tar o vínculo de (ibidem). pelos ainda no século XVII, também pelos in- confidentes mineiros, no século XVIII, e, no século XIX, Talvez as mais importantes e significativas Fa- culdades e cursos criados durante o Império, no senti- em diversas oportunidades no Parlamento do Império. do de consolidar o poder do Estado e das elites sobre Entretanto, é somente em 1920 que a primeira insti- ele, tenham sido as de Direito. Em especial a de São tuição deste quilate vê a luz do dia. Paulo (juntamente com a de Olinda, PE): A Proclamação da República e a Reforma Benja- mim Constant (1890) é que ensejar a criação das a instituição de Faculdades de Direito de- primeiras faculdades particulares: Direito da Bahia, correu da urgência de quadros, com forma- Rio de Janeiro e Minas Gerais; Politécnicas de São ção humanístico-jurídica, para as tarefas de Paulo e da Bahia; e Medicina de Porto Alegre (Fávero governar e administrar o país e suas pro- 2000, p. 32). víncias. o fato de que dez de seus ex-alunos Além da Escola Politécnica (1893), em São Pau- tenham ocupado o cargo de Presidente da lo são instaladas a Escola de Engenharia Mackenzie República, e tantos outros o de presidente ou (1896) e faculdades e institutos tais como: governador de províncias e estados, é a pro- Faculdade de Medicina, hoje Faculdade de Medicina da va definitiva da necessidade histórica de sua USP (1891/1913); Instituto Adolfo Lutz (1893); Esco- criação e do papel que iria desempenhar tan- la de Farmácia de S. Paulo, hoje Faculdade de Ciências to no Império quanto na República. (Sguis- sardi, Silva Júnior e Hayashi 2006, p. 22) da USP (1898); e Instituto Serumtherá- pico, Butantan (1899-1901). A atual Universidade 3. 2. "Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. 15, p. 468, 1910. Dados colhidos nos diferentes sites oficiais das instituições nomi- Apud Lacombe, Américo Jacobina, 1976". (Nota 3 da autora). nadas na 36 37</p><p>Federal Rural do Rio de Janeiro tem origem na Escola Embora essas instituições tenham existido Superior de Agricultura, criada em 1910 e instalada de fato, os autores, em geral, são levados em 1913. a considerar a Universidade do Rio de Ja- Na primeira década do século XX, três exem- neiro (hoje, UFRJ), criada em 1920, como plos podem ser dados de escolas que, posteriormente, a primeira universidade brasileira, por ter iriam dar origem a importantes instituições de educa- sido instituída por força de um decreto do ção superior. A primeira delas, fruto de parceria públi- governo federal. (Fávero 2000, p. 34) co-privada, é a Escola Prática Luiz de Queiroz (1901), em Piracicaba, SP, que, em 1931, transformou-se em Tendo sido criada essa primeira universidade Escola Superior Luiz de Queiroz e, em 1934, numa das federal, pela aglutinação de diversas faculdades pré primeiras unidades da recém-criada Universidade de -existentes, em modelo que seria seguido, com poucas São Paulo (USP). A segunda, esta de iniciativa da elite na posterior criação de universidades pelo comercial paulistana, é a Escola Prática de Comércio país, pelo Decreto n. 16.782-A, de 1925, artigo 260, e Álvares Penteado (1902) que, em 1923, transformou- como parte da Reforma Rocha Vaz, autorizava-se "a se na Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado criação de outras instituições universitárias, sendo de- e, em 1931, na Primeira Faculdade de Ciências Eco- terminados os estados que podem gozar da prerroga- nômicas do país. A terceira, confessional, de 1908, é tiva de ter universidades: Pernambuco, Bahia, São Pau- a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) São lo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul". (Fávero 2000, p. Bento, que será o núcleo inicial da Pontifícia Universi- 34). Entretanto, foi somente em Minas Gerais que, em dade Católica de São Paulo (PUC-SP), esta criada em 1927, se constituiu uma universidade, que aglutinava 1946 (Sguissardi, Silva Júnior e Hayashi 2006, p. 27). cinco faculdades pré-existentes Engenharia, Medici- na, Direito, Farmácia e Odontologia origem da atual É na passagem da primeira para a segunda dé- Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). cada do século XX que surgem as "universidades efê- Da chegada da família real (1808) à Proclama- meras" livres (privadas) em Manaus (1909), em São ção da República (1889) foram criadas 14 Escolas ou Paulo (1911),4 e, em Curitiba (1912). A propósito, es- Faculdades isoladas; de 1890 a 1930, duas universi- creve Fávero: dades e 86 Escolas ou Faculdades isoladas (Fávero 2000). A respeito dessas escolas "profissionais", Anísio 4. "Sob a Lei Rivadávia Corrêa, de 5 de abril de 1911, que garan- Teixeira fazia uma avaliação contundente: tiria o ensino livre (escolas privadas), com frequência também livre, constituíra-se uma Universidade: 'A instituição de maior importância neste processo, pois foi a única que de fato conta- bilizou nomes importantes da medicina paulista em seu curso, foi a primeira Universidade de São Paulo (Sadi e Freitas 1995), criada em novembro de 1911 pelo médico Eduardo Augusto va 2001, p. 546). Ver também Antunha 1974, pp. 241-245 e Ribeiro Guimarães (Valle 1961; Valle e Guimarães 1961), que Cunha 1986, pp. 200-206" (Nota 5 de Sguissardi, Silva Júnior e possuía diversas faculdades entre elas a de (Sil- Hayashi 2006, p. 27). 38 39</p><p>o ensino superior constituía uma provín- cia isolada, em perfeito estado de alienação com destaque em anos recentes para os componentes cultural com relação à cultura nativa, à do GT 11 (Política de Educação Superior) da ANPEd cultura brasileira; não à cultura universal (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em interessando apenas à sua tranquila clien- Educação) que poderiam ser citados, traçam uma pa- tela de classe alta e média superior, imbu- norâmica da particular e peculiar história da univer- ída, aliás, de profundo respeito à categoria sidade brasileira em geral e da educação superior em intelectual dos seus professores. (Teixeira seus acertos e desacertos. 1988, p. 104) As leituras evidenciam como governantes, se- jam do país ou de unidades da federação, grupos re- Foi necessário esperar a chamada Revolução de ligiosos e liberais, usaram suas "armas" para contar Trinta para que alguns ideais de uma universidade que com (ou conter?) a universidade, e, por meio dos cur- fugisse ao modelo neonapoleônico se transformassem SOS superiores, amalgamar o Estado-nação, criar ou em realidade, ainda que de modo precário ou efêmero reforçar suas ideologias, exercer a hegemonia. Mas um na criação da Universidade de São Paulo (USP 1934), primeiro traço comum que perpassa a universidade é na Universidade do Distrito Federal (UDF 1935) e, a tutela, o controle exercido pelo Estado e grupos de no início dos anos 1960, na Universidade de Brasília interesse sobre a instituição. Um segundo, refere-se ao (UnB) quase inexistente ou periférico papel atribuído e, por- tanto, exercido pela educação e a preocupação com a Estudos seminais e analíticos de Roque Spencer formação humana em geral e, de professores, em par- M. de Barros, Luiz Antônio Cunha, Maria de Lourdes ticular, nessas instituições de educação superior deno- Fávero e Valdemar entre tantos outros - minadas universidades. Evidentemente nesses apontamentos de aspec- 5. Não se dará ênfase aqui às obras desses autores e tampouco se tos do histórico da universidade no Brasil, o paroxis- terá preocupação de se alongar na relação dos estudiosos da mo, em termos de controle/regulação, será conhecido temática, uma vez que não é este o objetivo. Destaca-se, porém as obras de Barros (1986): A ilustração brasileira e a ideia de no período da ditadura, como continuidade de algumas universidade; de Luiz Antônio Cunha: A Universidade Tempo- políticas anteriores, que interferiram em uma timida- A Universidade Crítica e A Universidade Reformanda; de mente proclamada autonomia universitária, mas nun- Maria de Lourdes Fávero (1979): A Universidade Brasileira em busca da sua identidade e uma série de outras obras e artigos, ca experimentada na sua radicalidade. Paralelamente, e de Valdemar Sguissardi, desde Universidade, fundação e au- é nesse período de exceção que qualquer que se toritarismo (1993), passando pela obra que reúne seus princi- pais textos publicados em periódicos Universidade Brasileira no século XXI. Desafios do presente (2009a) e, naquilo que interessa mais diretamente neste estudo, seu artigo Regulação recente texto Estudo Diagnóstico da Política de Expansão da (e estatal e desafios da expansão mercantil da educação superior Acesso à) Educação Superior no Brasil 2002-2012 (2014), em (2013), que arrola, nas referências, sua extensa produção so- que se detém especialmente sobre o processo da mercantiliza- bre a temática da universidade e da educação superior, e seu ção desse nível de ensino no país. 40 41</p><p>opusesse ao status quo ditatorial foi calada dentro e mente destituído de elementos críticos e re- fora da universidade e a implementação de uma po- flexivos, devendo antes ser entendido como lítica de controle completo foi imposta à universidade, uma instituição social com o papel crucial em cujo contexto também passaram a vicejar as inicia- de apoiar e desenvolver a acção reflexiva, tivas em termos de privatização de várias colorações e como uma importante reserva de pensa- da educação superior, com estagnação ou refluxo das mento crítico, reflexivo e, mesmo, alternati- tímidas iniciativas voltadas à educação pública, gratui- (Magalhães 2006, p. 33) ta, laica e universal. Nos dias de hoje, a corrida para a privatização/ É justamente tendo como base estas afirma- mercantilização e regulação da educação superior, no ções do autor que são apresentados de modo sucinto entanto, não conhece precedentes em termos de esca- a seguir três "modelos" exemplares de educação supe- la e escopo, embora o pedegree no assunto venha de rior/universidade: a Universidade de São Paulo (USP), longe. Porém, antes de abordar esta questão, faz-se um surgida em 1934; a Universidade do Distrito Federal breve recuo para dar destaque a alguns desvios da tra- (UDF), criada em 1935; e a Universidade de Brasília jetória, quase sem obstáculos, da criação e implemen- (UnB), instalada em 1962. Essas palavras de Maga- tação tutelada, subjugada, controlada, etc. da educação lhães permitem ressaltar que, de acordo com aqueles superior no Brasil. que protagonizaram essas Instituições de Ensino Su- perior (IES) sejam grupos ou pessoas, pretendia-se, por meio delas, resgatar o sentido original de univer- Três experiências fundantes (e fugazes!) de sitas dessa instituição e garantir que fossem coetâne- universidade ou "desvios" de trajetória as do seu tempo, sem, contudo, perder de vista essa exigência de serem suporte para a práxis, depositárias e alimentadoras do pensamento crítico, reflexivo e, Em sua análise sobre a "identidade do ensino principalmente, que não sucumbissem a tradições e superior", Magalhães (2006) tece comentários sobre ao status quo que geraram desvirtuamentos institucio- as transformações pelas quais a educação superior nais e finalísticos. vem passando frente às mudanças nas relações entre Essas três universidades, cada uma delas de ins- a universidade e a sociedade que caracterizam o mo- tâncias administrativas diferentes, embora todas esta- mento atual, em sentido lato. tais públicas (respectivamente, estadual, municipal e Na parte final da citação do autor, que aparece federal), foram criadas tendo como base os objetivos em epígrafe neste item 2, lê-se: apontados acima. Para sua institucionalização influí- ram motivações políticas, como foi, especialmente, o (...) o ensino superior não é redutível a uma caso da USP, utilizada como mais um dos meios pelos questão de consumo individual, eventual- quais o estado de São Paulo contrapôs-se ao poder 42 43</p><p>central/federal, encabeçado por Getúlio Vargas [1882- A centralização político-administratativa e ide- 1954]. A derrota na Revolução Constitucionalista de ológica, representada na educação e na educação su- 1932 teria sido um fator importante a exacerbar a con- perior pela Reforma Francisco Campos (1931) e pelo corrência ou a emulação entre o estado de São Paulo e Estatuto das Universidades (Decreto n° 19.851, de 11 o poder central, como se verá a seguir.6 de abril de 1931), não irá impedir a criação das duas Tanto em relação à criação da USP, quanto da universidades dos anos 1930 que iriam iniciar a ado- UDF, além da derrota da Revolução Constitucionalista, ção, tentativa e parcial, de traços básicos de um "mo- no caso daquela, podem ser arrolados alguns fatos que delo" de universidade neo-humboldtiano, isto é, que marcaram o contexto em que ambas foram implanta- associasse ensino e pesquisa, em lugar do "modelo" das: a expectativa frustrada com a forma de criação da neonapoleônico ou profissionalizante que predomina- Universidade do Rio de Janeiro (depois Universidade ra amplamente até então. do Brasil e hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro Estatuto das Universidades (1931) não irá UFRJ); a Semana de 22; as ações da Academia Brasi- revolucionar a prática habitual na educação supe- leira de Ciências e da Associação Brasileira de Educa- rior até então vigente: irá estabelecer (Art. que a ção; o Inquérito sobre a educação pública (0 Estado de universidade deveria congregar pelo menos três dos S. Paulo, 1926), coordenado por Fernando de Azevedo "institutos" seguintes: Direito, Medicina, Engenharia, e (confira Fávero 2000, pp. 31 e 34); a própria Revolu- Educação, Ciências e Letras. Este último é a novidade, ção de Trinta; e o Manifesto dos Pioneiros da Educação mas não obrigatória. Também, em seu artigo iria Nova (1932). determinar que as universidades poderiam ser criadas e mantidas pela União, pelos estados ou por fundações ou associações e por particulares. Portanto, universi- 6. Adiante-se aqui que, devido ao escopo deste texto, não serão dades federais, estaduais e livres (particulares). examinados os meandros dos processos de criação e de su- pressão, interrupção ou redirecionamento dessas três Ins- Em uma oportuna e necessária coletânea orga- tituições. Há uma plêiade de pesquisadores que se dedicou e nizada por Villar e Castioni (2012), cujo título é Diálo- dedica a isto, sendo que alguns aparecem neste texto e outros gos entre Anísio e Darcy. projeto da UnB e a educação são citados e propiciarão o aprofundamento necessário aos in- brasileira, diversos co-autores contribuem com seus teressados na especificidade de um ou do conjunto dos temas relacionados a essas IES. Indicamos alguns deles: Ana artigos, focalizando fatos e tecendo análises a respei- Waleska Mendonça, com suas pesquisas sobre Anísio Teixeira; to desses dois protagonistas agregando-se Fernando Maria de Lourdes Fávero, uma das mais destacadas pesquisa- doras da Universidade brasileira, com obras específicas sobre de Azevedo (1894-1974) e seu envolvimento com a UDF, entre outros; Olinda Evangelista e Sílvia Lima, com suas iniciativas relacionadas à educação brasileira que, de pesquisas sobre Fernando de Azevedo; Roberto Salmeron e sua certa forma, na concepção desses articulistas, fogem análise sobre a "interrupção" da UnB; sem contar os livros e textos dos próprios clássicos fundadores Fernando de Azeve- aos "modelos" de universidade implantados no Brasil. do, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Deste último, um destaque Particularmente aqui interessa a criação dessas três para o seu livro Universidade Necessária e, decorrente deste, - USP, UDF e UnB. Conforme indicado no subtítulo, texto de Antônio Machado Neto, A Ex-Universidade de Brasília. 45 44</p><p>trata-se de iniciativas fundantes, embora tenham tido vida curta e, ao mesmo tempo, tenham se caracteriza- São Paulo e a poder central, já assinaladas podem ser do como pontos fora da curva ou desvios de trajetória colocados como motivadores de sua Em pri- no conjunto das tradicionais iniciativas de criação de meiro lugar, o "Inquérito sobre a educação pública no estado de São Paulo", cuja condução e relatoria coube cursos superiores e universidades no Brasil. a Fernando de Azevedo. Este inquérito, realizado em Rocha (2012), ao traçar um paralelo entre a 1926, foi considerado por Azevedo "um dos mais im- criação da USP e da UDF, afirma: portantes documentos na história do movimento de renovação escolar que tomou corpo em várias gran- Se houve a aproximação entre os processos des reformas". E destaca ainda o relator que a maioria de organização da USP e da UDF, isso ocor- dos depoentes era favorável "à criação de uma univer- reu, provavelmente, por conta da ligação sidade"8 (Cunha e Castioni 2012, p. 86). Em segundo pessoal entre Fernando de Azevedo, um dos lugar, o "Manifesto dos Pioneiros da Educação organizadores da USP, e Anísio Teixeira, o de 1932, cuja relatoria também coube a Fernando de mentor da UDF. No entanto, mesmo que te- Azevedo, mas que contou com a colaboração e assina- tura de 26 educadores, tendo Anísio Teixeira como um nham sido as primeiras instituições dignas do nome de universidade em nosso país, dos principais signatários. No "Manifesto", o primeiro distintas foram as motivações e os proces- parágrafo, que trata especificamente da Universidade, resume toda a concepção desses "Pioneiros" a respei- que as constituíram. De fato, a UDF se to da Educação Superior e da tríplice responsabilidade destaca pela concepção inteiramente nova, (ensino, pesquisa e extensão) que passaria a ser con- incluindo-se a prática da investigação cien- sagrada em lei muitos anos mais tarde: tífica e artística desinteressada, entranhada em seus órgãos componentes. A USP, dife- rentemente, nasceu da junção de escolas A educação superior que tem estado, no isoladas, cuja inércia dificultou que se tor- Brasil, exclusivamente a serviço das profis- nassem integradas ao novo modelo. Nova, sões "liberais" (engenharia, medicina e di- mesmo, na USP, isto é, totalmente moldada reito), não pode evidentemente erigir-se à segundo o espírito de universidade de pes- altura de uma educação universitária, sem quisa, tal como a UDF, foi a (p. 65) 8. Para esses autores, na perspectiva de Azevedo, "a universidade Quanto à origem formal da USP (1934), é preci- seria o único meio de sairmos da situação de inferioridade em que o descaso secular desse problema nos colocou. Aos cursos so reiterar que pelo menos dois fatores imediatos de superiores de fins profissionais, com poucas ponde- ordem educacional - para além das motivações políti- rava Azevedo, faltavam a e profundidade que cas relacionadas à disputa entre a Província/Estado de são da essência dos cursos universitários" (Cunha e Castioni 2012, p. 86). 9. Confira Integra do "Manifesto": pro.br/heb07a.htm. Acesso em: 28/06/2016. 7. Sigla de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. 47 46</p><p>alargar para horizontes científicos e cultu- titucionalista de 1932, contribuíram para a retomada rais a sua finalidade estritamente profis- da ideia de uma universidade, criada, mantida e com a sional e sem abrir os seus quadros rígidos responsabilidade de colocar o estado de São Paulo em à formação de todas as profissões que exi- um patamar educacional e cultural superior à condi- jam conhecimentos científicos, elevando-as todas a nível superior e tornando-se, pela ção dos outros estados brasileiros e inclusive do pró- flexibilidade de sua organização, acessível a prio Brasil, concebido como um estado governado por todos. Ao lado das faculdades profissionais um poder ao qual não se alinhava São Paulo. existentes, reorganizadas em novas bases, Sob liderança de Fernando de Azevedo (respon- impõe-se a criação simultânea ou sucessiva, sável pelo Inquérito sobre a educação pública, acima em cada quadro universitário, de faculda- referido), portanto, e com o patrocínio do Governo do des de ciências sociais e econômicas; de ci- Estado e apoio da Comunhão Paulista, representada ências matemáticas, físicas e naturais, e de pelo jornal 0 Estado de S. Paulo, instituiu-se a Univer- filosofia e letras que, atendendo à variedade sidade de São Paulo (USP 1934). de tipos mentais e das necessidades sociais, A concepção neo-humboldtiana, que, no caso da deverão abrir às universidades que se cria- USP, pretenderia superar a profissional neonapoleôni- rem ou se reorganizarem, um campo cada ca dominante nas Escolas que iriam compô-la, tinha, vez mais vasto de investigações científicas. como polo integrador e de busca e crítica do saber, a A educação superior ou universitária, a par- Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL). En- tir dos 18 anos, inteiramente gratuita como as demais, deve tender, de fato, não somente tretanto, esta proposta inovadora não prosperaria. à formação profissional e técnica, no seu má- Nas suas memórias (1971, p. 121), Fernando de Aze- ximo desenvolvimento, como à formação de vedo e, por ocasião do cinquentenário da USP, reitera- pesquisadores, em todos os ramos de conhe- do por Florestan Fernandes (1984, p. 24), irá afirmar cimentos humanos. Ela deve ser organizada que a tradição das escolas profissionais, reunidas para de maneira que possa desempenhar a trí- formar a USP, oporá tenaz resistência ao novo modelo, plice função que lhe cabe de elaboradora ou em especial, à liderança da FFCL. A USP sobreviveria, criadora de ciência (investigação), docente na desses dois intelectuais identificados com ou transmissora de conhecimentos (ciência a mudança, mais como federação de escolas do que feita) e de vulgarizadora ou popularizadora, como verdadeira universidade, em que, sob muitos as- pelas instituições de extensão universitária, pectos, continuariam a predominar as marcas do "mo- das ciências e das artes. delo" neonapoleônico e profissional. Hoje pode-se ressaltar que, por mais que tenha Como se pode observar, são dois fortes fatores havido um gradativo distanciamento entre a concep- que subsidiaram e, juntamente com a secundarização ção inicial e a implementação e desdobramentos pos- do estado paulista, após a derrota na Revolução Cons- 49 48</p><p>teriores, como já referido nas palavras do próprio Fer- ao seu redor escolas dos diferentes campos do nando de Azevedo e Florestan Fernandes, houve então dedicadas ao ensino, pesquisa e divulgação de conhe- a emergência de uma alternativa de universidade às cimentos (Miglievich-Ribeiro 2012). tradicionais justaposições ou junções de faculdades profissionais, como predominava até Apesar Esta autora, baseando-se em Trindade, ao referir- desses aspectos positivos, contudo, não se pode deixar se à criação da UDF, menciona obstáculos com os quais Anísio Teixeira defrontou-se, destacando um deles: de ter presente que, se a UDF simplesmente foi supri- mida pelo regime de representado pelo Esta- do Novo, "no caso da USP, o establishment acadêmico Certamente a nova universidade desafiava desarticulou o modelo inovador originalmente pro- o projeto de reforma universitária de Fran- posto e reforçou, mais uma vez, o velho regime franco- cisco Campos, de 1931, que propunha todas as instituições universitárias públicas sob germânico" (Almeida-Filho 2012, p. 238). o controle da União. Anísio Teixeira (em A essa experiência pioneira seguiu-se a criação 1935) via-se, de um lado, pressionado pelo da Universidade do Distrito Federal. Certamente a con- Ministro Gustavo Capanema, tratando-se a vivência e o compartilhamento de ideais entre Fernan- UDF de uma universidade municipal; de ou- do de Azevedo e Anísio Teixeira estão entre as influên- tro, pelos intelectuais católicos, represen- cias recebidas por este último para a criação da UDF. tados exemplarmente por Alceu Amoroso Lima, intransigente quanto ao fato de terem Em abril de 1934, Anísio Teixeira, como Fer- sido praticamente excluídos da realização nando de Azevedo, signatário do Manifesto dos Pio- do projeto. (idem, pp. 43-44) neiros (1932), ocupando o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública do Distrito Federal, o Prefeito Pedro Tantos foram os supostos atentados contra o Ernesto Batista [1884-1942] propôs, e foi instituída, status quo que, no ano de 1939, a UDF é extinta "por em 1935, a Universidade do Distrito Federal (UDF). inconstitucionalidade", sendo seus alunos acomoda- Porém sua consolidação foi dificultada, uma vez que dos na Universidade do Brasil (Lei n° 452/97), hoje não resultava de continuidade, via aglutinação de ou- Universidade Federal do Rio de Janeiro, que deveria, tras instituições, como a tradição havia consagrado, a partir de proposta do Ministro Gustavo Capanema e, neste sentido, para o governo central, o projeto era visto como autônomo em demasia e não deveria vin- gar. A proposta inovava ao romper com a hegemonia 10. Segundo Rocha (2012, p. 65): "A UDF foi a primeira universida- do modelo napoleônico das faculdades isoladas, mar- de brasileira a dar lugar, entre todas suas unidades, à pesquisa ca das iniciativas universitárias brasileiras anteriores desinteressada, isto é, à atividade de criação de conhecimento não ligada, necessariamente, ao objetivo de formar profissio- com exceção da USP. Teixeira, para a sua iniciativa, nais para o mercado. Significou um avanço, porque essa era a teve como âncora o Instituto de Educação, agregando marca de todas as nossas instituições de ensino superior no Brasil até 51 50</p><p>[1900-1985], passar a ser o de uni- versidade brasileira (Rocha 2012)." a emergência do Estado Novo, de um lado, e, de ou- tro, o caminho livre à Igreja Católica para retomar suas Assim, teve fim a iniciativa pioneira da UDF que, iniciativas e liderança nos debates sobre os rumos da embora não tenha conseguido consolidar-se, explici- educação brasileira, particularmente com Alceu Amo- tou as possibilidades e potencialidades de uma insti- roso Lima e o Padre Leonel Franca (Rocha 2012) e que tuição pública, gratuita, autônoma, laica e acabarão interferindo nos debates e aprovação da pri- uma espécie de ponto fora da linha e que, embora de meira LDB (Lei n° 4024/61), que pode ser visualizada vida breve, deixou marcas que influíram na criação da como "esquizoide" por tentar conciliar propostas an- Universidade de Brasília e outras experiências, embo- tagônicas capitaneadas por católicos e liberais. ra sempre olhadas com desconfiança e, no limite, redi- Em relação, ainda, à extinção da UDF e reforçan- recionadas ou suprimidas. do o que vem de ser dito, os estudos de Fávero (2001, Uma das consequências da extinção da UDF foi 2004 e 2005) demonstram, em relação a esse projeto o reforço do poder regulador central, amplificado com inovador de Anísio Teixeira, que: Não poderia ter futuro uma universidade 11. A Universidade do Brasil incorporava quinze Faculdades Na- que afrontava as iniciativas educacionais cionais e quinze Institutos, além do Museu Nacional. Até o final do Estado Novo (1945) funcionavam no Brasil apenas cinco uniformizadoras representadas pelo Es- universidades: a URJ/Universidade do Brasil, a Universidade tatuto das Universidades Brasileiras e tão de Minas Gerais, a Universidade de São Paulo, a Universidade evidentes, como diz essa autora, no teor da de Porto Alegre e a Universidade Rural do Brasil. exposição de motivos, de autoria do Min. enquanto eram criadas apenas essas universidades, de 1930 a 1945 eram criadas 181 escolas de ensino superior isoladas Francisco Campos, que encaminhava o pro- (Fávero 2000). jeto de reforma do ensino superior. Não 12. No que diz respeito à "massificação", há 50 anos, Darcy Ribeiro, haveria lugar para experiências inovadoras como afirma Miglievich-Ribeiro (2012, p. 57), "anunciou que fora de controle e supervisão do Estado. 0 teríamos que enfrentá-la dado o fato simples de que, como uni- controle estrito e a ausência de autonomia versidade pública, é esta que deverá responder pela inclusão no ensino superior. Mais uma vez, coerente com a luta de Anísio são típicos das instituições de cunho "napo- Teixeira e dos entende que os investimentos leônico", como tenderiam a ser por muito públicos eram para a universidade pública com o fito de gerar tempo as instituições que iriam constituir- estratégias de ampliação de seu alunato e condições para sua permanência". E avançando na sua análise, a autora toca em se sob a égide do poder central. (Sguissardi uma questão que, embora se referindo aos idos de 1950, parece 2006, pp. 355-356) estar falando do presente: "Darcy Ribeiro estava ciente ainda de que não bastaria abrir a universidade a sua nova clientela, mas superar carências de formação básica inerente ao grupo Em 14 anos, pós-Estado Novo (1937-1945), até social que agora chega ao ensino superior, o que torna mais 1960, foram criadas 19 universidades federais todas uma vez incontornável a preocupação integrada com a educa- como autarquias. Foi pela criação da Universidade de ção básica e o ensino superior, dimensões jamais separadas por Anísio Teixeira" 53 52</p><p>Brasília (UnB) Projeto de Lei em De- creto de instalação em que se adota pela pri- como no breve período de funcionamento da universi- meira vez regime fundacional nas instituições federais dade de acordo com o modelo como foi concebida, uma vez que Darcy Ribeiro contava com ninguém menos do do país. Com este regime visava-se ampliar a autono- mia e a flexibilização administrativa das que Anísio Teixeira como seu que, pos- teriormente, por breve período, seria Reitor. Haviam objetivo que acabou sendo anulado pela centralização trabalhado juntos no Instituto Nacional de Estudos e administrativa adotada com o advento da ditadura ci- Pesquisas Educacionais (INEP), assim como no Centro vil-militar, que subordinou autarquias e fundações aos Brasileiro de Pesquisas Educadionais (CBPE). Darcy rigores da burocracia estatal, em especial em seus as- Ribeiro explicita que em suas "conversas diárias" dis- pectos administrativos e de gestão financeira. cutiam a necessidade e a oportunidade de criar uma Para a criação da UnB, junta-se a experiência de universidade, integrando-a organicamente ao projeto Anísio Teixeira e o espírito universal de Ribeiro. de construção da nova capital do país. Miglievich-Ri- Se entre Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira houve beiro (2012, p. 46) cita Darcy Ribeiro, quando este cumplicidade de suas iniciativas, em especial na cria- afirma: "Juntos, planejamos a Universidade de Brasília, ção da UDF, entre Darcy Ribeiro [1922-1997] e Aní- com a preocupação de fazer dela a casa da inteligência sio Teixeira a colaboração é muito mais explícita, nos brasileira, em que dominaríamos todo o saber huma- preâmbulos da criação da UnB com projeto aprovado no e o colocaríamos a serviço do desenvolvimento na- em e início de funcionamento em 1962 -, bem cional autônomo de nossa pátria". A estatura intelectual e de militantes engajados de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro foi a motivação que 13. No dia 21 de abril, dia da inauguração de Brasília, o então presidente da República, Juscelino Kubitscheck, apresenta ao animou o movimento de criação da UnB. Isto quanto Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 1.861/60, que autoriza a sua estatura, tanto no que diz respeito ao histórico o Poder Executivo a instituir a Fundação Universidade de Bra- de realizações, particularmente do primeiro, quanto sília (FUB). Esse é o primeiro ato assinado pelo presidente na nova capital. nas inúmeras resistências que foram tendo que ser re- 14. A Lei n° 3.998, que autoriza a fundação da UnB, é assinada pelo movidas em função da relação de alinhamento desses presidente João Goulart, em 15 de dezembro de 1961. 15. É publicado o decreto n. 500 que a Fundação Universi- dade de Brasília (FUB) e aprova seu estatuto e a estrutura da muito esclarecedoras em relação ao acesso, aos passos ou às "tra- Universidade de Brasília (UnB). 16. No Plano Orientador de Teixeira e Darcy Ribeiro e inicio jetórias formativas" dos do ingresso ao dou- da Universidade de Brasilia, 1962, de 25 de agosto de há torado. Ver também a este respeito o texto de Camargo e Lazarte referência ao fato de que a aprovação de criação da UnB 17. "no Congresso Nacional, no dia da renúncia do presidente Em 13 de abril de 1964, duas semanas após o Golpe Civil-Mi- Quadros, em meio à perplexidade da Casa e por uma rápida e es- litar, Anísio é exonerado e substituído por Zeferino Vaz [1908- tratégica mudança na Ordem do Confira: 1981], que renuncia, pouco tempo depois, para assumir a incumbência de implantar a Unicamp, considerada uma das pdf. Neste Plano, os interessados encontrarão a es- primeiras universidades a ser criada a partir de influência do trutura completa da com figuras "Plano Orientador" da UnB. 55 54</p><p>protagonistas com os liberais, bem como pela oposi- superior), e ao próprio conceito de universidade como ção que suas concepções, opções e o pertencimento a um bem público, comprometida com o público, com esse grupo suscitava entre as hostes dos defensores a laicidade, com a gratuidade e com a universalidade. das posições dos católicos. Ao referir-se ao contexto Neste sentido, Cunha e Castioni (2012, p. 106), referin- no qual fermentaram as ideias para a criação da UnB, do-se a uma manifestação de Anísio Teixeira, afirmam tributárias das discussões e implementações em torno que este, em 1961, da "Escola Nova", a partir da década de 1920, Miglievi- ch-Ribeiro (2012, p. 29) afirma: examinando o projeto de Darcy Ribeiro para a UnB, afirmou que a nova universi- final da década de 1950 era marcado dade poderia transformar-se no primeiro também pela intensidade do debate acer- marco de integração universitária no Bra- ca do papel da educação na definição dos sil, substituindo a organização ganglionar rumos nacionais. Mantinha-se na pauta do e pulverizada então vigente, pela pedagogia Congresso o debate acirrado entre posições da cooperação e interpenetração, cultivan- polarizadas que uniu, de um lado, Anísio do a unidade na diversidade. Teixeira e Darcy Ribeiro, e de outro, os de- fensores do ensino privado, representados Em termos de organização, o destaque fica para exemplarmente por Carlos Lacerda e Dom a centralidade da Faculdade de em função Hélder Câmara. da importância atribuída à formação de professores, independentemente da área de atuação. Além disto, No que aqui interessa não serão aprofundadas segundo Camargo e Lazarte (2012, p. 181), "histo- as questões relacionadas ao movimento de criação da ricamente a Universidade de Brasília foi a primeira UnB, sua estruturação, funcionamento e desestrutura- universidade brasileira a ser baseada na estrutura de- ção a partir de 1964. Há uma vasta literatura sobre partamental". Em paralelo, na organização acadêmica assunto, seja dos protagonistas, seja de pesquisadores, a este respeito, como se pode observar nas referên- 18. Fazendo referência ao fato de que Darcy Ribeiro pretendia cias, com destaque para o texto de Camargo e Lazarte "transformar toda a Universidade numa grande instituição pe- (2012): 0 Plano Orientador da Universidade de Brasília dagógica...", Córdova (2012, p. 140) destaca que, na nova con- cepção de universidade (UnB), "a Faculdade de Educação não de 1962 e suas repercussões na universidade brasileira deveria ser uma entidade profissional isto é, se- atual, bem como a obra de Roberto Salmeron: A uni- parada do restante da Universidade. Sua finalidade seria ofere- versidade interrompida: Brasília 1964-1965 (2012). cer formação aos futuros professores dentro da universidade, sendo que os candidatos ao magistério poderiam seus Importa aqui ressaltar aspectos que reforcem o deba- cursos na forma de treinamento em serviço...". Enfim, em todo te das questões relacionadas à Educação Superior, à seu artigo, Córdova retoma os aspectos principais da proposta de Ribeiro sobre a UnB, destacando outros pontos importantes formação de professores (não somente para o ensino a respeito do papel que assumiria a Faculdade de Educação. 57 56</p><p>estava prevista a eleição, pelos alunos, de "trajetórias formativas", em função da flexibilidade curricular. Ha- dessas instituições. Podem ter sido desvirtuadas, su- via também a possibilidade de formação dos alunos primidas, interrompidas, porém a história registra e os fatos confirmam, o protagonismo desde os cursos de graduação ao doutorado. de pessoas e grupos, nas discussões, concepções, im- A propósito da previsa-se, no plementações de IES que foram diferentes, alternati- "Plano Orientador" de criação da UnB, "Organizar pro- vas e que, se não fossem poderiam ser gramas regulares de a fim de outorgar universidades e complementarmente, nas palavras graus de mestre e doutor de validade internacional de Anísio Teixeira, referindo-se à necessidade de esta- para formar seus próprios quadros docentes e elevar rem abertas ao leque de desafios que a sociedade e o a qualificação do magistério superior do Pro- mundo atual apresenta punha-se também que, "além da formação em nível de pós-graduação, esses estudantes também atuassem 21. Aqui é importante inserir uma nota que, embora longa, é mui- como instrutores para os cursos de graduação. E, para to ilustrativa desta discussão e que a sintetiza. De acordo com isso, receberiam financeira, além de residência Sguissardi (2009b, p. 145): "Nem a criação da Universidade na (Camargo e Lazarte 2012, p. 191). de São Paulo (USP), com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, como cerne da produção e do embrionário Enfim, muitos seriam os aspectos a ressaltar. modelo no Brasil da associação ensino e pesquisa, haveria de Porém, como a preocupação aqui é destacar alguns ter vida longa: poucos anos passados de sua criação, a força corporativa das faculdades profissionais fez com que a uni- pontos relacionados à Educação Superior, e para isto versidade voltasse às velhas práticas do modelo napoleônico. se elegeu esta linha de tempo, para finalizando este Nem a proposta da Universidade de Brasília (UnB), de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira (aliás, Anísio já havia tentado modelo subitem, retome-se aqui a abalizada avaliação de Fáve- semelhante em 1935-1937 com a Universidade do Distrito Fe- ro e Lopes (2009) quando afirmam ser a USP, a UDF e deral, induzida ao fracasso), teve melhor sorte. A repressão da a UnB as três universidades brasileiras mais importan- ditadura militar encarregou-se de destruir nela suas mais pro- missoras ideias e práticas. A lei n° 5.540/68 estabeleceu a obri- tes no que diz respeito a modelos de desenvolvimento gatoriedade da associação entre ensino e pesquisa, retomando aspectos centrais do modelo humboldtiano, mas, mais uma vez, por conta das estruturas esclerosadas e do modo como foi im- posta, a lei tornou-se em grande medida também letra morta. 19. É interessante ressaltar que, de acordo com Darcy Ribeiro, a modelo universitário brasileiro mantém-se ideia inicial de Anísio Teixeira era a de que na UnB funcionas- à exceção de algumas universidades onde foi possível a conso- sem apenas cursos de pós-graduação. lidação da pós-graduação. Ali se criaram condições para que 20. É provável que aqui esteja o DNA da proposta de "estágio de aspectos importantes da concepção humboldtiana de universi- docência" obrigatória aos alunos bolsistas da CAPES, imple- dade prosperassem..." 22. mentada no governo FHC. Contudo observe-se que, no "Plano Este termo é frequentemente atribuído a Anísio Teixeira. Um Orientador da UnB", o pós-graduando receberia ajuda financei- levantamento, embora não exaustivo, localiza o uso inicial des- ra, além de já contar com residência universitária, situação que ta palavra por Clark Kerr, nos EUA, em uma obra publicada na se distancia da estratégia de dos década de 1960, ao focalizar a função de extensão da Universi- pós-graduandos, estando estes em condições pouco dade. Esta obra teve tradução no Brasil. Conforme Kerr, Clark além do fato de que sua atuação visava, indiretamente, superar (1982). Os usos da universidade. Fortaleza: Ed. Universidade Federal do Ceará. ou minorar precariedades na universidade. 59 58</p><p>Em síntese, o que se pode dizer que havia em por exemplo, a cultura desinteressada comum nessas experiências que foram redirecionadas peria com o que havia se tornado regra na ou interrompidas, em relação à concepção inicial, além universidade, qual seja, o fornecimento de de reforçar que, embora de instâncias administrativas diplomas para ingresso nas classes privi- diferentes federal, estadual e municipal -, UnB, USP legiadas do país. Na sua "profissões e UDF eram IES públicas. se regulamentam, mas não se regulamenta a cultura. Um homem culto e um homem di- Destaca-se também, nas análises e documentos plomado são duas coisas, infelizmente, bem dessas instituições, a preocupação com a formação de diversas entre nós". professores em todos os níveis, a partir da ideia de que era necessário acabar com o autodidatismo que vinha caracterizando o trabalho docente - universitário e A aposta na pós-graduação stricto sensu para a também em outros níveis - e a dependência de ma- renovação ou reconstrução da universidade brasileira terial vindo do exterior. Por isso, a preocupação com e para a melhoria da/na formação de professores a presença de instituições aglutinadoras no interior dessas universidades: a FFCL, na USP, o Instituto de Educação, na UDF, e a Faculdade de Educação na UnB. Como amplamente analisado e veiculado na li- teratura em Bianchetti (2009) há uma síntese desse Ao mesmo tempo ressalta-se uma crítica à for- processo -, a atual Coordenação de Aperfeiçoamento ma de organização e funcionamento das IES até aquele de Pessoal de Nível Superior (CAPES) foi criada em momento - década de 1930 - e a implementação de 1951, na condição de "Campanha", com o fito, entre alternativas ao praticamente exclusivo ensino "bacha- outros, de, via formação de professores de quarto nível relesco". E mais do que isto, de cursos que se voltavam (mestrado e doutorado), renovar, trans- ao utilitário, ao prático, ao imediato, descaracterizan- a universidade (Mendonça 2003) a partir de do uma das principais apostas em uma instituição dentro. Já haviam sido feitos inquéritos e contava-se digna de ser proclamada universidade. De acordo com com dados evidenciando o elevado número de profes- Cunha e Castioni (2012, p. 94), com base em afirma- sores que atuavam na Educação Superior, sem ou com ções de Anísio Teixeira e Ana Waleska Mendonça, este inadequada formação para serem docentes nesse nível de ensino, Mas além da formação para o magistério ha- afirmava que as universidades haviam as- via a firme disposição de que a investigação/pesqui- sumido um "espantoso praticismo" ao te- sa deveria definitivamente ser incluída, e de maneira rem substituído a cultura por duas ou três profissões práticas. Tanto para ele como 23. para Fernando de Azevedo, a universida- de passagem, que esta palavra esteve fortemente pre- sente no "Manifesto" de no tocante à educação em geral. de deveria ser um centro de investigação 24. Verbos também utilizados por Anisio Teixeira ao reterir-se ao pa- e pesquisa cientifica. Para Anísio Teixeira, pel da stricto sensu em relação à 60 61</p><p>entre as funções da universidade, como Mais de 200 professores estrangeiros foram havia sido feito em outros tempos e lugares, a partir de "recrutados" para compor os quadros da UnB, cujo algum dos modelos clássicos de universidade, particu- trabalho certamente acabou estando na raiz da con- larmente o humboldtiano. tribuição dos cursos de pós-graduação do país para a Conforme Rocha e como aparece em algumas pretendida renovação da universidade brasileira. passagens de outros textos da coletânea organizada A partir dessas observações, muito mais em por Vilar e Castioni (2012), Anísio Teixeira, na discus- perspectiva daquilo que se discutia e desenhava na são do processo de criação da UnB, estava convencido criação e funcionamento da UnB, interessa aqui res- de que nesta universidade deveriam ser oferecidos gatar o fato de que Anísio Teixeira, um dos mentores somente cursos de mestrado e doutorado. De acordo dessa instituição, foi igualmente um dos criadores da ainda com este autor, no contexto dessa concepção, CAPES, da qual foi Secretário entre 1951 e 1964 e ain- da um dos criadores el Presidente do INEP, órgão ao qual a CAPES estava vinculada. A aproximação entre a UnB deveria servir essencialmente para o Ribeiro e Teixeira, nesse período, certamente fez com propósito da elevação do nível dos profes- que, em muitos momentos e debates, a ideia de uma sores universitários não somente do Brasil, pós-graduação (PG) stricto sensu portadora do deside- mas de toda a América Latina, para onde se rato de interferir na tansformação da universidade, via dirigiriam a fim de obter a pós-graduação. elevação da qualificação do seu corpo docente, sempre Mais tarde, Anísio Teixeira teria sido conven- tenha estado na pauta. E, embora, como vimos, em al- cido por Darcy Ribeiro de que a UnB deveria guns momentos eles tenham divergido sobre o lugar também oferecer cursos de graduação, mas da pós-graduação na universidade, acabaram conver- foi por essa insistência na pós-graduação gindo na sua necessidade e efetivamente implantando que a UnB já nasceu com cursos de mestrado -a quando do início de funcionamento da UnB. e de doutorado. (Rocha 2012, p. 74) A cassação do mandato de Darcy Ribeiro, como reitor da UnB, no ano de 1964; a exoneração de Aní- sio Teixeira do cargo de Reitor da mesma Instituição, 25. Em Kuenzer e Moraes (2005), está claramente explicitado no mesmo ano, e a sua não recondução ao Conselho como, no biênio 1996-1998 da avaliação da pós-graduação Federal de Educação (CFE) e consequente saída do conduzida pela CAPES, há uma espécie de mudança de para- Brasil no período, não significou a interrupção das digma passando-se do privilegiamento da formação de pro- fessores para a de pesquisadores, na maneira de atuação dos discussões, entre outros aspectos da pauta desses pro- programas de Pós-graduação no país. E como a CAPES avaliava tagonistas, sobre a pós-graduação e as funções desta e financiava, induzindo, portanto como continua fazendo! na universidade, embora não haja dúvidas sobre o re- a diretriz passou a ser implementada sem grandes óbices, mas, direccionamento dessas discussões. É neste contexto ao mesmo tempo, sem grandes preocupações com as caracte- rísticas e peculiaridades das regiões de um país de dimensões que ganha proeminência o Parecer CFE n° 977/65, continentais, com inúmeros contrastes, bem como, sem levar também conhecido como "Parecer Sucupira". em conta a diversidade de áreas de conhecimento. 63 62</p><p>Parecer 977/65: A instucionalização da pós-graduação o Mestrado foi inventado no Brasil, em 1965. stricto sensu no Brasil e a formação de professores Concebido no famoso Parecer Sucupira, foi instituído mediante a Resolução 977/65 do CFE, pré-requisito normativo para a Refor- Do ponto de vista da criação e implementação ma Universitária de 1968, conforme os ter- formal de um modelo de pós-graduação brasileiro, há mos previstos no Acordo MEC-USAID. Antes concordância entre autores de que o marco zero é 0 dessa data, não havia mestrados ou títulos parecer Destacamos aqui dois desses auto- equivalentes em nossas universidades. De res, cujos posicionamentos mais gerais não coincidem, repente, por decreto (nesse caso, um pa- mas no que diz respeito a este parecer recer técnico aprovado num conselho de- Cury (2005), em artigo dedicado à análise desse docu- liberativo), passamos a dispor de um título mento, enfatiza ser este o marco legal, inaugural, da PG universitário pós-profissional legalmente habilitador à docência universitária. texto stricto sensu no Brasil. artigo: Quadragésimo ano do de Newton Sucupira é, num sentido irônico, parecer CFE n° 977/65, pelas informações, pelo rigor radicalmente inovador, pois, além de definir impresso pelo autor em sua análise e pelos seus posi- o Mestrado como grau e curso de formação cionamentos, pode ser considerado um clássico para do docente para o ensino superior, distinto subsidiar estudos sobre a PG brasileira. do Doutorado como formação do pesqui- Por sua vez, Almeida-Filho (2012), ao tratar do sador, criou o conceito de assunto refere-se ao "efeito Sucupira" na educação, lato-senso" (sic). Curiosamente, uma das particularmente a pós-graduada, no Brasil, descre- modalidades previstas no lato-senso, a Es- vendo o processo e fazendo um alerta. Conforme suas pecialização, teria sim alguma correspon- dência com o título de Master no modelo palavras, consolidado em outros contextos de educa- ção superior. (idem, p. 226) Quanto ao alerta, após inúmeros comentários sobre aqueles que chamou de vikings atuais da educa- 26. É nesse ano, inclusive, que é criado o primeiro curso de mestra- do em educação no país, o da PUC-Rio. Adianta-se que, para a ção (refere-se aos empresários, como veremos adian- análise do referido parecer, utiliza-se a cópia desse documento te) e da imposição de melhorar os rankings das uni- legal que está disponível em: http://www.pedagogiaemfoco versidades, segundo o autor, pode ocorrer a alguém Acesso em: 31/07/2014. 27. Ver a este respeito, também, o debate de históricos anpedianos, ou a alguns que "é possível reinventar-se como uma sintetizado por Sousa e Bianchetti (2007) e publicado na Revis- universidade de pesquisa, apenas turbinando a pós- ta Brasileira de Educação, n° 36 de 2007, em comemoração dos no padrão sucupirano". E conclui: "Creio 40 anos da pós-graduação stricto sensu no Brasil. Nesse artigo, além de comentários sobre o Parecer, há também um breve his- que se trata de um equívoco" (idem, p. 239). tórico do início e expansão da PG stricto sensu. 64 65</p><p>Feita esta primeira retomada em relação à apos- ta na pós-graduação stricto sensu como meio de re- clos sucessivos, "equivalentes ao de master novar, reconstruir ou transformar a universidade, via e doctor da sistemática fixando o Conselho "as exigências mínimas criação e expansão do chamado ensino de quarto grau, para sua realização e expedição dos respec- incursiona-se pelo interior do "Parecer Sucupira", a fim tivos diplomas". de verificar em que termos a partir de algumas ideias e excertos previa-se a implementação da PG stricto No item sobre a origem e o histórico da pós-gra- sensu como estratégia para qualificar a universidade, duação, explicita-se que tanto o nome quanto o sis- por meio da formação dos seus quadros docentes, bem tema têm sua origem na estrutura das universidades como, a partir desta, melhorar quantitativa e qualitati- norte-americanas relacionada aos colleges e que, desta vamente a educação superior. forma, a Instituição dividia-se em planos hierarquica- A leitura do Parecer 977/65 passa exatamente mente superpostos: o undergraduate e o a ideia de ato inaugural, em termos de formalização No entanto, o relator reconhece que há uma influência da PG no Brasil, como apontado acima, uma vez que, anterior, expressando que "o desenvolvimento siste- conforme o parecerista-relator, o Ministro da Educa- mático da pós-graduação nos Estados Unidos pode ser ção havia proposto ao CFE que era necessário clarear e considerado como produto da influência germânica e disciplinar, visando definir e regulamentar a PG. E esta coincide com as grandes transformações das univer- era uma tarefa a que o Conselho deveria se dedicar, sidades americanas nas últimas três décadas do sécu- uma vez que, conforme o Aviso Ministerial encaminha- lo passado" (Século XIX). Acresce, ainda, que o gran- do, "o deixou expresso (a PG) em forma de impulso para a PG, nos EUA, inspirado no criative algo nebulosa". E bem ao gosto da época, o desejo era scholarship, deu-se a partir da fundação da Universi- de que a conceituação deveria ser mais precisa, porém dade John Hopkins, em 1876. A fonte de inspiração "de caráter mais operacional do que doutrinária". indicava "uma universidade destinada não somente E para não deixar dúvidas quanto à necessidade à transmissão do saber já constituído, mas voltada de contemplar a perspectiva norte-americana (Acordo para a elaboração de novos conhecimentos mediante MEC-USAID), ao explicitar a compreensão do ministro, a atividade de pesquisa criadora". Reforça ainda que, de acordo com um autor norte-americano (Walton C. o relator reforça que, para o titular do MEC, John), o movimento pela PG nos EUA "representa a cul- minação da influência germânica no ensino superior esses cursos, destinados à formação de pesquisadores e docentes para os cursos superiores, deveriam fazer-se em dois ci- Respectivamente, graduação e pós-graduação. Ressalte-se que, além da experiência norte-americana, reconhecida pelo pare- cerista, são feitas menções a outros sistemas, como o alemão e 28. Referência à letra b do art. 69 da LDB n° 4024/61. o francês. 66 67</p><p>norte-americano. A Graduate School é o equivalente da plicitar que para a universidade deveriam os "me- Faculdade de Filosofia da Universidade lhores engenhos, a flor dos homens...", como vimos, o Mais adiante, no Parecer, em um dos subtítulos Conselheiro reforça que prolongar cursos de gradua- que trata de Um exemplo de pós-graduação: a Norte ção "suporia que todos os alunos fossem igualmente Americana, o parecerista não deixa dúvidas quanto a aptos e estivessem todos interessados na especializa- esta "dívida": ção intensiva e na formação científica avançada", le- vando-nos a concluir que, passados séculos entre as propostas de Comenius e do Parecer, a questão dos Sendo, ainda, incipiente a nossa experiência passa do acesso à universidade ao acesso à PG em matéria de pós-graduação, teremos de (destaques recorrer inevitavelmente a modelos estran- geiros para criar nosso próprio sistema. o Uma outra saída, caso não se instituísse a PG, seria importante é que o modelo não seja objeto de pura cópia, mas sirva apenas de orienta- multiplicar os cursos graduados para atender ção. Atendendo ao que nos foi sugerido pelo o número cada vez maior de especialidades aviso ministerial, tomaremos como objeto dentro de uma mesma profissão ou ciência, o de análise a pós-graduação norte-america- que importaria na especialização antecipada na, cuja sistemática já provada por uma lon- em prejuízo de uma preparação básica geral; ga experiência tem servido de inspiração a ou haveríamos de sobrecarregar o currículo, outros países. com o resultado de se conseguir formação en- ciclopédica e superficial. Tudo isso nos mostra Ao falar da necessidade da pós-graduação, no que sendo ilusório pretender-se formar no Parecer são arrolados inúmeros argumentos sobre mesmo curso o profissional comum, o cientista o porquê a PG necessita ser regulamentada e imple- e o técnico de alto padrão, e tornando-se cada mentada, ressaltando sua imprescindibilidade para ul- vez mais inviável a figura do técnico poliva- lente, temos de recorrer necessariamente aos trapassar os limites próprios dos estudos graduados. estudos pós-graduados, seja para completar a Sem a PG um dos recursos seria prolongar os cursos formação do pesquisador, seja para o treina- de graduação, o que se revelaria "anti-econômico e mento do especialista altamente qualificado. anti-pedagógico". E, fazendo lembrar Comenius, ao ex- 31. Inclusive a este respeito, na página final do Parecer, entre as A respeito dos modelos de universidade brasileira leiam-se 30. conclusões, reforça-se: "Se os cursos de graduação devem ser texto Universidade no Brasil: dos modelos clássicos aos mo- abertos ao maior número, por sua natureza, a PG há de ser res- delos de de Sguissardi (2009a) e, a respeito da pós- trita aos mais aptos (...)". levando a recordar ideais de Darcy graduação, texto de Ludke (2005). Influências cruzadas na Ribeiro e Anísio Teixeira, nas propostas de implementação da constituição e na expansão do sistema de pós-graduação stric- UnB, no Parecer aparece o seguinte complemento: "Aconselha- to sensu em educação no Brasil. se que a PG se faça em regime de tempo integral...". 69 68</p><p>Ressalta-se também que com isto não se preten- sados e consequentemente rebaixamento de dia desprestigiar os cursos de graduação, uma vez que seus padrões. Por isso mesmo o programa é neles que se deve "iniciar o estudante na pesquisa de ampliação das matrículas dos cursos su- científica". Porém, sem a possibilidade de continuar periores supõe uma política objetiva e efi- caz de treinamento adequado do professor seus estudos na PG, os estudantes e o país perderiam. universitário. E o instrumento normal des- Além disto, para os poucos que pudessem e quisessem se treinamento são os cursos de pós-gradu- continuar sua formação, a inexistência de cursos de ação. (destaques nossos) PG no país, obrigava-os a aprofundar seus estudos em universidades estrangeiras. E, de acordo com o con- Tanto em citações como estas, como em outras texto de crescimento e desenvolvimento do Brasil, nos que se seguirão e na leitura integral do Parecer, não há primeiros anos do regime militar, apregoava-se que como deixar de perceber que, embora Anísio Teixeira seria importante contar com as condições de formar tivesse visto sua influência no CFE refluir seu nome profissionais para os diferentes setores, capazes de fa- ainda consta entre os do Parecer -, suas zer frente às necessidades do país e de criar alternati- ideias, particularmente em relação à universidade, à vas a partir dos cursos sistemáticos de pós-graduação. formação de professores e à pós-graduação, continua- Neste sentido, reforça-se no Parecer: vam reverberando fortemente naquele locus. Em nosso entender um programa eficien- te de estudos pós-graduados é condição básica para se conferir à nossa universida- Além do relator, Newton Sucupira e do citado Anísio Teixeira, de caráter verdadeiramente universitário, assinam o Parecer: A. Almeida Júnior, (Presidente da Su), para que deixe de ser instituição apenas Clóvis Salgado, José Barreto Filho, Maurício Rocha e Silva, Dur- formadora de e se transforme meval Trigueiro, Alceu Amoroso Lima, Valnir Chagas e Rubens Maciel. Pela relação de nomes, observa-se um colegiado bas- em centro criador de ciência e de cultura. tante heterogêneo em termos de posições e representações e, Acrescente-se, ainda, que o funcionamento principalmente, que os expurgos da ditadura ainda não haviam regular dos cursos de pós-graduação consti- sido concluídos. Quanto a Anísio Teixeira, especificamente, ele foi afastado da função de reitor da UnB em 1964 e entrou na tui imperativo da formação do professor uni- lista dos aposentados compulsoriamente. Mas não foi excluí- versitário. Uma das grandes falhas de nosso do do CFE, função que estava sob mandato. Ele a cumpriu até ensino superior está precisamente em que o final, não tendo sido reconduzido. Sua ida ao exterior não foi como exilado. Foi como scholar em universidades dos EUA, o o sistema não dispõe de mecanismos capazes que não significa permanência prolongada (Estas informações de assegurar a produção de quadros docen- foram colhidas em troca de e-mails com Carlos R. Jamil Cury, tes qualificados. Daí, a crescente expansão a quem cabe agradecer complementadas com a consulta a desse ramo de ensino, nessas últimas dé- Nunes 2002). Agrega Cury que, "quanto ao Parecer 977, ele Anísio Teixeira sabia de sua importância para a formação de cadas, se ter feito com professores improvi- massa crítica via PG". 71 70</p><p>Continuando na leitura do Parecer e na apreen- A ser criada indiscriminadamente a Pós- são de alguns aspectos que aqui interessam, na sequ- graduação, na maioria dos casos, se limita- ência é feita uma análise detalhada a respeito de como rá a repetir a graduação, já de si precária, o art. 69 da LDB (Lei n° 4024/61), que se refere à pós- com o abastardamento inevitável dos graus de Mestre e Doutor. (...). Por isso mesmo, se graduação, em cotejo e detalhamento doutrinário da quisermos evitar que a PG brasileira es- Lei, para, ao final, sintetizar: sencial à renovação de nossa universidade - seja aviltada em seu nascedouro, devemos Desta breve análise do art. 69 podemos estabelecer não somente princípios doutri- concluir, com fundamento, que a intenção nários, mas critérios operacionais e normas da lei foi atribuir status especial à pós-gra- que dirijam e controlem sua implantação e duação, distinguindo-a dos cursos de sim- desenvolvimento. (destaques nossos) ples especialização. Se esta interpretação é exata parece-nos legítimo aplicar-se aos Frente a excertos como este, ao comparar aquilo cursos de que trata a alínea b o conceito que doutrinariamente se apregoava nas discussões e que formulamos de pós-graduação sensu regulamentações do parecer 977/65 e o que veio su- stricto, isto é, o sistema de cursos regula- cedendo com a PG, não há necessidade de estender-se res que se superpõe à graduação, visando em comentários. desenvolver, em amplitude e profundidade, os estudos feitos nos cursos de graduação e conduzido à obtenção de grau acadêmico. Porém, é no item que trata da PG e o estatuto do magistério e das características do mestrado e do dou- torado que se encontram interessantes manifestações a respeito da temática deste estudo. Após inúmeras considerações sobre a regulamentação da PG e suas implicações na carreira docente, insiste-se na necessi- dade da regulação, do controle em relação à abertura dos cursos. Ressalta-se que "o controle dos cursos po- derá ser feito por meio de reconhecimento, pelo me- nos à maneira de acreditation". E insiste-se que essa vigilância é imprescindível, pois, 73 72</p><p>Capítulo III À COMMODITYCIDADE 1 Porque não cabe à Universidade formar crentes nem sequer sugerir convicções, mas dar ao estudante capa- cidade para escolher a sua convicção. Já abundam os homens cegamente convictos, muito "práticos", "úteis" para os serviços do Estado, da Igreja, dos partidos e das empresas comerciais. Pode ser que todas essas instituições lamentem, em breve, a abundância de homens convictos e a falta de homens livres. Então, acusar-se-á amargamente o utilitarismo das universidades modernas. o utilitarismo é o inimigo mortal da Universidade. (Otto M. Carpeaux, s/d, destaque nosso) Certamente não seria necessário o esforço de criar um neologismo para referir-se àquilo que está 1. Artigo 7 do Decreto n° 2.306/97 não deixa dúvidas quanto às possibilidades de "negociar" com o ensino e a natureza deste: "As instituições privadas de ensino classificadas como particulares, em sentido estrito, com finalidade lucrativa, ainda que de natu- reza civil, quando mantidas e administradas por pessoa física, ficam submetidas ao regime de legislação mercantil, quanto aos encargos fiscais, parafiscais e trabalhistas, como se comerciais fossem, equiparados seus mantenedores e administradores ao comerciante em nome individual" (destaque nosso). 75</p><p>a "números vistos" tomando conta ou atravessando acompanhar de decisões e implementações que, de a Educação Superior/Universidade brasileira neste origem pública, carrearam recursos para a iniciativa momento. Bastaria observar o quantum da expansão privada na educação ou no ensino público-quase-pri- do ensino superior privado ou público-quase-privado vado ou (in)diretamente no privado-mercantil. Neste ou ainda em especial o privado-mercantil, na atuali- sentido, embora tendo presente o significado desses dade, e se teria a dimensão de como a perspectiva de subsídios públicos ao privado, opcionalmente, não se mercado está presidindo o processo de ampliação do irá aqui à análise do Programa Universidade para número de Instituições sejam novas ou resultantes Todos (ProUni), do Financiamento Estudantil de fusões, aquisições etc. - e do aumento quantitati- das isenções concedidas a Instituições privadas ou de estudantes "universitários" (Confira Sguissardi particulares e, indiretamente, do Programa de Apoio a 2013, 2014 e 2015). Porém, a rapidez e o movimen- Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades to convergente no sentido de expansão da universi- Federais (Reuni), sobre os quais é possível encontrar dade, com as características que eram exclusivas das farta literatura, embora resultado de iniciativas relati- empresas mercantis e da ampliação numérica de alu- vamente recentes e com características diferenciadas. nos-clientes, impõem o desafio de busca de uma nova certo, contudo, é que, como se verá, entre incentivos denominação para qualificar/nominar aquilo com diretos ou de outra natureza, resultou uma expansão que anteriormente, de forma tácita e quase uníssona, se concordava ao falar-se de uma instituição chama- sem precedentes das instituições/organizações parti- culares, como está fartamente documentado em diver- da universidade. Assim, a commoditycidade resumiria essa nova característica das Instituições de Educação sas investigações, como é o caso daquelas que resul- Superior que grassam país a fora, especialmente nos taram em recentes textos de Sguissardi (2013, 2014 e centros urbanos mais populosos, onde a presença de 2015), com inúmeras referências sobre o assunto. clientela, seja pelo número, seja pela pressão para "di- plomar-se", está assegurada. 2. Ressalte-se que, ao abordar a questão por este Em entrevista a Cinthia Rodrigues (iG São Paulo, 15/05/2013), Gabriel Mario Rodrigues, que comandaria o Conselho Admi- prisma não significa desconhecer ou secundarizar nistrativo do grupo educacional que se originaria da fusão dos o fato de que, após o final dos mandatos do governo grupos Anhanguera e Kroton, atribui um mérito ao Ministro da Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e parti- Educação, Aloizio Mercadante, por fortalecer o FIES. Afirma que com esse mecanismo, a participação do governo represen- cularmente no segundo mandado de Lula da Silva tará cerca de 40%, em termos das matrículas de alunos, que (2006-2010), a criação de universidades e campi pú- de outra forma estariam impedidos de estudar. Reforça ainda blicos foi retomada e a Educação Superior pública que, "para ele, o programa é o principal alvo das instituições superiores particulares no Brasil. As grandes instituições, que conheceu uma expansão que havia sido interrompida precisavam ter um número expressivo de alunos, acreditaram ou crescia vegetativamente. No entanto, também não muito no plano do FIES e investiram todo o seu arsenal de cap- se pode deixar de ter presente que essa expansão da tação de matrículas com esta estratégia" (...). "No fim o que as instituições precisavam era de financiamento com juros módi- Educação Superior pública, em anos recentes, fez-se cos como é o FIES. Só isso já vale por muita coisa". 76 77</p><p>Até o presente, em razão de se ter optado por sultado suficiente e proporcional à grandeza uma linha de tempo, reuniram-se alguns elementos da tarefa. Seria, no entanto, sempre possível da história da educação superior/universidade rela- que ele tivesse querido dizer algo de justo cionados tanto ao passado mais distante, quanto ao sobre esta perturbadora questão, o futuro passado próximo e até a situações atuais passíveis de dos nossos estabelecimentos de ensino, que imediata observação. Seria o momento agora de, além ele se propusesse repeti-lo diante de vocês; é de visualizar alguns indícios atuais, daquilo que se possível que os mestres que tiveram tenham está vendo e vivendo, fazer um exercício de prospec- sido grandes personagens, com capacidade ção, tentativa de auscultação e exame desses sinais do de predizer o futuro, e isto, à maneira dos presente mas portadores de futuro com o fito de romanos, examinando as entra- apreender ou prospectar alguns cenários para os pró- nhas do presente. (Nietzsche 2007, p. 49) ximos anos, caso se mantenha esta tendência que já se revela hegemônica. Neste e noutros escritos do jovem Nietzsche, Antes de seguir, na direção apontada, faz-se um aparece uma condenação inclemente da escola/uni- pequeno detour. Noéli Correia de M. Sobrinho tradu- versidade que, segundo ele, aceita submeter-se às ziu, apresentou e inseriu notas em uma obra que or- exigências do Estado ou do mercado. Além disto, em ganizou a partir de escritos de Friedrich Nietzsche termos da organização pedagógica, considerava as es- [1844-1900], que foi publicada pelas Editoras da PU- pecialidades uma verdadeira degeneração no caminho C-Rio e Loyola, com o título Escritos sobre Educação. da formação (Melo Sobrinho 2007, p. 36). Agregue-se Entre outros itens da obra, consta um no qual o au- que, nas condições da época, opinava que "a universi- tor trata do "futuro dos nossos estabelecimentos de dade não podia vicejar, não podia cumprir o seu papel ensino", que, na verdade, são algumas conferências de de formação" (idem, p. 35). Nietzsche sobre a Universidade alemã do seu tempo. A Tendo em mente essas manifestações do autor, forma como o filósofo inicia a "Primeira conferência" é e "olhando para as entranhas do presente" das nossas instituições de Educação Superior, poder-se-ia per- muito instigante: 0 assunto sobre o qual vocês têm a intenção 3. Ao investigar a este respeito, uma das pistas que se encontrou de refletir comigo é tão sério, tão importan- foi que o termo aruspicina ou aruspicação é utilizado para de- te e, num certo sentido, tão perturbador, signar a arte dos arúspices. Sobre o significado da palavra arús- que eu próprio, como vocês, me voltaria de pices, informa-se que eram sacerdotes romanos embora de origem etrusca que faziam prognósticos consultando as entra- boa vontade para o primeiro que me prome- nhas das vítimas oferecidas em sacrifícios. Carpinetti e Corrêa tesse ensinar algo a respeito disso, por mais (2009, 26) acrescentam que os três primeiros (arúspices) fo- jovem que ele fosse e por mais improvável ram levados a Roma por Rômulo. Esses acabaram, pouco a pou- prosperando a ponto de formarem uma verdadeira ordem. que fosse que ele por si mesmo pudesse, Além do exame das entranhas das vítimas, teriam a seu cargo com suas próprias forças, alcançar um re- interpretar os tremores de terra, relâmpagos, eclipses etc. 78 79</p><p>guntar: quais são os sinais que se desenham no hori- cadas houve em Santa Catarina duas universidades zonte? Quais são as indicações reveladoras do futuro públicas: a Universidade Federal (UFSC), situada em da formação dos jovens universitários, no plano Florianópolis, na capital do Estado e a Universidade diato, mediato e de longo prazo, a prevalecer a tendên- do Estado de Santa Catarina (UDESC) embora esta cia que vem se impondo como hegemônica no caso do fazendo parte do sistema ACAFE em alguns aspectos atual processo de expansão da Educação Superior? também situada na Ilha de Santa Catarina e com dois Campi no interior, em Joinville e em Lages. Sistema ACAFE é formado por um conjunto Um caso exemplar e representativo: a expansão da de Instituições, criadas por lei municipal, porém fun- Educação Superior(?) em Santa Catarina cionando nos moldes de universidades privadas, uma vez que cobram mensalidades dos alunos, sendo que sua natureza jurídica mais destacada é a de que são Devido a uma peculiaridade do Estado de San- públicas de direito privado. Porém, sua natureza é ta Catarina, mas ao mesmo tempo em função de uma bem mais complexa, uma vez que também fazem parte certa representatividade em relação aos demais Esta- da Associação das Universidades Comunitárias, bem dos da Federação, no que diz respeito à expansão da como das particulares, dependendo da situação, como Educação Superior neste Estado, logo adiante será mostra Siewerdt (2010) em sua Foram, por- mostrado um gráfico que é ilustrativo daquilo que se tanto, longos anos de domínio, praticamente absoluto, quer destacar. Antes disto, porém, explicite-se que a em termos de Educação Superior, por parte das afilha- peculiaridade de SC diz respeito ao fato de ser o único das à ACAFE, no interior do Estado de Santa Catarina. estado da federação que conta com uma Instituição/ A partir das facilidades (subsídios públicos, falta organização nos moldes da Associação Catarinense de concorrência etc.) para a expansão de instituições das Fundações Estaduais ou Sistema ACAFE.4 Por dé- públicos para crédito educativo ou para bolsas de estudo a fun- 4. Aos interessados recomenda-se a leitura da tese de Siewerdt do perdido?". (2010) e naquilo que aqui interessa mais diretamente, em 5. Aqueles que quiserem ter uma visão mais aprofundada des- particular dois subitens: um deles, intitulado "Filiações con- ta peculiar característica do Sistema Educacional Catarinen- traditórias: as IES municipais ACAFE no limbo entre o público se, com foco na ACAFE, encontrarão nesta tese de Maurício e o privado", onde se explicita a natureza jurídica diversa das Siewerdt valiosos subsídios. Basta ter presente que até início fundações do Sistema ACAFE, dependendo do "sabor das cir- dos anos 2000 o Conselho Estadual de Educação de Santa Ca- cunstâncias", contando com filiadas à Associação Brasileira de tarina recomendava e reconhecia os cursos de pós-graduação Universidades Comunitárias (ABRUC), ou vínculos com a As- stricto sensu, não levando em conta a existência da CAPES e do sociação Brasileira dos Reitores das Universidades Estaduais CNE nesse aspecto. É somente nos primeiros anos do século Municipais (ABRUEM) ou participando do Conselho de Reito- XXI que a FURB (Blumenau), a UNIVALI (Itajaf) e posterior- res das Universidades Brasileiras (CRUB) ou, ainda, vinculadas mente a UDESC (Florianópolis), a UNOESC (Joaçaba), UNISUL ao Sindicado das Escolas Particulares de Santa Catarina (SINE- (Tubarão), a UNESC (Criciúma) e as demais IES/ACAFE subme- PE) etc.; e o subitem referente ao artigo 170 da Constituição do terão concomitantemente a aprovação de seus cursos ao Con- Estado de Santa Catarina, com o título: artigo 170: recursos selho Estadual de Educação de SC, à CAPES e ao CNE. 81 80</p><p>e organizações privadas em especial o particular ou outras IES passam a expandir-se por todo o território privado-mercantil ou com fins lucrativos -, no Brasil, no decorrer e pós-governo FHC, o sistema privado é acometido de elefantíase, enquanto o sistema público também expande-se, mas em proporção que sequer se fundo de investimento Carlyle é norte-americano e o Vinci, aproxima da do privado, com as características men- nacional. Segundo o jornal Valor, o Carlyle teria comprado em cionadas entre travessões. E a expansão do sistema abril/2015 8,3% da empresa de hospitais Rede D'Or, pela qual privado-mercantil, no caso específico de Santa Catari- desembolsou R$ 1,75 bilhão. Disponível em: http://www.valor. na mas que pode ser estendido ao país, embora con- ticipacao-na-rede-dor. Acesso em: 21/03/2016. sideradas as características e peculiaridades de cada 0 Grupo Carlyle (Nasdaq: CG) é um fundo de private equity região torna-se um competidor-predador das insti- fundado em 1987, com sede em Washington, DC, que atua em 21 países nos seis continentes e administra um montante de tuições do Sistema ACAFE, ficando em segundo plano US$ 183 bilhões em 126 fundos, investe em 275 companhias/ a sempre tão ressaltada "concorrência desleal" que as empresas que empregam 675 mil pessoas, entre elas a TOK duas universidades públicas (UFSC e UDESC), afirma- & STOK, no Brasil, da qual possui 60% das ações. Disponível em: https://www.carlyle.com. Acesso em: 20/03/2016. Entre va-se, faziam à ACAFE. Em outras palavras: enquanto essas empresas contam-se diversas da indústria de defesa (ar- em Santa Catarina somente havia duas Universidades mas). A alta administração é encabeçada por seus fundadores, Públicas (localizadas quase totalmente na Capital) e oriundos do governo Entre seus ex-presiden- tes destaca-se Frank Carlucci, de 1992 a 2003, ex-vice-diretor as afiliadas do Sistema ACAFE ("donas" do Interior do da CIA (Gov. Carter) e ex-secretário da defesa e ex-vice-diretor Estado), um certo equilíbrio nas relações entre elas da NSA National Security Advisor (Gov. Reagan), que atuou na embaixada dos EUA no Brasil quando do golpe militar de 1964, sempre precário teria se mantido. ao lado do Cel. Vernon Walters. Ver http://www.counterpunch. Quando, no entanto, começam a surgir universi- org/2002/02/01/the-strange-career-of-frank-carlucci. Acesso em: 22/03/2016. Entre seus conselheiros seniors, destaca-se dades privado-mercantis, em território catarinense, e James Baker III, ex-secretário do Tesouro (Gov. Reagan) e ex- secretário de Estado (Gov. George Bush, pai) e o próprio ex-pre- sidenrte George Bush, pai. Entre representantes no exterior, o 6. Um caso exemplar é da Universidade Leonardo Da Vinci Grupo Carlyle contou com John Major, ex-primeiro ministro (UNIASSELVI confira: www.grupouniasselvi.com.br/pt_br/ britânico, na condição de seu presidente na Europa de 2001 conteudo.php?pag=90), criada em 1999, com sede em Indaial, a 2006. Para mais informações sobre o Carlyle Group ver ht- SC, contando hoje com 112 mil alunos, nos seus poucos cursos tps://www.carlyle.com. Acesso em: 20/03/2016. presenciais e muitos a distância. Em 2012 foi adquirida/incor- Grupo Vinci Partners é um fundo de private equity fundado porada pelo Grupo Kroton Educacional, por R$ 510 em 2009 por gestores do mercado financeiro nacional. Atual- Em julho de 2014, quando da incorporação desta Rede Anhan- mente administra R$ 21 bilhões em capital privado, imóveis, guera pela Kroton, uma das exigências do Conselho Adminis- ações e fundos de crédito. "Se as empresas com participação trativo de Defesa Econômica (CADE), do Ministério da Fazenda, acionária Vinci, via seus fundos de private equity formassem para aprovar a operação, foi a venda da Uniasselvi, que viria a um único grupo empresarial, este seria responsável por uma concretizar-se em outubro de 2015. A Uniasselvi foi vendida receita bruta anual de 15 bilhões e empregaria diretamente aos fundos Carlyle Group e Vinci Parteners, pelo valor de R$ 1,1 mais de 30.000 pessoas". o Vinci Partners já investiu em mais bilhão. Disponível em: https://www.carlyle.com/news-room/ de 40 empresas. Seus investidores são brasileiros e estrangei- ros. (http://www.vincipartners.com/ e https://www.carlyle. Acesso em: 20/03/2016. com/ - Acesso em 21/03/2016). 82 83</p><p>nacional e até no o 'jogo' deixa de ser en- Paralelamente a isto, no governo Lula da Silva é tre Sistema ACAFE versus UFSC/UDESC, ou entre uni- criada mais uma Universidade Federal, a Universidade versidades públicas e "públicas de direito privado". 0 Federal da Fronteira Sul (UFFS), com sede em Chape- confronto redireciona-se e começa a ser travado entre có e quatro campi no Paraná (Realeza e Laranjeiras do "instituições públicas de direito privado", que, em al- Sul) e Rio Grande do Sul (Erechim e Cerro Largo). E gum grau, querem e fazem ensino, pesquisa e exten- mais: a Universidade Federal de Santa Catarina expan- são, buscando concretizar o estatuto de universidades de-se com quatro campi Joinville, Curiti- versus "instituições" ou organizações privado-mercan- banos e Blumenau). A UDESC, por sua vez, multiplica tis, que estão preocupadas em conseguir clientes para seus campi pelo interior do estado buscando concre- sua tizar o objetivo de ser a "Universidade do Desenvolvi- mento do Estado de Santa Catarina". 7. Casos exemplares, entre outros, são a Estácio de Sá (RJ) e a É com essas informações que se torna possível Anhanguera (SP; agora, Kroton) ou algumas confessionais, como a PUC do Paraná adquirindo uma Fundação de Jaraguá visualizar, no Gráfico 1 e na tabela 1 a seguir a título do Sul. de demonstração, com possibilidades de generaliza- 8. Como é o caso da Estácio de Sá, ao adquirir uma universidade ções aproximadas -, como, no ano de 2008, vai ocorrer no Paraguai (Universidad de la Integración de las Américas UNIDA). Disponível em: http://proxy.furb.br/ojs/index.php/ uma surpresa flagrada por Siewerdt (2010), ao traçar rn/article/view/1298. Acesso em: 24/03/14. um "comparativo entre a evolução do número total de 9. José Rodrigues, em seu livro Os empresários e a educação matrículas nas Universidades do Sistema ACAFE, nas (2007) utiliza-se de duas categorias: a educação-mercadoria da mercadoria-educação e assim as distingue: Universidades públicas gratuitas e nas IES particula- "Existem duas formas básicas de a burguesia, isto é, o capital, res no Estado de Santa Catarina". encarar a educação escolar: educação-mercadoria ou mercado- ria-educação. Cada uma dessas perspectivas se liga diretamente Na tabela 1, organizada pelo autor, é possível à forma como o capital busca a autovalorização e cada uma delas verificar essa evolução, comparando os dados quan- é face de uma mesma moeda, ou seja, são formas sob as quais a mercadoria se materializa no campo da formação humana. titativos, incluindo uma nova instituição municipal, a Por um lado, se um capital em particular estiver buscando sua Universidade de São José valorização a partir da venda de serviços educacionais, tais como o capital investido em instituições de ensino, sejam elas escolas ou universidades, esse capital comercial tenderá a tra- tar a prática social educacional como uma mercadoria cujo fim é ser vendida no mercado educacional. Em outras palavras, 10. Embora tenham se passado quase dez anos do movimento serviço educacional, como um curso de graduação prestado flagrado no gráfico acima, de um lado algumas mudanças na por uma universidade (em geral, privada), é o caso típico da legislação a respeito da dependência administrativa das uni- versidades nos registros do INEP e, de outro, a radicalização do Se, por outro lado, a educação e o conhecimento são encarados movimento de expansão das privadas-mercantis, nos últimos como insumos necessários à produção de outras mercadorias, anos, permite optar por manter o gráfico 1 a título de exemplo como sói ser no processo produtivo, o capital industrial tende- do momento em que as linhas representativas vão afatando-se, rá a encarar a prática social educacional como uma mercadoria aproximando-se e cruzando-se em um movimento que reforça -educação" (2007, pp. 5-6). a tese da constituição e afirmação da commoditycidade. 84 85</p><p>GRÁFICO 1 Evolução do número total de matrícu- rativo com a situação de outros Estados da Federação. las nas IES do estado de Santa Carina 2000-2008 140.000 No texto de Sguissardi (2013) é possível encontrar elementos para traçar esse comparativo. A reprodução 120.000 de apenas um dos gráficos que o ilustram é suficiente 100.000 para visualizar, em nível nacional, o que acima se refe- re a Santa Catarina. 80.000 Os nódulos densos de questões teórico-empí- 60.000 ricas que envolvem e perpassam a expansão da Edu- 40.000 cação Superior no Brasil - embora não só! - nesses primeiros anos do século XXI, são um desafio para 20.0000 qualquer pesquisador que pretenda compreender o o que se passou e o que vem ocorrendo e visualizar 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006. ..2007 2008 perspectivas para o setor. Universidades ACAFE (direito privado) Particulares Uma questão que salta aos olhos é o recuo do Públicas gratuitas estatal-público no que diz respeito à responsabiliza- Fonte: Páginas eletrônicas da ACAFE, da AMPESC (Associação de Mantene- ção pela educação, que, até nas promessas liberais, doras Particulares de Educação Superior de SC) e da UFSC (Elaborado por Siewerdt 2010). no início da Modernidade, deveria ser assumida como uma questão de Estado, com as características de TABELA 1 - Evolução do número de pública, gratuita, laica e universal. Para além de um Matrículas das IES de Sta Catarina 2000-2008 recuo, pode-se falar em gra- IES 2000 2001 2002 2003 2004 2006 2007 2008 dativa desresponsabilização UFSC 16.363 17.111 18.632 18.710 18.949 21.589 25.737 24.157 estatal, quando se ultrapassa 18.869 11.791 a aparência daquilo que ainda UDESC 5.484 5.682 5.721 5.978 12.851 10.408 se denomina de público. Isto USJ 0 0 0 0 0 240 707 283 fica mais visível frente às evi- Total gratuito 21.847 22.793 24.353 24.688 37.818 33.620 39.295 34.848 dências de que o Estado Edu- Univ. ACAFE 100.044 100.750 107.246 115.153 120.249 123.563 124.047 115.294 cador cede gradativamente IES part. 9.298 11.964 23.252 27.808 35.127 69.453 espaço para o Estado Avalia- 79.600 121.500 dor (Seixas 2002; Magalhães Fontes: Páginas eletrônicas da ACAFE, da AMPESO e da UFSC (organizado 2006), terceirizando a respon- por Siewerdt 2010) sabilidade por aspectos essenciais da educação, sem Esses dados e informações falam por si a respei- contar a metamorfose pelo qual passa o processo de to deste caso público-privado de expansão de matrí- avaliação, perdendo esta a característica de ser forma- tiva, para transformar-se em reguladora, controladora, culas, que é de SC mas apresenta o potencial compa- rankeadora etc., como tão intensa e qualificadamente 86 87</p><p>vêm alertando, entre outros, Sguissardi (2008, 2009a, 2014 e 2015), na esteira das investidas nacionais e in- 2013, 2014 e 2015) e Dias Sobrinho (2008 e 2012). ternacionais das empresas de ensino, esforços no sentido de incluir a educação nos Acordos da Organi- GRÁFICO 2 Evolução e percentual do número de ma- zação Internacional do Comércio (OMC). trículas de educação superior por categoria administra- A associação entre dois dos três fatos referidos tiva (pública: federal, estadual, municipal; privada: con- no título deste subitem como um potencial fessional e comunitária, e particular) 1999- 2010 atentado contra a universidade que fizesse jus a esse nome, pelo que representa na afirmação e concretiza- ção da aqui denominada commoditycidade. É eviden- TOTAL GERAL te que não são apenas tais fatos que provocam esta transformação, porém, evidenciam-se dentre os mais vigorosos. primeiro fato refere-se à abertura de capital das empresas educacionais já autorizadas pelo De- creto n° 2.306/97, que se traduz, por exemplo, por sua oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) na BM&F Bovespa e que se completa com o segundo, da formação de monopólios e oligopólios a partir da aqui- Fonte: Brasil. MEC/INEP. Sinopse Estatística da Educação Superior, 2011; Grá- sição, fusão ou incorporação entre algumas das maio- fico elaborado por V. Sguissardi (2013). res empresas do setor No ano de 2007, esse segmento torna pública sua principal estratégia: A ida de "empresas de educação" à Bolsa de Valores, disponibiliza, para compra e venda, ações na Bolsa de oligopolização no educação superior e criação do Esta decisão, comum nas estratégias das em- INSAES: casos emblemáticos presas comerciais, ao ser aplicada à compra e venda de um produto chamado "educação/ensino", transforma esse "produto" em mercadoria/commodity, levando Ao mesmo tempo, é o veloz avanço do ao paroxismo a expressão "mercantilização da educa- ensino privado-mercantil, sendo que o lance mais recente nesse "jogo" é a transformação da educação em mercadoria (Silva Jr e Sguissardi 2005; Rodrigues 12. Sobre os monopólios e oligopálios no mercado educacional, ver 2007; Oliveira 2009; Chaves 2010; Sguissardi 2013, adiante. Analisando o contexto em que iniciativas como esta são desen- cadea todavia, é o quadro que se apresenta quando, entre as IES particulares, vai se instalando o monopólio das IES man- 11. Deixa-se de apresentar aquí números a este respeito, porém tidas por empresas de capital aberto, isto é, que passam a ne- os interessados encontrarão fartos e atualizados dados a este gociar grande parte de seu capital na Bolsa de Valores de São respeito em Sguissardi (2008, 2014 e 2015). Paulo (BM&F Bovespa)". 88 89</p><p>ção". A citação a seguir permite uma visualização de o economista Marcelo Cordeiro, da Fidúcia alguns protagonistas desse processo, evidencia algu- Asset Management, especializado em bus- mas cifras e sintetiza a concepção de "universidade", car investimentos para o (destaque de ensino e de aluno, nesse novo contexto da commo- nosso) ditycidade: Observe-se que, de agosto de 1997, data de edi- No saguão da Bolsa de Valores de São Pau- ção do Decreto 2.306, ao final de 1999, pouco mais de lo, o professor Antonio Carbonari estica o dois anos, cerca de 50% de mais de mil instituições terno, posa para um fotógrafo e faz planos de educação superior do país já haviam conseguido de estampar, ao lado de marcas consagra- aval do Conselho Administrativo de Defesa Econômica das no pregão, o nome da Anhanguera (CADE), do Ministério da Fazenda, para transforma- Educacional. "Estamos no verde, significa rem-se de organizações/instituições sem fins lucrati- que subimos. Fantástico", diz o empresário, vos em organizações/instituições com fins lucrativos recém-chegado ao mercado financeiro, em- ou privado-mercantis. Passados mais dois anos, em basbacado com o sobe-e-desce das ações. 2001, o Grupo Apollo Internacional (fundo particular Carbonari está encantado e tem suas ra- norteamericano de investimento em educação) asso- Seis meses após a abertura de capital, cia-se ao Grupo Kroton (então, Pitágoras, em 2001) a Anhanguera havia captado 512 milhões e, mais quatro, o Grupo Laureate Inc adquire 51% de reais, resultado excepcional para uma da propriedade da Universidade Anhembi-Morum- empresa tão nova na Bolsa. Outros dois gru- bi (2005), tendo como intermediário e "preparador" pos educacionais seguiram o mesmo cami- nho. Kroton, da rede Pitágoras, que tem desta universidade para esta operação o Fundo Pátria entre os sócios o ministro Walfrido dos Ma- Investimentos - "administrador do principal fundo de res Guia, conseguiu 479 milhões de reais. A investimentos em educação no país, responsável pela Estácio Participações, controladora da Uni- definição da estratégia de negócios da Anhanguera versidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, Educacional e proprietário de parte do seu capital" embolsou 447 milhões. COC, do interior (oliveira 2009, p. 743). 0 Pátria Investimentos, em paulista, está em negociação com os inves- 2006, assume 70% do controle da Anhanguera Edu- tidores. Outras tantas escolas estão ávidas cacional que, então contava com 20 mil alunos, quatro por participar da bonança financeira que faculdades e um centro universitário. Para essa opera- o ensino superior atravessa, nova aposta ção o Pátria Investimentos teria contado com um apor- dos investidores brasileiros e estrangeiros. "Vejo o mercado de educação como um su- permercado. Estou vendendo um produto. Só que, em vez de vender tomate, meu produto é Confira: um assento para o aluno compara codigo=28147. Acesso em: 04/07/2013. 91 90</p><p>te de US$ 12 milhões da International Finance Corpo- E foram muitas compras da ration (IFC), do Banco Mundial (ibidem, p. 745). Fator Corretora aponta Estes fatos, entre outros, ilustram início da realizou 34 de fusões e aqui- fase mais incisiva do processo de mercantilização da sições em 2008, movimentando ES no país, que será marcado especialmente pela aber- e atingindo mais de tura de capital e IPO na BM&F Bovespa dessas duas (Minto 2009, apud Sguissardi 2014) empresas e mais outras duas em 2007: Anhanguera Educacional, Kroton, Estácio Participações e Sistema Para aquilatar o significado desse passo decisi- Educacional Brasileiro (SEB). VO do processo de expansão e mercantilização da edu- Sobre estes eventos cabe transcrever parte de cação superior, em que o mercado educacional adqui- uma reportagem da mídia da época: rirá incomum entre as mais de trezentas empresas de 15 setores da economia listadas na BM&F Bovespa, observe-se o crescimento do montante de Em pouco mais de um ano, o mercado de matrículas de cada uma dessas quatro companhias, ações brasileiro propiciou o investimento entre os anos 2008 e 2013, na tabela a de R$ 1,9 bilhão em escolas, faculdades e universidades de todo o País. Entre mar- de 2007 e abril de 2008, o montante TABELA 3 Montante de das que abriram capital fizeram na 2007 Anos 2008 a 2013 foi levantado por ofertas primárias (IPOs, na sigla em inglês) de quatro companhias 2008 2013 do setor: Anhanguera Educacional, Está- cio Participações, Kroton e Sistema Educa- Companhias cional Brasileiro (SEB). É o equivalente a 3,16% dos R$ 60,2 bilhões gastos pelo Mi- nistério da Educação em 2007. dinheiro Estácio Participações 192.000 5,0 315.700 5,8 serviu para a ampliação de vagas, criação de novos cursos, capacitação de professores, Anhanguera Educacional 140.000 3,6 442.000 8,1 melhoria de infraestruturas e aquisições. Kroton (Pitágoras) 26.000 0,7 519.000 9,5 SEB (COC)* 9.517 0,2 15. "Os aportes do International Finance Corporation (IFC), do Subtotal 367.517 9,5 1.276.700 23,4 Banco Mundial, irão se suceder, como já visto, na aquisição dos 49% de ações da Universidade Anhembi-Morumbi, em 2013, Total do setor privado 3.858.792 100,0 5.448.730 100,0 no valor de US$ 150 milhões e na compra de R$ 45 milhões 0 SEB, em sua divisão de ensino superior representada pelo em ações da Ser Educacional, quando de seu IPO também em Centro Universitário UNISEB, foi vendido para a Estácio Parti- 2013". Disponível em: cipações, por R$ 615 milhões em 2013. (Disponível em: http:// ticia/verNoticia/289. Acesso em: 02/06/2014" 2014). 93 92</p><p>Assim, tenta-se destruir o que resta de es- Acesso em: 05/08/2014). Sua divisão de educação básica, representada pelo COC (Colégio Osvaldo Cruz), Dom Bosco e sência pública nas universidades. Mas essa Pueri Domus e Name foi vendida para o Grupo inglês Pearson comunhão já experimentou, ao longo de por RS 613 milhões em 2010. (Disponível em: http://noticias. um milênio, várias tentativas, políticas e religiosas, de instrumentalizá-la, retiran- Acesso em: 05/08/2014). do-a do cenário público. Reis, papas, mer- cadores, ensaiaram e conseguiram reduzir Fonte: Tabela montada com dados de Ito (2009, p. 24) e Maia (2014, p. 39). a universidade a um meio de imposição, 2014). propaganda e censura dos espíritos livres. Como veremos a seguir, esta história da Como já se disse, universidade é pouco edificante. Agora, tenta-se colocar mais uma trava no pen- Os dados falam por si: em apenas cinco samento acadêmico, reduzindo-o ao es- anos esses quatro players ampliaram seu tatuto de supermercado disciplinar, onde número de alunos em 247,4% e multiplica- os clientes (Estado, Igrejas, empresas, alu- ram 2,46 vezes sua participação percentual nos) compram e encomendam que lhes no mercado (market share). destaque fi- dará ganhos imediatos, sem considerações cou com a Kroton que, antes de sua fusão maiores pela sociedade dominante, a qual com a Anhanguera, nesse período, aumen- esmaga os excluídos do happy few, os que tou o seu montante de alunos em 1.896% não podem pagar por mercadorias exclusi- ou quase 20 vezes, passando de 26 mil em víssimas. (1998, p. 15) 2008 para 519 mil em 2013, e multiplicou 13,7 vezes sua participação percentual no Certamente nem nas previsões mais negativas mercado. Apenas para efeito de compara- ocorreria ao autor que, menos de dez anos após essa ção: a USP, a maior universidade pública do sua manifestação, a condição da universidade, da edu- país, levou 80 anos, que completa este ano, cação superior, dos alunos, chegaria a esse extremo re- para atingir o montante de cerca de 60 mil presentado pela "mercadoria/ensino" que se negocia estudantes de graduação. (Sguissardi 2014) na bolsa de valores. E mais do que isto, não é somen- te fato de o pregão da bolsa ser o objetivo. 0 pouco Em texto, que se pode dizer premonitório, de que ainda foi possível ver, mas já sendo o suficiente, é 1998, Roberto Romano apontava para algumas ques- que essa estratégia obedece aos parâmetros da lógica tões, referindo-se ao histórico da Universidade, desde do capital. E, neste caso, não haverá entraves para a a época das Luzes aos dias atuais, que já antecipava as- competição, seja entre os grupos privado-mercantis e pectos que hoje, como se viu, não são mais questões destes com as instituições públicas de direito privado, que se desenhavam no horizonte, mas fazem parte da com as confessionais e comunitárias, enfim com todas realidade presente. Dizia o autor: 95 94</p><p>aquelas de outras instâncias administrativo/juridicas Antes de tudo, é necessário enfatizar que que ainda tenham alguma preocupação com a asso- são exatamente os organismos multilaterais financei- ciação ensino-pesquisa-extensão ou que teimem em ros (Banco Mundial, Banco Interamericano do Desen- manter-se universidades. E, para além disto, a compe- volvimento) e de coordenação mundial do comércio tição não conhecerá limites nacionais, uma vez que o de serviços (Acordo Geral de Comércio de Serviços capital é transnacional. da Organização do Comércio), os incenti- Como prova cabal da transnacionalização des- vadores e reguladores do mercado educacional em se setor sui generis da bastaria verificar a nível planetário. Escamoteados pelas "marcas" desses participação nessas companhias que se ocupam da players, companhias ou grupos empresariais, escon- commodity ensino ou educação dos chamados fun- dem-se, no dia a dia, bancos e fundos de investimento dos de investimento (private representantes nacionais e, em especial, de que a IFC do setor financeiro, hoje hegemônico na economia em (International Finance? Corporation), braço financeiro âmbito nacional e internacional. do BM, e tantos outros não são mera ilustração. (Sguis- sardi 2014). Como já visto, o setor financeiro, não indus- 16. Avolumam-se as análises da trial ou outro, faz sua entrada no setor educacional em da educação como exemplarmente representado pelo Proces- 2001, quando da associação da Kroton (então Pitágo- so de Bolonha (Robertson, 2009 e Bianchetti, 2015) desse particular capitalismo, adjetivado de "acadêmico", para tornar ras) com o Apollo Internacional, seguida pela compra, explítica a invasão desta lógica na universidade em particular em 2005, do controle majoritário da Universidade e na educação em geral, alargando o conceito de "mercado" Anhembi-Morumbi pela Laureate Inc e pelo controle, para aí inserir a educação como mais uma das mercadorias a circular. No que diz respeito ao "capitalismo académico" ver em 2006, de 70% das ações da Anhanguera Educacio- Slaughter e Rhoades (2004) e Paraskeva (2009) nal pelo Pátria Investimentos. Esta entrada, que teve o 17. Os fundos de private equity são os que investem diretamente em empresas já consolidadas, visando geri-las, reestruturar endosso e participação da IFC do Banco Mundial, irá sua "governança", prepará-las para a oferta inicial de ações consolidar-se a partir da abertura de capital das qua- (IPO), e operar o desinvestimento a longo prazo. Podem atu- tro companhias já referidas, em 2007. ar em empresas nos processos de fusão e compra. Dentre os maiores gestores desses fundos, em nível global, podem ser lis- Em recente texto, no qual trata da temática uni- tados o KKR, o Blackstone Group [...] e o Capital Group [...]. No Brasil, destaca-se a atuação, pelo volume de investimento, do versidade, Almeida-Filho (2012), tendo presente o Advent International [...] do GP Investiments [...]. Os recursos espírito empreendedor/predado que está crescen- de private equity podem ser investidos em empresas de capital temente instaurando-se na educação, denomina de aberto, "para alterações financeiras, operacionais ou estratégi- cas, visando a um novo posicionamento no mercado". IG Eco- vikings esses empresários ou as multinacionais que nomia, disponível em: http://economia.ig.com.br/mercados/ negociam com essa peculiar mercadoria chamada mente/n1237772600206.html. Acesso em: 03/08/14. (Sguis- educação: sardi 2014). 96 97</p>