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<p>Daniel Munduruku MEU VO APOLINÁRIO Um mergulho no rio da (minha) memória Ilustrações de Rogério Borges Studio Nobel</p><p>ÍNDICE Introdução 7 A raiva de ser índio 9 13 Crise na cidade 22 O vô Apolinário 25 A sabedoria do rio 29 O dos pássaros 32 Apolinário se une ao Grande Rio 35 Palavras do autor 38 Palavras do ilustrador 39 Glossário 40</p><p>osto muito de contar Histórias moram dentro da gente, lá G no fundo do coração. Elas ficam quietinhas num canto. Parecem um pouco com areia no fundo do rio: estão lá, bem e deixam sua tranqüilidade quando as revolve. elas se mostram. Tem estórias que a gente inventa e cria na cabeça, fruto da imagina- ção ou da inspiração de algum que quer que a gente as ofereça às outras pessoas. Podem ser estórias engraçadas, ou tristes. Estórias ajudam as pessoas que as de alguma forma que eu ainda não descobri. Apenas sei que elas tocam no fundo e é por isso que as pessoas gostam delas. E tem - estas, sim, escritas com H que aconteceram de ver- dade e que fazem parte da gente, são a vida da gente. Acontecimentos que fizeram a gente saber sobre nós mesmos, ou fatos que fizeram a gente rir, ou chorar, ou só pensar. Mas são sempre fortes porque marcam a nossa personalidade, nosso modo de ser e agir no mundo. A história que vou contar não é sobre a minha pessoa. Ou melhor, é sobre a minha pessoa, mas não a que sou hoje - porque já não sou mesmo que fui ontem e sim a pessoa que fui me tornando ao longo dos poucos anos de convivência que tive com meu avô, um velbo índio que se sentava de cócoras para nos contar as dos ancestrais a quem ele chamava carinbosamente de e Na verdade não sei muita coisa sobre meu avô porque o via muito pouco. No entanto, esse pouco de convivência marcou profundamente minha vida, formou minha meu coração e meu corpo de Acho até que falar dele me faz resgatar a história de meu povo e me dá mais entusiasmo e aceitação da condição que não pedi a Deus, mas que recebi Dele por algum motivo. É isto que quero neste pequeno livro: partilbar um pouco da ria, da do meu povo e do meu vô(o) ancestral que me levou a com- preender a sabedoria que está em todas as coisas e me fez descobrir que não nascemos para estar o tempo todo no chão. Nascemos com asas para voar em muitas às vezes sem sair do lugar. 7</p><p>A RAIVA DE SER ÍNDIO A gente não pede para nascer, apenas nasce. Alguns nascem ricos, outros pobres; uns nascem brancos, outros negros; uns nas- cem num país onde faz muito frio, outros, em terras quentes. Enfim, nós não temos muita opção mesmo. O fato é que, quando a gente percebe, já nasceu. Eu nasci índio. Mas não nasci como nascem todos os índios. Não nasci numa aldeia, rodeada de mato por todo lado; com um rio onde as pessoas pescam peixe quase com a mão de tão límpida que é a água. Não nasci dentro de uma Uk'a1 Munduruku. Eu nasci na cidade. Acho que dentro de um hospital. E nasci numa cidade onde a maioria das pessoas se parece com índio: em Belém do Pará. Nasci lá porque meus pais moravam lá. Meu pai é índio e viveu numa aldeia, como depois eu iria viver também. Fui O primeiro filho da família a nascer na cidade. Antes de mim já tinham nasci- do quatro meninas e dois meninos (um dos meninos não cheguei a conhecer), todos nascidos fora da cidade. Depois de mim viriam ainda três meninos. Era uma alegria só. Meus pais tinham ido para Belém em busca de uma maneira de sustentar tantas bocas, uma vez que já não era tão fácil viver na aldeia e eles sonhavam com a cidade. Por isso meu pai aprendeu uma profissão: carpinteiro. Foi, e ainda é, um grande mestre nesse 9</p><p>ofício. Minhas primeiras lembranças - além de um terremoto que vivi aos quatro anos - são as de meu pai martelando, serrando e falando sobre as propriedades da madeira (acho que ele falava era do espírito das arvores, só que não me lembro bem disso). De qual- quer modo, meu pai era um grande artesão e foi graças a essa sua habilidade que pôde alimentar tantos filhos durante tanto tempo. Nós sempre moramos na periferia de Belém. Nossa não era nossa e muitas vezes tivemos que mudar de lugar, de casa e de bairro. Foi uma época bem sofrida. Meus irmãos tiveram que ir tra- balhar na cidade para ajudar nas despesas. Eu mesmo fui vendedor de doces, paçocas, sacos de feira, amendoim, chopp (é um suco colocado em saquinhos plásticos congelados. Em São Paulo cha- mam de geladinho). Fazia tudo isso com alegria. Eu era uma crian- ça que gostava de fazer coisas novas. 10</p><p>Só não gostava de uma coisa: que me chamassem de índio. Não. Tudo, menos isso! Para meu desespero, nasci com cara de índio, cabelo de índio (apesar de um pouco loiro), tamanho de índio. Quando entrei na escola primária, então, foi um deus-nos-acuda. Todo mundo vivia dizendo: "Olha índio que chegou à nossa escola". Meus primeiros colegas logo se aproveitaram para colocar em mim O apelido de Não preciso dizer que isso me dei- xou fulo da vida e foi um dos principais motivos das brigas de rua nessa fase da minha história - e não foram poucas brigas, não. Ao contrário, briguei muito e, é claro, apanhei muito também. E por que eu não gostava que me chamassem de índio? Por causa das idéias e imagens que essa palavra trazia. Chamar alguém de índio era classificá-lo como atrasado, selvagem, preguiçoso. E, como já contei, eu era uma pessoa trabalhadora que ajudava meus pais e meus irmãos e isso era uma honra para mim. Mas era uma honra que ninguém levava em consideração. Eu ficava muito tris- te porque meu trabalho não era reconhecido. Para meus colegas só contava a minha aparência... e não que eu era e fazia. Somente um lugar me deixava feliz. Aliás, dois. Um era quintal de casa, pois a gente morava numa casa onde havia um imenso terre- no baldio e ali eu reunia meus colegas para brincar. Ali treinei meus ouvidos para ouvir as conversas das corujas e dos sapos. Ali me refugiava quando queria ficar sozinho e pensar nos conhecimentos que estava adquirindo, os primeiros livros que estava começando a ler. Ali comecei a jogar futebol nos campos improvisados que a gente fazia. Havia, porém, outro lugar maravilhoso para onde sem- pre fazia questão de ir. Para esse lugar, entretanto, eu não podia ir sozinho, tinha que ser levado, porque ficava longe da cidade. Era nossa aldeia familiar em 11</p><p>2</p><p>MARACANA é nome de um pássaro muito bonito que canta belas melodias ao amanhecer e ao pôr-do-sol. Também é O nome de um povo indígena que foi dizimado ao longo da história e que não deixou quase nenhum vestígio de sua passagem pelo planeta. O que sabemos sobre ele faz parte da memória de alguns povos vizi- nhos que contam sua saga e seu sofrimento. No lugar da aldeia do povo foi erguida uma cidade com esse mesmo nome. Nossa aldeia ficava nesse município e se chamava Terra Alta por causa de sua localização geográfica. Lá eu passei os melhores anos de minha vida. Vou contar algumas passagens que podem até dar um pouco de inveja da minha infância. A primeira lembrança que carrego comigo é a da escuridão da noite. As noites eram muito escuras e toda a iluminação era feita pelas fogueiras acesas em frente das casas e pelas poucas lampari- nas a querosene, uma inovação para nós. A gente se sentava dian- te das casas dos parentes e ficava horas a ouvir histórias contadas pelos velhos e velhas da aldeia. Algumas histórias eram horripilan- tes e davam medo de ouvir. Elas falavam dos seres da floresta que gostam de brincar com os humanos. Essas criaturas apareciam de 13</p><p>vez em quando para amedrontar as criancinhas. Era saci-pererê, a matintaperera, curupira, boitatá, entre outros. Nossas contavam a história de forma tão encantada que pareciam verda- deiras e todos morriam de medo, tanto que, muitas vezes, a gente não tinha coragem nem mesmo de levantar para ir embora. Nossa fantasia era alimentada e visitada por esses pequenos seres - ver- dadeiros - trazidos até nós pela VOZ cantilena de nossas Lá eu dormia em rede (aliás, como todos os outros). Elas eram armadas nos grandes mourões que cercavam as casas. Quando eram muitas as redes para serem atadas numa mesma maloca, as crianças quase sempre iam dormir com os irmãos mais velhos para que coubessem todos. Lembro que eu sempre cantava uma prece tradicional com meu irmão. Era uma prece que falava de um ser da natureza que nos protegia enquanto dormíamos. Essa é uma lem- brança muito doce para mim. É claro que de manhã cedo meu irmão logo brigava comigo. Motivo? Ele estava todo ensopado do xixi que eu despejava nele, muitas vezes por medo de sair à noite sozinho para fazer no mato. 14</p><p>Assim que amanhecia, íamos para O tomar banho. Depois, a gente comia um delicioso mingau de mandioca e banana com fari- nha de tapioca e beiju. Quando era dia de ir à roça, saíamos cedo e caminhávamos mais de três horas até chegar ao local. Nós, os meni- nos, íamos na frente para proteger O grupo. Bem, na verdade íamos mais é brincando mesmo, coisa que toda criança gosta de fazer. Na roça eu gostava de ficar perseguindo as formigas. Elas são interessantes porque trabalham O tempo todo. Via todas indo e vindo para um lugar indeterminado, uma grande confusão. Umas levavam enormes folhas nas costas e outras, parecia, vigiavam O que as primeiras faziam. De vez em quando paravam e trocavam algu- mas idéias. Eu ficava imaginando a conversa: "Olá, minha parente, tudo bem Está pesada essa folha? Quer ajuda?" "Tá um bocadinho, sim, mas acho que dou conta de levar até em casa. Será que vai chover hoje?" "Acho que não. O tempo está firme. Mas, pelo sim pelo não, é melhor a gente se apressar." "É isso aí! Vamos nessa." "Tchau!" Eu tentava persegui-las e ia atrás delas até onde fosse possível, no entanto elas sempre escapavam da minha vigilância. Só deixava de observar as formigas quando minha mãe me chamava para algum serviço. Confesso que era muito boa aquela vida que eu levava, longe dos conflitos da cidade grande e... dos apelidos dados por meus amigos. vezes aconteciam coisas difíceis de acreditar. Lembro uma vez que a gente se perdeu no meio da mata. Eu e meus compa- nheiros estávamos brincando juntos em um lugar de onde dava para ver as mulheres trabalhando no roçado. Tawé, que estava um pouco mais dentro da mata, nos chamou para ver um rastro dife- 15</p><p>rente que ele havia encontrado. Eram pegadas de um animal que nunca tínhamos visto antes. Parecia um pé humano, porém peque- no e com sete dedos. No chão havia pegadas para todos os lados, por isso era impossível saber para onde teria ido "a coisa". Ficamos meio enfeitiçados por aquilo e fomos seguindo um grupo de pega- das que ia mata adentro. Sentíamos medo, mas um incentivava outro a continuar atrás do bicho. E lá fomos nós: andamos, anda- mos, andamos e as pegadas iam ficando mais fundas; deduzimos que estávamos próximos de descobrir que "coisa" era aquela. O tempo passou bem rapidinho à medida que entrávamos na mata. Escurecia e nossa única preocupação era poder ver de perto bicho de pegada diferente. Se tivéssemos sorte, poderíamos agarrá-lo e levá-lo para a aldeia. Só nos demos conta de que estávamos nos afastando demais das mulheres quando ouvimos pio da coruja anunciando a noite que chegava. Isso parece que nos despertou. Koru choramingou. Segu- rei a mão dele, mas não paramos de seguir as pegadas. Quanto mais andávamos, mais estar próximos. De repente, ouvi- mos uma risada forte e estranha. Não era uma risada humana. Paramos para ouvir melhor. Tudo era silêncio. Ficamos conversan- do, a fim de decidir que fazer. Todos sabíamos que estávamos perdidos. Não tínhamos deixado nenhum sinal e, estranhamente, as pegadas haviam desaparecido. Não víamos mais nada à nossa frente nem Arô começou a chorar. Nós acalmamos. Paramos sob uma gran- de Não adiantaria nada querer voltar ou procurar O caminho que nos levasse de volta. Estávamos perdidos mesmo e somente pela manhã poderíamos retornar ou aguardar os adultos chegarem. No silêncio da noite podíamos ouvir todos os tipos de barulho da floresta: lá longe, rosnar da onça pintada; mais perto, víamos olho brilhante da coruja; vez por outra sentíamos voar de aves 16</p><p>inquietas com nossa presença. O medo nos acompanhava. Andei um pouquinho ao redor da árvore que nos hospedava e encontrei uma planta que meu pai dizia ser mágica, pois tornava invisível aquele que a passasse em seu corpo, bem como anulava seu cheiro. Com isso, afastamos animais. Peguei a planta e, com uma pedra, soquei-a até ficar pastosa. Cuspi nela e a esfreguei no corpo de cada um dos amigos que estavam comigo: Tawé, Koru, Arô, Kaxi, Kabá, Fizemos uma pequena cobertura com palha de tucum para nos proteger da chuva que ameaçava cair. Então, mascamos um pouco de erva de dormir e nos juntamos uns aos outros para nos aquecer. Acordamos antes do sol graças a gritos que ouvíamos ao longe. Eram os adultos que estavam nos procurando. Levantamos bem rápido. Tawé subiu na árvore para balançá-la a fim de fazer os adultos notarem nossa presença. Ele balançava a árvore e nós gri- Depois fizemos silêncio. O grito que ouvimos em segui- da nos deu a impressão de que os adultos estavam se afastando. Resolvemos tomar a direção do sol quando nasce. Ela nos levaria até O grande rio Sabíamos que quando nos perdêssemos deveríamos procurar um ele nos levaria para um grande rio e seria mais fácil nos localizar. Assim fizemos. Em pouco tempo encontramos O igarapé e seguimos até O rio. Quando já havíamos andado bastante, ouvimos novos gritos à nossa frente. Eram os 18</p><p>guerreiros que estavam chegando. Gritamos de volta e logo ele nos Quando viram que estava tudo bem conosco, nos abra- e fizeram grande festa, elogiando-nos pela coragem e esper- teza em vencer os espíritos da noite; aproveitaram também para nos dar uma bronca por termos nos distanciado de nossas mães. De noite, O velho pajé da aldeia nos disse que tivemos muita sorte; segundo ele, quem havia nos desorientado com suas pega- das mágicas fora O curupira, O espírito que anda para trás. Ele engana desavisados, chamando-os para a floresta para deixá-los à mercê dos espíritos que se alimentam à noite. E ainda fica rindo de sua traquinagem. Quando eu cresci um pouco mais e já tinha oito anos, meu tio me levou para tirar caranguejo no mangal (ou manguezal). Foi uma festa para mim e para amiguinhos. Era uma espécie de ritual de inicia- ção por que estávamos passando. Era um sinal de que estávamos crescendo, ficando homens e de que já tínhamos alguma responsa- bilidade no sustento da aldeia. Só quando se chegava a essa idade é que mais velhos deixavam a gente tirar caranguejo no mangue. O mangal ficava distante da aldeia. Era preciso caminhar por seis horas mata adentro para chegar lá. É bom dizer que O manguezal é a lama que fica sob as árvores quando a maré fica baixa. É lá que caranguejo mora. Toda vez que percebe perigo O bichinho cava um buraco na lama e foge. Os tiradores de caranguejo têm de esti- car O braço atrás dele. Quando têm sorte, conseguem trazer O bicho na mão. Algumas vezes ele vem pendurado no dedo, pois para se defender pinça O agressor com as patas. A mordida é bem dolorosa. É claro que não tínhamos experiência e apenas carregávamos O paneiro, uma espécie de cesto com grandes furos para que O adul- to colocasse sua presa dentro dele. Essa "pesca" do caranguejo durava O dia inteirinho e só retornávamos para a aldeia quando já estava escurecendo e todos nos esperavam para fazer um gostoso jantar com os bichos que a gente trazia. 19</p><p>CRISE NA CIDADE Isso tudo acontecia durante as férias escolares, nos meses de julho, dezembro, janeiro e fevereiro. Eram dias muito felizes, de paz e tran- qüilidade. Embora minha mãe gostasse muito dessa vida pacata da aldeia, tinha que acompanhar meu pai na cidade, e nós, de nossa parte, torcíamos para que as férias nunca acabassem. A cidade era um universo à parte para mim. Eu tinha bons ami- gos e com eles podia aproveitar minha infância. Foi com eles que aprendi muitas brincadeiras interessantes. Brincadeiras de pular corda, salto de rodas, de namoricos e de beijinhos nas meninas. Divertia-me a valer ouvindo as piadas que eles contavam e suas con- versas de como faziam para conquistar as primeiras namoradinhas. Quando precisava ajudar em casa, eu ia para a feira vender algu- ma coisa ou então ia simplesmente ajudar as pessoas a carregar seus volumes nos supermercados e assim ganhar algum trocado. E, como já disse, fazia tudo isso com alegria. Gostava muito de ir à escola. Era uma escola religiosa com bas- tante espaço para brincadeiras e jogos, comuns nas obras salesia- nas. Lá, eu passava parte do meu dia. Jogava futebol, nadava, pra- ticava atletismo, jogava pingue-pongue, espiribol, andorinha, entre outras coisas. E estudava, é claro. Porém foi lá também que vivi minha primeira crise. Já disse que meus colegas de escola coloca- vam apelidos em mim e que eu não gostava disso. O motivo da minha crise foram os apelidos. Nessa época, eu estava com quase 22</p><p>nove anos e cursava a terceira série primária. Já era, portanto, um homem ou quase. Todos os meus colegas falavam de suas namo- radinhas, de suas paqueras de escola. E eu? Não acontecia nada!!! Eles até gozavam de mim, achando que eu era... bicha. Bicha, eu? Que nada! Eu gostava de uma menina de minha idade.. Também era apaixonado pela professora de Português, para quem escrevi meus primeiros versos românticos. Um dia tomei coragem e fui falar com minha "paixão" secreta. Ela era linda e tinha Linda no nome. Lindalva. Ela sabia que era linda e por isso era um pouco convencida. Quando a chamei para con- versar, ela veio meio a contragosto. Oi, Lindalva. Eu queria muito falar com você. Sabe, faz tempo que sinto algo por você. Não percebeu isso, não? Eu não. Nunca percebi nada diferente em você. Mas é verdade. Eu gosto muito de você. Não quer namorar comigo? O quê? Você acha que sou besta, é? Acha que vou trocar O gato do Edmundo por um, um, um... índio, feito você? Você tem é titi- ca de galinha na cabeça. Se quiser ser meu amigo, não toque mais nesta história, tá legal? O mundo veio abaixo para mim, desmoronou. Fiquei triste, magoado com Linda. O pior, contudo, veio depois. Linda contou para todo mundo que tinha acontecido e meus colegas caíram matando em cima de mim, repetindo tudo O que eu não queria ouvir: O índio levou O fora da Linda porque é feio, porque é selva- gem, porque é índio. Foi a gota d'água. Por sorte era sexta-feira e minha mãe já tinha prometido que a gente ia para a aldeia de Terra Alta passar uns dias. Que alívio! Foi realmente um alívio, e também O começo de uma grande aventura pessoal e espiritual. Foi lá que comecei a olhar O mundo de outra maneira. 23</p><p>APOLINÁRIO Todo mundo percebeu que eu estava aborrecido naqueles dias. Só não sabiam por que eu não queria me divertir como sempre fazia quando chegava à aldeia. Todos viram que eu comecei a andar sozinho. Estava triste e cabisbaixo. Todos olhavam para mim tentando adivinhar O que acontecera, mas eu não dizia nada. Esta- va nervoso e não queria que ninguém chegasse perto de mim. Nós temos O costume de tomar banhos comunitários nos igara- pés. As mulheres vão primeiro e fazem O serviço da casa, como lavar os utensílios domésticos e as roupas sujas. Passam horas den- tro d'água junto com as crianças de colo e aquelas com menos de cinco anos. À tarde, é a vez dos homens irem para O igarapé e fica- rem muitas horas conversando sobre diferentes assuntos. Nesse momento do dia os meninos também podem ir, especialmente quando já têm mais de cinco anos. No entanto, tive a impressão de que essa regra havia sido abo- lida. Não conseguia perceber O tempo passando, as pessoas cum- prindo suas tarefas, as crianças se divertindo. Tudo estava meio esquisito, como se O mundo tivesse parado. Tinha a sensação de estar muito sozinho e de que algo diferente iria acontecer... e aconteceu. 25 SÃO PAULO BIBLIOTECA</p><p>Meu avô Apolinário - que ainda não apareceu nesta história, porque até aqui não havia marcado presença em minha memória infantil - surgiu ao meu lado como num passe de mágica. Passou a mão suavemente sobre minha cabeça e disse: - Hoje vamos tomar banho só nos dois. Em seguida, começou a andar em direção ao igarapé e eu senti que devia acompanhá-lo. Confesso que a figura de meu avô sempre foi um mistério para mim. Meu pai nunca falava sobre ele. Parece até que os dois não se gostavam. Eu nunca soube a razão. Mas ele era uma figura imponente. Na época em que se passa esta história ele já devia estar com mais de oitenta anos. Mesmo assim, fazia todas as coi- sas que um homem mais jovem fazia: caçava, pescava, ia para a roça, preparava belíssimos paneiros com talas de buriti. Estava sempre trabalhando. E era sempre assim que eu via quando che- gava à aldeia: sentado de cócoras sobre os calcanhares, pitando um cigarro de palha e com as mãos ocupadas, tecendo um novo paneiro. 26</p><p>Embora eu o visse sempre, nunca me aproximei muito dele. Achava velho um tanto misterioso e sentia, confesso, um pouco de medo. As pessoas, eu via, sempre se aproximavam dele a fim de falar, pedir conselhos ou para que ele receitasse alguma erva para a cura de doenças. A todos ouvia com muito carinho, no entanto quase nunca levantava a cabeça ao dirigir-se às pessoas. Ficava tempo todo de olhos fechados, parecia que estava dormindo. Mas não estava. Quando a pessoa acabava de dizer tudo que queria, ele se levantava, ia até quintal de sua casa e trazia nas mãos algumas folhas e as entregava ao doente explicando que deveria fazer para se curar. Outras vezes - quando assunto parecia ser mais sério -, ele mesmo operava a cura do paciente. Fazia a pessoa deitar-se ou sentar-se dentro de sua maloca, pegava uns ramos de folhas, incen- sava-as com seu cigarro de palha, molhava-as em água nova e então as jogava pelo corpo do paciente enquanto recitava uma prece numa língua, pelo menos parecia a mim, estranha. Também usava e penas de mutum. O doente sempre se curava e trazia, como pagamento, algum produto por ele cultivado. Essas eram as lembranças que tinha do meu avô quando ele me chamou para tomar banho naquela tarde de sábado. E eu fui, sem saber que iria acontecer. 27</p><p>A SABEDORIA DO Quando chegamos ao igarapé onde a gente sempre tomava banho, eu parei. Apolinário apenas balançou a cabeça negativa- mente e apontou um lugar mais adiante. Fui atrás dele. Eu nunca tinha tido coragem de subir rio, mas não fiquei surpreso com convite de meu Ele me levou para um lugar belíssimo, com uma queda-d'água mais ou menos alta. Abaixo dela havia um poço. Fiquei encantado com a beleza do lugar. Apolinário me disse sim- plesmente: Está vendo aquela pedra lá na cachoeira? Respondi que sim. Então sente nela e fique lá. Não saia enquanto eu não mandar. Você só tem que observar e escutar O que rio quer dizer pra você. Foi O que fiz. Lá embaixo, Apolinário entrou na água e com as mãos em concha começou a jogar água sobre seu corpo velho e cansado. Ficou ali por bastante tempo sem sair do rio. Eu olhava fixamente para as águas pensando no que eu deveria ouvir. Não ouvi nada, é claro. Não daquela vez. Quando a tarde já estava caindo, meu avô me chamou. Agora já pode tomar banho. Mergulhei com vontade na água fria. Ao subir à tona, me vi sozi- nho. Olhei para todos os lados. Meu avô tinha me deixado. Vesti correndo meu calção e comecei a gritar por ele. Ele reapareceu de surpresa, como sempre. 29</p><p>- Por que você está gritando? Fiquei envergonhado, mas ele compreendeu. Fui fazer xixi. Você não sabe que não se deve fazer xixi no iga- rapé? O igarapé é de água pura e xixi contamina, enfraquece seu espírito. Espero que tenha aprendido alguma coisa com nossa vinda até aqui. Fiquei quieto. Não tinha aprendido nada, pelo menos não tinha me dado conta ainda. - Você chegou à aldeia muito nervoso estes dias, não foi? Veio assim da cidade, lugar de muito barulho e maldade. Lá as pessoas maltrataram e você se sentiu aliviado quando soube que viria para cá, não foi? Sei que está assim porque as pessoas julgam inferior a elas e seus pais não ajudam muito a compreender tudo isso. Pois bem. Já é hora de saber algumas verdades sobre quem você é. Por isso eu trouxe aqui. Você viu rio, olhou para as águas. que eles lhe ensinam? A paciência e a perseverança. 30</p><p>Paciência de seguir O próprio caminho de forma constante, sem nunca apressar seu curso; perseverança para ultrapassar todos os obstáculos que surgirem no caminho. Ele sabe aonde quer chegar e sabe que vai chegar, não importa que tenha de fazer para isso. Ele sabe que destino dele é unir-se ao grande rio Tapajós, dono de todos os rios. Temos de ser como O rio, meu neto. Temos de ter paciência e coragem. Caminhar lentamente, mas sem parar. Temos de acreditar que somos parte deste rio e que nossa vida vai se jun- tar a ele quando já tivermos partido desta vida. Temos de acreditar que somos apenas um fio na grande teia da vida, mas um fio importante, sem O qual a teia desmorona. Quando você estiver com esses pensamentos outra vez, venha para cá ouvir O rio. Acho que esse foi O maior discurso que ouvi de meu Depois disso conversamos muitas vezes. Sempre sobre coisas maravilho- sas. Nasceu entre nós uma cumplicidade muito grande e ele foi me conduzindo por um caminho de conhecimento que nunca imaginei que fosse possível ter fora da cidade. O mais impressionante é que O velho Apolinário não conhecia nada da cidade de Belém ou de nenhuma outra. Nunca soube que ele tivesse viajado para outros lugares. Meu pai depois confirmou que, de fato, meu avô nunca havia saído da aldeia. 31</p><p>DOS PÁSSAROS Depois daquele dia no rio voltei a aproveitar a vida da aldeia. Tornei-me alegre e brincalhão com todos. Porém, não consegui mais falar com meu avô, sempre ocupado em atender a outras pes- soas. Passei a mais a aldeia. Pedia para minha mãe ir para lá todo final de semana e, para ajudar a pagar a passagem, eu me esforçava ainda mais na escola e vendia produtos na feira livre. Fiquei apaixonado pelo vô Apolinário. Num outro final de semana, logo que cheguei ele me chamou e disse que queria caminhar um pouco comigo. Pegou seu cajado, que servia de bengala, e saímos andando a esmo. Quando chega- mos bem perto de uma grande mangueira, ele limpou um espaço no chão e disse para eu me deitar olhando para O céu. Obedeci. Ele também se deitou. Apontou para O céu e acompanhou com dedo dos Hoje posso dizer que ele era um maes- tro acompanhando a melodia que os pássaros tocavam lá no céu. Os pássaros são porta-vozes da Eles sempre nos contam algo. Do futuro ou do presente. O canto do pássaro pode ser um pedido para que você aja com O coração. Sonhar com um pássaro significa que uma presença ancestral está mostrando sua força. Há visitas aladas que trazem bons augúrios e há as que 32</p><p>trazem agouros. Preste atenção: toda vez que for tomar uma deci- são importante, um ser alado aparecerá. Era sempre assim. Falava pouco. Dizia muito. Eu ainda estava um pouco surdo e não compreendia muito bem O que ele queria dizer, mas guardava tudo no fundo do coração. Um dia, na beira da fogueira, ele me disse assim: - Tem coisas que nunca iremos saber porque nossa vida é curta. Só que elas estão escritas na natureza. As angústias dos homens da cidade têm seu remédio na terra e eles olham para céu. Quem quiser conhecer todas as coisas tem que perguntar para nosso irmão fogo, pois ele esteve presente na criação do mundo. Ou aos ventos das quatro direções, às águas puras do rio, ou à nossa Mãe Primeira: a terra. E se calava, como se eu tivesse condições de compreender tudo aquilo. - Nosso mundo está vivo. A terra está viva. Os rios, fogo, vento, as árvores, os pássaros, os animais e as pedras, estão todos São todos nossos parentes. Quem destrói a terra destrói a si mesmo. Quem não reverencia os seres da natureza não merece viver. 33</p><p>APOLINÁRIO SE UNE AO GRANDE RIO Durante três anos foi assim. Eu ia para a cidade estudar, mas queria estar de volta quanto antes para poder ouvir a sabedoria do meu avô. O melhor desta história é que, aos poucos, fui me aceitando índio. Já não me importava se as pessoas me chamavam de índio, pois agora isso era motivo de orgulho para mim. Eu sem- pre lembrava meu avô, orgulhoso de sua origem. Ele me havia feito sentir orgulho também. Ele estava me ensinando quão bonito era ter uma origem, um povo, uma raiz, uma ancestralidade. Falando nisso, recordo dia em que ele me disse: Quando pássaros vierem te visitar em sonhos, é bom ouvi- los, pois são os ancestrais que vêm junto com eles para dar forças e lembrar quem você é. Tudo que é bom acaba logo, diz O ditado. E diz com justiça, porque é verdade. Numa tarde de outubro, meu pai me chamou a um canto e me deu a notícia mais triste que já tinha ouvido na minha curta vida: meu avô tinha morrido. Sempre me emociono muito quando lembro essa passagem da minha vida. Deixo rolar uma lágrima. Lágrima que se junta ao rio que levou meu avô. 35</p><p>Fiz questão de ir vê-lo pela última vez. Meu pai pediu dispensa no trabalho e me acompanhou. Fomos ele e eu apenas. Chegando lá, velho já estava no caixão. Tinha um rosto bem sereno e lo. Peguei nas mãos dele para sentir, uma última vez, a energia do ancião que se transformaria em ancestral para meus filhos e netos. Nesse momento minha mente recuou alguns meses antes, quando timidamente perguntei a ele O que era ser índio. A resposta veio como um - É ter uma história que não tem começo nem fim. É viver pre- sente como um presente, uma dádiva de Deus. LT Tocando nas mãos do meu avô falecido, recordei-me ainda de nosso último encontro, em que ele me anunciou que sua hora havia chegado. Mas não foi assim, de qualquer modo. Antes ele ouviu que eu tinha para lhe dizer pois eu havia chegado à aldeia todo contente e fui imediatamente procurá-lo. Com todo orgulho do mundo, anunciei a meu sou índio. Ele abriu um lindo sor- riso com sua boca já um tanto desdentada, abraçou-me e disse: 36</p><p>- Então a minha hora já chegou. Preciso me unir ao Grande Rio. Lembre sempre, porém, que só existem duas coisas importantes para saber na vida: 1) Nunca se preocupe com coisas pequenas; 2) Todas as coisas são pequenas. Agora ele estava ali. A sabedoria que me encheu de orgulho fazia parte do passado que ele não queria que eu rememorasse. Hoje compreendo mais sobre O que ele me dizia. Já sonhei mui- tas vezes com pássaros. Eu mesmo já me tornei um deles em meus sonhos, certamente amparado pelas grandes asas do pássaro gigan- te que é meu avô no mundo ancestral. Nunca tomei decisões sem antes ouvir enviados alados e escutar O que eles têm a me dizer, conforme meu avô me pediu. Ele, que foi meu (a)vô(o) para minha compreensão e ancestralidade. Esta história mesma nasceu de um sonho. Já enfrento O mundo com mais serenidade e nunca esqueço de colocar os pés no chão, na água, nem de sentir O vento batendo em meu rosto trazendo notícias de longe. Não tenho pressa de chegar, pois sei esperar e ouvir e perseverar; sei também que, como rio, irei chegar aonde quero. 37</p><p>R$ Data 18 6 2001 n.° de chamada BI 980.41 M 19473 m GLOSSÁRIO 1 Uk'a: palavra da língua Munduruku que significa "casa". 2 Maloca: grande casa comunal onde moram várias famílias. É também um jeito popular de referir-se à moradia. 3 Aritana: nome de uma novela. O protagonista, que na novela era chamado de Aritana, era Carlos Alberto Ricceli em seu primeiro papel na televisão. Só depois de crescido é que fiquei orgulhoso por ser chamado de Aritana porque esse é nome de um grande líder do povo Yawalapiti do Parque Nacional do Xingu. 4 Igarapé: palavra que em tupi quer dizer "caminho da Isso porque se trata de um canal estreito por onde se espalham as águas de um grande rio. 5 Salto alto: brincadeira que consiste em amarrar duas latas na extremidade de uma corda e sair andando com Havia "guerras" de rua com grupos de salto alto.</p><p>Meu Apolinário parece ter brotado de marcas e paisagens carregadas pela me- mória. Também, com certeza, foi escrito com coração. Tudo isso misturado à imaginação pois, afinal, é impossível transformar em palavras passado, ou afetos e sonhos, sem cruzar as frontei- ras da ficção. Recorrendo a uma lingua- gem marcada pela sonoridade da fala, Daniel Munduruku mostra que a partir da saudade é possível abordar temas muito importantes: a construção da iden- tidade; a busca da auto-estima; conflito entre as diferenças culturais; a diversi- dade de pontos de vista a respeito da vi- da e do mundo e, ainda, a relação entre homem e natureza, quase perdida, infe- lizmente, em nossa civilização, mas pro- funda, cotidiana e essencial em muitas outras ISBN 85-85445-95-5 9 788585 445959</p>