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<p>HANS BLUMENBERG A LEGIBILIDADE DO MUNDO GEORG OTTE Tradução )</p><p>PREFÁCIO "O que queremos saber" poderia ser a pergunta que, durante os dois séculos que se passaram desde a Crítica da razão pura, ocupou o lugar de uma de suas perguntas fundamentais, qual seja: "O que podemos saber?" A sabedoria de Sócrates, segundo a qual não sabemos nada, não teve como se manter quando o saber avançou e os sucessos do conhecimento se tornaram evidentes. Saber aquilo que não temos como saber tornou-se objeto da razão crítica. Desde então levantou-se a suspeita, difícil de ser descartada, de que, talvez, soubéssemos demasiadamente ou, pelo menos, não soubéssemos aquilo que queríamos ter sabido, quando o nosso querer ainda tinha um objetivo: quando a curiosidade ainda era o motivo do conhecimento. A pergunta para saber o que era aquilo que teríamos querido saber não deve nos deter ao entendimento de que, na história, os resultados sempre ficam aquém das pretensões. É de se supor que as decepções também merecem ser estudadas porque sua indeterminação inquietante representa um ponto na escala que vai da resignação até a ira do mundo. O que era aquilo que o saber parecia oferecer quando se apresentou como promessa? Como o mundo deveria se apresentar para que a incerteza de como lidar com ele não fosse mais o motivo de um mal-estar? As perguntas que poderíamos acumular dessa maneira pas- sam a impressão de algo que quase esquecemos. São contrárias</p><p>a todos os parâmetros do que se pode saber, do que é digno de saber, e se afundaram em todos os resultados da ciência como aquilo que agora não importa mais, tendo em vista os avanços feitos. A "metaforologia" é um procedimento para detectar os vestígios desses desejos e pretensões que nem precisam ser rotu- lados como "recalcados" para achá-los A expectativa de que não se realizariam, e dificilmente se realizarão um dia, também são fatos e fatores, são abordagens para provocações e seduções que surgem constantemente até chegar ao delírio do "Vogliamo tutto!" ["Queremos tudo". em italiano]. A insatisfação com os desejos subterrâneos por uma experiência intensiva do mundo leva à criação de mestres exó- ticos, de esforços para sermos inaugurados no indizível e ainda de treinadores para praticar levitações no sentido mais amplo, inclusive no sentido metafórico. Os desejos levam para aqueles lugares onde os próprios desejos se formaram e aninharam, atra- vessando os disfarces de suas tradições. Se, em algum momento, um único livro promete conter toda a verdade, essa forma básica da posse da verdade se torna indispensável, rivalizando com ou- tras formas, principalmente quando estas se apresentam apenas com a ressalva do "trabalho infinito". Sob o título da "Legibilidade do mundo" somente se pode reunir episódios. Mas estes indicam uma continuidade do desejo, que não é a continuidade de suas manifestações, do seu e de sua retórica. O fato de algo permanecer apenas episódico não o desmente. A maior parte dos anos ou dos séculos não re- flete a densidade da história. A obstinação com que muita coisa retorna e com que inventa suas metamorfoses nos deixa mais pensativos do que outras coisas que simplesmente permanecem. Mas o que está em jogo é também o perigo do delírio causado por aquilo que volta, disponibilizando sua energia de desejo para o momento favorável da história: apresenta-se como futuro palpável o que só pode ser o corretivo de momentos presentes. Por esse motivo, o complexo metafórico da "Legibilidade do mundo" é, também, um fio condutor que leva à sobriedade. 8</p><p>salto direção à utopia pode ser cm todas as fases do fracasso: renunciar domínio da natureza para sua familiaridade, conhecer os verdadeiros nomes das coisas das exatas para fabricação, renovar a de entregar no dos experimentar a expressão das proprieda des conhecer sentido dos fatores - tudo isso são que também não perdem sentido por não serem tomados por promessas de realizações. conceito da experiência passou por de longa duração. A partir do seu fica imaginar que a legibilidade pode ser uma para a experiência, que cla o seria ainda ou poderia voltar a A experiência é consi- derada como a forma mais disciplinada de lidar com () mundo por levar diretamente ao juízo assim, soluções defini- tivas, porém provisórias em que consiste a história das teorias e das ciências. Talvez foi só descrédito em relação à "expe- riência de vida" nos movimentos de juventude desde () Sturm und e sua transformação na forma degenerada de tudo que a vida tinha a oferecer, que levou à perda até mesmo da simples suposição de que a experiência pudesse ser mais rica do que a totalidade de procedimento de corroboração e refuta- preestabelecidas nos métodos ou decorrentes das teorias. A pessoa com experiência, qualquer que seja a como chegou à sua posse, é uma figura A reflexão sobre a linguagem para saber como a pessoa altamente experimentada se transforma numa pessoa com expe- riência é de pouca utilidade se tudo acaba em adquirir experiência alheia, o que faz com que os nossos conectados à mídia dependam de exércitos de funcionários da experiência. Nesse contexto, a legibilidade é algo suspeito: a experiência é adquirida pela leitura, sem ser a própria. As dúvidas aumen- tam quando a metáfora da legibilidade mantém vivo aquilo que pode estar perdido ou nunca passou do estágio do desejo, mas 9</p><p>sobreviveu como figura da familiaridade com um sentido que pode se negar ou resta a ser sentido como algo negado. Desde a fenomenologia - ou antes a experiência volta a ser algo que, embora sustente e justifique juízo, não se funde nele. A intuição (Anschauung) torna-se a denominação para as realizações para as quais nenhum esforço da descrição pode fazer jus. Não se trata mais de "objetos", quase preparados para sua adequação ao juízo, mas de horizontes, estruturas de sentido, tipologias de expectativas, expressão e mundo. A filo- sofia da vida opôs a "vivência" (Erlebnis), como possibilidade de originalidade, ao conceito ultrapassado da experiência; e não deixa de ser notável que o positivismo, com suas "vivências não trabalhadas", queria mesmo concorrer pelo elementar e o assin- tético. Sob o título da "legibilidade" contesta-se que somente a tão falada "práxis" fornecesse a riqueza da experiência além de seu emagrecimento. A mera fruição do mundo, a posição do espectador, a abertura não utilitária da visão de mundo, também contêm algo dessa experiência. Ainda se trata de questões essenciais então? Mesmo arris- cando contrariar algumas pessoas, também em relação ao essen- cial temos que perguntar: essencial para quem? Pois não apenas os nossos entendimentos são essenciais porque poderiam permanecê-lo, mas também as nossas perspectivas (Ansichten), mesmo podendo não permanecê-lo. homem é um ser tanto de perspectivas quanto pode ser, ou vir a ser, um ser de entendimentos. Onde tiver ou onde providenciar um mundo para si, contenta-se com uma "perspectiva do mundo" (Weltansicht), sem uma chance de chegar ao "entendimento do mundo" (Welteinsicht), mesmo sem ceticismo. A investigação das metáforas se detém na fase preliminar dos entendimentos, para garantir às perspectivas seu direito. 10</p><p>21. TORNAR OS SONHOS LEGÍVEIS A quem que seja que a Germanística tenha atribuído ultima- mente a peça preciosa em prosa intitulada A natureza, Sigmund Freud a considerava como um texto de Goethe, fazendo da data em que tomou conhecimento dele pela primeira vez o dia de sua decisão pela ciência da natureza. Era aos domingos que o professor de Zootomia Carl ministrava conferências visando a divulgação de conhecimentos com base no darwinismo. Entre seus recursos para captar o interesse das pessoas constava também o texto que se encon- trava nas edições da obra de Goethe e que celebrava, de forma exaltada, o pertencimento do homem à natureza e sua riqueza sempre renovada de formas. No entanto, não se escondia a estra- nheza e o estranhamento do homem em meio a essa natureza à qual pertencia presumivelmente. Devido aos seus procedimentos ardilosos, atribuía-se à própria natureza aquilo que iria desafiar a curiosidade teórica de Freud durante toda a sua vida, a saber: o entrelaçamento psíquico entre o obscurecimento e a revelação: "Ela fala conosco sem parar, e não nos revela seu segredo." Esse fenômeno de falar sem parar e de não dizer nada de essencial ao mesmo tempo, a não ser que se encontrasse um procedimento voltado contra o procedimento da natureza, é a fórmula prévia para a definição que o próprio Freud deu à sua postura teórica. Mesmo se aquela frase em que Freud, em seu "Estudos auto- de 1925, relata de maneira</p><p>lacônica sua "conversão" graças a Goethe fazer da dadosa estilização, comum nas suas essa parte de sua biografia se confirmou de fidedigna com a descoberta inesperada de sua correspondência trocada com amigo de juventude, Emil Da mesma que Freud, em sua correspondência com Wilhelm Fließ, queria que a data da descoberta da interpretação dos sonhos fosse fixada no dia 24 de junho de 1895 sendo que confiou isso a ele, com um atraso de cinco anos, em 12 de junho de 1900 -, um quarto de século antes ele anunciou ao amigo de Freiberg, sua cidade de origem, a conversão com todos os índices da importância atribuída. Em 17 de março de 1873 ele escreve: "Da minha parte, eu poderia anunciar-lhe uma novidade que é provavel- mente a maior da minha vida miserável. (...) Se esta vida tiver algum valor um dia será graças a esse evento." O amigo deve ter respondido cometendo um ato falho estranho na forma de uma leitura equivocada, que Freud ainda não entendeu direito nesse momento: "De qual eu teria falado, em sua opinião, de maneira tão devota e melancólica? Será que não a chamei de 'evento', ou de projeto?" Só agora ele estaria em condições de falar abertamente porque, até esse momento, ele não teria creditado totalmente a si próprio aquilo que agora estava certo como só um projeto humano poderia estar: "Se eu tirar O véu, será que não ficará decepcionado? Tente agora: me dei conta que serei um pesquisador das ciências naturais Não se deve dar muito valor à diferença na denominação das de- cisões a pesquisa científica nesse momento, a Medicina 50 anos mais tarde. Para Freud, não apenas a Medicina, mas também sua versão da Psicologia sempre fizeram parte das ciências naturais. Muito mais importante para interesse da metaforologia é a diferença entre texto que desencadeia a conversão e a ideia que Freud se fazia das ciências naturais. Se encontrou em Goethe a ideia de que a natureza fala ininterruptamente com homem, deixando-o sozinho com um segredo não resolvido, ele seu próprio procedimento inicialmente na continuidade 350</p><p>da decisão original de tornar-se advogado, decisão esta para a qual havia cobrado do amigo a promessa para que lhe passasse todos os seus processos. Agora ele não precisaria mais dessa promessa, pois cuidaria de atas e processos de outra ordem. A forma escrita e a legibilidade formam a ponte entre o velho e o novo plano de vida: "Vou estudar as atas milenárias da natureza, talvez escutando pessoalmente seu processo eterno e compartilhando meu ganho com todo mundo que quiser apren- der alguma coisa." A metáfora é uma substituição um tanto jocosa no texto atribuído a Mas sua escolha não se dá por acaso e comprova a afinidade com certo tipo exegético de experiência da natureza que antecipa o conflito, presente na Psicanálise desde o início, entre a intimidade da análise, ou autoanálise, do terapeuta em analogia ao sigilo do estudo dos processos jurídicos - e do dever público do teórico. Quando Freud recebeu o Prêmio Goethe em 1930 da cidade de Frankfurt, o secretário do comitê de premiação, Alfons Paquet, fez uma referência expressa à sua "conversão" pre- coce para as ciências naturais sob a influência de Goethe, sem mencionar as dúvidas dos filólogos quanto à autenticidade do texto discurso na Casa Goethe de Frankfurt, no en- tanto, cuja leitura Freud teve que deixar para a sua filha Anna, esforçou-se para mostrar a obediência irrestrita em relação ao pai espiritual dessa ligação às ciências naturais. Tratava-se de utilizar a oportunidade dessa homenagem extraordinária não apenas para falar da "relação de Goethe com a Psicanálise", mas também para defender os psicanalistas contra a crítica de que tivessem "faltado com o respeito em relação à sua gran- deza quando o transformaram em objeto de suas tentativas Se já havia aprendido e ensinado a levar em conta a resistência de seus contemporâneos como reação inevitável às suas Freud não hesita em apresentar Goethe como exceção possível, porém historicamente não alcançável, nessa resistência contra sua obra: "Penso que Goethe, ao contrário de tantos nossos, não teria rejeitado a Psicanálise 351</p><p>com essa animosidade." Inversamente, a Psicanálise não teria contribuído nada para a compreensão da grandeza de Goethe que fosse comparável aos outros exemplos de sua vontade de interpretação estética. No final do discurso, Freud dá uma explicação para aquilo que certamente não foi entendido sem uma projeção a ele mesmo e muito menos pode ser lido sem ela na retrospectiva: "Mas confesso que, no caso de Goethe, ainda não chegamos muito longe. A razão disso é que Goethe não era apenas um grande confessor como poeta, mas também, apesar do grande número de registros autobiográficos, um dis- simulador cuidadoso." Recorrer à chamada "leitura privada" de Freud é algo dife- rente da descoberta de fontes. Apenas o exemplo de "Sobre a natureza" comprova a intensidade da experiência que era capaz de vivenciar em relação ao lido e ao legível. Nesse sentido, a correspondência de juventude com o amigo Fluß nos ensina ainda de maneira prospectiva quão estreita a predisposição míti- co-literária e a experiência autóptica estão imbricadas em Freud. Bem no final de sua vida, em "Moisés e o monoteísmo", todo o "diagnóstico" psíquico voltará para o estado da "literatura". Naquela carta dos primeiros anos, de 17 de março de 1873, na qual anuncia sua conversão profissional, também se diz alguma coisa sobre uma leitura que soa óbvia para um aluno prestes a se formar no ginásio: "Preciso ler várias coisas dos clássicos grego e latino para mim mesmo, entre eles o Rei Édipo, de Sófocles." Quando relata depois, em 16 de junho, sobre o exame final, lemos algo que também sabemos do relatório anual do ginásio, a saber, que, para a prova escrita de Grego, ele tinha que traduzir 33 versos do Rei Édipo e que Freud obteve o melhor resultado de todos: "eu também havia lido a passagem para mim mesmo e não fiz segredo disso". Depois de tudo que sabemos da dis- posição de Freud de levar a significância e o caráter de signo das coisas até um extremo fatalista, a predisposição para a questão da prova, que beira a adivinhação, não tem como tê-lo deixado indiferente. Quase qualquer criança sabe hoje de que maneira Freud voltou depois ao Édipo como matéria original da sua 352</p><p>imaginação teórica. Agora sabemos, além disso, com quanta proximidade à forma original do interesse pela natureza surge literário protótipo de seus "segredos". É na correspon- dencia com Wilhelm FlieR que encontramos conflito a partir da de Freud um conflito em cuja onipresença se a explicação para "poder impactante" da tragédia do Rei Édipo. Mas, só em 1910, Freud realizou a denominação mais impactante para complexo antes denominado de "complexo nuclear" (Kernkomplex). Outra década mais tarde, Freud publica uma invenção teó- rica que, embora não alcançasse a fama do complexo de iria superar este quanto ao seu caráter duvidoso: a da pulsão de morte como parte do novo dualismo das pulsões. É sabido e não precisa ser relembrado que, neste caso também, ele se apoiou num fundamento literário através da transformação de uma citação de Shakespeare do Henrique IV, ao qual já havia recorrido em A interpretação dos sonhos para sonho das três A maneira sui generis de lidar com esse grande termo encobriu fato de que a ideia básica da "pulsão de morte" remonta para tempos muito mais remotos, convergindo com texto "Über die Natur", próximo ao exame final no giná- Nesse texto, cuja leitura jovem de 17 anos acompanhou, perto da passagem sobre a natureza que fala aos homens e que guarda, assim mesmo, seus segredos, a outra que diz que "a morte [seria] seu artifício para gerar, infinitamente, vida nova". É justamente a ideia de a natureza estar repleta de ardis, de ela se servir, para alcançar seus objetivos, da ilusão e das neuroses e que ela traria à tona aquilo que não pode oferecer de forma aberta, isto é, por meio de codificações diversas para burlar a censura do sujeito, que já se encontra na fórmula da morte en- quanto artifício da natureza que Freud acabaria transformando no conceito-chave dos destinos de pulsão. A astúcia e artifício existem sobretudo no contexto do Eu do Id, da consciência e do inconsciente. ignorar isso como sendo mito do aparelho psíquico, se as chances da 353</p><p>teoria de aproximar-se de processos e conteúdos não residissem exatamente no procedimento que consiste em enganar Eu como instância Pois somente pelo fato de a censura ter que ser burlada ou minada surge a neces- sidade de codificar os conteúdos que, enquanto pensamentos de sonho latentes, são tão pouco acessíveis a um observador teórico externo quanto costumam ser os pensamentos de outra pessoa. Somente pelo fato de ter que adotar, necessariamente, estado da legibilidade da manifestação, mesmo codificada, eles são relativamente objetivados ou objetiváveis. Pois algo que é legível pode ser acompanhado pela leitura (mitgelesen werden) [algo como "ler em Em todas as situações analíticas, não se trata de legibilidade originária, mas de uma legibilidade paralela [algo como secundária. Isso não é óbvio porque a história da Psicanálise, como se sabe, começou com o para- doxo da autoanálise do seu fundador, da qual se diz que seria a única que foi levada até Em "Estudos autobiográficos", Freud não havia mencionado esse ato fundador da escola; e, para esse momento tardio, teríamos que admitir que os ganhos alcançados através da situação analítica básica, principalmente da transferência (Übertragung), teriam que banir esse golpe ao modo do barão de Münchhausen para o reino dos mitos de fundação. Mesmo assim, para o conceito de experiência que surge com A interpretação dos sonhos, o fenômeno da autoaná- lise possui uma importância incomparável. É no contexto desse fenômeno que se situa tudo que tem a ver com a metáfora da transformação em leitura. Apesar disso, eu não iria até ponto de dizer que a legibi- lidade fosse ideal da experiência que se apresenta à e que se deve construir na Psicanálise. Isso já se sugeriu com a metáfora do ardil: a legibilidade se dá por meio de um artifício secundário que, por sua vez, só passa a ter validade devido a um impedi- mento do processo primário. A legibilidade enquanto forma 354</p><p>de do objeto é um artefato, ou um derivado que de uma concessão. assim for, teremos que perguntar em um segundo mo- se existe mesmo um acesso à idealidade do conhecimento mento Ele existe, porém a solução deixa um rastro de solução não leva a Psicanálise à sua perfeição, mas à perda funcional, que só não pairava como ameaça acima das expectativas de Freud porque este considerava ideal como e nem de uma aproximação. ideal é a dissolução de todos os processos psíquicos em reações químicas, é ponto culminante da possibilidade de por fatores químicos. A alma (Seele) é um con- provisório para aquilo que ainda escapa demasiadamente, talvez definitivamente, enquanto complexo químico, da nossa análise real. Freud alude a isso apenas ocasionalmente, porém de maneira suficientemente clara. Não há como deixar essa ideia simplesmente de lado, porque, em sua forma básica, ele não se limita à Psicanálise, mas volta também na metáfora da legi- bilidade no caso do substrato genético: "O edifício teórico da Psicanálise que criamos é, na verdade, uma superestrutura que, algum dia, terá que ser assentada em seu fundamento orgânico; mas não o conhecemos ainda." Isso foi dito na grande confe- rência dupla da Primeira Guerra e uma década após a adoção da "glândula pubertária" na seção sobre a teoria química das "substâncias sexuais" (Sexualstoffe) do terceiro dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de 1905.7 No contexto dessa perda, utópica para Freud, da função da Psicanálise no quimismo geral não se trata apenas da adaptação ao padrão teórico das ciências naturais, das quais a Psicologia, para Freud, fazia parte até o final ("O que mais ela seria?"), mas trata-se da correção da distorção perspectiva decisiva na relação entre consciência e inconsciente, entre Eu e o Id - e que tem que ser acompanhada pelo é in- o teresse terapêutico na medida em que, nessa relação, o Id 355</p><p>fator perturbador do Eu que tem que ser Mas, na teoria, prevalece o inverso: toda a natureza é inconsciente em todos os seus processos, sendo a consciência, na melhor das um caso de escapismo com fim incerto que, nesses casos de suposta perturbação, deve ser chamado à ordem, isto é, ao universalismo da espécie. A teoria da psique tem que par- tir da normalidade do inconsciente, por mais desagradável que seja para o sujeito ter que se deixar lembrar da falta de sentido das suas exigências de um sentido consciente que nada mais faz do que sua funcionalidade em relação à vontade da espécie. Também nesse sentido, sono é exemplar, sendo estado acordado o intervalo e o sonho sinal do interesse mais profundo contra a ameaça do despertar. No começo da segunda versão de Abriss der Psychoanalyse, iniciado já em Londres, em 1938, Freud escreve que o psíquico, o que for sua natureza, "em estado inconsciente, seria provavelmente semelhante a todos os outros processos da natureza das quais temos conhecimento". Esse ajuste da situação objetiva, evidentemente, não mudaria nada na diferença entre o inconsciente e a consciência para nós, que fomos agraciados ou flagelados pela consciência. A metá- fora de Freud não deixa dúvida onde ele quer pôr acento: a "qualidade da consciência (...) resta a única luz que nos ilumina e guia no escuro da vida Se Freud, mais que três décadas antes, havia falado do "fun- damento orgânico" do seu edifício teórico e do seu quimismo, ele se orientava sobretudo pela sintomática de determinadas neuro- ses, que apresentam semelhanças com estados que se produzem sob a influência de certas substâncias tóxicas e sua abstinência aguda; mas também com fenômenos que já são conhecidos como consequências de substâncias produzidas pelo próprio corpo, como no caso da doença de Graves. Não haveria como fugir da analogia de considerar também as neuroses como consequências de distúrbios dentro de um metabolismo sexual desconhecido. Mas um título como "Quimismo da sexualidade" seria "uma disciplina sem conteúdo". 356</p><p>Isso tem consequências para a terapia. A Psicanálise não é um procedimento causal em sentido estrito, que está ligado ao fato de mesma, ao contrário dos artifícios da natureza, ter que se servir de ardis, por exemplo no caso da exploração cada vez mais importante da "transferência" na situação Inicial- mente, ela era vista como elemento perturbador da resistência, ate ficar claro que a mera mobilização da lembrança do paciente ainda não era suficiente para ativar a carga energética desviada. Mas o que seria uma terapia causal? A resposta de Freud é a ficção de que "seria possível, por meios químicos, intervir nessa engrenagem, aumentar ou diminuir a quantidade da libido disponível ou reforçar uma pulsão em detrimento de outra. Isso seria uma terapia causal propriamente dita Em que teria consistido então - ou consistiria ainda a contribuição da Psi- Ela continuaria sendo trabalho preparatório indis- pensável de reconhecimento" para a intervenção química. Uma vez que a Psicanálise estaria muito distante dessa intervenção, a terapia psíquica atacaria em outro lugar que não poderia ser equiparado à causalidade dos fenômenos patológicos e que não estaria "exatamente nas raízes visíveis dos fenômenos, mas sim suficientemente distante dos sintomas, num lugar que se tornou acessível por vias bastante curiosas". Mesmo nas especulações mais ousadas sobre os destinos de pulsão resta a ressalva de que tudo isso resultaria da falta de um conhecimento confiável dos processos fundamentais. Quando Freud, em 1914, adota o termo "narcisismo" para fornecer uma explicação energética para certos desvios da realidade, ele ob- serva de forma expressa que "todas as nossas explicações psi- cológicas provisórias um dia deverão ser colocadas no solo de suportes orgânicos". 11 No entanto, até termos conhecimento das substâncias e dos processos químicos que surtiram os efeitos da sexualidade, deve-se fazer jus à probabilidade de sua existência, as substâncias químicas específicas por forças quicas específicas". Ao correlato químico das pulsões e de seus destinos corresponde o anatômico da topografia 357</p><p>Haveria aqui uma lacuna "cujo preenchimento atualmente é ela no que distribuição no aparelho psíquico, "por enquanto, não consistiria fato de esquematismo não da nada a ver com a anatomia". Entretanto, Freud fez pouco uso desse caráter provisório ex- presso e, às vezes, até enfático. Talvez a melhor prova disso seja a ausência, em todos os seus textos, do termo "hormônio" que era usado desde 1906 (Bayliss, Starling). Apenas uma vez, em 1932, quando fala da exclusividade embora não teórica, mas factual, da Psicanálise em relação a todos os outros procedi- mentos psicoterapêuticos, alertando ao mesmo tempo para a crença em sua onipotência que residiria na opinião de que as neuroses fossem algo supérfluo que não teria o direito à existên- cia -, e quando constata, mais uma vez, a inacessibilidade das psicoses ao seu procedimento terapêutico, manifestando um certo ceticismo geral quanto à sua efetividade, ele fala da "esperança para o futuro" que resultaria do conhecimento dos "efeitos dos hormônios" "Vossas Senhorias sabem de que se Sem dúvida, a resignação evidente desse pequeno parágrafo não deixa de ser notável, tendo em vista a origem de Freud na Fisiologia clássica. Trata-se de uma ignorância intencional para proteger a própria obra que, na forma de um ceticismo, pro- cura se manter incólume contra todo tipo de crítica, inclusive no temor visível do risco de que conhecimentos mais rigoro- SOS no âmbito das ciências naturais poderiam trazer uma perda de "qualidade de sentido". O rigor em fazer jus à problemática e em dar a resposta mais disciplinada, corta, por mais estranho que pareça, os acessos a outras respostas que não excluem o "objeto" em questão com tanta precisão para que não pudesse mais ser integrado na autocompreensão do sujeito. Dizer ao paciente O quanto seu sofrimento está fundamentado na história própria, porém indisponível, da sua vida e que ele se tornaria compreensível através dessa história, teria perdido qualquer sen- tido se os sintomas desse sofrimento pudessem ser erradicados de maneira causal. Essa provisoriedade é um prazo de tolerância: 358</p><p>A indeterminação de todas as nossas explicações que denomina- mos de evidentemente, tem sua origem no fato de não sabermos nada sobre a natureza do processo de estimulação nos elementos dos sistemas psíquicos e de não sentirmos em condições de fazer qualquer suposição a respeito. Dessa maneira, operamos sempre com um X maiúsculo que transferimos para cada fórmula A metáfora de Freud é estreitamente ligada a toda a sua pró- pria postura do "definitivo do provisório". Freud esclareceu essa ideia mas também a neutralizou com mais precisão numa outra observação do seu texto "Jenseits des Lustprinzips" ["Além do princípio do prazer"], de 1920, fundamental para sua evolução teórica. Mal ele deduziu da iden- tidade da reprodução e da morte do protozoário a conclusão de que esses dois processos poderiam ser integrados na própria vida e que os organismos multicelulares poderiam ser descritos como um processo de reorganização libidinosa da autoconservação, na qual "a afinidade da matéria inorgânica se perpetua", quando chama a atenção de si mesmo se perguntando se ele confiaria realmente nessas extrapolações - para depois se dar a resposta de que não saberia até que ponto o faria. que resta seria "uma boa vontade controlada quanto aos resultados do próprio esforço de reflexão", que, conforme cabe a um supervisor de escola, "não acarreta, de maneira alguma, qualquer tolerância em relação a opiniões divergentes". A razão mais profunda para essa reserva quanto aos resul- tados provisórios alcançados se torna palpável no comentário significativo sobre a linguagem, que segue nesse contexto. Sem a "linguagem de imagens da Psicologia", os processos em ques- não poderiam ser descritos de maneira alguma nem seriam Embora os defeitos da descrição desaparecessem, se "no lugar dos termos psicológicos mos, desde já, utilizar termos fisiológicos ou químicos", isso não evitaria o uso da linguagem de imagens. A linguagem da Fisiologia e da Química também seria feita de imagens, cuja 359</p><p>vantagem consistiria unicamente no de ser conhecida ha mais tempo de talvez, mais simples do que a linguagem de imagens da Essa equiparação dos níveis de linguagem a expectativa de alem da pudesse haver conhecimento de uma qualidade completa- mente A não teria successo se a superestrutura gica fosse demolida para expor fundamento da produção das No entanto, uma vez que isso pode ser tratado como uma utopia conservadora, não ha como usar a expressão "analise" de outra forma a não ser de forma meta- Caso contrário, teria que pensar na construção de uma sintese correspondente à Esse risco para a compara- alias, da atividade médica com () trabalho qui- mico leva Freud a chamar isso, apesar das "afinidades eletivas" de "frase de "abuso de uma comparação sem ou ainda de "exploração não jus- tificada de uma denominação". Esse de para o não justificado não é comum no estilo de Freud. Por mais que possa vir à tona algum fundamento do psíquico que tenha sua origem na química orgânica, esse psíquico, antes de mais nada, é "algo tão unicamente particular que nenhuma comparação pode representar sua natureza". A comparação do trabalho psica- nalítico com a química encontraria seus limites onde a pessoa lida com a continuidade dos elementos isolados que, de forma alguma, estariam submetidos à "coação à homogenei- zação e unificação", que não é outra coisa a não ser a própria força sintética da libido. Não existe uma em analogia à Psicanálise. Não há nada decomposto que aguardasse sua recomposição, mas isso é a natureza da própria energia psíquica pelo menos ainda nesse momento, antes de Freud entrar na fase do destino de pulsão O mesmo Freud, que, desde os começos de sua teoria e suas práticas, havia se distanciado de qualquer suspeita de violência no procedimento, se defende contra surgimento de 360</p><p>demiúrgicas dentro e fora de sua escola. No entanto, a base mais ampla das comparações às quais recorre, além da quí- mica, se caracteriza pelo predomínio de tecnicidade: a interven- do cirurgião, o efeito ortopédico, a influência do educador. Com vistas àquilo que Freud teria considerado como teo- ricamente definitivo no tratamento de problemas psíquicos, a interpretação dos sonhos parece ser um ato de substituição, algo que acontece no lugar de outra coisa que não pode acontecer. Tornar legível e ler isso significa aqui também que não se lida com "a própria coisa". O pensamento de sonho latente, como quer que seja sua composição e qualquer semelhança ou dissemelhança que tenha com as ideias familiares à consciência, não é por si só e de forma imediata aquilo que se torna legível no conteúdo manifesto do sonho, mas sempre algo que apenas pode ser deduzido. Não se poderá fazer jus a A interpretação dos sonhos de 1899 como documento de um tipo de experiência sem entender a peculiaridade de sua origem. Nem precisa seguir os preceitos do próprio Freud quanto à maneira de lidar com esses fenômenos para desconfiar dos relatos sobre a data de origem da Psicaná- lise. Numa obra dessa ordem, o grau de inspiração e genialidade quase se entende por si mesmo, e não se trata de uma humilha- por parte do historiador quando se rebaixa as circunstâncias de seu nascimento das dimensões de um acontecimento natural de um constrangimento. Se quisermos nos dar conta de qual poderia ter sido o cons- trangimento que o professor universitário de Neuropatologia mais enfrentava, a resposta é simplesmente esta: a falta de pa- Aquilo que mais impressionou Freud em seu processo de formação, a saber: as demonstrações dos histéricos por Charcot que ele frequentava com regularidade, não tinha como ser re- depois de ter alcançado a docência, nem numa escala menor No porque o acesso aos pacientes da clínica lhe foi recusado. semestre de inverno de 1892/1893, Freud, pela primeira vez, havia anunciado a disciplina "Doutrina da histeria" (Lehre 361</p><p>der intitulada, nos semestres de verão de torma mais pretensiosa, de "Teoria da (Theorie der em apenas pela palavra chave "Histeria" desde o semestre de inverno também de "As grandes neuroses" (Die Tudo isso, no entanto, sem à disposição os "casos" espetaculares que cau- a do pleno da Por isso, o grande salto, metodologico quanto consistia em apresentar-se a si mesmo, muitas vezes de forma velada, como objeto universal da Psicanálise - unicamente por meio da literatura sobre o sonho. Assim, no semestre de verão de 1899 e 1900, é anunciado, pela primeira e vez, a "Psicologia do sonho". Pela última vez, provavelmente, porque, no verão de 1900, havia apenas quatro participantes. Podemos deduzir disso que o tema estava tora de todas as expectativas É um dos casos raros de uma total indisposição do acadêmico em relação a uma atividade voltada contra as regras. Na sequên- cia, o nome da disciplina torna a ser a convencional "Introdução à Psicoterapia", até o semestre de inverno de 1910, quando é usado, pela primeira vez, o nome "Psicanálise". Apesar da familiaridade das denominações há, portanto, uma ruptura significativa nessa sequência: o nome "psicologia do sonho" fez com que a falta de demonstrações práticas se tornasse Os "sintomas" a serem estudados ti- nham adotado inteiramente a qualidade da legibilidade. Por necessidade, Freud havia tirado uma vantagem de uma virada surpreendente, mesmo se os seus resistiam a essa vantagem: apesar de tudo, ele tinha conseguido apresentar algo recorrendo a um artifício inesperado que ainda não estava claro para seus ouvintes e seus leitores: a unificação de objeto e sujeito. Há de se imaginar a dificuldade para uma teoria que atribuía uma função de destaque ao inconsciente e que tinha a sexua- lidade como pivô de quase todos os distúrbios e que apresen- tava o docente como paciente. Freud deveria discorrer sobre sua 362</p><p>própria anamnese e revelar aos seus ouvintes seus traumas infan- tis? Se Charcot tinha como provar ao seu auditório que os sinto- mas histéricos não tinham uma origem orgânica porque podiam ser gerados, de forma idêntica, mediante a hipnose, abandono da hipnose por Freud como procedimento confiável eliminou a última possibilidade de apresentar os fenômenos. Não havia como demonstrar, na prática, a livre associação da análise, que estava definitivamente privada da intersubjetividade teórica. Pela primeira vez na história da Medicina, um processo diagnóstico e terapêutico estava sendo negado, categoricamente, à escuta e à observação: qualquer testemunha teria destruído a "ligação afetiva" (Gefühlsbindung) entre o paciente e o médico. Embora a necessidade prática do docente tivesse gerado uma qualidade teórica, esta, por sua vez, gerou uma necessidade mais radical: a da indispensável objetivação científica. Nesse dilema, a teoria do sonho, provavelmente, era a única solução para alcançar um grau adequado de "intersubjetividade". material estava suficientemente distorcido para não sobrecarregar com obscu- ridades os ouvintes no auditório, nem com um leitorado indefi- nido. No sonho, o inconsciente se apresentava em sua própria forma concentrada de expressão, sem precisar das casualidades e imponderabilidades da situação analítica. Da interpretação dos sonhos resultava a convergência das necessidades do docente, que estava privado de todas as condições de fornecer demons- trações impactantes com a evolução de sua teoria ao ponto em que esta podia se apresentar como "teoria pura", isto é, como Psicologia quase livre de suas funções patológicas e terapêuticas. A como o próprio Freud havia dito na grande con- ferência introdutória, só podia ser conhecida, "no sentido mais estrito da palavra, apenas a partir do ouvir dizer". A nasceu por partenogênese. Podemos até afirmar teoria. que ela nem poderia ter nascido sob as condições de sua isso grande enigma da história dessa escola, a saber: como sistema, foi possível, mesmo assim, a partir dos pressupostos do encontrou sua resposta exatamente na forma de A interpretação 363</p><p>dos sonhos. O sonho é a única possibilidade de ter próprio inconsciente à disposição numa linguagem interpretável e de pas- sar para a sua leitura. É a única possiblidade do sujeito psíquico de se objetivar, sob exclusão da reflexão, atrás das próprias costas, fornecendo um texto legível sobre si mesmo. A autoanálise de Freud durou uma década, de 1892 a tornando-se sistemática a partir de 1897 e nunca se livrou das vidas sobre sua viabilidade. Nesse contexto, que nos interessa é unicamente a consequência desse procedimento, que diz respeito ao estado do material do sonho e a possibilidade de sua expo- sição pública. Freud entendia-se como um Robinson analítico que se objetivava através de um processo de registro e tradução dos conteúdos do sonho, mas também de sua integração numa autobiografia confessional, em parte cuidadosamente distorcida, em parte oferecida como preço pela aprovação. resultado mais importante dessa qualidade do resultado do sonho é uma lite- ralidade canônica da qual a exegese se serve e só pode se servir. A interpretação dos sonhos é fruto da autoanálise. Freud definiu a insistência na autoanálise uma vez como um elemento de resistência contra a análise, o que ficou evidente na cena significativa durante a viagem aos Estados Unidos com Jung em 1909, quando ambos interpretavam seus sonhos, provavelmente sem observar rigorosamente as regras da escola. Jung relata que teve "alguns sonhos importantes" com os quais Freud não sabia como lidar. Quando Freud falou de um sonho a cuja interpre- tação Jung queria acrescentar alguns detalhes da vida privada de Freud, a relação entre os dois deve ter sofrido um golpe decisivo. Em sua retrospectiva, Jung comenta que Freud o teria olhado com muita desconfiança, dizendo "Mas eu não posso pôr em risco a minha autoridade!" Nesse momento, ele a teria Mesmo se essa cena não a impressão de um relato fidedigno, ela permite deduzir em que medida o passar material de A interpretação dos sonhos passou por uma domesticação, que deve ter sido algo como a censura repetida do sonho. 364</p><p>Em Viena, Freud tinha contato com único filólogo clássico destaque da virada do século que não hesitava de se ocupar de assunto tão obscuro quanto a interpretação dos sonhos um com Antiguidade. Theodor Gomperz despertou interesse de na Freud pelo Livro dos sonbos de Artemidoro de Daldis, que não tem importância porque teria inspirado A interpretação dos sonhos o que certamente não é caso -, mas por apresentar Freud um tipo completo de teoria sobre sonho, cuja força a serviria de parâmetro: "A crença dos antigos de que o sonho seria uma mensagem dos deuses para guiar as ações dos homens era uma teoria completa do sonho que fornecia informações sobre tudo que merecia ser do conhecimento das Se os deuses prestavam um serviço para a vida das pessoas por meio dos sonhos, estes não podiam ser meras impressões imagéticas do tipo da lembrança ou da fantasia. Uma mensa- gem tinha que ser da ordem ontológica do significado, por mais difícil que fosse decifrá-lo. Nesse caso, no entanto, não havia a equivalência entre as realidades do dia e do sonho, o que iria perturbar os filósofos. A "influência" dessa teoria dos sonhos apenas pode ser de- finida de forma negativa: ela representava para ele um tipo de interpretação do qual tinha que se distanciar, mesmo acei- tando a implicação do significado. Para os autores dos livros sobre o sonho, a interpretação consistia em atribuir conteúdos fixos a um catálogo atomista de "sinais". interpretante faz uma consulta como no dicionário de uma língua estrangeira, procurando pelo verbete fornecido pelo sonho, e acaba encon- trando o significado que, desde sempre, comprovou seu valor e que bastava aplicar a um acontecimento que normalmente se situava no futuro. No fundo, Freud não queria interpretar, mas ler uma história, não uma história futura, mas uma passada. A observação de que essa diferença no vetor do tempo da inten- interpretativa era de pouca importância só será percebida pela quando, na qualidade de metapsicologia, nega ao gerador dos sonhos, ou seja, ao Id, qualquer lógica e até a 365</p><p>estrutura temporal. A diferença mais importante em relação à interpretação clássica dos sonhos consistia naquilo que se con- vencionou chamar uma interpretação Ela se move de maneira linear no nível dos conteúdos de sonho e não se refere, verticalmente, de um elemento a outro, às ideias latentes do inconsciente. A metáfora da legibilidade é fundamentada nesse diferencial de procedimento que consiste na recuperação Isso ainda não seria tão interessante se a Psicanálise não ti- vesse adotado a tendência retrógrada em direção ao catálogo de figuras interpretáveis. É algo que seria suficientemente evidente a partir das consequências inevitáveis que envolve a constitui- ção de uma escola e sob a pressão da demanda por possibilidades de aplicação, se o impulso a essa evolução não tivesse residido na própria teoria de Freud. A premissa disso, poderíamos dizer simplificando, já estava presente no velho que era Freud e no princípio biogenético consequentemente adotado, segundo o qual a ontogênese seria a repetição da filogênese, ou seja, o indivíduo o espelho da história da espécie. Relacionar isso com o âmbito do sonho leva à migração de elementos da história da humanidade para o inconsciente individual e, assim, à suposição e à descoberta infalível de constantes simbólicas. Desse modo, no entanto, chega-se, em princípio, novamente ao procedimento dos livros de sonho clássicos com todo o refina- mento teórico e técnico, isto é, à tradução palavra por pala- vra, sinal por sinal, significado por significado. Nesse sentido, o universalismo teórico para o qual Freud havia se direcionado desde Totem e tabu até o Moisés acabou sendo destrutivo para a Via Regia da Psicanálise. Ele degenerou porque seu interesse central não mais podia ser o indivíduo assim que este havia se transformado num depósito de sedimentos da história da espécie. A curiosidade teórica passou a ser atraída - quando não arrancada - da reconstrução da história privada da vida do analisando em direção às grandes questões da humanidade cujos meros representantes podiam ser encontrados nas noites de sonho da vida privada. 366</p><p>motivo pelo qual a autoanálise do fundador da escola não investigou ainda a dimensão filogenética dos conteúdos de sonho reside no fato de sonhador mestre ter estado ocupado total- mente pela consistência entre vida e Freud mencionou a autoanálise apenas em duas passagens de sua obra, chamando a atenção para duas condições: que ela dependeria, além de um desvio moderado do analisando da norma, da qualidade de ser um bom sonhador. Ele mesmo teria sido conduzido através de todos os acontecimentos de sua infância por uma série de so- nhos. Em 1909, ele ainda generaliza, sem restrições e sem refe- rência à análise teórica: "Quando me perguntam como alguém pode se tornar um psicanalista, respondo: mediante o estudo de seus próprios sonhos."21 Mas como o sonho chega até seu interpretante se foi sonhado pelo próprio? A incerteza que está nessa pergunta pelo transporte e pela fixação resulta da concepção básica do sonho como manifesta- ção do inconsciente, que só é possível contornando a censura, controle do Eu, ou seja, como contrabando, manifestação esta que não precisou apenas da deformação [Entstellung] para burlar o controle, mas que, mesmo depois, pode ser recuperada pela argúcia e a astúcia oposta de seu repressor. Nesse drama, é pouco provável que a consciência, em processo de acordar ou já acordada, alcance o pleno poder e o desfrute de seus conteúdos manifestos do sonho. Nesse contexto, nem se procurou saber ainda o que acontece quando o texto do sonho passa pelo trans- porte intersubjetivo, isto é, do sonhador para o interpretante. Fica quase subentendido que a "transferência" (Übertragung) é parte integral do sonho e que ela é uma fonte de erros em ter- mos objetivos, mas também uma fonte de recursos adicionais de interpretação, logo reconhecida como veículo de agrados ou seu É esse, portanto, o alcance do trabalho nos pen- samentos de sonho, como também no conteúdo manifesto. Num pequeno texto de 1911, Freud havia desaconselhado os analistas de solicitar aos pacientes o protocolo escrito dos so- nhos depois de acordar. Freud fundamenta seu conselho dizendo 367</p><p>do do pelo live como nao resultado poderia aplicado resultado de propria Abraham bastante resultado de de longe a constatada por considerando como a do sonho passou ( ) sonhador acordado logo de para protocolat sonho, de importância para a análise ele Quando apresenta no analista sua anotação de várias paginas, totalmente Um pequeno triunto para pois the havia proibido de anotar os sonhos. A do recalque alcançado aniquilado da Outro paciente utiliza dos primeiros de grava- sonora, mas SC esquece que aparelho já não funcionava mais há Um terceiro analisando tem sonho que se petiu durante semanas, mas que não consegue lembrar depois de acordar. A resistência SC faz sentir de forma diabólica quando, numa noite, tenta anotar suas lembranças, contrariando as ins- truções do Sem dar outra olhada, a folha é apresentada médico. Nela constam, quase ilegíveis, as palavras: "Anotar sonho contra acordo." analista não considera isso mais como sell triunfo: "il resistência havia vencido". A descoberta própria de Abraham, "narcisismo" aqui descrito, intervém na relação dos sonhadores seus sonhos e sua conservação: os salvam do porque os consideram como preciosidades". Deve-se accitar, portanto, que sonho tem uma história mais longa do que aquela entre pensamento de sonho latente manifesto do sonho. estado desprotegido da última 368</p><p>fase deve ter fortalecido a tendência de Freud em reativar os conteúdos simbólicos facilmente identificáveis e, consequente- mente, menos vulneráveis. Em primeiro lugar, analista tinha que fazer sua "tradução", sendo que ele poderia encontrá-la "apenas empiricamente, mediante sua inserção experimental no contexto". Mais tarde ficou evidente que, na cultura humana, na linguagem, no mito e no folclore havia múltiplas analogias com as figurações constantes do sonho. Logo os símbolos que serviam de ponto de partida para as questões mais interessantes pareciam ser "parte de uma herança psíquica antiquíssima". Freud chega finalmente à hipótese: "A comunidade simbólica ultrapassa a comunidade linguística."24 Os elementos que sur- gem da latência filogenética aumentam a legibilidade do texto do sonho porque se encontram em um campo gigantesco de relações espaço-temporais, ao passo que a interpretação inicial dos so- nhos, voltada para o contexto individual, dependia das vivências do dia do sujeito, de sua memória e suas associações, e ainda de seu domínio linguístico factual, como no caso de Frauenzimmer (que não satisfazia a Otto Rank e que o fez recorrer a Weibsbild para uma associação constante). Freud não dispunha de deus. Se tivesse sido devoto de algum, teria sido um deus que dorme. Pois o sono é a única forma da vida que não é perturbada, impedida ou incomodada pela reali- Por isso, a defesa do sono é algo que faz parte da essência da vida, e não apenas de sua interrupção. A função do sonho consiste na defesa do sono. Mas, uma vez que o sono é essa forma de existência sem relação com a realidade, nele, o sonho pode se desenrolar como realização de desejos. Estes, eviden- temente, o sonho retira da história da vida acordada, inclusive do fundo secreto daquilo que o sujeito acordado não ousaria admitir como desejo. Nisso reside o conflito entre o pensamento de sonho e sua censura. O sonho contém uma implicação de contingência. Ele dá a entender que não existe necessariamente um mundo enquanto da limitação das nossas possibilidades. sonho é, por 369</p><p>assim dizer, apenas a segunda melhor coisa em relação ao não querer estar acordado. É uma ilusão, mas ilusionismo é melhor do que realismo. A ilusão somente deve ser rejeitada em risco a autoconservação em conflito com a deus que dorme é reevocado de noite pela imagem do isolamento feliz da vida intrauterina (...) Ao dormir, 0 estado primordial da distribuição libidinal (Libidoverteilung) é recu- perado, isto é, o narcisismo pleno, no qual a libido e interesse do Eu ainda coabitam de forma unida e indistinta no Eu Nenhum teólogo seria capaz de descrever melhor a beatitude completa de seu deus do que mediante esse conceito de narci- sismo genuíno. O caráter divino de qualquer pessoa que dorme como lembrança da realização pura de desejos no corpo materno não é outra coisa a não ser um dos atos de conferir sentido, realizado pela Psicanálise e isso para um estado que é suspeito de ser mera interrupção da vida investida de sentido e de ser um mero instrumento para o fim de sua recuperação. É, portanto, o sono sem sonho que, sendo subordinado a este, lhe confere sentido. E isso independe da questão como o sonho produz seus conteúdos e qual o sentido que, por sua vez, pode ser deduzido deles. Mas também é apenas um fato que o sonho, para seu "abastecimento". depende das reservas do aparelho psíquico. Não há nenhuma originalidade criativa na confecção dos sonhos e, se ela existisse, Freud não teria acreditado nela. Somente a distinção entre a questão da função e aquela do conteúdo faz com que se consiga a autonomia para tornar o sonho legível. A pergunta que mais se impõe com o surgimento de A inter- pretação dos sonhos no início do século 20 é também a pergunta mais difícil de ser respondida: qual a necessidade da interpreta- ção dos sonhos? O motivo antiquíssimo de dar pelo menos uma espiada no trabalho dos deuses, já que não há como introme- ter-se nele, não tem mais O interesse gico também não sustenta empreendimento, mesmo porque 370</p><p>de Freud não era tão A minha quanto à explicação que Freud teria dado e que insi- várias vezes mal-estar da falta de sentido do conteúdo manifesto do sonho é suficientemente insuportável para justificar encontrar um sentido. A de comparação lembro que a fenomenologia de Husserl nasceu exatamente na mesma época para combater psicologismo eliminando a associação enquanto conexão nica das ideias substituindo-as por formações compreensíveis de sentido. Assim, A interpretação dos sonhos, antes de mais nada, fundamentada no direito da razão à teoria pura. Não apenas paciente tem um direito de saber que, em sua his- tória, causou sofrimento, mas qualquer pessoa pode esperar da teoria de um fenômeno tão elementar e universal da psique que ela torne compreensível aquilo que lhe ocorre com tanta estranheza atormentadora. O fato de o sonho ser também algo como a primeira irregularidade da vida psíquica, em que reside "seu valor teórico como paradigma" para o entendimento de patologias graves, resulta do pressuposto de sono ser provo- cado pela perturbação do sonho. Somente sua "racionalização secundária" é a realização do desejo que a vontade da espécie preparou contra () indivíduo. Consequentemente, não cabe considerar A interpretação dos sonbos como instrumento de um grau artesanal inferior a serviço de objetivos humanos superiores. Pelo contrário, para ela vale a palavra lapidar que Freud encontrou mais tarde: "A Psicanálise era sobretudo uma arte Mas, também quando diz que ela seria "uma ferramenta que deve possibilitar ao Eu a conquista progressiva do Id", isso significa, com um alto teor de universalidade, que a fonte de experiências sem sentido, feitas pelo homem consigo mesmo, deverá ser submetida cada vez mais e, se possível, definitivamente, à exigência de encontrar um sen- Tornar sonho legível faz parte do trabalho com todos os documentos humanos cuja compreensão sempre desafiou as exi- da teoria em relação a ela mesma. A palavra do filósofo, 371</p><p>assim como do apóstolo, de que nada de humano estaria estra. nho para eles é mais do que uma concessão às necessidades dos outros; é postulado de uma razão que não tem como ser a razão pura. Lida-se com um objeto obscuro, mas não se capitula diante dele, se, no resultado do procedimento proposto de Freud, "cada sonho se revela como uma formação psíquica com sentido que pode ser inserida e localizada na vida psíquica do estado acordado". A inversão da "ordem natural", portanto, é o preço pela legibilidade. Dar sentido também pode ser entendido a partir do axioma "Nada se perde". Nesse caso, não se olha preferencialmente para a história - para a história do indivíduo e da espécie - sob o aspecto do mal que deixa para o futuro, isto é, das cenas originárias, dos parricídios da horda, ofensas não superadas, relações edipianas, desejos de morte. A memória é um poder incomparável da resistência contra o nada. A interpretação dos sonhos recorreu à neutralidade axiológica do positivismo para considerar o material trazido à tona como elementos da vida que foram salvos do desgaste do esquecimento e do recalque, independentemente de seu papel patógeno. O sonho manifesto se distingue da memória fracassada pelo fato de não ser apenas casualmente deficiente, fragmentário e seletivo, mas também o produto de uma deformação bem-sucedida e habilmente reali- zada, que parece visar a irreconhecibilidade. A recuperação do "pensamento" original é mais do que um ganho em clareza enquanto complementação dos fragmentos. A descrição mais breve e metaforicamente mais concisa daquilo que a interpretação dos sonhos tinha que superar em oposição ao trabalho do sonho parte do pressuposto de que os pensa- mentos do sonho e o conteúdo do sonho se apresentam "como duas representações do mesmo conteúdo". Mal tinha come- çado a se expressar nesse sentido, Freud deve ter sentido um incômodo em relação à equivalência entre as partes latentes e manifestas do sonho enquanto "linguagens" e se corrige com 372</p><p>apresentando do sonho como dos pensamentos do sonho uma para outro modo de expressão cujos signos leis de devemos conhecer mediante a comparação entre original a logo depois, segue uma apesar de aparentemente trivial: "Os pensamentos do sonho facilmente compreensíveis assim que tomamos conhecimento deles." Sem uma "interpretação" consiste tornar compreensivel algo anteriormente claro que ela não pode se dar de outra forma a não ser na linguagem do interpretante, mesmo sendo daquele que SC Vale para a interpretação que já valeu para protocolo do sonho, pois também é articulada na linguagem do sonhador, escrita ou não escrita. Mas pensamento do sonho - qual estado dele? Um quarto de século mais tarde, Freud negaria à instância geradora de sonhos, ou seja, "Id", qualquer logicidade, as- sim como qualquer estrutura temporal, negação ausência de contradição, de modo que "trabalho de sonho" nem precisa envidar esforços tão incisivos. Ficou mais provável que () próprio pensamento do sonho tivesse imaginação, que corresponde muito bem à primeira suposição de que () sonho realizaria os desejos negados pela realidade do dia. Pois uma realização do desejo não pode ser simplesmente uma lembrança do desejado. Ela tem que oferecer um grau mais intensivo de apresentação, ao qual corresponde a intensidade oposta da censura. A imaginação migra para o lado da produção genuína do sonho; em compara- a ela, o trabalho do sonho pode aparecer "sofista". Em "Das Ich und das Es" ["O Eu e Freud escreveria em 1923: pensar em imagens, portanto, é uma muito incompleta. De alguma forma, também está mais próximo aos pro- cessos inconscientes do que pensar em palavras, sendo indubitavel- mente mais antigo como este, tanto no plano ontogenético quanto 373</p><p>Ora, resultado da análise justamente é determinado pelo ato de prover conteúdo do "Id", em primeiro lugar, de cidade, especialmente de uma definição temporal, e de privá-lo, assim, do seu "estado selvagem". Em A interpretação dos sonhos ainda era o inverso: tão logo que acontecer encontro com pensamento do sonho, enfrenta-se pelo menos algo compreen- sível, mesmo se causar algum Aqui, o conteúdo manifesto do sonho, "dado, por assim dizer, numa linguagem de imagens", é decodificado com vistas ao seu "original", que deve ter um caráter mais homogêneo do que o conteúdo sonhado que apresenta algo pensado e lido de forma eidética e verbal, dialó- gica e monológica. Os pensamentos de sonho, todavia, apresen- tam-se como algo pensado de maneira homogênea, mesmo se é exatamente isso que não poderia ser suficiente para oferecer realizações de qualquer espécie, por exemplo, a satisfação que é alcançada pelo exercício do ius talionis [Lei de talião] no so- nho. Esse instrumento perfeito da ânsia de vingança não pode ser descrito satisfatoriamente como "pensamento", da mesma maneira como o sonho de sede, induzido artificialmente por alimentos fortemente salgados, no qual o beber real é substituído pelo sonhado para não acordar. Enquanto se tratar apenas do desejo, ele poderia ser pensado ou falado; sua realização exige meios "mais fortes", mesmo se, ao fracassar, o acordar anular a satisfação de qualquer maneira. Freud estabeleceu a ligação entre a interpretação dos sonhos e a solução de sintomas de histeria, na qual sucesso do pro- cedimento é garantido pelo aparecimento e o desaparecimento dos sintomas em seu lugar, em que, portanto, a exegese do texto encontra um ponto de apoio nas ilustrações intercaladas". 31 Os recursos dos quais se serve o trabalho do sonho na deformação do pensamento do sonho são vários, quase demasiadamente variados para não deixar que tudo e qualquer coisa se torne possível; principalmente na superficialidade do deslocamento associativo, que se serve da semelhança apenas fonética até no nível dos trocadilhos. interpretante dos sonhos não deve 374</p><p>ter medo do trabalho do sonho encontra seus re- cursos de deformação como aquele que consulta dicionário, sendo que Freud, numa observação, apontou para esse tipo de consulta como procedimento familiar da fase da curiosidade pubertária, que teria satisfeito O desejo "pelo esclarecimento dos mistérios sexuais". 32 Numa nota de 1911, Freud apresentou uma analogia sur- preendente para pedantismo literário e filológico da trans- formação do sonho, que, provavelmente, tem sua origem no trabalho sobre a temática do tabu. O ocultamento de nomes por formas disfarçadas, que só compartilham a sequência vocálica com elas, pressupõe um processo de classificação que só tem como funcionar com base na escrita. E é a uma religião escrita que pertence o paradigma que tudo domina de forma coerente: a proibição do Antigo Testamento de pronunciar ou de escrever o nome de Deus. Consequentemente, o tetragrama consonântico é vocalizado mediante a adoção do nome substitutivo e não proibido "Adonai", que também entrou no discurso pós-cristão como "Senhor" para falar de Deus ou para se dirigir a Ele. Assim teria se formado o nome de Jehovah e assim o sonho formaria as denominações No sonho-chave de 23/24 de julho de 1895, a altamente complexa trimetilamina (Trimethylamin) é representada pela sua fórmula química, sonhada em negrito. Esse nome tem sua origem nas especulações de Wilhelm Fließ sobre a química da sexualidade, mas entra no sonho mediante o cheiro, sentido no dia anterior, de um licor de qualidade menor através da série amil-, propil- e metil (Amyl-, Propyl-, Não é apenas esclarecedor em relação ao tipo de materiais gráficos pelos quais Freud se interessava, mas também em re- lação ao conjunto de literalidade e complexidade, quando se analisa, ao invés de um sonho do autoanalista, um ato falho muito posterior a sua correspondência. Em nenhum dos rela- cionamentos epistolares documentados o lado misantrópico de Freud fica tão palpável quanto na correspondência com Arnold Zweig, na qual ele, logo no início, fala dos seus "preconceitos 375</p><p>antipáticos em relação à querida humanidade" e da "corja serável, que, de modo geral", seriam Mesmo ao ser congratulado pelo prêmio Freud não quer saber de uma "reconciliação com seus seria muito tarde para isso: "nunca duvidei que a análise se imporia muito tempo depois da minha morte". Uma coisa que incomodava Freud no solitário nado Zweig era sua insistência nas relações entre a Psicanálise e Nietzsche. Ele não gostava da maneira como Zweig via em sua teoria aperfeiçoamento das intuições de Nietzsche, por exemplo, do Nascimento da tragédia em Totem e tabu, mas também da transvaloração de todos os valores, da superação do cristianismo, da liberação da vida ascendente do ideal da ascese e da formação do verdadeiro anticristo. Freud gostava de ser celebrado, porém não gostava de ser colocado em determi- nadas descendências sistemáticas e reagia com um pedantismo magistral. É exatamente nesse contexto da correção que se insere o exemplo do ato falho literal que começa pelos agradecimen- tos de Freud pelo envio de Bilanz der deutschen Judenheit 1933 [Balanço do judaísmo alemão 1933], de Zweig. Ele pede para substituir, em consonância com sua teoria, a expressão subconsciente" (das Unterbewußte) por inconsciente" (das Unbewußte), assim como para corrigir dois nomes de mem- bros proeminentes da Escola. Mas não é com isso que começa essa breve carta, porém com a velha história do Exército dos Dez Mil, cuja retirada pela Ásia Menor é relatada por Xenofon. Qualquer um que tinha lido a Anábase no ginásio conhecia seu grito estremecedor ao avistar, pela primeira vez, o mar: "Thalassa! Thalassa!" Freud, evidentemente, havia usado a grafia grega, provendo o momento histórico do complemento anedótico do professor precoce: Xenofonte que, na verdade, achava que os gritos distantes de seus compatriotas fossem gri- tos de guerra - teria ficado por perto e observado que a pro- núncia também poderia ser "Thalatta". Depois de Freud ter se 376</p><p>providenciado esse precursor humanista, ele, por sua vez, passa para as correções Isso seria pouco interessante, se não tivesse acrescentado à carta uma outra já no dia seguinte: ele teria se lembrado que, no dia anterior, teria escrito a palavra "Thalassa" de forma errada, a saber, com um lambda duplo. Como bom autoanalista, ele já descobriu o motivo para ato falho: o incômodo com as incorreções no texto de Zweig, a denominação equivocada do inconsciente e dos seus discípulos. Esse "narcisismo das pequenas diferenças", como ele o chamou em outra ocasião, ele queria ter manifestado através da anedota de Xenofonte, mas o professor pedante sofreu a intervenção do eros pedagógico e isentou o destinatário da culpa: "Provavel- mente, o Sr. não tem a culpa desses pequenos erros, pois o Sr. não tem tantas facilidades quanto os outros com as correções." E assim o sujeito escondido continuou atuando, concedendo ao criticado uma certa satisfação, sendo que o crítico parecia revelar sua ignorância, mesmo pequena, contra o orgulho do "repertório amplo do grego". Era para o outro percebê-lo e dar-lhe a oportunidade de fazer, por sua vez, uma crítica àquele que havia chamado de Vater Freud36 no início da carta. A particularidade desse episódio para aquele que recebeu as duas cartas ou as lê hoje é que Freud cometeu um ato falho de- vido ao seu ato falho: a grafia que havia utilizado, na verdade, estava correta. Seria muito interessante saber o que o autoana- lista teria dito sobre esse fato também. Mas, pelo visto, Zweig perdeu essa oportunidade cometendo, por sua vez, o ato falho de aceitar a autoridade da correção e de não verificar se o erro tinha mesmo sido cometido. Feliz com o tratamento paternal de Freud, ele prefere acreditar ter cometido o ato falho e responde: "E fato de o Sr. ter interpretado tão prontamente o ato falho en- de uma carta na outra, dessa maneira, é realmente paterno e cantador da sua parte Por sorte, Zweig não era Freud, analista; à caso contrário, ele teria que voltar à interpretação de vitória do eros sobre o pedantismo, contra este: não aconteceu nenhum ato falho, logo também não havia eros. A autocorreção 377</p><p>e sua autoexegese acentuaram essa falta da mancira mais cons- trangedora. Xenofonte, pelo menos, só poderia ter fez incômodo observação diferenças despertado de qualquer porque, num momento de maior o papel do sóbrio com uma sobre as pronúncia entre os gregos. O leitor de hoje percebe muito bem que o destinatário teria que ter notado a falta de boa vontade com que Freud explorou a anedota, apesar de esta conter um elemento de liberalidade que as suas correções não permitem. No uso da terminologia e dos nomes de sua ortodoxia, não há tolerância. Para contrabalançar o prazer do observador nas confusões do autoanalista da sua rede sistemática, temos que insistir na diferença entre escrita e oralidade, uma vez que só através dela o episódio se torna esclarecedor. A cena nostálgica dos gregos no Ponto é de mera oralidade. Aquilo que poderia ter causado o incômodo do ateniense Xenofonte para fazer críticas podia ser ouvido por ele e pelos outros. Aquilo que Freud não que- ria deixar como estava por causa do suposto ato falho em sua carta, isto é, a duplicação do lambda, teria sido imperceptível em meio aos gritos dos Dez Mil, não tendo, portanto, qualquer importância para sua compreensão, não importa o modo como o autor o escreveu. O problema não era o idiomatismo das tribos gregas, mas a ortografia dos humanistas que costumavam travar uma luta muito mais dura do que aquelas em torno de possíveis erros. Somente a hiperinterpretação analítica transforma a fa- lha inofensiva na maldade insidiosa daquele inconsciente, cuja intromissão deve guardar para si a suposição da verdade pura. O destinatário, por seu lado, é protegido pelo seu mecanismo perfeito de ignorar todo o colapso do paternalismo. Uma vez que se trata aqui de um processo que se estende por várias etapas no tempo e no espaço, aquele inconsciente, cuja falsa denominação por Zweig era a causa de tudo, só podia desenvolver seu refina- mento e charme de suas maldades no âmbito da escrita. Dito em forma de tese: há uma afinidade do aparelho psíquico, tal como Freud queria que fosse entendido, com a escrita. 378</p><p>Erros ao escrever os protocolos de sonho são algo como revisões do trabalho de Da exatidão diplomática com que Freud copiava seus registros n'A interpretação dos sonhos pode-se deduzir que, para ele, texto formado da memória era definitivamente idêntico com a própria No sonho da Estação Oeste, marcado pela revolta, há inicialmente a cena de um demagogo numa assembleia de estudantes que fala dos alemães com zombaria à qual sonhador reage tanto com uma reflexão sobre a sua reação no sonho quanto com a acentuação dessa reação através de um erro no protocolo. "Fiquei revol- tado, fiquei revoltado, mas também fiquei admirado com essa postura." Sobre isso, Freud acrescentou numa anotação que a repetição lhe ocorreu "aparentemente por que ela teria "invadido o texto do sonho", mas que ele a manteria assim, pois a análise mostraria "que ela teria um significado". Além das manipulações do conteúdo do sonho pela memória, até as perturbações no processo da escrita representam outro posicionamento. A observação que se distancia desse processo, por sua vez, é mais do que imprecisa, isto é, de uma negligência precisa, porque, nesta única vez, fala do "texto do sonho", ao invés do texto da anotação sobre o sonho. Não é por acaso que logo esse sonho apresenta séries tão ousadas de associações de palavras que até o leitor do texto impresso, com todo suporte da palavra impressa, tem dificuldades de acompanhar o raciocínio de Freud. Assim, aquele demagogo havia zombado dos alemães decla- rando que a unha-de-cavalo (Huflattich) fosse a flor preferida dos O interpretante do sonho não apenas encontra nessa palavra o indecente flatus, mas também o início solene da inscrição numa medalha comemorativa da derrota da Armada espanhola: "Flavit et dissipati sunt." Essa inscrição poderosa sem sujeito, que se refere à tempestade que expulsou os navios fazia parte do plano de vida de Freud; era para servir de "título meio jocoso do capítulo quando passaria para a apresentação detalhada de sua concepção e do tratamento 379</p><p>da histeria. isso, pelo menos, que informa em sua A interpre- tação dos sonbos, deixando em aberto se os vencidos são os adversários da sua teoria ou os sintomas dos Acontece que faz parte do destino dos inventores de procedi- mentos analíticos ou hermenêuticos que, algum dia, eles mesmos se tornam objeto para testar seus métodos. Freud sempre reagiu com má vontade quando entrou na cena de sua própria Um dos primeiros discípulos de Freud, o n° 22 na primeira lista dos membros do grupo local vienense da Associação Psicana- lítica Internacional, Fritz Wittels, não apenas estava na origem da inimizade de Karl diretor da revista Die Fackel [A tocha], mas também foi o autor da primeira biografia de Freud, com observações indiscretas sobre supostos e reais atos falhos do mestre. Em 1925, este último se vê obrigado a notar, num acrés- cimo à interpretação do sonho da Estação Oeste, a ressalva do "biógrafo não convidado" (uma categorização considerável) que errou ou manipulou a inscrição daquela moeda comemorativa omitindo o sujeito do sopro poderoso, que consta na medalha: o nome divino de Jehovah. Essa omissão não causa nenhuma surpresa no caso de um ateu convencido, uma vez que chegou a ponto de substituir, na citação shakespeariana do sonho das Parcas, o nome de Deus pelo nome da natureza. Quanto à inscrição da Armada, Freud não aceitou a crítica, mas também não quis se apoiar na proibição de usar o nome de Deus, que já havia tratado na nota de 1911. Em 1930, au- mentou o acréscimo de 1925, apontando para a configuração da moeda comemorativa. Agora ficou muito mais importante para ele esclarecer seu modo de lidar com o nome de Deus? De qualquer maneira o nome de Jehovah constaria na medalha em letras hebraicas, a saber, em cima de uma nuvem, o que fez com que a relação entre o nome e a inscrição ficasse aberta a ponto de que nome poderia ser considerado tanto como parte da imagem quanto da fato de Freud ter optado pela leitura em destaque causa menos espanto do que aquele de se defender de uma crítica que provou exatamente aquilo que 380</p><p>queria contestar. Quem acredita saber tanto sobre O caráter insi- dioso desse inconsciente, que assumiu O papel do maligno, cometerá seus erros pelo mero temor de Em seus Estudos autobiográficos Freud resumiu brevemente O resultado de sua teoria do sonho no sen- tido de que o sonho manifesto seria "apenas uma tradução deformada, abreviada e mal-entendida" daquela "formação de pensamentos" latente, mas "na maioria das vezes, uma tradu- ção para imagens leitor de A interpretação dos sonhos hesitará em achar essa constatação em adequação com os materiais. Embora os sonhos aconteçam em ambientes vi- suais, as ações se passam em sua grande maioria na forma de atos de fala orais ou escritos. Não se trata de uma questão de metáfora, mas do próprio conteúdo. Certamente, as caracterís- ticas pessoais de Freud como sonhador desempenham um papel importante. Freud responde de forma coerente à questão se faz parte do sonho transformar pensamentos em imagens quando diz "que nem todos os sonhos apresentam a transformação da imaginação em imagem sensorial", sendo que existem sonhos "compostos apenas de pensamentos; nem por isso, nega-se a eles o caráter de sonho". 42 Um exemplo para isso seria o sonho que ele mesmo teve, com o título desconhecido, porém com som humanista de "Autodidasker". Lidar com nomes na interpretação dos sonhos pressupõe que os mesmos não sejam apenas ouvidos, mas também vistos lite- ralmente, como no caso da transição de no sonho das Parcas, para (relacionado com um caso de plágio), para depois chegar à "ponte de palavras" (Wortbrücke), que levava ao professor venerado com nome de sendo que o termo Wortbrücke continha ainda o nome de outro professor com nome de Brücke; Freud faz questão de comentar expressamente que passou as horas mais felizes no instituto deste último. Se o abuso em relação aos nomes desperta um mal-estar, Freud o justifica, bem de acordo com a ânsia de vingança descoberta na vida dos sonhos, como um "ato de retaliação" pelo fato de o seu nome 381</p><p>também ter sido, "inúmeras vezes, vítima dessas brincadeiras débeis" o que, por sua vez, é uma oportunidade para pensar em Goethe. Na ocasião de um verso de Herder que zombava do seu nome, ele teria dito que as pessoas seriam tão sensíveis em relação ao nome porque estariam cobertas por ele como pela própria pele. Isso acaba em uma das poucas passagens em que os jogos de pensamento, embora não os considere excessivos, se apresentam como insuperáveis e em cujo centro havia surgido surpreendentemente um dos seus próprios problemas de vida: "Percebo que essa divagação sobre o abuso dos nomes servia para preparar apenas essa queixa (isto é, sobre o abuso do Nesse centro também pode surgir algo que o interpretante não consegue deixar de lado "porque os sacrifícios pessoais que isso demandaria seriam excessivos". O leitor tem que partir do pressuposto de que o autor possua a interpretação, sendo que, no caso extremo, há nesse centro uma resistência que o inter- pretante também confessa não conseguir superar. Até no caso do protossonho "Irma" o interpretante pressente que "a inter- pretação dessa parte não foi levada suficientemente longe para acompanhar todo o sentido escondido". Não se trata da resis- tência de abrir mão de algo, mas qualquer avanço é freado. Para cada sonho haveria que pressupor essa zona de obscuridade: "Cada sonho possui pelo menos um ponto que é insondável, um umbigo, por assim dizer, que o conecta ao A metáfora do ponto obscuro irresolúvel do sonho enquanto "umbigo" é mais do que o limite da interpretação dos sonhos, é mais do que a aceitação de desistir do último mistério, em que nem o postulado penetrante do analista de dar um sentido pode tocar. É como a afirmação imaginativa desse ponto obscuro enquanto centro de ligação entre o sonho manifesto e o latente. Talvez se trate do núcleo, intocável pelo trabalho do sonho, do próprio pensamento do sonho sem disfarce e, por isso, incom- preensível, isto é, do "em si" dos sonhos. Para essa ligação da legibilidade do sonho com um pano de fundo insondável não parece haver um fundamento na teoria 382</p><p>pertinente. Pois qual seria lugar do insondável no caso de um instrumento criado pelo aparelho psíquico para trazer seu pensamento, mesmo que codificado, até seu destinatário, para que este, como seu leitor, se instale como dono de si mesmo? Parece contradizer a sistemática dessa teoria que ela postula um resto não apenas provisório, mas definitivo na interpretação dos sonhos. Porém aquilo que pode ser chamado de "essencial" só pode ser decidido em relação ao sonho como realização dos desejos; esta tem como apresentar a escuridão impenetrável? Também não é claro como as formas principais da inter- pretabilidade, do caráter imagético e escrito, se posicionam em relação à função da realização do desejo. Se se considerar a interpretação dos sonhos, em primeiro lugar, como a reinserção de um acontecimento psíquico resistente e difícil de ser apreen- dido no contexto vivencial do sujeito, basta, para ter sucesso, que o sonho, como formação de identidade, seja compreendido além da fase do sono, que a em risco. A interpretação dos sonhos teria que mostrar que não há nada de estranho que se apenas algo familiar num disfarce não familiar. Nessa con- cepção mais modesta de realização dos sonhos enquanto mero preenchimento e complementação da identidade, a interpreta- ção dos sonhos não tem necessidade de fazer outra coisa a não ser por algo que se insere como elo importante e equivalente no encadeamento das nossas ações Ela não precisava fazer qualquer investimento maior na diferença entre imagem e escrita. Pode-se ir mais longe ainda: a teoria do sonho como forma de realização do desejo de já seria suficiente para acalmar o causado pelos sonhos; tornar determinados sonhos legíveis teria como única importância fazer a teoria funcionar e mantê-la funcionando. A especificação das realizações dos desejos ultrapassa a ânsia geral do sujeito de que nada que não tem sentido poderia acon- tecer com ele. Levado ao extremo, seria totalmente interpretar ou fazer interpretar os próprios sonhos se houvesse certeza de que não se trata de acontecimentos</p><p>medo que não apenas é reduzido mediante O sonho, mas se bascia nele, é medo de que ser dominados por algo que não seja nos mesmos. Exatamente aqui, a teoria do sonho de Freud acaba desembo- cando nas velhas preocupações filosóficas em torno do do nexus idearum, segundo O qual qualquer representação na consciência deve ter sido produzida pelas representações que lhe precederam e assegurada mediante a consistência com elas. Esse princípio poderia ser minado pelo sonho. A integração do sonho na história do indivíduo pressupõe que a sua "legibilidade" só existe para o próprio sonhador, ou seja, ele tem que ser estimu- lado para a autoanálise. Também é claro que isso nem sempre é possível, que a "interpretação" deve ser ensinável e praticá- vel, o que é o objetivo da ressimbolização do sonho a partir do repertório da filogênese. Ela facilita trabalho do analista que consiste em tornar o sonho do outro legível, mas diminui a segurança da teoria quanto ao caráter autógeno dos sonhos enquanto fenômeno do mais velho princípio, a saber: que nada acontece em vão e que nada se perde. Assim, há uma oposição irreconciliável entre o sonho como ponte de sentido daquela identidade única e daquela única his- tória estendida por sobre a perda de si no sono e o sonho como inserção da identidade e história humanas na consciência indivi- dual, que, nessa segunda acepção, não tem nenhuma chance para chegar à compreensão de si mesmo. Talvez seja essa antinomia que ilustra que Freud estabeleceu um nexo entre a falta de su- cesso de A interpretação dos sonhos e a dependência intrínseca do sonho da linguagem, postulando para cada língua um mundo de sonhos correspondente e deduzindo disso também a intradu- zibilidade de sua obra A interpretação dos sonhos, decorrente de sua "Via de regra, um sonho não pode ser traduzido para outras línguas e um livro como este, eu diria, 384</p>