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<p>Autor: Prof. Giovani Bravin Peres</p><p>Colaboradores: Prof. Flávio Buratti Gonçalves</p><p>Prof. Luiz Henrique Cruz de Mello</p><p>Biomedicina Interdisciplinar</p><p>09.2024</p><p>Professor conteudista: Giovani Bravin Peres</p><p>Giovani Bravin Peres é professor nas áreas de Ciências da Saúde e entusiasta da Educação. Nascido em 1988, em</p><p>São Paulo – SP, é bacharel em Ciências Biológicas – Modalidade Médica pela Escola Paulista de Medicina, Universidade</p><p>Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP, 2009), mestre (2012) e doutor em Ciências (2016) pelo programa de Pós-Graduação</p><p>em Biologia Molecular da EPM-UNIFESP (CAPES 7), e especialista em Administração de Empresas pela Fundação</p><p>Getúlio Vargas (FGV, 2014). Possui experiência em: ensino, tendo lecionado em caráter superior e pré-vestibular, atuou</p><p>também com composição e tradução de material didático; em pesquisa acadêmica na área de Bioquímica e Biologia</p><p>Molecular, com ênfase em glicoconjugados, atuando, principalmente, com enzimas lisossomais, metaloproteases de</p><p>matriz, glicosaminoglicanos e proteoglicanos de matriz extracelular, diabetes mellitus e nefropatia diabética. Também</p><p>tem experiência com liderança e gestão, tendo atuado como coordenador e diretor geral do Cursinho Universitário</p><p>Jeannine Aboulafia (EPM-UNIFESP, 2008/2010). Atualmente, é professor titular da Universidade Paulista (UNIP) no</p><p>programa de pós-graduação em Patologia Ambiental e Experimental (Medicina Veterinária) e no curso de graduação</p><p>em Biomedicina, responsável pelas disciplinas de Bioestatística, Biofísica, Biologia Molecular, Bioquímica, entre outras,</p><p>na graduação, e pela disciplina de Estatística Aplicada à Pesquisa, na pós-graduação.</p><p>© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou</p><p>quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem</p><p>permissão escrita da Universidade Paulista.</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>P437b Peres, Giovani Bravin.</p><p>Biomedicina Interdisciplinar / Giovani Bravin Peres. – São Paulo:</p><p>Editora Sol, 2021.</p><p>236 p., il.</p><p>Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e</p><p>Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.</p><p>1. Agente etiológico. 2. Diagnóstico. 3. Tratamento. I. Título.</p><p>CDU 61</p><p>U512.96 – 21</p><p>Prof. Dr. João Carlos Di Genio</p><p>Reitor</p><p>Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez</p><p>Vice-Reitora de Graduação</p><p>Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa</p><p>Prof. Fábio Romeu de Carvalho</p><p>Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças</p><p>Profa. Melânia Dalla Torre</p><p>Vice-Reitora de Unidades Universitárias</p><p>Unip Interativa</p><p>Profa. Dra. Cláudia Andreatini</p><p>Profa. Elisabete Brihy</p><p>Prof. Marcelo Vannini</p><p>Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar</p><p>Prof. Ivan Daliberto Frugoli</p><p>Material Didático</p><p>Comissão editorial:</p><p>Profa. Dra. Christiane Mazur Doi</p><p>Profa. Dra. Angélica L. Carlini</p><p>Profa. Dra. Ronilda Ribeiro</p><p>Apoio:</p><p>Profa. Cláudia Regina Baptista</p><p>Profa. Deise Alcantara Carreiro</p><p>Projeto gráfico:</p><p>Prof. Alexandre Ponzetto</p><p>Revisão:</p><p>Irana Magalhães</p><p>Vera Saad</p><p>Sumário</p><p>Biomedicina Interdisciplinar</p><p>APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9</p><p>INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9</p><p>Unidade I</p><p>1 FUNDAMENTOS DA BIOLOGIA VIRAL ...................................................................................................... 11</p><p>1.1 Por que estudamos vírus? ................................................................................................................. 11</p><p>1.1.1 Vírus estão em toda parte ....................................................................................................................11</p><p>1.1.2 Vírus também fazem parte de nós................................................................................................... 15</p><p>1.2 Infecções virais e as primeiras vacinas antivirais .................................................................... 17</p><p>1.3 A identificação de agentes patogênicos ..................................................................................... 22</p><p>1.4 Catalogando vírus ................................................................................................................................ 28</p><p>1.4.1 O sistema clássico ................................................................................................................................... 29</p><p>1.4.2 A elegância do sistema de classificação de Baltimore ............................................................ 30</p><p>1.4.3 Vírus com genomas de DNA ............................................................................................................... 32</p><p>1.4.4 Vírus com genomas de RNA ............................................................................................................... 33</p><p>1.5 Estratégias de codificação ................................................................................................................ 37</p><p>2 DOENÇAS VIRAIS TRANSMITIDAS POR VETOR .................................................................................... 39</p><p>2.1 Febre amarela ......................................................................................................................................... 39</p><p>2.1.1 Breve histórico ......................................................................................................................................... 39</p><p>2.1.2 Agente etiológico ................................................................................................................................... 42</p><p>2.1.3 Aspectos epidemiológicos ................................................................................................................... 46</p><p>2.1.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas ................................................................. 51</p><p>2.1.5 Diagnóstico laboratorial ....................................................................................................................... 56</p><p>2.1.6 Tratamento ................................................................................................................................................ 60</p><p>2.1.7 Imunização ................................................................................................................................................ 61</p><p>2.2 Dengue ..................................................................................................................................................... 62</p><p>2.2.1 Breve histórico ......................................................................................................................................... 62</p><p>2.2.2 Agente etiológico ................................................................................................................................... 64</p><p>2.2.3 Aspectos epidemiológicos ................................................................................................................... 66</p><p>2.2.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas ................................................................. 69</p><p>2.2.5 Diagnóstico laboratorial ....................................................................................................................... 74</p><p>2.2.6 Tratamento ................................................................................................................................................ 76</p><p>2.2.7 Imunização ................................................................................................................................................ 77</p><p>2.3 Chikungunya .......................................................................................................................................... 78</p><p>2.3.1 Breve histórico .........................................................................................................................................</p><p>dsDNA. Aquelas que incluem vírus que</p><p>infectam vertebrados são Adenoviridae, Alloherpesviridae, Asfarviridae, Herpesviridae, Papillomaviridae,</p><p>Polyomaviridae, Iridoviridae e Poxviridae. Tais genomas podem ser lineares ou circulares. A replicação do</p><p>genoma e a síntese do mRNA (respectivamente, por DNA polimerases e RNA polimerases) podem se dar</p><p>por enzimas do hospedeiro ou virais.</p><p>+mRNA</p><p>±DNA ±DNA</p><p>Figura 11 – Expressão de vírus com genoma DNA fita dupla. A depender do vírus, genomas DNA fita</p><p>dupla podem ser transcritos por RNA polimerases do hospedeiro ou por enzimas virais, dando origem</p><p>a moléculas de mRNA que serão traduzidas nos ribossomos. A replicação do DNA viral também pode</p><p>ser catalisada por enzimas do hospedeiro (normalmente no núcleo) ou virais (no citoplasma)</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 56).</p><p>Categoria II – Vírus de DNA fita simples (ssDNA)</p><p>Treze famílias virais contendo genomas ssDNA foram identificadas até o momento. As famílias</p><p>Anelloviridae, Circoviridae, Genomoviridae e Parvoviridae incluem vírus que infectam vertebrados.</p><p>Vírus cujos genomas são ssDNA (independentemente de sua polaridade) devem primeiro ser replicados</p><p>(síntese de DNA), a fim de formar um genoma dsDNA; a partir desse molde fita dupla a transcrição pode</p><p>ocorrer (síntese do mRNA) e, por conseguinte, a tradução das proteínas virais. Nesses casos, a síntese de</p><p>DNA viral é catalisada por DNA polimerases celulares.</p><p>ou</p><p>+DNA ±DNA</p><p>-DNA</p><p>+DNA</p><p>-DNA</p><p>Figura 12 – Expressão de vírus com genoma DNA fita simples. Vírus com genomas DNA fita simples</p><p>não podem ser imediatamente transcritos ao infectarem uma célula. Em primeiro lugar, ocorre</p><p>replicação do DNA fita simples, dando origem a um genoma dsDNA. A partir desse molde fita dupla, a</p><p>transcrição pode ocorrer e, em seguida, a tradução de proteínas virais</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 57).</p><p>33</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Categoria VII – Vírus de DNA fita dupla parcial (gapped DNA)</p><p>Membros de duas famílias, Caulimoviridae e Hepadnaviridae possuem genomas fita dupla parcial, sendo</p><p>que esta última contém vírus que infectam vertebrados. Em genomas fita dupla parcial, primeiramente</p><p>as falhas precisam ser corrigidas antes que a síntese de mRNA ocorra. Esse reparo é necessário e deve</p><p>anteceder a síntese de mRNA, pois as RNA polimerases do hospedeiro são capazes de transcrever</p><p>apenas fitas duplas contínuas. Genomas de DNA fita dupla parcial são produzidos a partir de um molde</p><p>de RNA por uma enzima viral, a transcriptase reversa.</p><p>±DNA</p><p>±DNA</p><p>+RNA</p><p>-DNA</p><p>±DNA</p><p>Figura 13 – Expressão de vírus com genoma DNA fita dupla parcial. Primeiramente, vírus com</p><p>genomas DNA fita dupla parcial precisam ter as falhas corrigidas por enzimas envolvidas em</p><p>mecanismos de reparo. Isso é necessário e deve anteceder a síntese de mRNA, pois as RNA</p><p>polimerases do hospedeiro são capazes de transcrever apenas fitas duplas contínuas. Moléculas de</p><p>RNA produzidas a partir de sequências virais podem agir como mRNA, sendo então traduzidas em</p><p>proteínas (lado direito da figura), ou servirem de molde para transcriptase reversa (enzima viral, lado</p><p>esquerdo da figura)</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 57).</p><p>1.4.4 Vírus com genomas de RNA</p><p>Células não possuem RNA polimerases capazes de replicar diretamente genomas virais de RNA,</p><p>ou ainda são incapazes de produzir moléculas de mRNA a partir de moldes de RNA. Assim, vírus cujos</p><p>genomas são baseados em RNA dependem da ação de enzimas virais ao alcançarem o interior de uma</p><p>célula: uma solução encontrada por alguns foi a adição de RNA polimerases dependentes de RNA no</p><p>interior da partícula viral, enquanto outros utilizam-se de transcriptases reversas.</p><p>34</p><p>Unidade I</p><p>Observação</p><p>Não são conhecidas enzimas celulares capazes de copiar genomas de</p><p>vírus de RNA. Entretanto, ao menos uma enzima – a RNA polimerase II –</p><p>é capaz de copiar um molde de RNA. O genoma ssRNA circular do vírus</p><p>da hepatite D é copiado pela RNA polimerase II humana dando origem a</p><p>moléculas de RNA multiméricas. Como a RNA polimerase II, uma enzima</p><p>que produz moléculas de pré-mRNA a partir de moldes de DNA, sofre tal</p><p>reprogramação para copiar um molde de RNA circular ainda é um mistério.</p><p>Categoria III – Vírus de RNA fita dupla (dsRNA)</p><p>Atualmente, existem 12 famílias de vírus com genomas dsRNA. O número de segmentos de fita dupla</p><p>por partícula viral pode variar de apenas um (Totiviridae, Hypoviridae e Endornaviridae, vírus de fungos,</p><p>invertebrados e plantas) para nove a 12 (Reoviridae, vírus de fungos, invertebrados, plantas, protozoários</p><p>e vertebrados). Embora genomas dsRNA possuam uma fita com polaridade (+), esta é incapaz de ser</p><p>imediatamente traduzida por estar em conformação dupla hélice. É necessário que a fita com polaridade (–)</p><p>sirva de molde para uma RNA polimerase dependente de RNA (enzima viral). Uma vez sintetizadas, as</p><p>cópias de fita simples com polaridade (+) agem como mRNA ou são envoltas pelas proteínas do capsídeo</p><p>viral. No interior do capsídeo, pela ação da uma RNA polimerase dependente de RNA, um dsRNA é formado.</p><p>RNA</p><p>RNA</p><p>Figura 14 – Expressão de vírus com genoma RNA fita dupla. Embora genomas dsRNA possuam uma fita com</p><p>polaridade (+), esta é incapaz de ser imediatamente traduzida por estar em conformação dupla hélice. É necessário</p><p>que a fita com polaridade (–) sirva de molde para uma RNA polimerase dependente de RNA (enzima viral). Uma</p><p>vez sintetizadas, as cópias de fita simples com polaridade (+) agem como mRNA ou são envoltas pelas proteínas do</p><p>capsídeo viral. No interior do capsídeo, pela ação da RNA polimerase dependente de RNA, um dsRNA é formado</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 58).</p><p>35</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Categoria IV – Vírus de RNA fita simples polaridade (+) [ss(+)RNA]</p><p>Atualmente, existem 41 famílias de vírus com genomas ss(+)RNA, desconsiderando aqueles</p><p>que geram intermediário DNA (categoria VI). As famílias Arteriviridae, Astroviridae, Caliciviridae,</p><p>Coronaviridae, Flaviviridae, Hepeviridae, Nodaviridae, Picornaviridae e Togaviridae incluem vírus que</p><p>infectam vertebrados. Fitas de RNA com polaridade (+), geralmente, podem ser traduzidas diretamente</p><p>nos ribossomos da célula infectada, dando origem a proteínas virais rapidamente. A replicação do</p><p>genoma se dá em duas etapas: primeiro a fita de ss(+)RNA é copiada, gerando uma molécula ss(–)RNA;</p><p>em seguida, a fita com polaridade negativa serve de molde para a síntese de mais cópias com polaridade</p><p>positiva. Em alguns casos, são produzidos mRNA subgenômicos.</p><p>Genoma</p><p>-RNA</p><p>Figura 15 – Expressão de vírus com genoma RNA fita simples polaridade (+). Fitas de RNA com</p><p>polaridade (+) geralmente podem ser traduzidas diretamente nos ribossomos da célula infectada,</p><p>dando origem a proteínas virais rapidamente. A replicação do genoma se dá em duas etapas: primeiro</p><p>a fita de ss(+)RNA é copiada, gerando uma molécula ss(–)RNA; em seguida, a fita com polaridade</p><p>negativa serve de molde para a síntese de mais cópias com polaridade positiva</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 59).</p><p>Categoria V – Vírus de RNA fita simples polaridade (–) [ss(–)RNA]</p><p>Atualmente, existem 19 famílias de vírus com genomas ss(–)RNA. As famílias Bornaviridae,</p><p>Filoviridae, Orthomyxoviridae, Paramyxoviridae e Rhabdoviridae incluem vírus que infectam vertebrados.</p><p>Diferentemente de vírus ss(+)RNA, fitas de RNA com polaridade (–) não podem ser imediatamente</p><p>traduzidas em proteínas, mas primeiro precisam ser copiadas as fitas com polaridade (+).</p><p>Por não haver enzimas celulares capazes de gerar mRNA a partir de genomas de RNA, esses vírus</p><p>possuem RNA polimerases dependentes de RNA no interior de suas partículas. Para a replicação do</p><p>genoma viral, primeiro a fita de ss(–)RNA é copiada, gerando uma molécula ss(+)RNA; em seguida, a fita</p><p>com polaridade positiva serve de molde para a síntese de mais cópias com polaridade negativa. Vírus</p><p>ss(–)RNA podem ser de filamento único (como o vírus ebola) ou segmentado (como o vírus influenza).</p><p>Os genomas de alguns vírus ss(–)RNA (como membros das famílias Arenaviridae</p><p>e Bunyaviridae) são</p><p>de estratégia de expressão ambissense: em um mesmo filamento de RNA há informação com polaridade</p><p>(+) e (–). A informação com polaridade positiva é traduzida prontamente, após a entrada do vírus na</p><p>célula. A replicação do genoma de RNA (por RNA polimerase dependente de RNA – enzima viral) gera</p><p>filamentos adicionais com polaridade positiva, que então são traduzidos.</p><p>36</p><p>Unidade I</p><p>-RNA</p><p>+RNA -RNA</p><p>Figura 16 – Expressão de vírus com genoma RNA fita simples polaridade (–). Fitas de RNA com polaridade</p><p>(–) não podem ser imediatamente traduzidas em proteínas, mas primeiro precisam ser copiadas a fitas</p><p>com polaridade (+). Para a replicação do genoma viral, primeiro a fita de ss(–)RNA é copiada, gerando uma</p><p>molécula ss(+)RNA; em seguida, a fita com polaridade positiva serve de molde para a síntese de mais cópias</p><p>com polaridade negativa. Vírus ss(–)RNA podem ser de filamento único ou segmentado</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 60).</p><p>Categoria VI – Vírus de RNA fita simples polaridade (+) com intermediário DNA</p><p>Diferentemente dos vírus ss(+)RNA apresentados anteriormente, os retrovírus possuem genomas</p><p>ss(+)RNA que são convertidos a intermediário dsDNA por meio de uma DNA polimerase dependente de</p><p>RNA (enzima viral), conhecida como transcriptase reversa. Esse DNA produzido serve de molde para a</p><p>síntese de moléculas de mRNA viral, bem como para a produção de cópias do genoma de RNA viral. RNA</p><p>polimerases do hospedeiro são empregadas nessas etapas. Das famílias conhecidas, apenas os membros</p><p>da Retroviridae infectam vertebrados.</p><p>+RNA</p><p>-DNA</p><p>DNA</p><p>+RNA</p><p>Figura 17 – Expressão de vírus com genoma RNA fita simples polaridade (+) com intermediário DNA.</p><p>Retrovírus possuem genomas ss(+)RNA que são convertidos a intermediário dsDNA por meio de uma</p><p>enzima viral conhecida como transcriptase reversa. Esse DNA produzido serve de molde para a síntese</p><p>de moléculas de mRNA viral, bem como para a produção de cópias do genoma de RNA viral</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 59).</p><p>37</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>1.5 Estratégias de codificação</p><p>O genoma compacto da maioria dos vírus torna o dogma “um gene, um mRNA” impreciso. Táticas</p><p>extraordinárias para recuperação de informações, como a produção de múltiplos mRNA subgenômicos,</p><p>splicing alternativo de mRNA, edição de RNA e unidades de transcrição aninhadas, permitem a</p><p>produção de múltiplas proteínas a partir de um genoma viral sucinto. A expansão adicional da</p><p>capacidade de codificação do genoma viral é alcançada por mecanismos pós-transcricionais, como</p><p>a síntese de poliproteínas, supressão de terminação e deslocamento da fase de leitura ribossomal.</p><p>A tradução eucariótica, normalmente, se inicia no primeiro códon AUG a jusante à extremidade 5’</p><p>do mRNA, uma vez que ele é o primeiro AUG encontrado por uma subunidade ribossômica menor</p><p>em processo de varredura. Mas os nucleotídeos imediatamente vizinhos ao AUG também influenciam</p><p>na eficiência do início da tradução. Se o sítio de reconhecimento for muito pobre, as subunidades</p><p>ribossômicas em processo de varredura irão ignorar o primeiro códon AUG no mRNA e pularão para o</p><p>segundo ou terceiro códon AUG. Esse fenômeno é conhecido como “varredura frouxa” (leaky scanning).</p><p>Em geral, quanto menor o genoma, maior é a compressão da informação genética.</p><p>Lembrete</p><p>A “varredura frouxa” (leaky scanning) é uma estratégia frequentemente</p><p>utilizada para produzir duas ou mais proteínas intimamente relacionadas,</p><p>diferindo somente nos seus aminoácidos N-terminais, a partir do</p><p>mesmo mRNA.</p><p>Quadro 1 – Estratégias de recuperação de informações em genomas virais</p><p>Mecanismo Diagrama Vírus em que os</p><p>mecanismos ocorrem</p><p>Múltiplos mRNA</p><p>subgenômicos</p><p>Genoma</p><p>mRNA</p><p>Proteínas</p><p>Adenoviridae</p><p>Hepadnaviridae</p><p>Herpesviridae</p><p>Paramyxoviridae</p><p>Poxviridae</p><p>Rhabdoviridae</p><p>Splicing alternativo</p><p>de mRNA</p><p>Adenoviridae</p><p>Orthomyxoviridae</p><p>Papillomaviridae</p><p>Polyomaviridae</p><p>Retroviridae</p><p>38</p><p>Unidade I</p><p>Mecanismo Diagrama Vírus em que os</p><p>mecanismos ocorrem</p><p>Edição de RNA</p><p>Genoma viral</p><p>Sítio de edição</p><p>mRNA 1</p><p>Proteína 1</p><p>mRNA 2 (+1 G)</p><p>Proteína 2</p><p>Paramyxoviridae</p><p>Filoviridae</p><p>Hepatitis delta satellite</p><p>Informação em</p><p>ambas as fitas DNA fita dupla</p><p>Proteínas</p><p>Adenoviridae</p><p>Polyomaviridae</p><p>Retroviridae</p><p>Síntese de</p><p>poliproteínas</p><p>Gene viral</p><p>mRNA</p><p>Poliproteína</p><p>Processamento</p><p>Alphavirus</p><p>Flaviviridae</p><p>Picornaviridae</p><p>Retroviridae</p><p>“Varredura frouxa”</p><p>Gene viral</p><p>mRNA</p><p>Proteínas</p><p>Orthomyxoviridae</p><p>Paramyxoviridae</p><p>Polyomaviridae</p><p>Retroviridae</p><p>Reiniciação</p><p>Gene viral</p><p>mRNA</p><p>Proteínas</p><p>Orthomyxoviridae</p><p>Herpesviridae</p><p>Supressão da</p><p>terminação</p><p>Gene viral</p><p>mRNA</p><p>Proteínas</p><p>Alphavirus</p><p>Retroviridae</p><p>Deslocamento</p><p>da fase de leitura</p><p>ribossomal</p><p>Gene viral</p><p>Sítio de troca da fase de leitura</p><p>A montante do sítio de troca A jusante do sítio de troca</p><p>mRNA</p><p>Proteínas</p><p>Astroviridae</p><p>Coronaviridae</p><p>Retroviridae</p><p>IRES</p><p>Gene viral</p><p>mRNA</p><p>Proteínas</p><p>Flaviviridae</p><p>Picornaviridae</p><p>39</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Mecanismo Diagrama Vírus em que os</p><p>mecanismos ocorrem</p><p>Moléculas de mRNA</p><p>aninhadas</p><p>Gene viral</p><p>Proteína</p><p>Proteína</p><p>Proteína</p><p>Coronaviridae</p><p>Arteriviridae</p><p>Diferentes estratégias são apresentadas, de forma resumida. +1 G: entrada hipotética de nucleotídeo (guanosina);</p><p>Cbf: fator de ligação a CCAAT; Usf: fator estimulador a montante; IRES: sítio interno de entrada do ribossomo.</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 63).</p><p>2 DOENÇAS VIRAIS TRANSMITIDAS POR VETOR</p><p>2.1 Febre amarela</p><p>2.1.1 Breve histórico</p><p>Em seu famoso livro Rats, Lice and History (Ratos, Piolhos e História, em livre tradução), publicado</p><p>pela primeira vez em 1934, Hans Zinsser afirma que espadas, lanças, flechas, metralhadoras e até mesmo</p><p>explosivos tiveram muito menos poder sobre o destino de nações do que o piolho do tifo, a pulga da</p><p>peste e o mosquito da febre amarela. Embora a afirmação possa levantar um sorriso irônico, as reflexões</p><p>sobre doenças e suas causas propostas nesta obra permanecem igualmente relevantes nos dias de hoje.</p><p>Segundo Zinsser, o impacto global de patógenos (incluindo vírus) exerceu tanto efeito sobre a história</p><p>humana quanto qualquer guerra, desastre natural ou grande invenção.</p><p>Quando avaliamos no contexto histórico, epidemias diversas – como varíola, febre amarela, o vírus</p><p>da imunodeficiência humana, o vírus influenza e, mais recentemente, o Sars-CoV-2 – resultaram em</p><p>incalculáveis mortes e impactaram sociedades inteiras.</p><p>O primeiro agente etiológico de uma doença viral humana a ser identificado foi o vírus da febre</p><p>amarela, em 1901. A história de sua identificação é instrutiva, pois destaca as contribuições do pensamento</p><p>criativo, da colaboração e até mesmo de certo heroísmo na identificação de novos patógenos.</p><p>A febre amarela foi responsável por epidemias devastadoras associadas a extraordinárias taxas de</p><p>mortalidade. No Brasil, o primeiro relato de uma epidemia amarílica data de 1685, no Recife. Os anos</p><p>de 1849 a 1861 foram particularmente tormentosos: durante esse período, a doença se propagou do</p><p>norte ao sul do país, eclodindo em quase todas as províncias do Império e levando-lhes a desolação e</p><p>o luto. Na sua propagação, invadiu primeiramente cidades portuárias, seguindo, com raras exceções, o</p><p>caminho da navegação marítima.</p><p>Uma epidemia norte-americana importante se deu em 1793, na Filadélfia. À época, a cidade era</p><p>a capital da nação e uma cidade com comércio bastante ativo. Entre 1º de agosto e 9 de novembro</p><p>40</p><p>Unidade I</p><p>daquele ano, cerca de 5 mil pessoas (em uma cidade de 45 mil habitantes) faleceram. Poucas famílias</p><p>não perderam algum parente para a doença e muitas outras foram dizimadas completamente. Aqueles</p><p>que tinham condições de fugir da cidade assim o fizeram, incluindo o então presidente, George</p><p>Washington, e sua comitiva. Outros permaneceram para ajudar os doentes. As práticas de isolamento</p><p>social e quarentena contribuíram para o encurtamento da epidemia, em uma época em que nada se</p><p>sabia ao certo sobre a doença.</p><p>0%</p><p>0,1 - 4,99%</p><p>5 - 9,99%</p><p>10 - 14,99%</p><p>15 - 19,99%</p><p>20 - 67%</p><p>Figura 18 – Mortes causadas</p><p>pela epidemia de febre amarela na Filadélfia, em 1793. Esse mapa</p><p>retrata a taxa de mortes por febre amarela entre as ruas da cidade, à época. Ruas vermelhas e laranjas</p><p>indicam as maiores taxas de mortalidade. Bairros mais pobres foram os mais afetados, pois suas</p><p>condições favoreciam criadouros para o mosquito Aedes aegypti</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3AL1IuX. Acesso em: 20 jan. 2021.</p><p>Em 1802, Napoleão tentou derrotar uma revolta de escravos no Haiti com o envio de 25 mil soldados,</p><p>porém 22 mil destes morreram de febre amarela. O desastre atrapalhou as conquistas de Napoleão no</p><p>Novo Mundo, contribuindo para a venda do território da Louisiana em 1803, dobrando assim a área dos</p><p>Estados Unidos. Sem exército ou ocupação, o Haiti declarou independência em 1804, tornando-se a</p><p>primeira nação negra a se libertar do domínio colonial europeu.</p><p>Relatos da disseminação de febre amarela em países tropicais datam desde o século XV. Embora a</p><p>doença possa ser relativamente modesta, com sintomas transitórios que incluem febre e náusea, casos</p><p>mais severos resultam em falência múltipla dos órgãos. Os danos hepáticos causam amarelamento da</p><p>pele (icterícia), sintoma a partir do qual a doença é nomeada. Apesar de seu impacto, pouco se sabe</p><p>sobre como a febre amarela ganhou o mundo, embora seja claro que a doença não se disseminou por</p><p>meio do contato pessoa-pessoa.</p><p>O primeiro avanço real no estabelecimento da etiologia da doença se deu em 1880, quando o</p><p>médico cubano Carlos Juan Finlay propôs que um inseto sugador, muito provavelmente um mosquito,</p><p>desempenhava papel importante na transmissão da doença. Uma comissão para estudar as bases da</p><p>https://bit.ly/3AL1IuX</p><p>41</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>febre amarela foi estabelecida, em 1899, em Cuba, pelo Exército norte-americano. Essa comissão foi</p><p>formada por conta da alta incidência da doença entre soldados que ocupavam a ilha.</p><p>Jesse Lazear, um membro da comissão, confirmou a hipótese de Finlay, quando se permitiu ser</p><p>picado por um mosquito infectado. Infelizmente, Lazear faleceu dias depois do experimento. A comissão</p><p>concluiu que os mosquitos eram vetores da doença. A natureza do patógeno foi constatada em 1901,</p><p>quando Walter Reed e James Carrol injetaram o soro diluído e filtrado de um paciente com febre amarela</p><p>em três indivíduos saudáveis. Dois dos três sujeitos desenvolveram febre amarela, o que permitiu concluir</p><p>que o “agente filtrado” tratava-se de um vírus.</p><p>Lembrete</p><p>O termo etiologia refere-se à causa de uma doença. Já a palavra</p><p>incidência consiste no número de novos casos de uma doença, em uma</p><p>determinada população, em um período específico.</p><p>Figura 19 – Conquistadores da febre amarela. Essa pintura de Dean Cornwell (1939) retrata a</p><p>exposição experimental de voluntários à febre amarela. Carlos Finlay está retratado em roupas</p><p>escuras, à esquerda. Os eventos ilustrados por Cornwell levam em conta a licença artística, elencando</p><p>vários personagens importantes em um mesmo momento</p><p>Fonte: Chadee et al. (2007, p. 1703).</p><p>A febre amarela era endêmica em Havana havia 150 anos, contudo, as conclusões de Reed e</p><p>colaboradores sobre a natureza do patógeno e do vetor que a transmitia permitiram a implementação</p><p>de medidas de controle que reduziram drasticamente a incidência da doença no período de um ano.</p><p>Até os dias de hoje, o controle de mosquitos ainda é um método de prevenção efetivo contra a febre</p><p>amarela, bem como para outras doenças virais transmitidas por vetores artrópodes.</p><p>42</p><p>Unidade I</p><p>Lembrete</p><p>Uma doença endêmica é aquela cuja prevalência esteja dentro de uma</p><p>faixa esperada, em uma determinada região, em período específico. Para</p><p>tal, é necessário avaliar o padrão de ocorrência dessa doença, ao longo de</p><p>vários anos, nesta população.</p><p>2.1.2 Agente etiológico</p><p>O vírus da febre amarela é um arbovírus da família Flaviviridae. O termo arbovirose deriva de arbo,</p><p>acrônimo para arthropode borne, ou carreado/transmitido por artrópode. Essa família contempla mais</p><p>de 50 espécies distintas, muitas das quais são disseminadas por vetores artrópodes e são importantes</p><p>agentes de doenças humanas. Estes vírus envelopados com genomas ss(+)RNA causam uma variedade</p><p>de doenças, desde encefalites a febres hemorrágicas. Alguns membros de destaque, além do vírus da</p><p>febre amarela, são o vírus do Nilo Ocidental, o vírus da encefalite japonesa e o vírus da dengue.</p><p>Observação</p><p>Arbovírus são vírus transmitidos por artrópodes, assim designados não</p><p>somente pela sua veiculação por esses invertebrados, mas, principalmente,</p><p>pelo fato de parte de seu ciclo replicativo ocorrer nesses hospedeiros.</p><p>São transmitidos aos seres humanos e a outros animais pela picada de</p><p>artrópodes hematófagos.</p><p>A) B)</p><p>Vírion</p><p>extracelular</p><p>Vírion</p><p>intracelular</p><p>E (dímero)</p><p>Nucleocapsídeo</p><p>ME</p><p>prM</p><p>Figura 20 – O vírus da febre amarela. A partícula viral possui cerca de 40 nm de diâmetro, é icosaédrica e envelopada.</p><p>(A) Eletromicrografia de múltiplos vírions (aumento de 234.000x). (B) Esquematização da forma imatura (intracelular)</p><p>e madura (extracelular) da partícula viral. O genoma viral, composto por filamento único ss(+)RNA com extremidade</p><p>5’ capeada, é armazenado no interior de um nucleocapsídeo icosaédrico, revestido por envelope. A proteína prM é</p><p>processada a proteína M por clivagem mediada por furina imediatamente após o egresso</p><p>Fonte: Gardner e Ryman (2010, p. 239).</p><p>43</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>O genoma do vírus da febre amarela consiste em filamento único de RNA, polaridade positiva,</p><p>com aproximadamente 11 kb. De forma semelhante às moléculas de mRNA do hospedeiro, sua</p><p>extremidade 5’ é capeada, contudo não há cauda de poli(A) na extremidade 3’. Em vez disso, os</p><p>nucleotídeos terminais da extremidade 3’ formam uma estrutura em formato de alça bastante</p><p>estável e altamente conservada, cuja função é estabilizar o genoma e prover sinais para iniciar a</p><p>tradução e síntese de RNA.</p><p>Todas as proteínas virais são codificadas em uma única janela aberta de leitura, produzidas como uma</p><p>poliproteína, que é então processada por clivagem enzimática. As proteínas estruturais (C, M e E) – que</p><p>compõem o vírion – são codificadas pelo primeiro quarto à 5’ do genoma, enquanto as proteínas não</p><p>estruturais (NS, non structural – NS1, NS2A, NS2B, NS3, NS4A, NS4B e NS5) – importantes para o ciclo</p><p>replicativo do vírus, como polimerases, helicases, proteases e fatores de transcrição – são codificadas</p><p>pelos três quartos restantes do genoma.</p><p>Tradução/processamento</p><p>Petidase sinal do hospedeiro</p><p>Serinoprotease viral (NS3)</p><p>Figura 21 – Esquematização da organização do genoma flaviviral. O genoma de RNA dos flavivírus</p><p>possui regiões não traduzidas (UTR) nas extremidades 5’ e 3’. Uma única poliproteína é sintetizada,</p><p>sendo então processada por proteases virais e celulares para produção das proteínas estruturais (C, M</p><p>e E) e não estruturais (NS1, NS2A, NS2B, NS3, NS4A, NS4B e NS5). Sítios de clivagem para a peptidase</p><p>sinal do hospedeiro e para a serinoprotease viral (NS2B-3) são apresentados</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 510).</p><p>Ao nível molecular, o vírus da febre amarela e outros flavivírus parecem ser simples, pois produzem</p><p>apenas 10 tipos de proteínas nas células infectadas. Contudo, é evidente que a interação entre produtos</p><p>virais e a célula é extremamente complexa, uma vez que o agente se adaptou ao uso da maquinaria</p><p>celular para síntese de macromoléculas necessárias à sua própria propagação, além de antagonizar ou</p><p>contornar respostas antivirais.</p><p>Esses patógenos modulam receptores de reconhecimento de padrões moleculares, grânulos de</p><p>estresse e estruturas presentes em membranas, em prol da promoção das etapas cruciais de seu ciclo. Para</p><p>compreender melhor essas etapas moleculares, os cientistas esperam identificar alvos de vulnerabilidade nos</p><p>ciclos de amplificação viral que possam servir de alvos terapêuticos.</p><p>Partículas do vírus da febre amarela se ligam às células por meio da interação com moléculas de</p><p>superfície. Como os vírus precisam da maquinaria</p><p>celular para sintetizar macromoléculas e organizá-las</p><p>em partículas maduras, a interação com receptores de entrada é vital para a invasão das células do</p><p>hospedeiro. No entanto, não sabemos ainda quais moléculas agem exatamente como receptores para</p><p>flavivírus na superfície das células de mamíferos.</p><p>44</p><p>Unidade I</p><p>Uma visão geral do processo é conhecida e a participação de certas moléculas aparenta ser</p><p>importante. A infecção se inicia pela interação da glicoproteína E do envelope viral com um ou</p><p>mais fatores de adesão do hospedeiro, que servem para aumentar a quantidade de vírions na</p><p>superfície celular. As longas cadeias de glicosaminoglicanos em proteoglicanos de heparam sulfato</p><p>da superfície celular parecem ser importantes para essa etapa.</p><p>Resíduos de fosfatidilcolina e fosfatidiletanolamina presentes no envelope viral também parecem</p><p>ser importantes para o tropismo viral, a patogenicidade e a infectividade. Resíduos de fosfatidilcolina</p><p>são encontrados em grande quantidade na fração externa da bicamada fosfolipídica de células em</p><p>apoptose e são usados como um sinal para que fagócitos teciduais, como macrófagos, removam os</p><p>corpos apoptóticos. Assim, a interação desses resíduos em envelopes virais com famílias de receptores</p><p>de fosfatidilcolina em fagócitos ativaria as mesmas vias de reciclagem, favorecendo a endocitose.</p><p>Integrinas são moléculas transmembranares, geralmente heterodiméricas (compostas por cadeias α</p><p>e β), que estão envolvidas com migração celular e adesão a componentes da matriz extracelular, como</p><p>fibronectina e vitronectina. Os domínios extracelulares ligam-se a motivos RGD (sequências contendo os</p><p>aminoácidos arginina-glicina-aspartato), enquanto os domínios intracelulares transduzem sinais para</p><p>outros alvos, como GTPases.</p><p>Após a ativação, essas moléculas desencadeiam a organização de filamentos de actina e miosina,</p><p>remodelando o citoesqueleto e promovendo mudanças morfológicas na célula. Para diversos flavivírus</p><p>(como o da dengue e da febre zika), a interação com integrinas resulta em aumento das taxas de</p><p>infecção celulares. Além disso, a infecção per se também promove aumento de integrinas na superfície</p><p>celular. Embora também seja um flavivírus, ainda não se observou interação entre integrinas e o vírus</p><p>da febre amarela.</p><p>Uma vez mediada sua adesão à superfície celular, a internalização da partícula viral se dá por</p><p>endocitose mediada por clatrina e dinamina. Uma mudança conformacional da glicoproteína E ocorre</p><p>em pH acídico, o que facilita a fusão do envelope viral com a membrana do endossomo, liberando assim</p><p>o nucleocapsídeo para o citoplasma. Após a desestruturação do capsídeo, o genoma viral é liberado,</p><p>podendo ser traduzido prontamente.</p><p>Uma poliproteína é sintetizada e, então, processada por proteases celulares e virais, dando a</p><p>origem a três proteínas estruturais e a sete proteínas não estruturais (NS). NS1 é uma glicoproteína</p><p>necessária para a replicação do RNA viral e que também permanece associada à membrana do retículo</p><p>endoplasmático ou à membrana plasmática, além de ser secretada pela célula. No meio externo, induz</p><p>uma forte resposta humoral e contribui para a patogênese dos flavivírus inibindo a ativação da cascata</p><p>do complemento.</p><p>45</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>As moléculas NS2A, NS2B, NS4A e NS4B são polipeptídeos predominantemente hidrofóbicos</p><p>importantes para a associação do complexo de replicação com membranas. NS2B e NS3 formam um</p><p>complexo enzimático com atividade de serinoprotease e helicase, essenciais para o processamento da</p><p>poliproteína viral e replicação do RNA, respectivamente.</p><p>A proteína NS5 possui dois sítios catalíticos distintos: (1) com atividade RNA polimerase dependente</p><p>de RNA, responsável direto pela replicação do genoma viral, e (2) domínio com atividade S-adenosil</p><p>metiltransferase, responsável pelo capeamento do RNA viral nascente. Uma vez traduzidas, as</p><p>proteínas NS presumivelmente recrutam o genoma viral para fora do complexo de tradução, dando</p><p>início à replicação.</p><p>As proteínas NS recém-sintetizadas e processadas se associam, formando um complexo conhecido</p><p>como replicase, que reconhece a estrutura secundária na extremidade 3’ do RNA genômico viral. A</p><p>RNA polimerase dependente de RNA (NS5), então, inicia a síntese de uma cópia contínua com</p><p>polaridade negativa, usando o genoma como molde. Esse ss(–)RNA é rapidamente replicado, dando</p><p>origem a progênies de ss(+)RNA. A replicação do RNA é assimétrica, havendo mais cópias das fitas com</p><p>polaridade positiva do que as com polaridade negativa, por célula infectada. Provavelmente, isso ocorre</p><p>por diferenças estruturais formadas nas alças às extremidades 3’ das fitas positivas e negativas, que</p><p>afetam a eficiência do início do complexo replicativo.</p><p>Esse processo de produção de novos flavivírus ocorre associado a membranas. A infecção causa</p><p>drástica proliferação de invaginações esféricas na região perinuclear do retículo endoplasmático rugoso,</p><p>e, pelo menos em parte, isso se dá pela atividade de NS4A. A presença simultânea das diversas proteínas</p><p>NS e de intermediários dsRNA nessa região sugere que lá seja o sítio de replicação viral.</p><p>A depender da linhagem viral e do tipo de célula infectada, o RNA do vírus da febre amarela é</p><p>detectável no citoplasma de 3 a 6 horas após a infecção, com liberação de partículas virais maduras em</p><p>cerca de 12 horas. Formas imaturas não infecciosas se formam no interior do retículo endoplasmático,</p><p>onde o RNA viral se complexa com a proteína C e é empacotado junto com envelope derivado da</p><p>bicamada reticular.</p><p>A proteína E e o precursor da proteína M (prM) estão presentes nesse envelope. As vias de transporte</p><p>de vesículas subcelulares destinam essas partículas ainda imaturas para a superfície celular. Durante</p><p>esse trajeto, prM protege a proteína E de uma mudança conformacional irreversível, em função do pH</p><p>acídico dos compartimentos da via secretória. A maturação dos vírions se dá na rede trans do Golgi,</p><p>quando prM é convertido a M por furinas. Ao final, as partículas maduras são liberadas por exocitose. A</p><p>figura a seguir resume o processo descrito até então.</p><p>46</p><p>Unidade I</p><p>Vesícula</p><p>revestida por</p><p>clatrina</p><p>Endossomo</p><p>Golgi</p><p>Núcleo</p><p>ER</p><p>Figura 22 – Ciclo replicativo de flavivírus em uma célula infectada. Primeiro, (1) o vírion se liga à superfície celular</p><p>e (2) é internalizado por endocitose mediada por receptor. (3) Ocorre fusão do envelope viral e da membrana</p><p>do endossomo, em função do pH acídico, liberando o genoma viral para o citoplasma. (4) Por se tratar de uma</p><p>molécula ss(+)RNA estruturalmente semelhante a um mRNA, o genoma viral é prontamente traduzido, gerando</p><p>uma poliproteína que então é processada. (5) As proteínas NS recrutam o genoma viral para o complexo replicase,</p><p>em invaginações ocorridas no retículo. (6) A replicação se inicia com a síntese de uma cópia contínua ss(–)RNA, que,</p><p>então, serve de molde para síntese de mais cópias com polaridade positiva. Nesses sítios em que a replicação ocorre,</p><p>também há montagem de novos vírions. (7) O complexo de montagem se inicia quando dímeros da proteína C</p><p>se associam a cópias do genoma recém-sintetizadas. Esse complexo é então envolto por membranas contendo as</p><p>proteínas E e prM. (8) As partículas imaturas do vírus são transportadas para a superfície celular pela via secretória.</p><p>(9) Durante o transporte por esta via, as partículas sofrem maturação, incluindo a glicosilação de prM e E, mudança</p><p>conformacional do complexo prM-E e clivagem de prM. (10) Partículas maduras são transportadas à superfície celular</p><p>em vesículas e, então, (11) liberadas por exocitose</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 511).</p><p>2.1.3 Aspectos epidemiológicos</p><p>A febre amarela ocorre predominantemente em regiões subtropicais da África subsaariana e da</p><p>América do Sul, sendo considerada uma doença endêmica de magnitude considerável. A incidência</p><p>global dessa doença não é bem estabelecida, mas se estima que, aproximadamente, 1% dos indivíduos</p><p>com hepatite severa se deva à febre</p><p>amarela, em áreas onde essa doença é endêmica, na África.</p><p>47</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>6000 América do Sul - 3985</p><p>África (1965-1997) - 25775</p><p>4000</p><p>2000</p><p>5000</p><p>3000</p><p>1000</p><p>Ca</p><p>so</p><p>s</p><p>0</p><p>19</p><p>65</p><p>19</p><p>75</p><p>19</p><p>85</p><p>19</p><p>95</p><p>0-10</p><p>10-100</p><p>100-1000</p><p>1000-10000</p><p>Figura 23 – Regiões endêmicas de febre amarela. Áreas endêmicas entre 1990 a 1999 estão</p><p>circundadas por tracejado vermelho, com base em investigações sorológicas, estudos de campo e</p><p>relatos de caso. O número de casos reportados à Organização Mundial da Saúde para o período está</p><p>representado em escala de cores. Panorama semelhante é observado na presente década</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3AHnzmQ. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>Do ponto de vista exclusivamente epidemiológico, podem ser diferenciados um ciclo urbano e um</p><p>ciclo silvestre de transmissão na febre amarela. No ciclo urbano, a doença é uma antroponose, não se</p><p>reconhecendo reservatórios animais de importância epidemiológica. As espécies de culicídeos implicadas</p><p>na transmissão são do gênero Aedes, principalmente Aedes aegypti (tanto na América do Sul, como na</p><p>África), mantendo-se um ciclo homem-mosquito-homem. No Brasil, não há registro de ciclo urbano de</p><p>febre amarela desde 1942.</p><p>No ciclo silvestre, a febre amarela é uma zoonose, transmitida, no continente americano, por</p><p>vários mosquitos de dois gêneros: Hemagogus (por exemplo, H. janthinomys, H. leucocelaenus e</p><p>H. albomaculatus) e Sabethes (por exemplo, S. chloropterus). Primatas não humanos dos gêneros Cebus</p><p>(macaco prego), Alouatta (guariba), Ateles (macaco aranha) e Callithrix (sagui) são considerados os</p><p>principais hospedeiros, amplificadores do vírus. Esses macacos são vítimas da doença tanto quanto</p><p>o homem, que se apresenta neste ciclo como hospedeiro acidental. Outros mamíferos podem ser</p><p>reservatórios, como alguns marsupiais e roedores.</p><p>Os mosquitos são considerados os verdadeiros reservatórios do vírus da febre amarela, pois, uma</p><p>vez infectados, permanecem assim durante toda a vida. Apenas as fêmeas transmitem o vírus, pois o</p><p>repasto sanguíneo provê nutrientes essenciais para a maturação dos ovos. Nos mosquitos, a transmissão</p><p>https://bit.ly/3AHnzmQ</p><p>48</p><p>Unidade I</p><p>também ocorre de forma vertical, ou seja, as fêmeas podem transferir o vírus para sua prole. Os seres</p><p>humanos não imunes podem, acidentalmente, infectar-se, penetrando áreas enzoóticas.</p><p>Observação</p><p>O vírus da febre amarela é transmitido pela picada dos mosquitos</p><p>transmissores infectados. Não há transmissão de pessoa a pessoa.</p><p>Atualmente, a febre amarela silvestre é uma doença endêmica no Brasil (por exemplo, na região</p><p>amazônica). Na região extra-amazônica, períodos epidêmicos são registrados ocasionalmente,</p><p>caracterizando a reemergência do vírus no país. O padrão temporal de ocorrência é sazonal, com a</p><p>maior parte dos casos incidindo entre dezembro e maio, e com surtos que ocorrem com periodicidade</p><p>irregular, quando o vírus encontra condições favoráveis para a transmissão (elevadas temperatura e</p><p>pluviosidade; alta densidade de vetores e hospedeiros primários; presença de indivíduos suscetíveis;</p><p>baixas coberturas vacinais; eventualmente, novas linhagens do vírus), podendo se dispersar para além</p><p>dos limites da área endêmica e atingir outros estados.</p><p>Haemagogus</p><p>sabethes</p><p>Aedes aegypti</p><p>Homem</p><p>Ci</p><p>cl</p><p>o</p><p>ur</p><p>ba</p><p>no</p><p>Ci</p><p>cl</p><p>o</p><p>si</p><p>lv</p><p>es</p><p>tr</p><p>e</p><p>Figura 24 – Ciclos epidemiológicos da febre amarela. A febre amarela apresenta dois ciclos de transmissão</p><p>epidemiologicamente distintos: silvestre e urbano. Do ponto de vista etiológico, clínico, imunológico e fisiopatológico, a</p><p>doença é a mesma nos dois ciclos. No ciclo silvestre da febre amarela, os primatas não humanos (especialmente macaco</p><p>prego [Cebus], guariba [Alouatta], macaco aranha [Ateles] e sagui [Callithrix]) são os principais hospedeiros e amplificadores</p><p>do vírus, e os vetores são mosquitos com hábitos estritamente silvestres, sendo os gêneros Haemagogus e Sabethes os mais</p><p>importantes na América Latina. Nesse ciclo, o homem participa como um hospedeiro acidental ao adentrar áreas de mata.</p><p>No ciclo urbano, o homem é o único hospedeiro com importância epidemiológica e a transmissão ocorre a partir de vetores</p><p>urbanos (Aedes aegypti) infectados. No Brasil, não há mais registro de transmissão urbana</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3APuwme. Acesso em: 20 jan. 2021.</p><p>Na África, os vetores são mosquitos do gênero Aedes, particularmente o Aedes africanus e Aedes</p><p>simpsoni. O primeiro é responsável pela transmissão na copa das árvores, principalmente entre macacos,</p><p>https://bit.ly/3APuwme</p><p>49</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>enquanto o segundo é responsável pela transmissão da doença dos macacos para o homem, na África</p><p>Oriental. Estudos apontaram que pelo menos 21 espécies de mosquitos africanos são capazes de</p><p>transmitir o vírus da febre amarela.</p><p>Algumas espécies de Aedes são importantes vetores nas áreas de savana na África Ocidental (Aedes</p><p>furcifer, Aedes taylori e Aedes luteocephalus). Nas áreas urbanas, o mosquito Aedes aegypti é o principal</p><p>vetor em ambos os continentes. Mais recentemente, verificou-se que o Aedes albopictus, conhecido</p><p>como tigre asiático, também é capaz de transmitir o vírus da febre amarela, tal como já se era sabido</p><p>para o vírus da dengue.</p><p>Em momentos com as condições ideais para transmissão, um número maior de primatas não</p><p>humanos adoece e morre, chamando atenção da sociedade na forma de epizootia, e define medidas de</p><p>intensificação de vacinação nos moradores das regiões afetadas. Estima-se que o número de animais</p><p>infectados aumenta em intervalos cíclicos dependentes do crescimento da população suscetível de</p><p>macacos em determinadas regiões, além da densidade de vetores nas matas. Sendo a febre amarela</p><p>silvestre uma zoonose, sua transmissão não é passível de eliminação, necessitando de vigilância e</p><p>manutenção das ações de controle (especialmente por cobertura vacinal adequada).</p><p>1 3 5 7 9 112</p><p>0</p><p>1</p><p>2</p><p>3</p><p>4</p><p>5</p><p>6</p><p>7</p><p>Média de casos</p><p>Meses</p><p>4 6 8 10 12</p><p>Figura 25 – Média mensal de ocorrência dos casos de febre amarela silvestre no Brasil, de 1990 a 2003</p><p>Fonte: Brasil (2004, p. 17).</p><p>Nas últimas décadas, epidemias de febre amarela silvestre diversas se deram em território nacional.</p><p>Em 1952, houve registro de 221 casos, predominantemente em São Paulo, Minas Gerais e Paraná. Em</p><p>1973, 36 municípios de Goiás somaram 60 casos confirmados e 38 óbitos. Em 1984, a região Norte teve</p><p>um saldo de 45 casos e 28 óbitos. Entre 1993 e 1994, quatro municípios do Maranhão computaram</p><p>87 casos e 12 óbitos. Em 1998, 23 casos no Pará. Em 1999/2000, 161 casos no Pará, Tocantins e Goiás.</p><p>Entre 2001 e 2003, dois surtos ocorreram em Minas Gerais, com 32 e 63 casos, respectivamente. Mais</p><p>recentemente, 778 casos foram confirmados na epidemia de 2016 e 2017, totalizando 262 mortes;</p><p>enquanto 1376 casos, com 483 mortes, ocorreram no país durante o surto de 2017 e 2018. Cerca de</p><p>90% desses casos foram restritos à região Sudeste.</p><p>50</p><p>Unidade I</p><p>Casos confirmados de febre amarela</p><p>Julho de 2018 a fevereiro de 2019</p><p>Casos confirmados de febre amarela</p><p>Julho de 2018 a fevereiro de 2019</p><p>Casos confirmados em primatas ou em humanos</p><p>Julho de 2017 a maio de 2018</p><p>Julho de 2016 a maio de 2018</p><p>1-8</p><p>9-14</p><p>1-8</p><p>9-24</p><p>25-48</p><p>49-147</p><p>Casos confirmados de febre amarela</p><p>Julho de 2017 a maio de 2018</p><p>1-8</p><p>9-14</p><p>Figura 26 – Distribuição de casos confirmados de febre amarela no Brasil, de 2016 a 2019</p><p>Fonte: Paho (2019, p. 3).</p><p>Estudos epidemiológicos possibilitam a secção do país em quatro áreas geográficas distintas:</p><p>• Enzoótica ou endêmica: área onde o vírus circula entre os hospedeiros naturais (principalmente</p><p>macacos) e está presente na população culicidiana vetora. Recomenda-se vacinação dos habitantes</p><p>ou viajantes dessa região.</p><p>• Epizoótica ou de transição: área onde havia, no início do século, intensa circulação do vírus</p><p>entre os hospedeiros naturais. No entanto, com crescente desmatamento, acredita-se que o nicho</p><p>ecológico tenha sido alterado e a circulação viral passou a ser esporádica.</p><p>O monitoramento ativo</p><p>de epizootias e ajuste de campanhas de vacinação são importantes para controles de surtos.</p><p>• Indene de risco potencial: zonas contíguas às áreas de transição, onde houve identificação</p><p>recente da presença do vírus. Os ecossistemas aí presentes apresentam condições de maior risco</p><p>para a circulação do vírus da febre amarela. O monitoramento ativo de epizootias e ajuste de</p><p>campanhas de vacinação também são importantes para controles de surtos.</p><p>• Indene: área onde não há circulação do vírus.</p><p>51</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>2.1.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas</p><p>A febre amarela tem um espectro clínico muito amplo, podendo apresentar desde infecções</p><p>assintomáticas e oligossintomáticas até quadros exuberantes com evolução para morte, nos quais está</p><p>presente a tríade clássica que caracteriza a falência hepática da febre amarela: icterícia, albuminúria</p><p>e hemorragias.</p><p>O conhecimento acerca da patogênese da febre amarela humana deriva, principalmente, de estudos</p><p>experimentais em primatas não humanos. O vírus amarílico apresenta propriedades viscerotrópicas em</p><p>macacos, o que inclui sua replicação no fígado, baço, coração e rins, com consequente danos nesses</p><p>tecidos. Em outras espécies utilizadas em pesquisa, como roedores (camundongos, hamsters e cobaias),</p><p>o vírus selvagem da febre amarela pode causar encefalite.</p><p>Em seres humanos adultos, o vírus amarílico aparenta possuir baixa capacidade em invadir o sistema</p><p>nervoso, pois encefalite não é uma complicação comumente associada à infecção viral, em pacientes que</p><p>não desenvolveram síndrome hepática (encefalopatia bilirrubínica). Entretanto, crianças muito jovens</p><p>que são vacinadas contra a febre amarela (vacina de vírus vivo atenuado) ocasionalmente desenvolvem</p><p>encefalite após a vacinação, sugerindo certo neurotropismo.</p><p>O que ocorre com o vírus da febre amarela após sua entrada no organismo? No homem, após a</p><p>introdução do vírus junto à saliva do mosquito infectado, em poucas horas há infecção dos linfonodos</p><p>regionais, onde há multiplicação silenciosa. Um período de três a seis dias de incubação é seguido por</p><p>início abrupto dos sintomas. Com a liberação das partículas virais, há viremia e início da febre. O espectro</p><p>clínico de febre amarela pode variar desde infecções assintomáticas até quadro graves e fatais.</p><p>Observação</p><p>O período de infecção dura cerca de três dias, tem início súbito e</p><p>sintomas inespecíficos, como febre, calafrios, cefaleia, lombalgia, mialgias</p><p>generalizadas, prostração, náuseas e vômitos.</p><p>As formas leves ou infecções assintomáticas representam a maioria dos casos (40 a 60%). O quadro</p><p>clínico clássico caracteriza-se pelo início súbito de febre alta (até 41ºC), cefaleia intensa e duradoura,</p><p>inapetência, náuseas e mialgia. Bradicardia acompanhando febre alta (sinal de Faget) pode ou não estar</p><p>presente. Nas formas leves e moderadas, que representam entre 20 e 60% dos casos, os sinais e sintomas</p><p>duram entre dois e quatro dias, que geralmente são aliviados com tratamento sintomático, antitérmicos</p><p>e analgésicos. Pacientes podem apresentar batimento cardíaco lento ao pulso.</p><p>As formas graves e malignas representam, aproximadamente, de 20 a 40% dos casos, para os quais</p><p>a evolução para o óbito pode ocorrer entre 20 e 50% dos registros. Nas formas graves, cefaleia e mialgia</p><p>ocorrem com maior intensidade e podem estar acompanhadas de náuseas e vômitos frequentes, icterícia,</p><p>oligúria e manifestações hemorrágicas, como epistaxe (sangramento da mucosa nasal), hematêmese</p><p>(sangue no vômito) e metrorragia (sangramento uterino fora do período menstrual).</p><p>52</p><p>Unidade I</p><p>O quadro clínico típico caracteriza-se por manifestações de insuficiência hepática e renal, tendo</p><p>em geral apresentação bifásica, com um período inicial prodrômico (infecção) e um toxêmico,</p><p>que surge após uma aparente remissão. Após o período de remissão dos sintomas, que pode levar</p><p>de 6 a 48 horas, entre o 3º e o 5º dia de doença, ocorre agravamento da icterícia, insuficiência renal</p><p>e fenômenos hemorrágicos de maior intensidade. Em muitos casos, a evolução para óbito se dá em</p><p>aproximadamente uma semana.</p><p>Observação</p><p>Período de remissão é quando ocorre declínio da temperatura e</p><p>diminuição da intensidade dos sintomas, provocando uma sensação de</p><p>melhora no paciente. Dura de poucas horas até, no máximo, dois dias.</p><p>A convalescença costuma ser rápida e a recuperação completa, mas ocasionalmente pode ser</p><p>prolongada acompanhando-se de severa astenia por uma a duas semanas. Além disso, podem ocorrer</p><p>complicações decorrentes de outras infecções, como pneumonia bacteriana e sepse associada com a</p><p>recuperação de necrose tubular aguda.</p><p>Observação</p><p>No período toxêmico reaparece a febre, a diarreia e os vômitos têm</p><p>aspecto de borra de café. Instala-se quadro de insuficiência hepatorrenal</p><p>caracterizado por icterícia, oligúria, anúria e albuminúria, acompanhado de</p><p>manifestações hemorrágicas.</p><p>Podem ocorrer formas atípicas fulminantes, levando à morte em 24 a 72 horas após o início da</p><p>doença. O quadro clínico é de início abrupto, predominando a insuficiência renal com discreta ou</p><p>mesmo ausência de comprometimento hepatorrenal, não havendo evolução bifásica. O prognóstico</p><p>é grave, registrando-se alta letalidade, mesmo em regime de terapia intensiva. Esses quadros têm sido</p><p>observados na África, porém são raros.</p><p>Ao exame macroscópico, nota-se coloração amarela da pele e mucosas, bem como manchas</p><p>equimóticas, às vezes extensas. Nas cavidades torácica e abdominal observa-se aumento dos líquidos</p><p>pleural e ascítico, que frequentemente apresentam coloração amarela intensa. No tubo digestivo,</p><p>principalmente no estômago e intestino delgado, observa-se a presença de sangue, além de lesões</p><p>petequiais na mucosa ou mesmo pequenas erosões. A vesícula biliar apresenta-se distendida devido</p><p>ao grande volume de sangue e, frequentemente, ultrapassa o gradil costal. Na bexiga observa-se</p><p>extravasamento hemorrágico da mucosa, com áreas de franca hemorragia.</p><p>A intensa multiplicação do vírus nos órgãos atingidos produz necrose com escassa reação inflamatória</p><p>local. Lesões proeminentes são observadas no fígado e rins. A infecção e degeneração dos hepatócitos</p><p>é um evento relativamente tardio em macacos, ocorrendo de 24-48 horas antes da morte. Em seres</p><p>53</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>humanos, o perfil é semelhante. Uma característica marcante do dano hepático decorrente da febre</p><p>amarela é a presença de áreas de necrose em hepatócitos na zona média do lóbulo hepático, sem</p><p>acometimento das células que circundam a veia central ou ramos da veia porta. Esse perfil de lesão</p><p>reflete baixa perfusão tecidual decorrente de queda brusca da pressão arterial (choque). Nos casos mais</p><p>graves, a necrose é caracterizada pela destruição de vastas áreas do fígado.</p><p>A presença de corpúsculos de Councilman – áreas de degeneração eosinofílica que consistem</p><p>em material amorfo, proteico e desprovido de partículas virais – denotam apoptose, diferentemente</p><p>da balonização e necrose esparsa comumente presentes em hepatites virais. A injúria decorrente de</p><p>apoptose contribui para explicar a ausência de infiltrado inflamatório na lesão hepática amarílica.</p><p>Junto a acúmulos microvesiculares de lipídeos (esteatose), estes achados são frequentes em casos</p><p>graves de febre amarela. A hemorragia associada a complicações severas da doença resulta principalmente</p><p>da diminuição da síntese de fatores da coagulação pelo fígado, além de haver consumo dos fatores</p><p>circulantes por coagulação intravascular disseminada, consequente a perturbações da pressão arterial</p><p>e do fluxo sanguíneo.</p><p>A)</p><p>B)</p><p>Figura 27 – Necrose do tecido hepático decorrente de febre amarela. (A) Necrose de vastas áreas do tecido hepático, com</p><p>proliferação de estruturas semelhantes a ductúlos ao redor de ramo portal (seta). (B) Hepatócitos com microvesículas</p><p>gordurosas (setas); a infiltração de lipídeos no citoplasma de hepatócitos é uma alteração constante na febre amarela</p><p>Disponível</p><p>em: https://bit.ly/3CUQRAD. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>https://bit.ly/3CUQRAD</p><p>54</p><p>Unidade I</p><p>Observação</p><p>Os corpúsculos de Councilman são típicos da febre amarela, mas não</p><p>exclusivos a ela, pois também podem ser encontrados na hepatite viral,</p><p>queimaduras graves, infecções por Plasmodium falciparum, mononucleose</p><p>infecciosa e outras febres hemorrágicas.</p><p>Figura 28 – Aspectos histológicos da lesão do tecido hepático decorrente de febre amarela, com</p><p>ênfase degenerações eosinofílicas (corpúsculos de Councilman)</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3g9gJPo. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>Casos fatais de febre amarela geralmente apresentam rins congestos, edemaciados e grossamente</p><p>aumentados. O aspecto histopatológico do tecido renal é caracterizado por degeneração eosinofílica e</p><p>gordurosa do epitélio tubular, novamente sem infiltrado inflamatório proeminente. Antígenos virais são</p><p>encontrados nos túbulos renais em casos fatais, sugerindo que haja injúria viral direta nessas células. Em</p><p>modelos experimentais símios, a função tubular é mantida durante o decurso da febre amarela.</p><p>A oligúria associada à doença aparenta ser decorrente da hipotensão, sendo a necrose tubular</p><p>aguda um evento terminal. A albuminúria acentuada pode ser consequência de perturbações da função</p><p>glomerular, pois alterações histológicas são encontradas na membrana basal glomerular e nas células</p><p>que formam o epitélio de revestimento interno da cápsula de Bowman.</p><p>Alguns glomérulos apresentam aumento do mesângio e espessamento da parede capilar, às vezes</p><p>com obstrução da sua luz. Antígenos virais são encontrados nos glomérulos de dois a três dias após a</p><p>infecção em macacos. Os túbulos apresentam em sua luz cilindros de textura e cores diversas, ressaltando</p><p>os cilindros hemáticos e os grânulos acastanhados constituídos de bilirrubina. Frequentemente são</p><p>observados cristais arredondados e birrefringentes.</p><p>https://bit.ly/3g9gJPo</p><p>55</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Figura 29 – Necrose tubular decorrente de febre amarela. Tecido renal</p><p>com necrose tubular aguda (setas)</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3CUQRAD. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>A necrose de centros germinativos do baço, linfonodos, tonsilas e placas de Peyer foi observada</p><p>em macacos e em seres humanos, mas ainda é incerto se são decorrentes da própria infecção viral</p><p>ou por consequência do estresse induzido por corticoides. Degeneração focal de células musculares</p><p>pode ocorrer no coração. Sintomas hemorrágicos e desfechos fatais estão fortemente correlacionados</p><p>com elevados níveis de citocinas circulantes. O excesso de fator de necrose tumoral α (TNF-α) e de</p><p>outras citocinas produzidas por células de Kupffer infectadas/ativadas e por macrófagos esplênicos, em</p><p>resposta direta à injúria viral e ao ataque mediado por linfócitos T citotóxicos, contribui para o dano</p><p>endotelial, microtrombose, anoxia tecidual e choque.</p><p>Observação</p><p>Algumas características clínicas da febre amarela se relacionam com</p><p>grande probabilidade de morte:</p><p>• Rápida progressão do período toxêmico e aumento acelerado da</p><p>bilirrubina sérica.</p><p>• endência hemorrágica grave e aparecimento de coagulação</p><p>intravascular disseminada.</p><p>• Insuficiência renal causada por necrose tubular aguda.</p><p>• Aparecimento precoce de hipotensão.</p><p>• Choque.</p><p>• Coma e convulsões.</p><p>https://bit.ly/3CUQRAD</p><p>56</p><p>Unidade I</p><p>A infecção pelo vírus da febre amarela produz rápida resposta humoral. Anticorpos da classe IgM</p><p>podem ser identificados ainda na primeira semana a partir da manifestação clínica dos sintomas, com</p><p>pico durante a segunda semana e, em geral, declínio progressivo com o passar dos meses. Durante o</p><p>período de infecção, anticorpos não são detectáveis. Ao passo que o paciente transita em direção à fase</p><p>de remissão e, possivelmente, ao período toxêmico, anticorpos IgM são detectáveis enquanto a carga</p><p>viral deixa de sê-lo.</p><p>Os níveis de anticorpos IgG contra o vírus aumentam alguns dias após os anticorpos IgM e são</p><p>detectáveis em praticamente todos os pacientes a partir do 14º dia após o início dos sintomas. A figura</p><p>a seguir traz uma curva temporal para o desenvolvimento de anticorpos contra o vírus da febre amarela.</p><p>-2 2 6 100 4 8 12 14</p><p>Dias desde o início dos sintomas</p><p>Período de infecção Período toxêmico</p><p>Convalescença</p><p>IgM</p><p>IgG</p><p>Viremia</p><p>Figura 30 – Evolução temporal para desenvolvimento de anticorpos contra o vírus da febre amarela. Áreas</p><p>acinzentadas representam os períodos de infecção e toxêmico. Para muitos pacientes, a febre amarela se resolve</p><p>espontaneamente durante a fase de remissão (área clara entre as áreas acinzentadas). Estima-se que 12% dos</p><p>pacientes infectados entrarão no período toxêmico. Embora o período da viremia possa variar entre pacientes, e</p><p>inclusive se estender, em média o RNA viral não é mais detectado por volta do início da segunda semana após o início</p><p>dos sintomas. A partir desse momento, os níveis de IgM, e posteriormente IgG, passam a aumentar</p><p>Adaptada de: https://bit.ly/2XzAglB. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>2.1.5 Diagnóstico laboratorial</p><p>Os resultados dos testes laboratoriais de rotina, como hemograma e avaliações bioquímicas, não são</p><p>específicos para febre amarela. Nas formas leves e moderadas, que apresentam quadro clínico benigno</p><p>e autolimitado, não há alterações laboratoriais importantes. Alguns exames inespecíficos que devem</p><p>ser realizados são conhecidos como provas de função hepática e renal. As provas de função hepática</p><p>buscam avaliar os pacientes quanto à função do fígado, visando detectar a presença de doença hepática,</p><p>avaliar a extensão da lesão, realizar diagnóstico diferencial com outras doenças e orientar a conduta</p><p>do tratamento.</p><p>https://bit.ly/2XzAglB</p><p>57</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Nas formas graves, na observação da série branca verifica-se neutrofilia na fase inicial. A partir do</p><p>3º ou 4º dia, altera-se para leucopenia com linfocitose. No campo da bioquímica, as aminotransferases</p><p>ou transaminases – AST (aspartato aminotransferase; antiga TGO, transaminase glutâmica oxalacética)</p><p>e ALT (alanina aminotransferase, antiga TGP, transaminase glutâmica pirúvica) – começam a se</p><p>elevar de dois a três dias após o início dos sintomas, facilmente ultrapassando 1.000 U/L. Os níveis</p><p>séricos de AST/TGO normalmente excedem os de ALT/TGP, provavelmente devido à lesão viral direta</p><p>sobre o miocárdio e músculo esquelético. Isso distingue a febre amarela de outras hepatites virais.</p><p>A concentração sérica dessas enzimas alcança seu ponto máximo entre o 5º e o 8º dia e, nos pacientes</p><p>que sobrevivem, podem persistir ligeiramente elevadas durante um período de até dois meses.</p><p>Em decorrência do dano hepático, há aumento das bilirrubinas, com predomínio da fração direta</p><p>que pode se elevar além de 5 a 10 mg/dL. Altos níveis de transaminases e de bilirrubina séricos</p><p>correlacionam-se com a severidade dos casos. Achados laboratoriais adicionais incluem aumento do</p><p>tempo de protrombina, tempo de tromboplastina parcial e tempo de coagulação. Em função do dano</p><p>hepático, há diminuição dos fatores de coagulação sintetizados pelo fígado (II, V, VII, IX e X).</p><p>Nos casos de coagulação intravascular disseminada, há diminuição do fator VIII e fibrinogênio,</p><p>além de trombocitopenia.</p><p>Em função da disfunção renal, os níveis de ureia e creatinina plasmáticos elevam-se, podendo</p><p>alcançar até 5-6 vezes os valores normais ou até mais altos. Proteinúria (entre 3 e 20 g/L), hematúria e</p><p>cilindrúria são evidentes na inspeção da urina. Nos casos graves ocorre oligúria com baixa densidade,</p><p>em consequência do dano tubular, com evolução para anúria.</p><p>É importante ressaltarmos que as formas leve e moderada da febre amarela são de difícil</p><p>diagnóstico diferencial, pois podem ser confundidas com outras doenças infecciosas que atingem os</p><p>sistemas respiratório, digestivo e urinário. Além disso, as formas graves, com quadro clínico clássico</p><p>ou fulminante, devem ser diferenciadas de malária por Plasmodium falciparum, leptospirose, além de</p><p>formas fulminantes de hepatites, febres hemorrágicas de</p><p>etiologia viral, dengue hemorrágica, outras</p><p>arboviroses, septicemias e outras doenças com curso ictero-hemorrágico.</p><p>Uma gama de métodos e ensaios específicos permite a confirmação do diagnóstico de febre amarela,</p><p>entre eles isolamento viral, sorologia, testes moleculares e detecção de antígenos. O isolamento</p><p>viral consiste na pesquisa de vírus com base na cultura de células C6/36 (células de Aedes albopictus),</p><p>ou ainda em células de outras linhagens comerciais, como Vero (rim de macaco), BHK-21 (rim de</p><p>hamster) ou LLC-MK2 (rim de macaco Rhesus). Após três a cinco dias da inoculação, o vírus causa efeito</p><p>citopatogênico caracterizado por alterações morfológicas das células. Uma vez isolado, a identificação</p><p>do vírus pode se dar por testes de fixação de complemento ou imunofluorescência indireta. Para isolar o</p><p>vírus do sangue ou do soro, a amostra deve ser coletada nos primeiros cinco dias após o início da febre.</p><p>58</p><p>Unidade I</p><p>A) B)</p><p>Figura 31 – Efeito citopagênico da infecção viral em células em cutura. (A) Células Vero não</p><p>infectadas. (B) Células Vero infectadas com vírus Zika (efeitos semelhantes seriam observados diante</p><p>de outras infecções virais). Escala = 100 µm</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3CVrnTu. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>Conforme inspeção ao microscópio de contraste de fase, o efeito citopatogênico pode ser evidenciado</p><p>em função da desadesão e degeneração de células em cultura, alguns dias após a inoculação de partículas</p><p>virais junto ao sobrenadante.</p><p>As provas sorológicas produzem resultados bem definidos quando realizadas em paciente exposto</p><p>pela primeira vez a um flavivírus. Os anticorpos específicos aparecem nos primeiros dias, alcançando</p><p>níveis bastante elevados em comparação aos anticorpos heterólogos. A investigação sorológica pode</p><p>ser realizada pelo método de captura de anticorpos da classe IgM, pela técnica de ELISA (MAC-ELISA),</p><p>após o 5º dia da doença (80% dos pacientes apresentam anticorpos IgM detectáveis entre o 6º e 10º dia).</p><p>A análise do resultado deve ser realizada também com base nos dados clínicos, epidemiológicos e</p><p>laboratoriais. Os casos que apresentarem resultado reagente para febre amarela devem ser avaliados</p><p>quanto à possibilidade de infecções recentes por outros flavivírus, como dengue e Zika, devido à</p><p>possibilidade de reação cruzada e/ou inespecífica. Nesse caso, a reação é rápida e intensa em função da</p><p>memória imunológica prévia e os anticorpos heterólogos são iguais ou mais elevados que os específicos.</p><p>Em pessoas vacinadas com a cepa 17D ou 17DD foram detectados anticorpos IgM neutralizantes</p><p>até 18 meses após a imunização. A magnitude da resposta de IgM em casos de infecção primária</p><p>de febre amarela é significativamente maior, quando comparada a pacientes previamente expostos a</p><p>outros flavivírus.</p><p>Outros métodos sorológicos, ainda que menos frequentemente utilizados, são: (1) teste de</p><p>inibição da hemaglutinação, que deve ser realizado em amostras pareadas do período de fase</p><p>aguda e convalescente da doença, com intervalo de 14 a 21 dias entre a 1ª e a 2ª coleta de amostra;</p><p>(2) teste de fixação de complemento, mais específico que a inibição da hemaglutinação; (3) teste</p><p>de pesquisa de anticorpos da classe IgG, que é realizado pela técnica de ELISA e também requer</p><p>https://bit.ly/3CVrnTu</p><p>59</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>cuidado na interpretação, pois não indica infecção recente; e (4) teste de soro-neutralização, que</p><p>mede anticorpos neutralizantes contra o vírus da febre amarela e que pode ser realizado em cultura de</p><p>células e/ou em camundongos.</p><p>Observação</p><p>As técnicas usadas para detecção de anticorpos neutralizantes incluem</p><p>os testes de neutralização por redução em placa de lise (PRNT, plaque</p><p>reduction neutralization test) em cultura celular e o teste de proteção de</p><p>camundongos. Atualmente, o PRNT é a técnica padrão para avaliar resposta</p><p>à vacina antiamarílica.</p><p>Entre os testes moleculares comumente empregados para a detecção do RNA do vírus amarílico,</p><p>destaca-se a reação em cadeia da polimerase com etapa de transcrição reversa (RT-PCR), que permite a</p><p>detecção de quantidades reduzidas de ácido nucleico viral presente nas amostras, pela amplificação do</p><p>DNA complementar (cDNA) obtido a partir do RNA viral, utilizando sondas (primers) apropriadas para</p><p>amplificar sequências específicas do vírus da febre amarela.</p><p>O sucesso desse método depende em parte da preservação do espécime clínico, pois as amostras</p><p>devem ser obtidas na fase inicial da doença, preferencialmente até o 10º dia após o início dos sintomas,</p><p>e conservadas em temperaturas ultrabaixas (-70ºC). Para biópsias e fragmentos de tecidos (em geral post</p><p>mortem) existem conservantes que podem ser adicionados junto ao material (por exemplo, RNAlater®,</p><p>Thermo Fisher), que garantem a estabilização do RNA viral por tempo prolongado à temperatura</p><p>ambiente (uma semana a 25 ºC), sob refrigeração (um mês a 4 ºC) ou congelado (meses a -20 °C ou</p><p>temperaturas mais baixas).</p><p>0 2 4 6 8 10 12 141 3 5 7 9</p><p>Diagnóstico molecular</p><p>(RT-PCR) Diagnóstico sorológico</p><p>(IgM)</p><p>11 13 15</p><p>Figura 32 – Indicações para diagnóstico de febre amarela em função do número</p><p>de dias decorridos desde o início dos sintomas</p><p>Fonte: Paho (2018, p. 2).</p><p>A detecção de antígeno viral (imuno-histoquímica) pode ser realizada em amostras de tecidos</p><p>(principalmente do fígado e, adicionalmente, do baço, pulmão, rins, coração e cérebro) coletadas</p><p>preferencialmente até 24 horas após o óbito. As amostras devem ser conservadas em temperatura</p><p>ambiente, em formalina tamponada a 10%. A pesquisa do antígeno viral deve ser acompanhada do</p><p>exame histopatológico do fígado e de outros tecidos coletados, em que se espera a apresentação das</p><p>lesões sugestivas de infecção recente por febre amarela, como a necrose médio-lobular ou médio-zonal</p><p>e a presença de corpúsculos acidófilos de Councilman no fígado.</p><p>60</p><p>Unidade I</p><p>Uma abordagem por imunofluorescência também pode ser conduzida em fragmentos de tecidos,</p><p>desde que esses sejam criopreservados. Estratégias de hibridização in situ, empregando sondas radioativas</p><p>ou não, também são possíveis, inclusive em materiais conservados por muitos anos.</p><p>Observação</p><p>É terminantemente contraindicada a realização de biópsias enquanto o</p><p>paciente estiver vivo, pelos riscos de sangramento devido às alterações de</p><p>coagulação próprias da doença.</p><p>2.1.6 Tratamento</p><p>Não existe tratamento antiviral específico para febre amarela. Assim, o tratamento é apenas</p><p>sintomático, com cuidadosa assistência ao paciente, que deve permanecer hospitalizado, em repouso,</p><p>com reposição de líquidos e das perdas sanguíneas, quando indicado.</p><p>Nas formas graves, o paciente deve ser atendido em uma unidade de terapia intensiva, o que reduz as</p><p>complicações e a letalidade. Na enfermaria, para casos leves e moderados, deve-se prescrever medicação</p><p>sintomática para febre e dor (dipirona e paracetamol), hidratação oral ou parenteral e iniciar controle</p><p>de diurese usando recipientes adequados, graduados e de boca larga, calculando o volume a cada hora</p><p>(diurese > 1 mL/kg/h é adequada).</p><p>Não é necessário sondagem vesical, que deve ser evitada especialmente em pacientes com</p><p>manifestações hemorrágicas. Nos casos graves, devem ser evitados procedimentos invasivos e o uso</p><p>de heparina não é recomendado. Medidas de suporte incluem aplicação de vitamina K por três dias,</p><p>proteção gástrica (ex.: omeprazol, cimetidina, ranitidina) e transfusão de concentrado de hemácias e/ou</p><p>plasma fresco congelado.</p><p>Observação</p><p>Para o combate à febre e cefaleia devem ser evitados medicamentos</p><p>que contenham em sua fórmula ácido acetilsalicílico ou derivados, pela</p><p>possibilidade de agravar o quadro hemorrágico.</p><p>O tratamento de náuseas e vômitos deve ser feito com antieméticos, sendo a metoclopramida o</p><p>medicamento de eleição. Nos casos graves, a via endovenosa é a mais indicada. Nos casos moderados,</p><p>podem ser usados supositórios via retal. Para tratar a agitação, é preferível ministrar Diazepam, via</p><p>endovenosa e, de acordo</p><p>com a resposta, ajustam-se a dose e o horário de aplicação. Deve-se atentar para</p><p>a possibilidade de infecção bacteriana concomitante, ponderando o início precoce de antibioticoterapia</p><p>de largo espectro.</p><p>61</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>2.1.7 Imunização</p><p>Há apenas um sorotipo circulante do vírus da febre amarela contra o qual existem vacinas efetivas.</p><p>Você compreende o impacto disto? A existência de vacinas possibilita uma intervenção profilática</p><p>de sucesso para o controle da doença. Vacinas para a febre amarela estão disponíveis desde a década de</p><p>1930, e a Organização Mundial da Saúde recomenda o uso daquelas preparadas a partir da subcepa 17D.</p><p>Desenvolvida por Theiler e Smith, em 1937, a vacina 17D consiste em um vírus da febre amarela</p><p>que foi atenuado por 176 passagens seriais em culturas de células murinas e em embriões de galinha,</p><p>resultando na perda do viscerotropismo e da capacidade de infectar células de mosquitos. Os problemas</p><p>iniciais de sobre- e subatenuação foram resolvidos quando se estabeleceu um lote-semente primário do</p><p>vírus, em 1945.</p><p>Hoje, essas vacinas são consideradas seguras e altamente imunogênicas. Preconiza-se que nenhuma</p><p>vacina seja produzida com mais que uma passagem a partir do lote-semente primário. A usada no Brasil</p><p>é produzida pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiologicos (Bio-Manguinhos), da Fundação Oswaldo</p><p>Cruz (Fiocruz), e consiste em vírus vivos atenuados subcepa 17DD, cultivados em embrião de galinha. É um</p><p>imunobiológico seguro e altamente eficaz na proteção contra a doença, com imunogenicidade de 90%</p><p>a 98% de proteção. Os anticorpos protetores aparecem entre o 7° e o 10º dia após a aplicação da vacina,</p><p>razão pela qual a imunização deve ocorrer dez dias antes de se ingressar em área de risco da doença.</p><p>O esquema vacinal consiste em uma dose única a partir dos 9 meses de idade, sendo indicada para</p><p>residentes ou viajantes que se destinem a áreas com recomendação de vacinação (todos os estados das</p><p>regiões Norte e Centro-Oeste; Minas Gerais, Espírito Santo e Maranhão; alguns municípios dos estados</p><p>do Piauí, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Sergipe e Alagoas),</p><p>ou ainda pessoas que se desloquem para países endêmicos, conforme recomendações do Regulamento</p><p>Sanitário Internacional.</p><p>Pessoas com história comprovada de hipersensibilidade a ovo devem ser avaliadas por um médico</p><p>antes de serem vacinadas para verificar o risco/benefício desta vacinação, que deverá ser realizada</p><p>em locais com estrutura adequada para atendimento de urgência e emergência, e permanecer em</p><p>observação na unidade por, pelo menos, duas horas após receber a vacina.</p><p>Durante a epidemia de febre amarela silvestre de 2018, na região Sudeste, em função da</p><p>disponibilidade limitada de doses, uma campanha emergencial foi conduzida, aplicando-se um quinto da</p><p>dose comumente empregada aos indivíduos (fracionamento da vacina). Uma dose inteira normalmente</p><p>confere imunidade vitalícia, mas e quanto à dose fracionada? Ainda não sabemos a resposta.</p><p>A melhor resposta imunogênica implica a produção equilibrada de anticorpos, de células de defesa</p><p>e de mediadores conhecidos como interleucinas, que ativam essas células, estimulam a produção de</p><p>anticorpos e, de modo mais amplo, regulam as defesas do organismo contra agentes causadores de doenças.</p><p>Em 2013, pressionada pela falta de vacinas, a OMS aprovou o fracionamento, também de um quinto</p><p>da dose completa, para deter a epidemia de febre amarela de outro tipo – a urbana, transmitida pelo</p><p>62</p><p>Unidade I</p><p>mosquito Aedes aegypti – na África. E funcionou muito bem. Aqui no Brasil, a campanha também foi</p><p>um sucesso, evitando a propagação da doença. Se aqueles indivíduos vacinados com a dose fracionada</p><p>permanecerão protegidos no longo prazo, apenas o acompanhamento longitudinal nos permitirá dizer.</p><p>Saiba mais</p><p>Para saber mais sobre a vacina contra febre amarela, consulte:</p><p>FIORAVANTE, C. Examinando a vacina contra febre amarela. Revista</p><p>Pesquisa Fapesp, ed. 264, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3xShySJ. Acesso</p><p>em: 15 jan. 2021.</p><p>2.2 Dengue</p><p>2.2.1 Breve histórico</p><p>Os primeiros relatos de uma grande epidemia que possivelmente fora a dengue datam de 1779 e 1780,</p><p>em três continentes distintos (Ásia, África e América do Norte). Entretanto, descritivos de uma doença</p><p>com quadro clínico compatível com a febre dengue datam de muito antes. O primeiro deles foi publicado</p><p>em um antigo documento chinês – a Enciclopédia de sintomas de doenças e medicamentos – publicado</p><p>ainda durante a Dinastia Chin (de 265 a.C. a 420 d.C.). Surtos nas Índias Ocidentais, em 1635, e no</p><p>Panamá, em 1699, também poderiam ser devidos à dengue. Assim, doenças com aspectos semelhantes</p><p>à dengue foram reportadas com distribuição cosmopolita antes mesmo do século XVIII.</p><p>Em algum momento do passado, possivelmente em função do desmatamento e do estabelecimento</p><p>de comunidades humanas, o vírus dengue saltou das florestas e instalou-se no ambiente rural, onde</p><p>era – e ainda é – transmitido ao ser humano por mosquitos do gênero Aedes, como Aedes albopictus.</p><p>Com a migração e as rotas de comércio asiáticas, esses vírus foram encaminhados a vilarejos, povoados</p><p>e cidades da Ásia tropical, onde provavelmente eram transmitidos, esporadicamente, a seres humanos</p><p>ainda por mosquitos Aedes albopictus.</p><p>Com o tráfico de escravos entre a África Ocidental e as Américas, a introdução de uma espécie de</p><p>mosquito africano, o Aedes aegypti, se deu no Novo Mundo, durante os séculos XVII, XVIII e XIX. Essa</p><p>espécie tornou-se altamente adaptada ao convívio conosco em ambientes urbanos, espalhando-se ao</p><p>longo dos trópicos. Em função da preferência do Aedes aegypti em alimentar-se de sangue humano,</p><p>essa espécie se tornou um vetor bastante eficiente para a transmissão da dengue e da febre amarela.</p><p>Portanto, quando esses vírus foram introduzidos nas cidades portuárias infestadas com Aedes aegypti,</p><p>epidemias ocorreram. Epidemias pré-1940 são deduzidas sobretudo por suas características clínicas</p><p>e epidemiológicas.</p><p>Você sabia que a última grande pandemia de dengue se iniciou durante a Segunda Guerra Mundial e</p><p>perdura até os dias de hoje? Ainda no início da guerra, vírus foram carreados por soldados infectados, do</p><p>63</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>sudeste asiático para o Japão e Ilhas do Pacífico, incluindo o Havaí. Pouco se sabe acerca da distribuição</p><p>geográfica dos sorotipos do vírus antes da Segunda Guerra Mundial, mas não há dúvidas que o processo</p><p>de reconstrução de muitas cidades promoveu um fluxo migratório intenso em direção a áreas urbanas.</p><p>Assim, a transmissão endêmica dos quatro sorotipos do vírus da dengue se deu em toda a Ásia tropical.</p><p>Sem programas eficientes de controle de vetores, a taxa de infecção de seres humanos aumentou</p><p>consideravelmente no continente asiático nos 40 anos subsequentes ao final da guerra. No início dos</p><p>anos 1960, o vírus da dengue alcançou Cuba, muitas ilhas do Caribe, México, Estados Unidos, a maior</p><p>parte da América Central, Colômbia, Equador, Peru, Paraguai, Bolívia, Argentina e Brasil. Por volta dos</p><p>anos 1990, a doença se expandia em direção ao norte da China, incluindo a província de Taiwan, o sul</p><p>da Austrália e praticamente todas as Ilhas do Pacífico. Na África e no Oriente Médio, surtos endêmicos</p><p>foram registrados em diferentes países, como Quênia, Moçambique, Somália e Iêmen.</p><p>A doença é considerada endêmica em mais de 100 países atualmente. Não apenas o número de</p><p>casos tem aumentado, mas também surtos têm ocorrido em novas localidades. A ameaça de epidemias</p><p>de dengue no continente europeu hoje é uma realidade. Transmissões locais foram reportadas pela</p><p>primeira vez na França e na Croácia, em 2010. Em 2012, um surto de dengue ocorreu nas Ilhas Madeira,</p><p>resultando em mais de 2 mil casos importados para Portugal e mais dez países europeus. A transmissão</p><p>autóctone já é realidade no continente europeu.</p><p>O vírus da dengue foi isolado em laboratório pela primeira em 1943, por Ren Kimura</p><p>e Susumu</p><p>Hotta. Esses dois cientistas estudavam amostras de sangue de pacientes acometidos pela epidemia</p><p>de dengue em Nagasaki (Japão) no mesmo ano. Em 1944, Albert Sabin e Walter Schlesinger também</p><p>isolaram o vírus, de forma independente. Todos os cientistas em questão haviam detectado o mesmo</p><p>sorotipo viral, que hoje denominamos DEN-1 (ou DENV-1). São conhecidos quatro sorotipos do vírus</p><p>que causam infecção em seres humanos (DEN-1/2/3/4 ou DENV-1/2/3/4), sendo cada um subdividido</p><p>em função de diferentes genótipos.</p><p>Estima-se que os quatro sorotipos surgiram a partir de um vírus símio ancestral comum, há</p><p>aproximadamente mil anos. Os quatro sorotipos possivelmente emergiram entre seres humanos, em</p><p>ciclos de transmissão urbana, há aproximadamente 500 anos. Mais recentemente, um quinto sorotipo</p><p>(DEN-5 ou DENV-5) foi descrito em ciclos silvestres, na Malásia. As implicações de saúde pública deste</p><p>quinto sorotipo ainda são incertas, pois, aparentemente, sua circulação predomina entre primatas não</p><p>humanos, em Bornéu.</p><p>Lembrete</p><p>Chamamos sorotipos, pois, em função de características distintas nas</p><p>mesmas proteínas superfície, cada um é capaz de gerar uma resposta</p><p>humoral específica, em resposta à infecção; logo, cada um interage</p><p>diferentemente com anticorpos produzidos pelo organismo.</p><p>64</p><p>Unidade I</p><p>A)</p><p>1970</p><p>B)</p><p>2006</p><p>Figura 33 – Distribuição geográfica dos sorotipos do vírus da dengue em 1970 (A) e em 2006 (B)</p><p>Fonte: Gubler (2006, p. 11).</p><p>2.2.2 Agente etiológico</p><p>Tal como o vírus da febre amarela, o vírus da dengue é um arbovírus da família Flaviviridae. Trata-se</p><p>de uma partícula esférica envelopada, de cerca de 40-50 nm de diâmetro. Seu filamento único de</p><p>RNA polaridade positiva, com aproximadamente 11 kb, possui uma única janela aberta de leitura e</p><p>codifica para três proteínas estruturais – glicoproteínas do capsídeo (C), membrana (M) e envelope (E) –</p><p>65</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>e sete proteínas não estruturais (NS1, NS2A, NS2B, NS3, NS4A, NS4B e NS5). A informação é traduzida</p><p>como uma poliproteína, posteriormente processada por clivagem enzimática. Propriedades biológicas</p><p>importantes dos vírus da dengue estão associadas à glicoproteína E, incluindo ligação ao receptor,</p><p>hemaglutinação de eritrócitos e indução da produção de anticorpos neutralizantes. Cada sorotipo</p><p>compartilha aproximadamente 65% do genoma, o que é próximo à semelhança genética do vírus do</p><p>Nilo Ocidental e o vírus da encefalite japonesa. Apesar dessas diferenças, cada sorotipo produz sintomas</p><p>praticamente idênticos em seres humanos e circula nos mesmos nichos ecológicos.</p><p>A) B)</p><p>C)</p><p>Proteína E Proteína C Proteína M</p><p>Figura 34 – Micrografia eletrônica e esquematização do vírus da dengue. O vírus da dengue é uma</p><p>partícula esférica envelopada, de cerca de 40-50 nm de diâmetro. (A) Micrografia eletrônica. (B)</p><p>Esquematização de sua estrutura. (C) Ênfase para as glicoproteínas estruturais do envelope (E),</p><p>capsídeo (C) e membrana (M)</p><p>Fonte: A) Guzman et al. (2010, p. 1835). B e C) Disponível em: https://bit.ly/37QKZtC. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>NS2B</p><p>NS2A</p><p>NS4B</p><p>5’ UTR</p><p>3’ UTR</p><p>NS4A</p><p>NS5NS3NS1EMC</p><p>Figura 35 – O genoma do vírus da dengue. Uma única janela aberta de leitura codifica para três</p><p>proteínas estruturais – glicoproteínas do capsídeo (C), membrana (M) e envelope (E) – e sete proteínas</p><p>não estruturais (NS1, NS2A, NS2B, NS3, NS4A, NS4B e NS5)</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3iSXXxr. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>https://bit.ly/37QKZtC</p><p>https://bit.ly/3iSXXxr</p><p>66</p><p>Unidade I</p><p>O reconhecimento do vírus pelas células-alvo depende da interação entre as proteínas da</p><p>superfície viral e componentes da membrana plasmática celular. A suscetibilidade de tecidos</p><p>do hospedeiro aos vírus é intimamente dependente da abundância e da distribuição destes</p><p>receptores virais. Em geral, a ligação se dá de forma não específica, aumentando a concentração</p><p>de partículas virais ligadas à superfície da célula e desencadeando eventos de endocitose mediada</p><p>por clatrina e dinamina.</p><p>Apesar dos esforços em determinar um ligante específico para o vírus da dengue, este receptor ainda</p><p>não foi caracterizado. Tal como descrito para o vírus da febre amarela, diferentes moléculas candidatas</p><p>são possíveis, como cadeias de heparam sulfato em proteoglicanos de superfície, lectinas, moléculas de</p><p>adesão (em células dendríticas), receptores de manose (em macrófagos), receptores de lipopolissacarídeo</p><p>(CD14) e as proteínas do choque térmico (heat shock proteins) 70 e 90. Isso sugere que o vírus da dengue</p><p>possivelmente não emprega uma única estratégia receptor-específica para sua entrada na célula-alvo,</p><p>mas reconhece e se associa a diversas moléculas.</p><p>Esse tipo de ação explica, em parte, a grande quantidade de tipos celulares suscetíveis à infecção,</p><p>tanto nos hospedeiros vertebrados quanto nos mosquitos. De fato, é provável que o vírus tenha evoluído</p><p>para não possuir um único alvo específico. Anticorpos neutralizantes, que reconhecem e se ligam à</p><p>proteína E viral, bloqueiam eficientemente a adesão do vírus à superfície de células em cultura. No</p><p>organismo, contudo, a remoção de imunocomplexos via ativação de receptores Fcγ em macrófagos</p><p>aparenta ser uma rota importante para a internalização de partículas virais nestes fagócitos, evento de</p><p>suma importância que contribui para a explicação dos quadros severos em infecções secundárias com</p><p>outros sorotipos do vírus da dengue.</p><p>Lembrete</p><p>Para visão geral do ciclo replicativo de um flavivírus em uma célula</p><p>infectada, reveja a Figura 22. Uma vez mediada sua adesão à superfície</p><p>celular, a internalização da partícula viral se dá por endocitose.</p><p>Uma mudança conformacional da glicoproteína E ocorre em pH</p><p>acídico, o que facilita a fusão do envelope viral com a membrana do</p><p>endossomo, liberando assim o nucleocapsídeo para o citoplasma. Após</p><p>a desestruturação do capsídeo, o genoma viral é liberado, podendo ser</p><p>traduzido prontamente.</p><p>2.2.3 Aspectos epidemiológicos</p><p>A incidência da dengue cresceu dramaticamente em todo o mundo nas últimas décadas. A grande</p><p>maioria dos casos é assintomática ou leve e autogerida e, portanto, o número real de casos de dengue</p><p>é subnotificado. Muitos casos também são diagnosticados erroneamente como outras doenças febris.</p><p>67</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Uma estimativa por modelagem indica 390 milhões de infecções pelo vírus da dengue por ano</p><p>(com intervalo de confiança de 95% de 284 a 528 milhões), dos quais 96 milhões (67 a 136 milhões)</p><p>se manifestam clinicamente (com qualquer gravidade da doença). Outro estudo sobre a prevalência da</p><p>dengue estima que 3,9 bilhões de pessoas correm o risco de infecção pelo vírus da dengue. Apesar do</p><p>risco de infecção existente em 129 países, 70% da carga real está na Ásia.</p><p>O número de casos de dengue notificados à OMS aumentou mais de oito vezes nas últimas duas</p><p>décadas, de 505.430 casos em 2000, para mais de 2,4 milhões em 2010 e 4,2 milhões em 2019. Mortes</p><p>notificadas entre os anos de 2000 e 2015 aumentaram de 960 para 4.032. Os picos epidêmicos têm sido</p><p>cada vez maiores, em períodos que se repetem a cada 3-5 anos, quase de maneira regular.</p><p>No Brasil, a primeira epidemia documentada clínica e laboratorialmente ocorreu em 1981-1982,</p><p>em Boa Vista (RR), causada pelos sorotipos 1 e 4. Em 1986, ocorreram epidemias atingindo o Rio de</p><p>Janeiro e algumas capitais da região Nordeste. Desde então, a dengue vem ocorrendo no Brasil de forma</p><p>continuada, intercalando-se com a ocorrência de epidemias, geralmente associadas com a introdução</p><p>de novos sorotipos em áreas anteriormente indenes e/ou alteração do sorotipo predominante.</p><p>Na epidemia de 1986, identificou-se a ocorrência da circulação do sorotipo DENV-1, inicialmente no</p><p>estado do Rio de Janeiro, disseminando-se, a seguir, para outros seis estados até 1990. Nesse ano, foi</p><p>identificada a circulação de um novo sorotipo, o DENV-2, também no estado do Rio de Janeiro. Durante</p><p>a década de 1990, ocorreu um aumento significativo da incidência, reflexo da ampla</p><p>78</p><p>2.3.2 Agente etiológico ................................................................................................................................... 79</p><p>2.3.3 Aspectos epidemiológicos ................................................................................................................... 83</p><p>2.3.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas ................................................................. 86</p><p>2.3.5 Diagnóstico laboratorial ....................................................................................................................... 88</p><p>2.3.6 Tratamento ................................................................................................................................................ 89</p><p>2.3.7 Imunização ................................................................................................................................................ 90</p><p>2.4 Zika ............................................................................................................................................................. 91</p><p>2.4.1 Breve histórico ......................................................................................................................................... 91</p><p>2.4.2 Agente etiológico ................................................................................................................................... 92</p><p>2.4.3 Aspectos epidemiológicos ................................................................................................................... 96</p><p>2.4.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas ................................................................. 98</p><p>2.4.5 Diagnóstico laboratorial .....................................................................................................................101</p><p>2.4.6 Tratamento ..............................................................................................................................................103</p><p>2.4.7 Imunização ..............................................................................................................................................103</p><p>3 PROTOZOOSES TRANSMITIDAS POR VETOR – MALÁRIA ...............................................................104</p><p>3.1 Breve histórico .....................................................................................................................................104</p><p>3.2 Agente etiológico ...............................................................................................................................105</p><p>3.3 Morfologia e caracteres diferenciais dos parasitas da malária .......................................109</p><p>3.3.1 Plasmodium vivax .................................................................................................................................109</p><p>3.3.2 Plasmodium falciparum ......................................................................................................................111</p><p>3.3.3 Plasmodium malariae..........................................................................................................................112</p><p>3.3.4 Plasmodium ovale ................................................................................................................................114</p><p>3.4 Aspectos epidemiológicos...............................................................................................................115</p><p>3.5 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas .............................................................118</p><p>3.6 Diagnóstico laboratorial ..................................................................................................................120</p><p>3.7 Tratamento ............................................................................................................................................121</p><p>3.8 Imunização e proteção natural ....................................................................................................122</p><p>4 PROTOZOOSES TRANSMITIDAS POR VETOR – LEISHMANIOSE ...................................................123</p><p>4.1 Breve histórico .....................................................................................................................................123</p><p>4.2 Agente etiológico ...............................................................................................................................125</p><p>4.3 Aspectos epidemiológicos...............................................................................................................126</p><p>4.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas .............................................................129</p><p>4.4.1 Leishmaniose tegumentar ................................................................................................................ 129</p><p>4.4.2 Leishmaniose visceral ......................................................................................................................... 133</p><p>4.4.3 Diagnóstico laboratorial .................................................................................................................... 135</p><p>4.4.4 Tratamento ............................................................................................................................................. 136</p><p>4.4.5 Imunização ............................................................................................................................................. 138</p><p>Unidade II</p><p>5 DOENÇAS INFECTOCONTAGIOSAS – HEPATITE A..............................................................................144</p><p>5.1 Breve histórico .....................................................................................................................................144</p><p>5.2 Agente etiológico ...............................................................................................................................145</p><p>5.3 Aspectos epidemiológicos...............................................................................................................152</p><p>5.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas .............................................................154</p><p>5.5 Diagnóstico laboratorial ..................................................................................................................156</p><p>5.6 Tratamento ............................................................................................................................................157</p><p>5.7 Imunização ............................................................................................................................................158</p><p>6 DOENÇAS INFECTOCONTAGIOSAS – GONORREIA ...........................................................................158</p><p>6.1 Breve histórico .....................................................................................................................................158</p><p>6.2 Agente etiológico ...............................................................................................................................160</p><p>6.3 Aspectos epidemiológicos...............................................................................................................165</p><p>6.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas .............................................................166</p><p>6.5 Diagnóstico laboratorial ..................................................................................................................168</p><p>6.6 Tratamento ............................................................................................................................................170</p><p>6.7 Imunização ............................................................................................................................................171</p><p>7 DOENÇAS INFECTOCONTAGIOSAS – TUBERCULOSE .......................................................................172</p><p>7.1 Breve histórico .....................................................................................................................................172</p><p>dispersão do Aedes</p><p>aegypti no território nacional.</p><p>A presença do vetor, associada à mobilidade da população, levou à disseminação dos sorotipos</p><p>DENV-1 e DENV-2 para 20 dos 27 estados do país. Entre os anos de 1990 e 2000, várias epidemias</p><p>foram registradas, sobretudo nos grandes centros urbanos das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil,</p><p>responsáveis pela maior parte dos casos notificados. As regiões Centro-Oeste e Norte foram acometidas</p><p>mais tardiamente, com epidemias registradas a partir da segunda metade da década de 1990.</p><p>A circulação do sorotipo DENV-3 do vírus foi identificada, pela primeira vez, em dezembro de 2000,</p><p>também no estado do Rio de Janeiro e, posteriormente, no estado de Roraima, em novembro de 2001.</p><p>Em 2002, foi observada a maior incidência da doença, quando foram confirmados cerca de 697 mil</p><p>casos, refletindo a introdução do sorotipo DENV-3. Essa epidemia levou a uma rápida dispersão do</p><p>sorotipo DENV-3 para outros estados, sendo que, em 2004, 23 dos 27 estados do país já apresentavam</p><p>a circulação simultânea dos sorotipos DENV-1, DENV-2 e DENV-3 do vírus da dengue.</p><p>No Brasil, os adultos jovens foram os mais atingidos pela doença desde a introdução do vírus.</p><p>No entanto, a partir de 2006, alguns estados apresentaram a recirculação do sorotipo DENV-2 após</p><p>alguns anos de predomínio do sorotipo DENV-3. Esse cenário levou a um aumento no número de casos,</p><p>de formas graves e de hospitalizações em crianças, principalmente no Nordeste do país. Mesmo em</p><p>municípios com menor população, mais de 25% dos pacientes internados por dengue eram crianças, o</p><p>que ressalta que todo o país vem sofrendo, de maneira semelhante, essas alterações no perfil da doença.</p><p>68</p><p>Unidade I</p><p>Analisando-se a distribuição geográfica da incidência de casos prováveis acumulados de dengue no</p><p>período de 2003-2019, observa-se que os municípios das regiões Centro-Oeste e Sudeste concentram o</p><p>maior número de casos. No entanto, os casos de dengue estão distribuídos em todo o território nacional,</p><p>com menor incidência nos municípios da região Sul.</p><p>No ano de 2020, até a semana epidemiológica 53 foram notificados 987.173 casos prováveis de</p><p>dengue no país (taxa de incidência de 469,8 casos por 100 mil habitantes). Nesse período, a região</p><p>Centro-Oeste apresentou a maior incidência com 1.212,1 casos/100 mil habitantes, seguida das</p><p>regiões Sul (940,0 casos/100 mil habitantes), Sudeste (379,4 casos/100 mil habitantes), Nordeste</p><p>(263,8 casos/100 mil habitantes) e Norte (119,5 casos/100 mil habitantes). No período de janeiro a junho</p><p>(semanas epidemiológicas 1 a 26), ocorreram 89,8% dos casos prováveis de dengue (886.654), com taxa</p><p>de incidência de 421,9 casos/100 mil habitantes. Nesse cenário, destacam-se os estados do Paraná, Mato</p><p>Grosso do Sul, Distrito Federal, Mato Grosso, Espírito Santo e Goiás (lado esquerdo da figura a seguir).</p><p>De julho a dezembro (semanas epidemiológicas 27 a 53), foram notificados 10,2% dos casos prováveis</p><p>no país (100.519 casos prováveis), correspondendo a uma taxa de incidência de 47,8 casos/100 mil</p><p>habitantes. As unidades da federação que apresentaram a taxa de incidência acima de 100 casos/100 mil</p><p>habitantes foram o Distrito Federal e Goiás (lado direito da figura).</p><p>Sem dados</p><p>0,01 - 50,00</p><p>50,01 - 100,00</p><p>100,01 - 300,00</p><p>300,01 - 500,00</p><p>500,01 - 22.770,98</p><p>Tx. incidência dengue SE 1 a 26</p><p>Sem dados</p><p>0,01 - 50,00</p><p>50,01 - 100,00</p><p>100,01 - 300,00</p><p>300,01 - 500,00</p><p>500,01 - 3.711,48</p><p>Tx. incidência dengue SE 27 a 53</p><p>Figura 36 – Distribuição da taxa de incidência de dengue no Brasil em 2020. Lado esquerdo: período</p><p>de janeiro a junho (semanas epidemiológicas 1 a 26). Lado direito: período de julho a dezembro</p><p>(semanas epidemiológicas 27 a 53)</p><p>Fonte: Brasil (2021, p. 3).</p><p>O homem pode adquirir o vírus da dengue por via vetorial, vertical ou transfusional. A principal forma é</p><p>a vetorial, que ocorre pela picada de fêmeas de Aedes aegypti infectadas, no ciclo humano-vetor-humano.</p><p>Na natureza, esses vírus são mantidos entre mosquitos, principalmente por intermédio da transmissão</p><p>transovariana. Existem registros de transmissão vertical em seres humanos (gestante-feto), contudo os</p><p>relatos dessa via de transmissão são raros. A relevância da via transfusional ainda necessita ser avaliada.</p><p>69</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Na Ásia, a principal espécie envolvida é o Aedes albopictus, conhecido como tigre asiático. A</p><p>introdução do Aedes albopictus em território europeu, associado a mudanças climáticas, favoreceu a</p><p>sua expansão entre diversos países do Velho Mundo, já tendo sido reportada transmissão autóctone</p><p>do vírus da dengue por lá. Embora esteja presente nas Américas, até o momento, não foi associado à</p><p>transmissão de dengue nessa região. Apesar disso, a espécie não pode ser desconsiderada pelos programas</p><p>de controle, por demonstrada competência vetorial e por poder ser encontrado no peridomicílio e em</p><p>ambientes naturais ou modificados.</p><p>2.2.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas</p><p>Após a ingestão de sangue contaminado com vírus da dengue, um período de incubação</p><p>extrínseco de aproximadamente 10 dias inicia-se nas fêmeas dos mosquitos Aedes. Esse prazo sofre</p><p>influência da temperatura externa elevada, podendo ser encurtado. Ao final dessa etapa, partículas</p><p>virais são encontradas nas glândulas salivares dos mosquitos, sendo inoculadas no corpo humano</p><p>junto ao repasto.</p><p>Na pele, partículas virais podem infectar diferentes sentinelas do sistema imune, como células</p><p>dendríticas, células de Langerhans, macrófagos e mastócitos. Algumas dessas, como macrófagos e células</p><p>dendríticas, desencadeiam respostas inatas antivirais importantes. A migração de células dendríticas</p><p>para linfonodos próximos caracteriza o evento de iniciação da resposta imune adaptativa ao vírus da</p><p>dengue, onde ocorre a apresentação de antígenos a células T. No entanto, células dendríticas infectadas</p><p>que migram até linfonodos podem agir como verdadeiros “cavalos de Troia”, favorecendo a disseminação</p><p>do vírus a outras células igualmente suscetíveis.</p><p>Nos linfonodos ocorre multiplicação silenciosa do vírus, em um período de incubação intrínseco</p><p>que pode variar de quatro a sete dias (podendo se estender a 10, em certos casos). Com a liberação das</p><p>partículas virais, há viremia e início da febre, aproximadamente 24 horas depois. O espectro clínico da</p><p>dengue é amplo, variando desde infecções assintomáticas até quadros hemorrágicos graves e fatais.</p><p>Clinicamente, a dengue é definida como uma doença febril aguda, sistêmica e dinâmica, embora</p><p>infecções assintomáticas também ocorram e constituam a maioria dos casos.</p><p>Após a picada do mosquito e o período de incubação, sintomas semelhantes à síndrome gripal</p><p>aparecem, tais como febre, náusea, dores musculares e nas articulações, cefaleia e dor retro-orbital.</p><p>Casos de febre dengue sem grandes complicações normalmente são autolimitados. Em alguns casos, a</p><p>febre progride, manifestam-se rashs cutâneos e sangramento de mucosas, com petéquias e equimoses</p><p>evidentes. Embora o vírus da dengue infecte células endoteliais em cultura, avaliações de tecidos</p><p>post-mortem não identificaram sua presença nessas células, tampouco em lesões na pele em sítios</p><p>distais do ponto de infecção. Isso sugere que as complicações vasculares do quadro hemorrágico são,</p><p>primariamente, consequências da própria resposta imunológica.</p><p>70</p><p>Unidade I</p><p>Observação</p><p>Na fase aguda, a febre (geralmente, acima de 38 ºC) é de início abrupto</p><p>e com duração de dois a sete dias, associada a cefaleia, astenia, mialgia,</p><p>artralgia e dor retro-orbitária. Anorexia, náuseas, vômitos e diarreia também</p><p>podem se fazer presentes.</p><p>A)</p><p>294 milhões</p><p>96 milhões FDH e/ou SCD</p><p>Febre dengue</p><p>Casos assintomáticos</p><p>e/ou não reportados</p><p>B)</p><p>-5-14 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10</p><p>Picada do mosquito</p><p>Permeabilidade</p><p>vascular</p><p>Período de incubação</p><p>Ativação da imunidade adaptativa</p><p>Risco de choque e/ou</p><p>hemorragia</p><p>Febre</p><p>Viremia</p><p>Dias</p><p>Célula T</p><p>IgM</p><p>IgG</p><p>Figura 37 – Perfil de distribuição dos casos e evolução</p><p>temporal da resposta imune contra o vírus da</p><p>dengue. FDH: febre dengue hemorrágica; SCD: síndrome do choque associado à dengue</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3CTIB3K. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>Na figura anterior, vemos, em (A), que o número de casos assintomáticos representa a maioria das</p><p>infecções pelo vírus da dengue todos os anos. As infecções clinicamente aparentes estão presentes em</p><p>aproximadamente 25% dos casos e podem variar desde formas oligossintomáticas a formas graves,</p><p>podendo levar o indivíduo a óbito.</p><p>https://bit.ly/3CTIB3K</p><p>71</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Em (B), nota-se que a infecção se inicia com a inoculação do vírus, junto à saliva do mosquito. Após</p><p>um período de quatro a sete dias, o quadro febril pode se manifestar. O pico da viremia correlaciona-se</p><p>com a febre alta e pode coincidir com o início da produção de IgM e IgG, que promovem a neutralização</p><p>do vírus. Quando a viremia decai, alguns pacientes sofrem com quadros hemorrágicos e/ou choque,</p><p>possivelmente como consequência de resposta imuno-mediada.</p><p>Uma redução drástica da quantidade de plaquetas (trombocitopenia ou plaquetopenia) ocorre na</p><p>fase aguda do quadro febril. A maioria dos pacientes se recupera após a defervescência; contudo, é</p><p>justamente nesse momento que uma minoria apresenta complicações severas, potencialmente fatais.</p><p>O quadro clínico grave, conhecido como febre dengue hemorrágica (FDH) e síndrome do choque</p><p>associado à dengue (SCD), caracterizada por intenso extravasamento de plasma e, ocasionalmente,</p><p>franca hemorragia, falência múltipla dos órgãos e/ou choque. Entre os principais sinais de alarme, assim</p><p>chamados por sinalizarem o extravasamento de plasma e/ou hemorragias que podem levar o paciente a</p><p>choque grave e óbito, destacam-se:</p><p>• dor abdominal intensa (referida ou à palpação) e contínua;</p><p>• vômitos persistentes;</p><p>• acúmulo de líquidos (ascite, derrame pleural, derrame pericárdico);</p><p>• hipotensão postural e/ou lipotimia;</p><p>• letargia e/ou irritabilidade;</p><p>• hepatomegalia maior do que 2 cm abaixo do rebordo costal;</p><p>• sangramento de mucosa;</p><p>• aumento progressivo do hematócrito.</p><p>Observação</p><p>A fase crítica tem início com o declínio da febre, entre o 3º e o 7º dia</p><p>do início da doença. Os sinais de alarme, quando presentes, ocorrem</p><p>nessa fase.</p><p>72</p><p>Unidade I</p><p>Dias de doença 1 2</p><p>40º</p><p>Desidratação</p><p>Hematócrito</p><p>Viremia</p><p>IgM</p><p>IgM</p><p>IgG</p><p>IgG</p><p>Plaquetas</p><p>Comprometimento de órgãos</p><p>Reabsorção</p><p>sobrecarga</p><p>de fluidos</p><p>3 4 5 6 7 8 9 10 20 40 60 80</p><p>Temperatura</p><p>Potenciais problemas</p><p>clínicos</p><p>Mudanças</p><p>laboratoriais</p><p>Virologia</p><p>Sorologia</p><p>Infecção primária</p><p>Infecção secundária</p><p>Evolução da dengue Fase de recuperaçãoFebril Crítica</p><p>Choque</p><p>sangramento</p><p>Figura 38 – Evolução clínica e laboratorial da dengue</p><p>Fonte: Brasil (2016, p. 31).</p><p>Fatores de risco individuais podem determinar a gravidade da doença, a exemplo da idade, da etnia</p><p>e de doenças associadas, como asma brônquica, diabetes mellitus, anemia falciforme, hipertensão, além</p><p>de infecções prévias por outros sorotipos. Crianças mais novas podem ser menos competentes que os</p><p>adultos para compensar o extravasamento capilar e, consequentemente, possuem maior risco de evoluir</p><p>para o choque.</p><p>Uma fase de recuperação ocorre quando uma reabsorção gradual do fluido que havia extravasado</p><p>para o compartimento extravascular se dá nas 48-72 horas seguintes à fase crítica.</p><p>A exposição prévia a um determinado sorotipo heterólogo (outro sorotipo do vírus da dengue)</p><p>altera o curso da infecção, de tal forma que a viremia atinge níveis mais elevados, e há risco</p><p>potencial de desenvolver FDH e/ou SCD. Esse risco aumentado diante de uma infecção secundária</p><p>heteróloga é, possivelmente, resultado da resposta imune desencadeada por reatividade cruzada a</p><p>anticorpos preexistentes.</p><p>73</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Teoriza-se que a ligação desses anticorpos ao novo sorotipo, além de não neutralizar o patógeno,</p><p>favorece a infecção de fagócitos, pois imunocomplexos são reconhecidos por essas células via ligação</p><p>a receptores Fcγ. Com internalização facilitada, os vírus evadem o vacúolo endocítico e replicam-se no</p><p>citoplasma. Assim, a quantidade de partículas virais aumenta rapidamente, explicando o porquê do</p><p>pico da viremia decorrer mais precocemente em comparação à infecção primária. Em consequência,</p><p>há intensificação da resposta imune, com liberação exacerbada de citocinas, promovendo aumento da</p><p>permeabilidade vascular e coagulopatia.</p><p>Mastócitos também estão envolvidos na patogênese da febre hemorrágica. Quando a degranulação de</p><p>mastócitos ocorre, proteases e mediadores pró-inflamatórios – como leucotrienos, fator de crescimento</p><p>endotelial vascular (VEGF) e histamina – são liberados, aumentando a permeabilidade capilar e</p><p>favorecendo o extravasamento de plasma.</p><p>A formação de imunocomplexos também ativa a via clássica do complemento. A sinalização</p><p>mediada pelos fragmentos C3a e C5a promove aumento da permeabilidade vascular. Embora a</p><p>ativação de linfócitos NK seja importante para a destruição de células infectadas, a presença de</p><p>anticorpos heterólogos pode intensificar a citotoxicidade mediada por células dependente de anticorpos,</p><p>favorecendo dano tissular.</p><p>-5-14 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10</p><p>Picada do mosquito Permeabilidade</p><p>vascular</p><p>Período de incubação</p><p>Ativação da memória imunológica</p><p>Risco de choque e/ou</p><p>hemorragia</p><p>Febre</p><p>Viremia</p><p>Células T</p><p>Dias</p><p>IgM</p><p>IgG</p><p>Figura 39 – Evolução temporal da resposta imune contra o vírus da dengue diante de infecção</p><p>secundária heteróloga. Durante uma infecção secundária por DENV heterólogo, o período da viremia</p><p>é mais curto, provavelmente em função de reatividade cruzada devido a anticorpos preexistentes.</p><p>Células T de memória também apresentam reatividade cruzada, desencadeando uma resposta</p><p>mais precoce e potencialmente mais intensa, quando comparada à infecção primária. Em função</p><p>da memória imunológica e da resposta exacerbada na infecção secundária heteróloga, o risco de</p><p>um quadro clínico grave é maior nesses pacientes. O aumento da permeabilidade vascular, uma</p><p>característica marcante da dengue, em geral se torna evidente após a defervescência. Setas indicam o</p><p>deslocamento da curva da viremia em comparação ao decurso da infecção primária</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3CTIB3K. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>https://bit.ly/3CTIB3K</p><p>74</p><p>Unidade I</p><p>Infecção secundária homólogaInfecção primária</p><p>Infecção secundária</p><p>heteróloga</p><p>Infecção</p><p>limitada</p><p>Grânulos</p><p>intracelulares</p><p>Células FcR+</p><p>infectadas</p><p>Grânulos</p><p>extracelulares APC infectada</p><p>Células NK</p><p>Sorotipo 2</p><p>Sorotipo 1</p><p>Sorotipo 1</p><p>Célula dendrítica</p><p>Célula T</p><p>CD4+</p><p>Célula T</p><p>CD8+</p><p>TCR</p><p>TCR</p><p>MHC IIMHC I</p><p>FcR</p><p>Anticorpos</p><p>neutralizantes</p><p>Anticorpos promovem</p><p>a opsonização do</p><p>vírus</p><p>Destruição de células</p><p>infectadas por DENV,</p><p>via reconhecimento</p><p>de anticorpos</p><p>ligados a antígenos</p><p>virais por células NK</p><p>Degranulação</p><p>favorecida via</p><p>reconhecimento de</p><p>imunocomplexos</p><p>Replicação viral</p><p>é potencializada</p><p>Degranulação,</p><p>citocinas, proteases</p><p>etc.</p><p>Célula B específica</p><p>para o sorotipo 1</p><p>Seleção de células T</p><p>e B específicas para o</p><p>sorotipo 1 Anticorpos</p><p>preexistentes</p><p>Liberação de grânulos</p><p>citotóxicos, citocinas etc.</p><p>Citocinas são</p><p>produzidas pelas</p><p>células infectadas</p><p>Infecção intensificada dependente de anticorpos Ativação de mastócitos intensificada por anticorpos,</p><p>levando a aumento da permeabilidade vascular</p><p>Citotoxidade mediada por células</p><p>dependente de anticorpos</p><p>Figura 40 – Efeitos mediados por anticorpos em infecções decorrentes do vírus da dengue. Anticorpos produzidos</p><p>em infecção prévia a determinado sorotipo do vírus da dengue são capazes de interagir com vários tipos de células.</p><p>Diferentes teorias são propostas para como essas moléculas contribuem para um quadro clínico mais grave, em</p><p>segunda infecção heteróloga de DENV. APC: célula apresentadora de antígeno; TCR: receptor da célula T</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3iO0Gbn. Acesso em: 11 ago 2021.</p><p>2.2.5 Diagnóstico laboratorial</p><p>O hematócrito, a contagem de</p><p>plaquetas e a dosagem de albumina auxiliam na avaliação e no</p><p>monitoramento dos pacientes com suspeita ou diagnóstico confirmado de dengue, especialmente os</p><p>que apresentarem sinais de alarme ou gravidade. Entretanto, esses exames não são específicos e a</p><p>confirmação laboratorial da infecção por dengue é crucial, pois o amplo espectro de apresentações</p><p>clínicas, variando de doença febril leve a várias síndromes graves, pode dificultar o diagnóstico preciso.</p><p>Entre os métodos disponíveis para o diagnóstico da dengue, o isolamento do vírus fornece o</p><p>resultado do teste mais específico. No entanto, instalações que podem oferecer suporte à cultura viral</p><p>nem sempre estão disponíveis. A detecção do genoma viral ou dos antígenos virais também fornece</p><p>evidências de infecção. Em uma primeira exposição ao vírus da dengue, é fundamental que a amostra</p><p>seja obtida até o 5º dia do início dos sintomas, pois ocorre queda progressiva da viremia ao longo dos</p><p>dias (rever Figura 37).</p><p>https://bit.ly/3iO0Gbn</p><p>75</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>A linhagem celular C6/36 de Aedes albopictus é o método de escolha para o isolamento de DENV,</p><p>embora outras linhagens celulares também possam ser usadas (como Vero, LLC-MK2 e BHK21). O soro</p><p>coletado de casos suspeitos de dengue nos primeiros 3-5 dias da febre (fase virêmica) pode ser usado para</p><p>o isolamento do vírus. Após um período de incubação, que permite a replicação do vírus, a identificação</p><p>viral é realizada usando anticorpos monoclonais específicos para dengue em imunofluorescência ou</p><p>ensaios de PCR (como RT-PCR ou qPCR). O soro é frequentemente usado para isolamento do vírus, mas</p><p>plasma, leucócitos, sangue total e tecidos obtidos na autópsia também podem ser usados.</p><p>Para amostras coletadas após o 5º dia do início dos sintomas, a presença de anticorpos – sobretudo</p><p>da classe IgM – é o padrão para a confirmação sorológica de uma infecção por dengue. A presença</p><p>de IgM anti-dengue no soro coletado de um caso suspeito sugere uma provável infecção por dengue.</p><p>Embora alguns pacientes apresentem níveis detectáveis de IgM já nos primeiros dias da doença, mais</p><p>de 90% encontram-se positivos no 7º dia após o aparecimento dos primeiros sintomas. Os níveis de IgM</p><p>aumentam rapidamente e atingem seu pico por volta de duas semanas, permanecendo detectáveis por</p><p>dois a três meses, o que faz desses anticorpos indicadores de infecções primárias.</p><p>Testes imunoenzimáticos (ELISA) são muito utilizados para o diagnóstico da dengue, devido à</p><p>praticidade, especificidade e sensibilidade, e permitem a detecção tanto de anticorpos da classe IgM e IgG</p><p>quanto de antígenos NS1 específicos do vírus da dengue (presentes no soro de indivíduos infectados até</p><p>o 5º dia do aparecimento dos sintomas). Os níveis de IgM na resposta secundária são consideravelmente</p><p>mais baixos do que na resposta primária. A relação entre os títulos de IgM e IgG e a especificidade dos</p><p>anticorpos pode ser, portanto, usada na caracterização de respostas primárias e secundárias.</p><p>Dada a possibilidade de reação cruzada entre dengue e outros flavivírus (como Zika) por meio da</p><p>sorologia IgM, sugere-se testar as amostras em paralelo para as doenças que co-circulem em uma dada</p><p>região. Por exemplo, um resultado positivo para IgM contra a dengue na ausência de IgM contra Zika é</p><p>presuntivo de infecção pelo vírus da dengue. Entretanto, um resultado positivo para ambas as doenças</p><p>poderia ocorrer, sendo inconclusiva a confirmação do agente etiológico. Embora o paciente possa estar</p><p>infectado pelos dois vírus simultaneamente, isso é improvável e raramente reportado na literatura. Um</p><p>evento de reação cruzada pela existência de anticorpos IgM menos específicos seria mais plausível. Por</p><p>essa razão, os resultados também devem ser analisados considerando-se as características clínicas e</p><p>epidemiológicas do caso.</p><p>A existência de testes rápidos imunocromatográficos facilita a triagem em áreas endêmicas mais</p><p>remotas e de baixa assistência em saúde, contudo o desafio da reatividade cruzada a outros flavivírus</p><p>deve ser igualmente considerado. Além disso, esses testes apresentam baixa sensibilidade, portanto um</p><p>resultado negativo pode ser falso. Assim, seu emprego deve se dar com prudência, e não em substituição</p><p>a abordagens mais sensíveis e precisas.</p><p>O ensaio de inibição da hemaglutinação era utilizado para classificar a resposta imune das</p><p>infecções por dengue, em infecções primárias ou secundárias. No entanto, a técnica tem limitações, e</p><p>ainda na década de 1980, foi substituída pela pesquisa de anticorpos IgG (ELISA). Ao contrário do ELISA</p><p>de captura de IgM, capaz de detectar anticorpos já partir do 5º dia da doença, os anticorpos detectados</p><p>pela fixação do complemento aparecem mais tardiamente, entre o 7º e 14º dias após o início dos</p><p>76</p><p>Unidade I</p><p>sintomas e persistem por períodos curtos, não sendo indicados como marcadores de infecção recente.</p><p>Por ter uma baixa sensibilidade, essa técnica também foi substituída por outras metodologias.</p><p>Muitos ensaios de RT-PCR para dengue têm como alvo diferentes genes e usam procedimentos</p><p>de amplificação distintos. Os testes de amplificação de ácidos nucleicos mais comumente usados</p><p>baseiam-se em ensaios de RT-PCR, Nested-RT-PCR ou RT-PCR multiplex.</p><p>Observação</p><p>RT-PCR: uma etapa inicial de transcrição reversa gera um DNA</p><p>complementar (cDNA) ao RNA viral; em seguida, uma reação em cadeia</p><p>da polimerase é conduzida empregando-se um par de iniciadores (primers)</p><p>específicos para o vírus da dengue.</p><p>A reação de Nested-RT-PCR envolve uma etapa inicial de transcrição reversa, seguida de amplificação</p><p>com iniciadores (primers) que possuem como alvo uma região conservada do genoma do vírus. Uma</p><p>segunda etapa de amplificação é então conduzida, específica para o sorotipo. Os produtos dessas reações</p><p>são separados por eletroforese em gel de agarose, o que permite a diferenciação dos sorotipos virais com</p><p>base no tamanho dos fragmentos obtidos.</p><p>Na abordagem RT-PCR multiplex, diferentemente do Nested-RT-PCR, os primers específicos para</p><p>cada sorotipo do vírus são empregados todos na mesma reação. Adaptações desses métodos podem ser</p><p>conduzidas em equipamentos de PCR em tempo real, com emprego de sondas fluorescentes na reação.</p><p>2.2.6 Tratamento</p><p>Não existe tratamento antiviral específico para a dengue. Embora a doença possa apresentar</p><p>manifestações clínicas complexas, o tratamento baseia-se principalmente na reposição volêmica</p><p>adequada, levando-se em consideração o estadiamento da doença. O reconhecimento precoce de sinais</p><p>de alarme é crítico para prover a assistência necessária, evitando-se a evolução a um quadro mais</p><p>grave ou óbito.</p><p>Em função da plaquetopenia característica e do risco de sangramento, devem ser evitados</p><p>medicamentos que contenham em sua fórmula ácido acetilsalicílico ou ibuprofeno. O tratamento</p><p>sintomático deve ser feito com dipirona ou paracetamol. O prurido intenso, desencadeado pelo exantema</p><p>em pacientes com maior sensibilidade, pode ser aliviado por soluções caseiras à base de amido (“papa</p><p>de maisena”, uso tópico), pasta d’água ou, em último caso, por anti-histamínicos (preferencialmente,</p><p>loratadina, cetirizina ou fexofenadina). Na criança, recomenda-se apenas o banho frio para alívio do</p><p>prurido. O choque com disfunção miocárdica pode necessitar de inotrópicos (dopamina, dobutamina</p><p>ou milrinona).</p><p>77</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>A transfusão de concentrado de plaquetas deve ser realizada somente em caso de sangramento</p><p>que comprometa a hemodinâmica, devendo-se utilizar uma unidade de concentrado de plaquetas para</p><p>cada 10 kg, a cada 8 ou 12 horas. Conduta conservadora deve ser aplicada em sangramentos leves de</p><p>mucosa ou de pele, como uso de compressas frias, medicamentos protetores da mucosa gástrica e</p><p>repouso. Os pacientes com contagem de plaquetas abaixo de 50.000 células/mm3 não deverão fazer uso</p><p>de quaisquer medicações de administração intramuscular.</p><p>Pacientes cardiopatas em uso profilático de derivados do ácido acetilsalicílico ou outros</p><p>anti-agregantes plaquetários devem ser orientados a suspender suas medicações apenas se</p><p>apresentarem plaquetopenia acentuada (< 50.000 células/mm3) ou fenômenos hemorrágicos</p><p>de grande magnitude. A reintrodução desses medicamentos poderá ser efetuada quando da</p><p>normalização das plaquetas.</p><p>2.2.7 Imunização</p><p>Uma vez que haja infecção, a imunidade adquirida é permanente para um mesmo sorotipo (homóloga).</p><p>A imunidade cruzada (heteróloga) persiste temporariamente no indivíduo, ou seja, quando induzida</p><p>por um sorotipo, é apenas parcialmente protetora contra outros sorotipos e tende a desaparecer.</p><p>Lembrete</p><p>A existência de anticorpos contra um determinado sorotipo do vírus</p><p>da dengue altera o curso da uma infecção secundária por outro sorotipo do</p><p>vírus, de tal forma que a viremia atinge níveis mais elevados e há risco</p><p>potencial de desenvolver FDH e/ou SCD. Reveja o tópico 2.2.4.</p><p>Em consequência a estratégias de controle do vetor falhas, a disseminação contínua e crescente da</p><p>dengue renovou o interesse no desenvolvimento de vacinas contra a doença. Uma vacina tetravalente</p><p>segura, eficaz e acessível para a dengue é prioridade em saúde pública global. Há muitas décadas, várias</p><p>estão em desenvolvimento. No entanto, a complexa patologia da doença, a necessidade de controlar</p><p>quatro sorotipos de vírus simultaneamente e a limitação de investimentos têm impedido o progresso da</p><p>maioria delas em velocidade desejável.</p><p>Algumas vacinas contra DENV são baseadas em vírus quiméricos, que geralmente consistem em uma</p><p>estrutura viral que contém proteínas não estruturais de um vírus e proteínas estruturais de outro. Um</p><p>exemplo é a Dengvaxia (Sanofi Pasteur), uma vacina tetravalente que consiste em todas as proteínas</p><p>não estruturais – além da proteína do capsídeo – da cepa vacinal de febre amarela (vírus 17D atenuado),</p><p>associadas a duas proteínas estruturais – E e prM – de cada um dos quatro sorotipos de DENV. Essa</p><p>construção se deu para que as taxas de replicação de cada sorotipo fossem semelhantes, utilizando a</p><p>mesma polimerase do vírus vacinal da febre amarela.</p><p>No entanto, isso demanda que a resposta imune contra epítopos das proteínas não estruturais (do</p><p>vírus 17D vacinal da febre amarela) também seja reativa contra os sorotipos de DENV. Especificamente,</p><p>78</p><p>Unidade I</p><p>células T CD4+ e T CD8+ com reatividade a alguns epítopos do vírus da febre amarela 17D podem ser</p><p>necessárias para combate a células infectadas por DENV. O uso da Dengvaxia é aprovado em muitos</p><p>países, incluindo o Brasil, e é indicada para indivíduos de 9 anos ou mais que vivem em áreas</p><p>endêmicas para dengue.</p><p>Nessa população, a vacina tem demonstrado prevenção de 93% de casos severos e redução 80%</p><p>de hospitalizações causadas pela doença durante os 25 meses de estudos clínicos de larga escala</p><p>conduzidos em 10 países da América Latina e Ásia, onde a dengue é muito difundida. Em 2018, as</p><p>informações de prescrição foram atualizadas, alertando-se que indivíduos não infectados pela dengue</p><p>previamente possuíam risco aumentado de hospitalização se vacinados. Assim, o emprego dessa vacina</p><p>é recomendado apenas àqueles que já foram expostos a um sorotipo de DENV alguma vez na vida,</p><p>protegendo-os contra futuras infecções por sorotipos heterólogos do mesmo vírus.</p><p>Observação</p><p>Em indivíduos com infecção prévia por dengue, a vacina demonstrou</p><p>eficácia de cerca de 80% na redução de hospitalizações e na redução de</p><p>casos graves ao longo de seis anos de acompanhamento.</p><p>Outra vacina tetravalente quimérica que está atualmente em teste clínico, TAK-003 (Takeda</p><p>Pharmaceutical Company), é composta de uma estrutura derivada de DENV-2 e, portanto, não requer</p><p>respostas de reatividade cruzada para induzir imunidade protetora aos quatro sorotipos de DENV. Diversos</p><p>testes clínicos de fase 1 e 2 mostraram que duas doses de TAK-003 são imunogênicas contra todos os</p><p>quatro sorotipos da dengue em adultos e crianças, independentemente da exposição anterior à dengue.</p><p>Um estudo de fase 3 recente (2020) mostrou que a TAK-003 tem um perfil de segurança aceitável em</p><p>crianças de 4 a 16 anos, sendo eficaz na prevenção da doença sintomática tanto em indivíduos nunca</p><p>expostos ao vírus quanto naqueles previamente expostos. A eficácia variou em relação aos sorotipos</p><p>individuais, com eficácia geral de 66% em indivíduos que não tinham dengue e 76% naqueles que já</p><p>haviam sido expostos anteriormente.</p><p>Além disso, a TAK-003 reduziu o número de indivíduos hospitalizados por dengue em 90%. Esses</p><p>dados representam um grande passo no desenvolvimento de uma vacina eficaz e segura contra a dengue</p><p>para uso em pessoas de todas as idades, independentemente da exposição anterior a esta doença no</p><p>momento da vacinação.</p><p>2.3 Chikungunya</p><p>2.3.1 Breve histórico</p><p>A febre chikungunya, uma doença arboviral causada pelo vírus chikungunya (CHIKV) e transmitida</p><p>por mosquitos, foi reconhecida pela primeira vez de forma epidêmica na África Oriental em 1952–</p><p>1953. A doença foi descrita por Robinson e Lumsden, em 1955, na sequência de um surto no Planalto</p><p>79</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Makonde, ao longo da fronteira entre Tanzânia e Moçambique. Entre os anos 1960 e 1980, o vírus</p><p>foi repetidamente isolado em vários países do sul da África, bem como no Senegal, Nigéria, na África</p><p>Ocidental e na Ásia.</p><p>“Chikungunya” é uma palavra em swahili (um dos idiomas da Tanzânia) que significa “aqueles que</p><p>se dobram”, e se refere à postura contorcida de pacientes infectados que sofrem de fortes dores nas</p><p>articulações. Durante os últimos 50 anos, numerosas reemergências de CHIKV foram documentadas</p><p>na África e na Ásia, com intervalos irregulares de 2 a 20 anos entre os surtos. A ausência de vigilância</p><p>sorológica significa que o número de indivíduos infectados durante esses surtos só pode ser estimado.</p><p>Em 2004, o CHIKV surgiu no Quênia e se espalhou para Camarões, onde 5 mil casos foram relatados.</p><p>Em 2005–2006, o surto se espalhou para outras ilhas do Oceano Índico, incluindo La Réunion; esta foi</p><p>a primeira vez que o CHIKV infectou um país ocidental. La Réunion, que faz parte da França, é uma ilha</p><p>no Oceano Índico com uma população de aproximadamente 785 mil; surpreendentemente, cerca de</p><p>300 mil casos de infecções por CHIKV e 237 mortes resultantes foram relatados. A análise genética viral</p><p>apoiou a ligação entre as infecções em La Réunion e o surto no Quênia em 2004.</p><p>A epidemia também se espalhou para a Índia, onde se estima que mais de 1,5 milhão de pessoas</p><p>foram infectadas, e foi posteriormente identificada na Europa e nos Estados Unidos, acredita-se que</p><p>tenha sido importada por viajantes infectados que retornavam de áreas com altas taxas de incidência.</p><p>Entre julho e setembro de 2007, o vírus causou o primeiro surto epidêmico autóctone no nordeste da</p><p>Itália, com mais de 200 infecções humanas, todas relacionadas ao mesmo caso inicial.</p><p>Nas Américas, em outubro de 2013, teve início uma grande epidemia de chikungunya em diversas</p><p>ilhas do Caribe. No Brasil, a transmissão autóctone foi confirmada no segundo semestre de 2014,</p><p>primeiramente nos estados do Amapá e da Bahia. Atualmente, todos os estados do País registraram</p><p>ocorrência de casos autóctones. Em função da alta densidade do vetor, da presença de indivíduos</p><p>suscetíveis e da intensa circulação de pessoas em áreas endêmicas há a possibilidade de epidemias em</p><p>todas as regiões do Brasil.</p><p>A febre chikungunya costumava ser vista como uma doença reumática relativamente benigna e</p><p>autolimitada. No entanto, um espectro consideravelmente mais complexo de manifestações atípicas e</p><p>graves, menos comuns, é agora reconhecido em subgrupos de pacientes, sendo a doença frequentemente</p><p>complicada por comorbidades e coinfecções.</p><p>2.3.2 Agente etiológico</p><p>O CHIKV é um membro da família Togaviridae, gênero Alphavirus, que compreende vírus de RNA</p><p>de fita simples polaridade positiva, envelopados. Os alfavírus têm um genoma com aproximadamente</p><p>11,5 kb de comprimento que codifica quatro proteínas não estruturais (nsP1, nsP2, nsP3 e</p><p>nsP4) e cinco</p><p>proteínas estruturais: do capsídeo (C) e do envelope (E1, E2, E3 e 6K). E2 se liga a elementos de superfície</p><p>celular (como cadeias de glicosaminoglicanos em proteoglicanos, e outras estruturas mais, ainda não</p><p>80</p><p>Unidade I</p><p>completamente elucidadas) para iniciar a entrada na célula por meio de endocitose. A molécula E1</p><p>contém um peptídeo de fusão, que quando exposto a pH baixo, no interior do endossomo, inicia a</p><p>liberação do nucleocapsídeo para o citoplasma da célula infectada.</p><p>O gênero Alphavirus contém aproximadamente 30 membros, que provavelmente divergiram há</p><p>alguns milhares de anos. Alguns desses não são patogênicos para seres humanos, enquanto outros são</p><p>altamente infecciosos, com doenças clínicas associadas variando de quadros leves a graves. Os alfavírus</p><p>podem ser divididos em vírus do Novo Mundo e do Velho Mundo.</p><p>Esses dois grupos desenvolveram formas distintas de interagir com seus respectivos hospedeiros e</p><p>diferem em sua patogenicidade, tecido e tropismo celular, citotoxicidade e interferência com respostas</p><p>imunes induzidas por vírus. Deve-se notar que a maioria das infecções alfavirais em seres humanos e</p><p>em animais domesticados é considerada um “beco sem saída” – isto é, o vírus não pode ser transmitido</p><p>a um novo hospedeiro.</p><p>A) Estrutura do genoma</p><p>B) Estrutura do vírion C) Glicoproteínas</p><p>do envelope</p><p>em formato</p><p>de espícula</p><p>Síntese da fita de</p><p>RNA polaridade</p><p>negativa</p><p>Atividade de</p><p>helicase e</p><p>protease</p><p>Síntese</p><p>de RNA</p><p>RNA polimerase</p><p>dependente de</p><p>RNA</p><p>Glicoproteínas</p><p>do envelope</p><p>Poli(A)3’5’ cap</p><p>Glicoproteínas</p><p>E1 e E2</p><p>Capsídeo</p><p>Capsídeo</p><p>RNA</p><p>E1</p><p>E2E3</p><p>Bicamada</p><p>lipídica</p><p>RNA</p><p>Figura 41 – Estrutura física e do genoma do vírus chikungunya. (A) Estrutura do genoma do CHIKV,</p><p>com destaque para os genes que codificam para as proteínas não estruturais (ns1-4, laranja) e</p><p>estruturais (C, E1-3 e 6K, azul). (B) Estrutura da partícula viral (vírion). (C) Glicoproteínas do envelope</p><p>formam espículas, conforme é possível evidenciar nesta imagem de microscopia de força atômica</p><p>com esquematização computacional à direita</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3yVmtnh. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>https://bit.ly/3yVmtnh</p><p>81</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Vesícula</p><p>revestida por</p><p>clatrina</p><p>Endossomo inicial</p><p>(pH < 6,2)</p><p>Endossomo tardio</p><p>(pH < 5,3)</p><p>Capsídeo</p><p>externalizado para</p><p>o citoplasma</p><p>Dissociação do</p><p>capsídeo</p><p>Internalização</p><p>Vesícula</p><p>Vírus chikungunya</p><p>Tradução</p><p>Fusão</p><p>Figura 42 – Ciclo replicativo de alfavírus em uma célula infectada. Partículas virais são internalizadas por endocitose,</p><p>via vesículas revestidas por clatrina. Em pH ácido ocorre fusão das membranas do envelope viral e do endossomo,</p><p>externalizando o nucleocapsídeo para o citoplasma. Com a dissociação do capsídeo, o RNA viral é liberado no</p><p>citoplasma, podendo interagir com ribossomos para a tradução</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 143).</p><p>82</p><p>Unidade I</p><p>A transmissão do CHIKV ao ser humano se dá, principalmente, por meio da picada de fêmeas dos</p><p>mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus infectadas. Atualmente, a doença ocorre em áreas urbanas</p><p>no país, tendo o Aedes aegypti contribuição dominante. Pesquisadores brasileiros evidenciaram que</p><p>mosquitos silvestres coletados no estado do Rio de Janeiro (como Haemagogus leucocelaenus e Aedes</p><p>terrens, espécies encontradas em grande parte das florestas do continente americano) são igualmente</p><p>capazes de transmitir o vírus.</p><p>Casos de transmissão vertical podem ocorrer quase que exclusivamente no intraparto de gestantes</p><p>virêmicas e, muitas vezes, provoca infecção neonatal grave. Também pode acontecer transmissão por via</p><p>transfusional, todavia é rara se os protocolos forem respeitados.</p><p>Uma exploração completa de outros reservatórios virais zoonóticos para o CHIKV não foi realizada.</p><p>Especula-se que, durante períodos interepidêmicos, um número de vertebrados aja como potenciais</p><p>reservatórios, incluindo primatas não humanos, roedores e outros pequenos mamíferos. Ainda é</p><p>necessário verificar se os macacos brasileiros são capazes de atuar como reservatórios do chikungunya,</p><p>a exemplo do que ocorre no ciclo de transmissão silvestre da febre amarela, vírus que também é</p><p>originário da África.</p><p>Alguns arbovírus, como dengue, chikungunya e Zika, tornaram-se totalmente adaptados aos</p><p>ciclos urbanos e não requerem mais primatas não humanos, mosquitos da mata e um ciclo silvestre</p><p>para sua manutenção. No entanto, os ciclos silvestres ainda podem ter implicações importantes para</p><p>infecções humanas. Eles podem atuar como refúgio para arbovírus, permitindo o ressurgimento</p><p>após epidemias humanas terem passado e a imunidade na população ter diminuído.</p><p>Além disso, eles podem fornecer ambientes seletivos onde novas cepas de arbovírus podem se</p><p>desenvolver com aumento (ou diminuição) da virulência para as pessoas. Em laboratório, mostrou-se</p><p>que o vírus chikungunya pode ser transmitido verticalmente em Aedes aegypti por meio de oocistos</p><p>de um protozoário (Ascogregarina culicis) que comumente infecta o intestino de mosquitos. Como</p><p>a sobrevivência desses oocistos na natureza é muito alta, quando as ascogregarinas invadem novos</p><p>hospedeiros em fase larval, elas podem passar a infecção viral para o mosquito.</p><p>Do ponto de vista clínico, os dois grupos de alfavírus são subdivididos em aqueles associados à</p><p>encefalite (predominantemente vírus do Novo Mundo) e aqueles associados à poliartrite e erupção</p><p>cutânea (predominantemente vírus do Velho Mundo). Ao contrário dos alfavírus encefalogênicos típicos,</p><p>que infectam os neurônios, o CHIKV parece infectar as células do estroma do sistema nervoso central e,</p><p>em particular, o revestimento do plexo coroide.</p><p>83</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Cérebro</p><p>Células</p><p>endoteliais e</p><p>epiteliais</p><p>Infecção de</p><p>fibroblastos e</p><p>replicação viral</p><p>Mosquito</p><p>Vírus</p><p>Fibroblastos</p><p>Pele</p><p>Células endoteliais</p><p>Queratinócitos</p><p>Disseminação de CHIKV pela</p><p>corrente sanguínea</p><p>Fígado</p><p>Células</p><p>endoteliais</p><p>Músculo</p><p>Células satélites</p><p>e fibroblastos Articulações</p><p>Fibroblastos</p><p>Órgãos linfoides</p><p>Células do</p><p>estroma,</p><p>macrófagos</p><p>e células</p><p>dendríticas (?)</p><p>Figura 43 – Disseminação do vírus chikungunya no corpo humano</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3mnCChZ. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>Após a introdução do vírus junto à saliva do mosquito, o CHIKV se replica na pele, em fibroblastos,</p><p>disseminando-se posteriormente para o fígado, músculos, articulações, órgãos linfoides (linfonodos e</p><p>baço) e cérebro. As células infectadas em cada órgão são indicadas na figura anterior.</p><p>2.3.3 Aspectos epidemiológicos</p><p>A maior epidemia de Chikungunya já registrada começou na Ilha de Lamu, Quênia, em 2004. A</p><p>epidemia se expandiu por quatro continentes, com casos ainda reportados até hoje. Quatro principais</p><p>genótipos de CHIKV são agora reconhecidos – o asiático, o oeste africano, o leste-centro-sul africano</p><p>(ECSA) – e uma nova linhagem, a do Oceano Índico (IOL), que emergiu do genótipo ECSA durante a</p><p>epidemia de 2004 a 2019.</p><p>https://bit.ly/3mnCChZ</p><p>84</p><p>Unidade I</p><p>No Brasil, até o momento foram detectadas as linhagens asiática e ECSA. A epidemia atingiu mais de</p><p>100 países, causou mais de 10 milhões de casos e pode ser considerada uma pandemia. Estima-se que</p><p>1,3 bilhão de pessoas correm o risco de contrair chikungunya. A modelagem de mudanças climáticas</p><p>sugere que muitas outras áreas do mundo, onde a transmissão autóctone ainda não ocorre, podem se</p><p>tornar capazes de acomodar a transmissão do CHIKV no futuro.</p><p>2016</p><p>2016</p><p>2010</p><p>2011</p><p>2006</p><p>2006</p><p>2006</p><p>2017</p><p>2017 2013 2012</p><p>2012</p><p>2012</p><p>2015</p><p>2010</p><p>2007</p><p>2010</p><p>2011</p><p>2014</p><p>2014-2018</p><p>2014-2018</p><p>2014-2018</p><p>2015-2018</p><p>2014-2017 2006-2007</p><p>2005-2018</p><p>2004-2015</p><p>2005-2006</p><p>2007 e 2010</p><p>2004 e 2018</p><p>2005-2019</p><p>2008-2009</p><p>2011-20142013 e 2016</p><p>2010 e 2017</p><p>2014-2017</p><p>2013</p><p>Figura 44 – Surgimento e propagação da epidemia de CHIKV de 2004 a 2019. Em 2004, o primeiro</p><p>surto da maior epidemia de chikungunya já registrado começou na Ilha de Lamu, no Quênia (estrela</p><p>vermelha). A epidemia então se expandiu para o oeste</p><p>da África e para o leste através das ilhas do</p><p>Oceano Índico até a Ásia. A epidemia cresceu na Índia e no sudeste da Ásia, mudou-se para o leste</p><p>nas ilhas do Pacífico e atingiu o Caribe (Ilha de Saint Martin) em 2013 (diamante vermelho). A Ilha de</p><p>Saint Martin foi o primeiro local nas Américas a relatar a transmissão autóctone (conclusão de um</p><p>ciclo de transmissão entre humanos e mosquitos dentro da mesma localização geográfica) do CHIKV</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3CWBx6e. Acesso em: 11 ago. 2021.</p><p>Em 2013, o CHIKV se espalhou para a América Central e do Sul, e os casos ainda estavam sendo</p><p>relatados em 2018/2019. Pequenos surtos também ocorreram na Europa e no sul dos Estados Unidos.</p><p>O Aedes aegypti é o principal vetor na América Central e do Sul, na maior parte da África e nas ilhas</p><p>do Pacífico. O Aedes albopictus é o principal vetor na Europa e em partes do Oceano Índico, África</p><p>Ocidental e Papua-Nova Guiné. Ambos os vetores provavelmente estiveram envolvidos em muitos</p><p>surtos ocorridos na Ásia.</p><p>Nos anos anteriores a 2021, a Ásia e as Américas foram as regiões mais afetadas pelo chikungunya. O</p><p>Paquistão enfrentou um surto persistente que começou no ano anterior e relatou 8.387 casos, enquanto</p><p>a Índia sofreu com 62 mil casos. Nas Américas e no Caribe foram notificados 185 mil casos; desse</p><p>montante, cerca de 90% se deu no Brasil. Surtos de chikungunya também foram relatados no Sudão</p><p>(2018), Iêmen (2019) e, mais recentemente, no Camboja e Chade (2020).</p><p>https://bit.ly/3CWBx6e</p><p>85</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Em 2014, ano seguinte à introdução do vírus nas Américas, 35 países, incluindo o Brasil, confirmaram</p><p>autoctonia. No fim de 2016, houve confirmação de casos autóctones em todos os estados da federação.</p><p>Entre 2014 e 2019, foram notificados 589.076 casos prováveis e 495 óbitos confirmados por laboratório,</p><p>sendo 2016 e 2017 os anos com maiores coeficientes de incidência, 114,0 e 89,4 casos por 100 mil</p><p>habitantes, respectivamente. A mediana de idade dos óbitos foi de 68 anos (0 a 96), as maiores taxas</p><p>de letalidade foram observadas em pessoas acima de 79 anos (1,13%) e em menores de 1 ano (0,4%).</p><p>A comorbidade mais frequente nos óbitos foi hipertensão arterial.</p><p>A maior concentração de casos e óbitos ocorreu na região Nordeste, com destaque para o Ceará em</p><p>2017 com 61,4% dos casos e 80% dos óbitos do país (coeficiente de incidência de 1.264,2 casos por</p><p>100 mil habitantes). Excepcionalmente em 2018 e 2019, os casos estão concentrados no estado do Rio</p><p>de Janeiro, com coeficiente de incidência de 239 e 152,3 casos por 100 mil habitantes, respectivamente,</p><p>sendo o primeiro local com transmissão importante fora da região Nordeste.</p><p>2014</p><p>Autoctonia</p><p>AP e BA</p><p>Transmissão</p><p>concentrada NE</p><p>Autoctonia nas</p><p>27 UFs</p><p>Taxa de incidência</p><p>Óbitos confirmados Epidemia CE</p><p>Epidemia no RJ</p><p>Co</p><p>efi</p><p>ci</p><p>en</p><p>te</p><p>d</p><p>e</p><p>in</p><p>ci</p><p>dê</p><p>nc</p><p>ia</p><p>(/</p><p>10</p><p>0</p><p>m</p><p>il</p><p>ha</p><p>b.</p><p>)</p><p>N</p><p>úm</p><p>er</p><p>o</p><p>de</p><p>ó</p><p>bi</p><p>to</p><p>s</p><p>2015 2016 2017 2018 2019</p><p>0</p><p>100</p><p>200</p><p>50</p><p>150</p><p>250</p><p>300140</p><p>100</p><p>60</p><p>20</p><p>120</p><p>80</p><p>40</p><p>0</p><p>Figura 45 – Coeficiente de incidência e óbitos por chikungunya no Brasil, de 2015 a 2019</p><p>Fonte: Brasil (2019, p. 7).</p><p>No ano de 2020, foram notificados 82.419 casos prováveis (taxa de incidência de 39,2 casos por</p><p>100 mil habitantes) no país. As regiões Nordeste e Sudeste apresentam as maiores taxas de incidência,</p><p>103,4 casos/100 mil habitantes e 24,1 casos/100 mil habitantes, respectivamente.</p><p>De janeiro a junho (até semana epidemiológica 26), ocorreram 71,8% das notificações por Chikungunya</p><p>(59.141 casos prováveis), com taxa de incidência de 28,1 casos/100 mil habitantes. Destacam-se os</p><p>estados do Espírito Santo, Bahia e Rio Grande do Norte (Figura 46, lado esquerdo).</p><p>No período entre julho e dezembro (semanas epidemiológicas 27 a 53), foram notificados 28,2%</p><p>dos casos prováveis de chikungunya no país (23.278 casos prováveis), com taxa de incidência de</p><p>11,1 casos/100 mil habitantes. Nesse período, apenas o estado de Sergipe apresentou uma taxa de incidência</p><p>acima de 100 casos/100 mil habitantes (Figura 46, lado direito).</p><p>86</p><p>Unidade I</p><p>Sem dados</p><p>0,01 - 50,00</p><p>50,01 - 100,00</p><p>100,01 - 300,00</p><p>300,01 - 500,00</p><p>500,01 - 12.126,45</p><p>Tx. incidência chikungunya SE 1 a 26</p><p>Sem dados</p><p>0,01 - 50,00</p><p>50,01 - 100,00</p><p>100,01 - 300,00</p><p>300,01 - 500,00</p><p>500,01 - 4.003,02</p><p>Tx. incidência chikungunya SE 27 a 53</p><p>Figura 46 – Distribuição da taxa de incidência de chikungunya no Brasil em 2020. No lado esquerdo:</p><p>período de janeiro a junho (semanas epidemiológicas 1 a 26). No lado direito: período de julho a</p><p>dezembro (semanas epidemiológicas 27 a 53)</p><p>Fonte: Brasil (2021, p. 4).</p><p>2.3.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas</p><p>A febre chikungunya é tipicamente uma doença febril de início rápido, caracterizada por astenia</p><p>intensa, artralgia, mialgia, cefaleia e erupção cutânea. O início abrupto da febre segue um período</p><p>médio de incubação de três a sete dias (maior parte dos casos de dois a quatro dias); quando há febre,</p><p>a temperatura corporal costuma ser superior a 38,5 ºC. Ao contrário de outras doenças arbovirais, como</p><p>a dengue, a maioria das pessoas infectadas apresenta sintomas, com baixo percentual de pacientes com</p><p>soroconversão assintomática (estimativa em torno de 15% dos casos).</p><p>O início da febre coincide com a viremia, e a carga viral pode atingir rapidamente até 109 cópias</p><p>do genoma viral por mililitro de sangue. A intensidade da infecção aguda se correlaciona com</p><p>a da viremia, e a infecção aguda geralmente dura uma semana, até o término da viremia, quando</p><p>aparecem anticorpos IgM. Logo após o início da febre, ocorrem mialgias e artralgias graves; estas são</p><p>frequentemente tão intensas que os pacientes têm dificuldade em deixar a posição em que estavam</p><p>quando os sintomas começaram.</p><p>Para diagnóstico diferencial em regiões onde o vírus chikungunya circula, a poliartralgia</p><p>debilitante tem um valor preditivo positivo maior que 80% para a viremia do vírus chikungunya.</p><p>A dor nas articulações é geralmente simétrica e localizada nos braços e nas pernas (em 90% dos</p><p>pacientes); as grandes articulações são quase invariavelmente sintomáticas, assim como, em menor</p><p>grau, as pequenas articulações e a coluna vertebral. Edema periarticular e artrite aguda também</p><p>podem ocorrer, em particular nas articulações interfalangianas, punhos e tornozelos, bem como dor</p><p>ao longo das inserções ligamentares.</p><p>87</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Picada do mosquito e</p><p>infecção com CHIKV</p><p>Fase aguda</p><p>2-4 dias 3-5 dias Meses-anos</p><p>Células T</p><p>Anticorpos</p><p>Viremia</p><p>Resposta dependente de IFN</p><p>Manifestação dos sintomas</p><p>Figura 47 – Evolução temporal da resposta imune contra o vírus chikungunya. Após a transmissão pela picada do</p><p>mosquito, os indivíduos infectados apresentam um início agudo da doença dois a quatro dias após a infecção. Os</p><p>sintomas incluem febre alta, calafrios, dor de cabeça e exantema predominantemente maculopapular. Além disso,</p><p>a maioria dos indivíduos infectados se queixa de fortes dores nas articulações, que costumam ser incapacitantes.</p><p>O início da doença coincide com o aumento do título viral, que desencadeia a ativação de uma resposta imune</p><p>inata, cuja marca registrada é a produção de interferons tipo I (IFN). Os pacientes eliminam o vírus com sucesso</p><p>aproximadamente uma semana após a infecção, e somente nesse momento há evidência de imunidade adaptativa</p><p>específica para CHIKV (isto é, células T e respostas mediadas por anticorpos). É importante ressaltar que cerca de</p><p>30% dos indivíduos apresentam sequelas de longo prazo que incluem artralgia e, em alguns casos, artrite</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3g6JZpJ. Acesso em: 12 ago. 2021.</p><p>O exantema é macular ou maculopapular, acomete cerca de metade dos doentes e, em geral, surge</p><p>do 2º ao 5º dia após o início da febre. É focado no tronco, mas também pode atingir o rosto e envolver os</p><p>braços e pernas, as solas dos pés e as palmas das mãos. Menos comuns, os sinais e sintomas inespecíficos</p><p>incluem linfadenopatia, prurido e anormalidades digestivas (principalmente</p><p>nas crianças), que são mais</p><p>comuns após a resolução da viremia.</p><p>Torpor, desmaios, confusão mental e transtornos de déficit de atenção são observados na fase aguda,</p><p>mas podem refletir a intensidade da febre em vez da patogênese específica do vírus chikungunya.</p><p>Complicações raras podem ocorrer durante a fase aguda, incluindo conjuntivite não purulenta, uveíte,</p><p>iridociclite e retinite, que geralmente se resolvem. Esses sinais e sintomas foram descritos em locais</p><p>geográficos, onde nenhum outro surto de arbovirose foi relatado, o que sugere que eles foram causados</p><p>por infecção pelo vírus chikungunya.</p><p>Pacientes com febre chikungunya grave que requerem hospitalização tendem a ser mais velhos e ter</p><p>condições coexistentes, como doenças cardiovasculares, neurológicas e respiratórias ou diabetes, que</p><p>são fatores de risco independentes para doença grave. A febre chikungunya grave pode se manifestar</p><p>com quadros de encefalopatia, miocardite, hepatite e falência múltipla dos órgãos. As complicações</p><p>hemorrágicas são raras e devem levar em consideração diagnósticos alternativos, como coinfecção pelo</p><p>vírus da dengue ou condições coexistentes, como hepatopatia crônica.</p><p>https://bit.ly/3g6JZpJ</p><p>88</p><p>Unidade I</p><p>Saiba mais</p><p>Embora a chikungunya, geralmente, não seja considerada uma ameaça</p><p>à vida, foram documentadas manifestações clínicas atípicas que resultam</p><p>em morbidade significativa, especialmente durante epidemias. Há registros</p><p>de manifestações neurológicas, cardiovasculares, cutâneas, oculares, renais,</p><p>entre outras outras.</p><p>Para mais informações sobre formas atípicas de chikungunya, consulte:</p><p>RAJAPAKSE, S.; CHATURAKA, R.; RAJAPAKSE, A. Atypical manifestations</p><p>of chikungunya infection. Transactions of the Royal Society of Tropical</p><p>Medicine and Hygiene, v. 104, n. 2, 89-96, 2010.</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3j2kk3E. Acesso em: 17 ago. 2021.</p><p>Enquanto a infecção fetal parece ser extremamente rara, a taxa de infecção de neonatos nascidos</p><p>de mães virêmicas e expostos ao vírus durante o parto pode chegar a 50%, levando à doença grave e</p><p>encefalopatia que resultam em sequelas neurológicas de longo prazo. Essa dependência da gravidade da</p><p>doença com a idade segue uma curva parabólica em forma de U, com recém-nascidos, crianças pequenas</p><p>e idosos em maior risco e com adultos saudáveis geralmente apresentando doença autolimitada.</p><p>O principal fardo da doença não resulta apenas da alta taxa de casos sintomáticos e da</p><p>gravidade da infecção aguda, mas também da dor crônica nas articulações. A artralgia persistente</p><p>ou recidivante, localizada principalmente nas articulações distais, pode estar associada à artrite e</p><p>pode mimetizar artrite reumatoide em até 50% dos pacientes. A artralgia crônica pode levar à</p><p>incapacitação persistente, exigindo tratamento de longo prazo com medicamentos anti-inflamatórios</p><p>e imunossupressores não esteroidais.</p><p>2.3.5 Diagnóstico laboratorial</p><p>O diagnóstico de febre chikungunya é tipicamente clínico, porque a associação de febre aguda e</p><p>artralgia é altamente preditiva em áreas onde a doença é endêmica e onde ocorreram epidemias. O</p><p>principal achado laboratorial é a linfopenia (contagem de linfócitos menor que 1000 células/mm3).</p><p>Outras alterações laboratoriais incluem trombocitopenia (menos frequente que na dengue), níveis</p><p>elevados de aspartato aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT) no sangue e hipocalcemia.</p><p>Um diagnóstico definitivo depende da detecção do vírus, geralmente por meio de RT-PCR durante</p><p>a fase virêmica (a primeira semana). O RT-PCR pode ser projetado em um formato multiplex para</p><p>detectar simultaneamente vários outros arbovírus, como o vírus da dengue, que pode ser muito útil</p><p>para a triagem de pacientes. A cultura do CHIKV em uma variedade de células permite caracterização</p><p>virológica adicional, mas não tem valor agregado em relação à RT-PCR na prática clínica e não é</p><p>realizada rotineiramente.</p><p>89</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>O sorodiagnóstico é facilitado pela diversidade antigênica limitada do vírus chikungunya e</p><p>extensa reatividade cruzada dos anticorpos induzidos por diferentes cepas. Níveis de IgM séricos são</p><p>detectáveis desde o 5º dia (e mesmo antes) até vários meses após o início da doença e também possui</p><p>valor diagnóstico. Não há ensaio específico para avaliar os sinais e sintomas crônicos associados à</p><p>febre chikungunya, embora os níveis elevados de proteína C reativa e citocinas pró-inflamatórias se</p><p>correlacionem com a atividade da doença, assim como os níveis de IgG e IgM persistentes. A persistência</p><p>de altos títulos de anticorpos e sua correlação com doença crônica podem indicar atraso na depuração</p><p>do antígeno, em vez de persistência viral.</p><p>Lembrete</p><p>As mesmas metodologias apresentadas no tópico 2.2.5 para diagnóstico</p><p>laboratorial de dengue podem ser empregadas para diagnóstico de chikungunya.</p><p>Em suma, entre os principais exames empregados para o diagnóstico de chikungunya, destacam-se:</p><p>• Exames específicos diretos:</p><p>— pesquisa de vírus (isolamento viral por inoculação em células);</p><p>— pesquisa de genoma viral (RT-PCR);</p><p>— pesquisa de antígeno NS1 (ELISA);</p><p>• Exames específicos indiretos:</p><p>— pesquisa de anticorpos IgM e IgG (ELISA);</p><p>— estudo anatomopatológico post mortem (imuno-histoquímica ou imunofluorescência).</p><p>2.3.6 Tratamento</p><p>Além dos medicamentos anti-inflamatórios para controlar os sintomas e o inchaço das articulações,</p><p>não existem agentes terapêuticos específicos para tratar pessoas infectadas e nem vacinas licenciadas</p><p>para prevenir a febre chikungunya. Em modelos animais, a imunoterapia passiva demonstrou ser</p><p>eficaz na prevenção e cura da infecção pelo vírus chikungunya, mas essa abordagem ainda não foi</p><p>testada em seres humanos; essa abordagem poderá ser particularmente importante no tratamento de</p><p>recém-nascidos de mães virêmicas.</p><p>Os anti-inflamatórios não esteroidais (ibuprofeno, naproxeno, diclofenaco, nimesulida, ácido</p><p>acetilsalicílico, entre outros) e os corticosteroides não devem ser utilizados na fase aguda da doença.</p><p>O ácido acetilsalicílico também é contraindicado na fase aguda pelo risco de síndrome de Reye</p><p>(encefalopatia aguda) e de sangramento, além da possibilidade de dengue não diagnosticada.</p><p>90</p><p>Unidade I</p><p>É necessário estar atento à avaliação hemodinâmica para a instituição de terapia de reposição</p><p>volêmica e do tratamento de complicações. Igualmente importante é avaliar a existência de</p><p>disfunção renal, sinais e sintomas neurológicos, insuficiência hepática, acometimento cardíaco,</p><p>hemoconcentração e plaquetopenia.</p><p>Recomenda-se tratamento não farmacológico, concomitante ao tratamento farmacológico, por</p><p>meio de fisioterapia e/ou de exercícios de intensidade leve ou moderada e de crioterapia.</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais informações acerca do tratamento e manejo de pacientes</p><p>com chikungunya, consulte:</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde.</p><p>Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Chikungunya:</p><p>manejo clínico. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. Disponível em:</p><p>https://cutt.ly/kQVFOZR. Acesso em: 12 ago. 2021.</p><p>Até que haja um tratamento ou vacina, o controle da febre chikungunya, como o da dengue,</p><p>dependerá da redução do vetor e da limitação do contato entre seres humanos e os mosquitos Aedes</p><p>aegypti e Aedes albopictus. Esses esforços geralmente se concentram no tratamento de água parada</p><p>e na redução de recipientes que possam armazenar água, incluindo vasos de plantas em quintais e</p><p>recipientes de lixo, onde os ovos são colocados e as larvas se desenvolvem.</p><p>Novas estratégias para o controle do vetor incluem a liberação de Aedes aegypti transgênicos</p><p>projetados para carrear um gene de letalidade à prole. Outra abordagem promissora para reduzir</p><p>a transmissão é o uso da bactéria Wolbachia, que, quando introduzida em Aedes aegypti ou Aedes</p><p>albopictus, reduz sua competência vetorial para o vírus chikungunya e para o vírus da dengue. Ainda,</p><p>entre as formas de limitar o contato entre os mosquitos infectados e as pessoas destaca-se</p><p>o uso de</p><p>roupas protetoras e repelentes, ou telas e cortinas impregnadas com inseticida.</p><p>2.3.7 Imunização</p><p>Uma vez que haja infecção, a imunidade adquirida é permanente. A diversidade antigênica limitada</p><p>do vírus chikungunya e extensa reatividade cruzada dos anticorpos induzidos por diferentes cepas garante</p><p>resposta protetora diante da primeira exposição. Acredita-se que as respostas imunes sejam dirigidas</p><p>principalmente contra as proteínas E1 e E2, e esteja ligada à presença de anticorpos neutralizantes,</p><p>conforme mostrado em modelos animais e sugerido pelos resultados de um estudo prospectivo em seres</p><p>humanos. Assim, essas proteínas também são os principais alvos para o desenvolvimento de vacinas.</p><p>A alta similaridade das cepas provavelmente resultará em proteção contra cepas heterólogas quando</p><p>um indivíduo for vacinado. Portanto, usar o antígeno de uma única linhagem deve ser suficiente para</p><p>https://cutt.ly/kQVFOZR</p><p>91</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>gerar uma vacina de proteção cruzada contra todos os CHIKV. O papel das células T na proteção contra</p><p>esta doença ainda não está claro e está sob investigação. A ativação de células T específicas para CHIKV</p><p>ocorre no início da infecção e provavelmente desempenha um papel no controle da infecção viral antes</p><p>das respostas dos anticorpos.</p><p>A tentativa de desenvolver uma vacina contra o CHIKV começou na década de 1960, não muito</p><p>depois do isolamento do vírus. Desde então, os pesquisadores continuaram a desenvolver vacinas</p><p>candidatas que equilibram imunogenicidade e segurança. No entanto, ainda não há vacina licenciada</p><p>contra CHIKV disponível para uso.</p><p>Diferentes estratégias foram empregadas no desenvolvimento de vacinas potenciais, como</p><p>vírus inativados, vacinas de subunidades, vacinas de vírus vivo atenuado, vacinas de vetor de vírus</p><p>recombinante, vacinas quiméricas, vacinas de partícula semelhante a vírus e vacinas de ácido nucleico.</p><p>Partículas semelhantes a vírus são atraentes porque apresentam estruturas de vírions (com antígenos</p><p>nativos), mas não têm ácidos nucleicos virais e não se replicam, o que as torna seguras.</p><p>Uma vacina potencial contra o CHIKV deve induzir uma resposta imune protetora após uma ou</p><p>duas intervenções, permitindo programas de imunização eficazes em áreas endêmicas, bem como para</p><p>viajantes. Planejar uma vacina com custo acessível e de fácil fabricação é desejável, assim, o emprego do</p><p>vetor do sarampo tem se mostrado uma escolha estratégica para gerar uma vacina candidata.</p><p>Em camundongos, essa abordagem induziu respostas imunes humorais e celulares robustas, que</p><p>foram reforçadas por uma segunda imunização. Essa vacina demonstrou ser segura e altamente</p><p>imunogênica também em seres humanos (testes clínicos de fase I), mesmo na presença de imunidade</p><p>anti-sarampo preexistente. Com a avaliação clínica adicional em andamento, esses resultados</p><p>sugerem-na como uma candidata promissora.</p><p>A pandemia em curso de COVID-19 destaca, mais uma vez, a importância do desenvolvimento de</p><p>vacinas para infecções existentes e emergentes.</p><p>2.4 Zika</p><p>2.4.1 Breve histórico</p><p>Exploradores e colonizadores europeus da África que conseguiram sobreviver a diversos agentes</p><p>microscópicos mortais, contra os quais não tinham imunidade, podem ter se sentido pálidos e suados,</p><p>mesmo em dias bons. Afecções exóticas, como a febre Zika, provavelmente explicam o porquê.</p><p>A febre Zika é uma doença exantemática, relacionada à dengue, à febre do Nilo Ocidental e à</p><p>febre amarela. Essa infecção é caracterizada por sintomas que podem durar por uma semana, com</p><p>apresentação clínica semelhante a outras infecções por arbovírus, como chikungunya e dengue, incluindo</p><p>febre moderada, manifestações cutâneas, artralgia, artrite, mialgia, dor de cabeça, conjuntivite e</p><p>edema. Casos graves envolvendo hospitalização são incomuns e as mortes são raras.</p><p>92</p><p>Unidade I</p><p>O agente etiológico da febre Zika foi isolado pela primeira vez em 1947, no sangue de um macaco</p><p>rhesus (Macaca mulatta), na floresta Zika perto de Entebbe (Uganda). Em 1952 foi relatado o primeiro</p><p>caso em seres humanos. Antes de 2007, pelo menos 14 casos de Zika foram documentados, embora</p><p>outros provavelmente tenham ocorrido e não tenham sido relatados.</p><p>Recentemente, foi observado um grande aumento na circulação do ZIKV em todo o mundo, que</p><p>inicialmente era endêmico apenas na África e na Ásia. Casos foram relatados em países da Europa,</p><p>Oceania e Américas, particularmente na América Latina, onde está se espalhando rapidamente para</p><p>novas áreas. O ZIKV causou um surto de infecções humanas no Pacífico Sul (Polinésia Francesa) em</p><p>2013-2014, que foi o primeiro registrado fora da África. Foi lá, em áreas de prevalência da infecção pelo</p><p>ZIKV, que a síndrome de Guillain-Barré passou a ser documentada em pacientes previamente infectados.</p><p>De lugares com transmissão autóctone estabelecida, como o Brasil, viajantes virêmicos têm a</p><p>capacidade de introduzir ZIKV em novos países onde os mosquitos Aedes seriam infectados e perpetuariam</p><p>os ciclos de transmissão locais. Na América do Sul, o Brasil apresentou grande concentração de casos de</p><p>Zika, principalmente na região Nordeste, e complicações graves ocorreram simultaneamente ao surto</p><p>desse arbovírus.</p><p>2.4.2 Agente etiológico</p><p>O ZIKV é um vírus de RNA com polaridade positiva, não segmentado, de fita simples e pertence ao</p><p>gênero Flavivirus, que também inclui muitos outros patógenos humanos importantes, como o vírus</p><p>da dengue e da febre amarela. As infecções por flavivírus em seres humanos apresentam um amplo</p><p>espectro de manifestações clínicas, desde uma doença febril autolimitada na maioria dos casos até uma</p><p>doença grave com febre hemorrágica e encefalite letal.</p><p>Apesar do alto grau de similaridade na organização do genoma e na estrutura do vírion entre o</p><p>ZIKV e outros flavivírus, a evidência atual mostra que o ZIKV adquiriu várias propriedades que são</p><p>distintas de outros flavivírus. Em particular, o ZIKV pode atravessar a placenta e causar graves defeitos</p><p>congênitos, incluindo restrição de crescimento intrauterino, microcefalia fetal, aborto espontâneo e</p><p>outras malformações do neurodesenvolvimento.</p><p>Lembrete</p><p>Reveja a Figura 22, no tópico 2.1.2, para recordar a organização</p><p>do genoma de um flavivírus, esquematizado então para o vírus da</p><p>febre amarela. Lembre-se de que todas as proteínas dos flavivírus são</p><p>codificadas em uma única janela aberta de leitura, produzidas como</p><p>uma poliproteína, que é então processada por clivagem enzimática,</p><p>para produção das proteínas estruturais e não estruturais.</p><p>93</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>O vírus Zika (ZIKV) foi isolado em diferentes espécies do gênero Aedes (A. africanus, A. luteocephalus,</p><p>A. aegypti, A. albopictus, A. furcifer e A. vittatus) e, portanto, embora A. aegypti seja o principal vetor</p><p>da epidemia no Brasil, todas essas espécies de Aedes estão provavelmente envolvidas na transmissão do</p><p>ZIKV aos seres humanos.</p><p>Semelhante a outros flavivírus, o ZIKV tem um genoma de RNA de 10,8 kb de comprimento, que</p><p>contém uma única janela aberta de leitura flanqueada por regiões 5’ e 3’ não traduzidas. A poliproteína</p><p>produzida é posteriormente processada por proteases virais e do hospedeiro em três proteínas estruturais</p><p>– capsídeo (C), pré-membrana (prM) ou membrana (M) e envelope (E) – que formam a partícula do vírion,</p><p>e sete proteínas não estruturais – NS1, NS2A, NS2B, NS3, NS4A, NS4B e NS5 – que são responsáveis</p><p>pela replicação do genoma viral e modificação das funções celulares do hospedeiro e da resposta imune.</p><p>As proteínas estruturais são os componentes do vírion. Várias cópias da proteína do capsídeo (C)</p><p>encapsulam o RNA genômico viral e formam o nucleocapsídeo icosaédrico. O nucleocapsídeo brota no</p><p>retículo endoplasmático para adquirir uma camada de membrana externa revestida com as proteínas da</p><p>pré-membrana viral (prM) e do envelope (E).</p><p>O vírion imaturo resultante é transportado ao longo do complexo de Golgi e os peptídeos pr são</p><p>clivados da proteína prM pela protease</p><p>furina, presente na rede trans-Golgi. No entanto, os peptídeos pr</p><p>ainda permanecem associados aos vírions para prevenir a fusão indesejada da membrana, que seria</p><p>iniciada pela proteína E viral em condições ácidas. Os peptídeos pr são liberados em ambientes</p><p>extracelulares neutros para gerar um vírion maduro.</p><p>As proteínas flavivirais não estruturais (NS) são essenciais para a replicação do RNA viral, montagem</p><p>do vírion e antagonismo do sistema imunológico do hospedeiro. A proteína NS3 tem várias atividades</p><p>enzimáticas que são essenciais para a síntese de RNA viral, além de agir como protease e helicase.</p><p>NS5 também é essencial para a replicação e funciona como RNA polimerase dependente de RNA,</p><p>metiltransferase e guanililtransferase.</p><p>As outras proteínas não estruturais cooperam para remodelar as membranas do retículo, gerando</p><p>brotamentos vesiculares induzidos por vírus e estruturas de membrana contorcida, além de formar o</p><p>arcabouço que ancora NS3 e NS5, bem como fatores críticos do hospedeiro durante a formação do</p><p>complexo de replicação viral. Ainda, várias proteínas não estruturais são antagonistas da produção</p><p>e/ou da sinalização de interferon.</p><p>Muitas das proteínas de ZIKV têm funções conservadas em comparação com as proteínas ortólogas</p><p>em outros flavivírus; no entanto, a divergência de sequência de aminoácidos e subsequente diversificação</p><p>funcional podem ajudar a explicar as propriedades de virulência do ZIKV. Por exemplo, a proteína NS2A</p><p>de ZIKV, mas não a NS2A de DENV, é capaz de interagir com as proteínas do hospedeiro formando</p><p>complexos de junção aderente e promover sua degradação via autofagossomos, o que resulta em</p><p>proliferação descontrolada e diferenciação de células da glia e no posicionamento anormal de neurônios</p><p>durante o desenvolvimento.</p><p>94</p><p>Unidade I</p><p>Além disso, as proteínas NS4A e NS4B de ZIKV inibem a fosforilação de AKT, que bloqueia a sinalização</p><p>de AKT-mTOR e leva à inibição da neurogênese e à indução de autofagia. Esses achados sugerem que</p><p>as proteínas não estruturais do ZIKV podem conter motivos e/ou domínios únicos que determinam a</p><p>patogênese viral.</p><p>A infecção por ZIKV se dá, principalmente, por meio de picadas de mosquitos vetores infectados do</p><p>gênero Aedes. Outras formas não vetoriais de transmissão do ZIKV incluem a via vertical (transplacentária),</p><p>sexual e transmissão por transfusão sanguínea.</p><p>Sendo a via de transmissão vetorial a principal, após a picada e inoculação do ZIKV junto à saliva do</p><p>mosquito, a infecção inicial provavelmente ocorre nas células da pele, afetando diretamente fibroblastos</p><p>dérmicos permissivos, queratinócitos epidérmicos e células dendríticas imaturas. A figura a seguir retrata</p><p>alguns dos principais tecidos e células infectadas por ZIKV. Estudos em seres humanos e em modelos</p><p>animais (camundongos e primatas não humanos) detectaram ZIKV em células da placenta, incluindo</p><p>células de Hofbauer, trofoblastos e células endoteliais.</p><p>Outros alvos celulares do ZIKV incluem células do tecido nervoso, como células progenitoras neurais</p><p>e neurônios maduros, além de astrócitos. O ZIKV ainda é capaz de infectar tecidos oculares, incluindo a</p><p>córnea, a retina neurossensorial e o nervo óptico, bem como é detectado no humor aquoso da câmara</p><p>anterior (em seres humanos). O ZIKV também tem como alvo as células do trato reprodutivo, incluindo</p><p>espermatogônias, células de Sertoli e células de Leydig (nos testículos de camundongos), podendo ser</p><p>detectado no esperma (amostras de camundongos e humanos), no epitélio vaginal e em fibroblastos</p><p>uterinos. O extenso tropismo resulta na detecção de ZIKV em vários fluidos corporais, incluindo fluido</p><p>conjuntival ou lágrimas, saliva, sêmen, muco cervical e urina.</p><p>Em um estudo prospectivo feito em Porto Rico com 117 homens sintomáticos participantes, o ZIKV</p><p>foi detectado no sêmen de 48 homens (51%). Nesse estudo, o tempo mediano para eliminação do RNA</p><p>viral do sêmen foi de 42 dias, e 95% dos homens tinham RNA do ZIKV indetectável no sêmen 120 dias</p><p>após o início da doença. Em outro estudo feito no Reino Unido, 12 de 23 (52,2%) homens com infecção</p><p>sintomática pelo ZIKV tinham RNA viral detectável no sêmen, 11 dos quais estavam dentro de 28 dias</p><p>do início da doença.</p><p>Observação</p><p>As taxas de detecção de RNA do ZIKV no sêmen de homens infectados</p><p>sintomáticos têm sido consistentes na maioria dos estudos, variando de</p><p>50% a 60% no primeiro mês do início dos sintomas.</p><p>95</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Pele</p><p>Fibroblastos</p><p>Queratinócitos</p><p>Colunas dendríticas imaturas</p><p>Placenta</p><p>Células das vilosidades coriônicas</p><p>Membrana amniocoriônica</p><p>Células dendríticas imaturas</p><p>Células da decídua parietal</p><p>Células de Hofbauer</p><p>Células do estroma endometrial</p><p>Testículo</p><p>Sêmen</p><p>Epidídimo</p><p>Vírus Zika</p><p>Tecido nervoso embrionário</p><p>Células-tronco neurais</p><p>Progenitores de células da glia</p><p>Figura 48 – ZIKV é capaz de infectar diferentes tecidos humanos. A figura destaca os principais</p><p>tecidos e células infectadas pelo ZIKV</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3sphcli. Acesso em: 12 ago. 2021.</p><p>A transmissão vertical do ZIKV pode ocorrer em todos os 3 trimestres da gestação, independentemente</p><p>da presença ou ausência de sintomas na mãe. Aproximadamente 26% das mães infectadas transmitem</p><p>o ZIKV aos fetos. No entanto, o risco de desenvolver defeitos congênitos, incluindo anormalidades</p><p>neurológicas, foi maior entre as mulheres que foram infectadas durante o primeiro trimestre.</p><p>Em contraste, o risco de complicações neurológicas fetais foi menor entre as mulheres grávidas que</p><p>adquiriram a infecção pelo ZIKV durante o terceiro trimestre da infecção. ZIKV também foi detectado</p><p>no leite materno, mas esse modo de transmissão não foi documentado. Assim, a Organização Mundial</p><p>da Saúde recomenda que mães com infecção possível ou confirmada por ZIKV continuem a amamentar.</p><p>Observação</p><p>A identificação do RNA viral na urina, leite materno e saliva, à luz do</p><p>conhecimento atual, apresenta potencial utilidade no diagnóstico da doença,</p><p>não sendo possível afirmar eventual relevância para transmissão do vírus</p><p>para outra pessoa.</p><p>https://bit.ly/3sphcli</p><p>96</p><p>Unidade I</p><p>A interação inicial do ZIKV com glicosaminoglicanos presentes em proteoglicanos da superfície</p><p>celular é inespecífica. Essas moléculas favorecem o aumento da concentração de partículas virais na</p><p>superfície celular, facilitando a interação viral com receptores celulares, auxiliando na subsequente</p><p>internalização do vírus por endocitose mediada por clatrina. A interação do ZIKV com moléculas de</p><p>superfície celular é complexa e, portanto, os receptores primários que permitem sua captação em</p><p>tecidos/órgãos específicos ainda não foram completamente estabelecidos.</p><p>Em macrófagos e em células dendríticas, receptores de lectina do tipo C (dependente de cálcio), como</p><p>DC-SIGN (CD209), são alvos primários do ZIKV. Além da glicoproteína E (presente no envelope viral), a</p><p>glicosilação da proteína prM também desempenha um papel importante na ligação aos receptores de</p><p>lectina. Os flavivírus contêm quantidades significativas de resíduos de fosfatidilserina em seu envelope</p><p>e, portanto, podem indiretamente interagir com os receptores TAM a partir de seus ligantes endógenos</p><p>(como Gas6 e Pros1).</p><p>Esse mecanismo é chamado de mimetismo apoptótico e induz a fusão do envelope viral com a</p><p>superfície celular, culminando na internalização da partícula viral. O ZIKV também aparenta empregar a</p><p>estratégia de mimetismo apoptótico para invadir diferentes células do hospedeiro.</p><p>Lembrete</p><p>Reveja a Figura 22, no tópico 2.1.2, para recordar o ciclo replicativo</p><p>de flavivírus em uma célula infectada. Uma vez mediada sua adesão à</p><p>superfície celular, a internalização da partícula viral se dá por endocitose.</p><p>Uma mudança conformacional da glicoproteína E ocorre em pH acídico,</p><p>o que facilita a fusão do envelope viral com a membrana do endossomo,</p><p>liberando assim o nucleocapsídeo para o citoplasma. Após a desestruturação</p><p>do capsídeo, o genoma viral é liberado, podendo ser traduzido prontamente.</p><p>2.4.3 Aspectos</p><p>epidemiológicos</p><p>A análise filogenética demonstrou que o ZIKV divergiu em duas linhagens: uma africana e outra</p><p>asiática. A estirpe protótipo de linhagem africana (MR766) foi isolada de um macaco Rhesus em 1947;</p><p>posteriormente, mais cepas africanas foram isoladas de mosquitos e de seres humanos. Todas as cepas</p><p>epidêmicas identificadas na região do Pacífico e nas Américas desde 2007 pertencem à linhagem asiática.</p><p>As primeiras cepas asiáticas foram isoladas de mosquitos coletados em Bentong, uma pequena cidade</p><p>da Malásia, em 1966.</p><p>Em 1977, o primeiro surto de ZIKV asiático em seres humanos foi relatado no centro de Java,</p><p>Indonésia, com base em achados sorológicos. Em todos os sete casos do surto na Indonésia, os sintomas</p><p>foram leves e autolimitados, incluindo febre alta, mal-estar, dor de estômago, tontura e anorexia. Além</p><p>disso, pesquisas sorológicas subsequentes encontraram altas taxas de anticorpos e indicaram que as</p><p>infecções por ZIKV poderiam ter se disseminado no sudeste e sul da Ásia, incluindo Malásia, Indonésia,</p><p>Filipinas, Tailândia, Vietnã, Índia e Paquistão, sugerindo circulação silenciosa no Sudeste Asiático.</p><p>97</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Após quase seis décadas de circulação presumidamente assintomática na África e no Sudeste Asiático,</p><p>o primeiro grande surto de ZIKV surgiu na Ilha Yap (Micronésia) em 2007, com pelo menos 49 casos</p><p>confirmados. Os testes sorológicos sugeriram que aproximadamente três quartos da população local</p><p>havia sido infectada com ZIKV, sugerindo rápida disseminação em uma população imunologicamente</p><p>desprotegida.</p><p>Em 2013, a linhagem asiática do ZIKV causou um surto ainda maior na Polinésia Francesa. Foram</p><p>notificados pelo menos 396 casos confirmados e, no geral, estima-se que 29 mil pessoas tenham sido</p><p>infectadas. Em particular, na epidemia da Polinésia Francesa, mais de 40 casos de síndrome de Guillain-Barré,</p><p>uma complicação neuropatológica autoimune grave, foram associados à infecção pelo ZIKV, tendo esta</p><p>ligação sido detectada pela primeira vez. Posteriormente, o ZIKV continuou a se espalhar pelo Pacífico,</p><p>causando vários surtos nas ilhas vizinhas, incluindo as Ilhas Cook, Nova Caledônia e Ilha de Páscoa.</p><p>Os primeiros casos confirmados de ZIKV nas Américas foram identificados em maio de 2015, embora</p><p>análises filogenéticas sugiram que o ZIKV foi introduzido no Brasil entre maio e dezembro de 2013, pelo</p><p>menos um ano antes da descoberta do primeiro caso em ser humano. O ZIKV então se espalhou rapidamente</p><p>no Brasil e foi introduzido no Caribe e na América Central várias vezes. Finalmente, o ZIKV foi importado</p><p>para os Estados Unidos, provavelmente do Caribe, e a transmissão local foi detectada na Flórida. No final de</p><p>2016, pelo menos 48 países e territórios nas Américas foram afetados, com mais de 175 mil casos de ZIKV</p><p>confirmados em laboratório nas Américas e um número ainda maior de casos suspeitos.</p><p>Micronésia</p><p>Brasil</p><p>Polinésia francesa</p><p>Final de 2012</p><p>ao começo de</p><p>2013</p><p>Maio a dezembro</p><p>de 2013</p><p>Estados</p><p>Unidos</p><p>Sudeste asiático</p><p>Figura 49 – Rotas de transmissão da linhagem asiática de ZIKV. A região sombreada em amarelo</p><p>representa o sudeste da Ásia. A investigação de mutações no genoma do ZIKV permitiu avaliar a</p><p>origem e a data provável de entrada das variantes que alcançaram o continente americano</p><p>Disponível em: https://cutt.ly/RQV5OE7. Acesso em: 12 ago. 2021.</p><p>No período de 2016 a 2019 foram notificados 239.634 casos prováveis da doença no Brasil. Em 2016,</p><p>o país passou por uma transmissão importante de ZIKV, especialmente nos municípios de Mato Grosso,</p><p>https://cutt.ly/RQV5OE7</p><p>98</p><p>Unidade I</p><p>Rio de Janeiro e Bahia. Das 23 cidades que apresentaram taxas de incidência maiores ou igual a</p><p>2 mil casos/100 mil habitantes, 11 se localizavam na Bahia e nove em Mato Grosso. De modo inverso,</p><p>em 2017 e 2018 ocorreu uma redução importante na transmissão de Zika, quando comparada ao ano</p><p>de 2016, com notificações em 18,5% (1.029) e 17% (942) dos municípios, respectivamente.</p><p>Em relação às gestantes, no ano de 2016 observou-se maior número de casos prováveis de</p><p>gestantes com Zika (16.245). As complicações decorrentes da infecção pelo vírus Zika, principalmente</p><p>em recém-nascidos, são os principais desafios para a saúde pública em relação às arboviroses urbanas</p><p>transmitidas pelo Aedes, reforçando a importância das medidas de controle vetorial e de melhoria do</p><p>saneamento básico.</p><p>No ano de 2020 foram notificados 7.387 casos prováveis no país (taxa de incidência 3,5 casos/100 mil</p><p>habitantes). A região Nordeste apresentou a maior taxa de incidência (9,2 casos/100 mil habitantes), seguida</p><p>das regiões Centro-Oeste (3,6 casos/100 mil habitantes) e Norte (2,8 casos/100 mil habitantes). O estado</p><p>da Bahia concentrou 47,9% dos casos de Zika do país. Observa-se também uma tendência de redução de</p><p>casos de Zika, assim como observado para dengue e chikungunya, a partir da semana epidemiológica 27</p><p>(início de julho).</p><p>Sem dados</p><p>0,01 - 50,00</p><p>50,01 - 100,00</p><p>100,01 - 300,00</p><p>300,01 - 500,00</p><p>Acima de 500,01</p><p>Tx. incidência Zika SE 1 a 26</p><p>Sem dados</p><p>0,01 - 50,00</p><p>50,01 - 100,00</p><p>100,01 - 300,00</p><p>300,01 - 500,00</p><p>Acima de 500,01</p><p>Tx. incidência Zika SE 27 a 51</p><p>Figura 50 – Distribuição da taxa de incidência de chikungunya no Brasil em 2020. Lado esquerdo:</p><p>período de janeiro a junho (semanas epidemiológicas 1 a 26). Lado direito: período de julho a</p><p>dezembro (semanas epidemiológicas 27 a 51)</p><p>Fonte: Brasil (2021, p. 5).</p><p>2.4.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas</p><p>A infecção pelo vírus Zika pode ser assintomática ou sintomática, sendo a maioria (50% a 80%) dos</p><p>infectados assintomáticos. Quando sintomática, a doença pode apresentar quadro clínico variável, desde</p><p>manifestações brandas e autolimitadas até complicações neurológicas e malformações congênitas. A</p><p>99</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>maioria dos pacientes apresenta doença leve, autolimitada, marcada por exantema cutâneo, febre baixa,</p><p>artralgia, mialgia e conjuntivite que pode durar até uma semana.</p><p>Diante da infecção pela via vetorial, as primeiras células humanas encontradas pelo vírus são</p><p>fibroblastos dérmicos, queratinócitos epidérmicos, macrófagos de tecido e células dendríticas imaturas.</p><p>As células dendríticas e macrófagos servem para transportar o vírus para os linfonodos (como “cavalos</p><p>de Troia”), onde se replicam eficientemente. Os vírus difundem-se, então, no sangue (viremia), tecidos</p><p>periféricos e órgãos viscerais.</p><p>O ZIKV exibe um extenso tropismo de células e tecidos. Vários tipos de células são permissivos ao</p><p>ZIKV: células de Hofbauer (macrófagos placentários), trofoblastos, células endoteliais da placenta, células</p><p>progenitoras neuronais e neurônios maduros, oligodendrócitos, astrócitos, células do trato reprodutivo</p><p>(masculino e feminino), células de tecidos oculares, hepatócitos, várias células epiteliais, fibroblastos,</p><p>células de tecido renal, células mononucleares do sangue periférico, macrófagos, neutrófilos e células</p><p>dendríticas. A presença do ZIKV afeta a função de muitos órgãos do hospedeiro mamífero, especialmente</p><p>os órgãos imunologicamente privilegiados, como cérebro, olhos, testículos e placenta. Esses órgãos</p><p>suportam a infecção, a replicação viral e podem servir como reservatórios.</p><p>O período de incubação do ZIKV varia de três a 11 dias. Em média, sintomas da febre Zika se darão</p><p>seis dias após a infecção, em indivíduos que os manifestem. O exantema pruriginoso em indivíduos</p><p>sintomáticos é relevante, podendo afetar suas atividades cotidianas e o sono. A artralgia, que geralmente</p><p>surge em forma de poliartralgia, é menos intensa quando comparada àquela que ocorre em indivíduos</p><p>acometidos por chikungunya. Embora não se tenha até o momento observado a cronicidade dessa</p><p>condição, os sintomas articulares em alguns casos podem se estender por até 30 dias de seu início,</p><p>com um padrão recidivante. Embora a duração da imunidade contra o ZIKV permaneça desconhecida,</p><p>evidências de outros flavivírus sugerem que deva ser vitalícia.</p><p>Sintomas</p><p>7.2 Agente etiológico ...............................................................................................................................174</p><p>7.3 Aspectos epidemiológicos...............................................................................................................175</p><p>7.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas .............................................................177</p><p>7.5 Diagnóstico laboratorial ..................................................................................................................178</p><p>7.6 Tratamento ............................................................................................................................................182</p><p>7.7 Imunização ............................................................................................................................................183</p><p>8 DOENÇAS INFECTOCONTAGIOSAS – INFLUENZA .............................................................................184</p><p>8.1 Breve histórico .....................................................................................................................................184</p><p>8.2 Agente etiológico ...............................................................................................................................186</p><p>8.3 Aspectos epidemiológicos...............................................................................................................191</p><p>8.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas .............................................................193</p><p>8.5 Diagnóstico laboratorial ..................................................................................................................195</p><p>8.6 Tratamento ............................................................................................................................................196</p><p>8.7 Imunização ............................................................................................................................................197</p><p>9</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>As ciências da saúde contemplam uma miríade de assuntos, sobre a qual estudantes dedicam-se,</p><p>simultaneamente, a diversos conteúdos. No campo da biomedicina, para fins didáticos, tradicionalmente</p><p>as disciplinas são divididas em áreas básicas e clínicas. A adequada articulação entre essas frentes é</p><p>importante para que os alunos desenvolvam as habilidades necessárias para investigar, analisar e perceber</p><p>o paciente como um todo.</p><p>Nos grandes centros educacionais mundo afora, há o reconhecimento de que o ensino integrativo é</p><p>fundamental. Assim, Biomedicina Interdisciplinar tem por objetivo correlacionar diferentes conteúdos,</p><p>de relevância na atualidade, visando promover a integração interdisciplinar e multiprofissional.</p><p>Trata-se de uma disciplina que desenvolve subsídios e ferramentas fornecidas em outras frentes da</p><p>matriz curricular do curso de Biomedicina, sendo, portanto, de grande importância para a formação e</p><p>atuação profissional do biomédico.</p><p>Ao final deste livro, o aluno revisará e aprofundará conteúdos trabalhados durante o curso de</p><p>Biomedicina, integrará conhecimentos básicos, pré-profissionais e profissionais, contemplando a</p><p>interdisciplinaridade e o envolvimento multiprofissional do curso, além de ser incentivado à contínua</p><p>atualização e à busca de informações pertinentes acerca dos principais temas desta área na atualidade.</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>O ganhador do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1969, Alfred D. Hershey, por seus estudos</p><p>envolvendo bacteriófagos, certa vez disse que o objetivo duradouro do esforço científico, como de todo</p><p>empreendimento humano, é alcançar uma visão inteligível do universo. Compreender um fenômeno</p><p>não se dá pelo simples acúmulo de fatos. A compreensão é alcançada por meio de atos criativos, quando</p><p>princípios compartilhados são identificados diante da clareza de o uno ser igual ao todo.</p><p>No campo da biologia, assim se deu inúmeras vezes: identificamos que todos os seres vivos são</p><p>compostos por células (princípio compartilhado), ainda que nem todos os seres vivos do planeta</p><p>sejam conhecidos; sabemos que todos os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios (princípio</p><p>compartilhado), ainda que novos vírus surjam e tornem-se alvo da preocupação humana; evidenciamos</p><p>que ácidos nucleicos são a base da informação genética dos organismos (princípio compartilhado),</p><p>ainda que uma fração singela, diante da vida do planeta, tenha sido sequenciada.</p><p>O desejo de escrever mais e mais sobre pormenores é a maldição da ciência reducionista e a ruína</p><p>daqueles que escrevem livros didáticos destinados a estudantes. Para manter um fio narrativo atrativo</p><p>e a atenção do leitor, as informações serão destiladas com a intenção de extrair tais princípios essenciais,</p><p>enquanto que as descrições de como as informações foram adquiridas serão apresentadas oportunamente.</p><p>Em Biomedicina Interdisciplinar, a visão integrativa entre as disciplinas básicas e clínicas se dará</p><p>no contexto do estudo de algumas doenças selecionadas (virais, bacterianas e parasitárias). Este livro</p><p>está divido em duas unidades: na primeira, veremos as doenças infecciosas transmitidas por vetor,</p><p>enquanto que a segunda apresenta as doenças infectocontagiosas. Em cada capítulo serão percorridos</p><p>10</p><p>aspectos da etiologia e epidemiologia das doenças em questão, bem como as alterações orgânicas e</p><p>suas consequências, finalizando com o diagnóstico e tratamento adequados.</p><p>Para entender as bases do diagnóstico laboratorial e clínico, é necessário compreender a desarmonia</p><p>decorrente do estado patológico e, portanto, conciliar as diferentes disciplinas como peças de um</p><p>complexo quebra-cabeça: alterações bioquímicas, danos na arquitetura tecidual e modulação da</p><p>resposta inflamatória, por exemplo, são decorrência dos agentes invasores e da quebra da homeostase.</p><p>Justamente, tais aspectos são a base de princípios diagnósticos que permitem a correta intervenção</p><p>humana na resolução da doença.</p><p>11</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Unidade I</p><p>1 FUNDAMENTOS DA BIOLOGIA VIRAL</p><p>1.1 Por que estudamos vírus?</p><p>Entre as doenças selecionadas para composição deste volume, algumas são causadas por vírus.</p><p>Convém, portanto, serem retomadas noções gerais da biologia viral, a fim de facilitar a compreensão de</p><p>aspectos intrínsecos de uma doença infecciosa, como decurso da doença, período de transmissibilidade</p><p>e janela diagnóstica, por exemplo. A patogenicidade de um vírus está intimamente associada à</p><p>suscetibilidade de seu hospedeiro, como se o vírus “vivesse” a vida alheia como sua própria (no</p><p>âmbito celular).</p><p>1.1.1 Vírus estão em toda parte</p><p>Há mais de meio século, Salvador E. Luria – laureado com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina</p><p>em 1969, por suas descobertas em relação aos mecanismos de replicação e da estrutura genética em</p><p>vírus – disse que existe uma simplicidade intrínseca da natureza, e a contribuição mais importante da</p><p>ciência residiria na descoberta de generalizações unificadoras e simplificadoras, em vez da descrição</p><p>de situações isoladas; na visualização de padrões gerais simples, em vez da análise de retalhos isolados</p><p>em uma colcha. Uma explosão informacional ocorreu nas ciências da saúde desde os tempos de Luria,</p><p>contudo, sua visão de unidade na diversidade permanece tão relevante quanto outrora.</p><p>Ainda que novos vírus sejam descritos e que doenças virais como a síndrome da imunodeficiência</p><p>adquirida (AIDS, sigla em inglês), hepatite e influenza continuem a desafiar nossos esforços para</p><p>controlá-las, a proposição de Luria permanece válida: mesmo que o nosso conhecimento aumente,</p><p>evidencia-se que todos os vírus seguem as mesmas estratégias simples para perpetuarem-se. Esta</p><p>constatação é resultado de muitos anos de observação, pesquisa e debate científico; a história da virologia</p><p>é rica e altamente instrutiva, pois, ao estudarmos esses agentes, aprendemos mais sobre nós mesmos.</p><p>Vivemos em um mundo viral. A proporção estimada de partículas virais no meio ambiente</p><p>1-2 semanas</p><p>IgM IgGAnticorpos</p><p>6 dias</p><p>(3-11 dias)</p><p>9 dias</p><p>(4-14 dias)</p><p>10 dias</p><p>(2-19 dias)</p><p>Viremia</p><p>Figura 51 – Esquematização do curso temporal da infecção por ZIKV. Os sintomas se desenvolvem, em média, 6 dias</p><p>(intervalo de confiança de 95%, 3 a 11 dias) após a infecção pelo ZIKV. Aproximadamente 9 dias (intervalo de confiança</p><p>de 95%, 4 a 14 dias) após a infecção, os anticorpos começam a aumentar: primeiramente anticorpos IgM, que mais</p><p>tarde diminuirão à medida que os anticorpos IgG aumentam (o comprimento real da persistência de IgM pode ser maior</p><p>que o indicado). A viremia provavelmente começa a aumentar antes que os sintomas apareçam, e a sua magnitude e</p><p>duração definirão o risco de infecção dos mosquitos suscetíveis que picam esse hospedeiro. Em geral, a detecção do RNA</p><p>viral é possível em amostras de sangue coletadas até o quinto dia após o início dos sintomas</p><p>Fonte: Lessler et al. (2016, p. 5).</p><p>100</p><p>Unidade I</p><p>Especial atenção deve ser dada para o aparecimento de quadros neurológicos, tais como a síndrome</p><p>de Guillain-Barré, encefalites, mielites, neurite óptica, entre outros. Durante a epidemia de ZIKV na</p><p>Polinésia Francesa, foram descritos relatos de casos de síndrome de Guillain-Barré associada ao ZIKV,</p><p>caracterizada por paralisia ascendente e polineuropatia. Essa mesma associação também foi relatada no</p><p>Brasil, Colômbia e em outros países nos anos seguintes.</p><p>A síndrome de Guillain-Barré pode ocorrer concomitantemente com a infecção aguda pelo ZIKV</p><p>ou como sua consequência imediata, sugerindo que a desmielinização dos nervos periféricos pode ser</p><p>decorrente de infecção direta de neurônios e células gliais e/ou por ativação de resposta autoimune.</p><p>Os pacientes apresentam fraqueza generalizada, arreflexia e graus variáveis de distúrbios sensoriais e</p><p>de envolvimento dos nervos cranianos. Há formas com acometimento motor e sensitivo, até formas</p><p>exclusivamente sensitivas. O risco aumenta com a idade.</p><p>Vários agentes infecciosos, incluindo o ZIKV, foram apontados como responsáveis pelo</p><p>desenvolvimento de uma doença autoimune. Por exemplo: Campylobacter jejuni, HIV e ZIKV foram todos</p><p>associados à síndrome de Guillain-Barré. O efeito de agentes infecciosos na indução de autoimunidade</p><p>pode ser atribuído a vários mecanismos distintos. Um deles é baseado nas semelhanças entre antígenos</p><p>não próprios e próprios, causando reatividade cruzada (mimetismo molecular).</p><p>Outro possível mecanismo é quando a resposta imune a um patógeno persistente (ou o dano tecidual</p><p>diretamente causado por um patógeno persistente) promove a liberação de autoantígenos que são</p><p>captados por células apresentadoras, iniciando uma resposta autoimune. Um mecanismo semelhante,</p><p>mas distinto, é a “ativação de observadores” (bystander activation), que ocorre por ativação indireta ou</p><p>não específica de células autoimunes em decorrência do ambiente pró-inflamatório.</p><p>Observação</p><p>A Síndrome de Guillain-Barré é uma doença autoimune caracterizada</p><p>por uma neuropatia desmielinizante inflamatória aguda. A função motora é</p><p>usualmente afetada, começando distalmente e progredindo proximalmente</p><p>pelo período de quatro semanas.</p><p>Gestantes infectadas, mesmo as assintomáticas, podem transmitir o vírus ao feto. Essa forma de</p><p>transmissão da infecção pode resultar em aborto espontâneo, óbito fetal ou malformações congênitas. O</p><p>ZIKV causa uma constelação de defeitos fetais e congênitos conhecidos coletivamente como síndrome</p><p>congênita do vírus Zika (SCZ), afetando principalmente o sistema nervoso central, juntamente com</p><p>outros sistemas. As manifestações da SCZ decorrem principalmente da natureza neurotrópica do vírus.</p><p>A SCZ pode ser dividida em lesões estruturais e alterações funcionais relacionadas. As lesões</p><p>estruturais da SCZ são bastante específicas e raramente vistas em outras infecções congênitas:</p><p>microcefalia, crânio colapsado, fechamento prematuro de fontanelas, suturas sobrepostas e pele do</p><p>couro cabeludo excessiva, são exemplos. Outras lesões estruturais incluem calcificações subcorticais,</p><p>diminuição da mielinização, ventriculomegalia, hipoplasia cerebelar, restrição de crescimento intrauterino</p><p>101</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>e distúrbio de migração neuronal. Várias lesões oculares ocorrem em SCZ, incluindo cicatriz macular,</p><p>glaucoma, atrofia do nervo óptico, calcificações intraoculares, microftalmia, anoftalmia e catarata.</p><p>As alterações funcionais decorrentes da SCZ incluem convulsões, deficiência visual, perda auditiva</p><p>e atraso no desenvolvimento. Lesões piramidais e extrapiramidais se manifestam como hipertonia,</p><p>distúrbio de deglutição, anormalidades de movimento (discinesia, distonia), choro impaciente,</p><p>hiperexcitabilidade e distúrbios do sono. A mortalidade neonatal durante a primeira semana de</p><p>vida de bebês nascidos com CZS varia de 4 a 7%.</p><p>2.4.5 Diagnóstico laboratorial</p><p>Com relação a investigações laboratoriais gerais, como o hemograma, muito embora sejam descritas</p><p>algumas alterações, como discreta leucopenia, e, por vezes, rara plaquetopenia, elas não constituem</p><p>dado significativo na exclusão de outras doenças virais. Da mesma forma, as provas de fase aguda, como</p><p>a velocidade de hemossedimentação e a dosagem de proteína C reativa, não podem ser usadas</p><p>como critério diagnóstico isolado.</p><p>Assim, como mencionado para outras doenças causadas por flavivírus (tópicos sobre febre amarela</p><p>e dengue), uma gama de exames específicos diretos e indiretos podem ser empregados para confirmação</p><p>do diagnóstico de infecção por ZIKV. O isolamento viral, a pesquisa do genoma de ZIKV e métodos</p><p>sorológicos são realizados rotineiramente. Algumas limitações, contudo, restringem a aplicação de</p><p>certas abordagens: o isolamento viral demanda vários dias para conclusão (1-2 semanas), enquanto</p><p>reações cruzadas entre flavivírus podem ocorrer em métodos sorológicos.</p><p>A cultura celular pode ser utilizada para isolar o ZIKV, mas laboratórios especializados são</p><p>necessários para esta prática. A reação em cadeia da polimerase com etapa de transcrição reversa</p><p>(RT-PCR) é usada para a confirmação de infecções por ZIKV, enquanto IgM contra ZIKV pode ser</p><p>detectado por ELISA.</p><p>O RT-PCR economiza tempo, é específico e sensível para detectar o ZIKV em soro, em outros fluidos</p><p>biológicos ou em cultura de células. A detecção molecular de ZIKV pode se dar em saliva na fase aguda</p><p>da doença, particularmente em crianças e neonatos, pois o sangue lhes é difícil de coletar. Devido à</p><p>maior persistência do vírus na urina, quando o paciente se encontrar após o 5° dia de doença, a pesquisa</p><p>de ZIKV por RT-PCR pode se dar nesse material. A detecção de IgM anti-ZIKV comumente se dá por</p><p>ELISA (MAC-ELISA), podendo ser necessária confirmação por teste de neutralização por redução de</p><p>placa (PRNT) se os resultados forem ambíguos ou positivos.</p><p>Observação</p><p>Amostras de sangue ou de urina (coletadas até o 5º e 15º dia do início</p><p>dos sintomas, respectivamente) podem ser investigadas para a presença de</p><p>ZIKV por RT-PCR.</p><p>102</p><p>Unidade I</p><p>Em razão da semelhança entre alguns sintomas de dengue, Zika e chikungunya, recomenda-se, em</p><p>caso de suspeita principal de Zika, iniciar a testagem para essa doença por meio de provas diretas, e,</p><p>se não detectável, testar para dengue e depois para chikungunya. Esgotando-se as possibilidades de</p><p>positividade por meio dos métodos diretos, uma nova amostra deve ser coletada após cinco dias</p><p>do início de sintomas (preferencialmente, após 10 dias), para realização de sorologia IgM.</p><p>O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos exige que as amostras com</p><p>resultados de IgM presumivelmente positivos, duvidosos ou inconclusivos para ZIKV sejam confirmadas</p><p>por PRNT. O PRNT é um teste sorológico que se baseia na capacidade de um anticorpo específico</p><p>neutralizar um vírus, por sua vez, evitando que esse agente cause a formação de placas (halos de</p><p>destruição) em uma monocamada de células em cultura.</p><p>Normalmente, o ensaio envolve a mistura de uma quantidade constante de vírus com diluições</p><p>do</p><p>soro a ser testado, seguido por plaqueamento da mistura em células de dada linhagem suscetível e</p><p>permissível ao vírus em estudo. A concentração de unidades formadoras de placas pode ser determinada</p><p>pelo número de placas formadas após alguns dias. Um corante vital (por exemplo, vermelho neutro) é</p><p>então adicionado para a visualização das placas e cálculo da porcentagem de neutralização.</p><p>Atualmente, o teste PRNT é considerado o “padrão ouro” para detectar e medir anticorpos que podem</p><p>neutralizar os vírus que causam muitas doenças. Tem uma sensibilidade maior e é mais específico que</p><p>muitos outros testes sorológicos. Embora o PRNT normalmente forneça maior especificidade para ZIKV</p><p>e outros vírus, os ensaios sorológicos tendem a estar sujeitos à reatividade cruzada, especialmente em</p><p>pacientes com infecção prévia por flavivírus. Além disso, o teste é relativamente complicado e demorado</p><p>(alguns dias), em comparação com abordagens imunoenzimáticas.</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais informações sobre a interpretação dos testes de febre</p><p>Zika, consulte:</p><p>RABE, I. B. et al. Interim Guidance for Interpretation of Zika Virus</p><p>Antibody Test Results. Centers for Disease Control and Prevention, 3 jun.</p><p>2016. Disponível em: https://bit.ly/3gd3a1f. Acesso em: 15 jan. 2021.</p><p>A proteína não estrutural 1 (NS1) também é considerada um importante marcador antigênico de</p><p>ZIKV e de outros flavivírus. As células infectadas secretam NS1 como uma lipoproteína hexamérica que</p><p>interage com as proteínas do sistema complemento, desempenhando modulação do sistema imunológico.</p><p>Sua detecção pode se dar na fase aguda por ELISA, sendo indicativo direto da presença do vírus.</p><p>Lembrete</p><p>As mesmas metodologias apresentadas no tópico 2.2.5 para diagnóstico</p><p>laboratorial de dengue podem ser empregadas para diagnóstico de febre Zika.</p><p>103</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Em suma, dentre os principais exames empregados para o diagnóstico de febre Zika, destacam-se:</p><p>• Exames específicos diretos:</p><p>— pesquisa de vírus (isolamento viral por inoculação em células);</p><p>— pesquisa de genoma viral (RT-PCR);</p><p>— pesquisa de antígeno NS1 (ELISA);</p><p>• Exames específicos indiretos:</p><p>— pesquisa de anticorpos IgM e IgG (ELISA);</p><p>— estudo anatomopatológico post mortem (imuno-histoquímica ou imunofluorescência).</p><p>2.4.6 Tratamento</p><p>Até o presente momento, não existe antiviral específico disponível para o tratamento da infecção</p><p>pelo ZIKV. Como os sintomas são muito semelhantes aos produzidos por DENV e CHIKV, frequentemente</p><p>a conduta clínica é baseada em recomendações estabelecidas para a dengue, bem como na opinião</p><p>de especialistas. Essas recomendações podem estar sujeitas a modificações conforme avanço do</p><p>conhecimento da doença e de seu agente etiológico. No Brasil, as recomendações de tratamento foram</p><p>adaptadas a partir das diretrizes da Organização Panamericana de Saúde.</p><p>Como a infecção pelo ZIKV costuma ser assintomática e o curso clínico dos casos é autolimitado, os</p><p>pacientes geralmente não precisam de tratamento e podem nem mesmo procurar atendimento médico.</p><p>As medidas a seguir se concentram no alívio dos sintomas: descanso relativo enquanto durar a febre;</p><p>uso de mosquiteiros e de repelentes durante a fase sintomática (para evitar contaminação de vetores);</p><p>ingestão adequada de líquidos; paracetamol (em caso de dor ou febre); anti-histamínicos de uso oral</p><p>(clorfeniramina, loratadina) e aliviantes tópicos (calamina) para combate ao prurido; lágrimas artificias para</p><p>alívio da conjuntivite; recomendação de que o paciente consulte um médico imediatamente em caso de</p><p>formigamento ou dormência em braços ou pernas (sinal de complicações neurológicas). Em caso de síndrome</p><p>de Guillain-Barré, recomenda-se plasmaferese e aplicação de imunoglobulinas por via intravenosa.</p><p>Anti-inflamatórios não esteroidais não devem ser usados até que seja descartado o diagnóstico de</p><p>dengue. O ácido acetilsalicílico também é contraindicado na fase aguda pelo risco de síndrome de Reye</p><p>(encefalopatia aguda) em crianças menores de 12 anos.</p><p>2.4.7 Imunização</p><p>Embora ainda não haja descrições específicas para ZIKV, com base na resposta a outros flavivírus,</p><p>deduz-se que uma vez que haja infecção, a imunidade adquirida é permanente.</p><p>104</p><p>Unidade I</p><p>A recente epidemia do ZIKV nas Américas revelou as consequências devastadoras da infecção,</p><p>especialmente em mulheres grávidas. A síndrome congênita do vírus Zika, caracterizada por malformações e</p><p>microcefalia em neonatos, bem como retardo de desenvolvimento em crianças, destaca a necessidade</p><p>da produção de uma vacina segura e eficaz. Várias vacinas candidatas foram desenvolvidas e mostraram</p><p>resultados promissores em modelos animais e em ensaios clínicos de fase I.</p><p>Existem relatos de vacinas de subunidades, vacinas de vírus inativado, vacinas baseadas em vetores</p><p>adenovirais e do sarampo, vacinas de vírus vivos atenuados, além de vacinas de ácidos nucleicos (DNA</p><p>e RNA). No entanto, a disponibilização de uma vacina efetiva em escala comercial ainda é imprevisível,</p><p>principalmente devido à falta de financiamento, aos altos custos financeiros associados a esses estudos e</p><p>aos níveis incertos de lucro para as empresas do setor privado. Parcerias entre instituições governamentais</p><p>e empresas do setor privado devem permitir mais testes clínicos e eventual licenciamento e fabricação</p><p>de vacinas de ZIKV, caso ocorra uma epidemia de ZIKV no futuro.</p><p>3 PROTOZOOSES TRANSMITIDAS POR VETOR – MALÁRIA</p><p>3.1 Breve histórico</p><p>A malária é uma doença infecciosa febril aguda, cujos agentes são protozoários transmitidos</p><p>por vetores. Acreditava-se que era contraída pelo ar contaminado – do italiano mal aria, que</p><p>significa “ar ruim”. A doença ainda é de grande preocupação em toda a África tropical, onde</p><p>ocorrem mais de 80% dos casos e 95% das mortes no mundo. Endêmica em outros lugares, como</p><p>em áreas rurais da Ásia e da América Latina, também ocorre em diversos países geralmente entre</p><p>imigrantes e viajantes internacionais. O grande número de infecções e fatalidades, principalmente</p><p>entre crianças, traz grandes consequências para o desenvolvimento econômico e social de uma</p><p>região endêmica.</p><p>A malária é conhecida desde a Antiguidade e provavelmente originou-se na África, de onde espalhou-se</p><p>pelas áreas tropicais e subtropicais de todo o mundo. Parece certo que essa parasitose tenha existido</p><p>no Egito, pois foram encontradas múmias de mais de 3 mil anos com esplenomegalia característica da</p><p>malária. O papiro de Ebers, datado de 1750 a.C. menciona pacientes com esplenomegalia e febre.</p><p>Na Grécia, a malária é conhecida desde 1000 a.C., sendo a moléstia bem caracterizada pelos</p><p>médicos gregos que descreveram os tipos febris: febre cotidiana, terçã e quartã da doença. Hipócrates</p><p>(314-370 a.C.) descreveu clinicamente a doença, chamando a atenção não só para a esplenomegalia e</p><p>hepatomegalia nela observadas, como também para o fato de a cura do doente corresponder à redução</p><p>do tamanho do baço e do fígado. Em 1874, Meckel mostrou que a cor escura dos órgãos de indivíduos</p><p>mortos de malária era devido a um pigmento, que Virchow demonstrou ser intracelular, no ano seguinte.</p><p>Foi procurando elucidar a origem de tais pigmentos que Laveran, em 1880, fez a maior das descobertas</p><p>na história da malária – a do seu parasita. Observou ele não só corpos esféricos pigmentados, mas</p><p>também crescentes, assim como a formação de flagelo, cuja existência lhe permitiu afirmar a natureza</p><p>animada dos seres que acabara de descobrir.</p><p>105</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Ainda que a descoberta de Laveran fosse a princípio posta em dúvida por pesquisadores italianos,</p><p>como Golgi e seus colaboradores, foram eles que, mais tarde, descreveram o ciclo assexuado do parasita,</p><p>ainda hoje denominado “ciclo de Golgi”, e correlataram as várias formas que aparecem no sangue, com</p><p>as formas clínicas da malária.</p><p>Além dos importantes trabalhos de Golgi, muitas informações surgiram dos trabalhos de outros</p><p>pesquisadores italianos, como Marchiafava, Celli, Grassi, Feletti, Bignami,</p><p>Bastianelli, Sanfelice, entre</p><p>outros. O ciclo esporogônico ainda se mantinha obscuro quando Manson, estudando Wuchereria bancrofti</p><p>– helmintos cujos embriões aparecem na corrente sanguínea e que se desenvolvem em mosquitos do</p><p>gênero Culex, expressou a opinião de que a malária deveria ser transmitida de forma semelhante.</p><p>A teoria da transmissão da malária por mosquitos era de tal modo convincente, que Ross investigou</p><p>esse problema na Índia, demonstrando a evolução completa da malária nos pássaros (Plasmodium</p><p>praecox) e o intermédio de um vetor artrópode, mosquitos Culex fatigans, em seu ciclo de transmissão.</p><p>Ross (1898) observou os primeiros estágios do desenvolvimento dos parasitas da malária humana em</p><p>mosquitos, porém não descreveu o ciclo completo.</p><p>Foram Grossi, Bastianelli e Bignami que tiveram a glória de conseguir, pela primeira vez, o</p><p>desenvolvimento completo das três espécies de parasitas da malária nos anofelinos. Um fato</p><p>importante foi observado por MacCallum (1897), quando, estudando parasitas pigmentados de pássaros</p><p>(Haemoproteus), descobriu a verdadeira função dos “corpos flagelados” e os identificou aos elementos</p><p>masculinos, destinados a fertilizar as células femininas, que então se transformavam em vermículo móvel.</p><p>Uma experiência conduzida por Manson, em setembro de 1900, provou definitivamente o papel dos</p><p>mosquitos no ciclo da malária. Anofelinos infectados com Plasmodium vivax foram enviados de Roma</p><p>para Londres, e o próprio filho e George Warren (um assistente no laboratório) voluntariaram-se para</p><p>serem picados. Ambos nunca haviam sido expostos à malária antes. Alguns dias depois, os dois tiveram</p><p>acessos febris, e os exames repetidos de sangue permitiram encontrar numerosos parasitas da febre</p><p>terçã benigna. Os dois voluntários foram tratados com quinino e recuperaram-se com sucesso.</p><p>Ainda em 1900, Grassi publicou uma importante monografia, descrevendo o ciclo completo dos</p><p>parasitas da malária humana no mosquito Anopheles e sua importância na epidemiologia da doença.</p><p>Entretanto, apenas em 1937 é que James e Tate, trabalhando com Plasmodium gallinaceum, mostraram</p><p>que os esporozoítas introduzidos pelos mosquitos não entram diretamente nos glóbulos vermelhos,</p><p>segundo se acreditava até então. A descoberta de que um ciclo pré-eritrocítico dos plasmódios que</p><p>infectam o ser humano se dava no fígado se deu em 1948, por Short e Garnham.</p><p>3.2 Agente etiológico</p><p>Você sabia que existem cinco espécies de protozoários do gênero Plasmodium que podem causar</p><p>a malária humana? São elas P. falciparum, P. vivax, P. malariae, P. ovale e P. knowlesi. No Brasil, há três</p><p>espécies associadas à malária em seres humanos: P. vivax, P. falciparum e P. malariae. O P. ovale está</p><p>restrito a determinadas regiões do continente africano e a casos importados de malária no Brasil.</p><p>106</p><p>Unidade I</p><p>O P. knowlesi ocorre apenas no Sudeste Asiático e é parasita de macacos, embora casos em seres</p><p>humanos tenham sido registrados. Além de P. knowlesi, existem outras espécies de Plasmodium que</p><p>infectam primatas não humanos e que também podem ser transmitidas a seres humanos, como</p><p>Plasmodium cynomolgi na Ásia e Plasmodium brasilianum e Plasmodium simium nas Américas.</p><p>Alguns, senão a maioria, dos casos autóctones previamente diagnosticados como P. vivax na região</p><p>da Mata Atlântica, provavelmente, foram devidos a P. simium adquiridos por mosquitos infectados de</p><p>macacos, tornando essa parte do Brasil o local de um segundo foco global de malária zoonótica.</p><p>Acredita-se que P. simium deriva ancestralmente de P. vivax, após mudança de hospedeiro recente, de</p><p>seres humanos para macacos.</p><p>Muitas outras espécies de Plasmodium causam malária em vertebrados, incluindo primatas não</p><p>humanos (por exemplo, Plasmodium cynomolgi em macacos e Plasmodium reichenowi em chimpanzés),</p><p>roedores (por exemplo, Plasmodium berghei e Plasmodium yoelli), pássaros (por exemplo, Plasmodium</p><p>gallinaceum, Plasmodium relictum e Plasmodium elongatum) e répteis (por exemplo, Plasmodium mexicanum).</p><p>Das espécies que acometem o ser humano, o próprio homem é o principal reservatório com</p><p>importância epidemiológica. A malária é transmitida ao homem pela picada de mosquitos fêmeas</p><p>do gênero Anopheles infectadas com Plasmodium spp. Durante o repasto sanguíneo, os mosquitos</p><p>infectados injetam – junto com sua saliva anticoagulante – esporozoítos, que são o estágio infeccioso</p><p>e móvel do Plasmodium spp. Os parasitas da malária têm um ciclo de vida complexo marcado por</p><p>rodadas sucessivas de replicação assexuada em vários estágios e tecidos, tanto no hospedeiro vertebrado</p><p>intermediário quanto no inseto hospedeiro definitivo.</p><p>O esporozoíto móvel entra na corrente sanguínea, o que permite que ele chegue ao fígado e, assim,</p><p>escape da imunidade do hospedeiro. Uma vez que os esporozoítos atingem os sinusoides hepáticos, eles</p><p>cruzam a barreira sinusoidal e entram nos hepatócitos, nos quais estabelecem um vacúolo parasitóforo</p><p>e se diferenciam em uma primeira rodada de replicação assexuada.</p><p>Ao longo de dois a vários dias (dependendo da espécie), forma-se um esquizonte pré-eritrocítico</p><p>multinucleado contendo milhares de merozoítos filhos (esquizogonia tecidual primária). Alguns autores</p><p>denominam esta forma no interior do hepatócito de criptozoíta (krypto = oculto), pela dificuldade de</p><p>serem encontradas nessa fase.</p><p>Observação</p><p>Anopheles darlingi é o principal vetor de malária no Brasil, cujo</p><p>comportamento é altamente antropofílico e endofágico (entre as espécies</p><p>brasileiras, é a mais encontrada picando no interior e nas proximidades das</p><p>residências). Ele é encontrado em altas densidades e com ampla distribuição</p><p>no território nacional, exceto no sertão nordestino, no Rio Grande do Sul e</p><p>nas áreas com altitude acima de 1.000 metros.</p><p>107</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Etapa de diagnóstico</p><p>Etapas do mosquito</p><p>Oocistos</p><p>Oocíneto</p><p>Macrogametócitos</p><p>P. falciparum</p><p>Gametócitos Esquizonte</p><p>Gametócitos</p><p>Ciclo eritrocítico</p><p>Etapa de diagnóstico</p><p>Exo-eritrocítico</p><p>Ruptura do esquizonte</p><p>Esquizonte</p><p>Etapas da corrente sanguíneaCiclo esporogónico</p><p>Etapas no fígado humano</p><p>Ruptura dos</p><p>Oocistos</p><p>Libertação dos</p><p>esporozóitos</p><p>Célula do</p><p>fígado</p><p>P. Vivax</p><p>P. ovale</p><p>P. malariae</p><p>Mosquito injeta</p><p>esporozoítos</p><p>Célula do</p><p>fígado</p><p>infectada</p><p>Trofozoíto</p><p>imaturo</p><p>Trofozoíto</p><p>maduro</p><p>Ruptura do</p><p>esquizonte</p><p>Mosquito injeta</p><p>gametócitos</p><p>Microgametócitos</p><p>exflagelados</p><p>Microgameta</p><p>entra na</p><p>macrogameta</p><p>Etapa de infecção</p><p>Figura 52 – Esquematização do ciclo de vida de Plasmodium spp. O ciclo de vida do parasita da malária envolve dois</p><p>hospedeiros. (1) Durante um repasto sanguíneo, uma fêmea do mosquito Anopheles infectada com malária inocula</p><p>esporozoítos no hospedeiro humano, que então se espalham pela corrente sanguínea, alcançam e (2) infectam as</p><p>células do fígado. (3) No interior dos hepatócitos, formam-se esquizontes, que se rompem e (4) liberam merozoítos.</p><p>Em P. vivax e P. ovale um estágio dormente (hipnozoítos) pode persistir no fígado e causar recidivas semanas ou</p><p>mesmo anos depois. Após essa replicação inicial no fígado (esquizogonia exoeritrocítica, letra A), os parasitas sofrem</p><p>multiplicação assexuada nos eritrócitos (esquizogonia eritrocítica, letra B). Os merozoítos infectam os glóbulos</p><p>vermelhos (5). Os trofozoítos em estágio de anel amadurecem em esquizontes, que se rompem liberando merozoítos (6).</p><p>Alguns parasitas se diferenciam em estágios eritrocíticos sexuais (gametócitos, 7). Os parasitas do estágio sanguíneo</p><p>são responsáveis pelas manifestações clínicas da doença</p><p>Disponível em: https://bit.ly/37Ox33h. Acesso em: 12 ago. 2021.</p><p>Algumas espécies de parasitas, como P. vivax e P. ovale, podem entrar em um período de latência</p><p>formando um hipnozoíto não replicante em vez de um esquizonte. Esses hipnozoítos permitem a</p><p>sobrevivência a longo prazo do parasita e podem levar a recidivas.</p><p>Portanto, dentro do hepatócito, um único esporozoíto é capaz de gerar dezenas de milhares de</p><p>merozoítos, que são liberados na corrente</p><p>sanguínea. Os merozoítos são agrupados em vesículas</p><p>ligadas à membrana chamadas merossomos, que são liberadas para o lúmen dos sinusoides hepáticos.</p><p>Os merozoítos invadem os glóbulos vermelhos, nos quais ocorre uma segunda esquizogonia assexuada.</p><p>https://bit.ly/37Ox33h</p><p>108</p><p>Unidade I</p><p>Esse ciclo de replicação assexuada produz até 32 merozoítos ao longo de 24-72 horas (ambos os</p><p>parâmetros quantidade e tempo variam entre as espécies). Por meio de rodadas repetidas de invasão e</p><p>crescimento, o parasita estabelece infecções agudas e, eventualmente, crônicas.</p><p>Algumas espécies, como P. vivax, estão restritas aos reticulócitos, que constituem uma pequena</p><p>fração das hemácias circulantes, limitando assim a parasitemia total. Outros, como P. falciparum, não</p><p>são restritos e podem infectar uma alta proporção de hemácias, levando a uma alta carga parasitária,</p><p>um fator implicado na capacidade do P. falciparum em causar doença grave.</p><p>Figura 53 – Liberação de merozoítos na corrente sanguínea. Merozoítos (verdes) de plasmódio são</p><p>liberados pela formação de vesículas (merossomos), que brotam dos hepatócitos infectados para o</p><p>lúmen sinusoidal</p><p>Disponível em: https://cutt.ly/FQBecOQ. Acesso em: 12 ago. 2021.</p><p>Os trofozoítos eritrocíticos apresentam-se, no interior das hemácias, sob a forma de um anel, com</p><p>um único núcleo e uma massa citoplasmática que circunda um vacúolo digestivo. O crescimento se</p><p>processa às custas da célula: o trofozoíto utiliza-se do oxigênio das hemácias por meio de uma porfirina</p><p>citocrômica férrica. Também utiliza a globina da célula e, assim, os plasmódios dividem a hemoglobina</p><p>em heme e globina. O heme torna-se a hemozoína (ou hematina), que é o pigmento malárico que se</p><p>deposita em forma de grânulos escuros no citoplasma dos parasitas.</p><p>https://cutt.ly/FQBecOQ</p><p>109</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Em seguida, o trofozoíto toma um grande desenvolvimento e começa a divisão, iniciando-se pela</p><p>transformação do núcleo. Essa forma é denominada esquizonte. Desse corpo sólido, com um número</p><p>variável de núcleos conforme a espécie, formam-se novos merozoítas. Pela ruptura do glóbulo vermelho,</p><p>que já se apresentava profundamente alterado, os merozoítas libertam-se no plasma. Estes, agora,</p><p>penetram em novas hemácias e o ciclo se repete. A multiplicação continua em progressão geométrica,</p><p>até que, transcorridas aproximadamente duas semanas (período de incubação), já existe número</p><p>suficiente de parasitas para determinar os sintomas clínicos. Se o desenvolvimento do plasmódio não</p><p>fosse sustado ou diminuído, chegaríamos a um ponto em que cada célula do sangue ficaria parasitada.</p><p>Após fases sucessivas de esquizogonias, aparecem no ciclo evolutivo do parasita as estruturas sexuadas</p><p>do protozoário. O ciclo sexual é iniciado quando uma pequena proporção de parasitas se compromete</p><p>a produzir progênie sexual, isto é, os gametócitos. Os gametócitos maduros podem circular no sangue</p><p>humano por vários dias, o que maximiza sua chance de transmissão aos mosquitos. Poucos minutos</p><p>depois de entrar no intestino do mosquito, os gametócitos masculinos e femininos usam proteases para</p><p>sair das hemácias e se diferenciar em oito microgametas e um macrogameta, respectivamente, que se</p><p>fundem para produzir o zigoto.</p><p>O zigoto se transforma em um oocineto móvel, que atravessa a camada epitelial da parede do</p><p>intestino médio para formar um oocisto. No oocisto, os parasitas passam pelo terceiro ciclo de replicação</p><p>assexuada para produzir milhares de esporozoítos que são liberados na hemolinfa. Os esporozoítos que</p><p>atingem as glândulas salivares do mosquito se fixam e invadem a glândula, onde permanecem até serem</p><p>transmitidos a um novo hospedeiro vertebrado por meio de uma picada do mosquito, reiniciando o ciclo.</p><p>3.3 Morfologia e caracteres diferenciais dos parasitas da malária</p><p>3.3.1 Plasmodium vivax</p><p>O P. vivax causa a forma de malária denominada terçã benigna, pois os acessos febris se mostram</p><p>a cada três dias. Os esporozoítos do P. vivax são organismos fusiformes, alongados e delgados, com</p><p>extremidades afiladas. Medem cerca de 15 µm de comprimento por 1 µm na sua porção mais larga, isto</p><p>é, na região central do seu corpo. O núcleo é central e apresenta a cromatina dividida em dois grânulos.</p><p>O esquizonte pré-eritrocítico aproxima-se da maturidade em cerca de sete dias, com contornos regulares</p><p>e contendo vacúolos, liberando cerca de 12 mil merozoítos.</p><p>Os trofozoítos aparecem a princípio sob forma arredondada, com um disco hialino, que se torna</p><p>ameboide em poucas horas. O núcleo aparece como uma granulação brilhante, cercada de um halo</p><p>claro. O glóbulo vermelho descora-se, vacuoliza-se finamente e aumenta de volume. Desde 2 até 24 horas</p><p>após, o parasita cresce, o citoplasma torna-se mais aparente e se carrega de mais pigmento. Os grãos de</p><p>pigmento apresentam birrefringência acentuada e podem ser postos muito facilmente em evidência,</p><p>pelo emprego de luz polarizada. O trofozoíto toma então as formas mais estranhas, alonga-se,</p><p>desenvolve-se em espiral, em ferradura etc.</p><p>Nos primeiros estágios do desenvolvimento, o parasita aparece como uma pequena massa irregular,</p><p>na qual se cora um grão muito fortemente. O cariossomo e a auréola clara que o cerca formam o núcleo</p><p>110</p><p>Unidade I</p><p>do parasita. Algumas horas após aparece o vacúolo nutritivo; o trofozoíto então toma a forma de anel,</p><p>cujo núcleo ocupa a parte mais delgada. O citoplasma cora-se em azul pelo método de Romanowsky e já</p><p>apresenta prolongamentos ameboides. Não é comum o encontro de eritrócitos com parasitismo múltiplo.</p><p>As hemácias, já aumentadas de volume, mostram granulações, descobertas por Schüffner. Essas</p><p>granulações assemelham-se às do citoplasma de neutrófilos, mais ou menos numerosas, e às vezes</p><p>de tal modo abundantes que mascaram o parasita. Seu aparecimento, forma, tamanho, quantidade e</p><p>distribuição nas hemácias parasitadas varia com a qualidade da amostra de sangue, a espécie e o estágio</p><p>do plasmódio, o pH do diluente, a qualidade do corante, o método e o tempo de coloração.</p><p>Na maioria das preparações de gota espessa, as granulações de Schüffner não aparecem em virtude</p><p>do pH ácido do diluente e menor tempo de coloração. Ao cabo de 16 horas, o parasita ocupa um terço</p><p>do glóbulo vermelho, que se tornou mais pálido e maior que o normal. Depois de 24 horas, o trofozoíta</p><p>já alcança metade da hemácia hipertrofiada, e com 48 horas soma 4/5 do tamanho do glóbulo. Na</p><p>maior parte dos casos, a divisão da cromatina se inicia 12 horas antes do acesso de febre.</p><p>Observação</p><p>A natureza das granulações de Schüffner é ainda desconhecida. São</p><p>grânulos de cor rósea surgidos nas hemácias parasitadas pelo P. vivax e</p><p>P. ovale quando coradas pelos corantes de Romanowski, segundo os</p><p>métodos de Giemsa, Walker/Giemsa, Wright, Maygrunwald/Giemsa e</p><p>Romanowski modificado.</p><p>A evolução dos gametócitos é cerca de duas vezes mais lenta que a dos esquizontes. Na terçã benigna</p><p>os gametócitos se desenvolvem sobretudo no baço, onde são encontrados em grande quantidade e</p><p>em todos os estágios de desenvolvimento, enquanto no sangue circulante só encontramos as formas</p><p>adultas, sobretudo no momento do acesso de febre. Os gametócitos de P. vivax são redondos a ovais</p><p>com pigmento marrom espalhado e podem quase preencher a hemácia.</p><p>Figura 54 – Esfregaço corado pelo método de Giemsa com forma irregular de P. vivax</p><p>Fonte: Brasil (2005, p. 88).</p><p>111</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Figura 55 – Esfregaço corado pelo método de Giemsa com P. vivax. Notar hemácia dilatada com</p><p>numerosas granulações de Schüffner</p><p>Fonte: Brasil (2005, p. 87).</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais imagens das formas sanguíneas de P. vivax, consulte:</p><p>CDC. Laboratory diagnosis of malaria: Plasmodium vivax. Laboratory</p><p>Identification of Parasites of Public Health Concern. [s.d.]. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/3z2cv3A. Acesso em: 18 jan. 2021.</p><p>3.3.2 Plasmodium falciparum</p><p>O P. falciparum causa a forma de malária denominada terçã maligna ou malária tropical, pois o</p><p>parasita completa</p><p>seu ciclo entre 36 e 48 horas. O ritmo da esquizogonia nesta espécie é mais irregular</p><p>do que nas outras. Ainda mais, o P. falciparum difere das outras espécies de plasmódios parasitas</p><p>do homem, uma vez que só são encontrados os trofozoítos (ou “formas em anel”) e os gametócitos</p><p>no sangue periférico. Os glóbulos vermelhos parasitados deixam a circulação periférica antes de se</p><p>formarem os esquizontes e acumulam-se nos capilares das vísceras, onde se processa a esquizogonia.</p><p>Os esporozoítos são muito semelhantes aos de P. vivax, sendo mais delgados e pontudos nas</p><p>extremidades e com porção média mais dilatada. O esquizonte pré-eritrocítico não contém vacúolos,</p><p>alcançando cerca de 60 µm no sexto dia e contendo cerca de 40 mil merozoítos.</p><p>Os trofozoítos jovens de P. falciparum aparecem no glóbulo vermelho como corpúsculos hialinos em</p><p>forma de anel. Comumente são observadas infecções múltiplas da hemácia, e assim podem-se contar</p><p>dois até seis anéis em um único glóbulo. Os trofozoítos crescem e em cerca de 24 horas ocupam mais</p><p>ou menos 1/6 do eritrócito. Menos ativos que os de P. vivax, têm movimentos ameboides, emitindo</p><p>pequenos pseudópodes.</p><p>112</p><p>Unidade I</p><p>Os gametócitos são facilmente diagnosticados devido a sua forma característica de crescente, ou</p><p>de “banana”, ou de “salsicha”. Estes elementos surgem nas hemácias dos capilares viscerais e, em geral,</p><p>só invadem a circulação periférica depois que atingiram seu tamanho normal, geralmente de seis</p><p>a oito dias depois do primeiro acesso febril.</p><p>Figura 56 – Esfregaço corado pelo método de Walker com P. falciparum. Notar a elevada parasitemia</p><p>por trofozoítos e gametócitos</p><p>Fonte: Brasil (2005, p. 86).</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais imagens das formas sanguíneas de P. falciparum, consulte:</p><p>CDC. Laboratory diagnosis of malaria: Plasmodium falciparum.</p><p>Laboratory Identification of Parasites of Public Health Concern. [s.d.].</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3iZbAve. Acesso em: 18 jan. 2021.</p><p>3.3.3 Plasmodium malariae</p><p>O P. malariae causa a forma de malária denominada febre quartã (um dia com febre seguido de três</p><p>dias sem). Os esporozoítos assemelham-se aos de P. falciparum, sendo um pouco mais largos e com</p><p>núcleo mais difuso. Os esquizontes pré-eritrocíticos são esféricos, medindo 36 µm de diâmetro e liberam</p><p>um número bem menor de merozoítos (2.000). A fase pré-eritrocítica difere das de P. falciparum e</p><p>P. vivax porque o hepatócito infectado apresenta dilatação do núcleo e numerosos vacúolos no citoplasma</p><p>periférico. O desenvolvimento desta fase é também mais lento em comparação às outras duas espécies.</p><p>No sangue periférico, os trofozoítos jovens mostram-se como corpúsculos hialinos pequenos, em</p><p>forma de anel e ovoides. Os grânulos de pigmentos são em menor número, porém maiores que os no P. vivax.</p><p>113</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>O trofozoíto médio tem tendência a formar “faixas” (ou “bandas”) equatoriais (Figura 58, esquerda),</p><p>o que faz com que encha o glóbulo. Formatos semelhantes a “cestas” também podem ser observados</p><p>(Figura 58, direita). O esquizonte forma de seis a 12 merozoítos e pigmento malárico, geralmente</p><p>propenso a se aglomerar, forma grumos grosseiros. Os gametócitos são morfologicamente idênticos</p><p>aos de P. vivax, distinguindo-se apenas no tamanho pouco menor e a hemácia parasitada não se</p><p>mostra hipertrofiada.</p><p>Observação</p><p>Em P. malariae, a hemácia parasitada não aumenta e não há granulações</p><p>de Schüffner. As hemácias velhas são preferencialmente invadidas.</p><p>Figura 57 – Esfregaço corado pelo método de Giemsa com P. malariae</p><p>Fonte: Brasil (2005, p. 94).</p><p>Figura 58 – Esfregaço com P. malariae. À esquerda, trofozoíto médio em forma de “faixa”. À direita,</p><p>trofozoíto médio em forma de “cesta”</p><p>Fonte: CDC ([s.d.]c).</p><p>114</p><p>Unidade I</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais imagens das formas sanguíneas de P. malariae, consulte:</p><p>CDC. Laboratory diagnosis of malaria: Plasmodium malariae. Laboratory</p><p>Identification of Parasites of Public Health Concern. [s.d.]. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/3k7xNq2. Acesso em: 18 jan. 2021.</p><p>3.3.4 Plasmodium ovale</p><p>O P. ovale só tem sido diagnosticado com frequência no oeste da África e nas Filipinas. Seus</p><p>esporozoítos são semelhantes aos do P. vivax, medindo, porém, 12 µm de comprimento. Os esquizontes</p><p>teciduais medem cerca de 85 µm (ao 9º dia), com contorno lobado e muito irregular, contendo cerca de</p><p>15 mil merozoítos.</p><p>Quanto à morfologia da espécie, ela difere de todos os outros plasmódios parasitas de mamíferos</p><p>devido ao tamanho muito grande de merozoítos e de seus núcleos, medindo pouco mais de 3 µm (veja</p><p>na figura a seguir). Os trofozoítos jovens podem parecer-se com os de P. vivax ou P. malariae. Quando</p><p>maduro, apresenta-se redondo, com massa de cromatina de tamanho variável e pigmento malárico</p><p>escuro, porém mais claro que o de P. vivax e P. malariae.</p><p>Os esquizontes eritrocíticos são menores do que as hemácias e o merócito contém de 6 a 12 merozoítas.</p><p>O pigmento é granuloso, castanho, semelhante ao do P. malariae. Os gametócitos são ovais e menores</p><p>que os glóbulos vermelhos. As hemácias tornam-se ovaladas e aumentadas, porém não tanto como nas</p><p>infecções por P. vivax. Suas margens apresentam-se denteadas e todos os glóbulos parasitados, mesmo</p><p>nos estágios mais jovens do parasita, contêm granulações de Schüffner.</p><p>115</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Figura 59 – Esfregaço com P. ovale. À esquerda acima, trofozoíto jovem em forma de anel.</p><p>À direita acima, trofozoíto médio em hemácia denteada. À esquerda abaixo, esquizonte eritrocítico.</p><p>À direita abaixo, gametócito</p><p>Fonte: CDC ([s.d.]d).</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais imagens das formas sanguíneas de P. ovale, consulte:</p><p>CDC. Laboratory diagnosis of malaria: Plasmodium ovale. Laboratory</p><p>Identification of Parasites of Public Health Concern. [s.d.]. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/37WlBCO. Acesso em: 18 jan. 2021.</p><p>3.4 Aspectos epidemiológicos</p><p>A malária ainda é um problema de saúde pública em todo o mundo, sendo a causa de consideráveis</p><p>perdas sociais e econômicas das populações sob risco, principalmente daquelas que vivem em condições</p><p>precárias de habitação e saneamento.</p><p>116</p><p>Unidade I</p><p>Segundo a Organização Mundial da Saúde, havia uma estimativa de 229 milhões de casos de</p><p>malária globalmente, em 2019, em 87 países endêmicos para a doença. Em 2015, a estimativa era de 218</p><p>milhões de casos. A incidência de casos de malária (ou seja, casos por mil habitantes em risco) reduziu</p><p>de 80 em 2000 para 58 em 2015 e 57 em 2019 em todo o mundo. Entre 2000 e 2015, a incidência</p><p>global de casos de malária diminuiu 27% e, entre 2015 e 2019, diminuiu menos de 2%, indicando uma</p><p>desaceleração da taxa de declínio desde 2015.</p><p>Vinte e nove países foram responsáveis por 95% dos casos de malária em todo o mundo. Nigéria</p><p>(27%), República Democrática do Congo (12%), Uganda (5%), Moçambique (4%) e Níger (3%) foram</p><p>responsáveis por cerca de 51% de todos os casos globalmente.</p><p>P. falciparum e P. vivax são as espécies predominantes em todo o mundo. A grande maioria da malária</p><p>decorrente de P. falciparum ocorre na África Subsaariana (aproximadamente 190 milhões de casos/ano),</p><p>onde a transmissão permanece intensa em muitos locais, embora haja uma variação considerável na</p><p>incidência dentro e entre os países. A malária causada por P. vivax é muito menos comum nessa região</p><p>porque há predomínio de indivíduos com antígeno Duffy negativo na população.</p><p>Observação</p><p>O processo de invasão dos eritrócitos pelos plasmódios é complexo, sendo</p><p>mediado por interações moleculares específicas do tipo ligante receptor.</p><p>No caso do P. vivax, a invasão é altamente dependente do antígeno de</p><p>grupo sanguíneo Duffy (DARC), presente na superfície dos eritrócitos, que</p><p>interage com uma proteína do parasito, a Duffy binding protein (PvDBP).</p><p>Na Ásia e na Oceania, os números de casos de malária são geralmente menores e as proporções</p><p>causadas por P. vivax e P. falciparum são semelhantes, enquanto nas Américas, os casos de malária por</p><p>P. vivax excedem os por P. falciparum em</p><p>mais de duas vezes. P. malariae e P. ovale têm uma distribuição</p><p>global, mas a incidência é baixa, com P. ovale encontrado principalmente na África e no sudeste da Ásia.</p><p>Na Malásia, há alta carga de malária causada por P. knowlesi, cujos hospedeiros naturais são</p><p>macacos. Lá, os casos haviam sido inicialmente diagnosticados como P. malariae devido às semelhanças</p><p>morfológicas quando examinadas por microscopia de luz. A verdadeira carga global da doença é</p><p>desconhecida; entretanto, esse tipo de malária é predominantemente uma zoonose. Podem ocorrer</p><p>infecções humanas por outras malárias símias, como Plasmodium cynomolgi e Plasmodium simium.</p><p>Eles são considerados eventos raros, com a ressalva de que o exame microscópico de rotina pode falhar</p><p>em distingui-los das espécies mais comuns.</p><p>O primeiro Programa Global de Erradicação da Malária da Organização Mundial da Saúde</p><p>(1955-1972) envolveu, além dos tratamentos à base de cloroquina, campanhas com uso de inseticidas</p><p>em grande escala, usando diclorodifeniltricloroetano (DDT). Essa estratégia foi bastante eficaz contra</p><p>P. falciparum; embora os mosquitos repovoassem gradualmente as áreas tratadas com DDT (porque</p><p>desenvolveram resistência ao inseticida e o uso do DDT em si diminuiu devido aos seus custos e às</p><p>117</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>crescentes preocupações ambientais), essas áreas, muitas vezes, permaneceram livres da malária e em</p><p>alguns casos ainda estão.</p><p>Abordagens mais seletivas de controle de vetores, como o uso de mosquiteiros tratados com</p><p>inseticida e pulverização no interior de residências, eliminaram a malária em várias áreas. No</p><p>entanto, a resistência do mosquito aos inseticidas é uma preocupação crescente. Dos 78 países</p><p>que monitoram a resistência do mosquito a inseticidas, 60 relataram resistência a um ou mais</p><p>inseticidas desde 2010.</p><p>No Brasil, a grande extensão geográfica da área endêmica e as condições climáticas favorecem o</p><p>desenvolvimento dos transmissores e agentes causais da malária pelas espécies de P. vivax, P. falciparum</p><p>e P. malariae (este último com menor frequência). Especialmente na Amazônia Legal, a transmissão</p><p>é instável e geralmente focal, alcançando picos principalmente após o período chuvoso do ano.</p><p>O quadro epidemiológico da malária no Brasil é preocupante. Embora em progressivo declínio entre</p><p>2007 e 2016, os casos de malária no Brasil apresentaram expressivo acréscimo em 2017 (Figura 60).</p><p>Em 2018, o país registrou 187.736 casos notificados de malária. Já em 2019 e em 2020 foram 153.270</p><p>e 129.915, respectivamente.</p><p>Do total de casos reportados, mais de 99% foram transmitidos nos estados da Amazônia Legal</p><p>(Figura 61), sendo P. vivax a espécie causadora de quase 90% dos casos. No entanto, a transmissão do</p><p>P. falciparum, sabidamente responsável pela forma grave e letal da doença, tem apresentado redução</p><p>importante nos últimos anos. Além disso, a frequência de internações por malária no Brasil também vem</p><p>mostrando declínio.</p><p>19</p><p>59</p><p>19</p><p>60</p><p>19</p><p>61</p><p>19</p><p>62</p><p>19</p><p>63</p><p>19</p><p>64</p><p>19</p><p>65</p><p>19</p><p>66</p><p>19</p><p>67</p><p>19</p><p>68</p><p>19</p><p>69</p><p>19</p><p>70</p><p>19</p><p>71</p><p>19</p><p>72</p><p>19</p><p>73</p><p>19</p><p>74</p><p>19</p><p>75</p><p>19</p><p>76</p><p>19</p><p>77</p><p>19</p><p>78</p><p>19</p><p>79</p><p>19</p><p>80</p><p>19</p><p>81</p><p>19</p><p>82</p><p>19</p><p>83</p><p>19</p><p>84</p><p>19</p><p>85</p><p>19</p><p>86</p><p>19</p><p>87</p><p>19</p><p>88</p><p>19</p><p>89</p><p>19</p><p>90</p><p>19</p><p>91</p><p>19</p><p>92</p><p>19</p><p>93</p><p>19</p><p>94</p><p>19</p><p>95</p><p>19</p><p>96</p><p>19</p><p>97</p><p>19</p><p>98</p><p>19</p><p>99</p><p>20</p><p>00</p><p>20</p><p>01</p><p>20</p><p>02</p><p>20</p><p>03</p><p>20</p><p>04</p><p>20</p><p>05</p><p>20</p><p>06</p><p>20</p><p>07</p><p>20</p><p>08</p><p>20</p><p>09</p><p>20</p><p>10</p><p>20</p><p>11</p><p>20</p><p>12</p><p>20</p><p>13</p><p>20</p><p>14</p><p>20</p><p>15</p><p>20</p><p>16</p><p>20</p><p>17</p><p>20</p><p>18</p><p>20</p><p>19</p><p>100.000</p><p>200.000</p><p>300.000</p><p>400.000</p><p>P. vivax P. falciparum</p><p>Total de casos</p><p>500.000</p><p>600.000</p><p>700.000</p><p>N</p><p>úm</p><p>er</p><p>o</p><p>de</p><p>c</p><p>as</p><p>os</p><p>0</p><p>Figura 60 – Série histórica de casos de malária notificados no Brasil, 1959 a 2019</p><p>Fonte: Brasil (2020, p. 12).</p><p>118</p><p>Unidade I</p><p>2019 e 2020</p><p>Apenas 2019</p><p>Apenas 2020</p><p>Municípios prioritários</p><p>Figura 61 – Mapa de municípios prioritários para malária no Brasil em 2019 e janeiro a junho de 2020.</p><p>A área de risco em função da incidência parasitária anual, entretanto, engloba regiões mais amplas</p><p>em todos os estados destacados</p><p>Fonte: Brasil (2020, p. 12).</p><p>3.5 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas</p><p>As perturbações patológicas na malária se iniciam quando os plasmódios invadem o organismo</p><p>e se multiplicam dentro das hemácias. As esquizogonias parasitárias nos eritrócitos terminam com a</p><p>destruição dos glóbulos vermelhos e com a liberação de merozoítas no plasma, pigmento malárico,</p><p>restos de hemácias, hemoglobina, entre outros elementos. Os sintomas são devidos, em grande parte,</p><p>aos ciclos assexuados dos parasitas nas hemácias.</p><p>Os períodos de incubação são normalmente de 10–14 dias para P. falciparum ou P. knowlesi,</p><p>2-3 semanas para P. vivax e P. ovale e 18 dias ou mais para P. malariae; no entanto, há variação – por exemplo,</p><p>algumas cepas de P. vivax têm um período de incubação primária de 3-6 meses. Os relatos clássicos descrevem</p><p>picos de febre periódicos em intervalos correspondentes à duração do ciclo eritrocítico das espécies infectantes</p><p>(48 horas para P. falciparum, P. vivax, ou P. ovale e 72 horas para P. malariae), resultante da sincronização</p><p>de estágios de desenvolvimento, mas agora esses padrões são raramente observados.</p><p>Os sintomas da malária envolvem a clássica tríade febre, calafrio e dor de cabeça. Sintomas gerais</p><p>– como mal-estar, dor muscular, sudorese, náusea e tontura – podem preceder ou acompanhar a tríade</p><p>119</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>sintomática. Contudo, esse quadro clássico pode ser alterado pelo uso de medicamentos profiláticos ou</p><p>aquisição de imunidade, e muitos desses sintomas podem ou não estar presentes e até mesmo todos</p><p>podem estar ausentes. Nos casos complicados, podem ainda ocorrer dor abdominal forte, sonolência e</p><p>redução da consciência – podendo levar ao coma nos casos de malária cerebral.</p><p>Observação</p><p>A ausência de parâmetros clínicos específicos que permitam confirmar</p><p>a infecção justifica a necessidade de métodos laboratoriais para o</p><p>diagnóstico da malária.</p><p>P. falciparum tem um comportamento único entre os plasmódios, pois os eritrócitos contendo</p><p>parasitas maduros deixam a circulação periférica e acumulam-se nos capilares das vísceras, onde se</p><p>processa a esquizogonia, evitando a eliminação do parasita pelo baço, mas causando lesão em células</p><p>endoteliais e obstrução microvascular. A citoaderência é mediada por proteínas de P. falciparum</p><p>(PfEMP1) expostas na superfície do eritrócito infectado. Subtipos de PfEMP1 ligam-se a diferentes</p><p>receptores endoteliais. Os eritrócitos infectados também se ligam às células não infectadas, exacerbando</p><p>a obstrução microvascular.</p><p>O efeito clínico da sobrecarga hemática e da disfunção endotelial associada depende do(s) órgão(s)</p><p>envolvido(s). No cérebro, contribui para o coma, nos pulmões predispõe à insuficiência respiratória e,</p><p>em mulheres grávidas, o sequestro no espaço interviloso da placenta leva à malária placentária com</p><p>consequências de anemia materna, baixo peso ao nascer, parto prematuro e aumento do risco de aborto</p><p>e natimorto. Os efeitos sobre gestantes são mais graves em mulheres primigestas.</p><p>Você sabia que a queda do número de eritrócitos por hemólise e a intensa remoção de hemácias</p><p>pelo baço levam à anemia? Além disso, há anoxemia generalizada, que se torna mais grave pelo fato de</p><p>o parasita não só utilizar-se do oxigênio, mas ainda dividir continuamente a hemoglobina em heme e</p><p>globina, na hemácia infectada. Também há supressão da medula óssea e diseritropoiese.</p><p>A localização dos parasitas no fígado, baço e medula óssea é devida à ação fagocitária das células</p><p>que revestem os seios venosos desses órgãos e dos tecidos que os cercam. Na malária benigna, tais</p><p>macrófagos se abarrotam de parasitas e de pigmento, podendo mesmo tornar o sangue livre das</p><p>hemácias parasitadas. Já na malária maligna, tal fagocitose é menos ativa e a multiplicação dos parasitas</p><p>progride até o êxito letal. Devido às localizações relativas dos parasitas nos órgãos citados, a hipertrofia,</p><p>a hiperplasia e a pigmentação do baço, fígado e medula óssea são feições características e constantes</p><p>da anatomia patológica.</p><p>A forma grave de malária (P. falciparum) tem critérios diagnósticos específicos. Para uma avaliação</p><p>clínica rápida, é usada uma pequena lista de sinais de perigo, que inclui prostração, respiração profunda</p><p>rápida (refletindo a acidose subjacente) e comprometimento da consciência.</p><p>As manifestações mais comuns de malária grave são: malária cerebral; lesão pulmonar aguda, que</p><p>pode progredir para síndrome do desconforto respiratório agudo (em até 25% dos casos); lesão renal</p><p>aguda, geralmente apresentando-se como necrose tubular aguda, e acidose. O ácido láctico predomina,</p><p>120</p><p>Unidade I</p><p>mas outros ácidos foram identificados em adultos com malária grave, incluindo ácido hidroxifenilático</p><p>e ácidos α-hidroxibutírico e β-hidroxibutírico. Crianças comumente apresentam anemia grave. Outras</p><p>diferenças na apresentação da doença em crianças em comparação com adultos são convulsões mais</p><p>frequentes (em 60-80%), hipoglicemia e sepse concomitante, enquanto edema pulmonar e insuficiência</p><p>renal são menos frequentes.</p><p>A taxa de letalidade da malária cerebral tratada varia entre 10-20% e pode chegar a 50% em</p><p>mulheres grávidas. Exames de imagem geralmente mostram algumas evidências de edema cerebral, mas</p><p>isso é menos proeminente em adultos do que em crianças, nos quais o edema cerebral está fortemente</p><p>associado a um desfecho fatal.</p><p>Dois padrões de lesão renal aguda são descritos na malária: um em pacientes com malária grave</p><p>com falência múltipla dos órgãos e o segundo em pacientes que foram tratados com sucesso e não têm</p><p>evidência de envolvimento de outros órgãos. A síndrome nefrótica possivelmente resulta da deposição</p><p>de imunocomplexos, complemento e antígenos parasitários livres na membrana basal glomerular.</p><p>A trombocitopenia frequente na fase aguda das infecções maláricas possivelmente resulta do</p><p>consumo de plaquetas no processo de coagulação intravascular disseminada, havendo evidências</p><p>indiretas de fibrinólise quando o número de plaquetas é baixo. Os mecanismos especulados que levam à</p><p>trombocitopenia são: distúrbios de coagulação, esplenomegalia, alterações da medula óssea, destruição</p><p>plaquetária mediada por anticorpos, estresse oxidativo e o papel das plaquetas como cofatores no</p><p>desencadeamento da malária grave.</p><p>3.6 Diagnóstico laboratorial</p><p>A associação de critérios clínicos e epidemiológicos é muito importante para a suspeição da doença,</p><p>isto é, a presença de sintomatologia geral em paciente procedente de área sabidamente malarígena</p><p>obrigatoriamente indica a solicitação do exame laboratorial confirmatório da infecção.</p><p>Confirmar a presença de parasitas em todos os casos de malária garante o tratamento antimalárico</p><p>adequado e aponta para outras doenças em casos negativos. O padrão ouro para o diagnóstico da</p><p>malária continua sendo a microscopia óptica de esfregaços de sangue corados. O exame microscópico</p><p>do sangue pode ser feito em esfregaço delgado (distendido) ou espesso (gota espessa). A gota espessa</p><p>é corada pela técnica de Walker (azul de metileno e Giemsa) e o esfregaço delgado é corado pelo</p><p>Giemsa, após fixação com álcool metílico.</p><p>Além do baixo custo, ambas permitem identificar, com facilidade e precisão, a espécie do plasmódio</p><p>(ver tópico 3.3). Esses métodos também possibilitam quantificar a intensidade do parasitismo, mediante</p><p>a determinação da parasitemia por volume (µl ou mm3) de sangue. Na prática, o método da gota</p><p>espessa é o mais utilizado, uma vez que a concentração do sangue por campo microscópico favorece o</p><p>encontro do parasito.</p><p>Nos últimos anos, métodos alternativos e/ou complementares ao exame da gota espessa têm</p><p>sido disponibilizados. Testes rápidos imunocromatográficos agora predominam como investigação de</p><p>primeira linha em áreas endêmicas. Um teste rápido para P. falciparum baseado em um antígeno que</p><p>lhe é altamente expresso (PfHRP2) é bastante usado na África; o paciente pode permanecer positivo por</p><p>121</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>várias semanas após a eliminação do parasita por causa da persistência dos antígenos em eritrócitos</p><p>(uma vez infectados).</p><p>Em outros lugares, os testes rápidos incorporam mais tiras reativas, uma para a detecção de PfHRP2</p><p>de P. falciparum e outra tira para a lactato desidrogenase, enzima de todas as malárias humanas, embora</p><p>seja relativamente insensível para o diagnóstico de P. knowlesi. Na América Latina, as deleções do gene</p><p>HRP2 em P. falciparum significam que os testes baseados no PfHRP2 não são confiáveis e estão surgindo</p><p>evidências de que o problema pode se estender à África. Parasitemias por P. falciparum muito altas</p><p>também podem produzir resultados negativos devido ao efeito pró-zona.</p><p>A coloração rápida por laranja de acridina, um fluorocromo que se liga em ácidos nucleicos, foi</p><p>extensivamente estudada como uma abordagem alternativa para a coloração de Giemsa, visto que</p><p>permitiria a marcação de hemácias parasitadas facilmente. Muitas variações de protocolos de coloração</p><p>com este fluorocromo foram tentadas ao longo do último meio século. Mesmo em publicações recentes,</p><p>há vários protocolos diversos com diferentes concentrações de laranja de acridina.</p><p>No entanto, dois problemas restringem a aplicação da coloração com este fluorocromo para o diagnóstico</p><p>da malária em países endêmicos. O primeiro deles é a necessidade de um microscópio de fluorescência,</p><p>que é muito caro para a maioria dos países onde a malária é endêmica. O segundo é a inconsistência de</p><p>coloração com laranja de acridina. O primeiro problema pode ser parcialmente resolvido modificando</p><p>um microscópio convencional, trocando-lhe a lâmpada por uma de halogênio ou de LED. A correção do</p><p>segundo problema demanda padronização da coloração de esfregaços, bem como a condução destes com</p><p>espessura adequada – algo que pode ser subótimo em pesquisas de campo em locais endêmicos.</p><p>Testes sorológicos não são recomendados no diagnóstico agudo da malária, mas podem ser</p><p>úteis em outras circunstâncias. Isso inclui o diagnóstico retrospectivo da malária em um indivíduo</p><p>anteriormente não imune, a triagem para malária crônica e a triagem em banco de sangue de</p><p>potenciais doadores. A resposta sorológica de IgG é rápida e, geralmente, ocorre dentro de uma semana</p><p>do início da parasitemia.</p><p>Os anticorpos começam a diminuir após aproximadamente um mês e persistem por vários meses a</p><p>anos. Testes de imunofluorescência indireta para anticorpos anti-malária têm sido considerados confiáveis</p><p>nas últimas décadas. Embora o método seja altamente sensível e específico, por outro lado, é demorado</p><p>e subjetivo. Ensaios imunoenzimáticos para a malária também se tornaram disponíveis comercialmente.</p><p>Vários estudos validaram o uso de testes de ELISA em triagens de bancos de sangue na Europa e Austrália.</p><p>As técnicas moleculares mais utilizadas para o diagnóstico da malária são o PCR convencional,</p><p>Nested PCR, e o PCR em tempo real. O custo elevado de reagentes e equipamentos, além da falta de</p><p>infraestrutura e de falta de mão de obra especializada restringem o uso dessas técnicas aos laboratórios</p><p>de referência.</p><p>3.7 Tratamento</p><p>Os medicamentos antimaláricos são disponibilizados gratuitamente em todo o território nacional,</p><p>em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS). O diagnóstico oportuno, seguido imediatamente de</p><p>122</p><p>Unidade I</p><p>tratamento correto, é o meio mais efetivo para interromper a cadeia de transmissão e reduzir a gravidade</p><p>e a letalidade da malária.</p><p>O tratamento da malária visa atingir o parasito em pontos-chave de seu ciclo evolutivo, os quais</p><p>podem ser didaticamente resumidos em:</p><p>A) interrupção da esquizogonia sanguínea, responsável pela patogenia e manifestações clínicas</p><p>da infecção;</p><p>B) destruição de formas latentes do parasito no ciclo tecidual (hipnozoítos) das espécies P. vivax e</p><p>P. ovale, evitando assim as recidivas tardias;</p><p>C) interrupção da transmissão do parasito, pelo uso de fármacos que impedem o desenvolvimento</p><p>de formas sexuadas dos parasitos (gametócitos).</p><p>Para atingir esses objetivos, diversos fármacos são utilizados, cada</p><p>um deles agindo de forma</p><p>específica, tentando impedir o desenvolvimento do parasito no hospedeiro.</p><p>Para tratamento de malária não complicada decorrente das infecções por P. vivax ou P. ovale,</p><p>recomenda-se cloroquina em três dias e primaquina em sete dias (esquema curto) ou 14 dias (esquema</p><p>longo). Gestantes e crianças com menos de 6 meses não podem usar primaquina. Para tais pacientes,</p><p>bem como para aqueles com malária confirmada de P. malarie (independentemente da idade e de</p><p>ser ou não gestante), emprega-se apenas cloroquina. Outros fármacos foram descobertos por conta</p><p>de parasitas resistentes à cloroquina, como mefloquina, malarone, quinino, halofantrina e artemisina.</p><p>Para tratamento de malária decorrente de P. falciparum recomenda-se a combinação de arteméter e</p><p>lumefantrina em três dias ou ainda outros protocolos com combinação de medicamentos.</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais informações sobre o tratamento da malária, consulte:</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde.</p><p>Departamento de Vigilância Epidemiológica. Guia prático de tratamento</p><p>da malária no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/3mfxFrq. Acesso em: 13 ago. 2021.</p><p>3.8 Imunização e proteção natural</p><p>Em áreas com alta transmissão de P. falciparum (a maior parte da África ao sul do Saara), os</p><p>recém-nascidos serão protegidos durante os primeiros meses de vida, presumivelmente por anticorpos</p><p>maternos transferidos para eles através da placenta. Como esses anticorpos diminuem com o tempo,</p><p>essas crianças tornam-se vulneráveis à malária.</p><p>https://bit.ly/3mfxFrq</p><p>123</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>A imunidade adquirida naturalmente contra a malária decorrente de P. falciparum protege milhões</p><p>de pessoas de doenças graves e morte. Não há um conceito claro sobre como essa proteção funciona.</p><p>Não há um acordo geral sobre a taxa de início da imunidade adquirida ou o que constitui os principais</p><p>determinantes da proteção; muito menos há consenso quanto ao(s) mecanismo(s) de proteção. Se</p><p>sobreviverem a infecções repetidas até uma idade mais avançada (2-5 anos), as crianças terão alcançado</p><p>um estado de proteção imune.</p><p>Assim, em áreas de alta transmissão, as crianças pequenas são um grupo de maior risco e são alvo</p><p>preferencialmente de intervenções de controle da malária. Em áreas com transmissão mais baixa (como</p><p>Ásia e América Latina), as infecções são menos frequentes e uma proporção maior de crianças mais</p><p>velhas e adultos não tem imunidade protetora. Nessas áreas, a malária pode ser encontrada em todas as</p><p>faixas etárias e podem ocorrer epidemias.</p><p>As características biológicas presentes desde o nascimento podem proteger contra certos tipos de</p><p>malária. Dois fatores genéticos, ambos associados aos glóbulos vermelhos humanos, demonstraram</p><p>ser epidemiologicamente importantes. Pessoas com o traço falciforme (heterozigotos para o gene</p><p>anormal da hemoglobina HbS) são relativamente protegidas contra a malária causada por P. falciparum</p><p>e, portanto, desfrutam de uma vantagem biológica.</p><p>Como a malária grave tem sido uma das principais causas de morte na África desde tempos remotos,</p><p>o traço falciforme agora é mais frequentemente encontrado por lá e em pessoas de ascendência</p><p>africana do que em outros grupos populacionais. Em geral, a prevalência de distúrbios relacionados</p><p>à hemoglobina e outras discrasias das células sanguíneas, como a hemoglobina C, as talassemias e a</p><p>deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD), são mais prevalentes em áreas endêmicas de</p><p>malária e acredita-se que forneçam proteção contra a doença.</p><p>Uma vacina de primeira geração conhecida como RTS,S/AS01 (RTS,S) foi desenvolvida contra</p><p>o P. falciparum. A vacina é a primeira e única a reduzir os casos de malária em crianças pequenas</p><p>na África, a população mais afetada pela doença. Testes clínicos rigorosos em sete países africanos</p><p>mostraram seu potencial para impulsionar a prevenção da malária e salvar vidas.</p><p>O Programa de Implementação de Vacinas da Malária foi estabelecido pela Organização Mundial</p><p>da Saúde para coordenar e apoiar a introdução da vacina em áreas selecionadas da África por meio da</p><p>imunização de rotina. O Programa avaliará o impacto da vacina na saúde pública e informará sobre sua</p><p>implantação potencial em uma escala mais ampla.</p><p>4 PROTOZOOSES TRANSMITIDAS POR VETOR – LEISHMANIOSE</p><p>4.1 Breve histórico</p><p>O primeiro observador que viu os parasitas pertencentes ao gênero Leishmania foi Cunningham</p><p>(1885), na Índia, em casos de calazar. Posteriormente (1898), o cientista russo Borovsky descreveu com</p><p>detalhes estes parasitas em casos de leishmaniose cutânea, sem lhes dar nome ou estabelecer posição</p><p>sistemática. Em 1903, Donovan descreveu-os com detalhes em casos de calazar.</p><p>124</p><p>Unidade I</p><p>A leishmaniose é causada por várias espécies de protozoários da ordem Kinetoplastida, família</p><p>Trypanosomatidae e gênero Leishmania, que afetam humanos e muitos animais. Esse parasita é endêmico</p><p>em pelo menos 98 países e aproximadamente de 0,2 a 0,4 e de 0,7 a 1,3 milhões de novos casos de</p><p>leishmaniose visceral e leishmaniose tegumentar ocorrem todos os anos, respectivamente.</p><p>A leishmaniose visceral é a forma mais grave da doença e ataca os órgãos internos. Quando não tratada,</p><p>essa forma de leishmaniose é fatal em até dois anos. A leishmaniose tegumentar é a forma mais comum</p><p>da doença. Causa úlceras na face, braços e pernas. E embora as úlceras cicatrizem espontaneamente,</p><p>causam graves incapacidades e deixam cicatrizes desfigurantes permanentes. Discriminação, estigma e</p><p>condições de vida abaixo do padrão estão associados à leishmaniose tegumentar.</p><p>Admite-se que a leishmaniose tegumentar seja moléstia autóctone do continente americano.</p><p>Os índios ceramistas pré-colombianos do Peru representaram em seus vasos numerosos estados</p><p>patológicos, de modo que se identificam nesses huacos diversas enfermidades. No Brasil, existem</p><p>relatos da moléstia da pele, em 1855. Em 1895, há descrição por pesquisadores italianos, a partir</p><p>de colonos que voltavam à pátria vindos de São Paulo. Em 1908, começaram a afluir à Santa Casa de</p><p>São Paulo numerosos doentes vindos das regiões associadas.</p><p>A moléstia recebia diversas denominações (úlcera de Bauru, ferida das bravas, úlceras da noroeste etc.)</p><p>sem se saber a sua causa etiológica. Foi quando, em 30 de março de 1909, Adolfo Lindenberg noticiou a</p><p>descoberta do parasita da úlcera de Bauru, que ele identificou ser o mesmo agente causal do botão do</p><p>Oriente. Em 1911, técnicas de cultura apropriadas (meio NNN) permitiram o isolamento e proliferação</p><p>das leishmanias encontradas nas úlceras de pacientes.</p><p>Figura 62 – Huaco exibindo mutilação do nariz e lábio superior,</p><p>lesões sugestivas de leishmaniose tegumentar</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3y3gBaa. Acesso em: 13 ago. 2021.</p><p>A ideia de que a leishmaniose cutânea fosse transmitida por insetos picadores do homem do</p><p>gênero Phlebotomus foi aventada pela primeira vez em 1905 por Sergent e Sergent. Em 1912, o genial</p><p>Gaspar Vianna descobriu a ação específica do tártaro emético que constituiu, durante muitos anos, o</p><p>maior passo na luta contra essa parasitose, e ainda abriu novos horizontes no campo terapêutico das</p><p>leishmanioses em geral.</p><p>https://bit.ly/3y3gBaa</p><p>125</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>4.2 Agente etiológico</p><p>As leishmanioses são doenças parasitárias transmitidas por vetores causadas por protozoários</p><p>pertencentes à família Trypanosomatidae, gênero Leishmania (pelo menos 20 espécies distintas) e são</p><p>transmitidas entre hospedeiros mamíferos por flebotomíneos fêmeas. A leishmaniose é principalmente</p><p>zoonótica, com exceção de Leishmania donovani e Leishmania tropica, embora haja algumas evidências</p><p>de que existem reservatórios animais para ambas as espécies na África e na Ásia.</p><p>Espécies distintas de Leishmania causam manifestações clínicas diferentes, variando em gravidade</p><p>de lesões cutâneas autocuráveis a doença visceral com risco de vida. A leishmaniose visceral é causada</p><p>principalmente por Leishmania</p><p>(Leishmania) donovani na Ásia e África; nas Américas, a Leishmania</p><p>(Leishmania) chagasi é a espécie comumente envolvida. Esta forma da doença sistêmica é mais grave</p><p>e geralmente fatal (> 90% dos casos), a menos que seja tratada. A leishmaniose tegumentar engloba</p><p>as formas cutânea e mucocutânea da doença e, geralmente, é limitada a uma úlcera que cicatriza por</p><p>si mesma ao longo de 3-18 meses, mas também pode causar cicatrizes, desfiguração e estigmatização</p><p>como resultados de deficiência. Dependendo das espécies parasíticas, até 10% dos casos de leishmaniose</p><p>tegumentar podem evoluir para manifestações mais graves.</p><p>Essas manifestações graves são conhecidas como leishmaniose mucocutânea, leishmaniose</p><p>cutânea difusa, leishmaniose cutânea disseminada e leishmaniose recidivante. Das principais espécies</p><p>causadoras de leishmaniose tegumentar destacam-se Leishmania (Leishmania) amazonensis, Leishmania</p><p>(Leishmania) mexicana, Leishmania (Viannia) guyanensis, Leishmania (Viannia) braziliensis – nas Américas</p><p>– e Leishmania (Leishmania) tropica – no Velho Mundo.</p><p>Promastigotas Promastigotas</p><p>proliferam e proliferam e</p><p>migram para migram para</p><p>a probóscidea probóscide</p><p>Ao efetuar o repasto Ao efetuar o repasto</p><p>sanguíneo, flebótomos sanguíneo, flebótomos</p><p>inserem promastiginserem promastigotas otas</p><p>na pelena pele</p><p>EstágEstágio flebótomoio flebótomo EstágEstágios no homemios no homem</p><p>Promastigotas Promastigotas</p><p>são fagocitadas são fagocitadas</p><p>popor macrófagosr macrófagos</p><p>PrPromastigotas omastigotas</p><p>trtransformam-seansformam-se</p><p>em amastigotas noem amastigotas nos s</p><p>macrófagosmacrófagos</p><p>Amastigotas Amastigotas</p><p>multiplicam-se em multiplicam-se em</p><p>várias células, incluindvárias células, incluindo o</p><p>macrófagosmacrófagos</p><p>Flebótomos Flebótomos</p><p>efetuam repasefetuam repasto to</p><p>sanguíneosanguíneo</p><p>Células Células</p><p>parasitadas parasitadas</p><p>ssão ingeridasão ingeridas</p><p>Amastigotas se Amastigotas se</p><p>transformam em transformam em</p><p>promastigotas no promastigotas no</p><p>intestino intestino do flebótomodo flebótomo</p><p>1</p><p>2</p><p>3</p><p>4</p><p>5</p><p>6</p><p>8</p><p>Figura 63 – Ciclo de Leishmania</p><p>Fonte: Burza; Croft e Boelaerte (2018, p. 952).</p><p>126</p><p>Unidade I</p><p>Esses protozoários flagelados possuem dois estágios morfológicos principais: amastigotas e</p><p>promastigotas. Os primeiros possuem forma arredondada e são desprovidos de flagelo livre; nos</p><p>últimos, o flagelo emerge da extremidade anterior do parasita. As formas amastigotas são encontradas</p><p>no interior das células do hospedeiro vertebrado; já as formas promastigotas são encontradas no</p><p>intestino do inseto vetor (e em meios de cultura, em condições artificiais).</p><p>Os vetores são popularmente conhecidos como mosquito-palha, tatuquira, birigui, entre outros</p><p>nomes, e consistem em insetos alados conhecidos por flebótomos. No território brasileiro, o principal</p><p>gênero é Lutzomyia, enquanto no Velho Mundo encontramos espécies do gênero Phlebotomus. Os</p><p>flebotomíneos injetam o estágio infeccioso (isto é, promastigotas) de sua probóscide durante repastos</p><p>sanguíneos. As promastigotas inoculadas junto à punção são fagocitadas por macrófagos e outros tipos</p><p>de células fagocíticas mononucleares. As promastigotas se transformam em amastigotas no interior</p><p>dessas células, multiplicam-se por divisão simples e continuam a infectar outras células fagocíticas</p><p>mononucleares. Os flebotomíneos são infectados pela ingestão de células contaminadas durante</p><p>períodos de repasto sanguíneo. Nos flebótomos, as amastigotas se transformam em promastigotas,</p><p>desenvolvem-se no intestino e migram para a probóscide.</p><p>Lembrete</p><p>Os vetores da leishmaniose são insetos alados da ordem Diptera, família</p><p>Psychodidae conhecidos por flebótomos. Embora chamados por diversos</p><p>nomes populares no Brasil, um deles mosquito-palha, os flebótomos não</p><p>são mosquitos, mas, sim, pequenas moscas. As fêmeas são hematófagas e,</p><p>portanto, sugam sangue de hospedeiros vertebrados.</p><p>Infecções por leishmanias que causam a leishmaniose tegumentar foram descritas em várias espécies</p><p>de animais silvestres (roedores, masurpiais, edentados e canídeos silvestres), sinantrópicos (roedores) e</p><p>domésticos (canídeos, felídeos e equídeos). Já para infecções que causam a leishmaniose visceral, na área</p><p>urbana, o cão (Canis lupus familiaris) é a principal fonte de infecção. A enzootia canina tem precedido</p><p>a ocorrência de casos humanos e a infecção em cães tem sido mais prevalente que no homem. No</p><p>ambiente silvestre, os reservatórios principais são as raposas e os marsupiais.</p><p>4.3 Aspectos epidemiológicos</p><p>Em 2018, dos 200 países e territórios que notificaram à OMS, 97 (49%) foram considerados endêmicos</p><p>e 4 com casos previamente notificados de leishmaniose. Desses 200, 88 (44%) foram considerados</p><p>endêmicos para leishmaniose tegumentar, 3 (2%) relataram casos anteriormente, 78 (39%) foram</p><p>considerados endêmicos para leishmaniose visceral e 6 (3%) relataram casos previamente. Dos 200, 69</p><p>(35%) eram endêmicos para ambas as formas de leishmaniose.</p><p>As figuras a seguir ilustram a distribuição da doença em escala global. A Organização Mundial da Saúde</p><p>lista a leishmaniose como uma das doenças tropicais negligenciadas para as quais o desenvolvimento de</p><p>novos tratamentos é uma prioridade.</p><p>127</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>>5000</p><p>1000-4999</p><p>100-999</p><p>1-99</p><p>0</p><p>Figura 64 – Áreas endêmicas para leishmaniose tegumentar em 2018</p><p>Fonte: WHO (2020, p. 269).</p><p>>5000</p><p>1000-4999</p><p>100-999</p><p>1-99</p><p>0</p><p>Figura 65 – Áreas endêmicas para leishmaniose visceral em 2018</p><p>Fonte: WHO (2020, p. 269).</p><p>No Brasil, a leishmaniose tegumentar é uma das afecções dermatológicas que merece mais atenção,</p><p>devido à sua magnitude, assim como pelo risco de ocorrência de deformidades que pode produzir no ser</p><p>humano, e também pelo envolvimento psicológico, com reflexos no campo social e econômico, uma vez</p><p>que, na maioria dos casos, pode ser considerada uma doença ocupacional. Apresenta ampla distribuição</p><p>com registro de casos em todas as regiões brasileiras.</p><p>A partir da década de 1980, verifica-se aumento no número de casos registrados, variando de 3 mil</p><p>(1980) a 35.748 (1995). Observam-se picos de transmissão a cada cinco anos, apresentando tendência de</p><p>aumento do número de casos, a partir do ano de 1985, quando se solidifica a implantação das ações de vigilância</p><p>e controle da leishmaniose no país. No período de 1995 a 2014, verifica-se uma média anual de 25.763 casos</p><p>novos registrados e coeficiente de detecção médio de 14,7 casos/100 mil habitantes, verificando-se</p><p>coeficiente mais elevado no ano de 1995, quando atingiu 22,94 casos por 100 mil habitantes.</p><p>128</p><p>Unidade I</p><p>Entre 2003 e 2018, foram registrados mais de 300 mil casos, com média de 21.158 casos por ano.</p><p>A região Norte foi responsável pelos maiores coeficientes de detecção durante o período, seguido da</p><p>região Centro-Oeste. No território nacional, o coeficiente médio de detecção foi de 11,3 casos por 100 mil</p><p>habitantes, variando de 5,7 – 17,8. Entre as formas clínicas, a forma mucosa representou 7,7% dos casos</p><p>registrados no período.</p><p>No Brasil, a leishmaniose visceral tinha um caráter eminentemente rural, porém, mais recentemente,</p><p>vem se expandindo para as áreas urbanas de médio e grande porte. Na década de 1990, aproximadamente</p><p>90% dos casos notificados de leishmaniose visceral ocorreram na região Nordeste. À medida que a doença</p><p>se expande para as outras regiões e atinge áreas urbanas e periurbanas, essa situação vem se modificando.</p><p>Nas Américas, a doença é endêmica em 12 países e no período de 2001-2017 foram registrados</p><p>59.769 casos novos, resultando em uma média de 3.516 casos por ano. Cerca de 96% (57.582) dos</p><p>casos foram reportados pelo Brasil. No período de 2003 a 2018, a incidência média no país foi de</p><p>1,7 casos/100 mil habitantes, variando de 1,4 a 2,1 e letalidade de 7,2%. A região Nordeste apresentou</p><p>o maior número de casos, entretanto, as maiores incidências são demonstradas na região Norte até o</p><p>ano de 2012, quando há a inversão para região Nordeste até o ano de 2016, e posterior aumento da</p><p>incidência</p><p>novamente na região Norte.</p><p>26,72 - 46,50 (muito intenso)</p><p>12,70-26,71 (intenso)</p><p>4,95-12,69 (alto)</p><p>0,96-4,94 (médio)</p><p>-0,64-0,95 (baixo)</p><p>Índice composto 2015-2017</p><p>Figura 66 – Índice composto de leishmaniose cutânea representado por média de casos e incidência</p><p>por 100 mil habitantes no triênio de 2015-2017</p><p>Fonte: Opas (2019, p. 3).</p><p>129</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Figura 67 – Índice composto de leishmaniose visceral, 2015 a 2017. Estratificação de risco nas</p><p>Américas, Brasil e Maranhão. Índice composto de leishmaniose visceral representado por média de</p><p>casos e incidência por 100 mil habitantes no triênio 2015-2017</p><p>Fonte: Opas (2019, p. 7).</p><p>2003</p><p>1</p><p>0</p><p>2</p><p>3</p><p>4</p><p>Co</p><p>efi</p><p>ci</p><p>en</p><p>te</p><p>d</p><p>e</p><p>in</p><p>ci</p><p>dê</p><p>nc</p><p>ia 5</p><p>6</p><p>2005 2007 2009 2011 2013 2015 20172004 2006</p><p>Norte Nordeste Sudeste Sul</p><p>Ano</p><p>Centro-Oeste Brasil</p><p>2008 2010 2012 2014 2016 2018</p><p>Figura 68 – Coeficiente de incidência por 100 mil habitantes de leishmaniose visceral por região do</p><p>Brasil, de 2003 a 2018</p><p>Disponível em: Brasil (2019, p. 43).</p><p>4.4 Aspectos fisiopatológicos e manifestações clínicas</p><p>4.4.1 Leishmaniose tegumentar</p><p>A leishmaniose tegumentar geralmente não é fatal, mas pode levar a morbidade cosmética substancial,</p><p>estigmatização social e efeitos psicológicos. As lesões se desenvolvem como uma pápula durante</p><p>semanas a meses no local da picada do mosquito-palha. Lesões múltiplas geralmente correspondem a</p><p>130</p><p>Unidade I</p><p>picadas diferentes, embora a disseminação linfática seja possível. O período de incubação parece ser, em</p><p>média, de duas semanas a dois meses; pode haver casos, todavia, nos quais esse período se encurte para</p><p>dias e se alongue para um ano ou mais.</p><p>As lesões iniciais se apresentam geralmente sob a forma de pápula vesiculosa, sendo frequentes os</p><p>casos em que não se observam lesões primárias. A pápula inicial, que contém sempre grande número</p><p>de parasitas, entra em necrose e a lesão toma a feição ulcerosa (cancro leishmaniótico) (Figura 69); ou</p><p>então, a pápula não se ulcera e a lesão assume um aspecto vegetante. As lesões ulcerosas são as mais</p><p>frequentemente observadas (Figura 70), podendo ser rasas ou mais profundas.</p><p>Figura 69 – Lesões papulonecróticas recentes de leishmaniose tegumentar</p><p>Fonte: Pessoa e Martins (1988, p. 89).</p><p>Figura 70 – Lesões ulcerosas francas de leishmaniose tegumentar</p><p>Fonte: Pessoa e Martins (1988, p. 90).</p><p>131</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Em geral, os pacientes permanecem bem sistemicamente e as lesões, embora às vezes cocem, não</p><p>geram a dor que seria de se esperar de sua aparência. Na leishmaniose cutânea do Velho Mundo, as</p><p>lesões podem evoluir para placas hiperqueratísicas ou semelhantes a verrugas. As lesões causadas por</p><p>L. tropica e L. major curam-se em um ano, mas tendem a deixar cicatrizes permanentes.</p><p>As lesões por L. aethiopica levam anos para cicatrizar e podem evoluir para leishmaniose mucocutânea</p><p>oronasal grave (Figura 71) e formas difusas de leishmaniose cutânea. Na leishmaniose tegumentar</p><p>do Novo Mundo, as lesões causadas por L. mexicana tendem a ser menos graves e cicatrizar mais</p><p>rapidamente, enquanto as espécies do subgênero Viannia estão associadas a lesões ulcerativas</p><p>mais graves e leishmaniose mucocutânea (Figura 72).</p><p>A)</p><p>B)</p><p>Figura 71 – Lesões oronasais severas de leishmaniose mucocutânea: a figura A indica lesão na narina, lábio</p><p>superior e septo nasal e a figura B retrata acometimento da úvula e tecido adjacente no palato mole</p><p>Fonte: Burza; Croft e Boelaerte (2018, p. 958).</p><p>132</p><p>Unidade I</p><p>A)</p><p>C)</p><p>E)</p><p>G)</p><p>I)</p><p>B)</p><p>D)</p><p>F)</p><p>H)</p><p>J)</p><p>Figura 72 – Lesões cutâneas de leishmaniose tegumentar: as figuras de A a I indicam</p><p>o processo de reparo tecidual e cicatrização ao longo de 12 meses. A figura J traz a</p><p>cicatriz residual quatro anos após a lesão</p><p>Fonte: Burza; Croft e Boelaerte (2018, p. 959).</p><p>133</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>As lesões da leishmaniose cutânea são frequentemente confundidas com furúnculos ou outras</p><p>complicações. Acredita-se que a leishmaniose mucocutânea seja mais frequente em indivíduos</p><p>imunocomprometidos. Outros fatores de risco são uma lesão primária acima da cintura, lesões</p><p>primárias múltiplas ou grandes ou cicatrização tardia da lesão primária. A leishmaniose mucocutânea é</p><p>potencialmente fatal (risco de infecção secundária da lesão), e pode levar à desfiguração permanente,</p><p>sendo necessário o diagnóstico precoce e tratamento rápido.</p><p>4.4.2 Leishmaniose visceral</p><p>A leishmaniose visceral ou calazar é caracterizada por febre irregular persistente e</p><p>esplenomegalia. Pancitopenia, hepatomegalia, hipergamaglobulinemia e perda de peso são comuns.</p><p>A hipergamaglobulinemia inclui anticorpos anti-leishmania (não protetores), mas também anticorpos</p><p>autoimunes que podem confundir a apresentação clínica, particularmente em viajantes ou migrantes.</p><p>A hiperpigmentação da pele é provavelmente o resultado do aumento da produção do hormônio</p><p>adrenocorticotrópico induzido por citocinas, levando ao nome hindi kala-azar, que se traduz vagamente</p><p>como “febre negra”.</p><p>Figura 73 – Grande hepatoesplenomegalia decorrente de calazar</p><p>Fonte: Pessoa e Martins (1988, p. 116).</p><p>O início da leishmaniose visceral pode ser agudo ou não, e o período de incubação é de dois a seis</p><p>meses, em média, podendo variar de 10 dias a dois anos. Sem tratamento, a doença costuma ser fatal em</p><p>dois anos, como resultado de infecção bacteriana secundária ou anemia grave. No entanto, as pessoas</p><p>infectadas podem desenvolver sintomas anos mais tarde, quando se tornam imunossuprimidas.</p><p>134</p><p>Unidade I</p><p>A coinfecção com o HIV é um dos maiores desafios para o controle da leishmaniose visceral. O HIV</p><p>foi responsável pelo ressurgimento da leishmaniose visceral no sul da Europa no final da década de</p><p>1990. No Brasil e na Índia, coinfecções de até 6% são agora relatadas, enquanto na Etiópia até 18%</p><p>dos pacientes que apresentam leishmaniose visceral em áreas endêmicas estão coinfetados. O HIV e a</p><p>Leishmania compartilham um mecanismo imunopatológico comum envolvendo macrófagos e células</p><p>dendríticas, resultando na progressão acelerada de ambas as doenças devido ao aumento da replicação</p><p>do patógeno.</p><p>O teste de HIV deve ser obrigatório em todos os pacientes que apresentam leishmaniose visceral, embora</p><p>seja recomendado o rastreamento de leishmaniose visceral em pacientes com HIV que vivem em áreas</p><p>endêmicas. Esses pacientes apresentam manifestações mais graves e atípicas de leishmaniose visceral,</p><p>exigindo diferentes abordagens diagnósticas e de tratamento. Uma forma de leishmaniose disseminada</p><p>atípica pode se apresentar nesses pacientes, com parasitas isolados da mucosa gastrointestinal, do trato</p><p>respiratório e do fígado.</p><p>Na Índia, metade dos pacientes diagnosticados com coinfecção não sabiam de seu status sorológico,</p><p>enquanto a leishmaniose pode ser facilmente confundida com a miríade de infecções oportunistas</p><p>relacionadas ao HIV. A coinfecção também leva a manifestações atípicas na leishmaniose cutânea.</p><p>A leishmaniose dérmica pós-calazar é uma complicação tardia da leishmaniose visceral. Na</p><p>leishmaniose dérmica pós-calazar, os parasitas parecem persistir na pele após o tratamento. Os pacientes</p><p>apresentam erupção macular hipopigmentada ou erupção maculopapular eritematosa ao redor da boca</p><p>e do tronco, que pode se estender gradualmente por todo o corpo. Na Ásia, 90% dos casos são do tipo</p><p>macular, enquanto na África predomina a erupção papular. A preservação da sensação distingue essas</p><p>lesões da lepra.</p><p>A) B) C)</p><p>Figura 74 – Leishmaniose dérmica pós-calazar. As figuras A e B ilustram erupção maculopapular</p><p>eritematosa. A figura C traz exemplos de erupção macular hipopigmentada</p><p>Fonte: Burza; Croft e Boelaerte (2018, p. 956).</p><p>135</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>4.4.3 Diagnóstico laboratorial</p><p>Como podemos diagnosticar a leishmaniose em laboratório? Fundamentalmente o diagnóstico pode</p><p>se dar por exames parasitológicos diretos, investigação sorológica e/ou testes moleculares. No</p><p>exame parasitológico, o diagnóstico clássico é através da observação</p><p>alcança</p><p>números impressionantes tanto em quantidade quanto em massa. Todos os seres vivos deparam-se com</p><p>bilhões de partículas virais todos os dias. Por exemplo, vírus dispersos no ar alcançam nossos pulmões</p><p>junto com os 6 litros de ar que inalamos a cada minuto; eles passam por nosso trato gastrointestinal junto</p><p>com água e alimentos; são transferidos a nossos olhos, bocas e outros pontos de entrada a partir de</p><p>superfícies que tocamos e pessoas com as quais interagimos.</p><p>Nossos corpos são verdadeiros reservatórios virais. Nossa corrente sanguínea abriga mais de 100 mil</p><p>partículas virais por mililitro. Além daqueles capazes de nos infectar, nossos intestinos evidenciam</p><p>diariamente uma miríade de vírus que afetam células vegetais ou de insetos, bem como as centenas de</p><p>espécies de bactérias que nos colonizam também possuem sua própria constelação de vírus.</p><p>12</p><p>Unidade I</p><p>Pele, pelos e unhas</p><p>(>13)</p><p>Trato digestivo</p><p>(>19)</p><p>Sangue</p><p>(>19)</p><p>Trato urogenital</p><p>(>6)</p><p>Trato respiratório</p><p>(>17)</p><p>Sistema nervoso</p><p>(>3)</p><p>Vírus de DNA</p><p>Vírus de RNA</p><p>Figura 1 – O viroma humano. Nosso conhecimento acerca da diversidade de vírus existentes no corpo</p><p>humano sadio aumentou consideravelmente com o advento de técnicas de sequenciamento de alta</p><p>performance e ferramentas de bioinformática. Estimativas referentes ao número de famílias virais</p><p>distintas cujos genomas são de RNA ou de DNA estão indicadas entre parênteses; o símbolo > indica</p><p>a presença de vírus adicionais ainda não atribuídos a famílias conhecidas. Esses números podem</p><p>aumentar à medida que as ferramentas diagnósticas evoluam e novas famílias virais</p><p>sejam descobertas</p><p>Fonte: Flint et al. (2020, p. 4).</p><p>Diante de tamanha exposição, é fantástico constatar que a maioria dos vírus que nos infectam</p><p>apresenta pouco ou nenhum impacto sobre nossa saúde ou bem-estar. Você já havia pensado nisso?</p><p>Isso se deve a um elaborado e eficiente complexo de defesa, o sistema imunológico, que evoluiu para</p><p>combater infecções. Quando estas defesas estão comprometidas, até mesmo as infecções mais singelas</p><p>podem ser letais. Apesar desta proteção eficiente, algumas das doenças mais devastadoras são causadas</p><p>por vírus, como a varíola, a febre amarela, a poliomielite, influenza, sarampo e AIDS. Infecções virais</p><p>podem levar a doenças que impactam virtualmente todos os órgãos, incluindo pulmões, fígado, sistema</p><p>nervoso central e intestinos. Além disso, vírus são responsáveis por aproximadamente 20% dos casos de</p><p>câncer em seres humanos, e infecções virais que afetam os tratos respiratório e gastrointestinal matam</p><p>milhões de crianças todos os anos, em países em desenvolvimento.</p><p>Para ressaltar a magnitude deste mundo viral em que estamos inseridos, vejamos alguns números</p><p>surpreendentes:</p><p>13</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>• Vírus são as entidades mais abundantes da biosfera. A biomassa de bacteriófagos do nosso planeta</p><p>excede – sozinha – a massa de todos os elefantes em conjunto, por um fator de mais de mil vezes.</p><p>• Existem mais de 1030 partículas de bacteriófagos nos oceanos, que, se pudessem ser empilhadas</p><p>umas sobre as outras em fila indiana, equivaleriam a uma distância de 200 milhões de anos-luz</p><p>de uma ponta a outra (para referência, 1 ano-luz equivale a aproximadamente 9,46x1012 km, e a</p><p>distância da Terra ao Sol é de 147.450.000 km ou 1,58x10-5 ano-luz).</p><p>• Baleias comumente são infectadas por um vírus pertencente à família Caliciviridae, que causa</p><p>erupções cutâneas, bolhas, problemas intestinais e diarreia. Esses gigantescos mamíferos</p><p>infectados excretam mais de 1013 partículas de calicivírus por dia junto às fezes. Além do número</p><p>impressionante, saiba que o mesmo vírus também é capaz de infectar seres humanos (pense bem</p><p>ao bochechar água do mar).</p><p>O corpo humano contém aproximadamente 1013 células, em média. Contudo, estima-se que o</p><p>número de partículas virais em nós exceda esse número em mais de cem vezes.</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais informações sobre os vírus marinhos e seus efeitos, consulte:</p><p>SUTTLE, C. A. Marine viruses — major players in the global ecosystem.</p><p>Nature Reviews Microbiology, v. 5, n. 10, p. 801-812, 2007. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/2WvkveZ. Acesso em: 28 jul. 2021.</p><p>ANGLY, F. E. et al. The Marine Viromes of Four Oceanic Regions. PLOS</p><p>Biology, v. 4, n. 11, e368, 2006. Disponível em: https://bit.ly/3C0noVx. Acesso</p><p>em: 28 jul. 2021.</p><p>CULLEY, A. I. Metagenomic Analysis of Coastal RNA Virus Communities.</p><p>Science, v. 312, n. 5781, p. 1795-1798, 2006. Disponível em: https://bit.ly/2VQizgI.</p><p>Acesso em: 10 ago. 2021.</p><p>RACANIELLO, V. The abundant and diverse viruses of the seas. Virology</p><p>blog about viroses and viral diseases, 20 mar. 2009. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/3fZznZS. Acesso em: 1º jan. 2021.</p><p>Embora, neste material, vírus que causam doenças em seres humanos sejam nosso foco, é importante</p><p>ressaltar que para cada ser vivo existem vírus capazes de infectá-los. De animais domesticados e</p><p>selvagens, plantas e insetos a algas, fungos e bactérias – todos são infectados por vírus. Existem aqueles</p><p>que infectam, inclusive, outros vírus (virófagos), utilizando-os como veículos para atingir uma célula</p><p>(cavalos de Troia) ou que dependem de maquinarias virais alheias para completar um ciclo replicativo.</p><p>https://bit.ly/2WvkveZ</p><p>https://bit.ly/3C0noVx</p><p>https://bit.ly/2VQizgI</p><p>https://bit.ly/3fZznZS</p><p>14</p><p>Unidade I</p><p>Infecções virais em plantas e animais de interesse humano podem apresentar grandes impactos</p><p>econômicos e sociais. Epidemias, como as de febre aftosa e influenza aviária, levaram ao abate de</p><p>milhões de animais – como bovinos, ovinos e aves – visando controlar a disseminação.</p><p>A) B) C)</p><p>Figura 2 – Vírus infectam todos os seres vivos. (A) Primeiro registro por microscopia eletrônica de</p><p>bacteriófagos adsorvidos à superfície de Escherichia coli, em 1940. (B) Representação esquemática</p><p>da imagem apresentada no painel A (bacteriófagos fora de escala, para fins didáticos). (C) Virófagos</p><p>Sputnik no interior do capsídeo de um mamavírus (família Mimiviridae) de Acanthamoeba</p><p>polyphaga (espécie de ameba). Representantes da família Mimiviridae são excepcionalmente grandes</p><p>comparados a outros vírus, muitos dos quais maiores que bactérias</p><p>Disponível em: A) https://bit.ly/2UiWOWz; C) Desnues et al. (2008, p. 100).</p><p>Observação</p><p>A febre aftosa é uma doença viral que infecta bovinos, porcinos e</p><p>ovinos, além de outras espécies de animais selvagens. Embora a taxa de</p><p>mortalidade seja baixa, a morbidade é elevada e animais infectados em</p><p>fazendas perdem seu valor comercial.</p><p>O vírus da febre aftosa é altamente contagioso, sendo o abate de rebanhos inteiros em áreas</p><p>afetadas o método mais comum e efetivo para controle de uma epidemia. Trabalhar na prevenção é</p><p>uma estratégia economicamente mais viável. Há mais de 50 anos, o Ministério da Agricultura, Pecuária</p><p>e Abastecimento (Mapa), em parceria com a iniciativa privada, vem desenvolvendo programas para</p><p>erradicar a febre aftosa dos rebanhos brasileiros. Os avanços já podem ser comprovados: o último caso</p><p>registrado no Brasil foi em 2006.</p><p>Em 2001, uma epidemia se espalhou do Reino Unido para outros países da Europa, levando ao</p><p>abate de mais de 3 milhões de animais (infectados ou não). Os custos econômicos, sociais e políticos</p><p>ameaçaram o governo britânico. Imagens de valas gigantescas e piras horrendas repletas de carcaças de</p><p>animais mortos sensibilizaram a opinião pública.</p><p>https://bit.ly/2UiWOWz</p><p>15</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Saiba mais</p><p>Para saber mais sobre a febre aftosa, consulte:</p><p>HUNT, J. Foot-and-mouth is knocking on Europe’s door. Farmers Weekly,</p><p>3 jan. 2013. Disponível em: https://bit.ly/3g4JPPJ. Acesso em: 2 jan. 2021.</p><p>BATES, C. When foot-and-mouth disease stopped the UK in its tracks.</p><p>BBC News Magazine, 17 fev. 2016. Disponível em: https://bbc.in/3shFbml.</p><p>Acesso em: 2 jan. 2021.</p><p>BRASIL. Brasil Livre da Febre Aftosa. Ministério da Agricultura, Pecuária</p><p>e Abastecimento, 27 mar. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3yRhJPA.</p><p>Acesso em: 2 jan. 2021.</p><p>Você sabia</p><p>microscópica de amastigotas em</p><p>esfregaço da lesão ou imprint de fragmentos de tecido (na leishmaniose tegumentar), ou em material</p><p>obtido preferencialmente da medula óssea – por ser um procedimento mais seguro –, do linfonodo ou</p><p>do baço (na leishmaniose visceral).</p><p>O aspirado do baço, embora forneça maior sensibilidade para detecção positiva, é o que apresenta</p><p>maior risco de hemorragia. Amastigotas são redondas ou ovais, medindo de 1 a 4 µm de diâmetro, com</p><p>um cinetoplasto típico em forma de bastonete e núcleo circular. As amostras de sangue apresentam</p><p>baixa sensibilidade, exceto em pacientes coinfetados pelo HIV, que apresentam maior parasitemia.</p><p>Figura 75 – Macrófago infectado com várias amastigotas. A seta preta indica o citenoplasto em forma</p><p>de bastonete. A seta verde indica o núcleo circular característico</p><p>Fonte: Burza; Croft e Boelaerte (2018, p. 956).</p><p>Vários ensaios sorológicos estão disponíveis, incluindo teste de aglutinação direta, ELISA,</p><p>imunofluorescência e Western blotting. Essas técnicas de detecção de anticorpos compartilham uma</p><p>alta sensibilidade para doença visceral aguda. Os anticorpos diminuem lentamente após a cura, além de</p><p>também estarem presentes em grande número de indivíduos infectados assintomáticos; portanto, os</p><p>136</p><p>Unidade I</p><p>resultados sorológicos devem ser interpretados no contexto da história clínica. Além disso, vários desses</p><p>ensaios são muito complicados para uso em áreas endêmicas.</p><p>A intradermorreação de Montenegro mede a reação de hipersensibilidade ao antígeno de leishmania.</p><p>Se 48-72 horas após a injeção intradérmica do antígeno for observada tumefação da pele com área de</p><p>pelo menos 5 mm, o teste é considerado positivo. O teste é negativo na leishmaniose visceral ativa</p><p>devido ao estado anérgico dos pacientes e tem pouco valor diagnóstico na prática clínica, mas é útil em</p><p>levantamentos epidemiológicos como marcador de exposição prévia.</p><p>Figura 76 – Intradermorreação de Montenegro. À direita, veja o exemplo de reação positiva</p><p>Fonte: Governo de Santa Catarina [s.d.]. Acesso em: 2 ago. 2021.</p><p>A detecção molecular por PCR desempenha um papel de utilidade no algoritmo de diagnóstico. No</p><p>entanto, em ambientes com recursos limitados, as técnicas moleculares geralmente não fazem parte</p><p>do diagnóstico de rotina, porque são muito complexas e caras. Além disso, sua especificidade para o</p><p>diagnóstico clínico não parece ideal, provavelmente porque eles se correlacionam melhor com o estado</p><p>de infecção do que com a doença aguda. Um ensaio de amplificação isotérmica mediada por loop</p><p>(LAMP) – desenvolvido para tornar a tecnologia mais amigável – atingiu uma sensibilidade de 83%.</p><p>4.4.4 Tratamento</p><p>Leishmaniose tem tratamento? A resposta é sim. No Brasil, os compostos antimoniais, sob a forma</p><p>de sais trivalentes, foram utilizados pela primeira vez no tratamento da leishmaniose tegumentar em</p><p>1913 por Gaspar Vianna. Na leishmaniose visceral, esses agentes só foram utilizados dois anos após, na</p><p>Itália. Os derivados pentavalentes (Sb+5) só foram introduzidos na década de 1940 e, desde então, têm</p><p>sido considerados como fármacos de primeira escolha no tratamento dessa protozoose.</p><p>Existem no mercado atualmente duas formulações de Sb+5 disponíveis: estibogluconato de sódio</p><p>e o antimoniato de N-metil glucamina, não parecendo existir diferenças quanto à eficácia terapêutica</p><p>dessas formulações. No Brasil, a única formulação disponível é o antimoniato de N-metil glucamina,</p><p>que vem sendo distribuído pelo SUS.</p><p>137</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Esses medicamentos inibem uma enzima importante do parasita, a tripanotiona redutase, contribuindo</p><p>para sua morte em decorrência do acúmulo de espécies reativas de oxigênio. Além de serem dolorosos</p><p>se administrados por via intramuscular, os antimoniais são cardiotóxicos e podem induzir arritmias. Esse</p><p>efeito adverso é particularmente evidente na coinfecção por HIV e leishmaniose visceral. Na Índia, o</p><p>estibogluconato de sódio não é mais recomendado devido à resistência aos medicamentos.</p><p>No Brasil, apesar de não existir documentação da presença de cepas resistentes in vitro aos</p><p>antimoniais, recomenda-se o tratamento da leishmaniose visceral com a dose de 20 mg/kg/dia, com</p><p>aplicação endovenosa ou intramuscular por no mínimo 20 e no máximo 40 dias.</p><p>Observação</p><p>Por serem agentes potencialmente arritmogênicos, os antimoniais</p><p>pentavalentes estão contraindicados em pacientes que fazem uso de</p><p>beta-bloqueadores e fármacos antiarrítmicos. Os antimoniais também</p><p>estão contraindicados em pacientes com insuficiência renal ou hepática e</p><p>em mulheres grávidas nos dois primeiros trimestres da gestação.</p><p>A anfotericina B é o agente leishmanicida mais potente disponível comercialmente, atuando nas</p><p>formas promastigotas e amastigotas do parasita, tanto in vitro quanto in vivo. Seu mecanismo de</p><p>ação se dá através da ligação preferencial com esteres (ergosterol ou episterol) presentes na membrana</p><p>plasmática da Leishmania, gerando poros na superfície do parasita e promovendo, assim, sua lise osmótica.</p><p>Os efeitos colaterais da anfotericina B são inúmeros e frequentes, todos dose-dependentes, sendo</p><p>altamente tóxica para as células do endotélio vascular, causando flebite. Durante a infusão poderá</p><p>ocorrer cefaleia, febre, calafrios, astenia, dores musculares e articulares, vômitos e hipotensão. A infusão</p><p>rápida (menos de 1 hora) é responsável pela instalação de hiperpotassemia, determinando alterações</p><p>cardiovasculares, às vezes com parada cardíaca. Ao longo do tratamento, poderão surgir sobrecarga</p><p>hídrica e hipopotassemia. Alterações pulmonares, como desconforto respiratório, dispnéia e cianose</p><p>também são descritas.</p><p>As complicações renais com o uso da anfotericina B são as mais importantes – graus variados</p><p>de comprometimento renal ocorrem em praticamente todos os pacientes ao longo do tratamento. A</p><p>filtração glomerular diminui em aproximadamente 40% na maioria dos pacientes, estabilizando-se ao</p><p>redor de 20-60% dos valores normais.</p><p>Essas alterações seriam devido a uma vasoconstricção renal com consequente isquemia cortical</p><p>e diminuição da filtração glomerular. Ao longo do tratamento pode ocorrer hipopotassemia devido à</p><p>perda aumentada desse eletrólito no túbulo contornado distal, que pode ser agravada pela presença de</p><p>acidose tubular em alguns pacientes. Entretanto, as alterações renais são totalmente reversíveis, quando</p><p>o medicamento é usado nas doses recomendadas.</p><p>138</p><p>Unidade I</p><p>Saiba mais</p><p>Outros medicamentos, como pentamidina e pentoxifilina têm sido</p><p>utilizados no tratamento de leishmaniose. Para mais informações, consulte:</p><p>BURZA, S.; CROFT, S. L.; BOELAERT, M. Leishmaniasis. The Lancet, n. 392,</p><p>v. 10151, p. 951-970, 2018.</p><p>BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde.</p><p>Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de</p><p>vigilância da leishmaniose tegumentar. Brasília: Ministério da Saúde, 2017.</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3mo892W. Acesso em: 5 ago. 2021.</p><p>4.4.5 Imunização</p><p>Sendo a suscetibilidade à leishmaniose universal e pelo fato de, até o momento, não haver vacina</p><p>registrada que previna a leishmaniose humana, a prevenção ainda é a melhor estratégia, caso você</p><p>habite ou venha visitar uma área endêmica. O combate ao vetor artrópode é fundamental. O uso de</p><p>repelentes, roupas compridas, telas protetoras, bem como proteger-se em áreas internas da residência</p><p>durante o amanhecer e entardecer são medidas importantes a serem consideradas.</p><p>Várias vacinas candidatas que incorporam uma variedade de antígenos estão em desenvolvimento</p><p>pré-clínico, mas atualmente poucas estão em estudos clínicos. A maioria das pessoas que se recuperam</p><p>da leishmaniose são imunes a novas infecções, fornecendo uma boa justificativa para o foco da pesquisa</p><p>no desenvolvimento de vacinas, conforme ilustrado pela antiga prática da “leishmanização”.</p><p>Vacinas são de grande importância, pois especialmente a forma visceral da leishmaniose possui</p><p>elevada taxa de letalidade quando não tratada. Muitas</p><p>das vacinas em desenvolvimento baseiam-se na</p><p>inoculação parasitas mortos, antígenos de Leishmania purificados, proteínas ou peptídeos recombinantes,</p><p>bem como vacinas de DNA.</p><p>Recentemente, uma estratégia de vacinação que apresentou bons resultados em modelos animais</p><p>consistiu na inoculação de proteínas purificadas a partir da saliva dos flebótomos. Aparentemente estas</p><p>são importantes para os momentos iniciais do ciclo infeccioso quando as leishmanias são introduzidas</p><p>no hospedeiro vertebrado. Assim, anticorpos produzidos contra as proteínas da saliva do flebótomo</p><p>mostraram bons resultados na inibição da taxa de infecção em animais de laboratório.</p><p>Como os pacientes com leishmaniose visceral não tratada, leishmaniose dérmica pós-calazar e</p><p>leishmaniose tegumentar são reservatórios de parasitas, a detecção precoce de casos e o manejo adequado</p><p>são uma das principais estratégias de controle. Muitos países ainda dependem da autoapresentação</p><p>dos pacientes para atendimento, em vez da detecção ativa de casos, sugerindo que muitos casos</p><p>permanecerão nas comunidades por períodos prolongados, particularmente enquanto o conhecimento</p><p>da leishmaniose for baixo.</p><p>https://bit.ly/3mo892W</p><p>139</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Resumo</p><p>Na unidade I foram abordadas diversas doenças infecciosas transmitidas</p><p>por vetor, muitas delas causadas por vírus. Assim, a unidade foi iniciada pela</p><p>descrição de noções gerais da biologia viral, a fim de facilitar a compreensão</p><p>de aspectos intrínsecos de uma doença infecciosa, como decurso da doença,</p><p>período de transmissibilidade e janela diagnóstica, por exemplo.</p><p>O vírus da febre amarela, da dengue e da febre Zika são arbovírus</p><p>da família Flaviviridae. O vírus chikungunya é um membro da família</p><p>Togaviridae, gênero Alphavirus, que também compreende vírus de RNA</p><p>de fita simples polaridade positiva, envelopados. As espécies de culicídeos</p><p>implicadas na transmissão desse vírus são especialmente do gênero</p><p>Aedes. Os resultados dos testes laboratoriais de rotina, como hemograma</p><p>e avaliações bioquímicas, geralmente não são específicos para essas</p><p>arboviroses. Uma gama de métodos e ensaios específicos permitem a</p><p>confirmação do diagnóstico de febre amarela, entre eles isolamento viral,</p><p>sorologia, testes moleculares e detecção de antígenos.</p><p>A malária é uma doença infecciosa febril aguda, cujos agentes são</p><p>protozoários transmitidos por vetores. Cinco espécies de protozoários do</p><p>gênero Plasmodium podem causar a malária humana: P. falciparum, P. vivax,</p><p>P. malariae, P. ovale e P. knowlesi. Os plasmódios são transmitidos ao</p><p>homem pela picada de mosquitos fêmeas do gênero Anopheles infectadas.</p><p>O padrão ouro para o diagnóstico da malária continua sendo a microscopia</p><p>óptica de esfregaços de sangue corados. O exame microscópico do sangue</p><p>pode ser feito em esfregaço delgado (distendido) ou espesso (gota espessa).</p><p>As leishmanioses são doenças parasitárias transmitidas por vetores</p><p>causadas por protozoários pertencentes à família Trypanosomatidae,</p><p>gênero Leishmania (pelo menos 20 espécies distintas) e são transmitidas</p><p>entre hospedeiros mamíferos por flebotomíneos fêmeas. A leishmaniose</p><p>tegumentar geralmente não é fatal, mas pode levar à morbidade cosmética</p><p>substancial, estigmatização social e efeitos psicológicos. A leishmaniose visceral ou</p><p>calazar é caracterizada por febre irregular persistente e esplenomegalia.</p><p>O diagnóstico laboratorial constitui-se fundamentalmente por exames</p><p>parasitológicos diretos, investigação sorológica e/ou testes moleculares.</p><p>140</p><p>Unidade I</p><p>Exercícios</p><p>Questão 1. (Enade 2008, adaptada) Leia o texto a seguir.</p><p>Em 1985, foram contabilizados 8.959 registros de leishmaniose visceral desde os primeiros casos</p><p>identificados por Henrique Penna em 1932. No entanto, esse quadro se agravou. O Ministério da Saúde</p><p>registrou, no período compreendido entre 1990 e 2007, 53.480 casos e 1.750 mortes. A leishmaniose</p><p>visceral está mais agressiva. Matava três de cada cem pessoas que a contraíam em 2000. Hoje mata sete.</p><p>Além disso, foi considerada por muito tempo um problema exclusivamente silvestre ou restrito às áreas</p><p>rurais do Brasil. Não é mais. Nas últimas três décadas, desde que as autoridades da saúde começaram</p><p>a identificar casos contraídos nas cidades, a leishmaniose visceral urbanizou-se e se espalhou por</p><p>quase todo o território nacional. A chegada do mosquito-palha às cidades foi acompanhada de um</p><p>complicador. Com a sombra e a terra fresca dos quintais, o inseto encontrou uma formidável fonte de</p><p>sangue que as pessoas gostam de manter ao seu lado: o cão, que contrai a infecção facilmente e se</p><p>torna tão debilitado quanto seus donos.</p><p>ZORZETTO, R. Uma doença anunciada. In: Pesquisa Fapesp, ed. 151, set. 2008.</p><p>A prefeitura de um município composto por uma cidade de médio porte, zona rural e áreas de mata</p><p>nativa solicitou ao seu comitê de saúde pública, formado por biólogos e biomédicos, que elaborasse um</p><p>plano de ação para evitar o avanço da leishmaniose visceral em sua região. O plano elaborado sugeria</p><p>várias ações.</p><p>Considerando o texto e a situação hipotética anteriormente apresentados, seria inadequada a ação</p><p>que propusesse:</p><p>A) Adotar medidas de proteção contra as picadas do mosquito para trabalhadores que adentrem</p><p>áreas de floresta próxima da cidade.</p><p>B) Controlar a população de cães domésticos, incluindo a eutanásia de animais infectados em áreas</p><p>com alta incidência de casos, já que esses animais também são hospedeiros do protozoário.</p><p>C) Implementar sistema de coleta e tratamento de esgotos nas áreas em que houvesse alta incidência</p><p>de casos.</p><p>D) Controlar o desmatamento em áreas naturais próximas da área urbana da cidade em questão.</p><p>E) Promover medidas educativas da população, principalmente em relação aos hábitos do mosquito</p><p>transmissor.</p><p>Resposta correta: alternativa C.</p><p>141</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Análise das alternativas</p><p>Ao avaliarmos as alternativas, devemos ter em mente que o enunciado solicita que seja assinalada</p><p>a ação inadequada.</p><p>A) Alternativa incorreta.</p><p>Justificativa: o ciclo de vida/desenvolvimento do protozoário causador da Leishmaniose conta com</p><p>hospedeiros (homem, cães e animais selvagens) e, também, com um vetor (mosquito) responsável por</p><p>transportar e introduzir o protozoário no hospedeiro sadio. Assim, quaisquer medidas de proteção</p><p>contra as picadas do mosquito para trabalhadores que adentrem áreas de floresta próxima da cidade</p><p>terão eficiência como barreira à propagação da doença. Essas medidas podem incluir uso de calças, de</p><p>camisas de manga longa, de calçados e de repelentes, entre outras.</p><p>B) Alternativa incorreta.</p><p>Justificativa: mais uma vez, levando-se em conta o ciclo de vida do protozoário, pode-se constatar</p><p>que a diminuição no número de hospedeiros infectados, por isolamento ou por eutanásia, tem impacto</p><p>direto na propagação da doença. Ainda que pesem todas as discussões no campo da bioética a respeito</p><p>da eutanásia, não se pode negar que é uma medida eficiente no contexto do enunciado.</p><p>C) Alternativa correta.</p><p>Justificativa: a medida de implementação de um sistema de coleta e tratamento de esgotos é</p><p>desejável para que a saúde pública como um todo seja beneficiada. No entanto, no contexto descrito</p><p>no enunciado, não traria impacto na propagação da Leishmaniose, já que o vetor (mosquito), nesse</p><p>caso específico, é um animal de áreas com vegetação e de condições naturais preservadas que está</p><p>começando a adequar seu ciclo de vida particular às condições urbanas, mas em nenhum momento o</p><p>lixo e o esgoto beneficiam ou melhoram seu desenvolvimento.</p><p>Outro aspecto que pode ser considerado diz respeito ao próprio protozoário causador da doença.</p><p>Ele não sobrevive fora de um hospedeiro ou vetor e, portanto, sua transmissão não ocorre pelo contato</p><p>do ser humano com água contaminada, como a leptospirose.</p><p>D) Alternativa incorreta.</p><p>Justificativa: a conservação das áreas naturais tem impacto direto na diminuição do avanço da</p><p>doença, haja vista que, quanto mais áreas naturais preservadas</p><p>e saudáveis, mais o mosquito infectado</p><p>se mantém lá, distante do homem e dos cães.</p><p>E) Alternativa incorreta.</p><p>Justificativa: medidas educativas têm efeito na contenção de muitas doenças, conforme pudemos</p><p>observar num passado não muito distante com a dengue. Naquela ocasião, em que o país passava</p><p>por uma grande disseminação daquela doença, as campanhas dos órgãos de saúde e o conhecimento</p><p>transmitido de pessoa para pessoa conseguiram frear seu progresso e conseguimos controlar a dengue.</p><p>142</p><p>Unidade I</p><p>Caso medidas educativas fossem aplicadas para a Leishmaniose, poderiam ter efeito semelhante; logo,</p><p>é uma medida adequada à atuação do comitê de saúde pública.</p><p>Questão 2. Leia o texto a seguir.</p><p>As vacinas candidatas contra COVID-19 têm diversas composições, desde vacinas de vírus inativados</p><p>a várias de nova geração. Atualmente, cerca de 175 equipes de pesquisa em todo o mundo estão</p><p>estudando diversas possibilidades, visto que a necessidade de vacinar toda a população contra o vírus</p><p>Sars-CoV-2 é urgente. Embora o desenvolvimento de uma vacina COVID-19 segura e eficaz não seja</p><p>fácil, a fabricação, distribuição e administração também podem enfrentar desafios extraordinários. Nesta</p><p>revisão, destacamos alguns dos conhecimentos atuais sobre as fases dos ensaios clínicos de diferentes</p><p>vacinas candidatas COVID-19, seus potenciais pontos fortes e desvantagens, e discutimos os aspectos</p><p>éticos e suas chances de sucesso em aplicações em grande escala.</p><p>LIMA, E. J. F.; ALMEIDA, A. M.; KFOURI, R. A. Vacinas para covid-19 – o estado da arte.</p><p>Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, v. 21, p. 13-19, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3z3ZSES. Acesso em: 29 mar. 2021.</p><p>O texto faz considerações acerca dos esforços realizados para o desenvolvimento de vacinas</p><p>contra a COVID-19. Sobre esse processo e as características dos vírus, avalie as afirmativas e assinale a</p><p>alternativa correta.</p><p>I – Devido às características do vírus Sars-CoV-2, a criação de uma vacina definitiva não será</p><p>possível, restando esforços para que se desenvolvam vacinas emergenciais a partir de outros vírus com</p><p>características semelhantes ou da mesma família viral.</p><p>II – Todos os vírus são parasitas intracelulares obrigatórios, o que é equivalente a dizer que dependem</p><p>da maquinaria de tradução de uma célula infectada para se multiplicarem e, portanto, toda informação</p><p>viral necessária para a síntese de uma proteína deve primeiro passar por uma molécula de mRNA.</p><p>III – Genomas virais podem ser de DNA ou de RNA, assumindo diferentes conformações como</p><p>vírus de DNA fita dupla (dsDNA), vírus de DNA fita simples (ssDNA) e vírus de RNA fita dupla (dsRNA),</p><p>entre outros.</p><p>A) Apenas a afirmativa I é correta.</p><p>B) Apenas a afirmativa II é correta.</p><p>C) Apenas as afirmativas II e III são corretas.</p><p>D) Apenas as afirmativas I e II são corretas.</p><p>E) Apenas a afirmativa III é correta.</p><p>Resposta correta: alternativa C.</p><p>143</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Análise das afirmativas</p><p>I – Afirmativa incorreta.</p><p>Justificativa: o próprio texto já afirma que esforços estão sendo feitos no sentido de que sejam</p><p>produzidas vacinas contra a covid-19 por diferentes metodologias, contrariando o que traz a afirmativa.</p><p>Embora seja uma tarefa difícil, especialmente considerando-se a urgência, vacinas já foram criadas e</p><p>encontravam-se em fases avançadas de testes.</p><p>II – Afirmativa correta.</p><p>Justificativa: a afirmativa descreve características básicas dos vírus quanto ao seu hábito parasita</p><p>celular e quanto ao modo como realiza a sua replicação ao dominar a maquinaria celular e fazê-la</p><p>trabalhar a seu favor.</p><p>III – Afirmativa correta.</p><p>Justificativa: considerando-se a variedade de vírus existentes, constata-se que os tipos mencionados</p><p>na afirmativa estão corretos e podem ser complementados pelos tipos vírus de DNA fita dupla</p><p>parcial (gapped DNA), vírus de RNA fita simples polaridade (+) [ss(+)RNA], vírus de RNA fita simples</p><p>polaridade (–) [ss(–)RNA] e vírus de RNA fita simples polaridade (+) com intermediário DNA.</p><p>que, apesar dos impactos negativos na agricultura, pecuária e na saúde humana</p><p>e animal, vírus também podem ser benéficos? No ramo da ecologia marinha, efeitos positivos da</p><p>existência de vírus são mais facilmente evidenciados em função da abundância. Cerca de 94% de</p><p>todas as partículas contendo ácidos nucleicos nos oceanos são vírus. Infecções virais no oceano</p><p>matam de 20 a 40% de todos os microrganismos marinhos diariamente, liberando matéria orgânica,</p><p>que é utilizada pelo fitoplâncton na base da cadeia alimentar, bem como dióxido de carbono e</p><p>outros gases que afetam o clima da Terra.</p><p>Patógenos também exercem influência uns sobre os outros: a infecção por um vírus pode apresentar</p><p>efeito positivo no combate a outra doença bacteriana ou viral. Por exemplo, pacientes HIV positivos</p><p>apresentam substancial redução da progressão da doença se estiverem infectados pelo vírus da hepatite G</p><p>(pegivírus humano, HPgV, ou anteriormente conhecido como GBV-C), e camundongos infectados por</p><p>herpesvírus murino são resistentes a infecções bacterianas causadas por Listeria monocytogenes e</p><p>Yersinia pestis.</p><p>Embora vírus geralmente possuam um espectro limitado de hospedeiros que possam infectar, alguns</p><p>são capazes de cruzar a barreira entre espécies facilmente, causando zoonoses. Com o aumento da</p><p>população mundial e o devastamento de áreas selvagens, a infecção de seres humanos por vírus silvestres</p><p>tem aumentado. A epidemia de AIDS decorrente do HIV, a febre hemorrágica fatal causada pelo vírus</p><p>Ebola e a síndrome respiratória aguda grave em função da pandemia de Sars-Cov-2 são exemplos de</p><p>doenças virais que emergiram como infecções zoonóticas.</p><p>1.1.2 Vírus também fazem parte de nós</p><p>Cada célula do nosso corpo contém DNA viral. Retrovírus endógenos humanos e seus elementos</p><p>compõem cerca de 8% do nosso genoma. A maioria está inativa, como remanescentes fósseis de</p><p>infecções ocorridas em linhagens germinativas ao longo de milhões de anos de evolução. Embora</p><p>16</p><p>Unidade I</p><p>alguns estejam possivelmente associados com doenças específicas, certas sequências reguladoras e</p><p>produtos proteicos virais foram cooptados durante nossa evolução por suas funções exclusivas. Por</p><p>exemplo, produtos de genes retrovirais podem desempenhar um papel na regulação da pluripotência</p><p>das linhagens germinativas, na transmissão de sinais em sinapses e também na forma como nascemos.</p><p>O desenvolvimento da placenta humana depende da fusão de células promovida por uma proteína</p><p>retroviral. Se não fossem esses retrovírus endógenos, talvez ainda estivéssemos produzindo embriões em</p><p>ovos, como as aves e os répteis.</p><p>Estudos genômicos recentes indicam que nossa herança viral não está limitada a retrovírus. O</p><p>genoma de seres humanos e de outros vertebrados porta sequências derivadas de diversos outros vírus</p><p>de DNA e RNA. Estima-se que muitas dessas inserções ocorreram entre 40 e 90 milhões de anos atrás,</p><p>trazendo certa luz sobre a idade e a evolução de vírus que circulam até hoje. Além disso, a conservação</p><p>de algumas sequências virais no genoma de vertebrados sugere que essas podem ter sido selecionadas</p><p>em função de propriedades vantajosas ao longo da evolução.</p><p>O estudo de vírus foi de suma importância para certos campos, como a antropologia. À medida</p><p>que os seres humanos migraram de uma área a outra do planeta, linhagens de vírus características</p><p>de uma dada região também foram levadas com eles. Juntamente com informações arqueológicas, a</p><p>identificação de marcadores virais foi empregada para traçar as rotas percorridas pelos seres humanos.</p><p>Figura 3 – Rastreamento da migração humana por meio de vírus. Um poliomavírus conhecido como</p><p>vírus JC (abreviação para John Cunningham) é transmitido entre familiares e grupos populacionais</p><p>que coexistiram, desde a origem da vida humana na África. Esse vírus não causa doença em pessoas</p><p>sadias, contudo em indivíduos imunodebilitados (como em transplantados ou em pacientes com</p><p>AIDS) é responsável por uma forma de leucoencefalopatia multifocal progressiva. A maioria dos</p><p>indivíduos é infectada na infância, assim permanecendo por toda a vida. A análise de genomas do</p><p>vírus JC em populações de diferentes regiões do planeta sugeriu que a expansão dos seres humanos</p><p>antigos a partir da África seguiu duas rotas de migração distintas. Os estudos são consistentes com</p><p>análises de marcadores de DNA humano (linha sólida). Uma rota alternativa, não detectada apenas</p><p>pela análise de material humano, é indicada pela linha tracejada</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3yQlNPZ. Acesso em: 10 ago. 2021.</p><p>https://bit.ly/3yQlNPZ</p><p>17</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Quando os primeiros grupamentos humanos domesticaram animais e conviveram com eles,</p><p>seguramente foram expostos a diferentes vírus em comparação com grupos nômades de coletores e</p><p>caçadores. De forma semelhante, como muitos desses agentes são endêmicos nas regiões tropicais,</p><p>sociedades que habitavam tais locais devem ter sido expostas a uma maior variedade de vírus em</p><p>comparação com as que se estabeleceram em climas temperados. Quando grupos nômades se</p><p>encontraram com aqueles que domesticavam animais, o contato homem a homem estabeleceu novos</p><p>caminhos de transmissão para os vírus se espalharem.</p><p>Entretanto, é improvável que vírus como o do sarampo e da varíola tenham se estabelecido em</p><p>pequenos grupamentos humanos. Partículas altamente virulentas, tal como as conhecemos hoje, ou</p><p>matam seus hospedeiros, ou tendem a induzir imunidade vitalícia. De tal forma, podem sobreviver</p><p>apenas quando há muita interação social em grandes grupos populacionais, pois possíveis hospedeiros</p><p>suscetíveis serão infectados e continuarão a propagação. Tais vírus, portanto, não poderiam ter se</p><p>estabelecido junto a seres humanos até que as sociedades se tornassem relativamente grandes. Logo,</p><p>é mais provável que agentes menos virulentos tenham estabelecido um relacionamento com seus</p><p>hospedeiros mais cedo na história humana. Entre esses, destacam-se os retrovírus modernos, herpesvírus</p><p>e papilomavírus humanos.</p><p>1.2 Infecções virais e as primeiras vacinas antivirais</p><p>Existem diversos registros de doenças ao longo da história humana, que hoje sabemos serem virais.</p><p>As leis mesopotâmicas descreviam quais deveriam ser as responsabilidades de proprietários de cães</p><p>raivosos. Hieróglifos ilustravam consequências de lesões condizentes com quadros de poliomielite.</p><p>Lesões pustulosas, características de varíola, foram observadas em múmias egípcias. A exposição de</p><p>milhões de nativos americanos a esse mesmo vírus foi um fator importante na conquista da América por</p><p>um grupo pequeno de europeus. Os primeiros relatos europeus de febre amarela datam da chegada dos</p><p>conquistadores ao continente africano e acredita-se que essa praga seja a base por trás das histórias de</p><p>navios fantasmas, como o Holandês Voador, em que toda a tripulação pereceu misteriosamente.</p><p>Ainda que de forma não consciente, os seres humanos também aprenderam a manipular esses</p><p>agentes ao longo da história. Um exemplo clássico é no cultivo de tulipas. No século XVII, o botânico</p><p>alemão Carolus Clusius iniciou o cultivo experimental de tulipas da Turquia. Clusius verificou que, em</p><p>alguns casos, as tulipas desenvolveram pétalas anormais, mas muito bonitas, com quebras de</p><p>cor, que consiste numa incapacidade de desenvolvimento de pigmento em secções da pétala, em</p><p>flores que normalmente desenvolvem coloração sólida. Devido a esse fenômeno fora do comum,</p><p>essas flores tornaram-se muito valiosas e cobiçadas. Apenas em 1930 descobriu-se que o agente</p><p>responsável por esse fenômeno era o vírus mosaico da tulipa (TBV, do inglês tulip breaking virus).</p><p>18</p><p>Unidade I</p><p>Figura 4 – Tulipas infectadas por TBV. O TBV, ou vírus mosaico da tulipa, é responsável por mudanças</p><p>drásticas na pigmentação do perianto (sépalas e pétalas), resultando em padrões rajados em tulipas</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3yUwCAo. Acesso em: 5 jan. 2021.</p><p>Tentativas de controle de uma doença viral específica – a varíola – foram empregadas ao</p><p>longo do</p><p>último milênio. A variolação consistia na inoculação cutânea com lancetas, em indivíduos sadios, de</p><p>material obtido a partir de lesões de infectados com varíola. Com a doença amplamente difusa na China</p><p>e na Índia, a partir do século XI, o princípio do método advinha da observação de que sobreviventes</p><p>da varíola não a contraíam novamente. Assim, o uso da variolação difundiu-se ao longo da Ásia com o</p><p>tempo, e seu valor foi reconhecido por Lady Mary Wortley Montagu, esposa do embaixador britânico no</p><p>Império Otomano, em viagem à Turquia. Ela trouxe essa prática para a Inglaterra, em 1721, onde ganhou</p><p>sucesso a partir da inoculação de crianças da família real. Diz-se que George Washington também</p><p>introduziu a prática entre soldados do Exército Continental em 1776, nos Estados Unidos da América.</p><p>Entretanto, as consequências da variolação eram imprevisíveis e nunca plenamente agradáveis:</p><p>lesões cutâneas desenvolviam-se no sítio da inoculação, geralmente acompanhadas de eritema</p><p>generalizado e complicações; a taxa de mortalidade era de 1 a 2%. Do nosso ponto de vista, parece</p><p>ser uma taxa absurdamente elevada e inaceitável, mas, para o século XVIII, a variolação era concebida</p><p>como uma alternativa muito melhor do que a contração natural da varíola, cuja taxa de mortalidade</p><p>variava de 25 a 30% na população em geral (a depender da forma de manifestação clínica) e cerca de</p><p>40% entre infantes.</p><p>19</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Figura 5 – Lesões características da varíola. Existem quatro formas principais de manifestação clínica</p><p>da varíola, cada uma com suas características diferentes. Durante a era da varíola, o risco relativo de</p><p>morte entre não vacinados girava em torno de 30%, variando em função da forma de manifestação</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3tX3xTr. Acesso em: 21 set. 2021.</p><p>No ano de 1790, um médico britânico da área rural chamado Edward Jenner estabeleceu o princípio</p><p>sobre o qual os métodos de imunização viral seriam baseados, ainda que vírus em si viessem a ser</p><p>identificados apenas pouco mais de um século depois. Jenner havia sido variolado na infância e estava</p><p>ciente dos riscos e benefícios do método. Talvez essa experiência tenha estimulado seu interesse</p><p>permanente nesse método.</p><p>Embora seja dito que o desenvolvimento da vacina de Jenner contra a varíola tenha sido inspirado</p><p>por suas observações sobre ordenhadores, a realidade é mais prosaica. Como aprendiz de médico aos</p><p>13 anos, Jenner aprendeu sobre uma curiosa observação de praticantes locais que haviam variolado</p><p>agricultores: nenhuma erupção cutânea ou doença esperada apareceu em fazendeiros que já haviam</p><p>sido acometidos pela varíola bovina.</p><p>Essa falta de resposta era típica de indivíduos que haviam sobrevivido à infecção anterior pela varíola</p><p>e eram conhecidos por serem imunes à doença. Supunha-se, portanto, que, como os sobreviventes da</p><p>varíola, esses fazendeiros que não respondiam deveriam ser imunes à doença. Embora o fenômeno</p><p>tenha sido observado pela primeira vez e depois relatado por outros, Jenner foi o primeiro a avaliar</p><p>totalmente seu significado e a seguir com experimentos diretos.</p><p>De 1794 a 1796, ele demonstrou que a inoculação com material de lesões de varíola bovina induzia</p><p>apenas sintomas moderados no receptor, mas protegia contra a doença muito mais perigosa. É desses</p><p>experimentos que derivamos o vocábulo vacinação (vacca, em latim, significa vaca); Louis Pasteur</p><p>cunhou esse termo em 1881 para homenagear as realizações de Jenner.</p><p>Observação</p><p>Inicialmente, a única maneira de propagar e manter a vacina contra a</p><p>varíola era por infecção em série de seres humanos. Esse método acabou</p><p>sendo banido, pois costumava estar associado à transmissão de outras</p><p>20</p><p>Unidade I</p><p>doenças, como sífilis e hepatite. Por volta de 1860, a vacina já havia sido</p><p>propagada em vacas; posteriormente, cavalos, ovelhas e búfalos d’água</p><p>também foram usados. Acredita-se que a origem do vírus da vacina atual – o</p><p>vírus vaccinia (VACV) – seja o vírus da varíola equina (HSPV, horsepox virus).</p><p>Ao longo dos anos, muitas hipóteses foram propostas para explicar a curiosa origem do vírus vaccinia.</p><p>No entanto, investigações recentes acerca desse mistério, envolvendo colaboradores da Alemanha, Brasil</p><p>e Estados Unidos da América, indicaram que é mais provável que o precursor do vírus vaccinia seja o</p><p>agente da varíola equina – e não bovina –, ao contrário do que historicamente se acreditava.</p><p>A análise do DNA obtido a partir de um capilar de vidro de 1902 contendo o vírus vaccinia indicou</p><p>99,7% de similaridade com o vírus da varíola equina. A maioria das vacinas contra a varíola usadas no</p><p>Brasil e em muitos países europeus foram produzidas pelos norte-americanos inoculando-se bezerros</p><p>com material coletado em 1866, a partir de um surto espontâneo de varíola bovina na França.</p><p>Um fato importante é que o vírus da varíola equina também é capaz de infectar o gado, e ambos</p><p>os animais são comuns em fazendas. Seja o vírus vaccinia derivado de um ancestral selvagem capaz de</p><p>infectar o gado, cavalos e até mesmo o homem, ou mesmo uma atenuação do vírus da varíola equina</p><p>após sucessivas passagens em animais, o importante é que a vacinação contra a varíola é um exemplo</p><p>de sucesso no combate a uma doença. Em 8 de maio de 1980, a 33ª Assembleia Mundial da Saúde</p><p>declarou oficialmente que o mundo e todos os seus povos estavam livre da varíola. A declaração marcou</p><p>o fim de uma doença que atormentou a humanidade por, pelo menos, 3 mil anos.</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais informações, consulte:</p><p>DAMASO, C. R. Revisiting Jenner’s mysteries, the role of the Beaugency lymph</p><p>in the evolutionary path of ancient smallpox vaccines. The Lancet Infectious</p><p>Diseases, n. 18, v. 2, p. 55-63, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3CQaOse.</p><p>Acesso em: 10 ago. 2021.</p><p>ESPARZA, J. et al. Equination (inoculation of horsepox): an early alternative</p><p>to vaccination (inoculation of cowpox) and the potential role of horsepox</p><p>virus in the origin of the smallpox vaccine. Vaccine, n. 35, v. 52, p. 7222-7230,</p><p>2017. Disponível em: https://bit.ly/2WvADNV. Acesso em: 10 ago. 2021.</p><p>SCHRICK, L. et al. An early American smallpox vaccine based on horsepox.</p><p>New England Journal of Medicine, n. 377, v. 15, p. 1491-1492, 2017. Disponível</p><p>em: https://bit.ly/3DoG7dI. Acesso em: 10 ago. 2021.</p><p>https://bit.ly/3CQaOse</p><p>21</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Pasteur contava com cinquenta e oito anos. Tinha ultrapassado a fase produtiva da vida, mas uma</p><p>descoberta acidental – da vacina que salvava galinhas tornando-as imunes à cólera aviária (Pasteurella</p><p>multocida) – iniciou os seis mais árduos anos de sua vida. Junto a seus nobres assistentes, Émile Roux e</p><p>Charles Chamberland, propuseram-se a confirmar sua primeira observação acidental. Deixaram culturas</p><p>virulentas de germes da cólera aviária envelhecer nos seus balões de caldo. Inocularam rapidamente</p><p>esses micróbios atenuados em dúzias de galinhas sãs que, rapidamente, manifestaram a doença, mas</p><p>também rapidamente se curaram. Então, triunfalmente, alguns dias mais tarde, observaram essas aves</p><p>– essas galinhas vacinadas – suportar injeções mortais de milhões de microrganismos, suficientes para</p><p>matar uma dúzia de novas galinhas, que não estivessem imunizadas.</p><p>Foi assim que Pasteur, engenhosamente, jogou os microrganismos uns contra outros. Dominou-os,</p><p>primeiramente, e depois, empregou-os como maravilhoso escudo protetor contra os assaltos de seus</p><p>semelhantes. Ele havia conseguido demonstrar uma coisa que Jenner jamais poderia fazer com a</p><p>varíola, isto é, que o agente que mata é o mesmo que protege o animal contra a morte. Em 1881, a</p><p>mesma estratégia mostrou-se efetiva na proteção de carneiros e do gado contra o carbúnculo (Bacillus</p><p>anthracis). Sociedades de agricultura, veterinários, pobres criadores, cujos rebanhos eram devastados</p><p>pelo carbúnculo – todos enviavam-lhe telegramas, rogando-lhe milhares de doses de vacina salvadora.</p><p>A primeira vacina contra a raiva foi desenvolvida por Pasteur, embora, novamente</p><p>à época, nem</p><p>se imaginasse que o agente etiológico da doença fosse um vírus. Ele era pequeno demais para ser</p><p>encontrado pelos mais poderosos microscópios. Não havia possibilidade de cultivá-lo nos balões</p><p>de caldo. Mas mantê-lo vivo era possível, administrando-o diretamente no cérebro de coelhos.</p><p>Jamais houvera notícias de tão fantástica experiência em toda a microbiologia ou em alguma outra</p><p>ciência afim.</p><p>Jamais houvera, em ciência, uma proeza mais anticientífica do que essa luta tratada por Pasteur</p><p>e seus ajudantes, contra um agente que eles não podiam ver, cuja existência eles apenas conheciam</p><p>pelo seu crescimento invisível nos cérebros vivos e nas medulas de uma sucessão interminável de</p><p>coelhos, cobaias e cachorros. A única demonstração, para eles, da existência dessa coisa que se</p><p>chamava raiva era a morte, entre convulsões, dos coelhos por eles inoculados e os lancinantes uivos</p><p>de seus cães trepanados.</p><p>Meses e meses cinzentos se passaram, durante os quais parecia a todos eles que não haveria</p><p>possibilidade de atenuar a virulência do invisível agente da raiva. Cem por cento dos animais por eles</p><p>inoculados, infelizmente, morriam. Tudo indicava, na verdade, que aquela luta para dominar o vírus</p><p>da hidrofobia era uma insensatez sem limites. Era essa espécie de material assassino que Pasteur e</p><p>seus assistentes sacudiam na ponta de seus escalpelos e sugavam nas suas pipetas de vidro, a menos</p><p>de uma polegada dos lábios – material esse que ficava separado de suas bocas por uma delgada</p><p>camada de algodão.</p><p>Finalmente, Roux e Chamberland conseguiram encontrar um meio de enfraquecer o selvagem vírus</p><p>da hidrofobia, retirando um pequeno fragmento de medula de um coelho morto de raiva e suspendendo</p><p>esse material mortífero para secar em um balão, à prova de germes, durante quatorze dias. Esse fragmento</p><p>22</p><p>Unidade I</p><p>de tecido nervoso que um dia fora tão mortífero, foi por eles inoculado em cérebro de cães sadios – e</p><p>os cães não morreram. Entregaram-se todos, então, a experiências consecutivas: no primeiro dia, os</p><p>cães foram inoculados com o vírus atenuado que havia secado durante quatorze dias; no segundo,</p><p>receberam uma injeção do tecido nervoso ligeiramente mais ativo, que tinha permanecido na secagem</p><p>em balão por treze dias.</p><p>E assim por diante, até o 14º dia – quando, então, cada animal foi inoculado com vírus seco apenas</p><p>por um dia, capaz de matar um animal ainda não inoculado. Suas 14 ásperas e terríveis vacinas não</p><p>haviam molestado os cães – pelo contrário: enquanto os cães vacinados saltavam e brincavam em suas</p><p>gaiolas, sem sinal algum de doença, os animais do grupo controle – que não haviam recebido as vacinas</p><p>e foram expostos ao vírus – uivavam pela última vez e morriam de raiva um mês depois.</p><p>Em 6 de junho de 1885, foi praticada a primeira injeção da vacina de Pasteur contra a raiva em um ser</p><p>humano – em caráter emergencial. Depois, durante dias seguidos, o jovem que havia sido mordido pelo</p><p>cão raivoso retornava regularmente ao laboratório de Pasteur para tomar suas injeções. E, felizmente,</p><p>jamais teve o menor sinal dessa terrível doença.</p><p>Hoje, vacinas virais produzidas a partir de linhagens menos virulentas são chamadas de vacinas de</p><p>vírus atenuados (do latim tenuis, fraco). Métodos mais seguros e eficientes de produção dessas primeiras</p><p>vacinas virais em larga escala só foram possíveis quando vírus foram reconhecidos como entidades</p><p>biológicas distintas e parasitas intracelulares obrigatórios. De fato, foram necessários quase 50 anos</p><p>para o desenvolvimento das próximas vacinas antivirais: a vacina contra o vírus da febre amarela foi</p><p>desenvolvida em 1935, enquanto aquela para o vírus influenza tornou-se disponível apenas em 1936.</p><p>Esses avanços só foram possíveis graças às mudanças radicais decorrentes de nossa compreensão acerca</p><p>de seres vivos e da etiologia de doenças.</p><p>1.3 A identificação de agentes patogênicos</p><p>O século XIX foi um período importante de revolução do pensamento científico, em especial acerca</p><p>das concepções sobre o início da vida. A publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859,</p><p>cristalizou surpreendentes novas ideias sobre a origem da diversidade de plantas e de animais, até então</p><p>atribuídas diretamente às mãos de Deus. Essas colocações mudaram permanentemente a percepção</p><p>de outrora, de que seres humanos eram um conjunto à parte do Reino Animal. Do ponto de vista da</p><p>virologia, as mudanças mais importantes se deram quando atenção foi dada às causas de doenças.</p><p>A diversidade de organismos macroscópicos foi contemplada e registrada desde os primórdios da</p><p>história humana. Contudo, os véus do mundo microscópico caíram apenas a partir das lentes de Antonie</p><p>van Leeuwenhoek (1632-1723). As descrições vívidas e excitantes dos animálculos de Leeuwenhoek,</p><p>presentes em gotas de orvalho e em poças de água, eram o que viriam a ser catalogados por nós como</p><p>exemplos de bactérias, protozoários e algas.</p><p>23</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>No início do século XIX, a comunidade científica havia aceitado a existência de microrganismos e um</p><p>debate fervoroso se dava em relação às suas origens. Havia aqueles favoráveis à geração espontânea, ou</p><p>seja, seres vivos surgiriam a partir de elementos inanimados, como matéria orgânica em decomposição.</p><p>Por outro lado, outros afirmavam que até mesmo os microrganismos surgiriam por meio de reprodução,</p><p>tal como suas contrapartes macroscópicas. A sentença de morte para a hipótese da abiogênese veio com</p><p>os famosos experimentos de Pasteur e os seus balões com pescoço de cisne.</p><p>Ele demonstrou que o caldo nutritivo fervido (esterilizado) permaneceria livre de microrganismos,</p><p>ainda que os frascos se mantivessem abertos, desde que as curvaturas longas das extremidades dos</p><p>balões impedissem o contato direto de agentes microscópicos do ar com o meio nutritivo em seu</p><p>interior. Pasteur ainda foi capaz de estabelecer a associação de diferentes microrganismos com processos</p><p>específicos, como a fermentação alcoólica e láctica do vinho. Essas constatações foram o ponto de</p><p>partida para uma corrida acirrada visando identificar as causas microbiológicas de muitas doenças.</p><p>Figura 6 – Os pequenos animais de Leeuwenhoek. Desenhos de Leeuwenhoek retratando animálculos</p><p>(animalcules, pequenos animais, em latim), em uma carta a Royal Society</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3m7W8Pi. Acesso em: 3 jan. 2021.</p><p>24</p><p>Unidade I</p><p>Figura 7 – Balão com pescoço de cisne, usado por Pasteur. Com auxílio desses frascos, os</p><p>experimentos de Pasteur puderam, por fim, derrubar a teoria da geração espontânea</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3zyfNLc. Acesso em: 21 set. 2021.</p><p>Nos assombrosos e agitados anos entre 1860 e 1870, quando Pasteur estava salvando as</p><p>indústrias do vinagre, causando a admiração de imperadores e procurando descobrir o que afligia os</p><p>bichos-da-seda doentes, um pequeno, sério e míope alemão estudava medicina na Universidade de</p><p>Goettingen. Seu nome era Robert Koch. Lá, os ecos das profecias de Pasteur sobre umas coisas terríveis,</p><p>que matavam os homens e chamavam micróbios, mal chegavam a seus ouvidos.</p><p>Desde os tempos antigos, a causa de muitas moléstias era imposta a certo misticismo e crendice,</p><p>como a inalação de ares venenosos (miasmas), em vez de efetiva constatação científica. Enquanto o</p><p>jovem Koch exercia a medicina por entre aldeias atrasadas e passava noites esperando que as mulheres de</p><p>fazendeiros prussianos dessem à luz, Lister, na Escócia, estava começando a salvar a vida de parturientes,</p><p>evitando-lhes o contágio com microrganismos. Professores e estudantes das escolas médicas da Europa</p><p>começavam a se entusiasmar e a discutir as teorias de Pasteur sobre os micróbios malignos.</p><p>Nas horas de trabalho interrompido, Koch avaliava gotas de sangue enegrecido de uma vaca morta</p><p>de carbúnculo entre duas lâminas de vidro. Olhava pelo canhão de seu microscópio e, entre os pequenos</p><p>glóbulos vermelhos redondos e empilhados, via estranhos corpos, que se assemelhavam a bastonetes.</p><p>Algumas vezes, esses</p><p>bastões eram curtos, e havia apenas alguns poucos flutuando, movendo-se</p><p>um pouco. Mas, outras vezes, eles apareciam ligados uns aos outros sem nenhum elo – muitos deles</p><p>engenhosamente colados, parecendo-lhe longos filamentos, mais delgados do que o mais fino fio de</p><p>seda. E assim, pondo atenção a esses seres microscópicos e conduzindo experiências com orçamento e</p><p>condições limitados, Koch foi capaz de estabelecer pela primaria vez que uma determinada espécie de</p><p>microrganismo causava uma definida espécie de doença.</p><p>25</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Em 1876, Koch expunha aos acadêmicos da época que os tecidos dos animais mortos de carbúnculo</p><p>somente poderiam provocar essa doença quando contivessem bacilos ou esporos desses bacilos. Todo</p><p>animal morto de carbúnculo deveria ser destruído imediatamente depois de morto. Se não pudessem</p><p>ser queimados, deveriam ser enterrados a uma profundidade em que a terra fosse fria, e, assim, os</p><p>bacilos seriam impedidos de se transformar em esporos, sua forma de resistência. A persistência e a</p><p>paciência de Koch foram fundamentais para relacionar microrganismos a outras doenças importantes,</p><p>como tuberculose e cólera. Seu conjunto de critérios para identificação de um agente responsável por</p><p>uma doença ficou conhecido como postulados de Koch, que podem ser resumidos da seguinte forma:</p><p>1) O mesmo patógeno deve estar presente em todos os casos da doença.</p><p>2) O patógeno deve ser isolado do hospedeiro doente e cultivado em cultura pura.</p><p>3) O patógeno obtido da cultura pura deve causar a doença quando inoculado em um animal de</p><p>laboratório suscetível e saudável.</p><p>4) O patógeno deve ser isolado do animal inoculado e deve ser, necessariamente, o organismo original.</p><p>Lembrete</p><p>A pesquisa de Koch fornece um modelo básico de estudo da etiologia</p><p>de qualquer doença infecciosa. Hoje, nos referimos aos requerimentos</p><p>experimentais de Koch como seus postulados.</p><p>A tecnologia moderna permitiu que algumas outras evidências fossem adicionadas aos postulados</p><p>de Koch, mas a elegância dessas colocações e dos métodos de isolamento e cultivo de microrganismos,</p><p>desenvolvidos por Pasteur, Lister e Koch, permitiram que muitos agentes microscópicos patogênicos</p><p>fossem identificados e classificados durante a segunda parte do século XIX.</p><p>Assim, um método científico baseado na observação se consagrava, sendo fundamental para o</p><p>estabelecimento de estratégias terapêuticas adequadas e, em última escala, controle de doenças. Na</p><p>última década do século XIX, o paradigma vigente de que todas as doenças seriam então causadas por</p><p>microrganismos começava a ruir, levando à identificação de uma nova classe de agentes infecciosos –</p><p>patógenos submicroscópicos chamados vírus.</p><p>Embora esteja claro que um microrganismo que preenche os critérios dos postulados de Koch seja,</p><p>muito provavelmente, o agente causador de uma doença, hoje nós sabemos que mesmo alguns agentes</p><p>que não pontuam todos os critérios podem ainda ser os responsáveis por doenças.</p><p>Na segunda metade do século XX, novos métodos foram desenvolvidos permitindo-se associar</p><p>partículas virais com doenças. Por exemplo, existem as evidências imunológicas de uma infecção</p><p>(anticorpos). O surgimento desses métodos levou à proposição de modificações nos postulados de Koch,</p><p>com base na aplicação de técnicas diagnósticas moleculares.</p><p>26</p><p>Unidade I</p><p>Saiba mais</p><p>Para aprofundar seus estudos acerca da aplicação dos postulados de</p><p>Koch e das evidências tecnológicas modernas, consulte:</p><p>FALKOW, S. Molecular Koch’s postulates applied to microbial</p><p>pathogenicity. Clinical Infectious Diseases, n. 10, v. 2, p. 274-276, 1988.</p><p>Disponível em: https://bit.ly/3AO29Vc. Acesso em: 10 ago. 2021.</p><p>FREDERICKS, D. N.; RELMAN, D. A. Sequence-based identification</p><p>of microbial pathogens: a reconsideration of Koch’s postulates. Clinical</p><p>Microbiology Reviews, n. 9, v. 1, p. 18-33, 1996. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/2VYaW7Y. Acesso em: 10 ago. 2021.</p><p>MOKILI, J. L.; ROHWER, F.; DUTILH, B. E. Metagenomics and future</p><p>perspectives in virus discovery. Current Opinion in Virology, n. 2,</p><p>v. 1, p. 63-77, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3g9Eirf. Acesso em:</p><p>10 ago. 2021.</p><p>1835</p><p>0</p><p>20</p><p>40</p><p>N</p><p>úm</p><p>er</p><p>o</p><p>ac</p><p>um</p><p>ul</p><p>ad</p><p>o</p><p>de</p><p>d</p><p>es</p><p>co</p><p>be</p><p>rt</p><p>as</p><p>10</p><p>30</p><p>50</p><p>60</p><p>1855 1875 1895 1915 19351845 1865 1885 1905 1925</p><p>Ano</p><p>Fungos (17)</p><p>Bactérias (50)</p><p>Protozoários (11)</p><p>Vírus filtráveis (19)</p><p>IntroduçãoIntrodução de métodos</p><p>bacteriológicos eficientes</p><p>por Koch</p><p>Descoberta</p><p>do TMV</p><p>Figura 8 – O ritmo da descoberta de agentes infecciosos e o despertar da virologia (TMV, vírus</p><p>mosaico do tabaco). Com a introdução de métodos bacteriológicos eficientes, houve grande salto na</p><p>descoberta de bactérias patogênicas no início da década de 1880. De forma similar, a descoberta de</p><p>agentes infecciosos que atravessavam filtros de 0,22 μm deu início ao campo da virologia no início</p><p>dos anos 1900. Apesar do acelerado ritmo de descobertas, apenas 19 vírus humanos haviam sido</p><p>reportados até 1935</p><p>Fonte: Flint et al. (2020, p. 12).</p><p>https://bit.ly/3AO29Vc</p><p>https://bit.ly/2VYaW7Y</p><p>https://bit.ly/3g9Eirf</p><p>27</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>A primeira descrição de um agente patogênico menor que uma bactéria se deu em 1892. O cientista</p><p>russo Dimitri Ivanovsky estudava o agente causador da doença do mosaico do tabaco (uma praga que</p><p>impactava financeiramente agricultores). Ivanovsky constatou que o agente era capaz de ser filtrado</p><p>através de poros onde bactérias não passavam. Seis anos depois, na Holanda, Martinus Beijerinck</p><p>chegou às mesmas constatações independentemente. Beijerinck conceituou tratar-se de uma nova</p><p>classe de agentes, porém imaginava ser um líquido infeccioso. Foram dois pupilos e assistentes de</p><p>Koch, Friedrich Loeffer e Paul Frosch, que, no mesmo ano (1898), deduziram corretamente se tratar de</p><p>pequenas partículas.</p><p>Curiosamente, tais agentes apenas podiam se replicar no interior de seus hospedeiros, e não em meios</p><p>de cultura isolados (diferentemente dos postulados de Koch). Assim, essa constatação foi fundamental</p><p>para distinguir os novos agentes de bactérias patogênicas. Uma vez que o agente causador da doença</p><p>do mosaico do tabaco permanecia junto ao fluido filtrado, Beijerinck cunhou o termo contagium vivum</p><p>fluidum para enfatizar a natureza infecciosa daquele líquido quando administrado a um hospedeiro.</p><p>Agentes que podiam ser filtrados através de poros de 0,22 μm passaram a ser chamados finalmente de</p><p>vírus, em alusão ao vocábulo latino veneno.</p><p>Alguns marcos importantes desse despertar da virologia incluem a identificação de vírus capazes de</p><p>causar leucemias ou tumores sólidos em galinhas, por Vilhelm Ellerman e Olaf Bang em 1908 e Peyton</p><p>Rous em 1911, respectivamente. O estudo de vírus associados com cânceres em galinhas – particularmente</p><p>o vírus do sarcoma de Rous – eventualmente levou à compreensão das bases moleculares do câncer.</p><p>Frederick Twort (1915) e Félix d’Hérelle (1917) constataram que bactérias poderiam também ser</p><p>alvos de vírus. O termo bacteriófago foi cunhado em função de as células hospedeiras infectadas</p><p>serem lisadas (fago deriva do grego “comer”). A investigação de bacteriófagos estabeleceu não apenas as</p><p>fundações do campo da biologia molecular, mas também reflexões fundamentais acerca de como vírus</p><p>interagem com as células de seus hospedeiros.</p><p>A década de 1930 testemunhou a introdução de um equipamento que rapidamente revolucionou</p><p>a virologia: o microscópio eletrônico. O poder de ampliação desse instrumento (até mais de 100 mil</p><p>vezes) permitiu a observação direta de partículas virais pela primeira vez. À medida que novos vírus</p><p>foram descobertos e avaliados por microscopia eletrônica, o mundo viral pouco a pouco se tornava</p><p>um verdadeiro zoológico de partículas com diferentes tamanhos, formas e composições. Uma primeira</p><p>estratégia de classificação taxonômica de vírus adotou como base seus aspectos morfológicos.</p><p>28</p><p>Unidade I</p><p>Figura 9 – Diversidade morfológica entre alguns vírus. Ilustração representativa da grande variedade</p><p>de tamanhos e formas entre alguns vírus</p><p>Fonte: Flint et al. (2015, p. 24).</p><p>Nosso entendimento acerca da base molecular do parasitismo viral foi baseado, quase que</p><p>completamente, na análise de estudos envolvendo células em cultura. Tais experimentos permitiram</p><p>estabelecer que vírus são completamente dependentes da maquinaria de síntese das células infectadas.</p><p>Diferentemente de células, vírus não se reproduzem por crescimento e divisão. Em vez disso, o genoma do</p><p>agente infeccioso contém a informação necessária para redirecionar os sistemas celulares a produzirem</p><p>várias cópias dos componentes necessários para que uma progênie viral seja fabricada.</p><p>Embora vírus sejam desprovidos dos complexos de produção de energia e de sistemas de biossíntese,</p><p>necessários para uma existência independente, eles não são os organismos biologicamente ativos mais</p><p>simples do planeta. Esse cargo é ocupado pelos viroides, agentes infecciosos de plantas compostos</p><p>unicamente por um filamento de RNA não codificador, e pelos príons, proteínas infecciosas capazes de</p><p>causar doenças neurológicas em seres humanos e em animais.</p><p>1.4 Catalogando vírus</p><p>Nenhum sistema consistente de nomeação para vírus foi estabelecido por seus descobridores. Por</p><p>exemplo, entre vírus de vertebrados, alguns foram nomeados conforme as doenças associadas à sua</p><p>infecção (vírus da raiva, vírus da poliomielite), pelo tipo específico de doenças que causam (vírus da</p><p>leucemia murina), ou segundo a região do corpo afetada / sítio de onde foram isolados pela primeira</p><p>vez (rinovírus e adenovírus).</p><p>29</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>Outros foram nomeados de acordo com as localidades geográficas do isolamento (vírus Sendai</p><p>[Sendai, Japão], vírus de Coxsackie [Coxsackie, Nova Iorque, EUA]), ou em homenagem aos cientistas</p><p>que os descobriram, vírus Epstein-Barr). Nesses casos, os nomes são grafados com iniciais maiúsculas.</p><p>Alguns vírus foram ainda batizados segundo a forma pela qual se acreditava serem contraídos (influenza,</p><p>pela “influência” do mau ar), como foram evidenciados (mimivírus gigantes “mimetizam” bactérias em</p><p>tamanho), ou mesmo por caprichos estilosos (pandoravírus e o mito da Caixa de Pandora).</p><p>1.4.1 O sistema clássico</p><p>Uma adaptação do sistema hierárquico de classificação de Linné foi empregada (consistindo em filo,</p><p>classe, ordem, família, gênero e espécie). Nessa adaptação proposta por Lwoff e colaboradores (1962),</p><p>vírus devem ser agrupados de acordo com suas propriedades compartilhadas, em vez das células ou dos</p><p>organismos que infectam. Assim, devem ser levadas em conta as seguintes características:</p><p>• Natureza do ácido nucleico da partícula viral (DNA ou RNA).</p><p>• Simetria do envoltório proteico (capsídeo).</p><p>• Presença ou ausência de envoltório lipídico (envelope).</p><p>• Dimensões da partícula viral (vírion) e do capsídeo.</p><p>A análise da sequência de ácidos nucleicos e de aminoácidos em proteínas virais hoje é considerada</p><p>o método padrão para atribuir vírus a uma família específica. Por exemplo, conforme a sequência de</p><p>seus genomas o vírus da hepatite C é classificado como um membro da família Flaviviridae, enquanto o</p><p>MERS pertence à família Coronaviridae.</p><p>Atualmente, há um Código Internacional de Classificação e Nomenclatura de vírus, estabelecido</p><p>pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV, sigla em inglês). Mudanças na taxonomia</p><p>de vírus ocorrem anualmente e são o resultado de um processo de várias etapas. De acordo com os</p><p>Estatutos do ICTV (ICTV, 2021), as propostas submetidas ao Comitê Executivo do ICTV passam por um</p><p>processo de revisão que envolve contribuições dos Grupos de Estudo e Subcomitês do ICTV, outros</p><p>virologistas interessados e o próprio Comitê Executivo.</p><p>30</p><p>Unidade I</p><p>Saiba mais</p><p>Para mais informações sobre a classificação viral, consulte:</p><p>KUHN, J. H. et al. The International Code of Virus Classification</p><p>and Nomenclature (ICVCN): proposal for text changes for improved</p><p>differentiation of viral taxa and viruses. Archives of virology, n. 158,</p><p>v. 7, p. 1621-1629, 2013. Disponível em: https://bit.ly/3ySXZek. Acesso em:</p><p>10 ago. 2021.</p><p>LEFKOWITZ, E. J. et al. Virus taxonomy: the database of the International</p><p>Committee on Taxonomy of Viruses (ICTV), Nucleic Acids Research, v. 46,</p><p>n. D1, p. D708-D717, jan. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3CQOzlS.</p><p>Acesso em: 10 ago. 2021.</p><p>WALKER, P. J. et al. Changes to virus taxonomy and the Statutes ratified</p><p>by the International Committee on Taxonomy of Viruses. Archives of</p><p>Virology, n. 165, p. 2737-2748, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3jXMSub.</p><p>Acesso em: 10 ago. 2021.</p><p>1.4.2 A elegância do sistema de classificação de Baltimore</p><p>O dogma central da biologia conceitua a existência de um fluxo unidirecional da informação em</p><p>todas as células vivas:</p><p>DNA mRNA Proteína</p><p>transcrição tradução</p><p>em que, indica o fluxo da informação.</p><p>Como vírus são parasitas intracelulares obrigatórios que dependem da maquinaria de tradução da</p><p>célula infectada, é possível deduzir que toda informação viral necessária para a síntese de uma proteína</p><p>deve primeiro passar por uma molécula de mRNA. Contudo, genomas virais podem ser de DNA ou RNA,</p><p>assumindo diferentes conformações (por exemplo, podem ser simples ou dupla fita).</p><p>A apreciação deste fluxo informacional inspirou David Baltimore, em 1971, a propor um sistema</p><p>de classificação de vírus, assumindo um conjunto de etapas elementares necessárias para que uma</p><p>molécula de mRNA fosse produzida, em função do tipo de genoma viral. Em alguns casos, o genoma</p><p>pode entrar em ciclo replicativo diretamente no interior da célula; em outros casos, primeiro deverá</p><p>ocorrer mecanismo de reparo, e produtos necessários para a replicação viral deverão ser sintetizados.</p><p>https://bit.ly/3ySXZek</p><p>https://bit.ly/3CQOzlS</p><p>https://bit.ly/3jXMSub</p><p>31</p><p>BIOMEDICINA INTERDISCIPLINAR</p><p>+DNA</p><p>DNA-DNA</p><p>-RNA DNA</p><p>±DNA</p><p>+mRNA</p><p>-RNA</p><p>+RNA</p><p>+RNA</p><p>VII</p><p>II</p><p>I</p><p>III</p><p>V</p><p>IV</p><p>VI</p><p>Figura 10 – O sistema de classificação de Baltimore. O sistema de classificação de Baltimore divide</p><p>os vírus em sete categorias distintas (I a VII), com base na natureza química e na polaridade dos</p><p>genomas. Uma vez que todos os vírus devem produzir mRNA, para que este seja traduzido nos</p><p>ribossomos, o conhecimento da composição dos genomas virais fornece reflexões sobre as etapas</p><p>necessárias para se chegar ao mRNA</p><p>Fonte: Flint et al. (2020, p. 21).</p><p>Por convenção, a molécula de mRNA é definida como fita com polaridade positiva (+), pois contém</p><p>a informação capaz de ser imediatamente traduzida. No sistema de Baltimore, a designação polaridade</p><p>positiva também é atribuída à fita de DNA cuja sequência seja equivalente ao mRNA. Fitas de DNA ou</p><p>RNA complementares a fitas positivas são denominadas com polaridade negativa (–).</p><p>Observação</p><p>Esteja atento: na classificação de genomas virais, o conceito de</p><p>polaridade não remete a cargas reais, sendo simplesmente uma convenção.</p><p>Uma informação cuja sequência seja análoga ao mRNA recebe a</p><p>denominação polaridade positiva; enquanto o complemento de uma</p><p>fita positiva recebe a alcunha de polaridade negativa. Uma fita (–) não</p><p>pode ser traduzida; é preciso que seu complemento – uma fita (+) – seja</p><p>produzido primeiramente.</p><p>Originalmente, o esquema proposto por Baltimore contemplava seis classes de genomas virais.</p><p>Quando membros da família Hepadnaviridae foram descobertos (por exemplo, vírus da hepatite B),</p><p>uma sétima classe foi proposta para contemplá-los. As abreviaturas em língua inglesa para descrever as</p><p>classes de Baltimore, mas não as designações em algarismos romanos, foram universalmente adotadas</p><p>na literatura científica e trazem valiosa complementação à taxonomia clássica. Assim, termos como</p><p>ssDNA (DNA fita simples), dsDNA (DNA fita dupla), (+) RNA ou (–) RNA (sinais designando polaridades</p><p>positiva e negativa, respectivamente) são muito comuns quando nos referimos a vírus.</p><p>32</p><p>Unidade I</p><p>1.4.3 Vírus com genomas de DNA</p><p>Categoria I – Vírus de DNA fita dupla (dsDNA)</p><p>Atualmente, existem 38 famílias de vírus com genoma</p>