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<p>Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda.</p><p>Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia</p><p>sem a autorização escrita da Editora.</p><p>Os infratores estão sujeitos às penas da lei.</p><p>A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)</p><p>P498p Petrucci-Rosa, Maria Inês; Seal, Ana Gabriela de Souza; Oliveira, Paola F. G.</p><p>Meneghin de (org.).</p><p>Práticas curriculares e narrativas docentes: ampliando contextos</p><p>Organizadoras: Maria Inês Petrucci-Rosa, Ana Gabriela de Souza Seal e</p><p>Paola F. G. Meneghin de Oliveira; Prefácio de Maria do Carmo Galiazzi.</p><p>1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2022.</p><p>figs.; gráfs.</p><p>E-Book: 5 Mb; PDF.</p><p>Inclui bibliografia.</p><p>ISBN: 978-65-5637-491-8.</p><p>1. Educação. 2. Formação de Professores – Currículo.</p><p>3. Prática Pedagógica – Narrativas I. Título. II. Assunto. III. Organizadoras.</p><p>Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846</p><p>Índices para catálogo sistemático:</p><p>1. Educação. 370</p><p>2. Formação de Professores – Currículo. 370.71</p><p>3. Prática Pedagógica – Narrativas. 370</p><p>"O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de</p><p>Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001"/ "This study was financed in part by</p><p>the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code</p><p>001" em conformidade com a Portaria CAPES nº 206, de 4 de setembro de 2018.</p><p>Copyright © 2022 – Das organizadoras representantes dos autores</p><p>Coordenação Editorial: Pontes Editores</p><p>Revisão: Joana Moreira</p><p>Editoração: Vinnie Graciano</p><p>Capa: Acessa Design</p><p>CONSELHO EDITORIAL:</p><p>Angela B. Kleiman</p><p>(Unicamp – Campinas)</p><p>Clarissa Menezes Jordão</p><p>(UFPR – Curitiba)</p><p>Edleise Mendes</p><p>(UFBA – Salvador)</p><p>Eliana Merlin Deganutti de Barros</p><p>(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)</p><p>Eni Puccinelli Orlandi</p><p>(Unicamp – Campinas)</p><p>Glaís Sales Cordeiro</p><p>(Université de Genève – Suisse)</p><p>José Carlos Paes de Almeida Filho</p><p>(UNB – Brasília)</p><p>Maria Luisa Ortiz Alvarez</p><p>(UNB – Brasília)</p><p>Rogério Tilio</p><p>(UFRJ – Rio de Janeiro)</p><p>Suzete Silva</p><p>(UEL – Londrina)</p><p>Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva</p><p>(UFMG – Belo Horizonte)</p><p>PONTES EDITORES</p><p>Rua Dr. Miguel Penteado, 1038 – Jd. Chapadão</p><p>Campinas – SP – 13070-118</p><p>Fone 19 3252.6011</p><p>ponteseditores@ponteseditores.com.br</p><p>www.ponteseditores.com.br</p><p>mailto:ponteseditores@ponteseditores.com.br</p><p>http://www.ponteseditores.com.br</p><p>Sumário</p><p>Prefácio 9</p><p>Maria do Carmo Galiazzi</p><p>Algumas palavras introdutórias sobre a obra 21</p><p>M. Inês Petrucci-Rosa</p><p>Ana Gabriela de Souza Seal</p><p>Paola F. G. Meneghin de Oliveira</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES</p><p>EM CONTEXTOS DECOLONIAIS</p><p>Currículo como narrativa: cruzar fronteiras para uma educação descolonizada 29</p><p>Ivor F. Goodson</p><p>M. Inês Petrucci-Rosa</p><p>Decolonialidade e Currículo Narrativo 55</p><p>Eduardo Eliasquevitch Mantovani</p><p>As narrativas como recurso pedagógico na formação de professores e professoras</p><p>para as escolas do campo 71</p><p>Antony Josué Corrêa</p><p>Gabriela Furlan Carcaioli</p><p>Natacha Eugênia Janata</p><p>Caminhos Paralelos ou Rotas Entrecruzadas? Formação por área de conhecimento</p><p>e disciplinas na licenciatura em Educação do Campo 103</p><p>Ana Gabriela de Souza Seal</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES</p><p>EM CONTEXTOS PANDÊMICOS</p><p>Currículo e a crise do coronavírus no Brasil: o potencial do currículo narrativo para a</p><p>construção de uma história sobre a pandemia 125</p><p>Henrique de Carvalho Calado</p><p>Estágio supervisionado em ensino de química durante a pandemia de covid-19:</p><p>ainda é possível apostar nas narrativas? 147</p><p>Franklin Kaic Dutra-Pereira</p><p>Saimonton Tinôco</p><p>Michele Bortolai</p><p>Fracasso curricular na Pandemia: narrativas de uma professora de Educação Infantil 161</p><p>Heloisa Dragojevic Bossalon</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES</p><p>EM CONTEXTOS IDENTITÁRIOS</p><p>Homem e mulher ideais nas políticas de educação: o mito da “ideologia do gênero”</p><p>e seus impactos no Plano Nacional de Educação e na Base Nacional Comum</p><p>Curricular 179</p><p>Laíssa Mayara da Silva Paz</p><p>História e cultura afro-brasileira nos quadrinhos 195</p><p>Naeldson Expedito Alves da Silva</p><p>Direitos Animais, Veganismo e Cruzamento de Fronteiras nos Cursos de Ciências</p><p>Biológicas 215</p><p>Maira Martins Trentin</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES EM CONTEXTOS</p><p>DE APRENDIZAGEM E COMUNIDADES DISCIPLINARES</p><p>Robótica educacional – surgimento de uma disciplina escolar em tempos de BNCC 243</p><p>Paola F. G. Meneghin de Oliveira</p><p>Entre memórias e histórias de vida docentes: uma narrativa sobre a origem da</p><p>Licenciatura em Física do IFSP 277</p><p>João Henrique Cândido Moura</p><p>Currículo Narrativo nos cursos de licenciatura: possibilidades de aproximação entre</p><p>a Universidade e a educação básica 295</p><p>Giovana de Oliveira</p><p>Aprendizagem em Goodson: Possibilidades de uma Pedagogia Alternativa 309</p><p>Elisabete Aparecida Rampini</p><p>A Política Curricular Brasileira para a Educação Financeira 325</p><p>Gelindo Martinelli Alves</p><p>Investigando o ensino religioso na BNCC: Um panorama dos cursos de licenciatura</p><p>em ciências da religião 347</p><p>Lucas M. de Azevedo</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES</p><p>EM CONTEXTOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL</p><p>Retratos narrativos na formação docente: Composição de sentidos ambientais 383</p><p>Rafaela Engers Günzel</p><p>Aline Machado Dorneles</p><p>Rastreando Eticamente Indícios da Constituição de Educadores/as Ambientais em</p><p>Narrativas Docentes 399</p><p>Marlécio Maknamara</p><p>Sobre as autoras e os autores 421</p><p>Prefácio</p><p>Aceitei sem hesitar o convite a prefaciar esta obra e busco na pa-</p><p>lavra inspiração razões que sem necessitar justificativa são um convi-</p><p>te à leitura deste conjunto de textos que tratam de práticas curricula-</p><p>res trazidas em narrativas docentes. Inspiração é uma palavra antiga</p><p>no Português. Produz discursos desde o século XIV e remete ao ato</p><p>ou efeito de inspirar(-se). Quem de nós não fica repleto de alegria quan-</p><p>do se inspira e este ato conduz a algo criativo e inusitado? Assim inspi-</p><p>rar é um ato de vida quando sem perceber deixamos entrar ar nos nossos</p><p>pulmões e continuamos vivendo.</p><p>Só que quando se convida alguém a prefaciar uma obra talvez dele</p><p>se espere ou se reconheça um conselho, uma sugestão, uma influência.</p><p>Penso mais que este convite com aceito instantâneo se deva mais à ami-</p><p>zade construída e alimentada na formação de professores que cultiva-</p><p>mos, e este livro é prova disso, a criatividade e o entusiasmo que criou,</p><p>inventou, escreveu, produziu muitas práticas curriculares de professores.</p><p>Este livro é isto, um conjunto de pessoas cujas escritas nos inspi-</p><p>ram e levam a pensar em aulas possíveis. Sim, nós professores, vivemos</p><p>pensando em aula. Posso fazer assim, vou me inspirar ali. Ah! Que inte-</p><p>ressante esta discussão! Este vai ser o próximo texto a ser lido. Não co-</p><p>nhecia este autor, como traz histórias! Bah (me identifiquei como gaú-</p><p>cha que sou), esta narrativa tem identidade!</p><p>Este livro nos dá ideias sem dizer para copiá-las, sugere, deixa</p><p>marcas, traça planos a quem, nem pode imaginar, influencia. Este livro</p><p>faísca lampejos intensos. Centelhas, alumbramento, sopros de vida por-</p><p>que trazem histórias.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>10</p><p>Talvez quem tenha chegado até aqui tenha pensado que exage-</p><p>ro, mas vejam, não adjetivei. Usei substantivos fortes que concretizam</p><p>ideias e que expressam o entusiasmo resultante da leitura. Li este livro</p><p>com meus prejuízos sobre a narrativa tramados no Tempo e Narrativa</p><p>de Paul Ricoeur e busco em Gentil (2010, p. XVII) o que expressa a força</p><p>da narrativa:</p><p>Se a experiência humana do mundo é acessível à refle-</p><p>xão por essa mediação dos símbolos e da linguagem, esta</p><p>última, por sua vez, só é plenamente inteligível por sua</p><p>relação com aquela experiência, por estar inserida nessa</p><p>experiência, por também fazer parte dela.</p><p>Esclareço, os prejuízos no sentido da Hermenêutica, que é como</p><p>busco ajuda para interpretar meu mundo, trazendo a ideia de que me fal-</p><p>ta algo, a experiência negativa trazida com força</p><p>história… É pre-</p><p>ciso fazer pesquisas, conhecê-la, narrá-la aos estudan-</p><p>tes… Para poder escrever sobre ela… Além de narrá-la e</p><p>contar-lhes a história, eles terão que pesquisar com seus</p><p>pais, com seu tio, com seu avô. Uma vez, eu trabalhei com</p><p>a história da aparência dos brancos. Não vamos contá-la</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>46</p><p>corretamente. Vamos apenas lê-la e não há nada a ver</p><p>conosco Então você não tem esse método pelo qual vai</p><p>contar o que aconteceu… Você não… Você faz a leitura e</p><p>depois o quê? Nós ficamos muito perdidos. Quando você</p><p>trabalha no livro didático, você não sabe realmente o</p><p>que aconteceu na história. Quando você trabalha em sua</p><p>história, narrando-a para os alunos, fazendo a pesquisa</p><p>da pesquisa, com os alunos também fazendo pesquisa e</p><p>trazendo mais informações se você não tiver descoberto</p><p>alguma informação, os alunos o farão e levarão isso para</p><p>a sala de aula. Além disso, você pode acrescentá-la à sua</p><p>narrativa para que você tenha uma narrativa completa,</p><p>você a obtém?</p><p>Entrevistador: E o que seu povo pensa sobre o povo bran-</p><p>co em geral?</p><p>K.W.: Meu povo… Sim… Agora, já faz um tempo desde</p><p>que começamos a trabalhar na sala de aula… Meu povo</p><p>não gostava que ensinássemos as crianças na língua ma-</p><p>terna, sabe?</p><p>Entrevistador: Não foi o caso?</p><p>K.W.: Não… Eles não nos permitiram ensinar na Língua</p><p>Materna porque nascemos falando e aprendendo esta</p><p>língua, sabe? Então precisávamos trabalhar direta-</p><p>mente em português, então eles pensaram sobre isso.</p><p>Trabalhamos muito, fizemos cursos, tivemos professores</p><p>nos orientando, trazendo informações para as comuni-</p><p>dades. Não podíamos ensinar diretamente as crianças</p><p>em português porque, assim, perderíamos nossa língua</p><p>materna e nossa cultura e então perderíamos tudo isso.</p><p>Isso é o que eles entenderam agora. Precisamos tra-</p><p>balhar em nossa cultura para valorizar nossa cultura.</p><p>Mesmo assim, alguns pais levam seus filhos para estudar</p><p>português na cidade. Meu povo fala sobre isso conosco e</p><p>nós sempre falamos sobre isso. Sempre fomos criticados</p><p>sobre isso em sala de aula, mas temos feito esses cursos e</p><p>recebido treinamento, então sabemos que não podemos</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>47</p><p>trabalhar diretamente com as crianças em português.</p><p>Podemos nos valorizar porque somos uma escola dife-</p><p>renciada. Eles ainda não entendem totalmente a escola</p><p>diferenciada, sabe? Porque eles estavam se gabando de</p><p>que só podíamos trabalhar com Matemática e Português.</p><p>Tivemos que falar com os alunos em português, então</p><p>eu lhes disse uma vez que falei: “O que você está pen-</p><p>sando… Tudo errado”. Porque nós somos professores di-</p><p>ferenciados. Estamos lutando por nós mesmos. Porque</p><p>podemos nos agarrar à nossa cultura, à nossa língua. É</p><p>isso aí. Temos que aprender sobre nossa cultura dentro</p><p>da escola.</p><p>Entrevistador: É claro que…</p><p>K.W.: E ensinar às crianças nossa história… Nossa lín-</p><p>gua… Tudo isso.</p><p>Entrevistador: Sim…</p><p>K.W.: Mesmo assim, continuamos a transmitir a língua</p><p>portuguesa para as crianças, para as pessoas em geral,</p><p>para que elas possam entender. Entretanto, alguns pais</p><p>não obedeceram, os pais dos alunos não obedeceram</p><p>e levaram seus filhos para estudar na cidade… Depois,</p><p>quando eles voltam para o vilarejo, eles estão completa-</p><p>mente perdidos. Não sabem dançar, cantar, plantar, pes-</p><p>car, levar um peixe com uma flecha, não sabem… Como</p><p>correr atrás do macaco… Você entendeu? Eles cresceram,</p><p>mas ainda são como crianças. Completamente perdidos</p><p>na aldeia. Então eu digo ao pai do homem: “Você vê os</p><p>resultados do que você fez com seu filho? Você sempre</p><p>criticou nosso trabalho dentro da sala de aula, mas agora</p><p>você vê seu filho sendo o tolo da aldeia”. Não há sequer</p><p>conhecimento nele… Eles têm que estudar nosso conhe-</p><p>cimento seriamente… Eles têm permissão para estudar</p><p>a partir de nosso conhecimento. Porque com o que ele</p><p>aprendeu na cidade… Ele fala português, escreve bem,</p><p>ele entende as regras de fora… E daí? Ele nunca conse-</p><p>guirá um emprego na cidade. Ele voltou para nossa aldeia</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>48</p><p>e é um outro mundo. Quando você estuda nossa realida-</p><p>de, você adquire esse conhecimento tradicional, sabe? E</p><p>você também pode ir para a faculdade, você pode pesqui-</p><p>sar sua cultura. No entanto, como você coloca seu filho</p><p>com pouca idade na cidade… Ele perdeu tudo. Quando</p><p>este rapaz foi para a faculdade, ele estava perdido. Ele</p><p>não sabia. O que ele vai dizer? O que ele vai narrar? Você</p><p>entendeu? O cara nem sabe dançar, como pescar, como</p><p>fazer o plantio, ele não sabe nada… Ele perdeu tudo.</p><p>Entrevistador: Como funciona o grupo familiar? Quero</p><p>dizer…Há muitas crianças e jovens em idade escolar</p><p>cujos pais preferem a cultura dos brancos, ou eles en-</p><p>tendem agora o que você disse sobre a importância de</p><p>valorizar a cultura de seu povo?</p><p>K.W.: Agora, eles entendem a importância de valorizar</p><p>nossa cultura. Porque quando começamos a trabalhar na</p><p>sala de aula… O ano era 90 ou 97 ou 2000… Os pais que-</p><p>riam que ensinássemos seus filhos em português, falan-</p><p>do diretamente em português. Então não podíamos en-</p><p>sinar alfabetização em nossa língua, em Língua Materna,</p><p>não podíamos falar em Língua Materna dentro da sala de</p><p>aula… Podíamos trabalhar falando somente português</p><p>para as crianças… Isso é errado… Agora eles entende-</p><p>ram que podemos trabalhar nossa cultura dentro da sala</p><p>de aula na escola… Podemos contar histórias, podemos</p><p>festejar, podemos aprender a cantar. Ultimamente, tí-</p><p>nhamos um projeto de recuperação para cantar e outras</p><p>coisas. Tivemos cinco alunos formados. Um deles fez um</p><p>concerto publicamente. Ele fez na comunidade, sabe? Ele</p><p>cantou… Todo mundo o viu. Bem, ele é um cantor, certo?</p><p>Agora, a comunidade o entendeu. Que se trabalharmos</p><p>em nossa realidade se ensinarmos às crianças nossa rea-</p><p>lidade depois que terminarem o ensino médio na aldeia,</p><p>elas poderão escrever. Eles podem ir para a faculdade</p><p>fora da aldeia porque não temos uma universidade den-</p><p>tro da aldeia. Eles podem participar da Universidade da</p><p>cidade. Porque assim eles não se perderão. Eles já têm</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>49</p><p>o conhecimento de seu povo. É assim… Aquele que par-</p><p>tiu, os que foram levados quando ainda eram crianças,</p><p>para ir para a cidade aos 10 anos, eles perderam tudo.</p><p>Não falam muito bem nossa língua, não sabem traba-</p><p>lhar, não sabem dançar, aprenderam a beber cachaça.</p><p>Tudo isso, você entendeu? É onde eles aprendem a rou-</p><p>bar. Eles se envolvem com drogas. Tudo isso acontece,</p><p>você sabe? Aquele que obedeceu às nossas lições dentro</p><p>da comunidade, ele já a praticou. Ele já conheceu nossa</p><p>realidade. Agora, a comunidade percebeu, eles reconhe-</p><p>ceram que nossa escola é uma escola diferenciada. Que</p><p>podemos trabalhar a partir de nossa realidade. Não po-</p><p>demos trabalhar tanto com a realidade externa, porque a</p><p>tecnologia veio dentro da aldeia e está mudando a vida</p><p>da comunidade. Há muitas motos, carros, celulares, a in-</p><p>ternet está dentro da aldeia… Isso também é um proble-</p><p>ma para os jovens. Porque os jovens não praticam mais</p><p>a Tecnologia Indígena para fazer cesta, flecha, arco, por</p><p>causa desta tecnologia que entrou agora. Ela interfere</p><p>em tudo em nossa tradição como estas danças, esta dan-</p><p>ça funk chamada “bailão”, ou forró… Isso não é aceitável</p><p>dentro da comunidade. Ainda não. De agora em diante,</p><p>os jovens… Sim… Eu vejo as coisas assim. Eu penso as-</p><p>sim. É assim que eu vejo as coisas. Mas, daqui a 20 ou 30</p><p>anos, os anciãos mais velhos terão ido embora. Eles estão</p><p>nos deixando e deixando a juventude.</p><p>Aprendizagem tribal e currículo como narrativa</p><p>A aprendizagem tribal é a maneira indígena de saber que é trans-</p><p>mitida com frequência em forma de história, entre os membros de uma</p><p>tribo de classe. Há muitos exemplos em como aprendemos coisas de nos-</p><p>sos pais em suas narrativas, em vez de em sua leitura e escrita, nas quais</p><p>eles não foram praticados.</p><p>Mas a aprendizagem tribal vai além das con-</p><p>versas dos pais – faz parte da maneira de saber e da maneira de viver</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>50</p><p>que aprendemos com nossos amigos na rua ou na aldeia. A aprendiza-</p><p>gem tribal é como chegamos a conhecer o mundo antes de encontrar</p><p>as forças de socialização representadas, de certa forma, pela escola e pela</p><p>cultura em geral. Assim, você pode ver um choque entre a aprendizagem</p><p>tribal que nos diz quem somos e quem fomos, qual foi nosso passado</p><p>ancestral e qual é nosso futuro e as forças de socialização representadas</p><p>pela escola e a cultura dominada.</p><p>Isto é importante para a educação porque muitas vezes, particu-</p><p>larmente na compreensão da “pedagogia do oprimido” – citar Freire</p><p>a classe entre a aprendizagem indígena, tribal e escolar é o dilema cen-</p><p>tral que os professores enfrentam.</p><p>O futuro que temos colocado para esta longa vida de choque en-</p><p>tre a aprendizagem tribal e a socialização da sociedade é a “aprendi-</p><p>zagem narrativa”. Os professores são um mediador independente entre</p><p>a aprendizagem tribal e a aprendizagem escolar. Além disso, se tiverem</p><p>sucesso – o professor procurará mediar através da construção de uma</p><p>narrativa que leve o aprendiz a outro lugar, e que seja “aprendizagem</p><p>narrativa” e a herança do “capital narrativo”. É muito diferente do inter-</p><p>câmbio simbólico regular que ocorre na escola, que é uma transmissão</p><p>direta da cultura dominante representada pela matéria escolar e pelo</p><p>professor para a criança sem qualquer mediação ou reconhecimento</p><p>de qualquer aprendizagem tribal que a criança já tenha.</p><p>Finalmente, é importante perceber que o cruzamento de fronteiras</p><p>é um processo de dois sentidos. Não se trata apenas de atravessar con-</p><p>tinuamente a fronteira em direção ao conhecimento escrito e abstrato,</p><p>mas também de como manter os importantes padrões de conhecimen-</p><p>to e aprendizagem que são próprios do aprendiz. O perigo da travessia</p><p>da fronteira, tal como previsto nas escolas ocidentais, é o de considera-</p><p>rem a travessia da fronteira como um processo unidirecional em dire-</p><p>ção aos prometidos planaltos da cultura escrita e do conhecimento abs-</p><p>trato. Isto sacrifica toda uma forma de conhecimento e aprendizagem</p><p>que já existe. Temos de estar atentos para assegurar que os cruzamentos</p><p>de fronteira levem consigo o máximo de conhecimento indígena na sua</p><p>viagem, sem se restringir a outros conceitos mais descontextualizados</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>51</p><p>e abstratos. Os cruzamentos de fronteiras são essenciais e o processo</p><p>de desembarque que representam é em si mesmo um grande empre-</p><p>endimento de aprendizagem, mas tem sido dada muito pouca ênfase</p><p>à forma como os estudantes se agarram ao conhecimento com que che-</p><p>gam ao empreendimento de aprendizagem e à escola. Este deve ser um</p><p>dos nossos focos, se quisermos fornecer um antídoto para o currículo</p><p>colonizado.</p><p>Considerações Finas</p><p>A razão pela qual colocamos tanta ênfase no currículo narrativo</p><p>é porque se situa no cruzamento da talvez a mais importante passagem</p><p>de fronteira de todas, no que diz respeito à forma como os grupos desfa-</p><p>vorecidos abordam o mundo desconhecido da escolaridade e do currícu-</p><p>lo. Isto deve-se ao facto de a maioria dos grupos tribais ou grupos desfa-</p><p>vorecidos, sejam eles: povos indígenas ou grupos da classe trabalhadora</p><p>ou outros grupos que foram subjugados à opressão (tais como mulheres</p><p>e minorias homossexuais). Todos têm um senso comum de cultura oral</p><p>como uma forma principal de transmitir os seus valores. Assim, na sua</p><p>instanciação inicial, todos estes grupos aprendem através de conversas</p><p>e conversas entre si, em particular. Este discurso partilhado, esta cultura</p><p>oral, é num certo sentido a sua principal forma de saber. É por isso que a</p><p>escola é um cruzamento de fronteiras tão perigoso. Porque insiste que,</p><p>em vez de os alunos aprenderem através da conversação, devem apren-</p><p>der através da leitura. Assim, a travessia de fronteiras crucial é a traves-</p><p>sia de fronteiras entre a cultura oral e a cultura escrita.</p><p>Em termos autobiográficos, muitos de nós, oriundos de grupos</p><p>desfavorecidos, experimentamos esta perigosa viagem como extrema-</p><p>mente dolorosa. Parece uma forma de traição às formas de saber que te-</p><p>mos apreciado na nossa casa e comunidade. No meu próprio caso (ver</p><p>GOODSON, 2005), esta travessia de fronteiras provou ser quase demasia-</p><p>do pesada. Só consegui ler aos oito anos de idade e continuei a aprender</p><p>sobre o mundo através das histórias que os meus pais, família e amigos</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>52</p><p>me contaram. Continua a ser, mesmo agora, a fonte de aprendizagem</p><p>mais rica que eu tenho. Assim, atravessar a fronteira da cultura oral para</p><p>a escrita era pedir-me tanto. Parecia que me estava a pedir para trair toda</p><p>a minha tribo em favor de uma maneira diferente de saber. O que o currí-</p><p>culo narrativo procura fazer é voltar a curar esta ferida primordial entre</p><p>a cultura oral e a escrita. Temos de aceitar que os grupos de interesse</p><p>dominantes tenham predicado e instrumentalizado um currículo escrito</p><p>que é abstrato e descontextualizado. Mas é também, temos de admitir,</p><p>um caminho para formas cosmopolitas de conhecimento, para creden-</p><p>ciais bem-sucedidas e para o acesso a sociedades mais vastas. Este é o</p><p>complexo enigma das travessias de fronteira, desde o oral ao escrito.</p><p>Na secção seguinte falamos, e sublinho a conversa, com alguém que é</p><p>bem versado na aprendizagem tribal. Não é por acaso que todo o nosso</p><p>trabalho é sobre as histórias de vida de professores e estudantes. É mais</p><p>uma vez a modalidade que procura repor a relação entre o oral e o escrito</p><p>e elucidar profundamente as formas narrativas de saber. Este argumento</p><p>é a condição prévia crucial para uma aprendizagem bem-sucedida para</p><p>grupos desfavorecidos.</p><p>Além de apoiar o lado oral do aprendizado tribal, é importante</p><p>definir um de áreas curriculares baseadas em atividades que ensinam</p><p>a cultura indígena de forma formal. Assim, vimos a tecnologia indígena</p><p>Waurá e os estudos agro econômicos, entre outros, que facilitarão o ensi-</p><p>no da cultura em seu sentido mais formal. Assim, em termos de apresen-</p><p>tar um caminho a seguir para as práticas educativas decoloniais, nós ar-</p><p>gumentamos que, como Kaji diz tão articuladamente em sua entrevista,</p><p>existem duas vias de exploração. Uma é garantir que, sempre que possí-</p><p>vel, o currículo seja “oralizado”, seja apresentado nas formas de histórias</p><p>reconhecidas e narrativas práticas. Então essa é a forma que a educação</p><p>decolonial pode tomar. O conteúdo que a educação decolonial pode to-</p><p>mar é escrutinar e elaborar os vários aspectos da cultura indígena, se-</p><p>jam elas: tecnológicas, musicais, agrícolas ou econômico. Desta forma,</p><p>tanto o conteúdo quanto a forma se unirão para definir uma estratégia</p><p>descolonizada.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>53</p><p>Referências</p><p>ABRAHAM, Ada. Lénseignant est une personne. Paris: Éditions ESF, 1984.</p><p>ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The new mestiza – 25th</p><p>Anniversary. 4th edition. San Francisco: Aunt Lute Books, 2012.</p><p>BENJAMIN, Walter. The Storyteller. In: BENJAMIN, Walter. Illuminations. New</p><p>York: Schoken Books, 2007. p. 83-110.</p><p>FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.</p><p>GOODSON. Ivor F.; SHOSTAK, John. Democracy, education and research:</p><p>The struggle for public life. London; New York: Routledge, 2020.</p><p>GOODSON. Ivor F. Developing narrative theory. Life histories and personal</p><p>representation. London: Routledge, 2013.</p><p>GOODSON. Ivor F. Life politics. Rotterdam: Sense Publishers, 2011.</p><p>GOODSON. Ivor F. Políticas do conhecimento: Vida e trabalho docente entre</p><p>saberes e instituições. Coleções Desenredos. Martins, R. e Tourinho, I. (org.).</p><p>Goiânia: Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, 2007.</p><p>GOODSON. Ivor F.; CRICK, Ruth Deakin. Curriculum as narration: Tales from</p><p>the children</p><p>of the colonized. Curriculum Journal. 23 (3), p. 225-236, 2009.</p><p>GOODSON. Ivor F. Coming to curriculum: extract from ‘reconstructing aspects</p><p>of a teacher’s life’. Learning, curriculum and life politics: The selected</p><p>works of Ivor F. Goodson. Abingdon: Taylor and Francis, 2005. p. 16-30.</p><p>GOODSON. Ivor F. Learning and the pedagogic moment: extract from ‘the</p><p>pedagogic moment’. Learning, curriculum and life politics: The selected</p><p>works of Ivor F. Goodson. Abingdon: Taylor and Francis, 2005. p. 13-15.</p><p>GOODSON. Ivor F. Context, curriculum and professional knowledge. History of</p><p>education. 43 (6), 2014. p. 768-776.</p><p>MALDONADO-TORRES, Nelson. Transdisciplinaridade e decolonialidade.</p><p>Brasília, Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, jan/abr. 2016.</p><p>SENNETT, Richard. The Craftsman. New Haven; London: Yale University</p><p>Press, 2008.</p><p>Decolonialidade e Currículo Narrativo</p><p>Eduardo Eliasquevitch Mantovani1</p><p>Introdução</p><p>O currículo escolar, documento que apresenta uma série de temá-</p><p>ticas que podem ser abordadas na formalização dos conteúdos no am-</p><p>biente escolar, constitui-se em um dos mecanismos essenciais para</p><p>interpretar os processos educacionais e toda sua complexidade. Deste</p><p>modo, o campo relacionado ao currículo apresenta-se como uma impor-</p><p>tante esfera de análise e compreensão das políticas educacionais e de</p><p>seus objetivos nas sociedades, sendo um espaço de disputas e exercício</p><p>de poder.</p><p>Sendo assim, o campo curricular nos apresenta tensionamentos</p><p>em suas diversas etapas, tais como: elaboração das propostas curricu-</p><p>lares, prescrição de conteúdos a serem cumpridos e execução nas salas</p><p>de aula. Esta constante tensão apresenta relevantes impactos na elabo-</p><p>ração das políticas educacionais e, de forma mais prática, adentra a sala</p><p>de aula, sendo um documento balizador dos planejamentos pedagógicos</p><p>e de utilização por parte dos docentes.</p><p>Assim, o currículo escolar é um importante artífice de análise</p><p>e compreensão dos processos educacionais, sendo os estudos curricu-</p><p>lares uma relevante área no campo das pesquisas em educação, com a</p><p>publicação e consolidação de diversos trabalhos e autores, como Ivor</p><p>1 Doutorando na Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da</p><p>Unicamp.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>56</p><p>Goodson (2007, 2010, 2015, 2019); Antônio Flávio Barbosa Moreira</p><p>(1997, 2013); Maria Inês Petrucci-Rosa (2007, 2011, 2016) e Tomaz Tadeu</p><p>da Silva (1996, 2010), bem como com a formação de grupos de pesquisa</p><p>e a criação de periódicos relacionados a sua temática, tanto no Brasil</p><p>quanto no exterior.</p><p>Nas últimas décadas iniciou-se uma reflexão crítica acerca da edu-</p><p>cação e do currículo, articulando a perspectiva decolonial a uma nova</p><p>proposta educacional. A principal discussão em relação as teorias cur-</p><p>riculares referem-se a uma proposta curricular colonizada, monolítica</p><p>e eurocentrada. Esta colonização do currículo e de seus saberes sus-</p><p>tentam um processo de dominação educacional e político, pois fornece</p><p>apenas um panorama sobre a compreensão das lutas e das resistências,</p><p>nas quais, em sua maioria, apenas é apresentada a visão do europeu,</p><p>como forma única e verdadeira sobre tais eventos e conhecimentos</p><p>(PIZA; PANSARELLI, 2012).</p><p>Consideramos que uma das ressignificações do currículo esco-</p><p>lar poderia ser realizada através de discussões referentes aos estudos</p><p>de uma educação decolonial e suas múltiplas possibilidades de elabo-</p><p>ração e execução de um currículo contextualizado, que tenha como ele-</p><p>mento central a promoção de uma ruptura com o tradicionalismo e con-</p><p>servadorismo nos conteúdos de Ciências Humanas na educação básica,</p><p>levando a um questionamento dos conteúdos e da desnaturalização</p><p>do conhecimento oficial.</p><p>A proposta de uma educação decolonial poderá ser inserida dentro</p><p>da perspectiva de um currículo narrativo. Assim ao abordarmos o cur-</p><p>rículo narrativo, concordamos com os pressupostos teóricos de Ivor</p><p>Goodson, os quais valorizam as histórias de vida e as relações sociais</p><p>como práticas identitárias e indissociáveis ao sujeito, nas quais as nar-</p><p>rativas revelam um campo de possibilidades e experiências.</p><p>Neste capítulo realizaremos uma discussão teórica que tem</p><p>por principal objetivo propor uma reflexão e uma nova significação</p><p>do currículo a partir da perspectiva da educação decolonial, articulada</p><p>a construção de um currículo narrativo.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>57</p><p>Currículo: manutenção de poderes ou possibilidades ou-</p><p>tras para a educação?</p><p>As definições acerca do currículo apresentam problematizações</p><p>que abrangem um grande espectro dos significados da palavra, tendo</p><p>início na própria etimologia do termo e nos seus mais diferentes usos</p><p>e aplicações. De acordo com Goodson (2010), as referências iniciais</p><p>ao termo vinculado ao currículo surgem no século XVI, “a palavra currí-</p><p>culo vem da palavra latina Scurrere, correr, e refere-se a curso (ou carro</p><p>de corrida). As implicações etimológicas são que, com isso, o currículo</p><p>é definido como um curso a ser seguido, ou, mais especificamente a ser</p><p>apresentado” (GOODSON, 2010, p. 31).</p><p>Ao longo dos séculos os termos vinculados a expressão currículo</p><p>vem ampliando seus significados e especificidades, sendo por muitas ve-</p><p>zes apresentado como um conjunto de saberes e práticas de que necessi-</p><p>tam ser elencados para normatizar o processo de ensino e aprendizagem.</p><p>O processo de fabricação do currículo não é um processo</p><p>lógico, mas um processo social, no qual, convivem, lado</p><p>a lado com fatores lógicos, epistemológicos, intelectuais,</p><p>determinantes sociais menos “nobres” e menos “for-</p><p>mais” tais como interesses rituais, conflitos simbólicos</p><p>e culturais, necessidades de legitimação e de controle,</p><p>propósitos de dominação dirigidos por fatores ligados à</p><p>classe, à raça, ao gênero (SILVA, 1996, p. 79).</p><p>Neste sentido, pode-se estabelecer que o campo curricular com-</p><p>preende uma área do conhecimento ampla e importante nas questões</p><p>educacionais, permitindo seu estudo a partir de diversas orientações</p><p>e direcionamentos.</p><p>O processo de elaboração do currículo vincula-se a própria pro-</p><p>dução humana e seus significados sofrem alterações e recebem contri-</p><p>buições ao longo de processos e eventos históricos, como, por exem-</p><p>plo, na Revolução Industrial e na Revolução Francesa, nas quais houve</p><p>uma reorganização dos poderes políticos e econômicos e, de forma dire-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>58</p><p>ta, ocorreu uma reorganização dos processos sociais, destacando-se tan-</p><p>to o processo de ensino quanto dos grupos contemplados, ou excluídos,</p><p>por estas reformas.</p><p>Os processos de reformas e debates acerca do currículo escolar</p><p>tornam-se importantes elementos para tentar compreender as forças</p><p>e mecanismos presentes ao próprio currículo, como pontos instituintes</p><p>de um ordenamento didático. Sendo que, na grande maioria dos casos,</p><p>o currículo é ofertado através de uma política “top-down”, ou seja, de cima</p><p>para baixo, sem qualquer caráter de participação, construção ou diálogo</p><p>com os docentes/comunidade escolar que serão seus maiores campos</p><p>de impactos e interesses, tornando-o desconectado das realidades e com</p><p>uma perspectiva acrítica, muito além de educação problematizadora.</p><p>Penso que os curriculistas precisam definir os alvos pre-</p><p>definidos de suas preocupações, delimitando melhor os</p><p>temas prioritários das investigações a serem realizadas.</p><p>Da restrita visão de currículo como lista de disciplinas e</p><p>conteúdos, passa-se a uma visão de currículo que abran-</p><p>ge praticamente todo e qualquer fenômeno educacional</p><p>(MOREIRA, 2001, p. 46).</p><p>Os questionamentos relativos ao currículo, emergem com frequ-</p><p>ência em diferentes momentos históricos, uma vez que suas concep-</p><p>ções, realizações e execuções demonstram a participação ou a ausência</p><p>de grupos que intentam se afirmar enquanto um conhecimento necessá-</p><p>rio ou que, conseguiram se inserir dentro de uma determinada política</p><p>educacional, e em um contexto</p><p>histórico.</p><p>A luta para definir um currículo envolve prioridades sócio</p><p>políticas e discurso de ordem intelectual. A história dos</p><p>conflitos curriculares do passado precisa, pois, ser reto-</p><p>mada. Do contrário, nossos estudos sobre a escolarização</p><p>deixarão sem questionamento e análise uma série de prio-</p><p>ridades e hipóteses que foram herdadas e deveriam estar</p><p>no centro de nosso esforço (GOODSON, 2010, p. 28).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>59</p><p>Neste sentido, os conteúdos presentes no currículo, como o de</p><p>Ciências Humanas da Educação Básica, são, por diversas vezes, elabo-</p><p>rados por determinados grupos sociais e, posteriormente, submetidos</p><p>à análise de órgãos governamentais, que apresentam uma tradição</p><p>e continuidades no processo educacional, utilizando os conteúdos pré-</p><p>vios como afirmação deste ou daquele grupo social, tornando o próprio</p><p>currículo um instrumento de manutenção dos poderes e aprisionamento</p><p>de possibilidades, sendo muitas vezes, o conhecimento, repetido ao lon-</p><p>go de décadas, ou até mesmo de um século. Assim, as reformas curri-</p><p>culares constituem um dos pontos de entrada nestes estudos, uma vez</p><p>que suas tradições e estabilidades demonstram, também, permanências</p><p>e reflexos na sociedade da qual o currículo foi produzido.</p><p>Uma história do currículo, enfim, não pode deixar de ten-</p><p>tar descobrir quais conhecimentos, valores e habilidades</p><p>eram considerados como verdadeiros e legítimos numa</p><p>determinada época, assim não pode deixar de tentar de-</p><p>terminar de que forma essa validade e legitimidade fo-</p><p>ram estabelecidas (SILVA, 1996, p. 82).</p><p>Consideramos que na atualidade o processo de elaboração, pres-</p><p>crição e execução do currículo segue um forte alinhamento com as epis-</p><p>temologias europeias, não abarcando conceitos e produção de saberes</p><p>que tenham como origem as próprias localidades, abandonando assim,</p><p>práticas e representações que fortaleceriam as estruturas sociais e per-</p><p>mitiriam um empoderamento destes mesmos grupos frente às políticas</p><p>públicas (na maioria dos casos), pois reproduzem um discurso “oficial”,</p><p>compreendido como natural. Buscando romper com este cenário, faz-se</p><p>necessário pensarmos outras formas de conhecimento que indicam pos-</p><p>sibilidades outras para os currículos.</p><p>A organização linear traz a impressão de ser “natural”</p><p>por denotar uma ordem aparente. No entanto, tal arranjo</p><p>exclui outras possibilidades de articulação entre os ele-</p><p>mentos do vivido, elementos que, embora não estejam</p><p>contíguos numa visão linear, podem ter outros pontos</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>60</p><p>de contato. Isso potencializa ainda mais a possibilidade</p><p>de pensarmos em outras formas de produção do currícu-</p><p>lo, que se afastem de uma concepção linear e evolutiva</p><p>(PETRUCCI-ROSA, 2011, p. 201).</p><p>O currículo tradicional, e sua forma de organização, se apresen-</p><p>ta, muitas vezes, como um elemento de exercício de poder e perma-</p><p>nências no processo educacional, contribuindo para o aprisionamento</p><p>de metodologias e propostas de ensino, favorecendo grupos e histórias</p><p>dominantes, levando a um adensamento na narrativa dos “vencedores”</p><p>no processo sócio-histórico, ocultando dessa forma, importantes ques-</p><p>tionamentos e pontos de resistência de narrativas outras.</p><p>Dessa forma, as propostas curriculares, em Ciências Humanas, aca-</p><p>bam por promover um espaço de continuidades e valorização de proces-</p><p>sos e eventos importantes ao continente europeu, mas, pouco relevantes</p><p>aos povos nativos da América e suas histórias de vida e comunidades.</p><p>Como, por exemplo, o estudo relativo às crises da Baixa Idade Média,</p><p>no final do século XIV, com forte aderência aos processos de formação</p><p>das monarquias europeias, destacando-se dinastias, territórios e dispu-</p><p>tas internas, mas sem qualquer referência aos povos nativos do Brasil</p><p>ou da América, produzindo, desta forma, um estudo colonizado e com</p><p>viés de superioridade ocidental frente à outras formas de conhecimento.</p><p>Este currículo silencia saberes, processos e culturas, valorizando as rela-</p><p>ções de poder já instituídas.</p><p>Assim, acreditamos que o currículo e suas manifestações, da atual</p><p>maneira que são ofertados e propostos pelas políticas educacionais bra-</p><p>sileiras, contribuem para um aprisionamento do conhecimento e ma-</p><p>nutenção de status quo, frente a manutenção dos poderes e tradições</p><p>sócio-históricas.</p><p>Consideramos que esta colonização do currículo e de seus saberes</p><p>sustentam o processo de dominação educacional e político, pois fornece</p><p>apenas um panorama sobre a compreensão das lutas e das resistências,</p><p>nas quais, em sua maioria, apenas é apresentada a visão do europeu,</p><p>como forma única e verdadeira sobre tais eventos e conhecimentos (PIZA;</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>61</p><p>PANSARELLI, 2012). O currículo, desta forma, opera como um elemen-</p><p>to de aprisionamento de conteúdos, ao invés de possibilitar questiona-</p><p>mentos e aberturas aos novos campos de conhecimento, bem como o de</p><p>permitir uma educação outra. Assim, propomos a compreensão e uma</p><p>nova significação do currículo a partir de uma educação ou de uma pe-</p><p>dagogia decolonial.</p><p>Por isso, na mesma linha de pensamento, torna-se ne-</p><p>cessário avaliar os contextos históricos e culturais de</p><p>produção do conhecimento, pondo de lado hierarquias</p><p>de capacidade de produção de conhecimento, incessan-</p><p>temente criados pelas grandes instituições e universida-</p><p>des do norte global (KHAN; MORGADO, 2014, p. 4).</p><p>Desta forma, entendemos que o currículo poderia tornar-se um po-</p><p>tente mecanismo de discussões e inclusões de aspectos e temáticas outrora</p><p>silenciados, rompendo com os “apagamentos” e ampliando seus significa-</p><p>dos. Assim, uma das ressignificações do currículo escolar poderia ser rea-</p><p>lizada através de discussões referentes aos estudos de uma educação de-</p><p>colonial e suas múltiplas possibilidades de elaboração e execução de um</p><p>currículo contextualizado, que tenha como elemento central a promoção</p><p>de uma ruptura com o tradicionalismo e conservadorismo nos conteúdos</p><p>de Ciências Humanas na educação básica, levando a um questionamen-</p><p>to dos conteúdos e da desnaturalização do conhecimento oficial. Assim,</p><p>adiante iremos discutir as possibilidades de articulação entre a educação</p><p>decolonial e o currículo narrativo, proposto por Ivor Goodson.</p><p>Educação Decolonial Através do Currículo Narrativo</p><p>A dominação europeia implicou formas de silenciamento e acul-</p><p>turação dos povos nativos e promoveram, para além de uma dominação</p><p>econômica e política, um processo de controle social e de formas hege-</p><p>mônicas do exercício do poder, sempre em consonância com os preceitos</p><p>econômicos europeus, desprezando ou arrancando as culturas nativas</p><p>e suas múltiplas possibilidades.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>62</p><p>Em relação aos projetos educacionais no continente america-</p><p>no colonial, muitas vezes, estavam relacionados às práticas jesuíticas,</p><p>bem como suas premissas de ordem, disciplina e obediência que deve-</p><p>riam ser amplamente aplicadas no então Novo Mundo. Assim, os proces-</p><p>sos de colonização e educação imbricam-se dentro de uma ampla pers-</p><p>pectiva de controle e do estabelecimento de fortes relações econômicas</p><p>para fortalecer o sistema colonial, forjando um domínio cultural e epis-</p><p>têmico, construído ao longo de séculos, baseado em violência, opres-</p><p>são e silenciamento. Dessa forma, é através da perspectiva do domínio</p><p>colonial, (Séculos XV e XVI) e do processo de neocolonialismo (Século</p><p>XIX) que as práticas educacionais foram planejadas e executadas dentro</p><p>do continente americano, e posteriormente na Ásia e África.</p><p>A produção do conhecimento ocorre dentro de uma estrutura,</p><p>não sendo inócuo ou neutro, mas sim, revestido de intencionalidades,</p><p>vinculada a um determinado projeto. Neste caso, um projeto colonial (a</p><p>colonização da América), no qual o conhecimento e sua opção de inclu-</p><p>são em políticas públicas torna-se um eixo de permanências e narrativas</p><p>vinculadas ao colonizador,</p><p>através de um currículo prescrito e monocrá-</p><p>tico, tem provocado consequências e silenciamentos em diversos grupos</p><p>e sentidos, aprisionados pelo colonizador, seja através da belicosidade</p><p>ou de sua epistemologia. E seria esta discussão que buscamos neste</p><p>estudo: compreender as possibilidades da educação decolonial através</p><p>da construção de um currículo narrativo.</p><p>De acordo com Lander os currículos refletem um conhecimento</p><p>colonizado e imperial, sendo assim, precisamos analisar os processos</p><p>deste currículo e suas possibilidades de questionamento decolonial.</p><p>Esta é uma construção eurocêntrica, que pensa e organi-</p><p>za a totalidade do tempo e do espaço para toda a humani-</p><p>dade do ponto de vista de sua própria experiência, colo-</p><p>cando sua especificidade histórico-cultural como padrão</p><p>de referência superior e universal. Mas, é ainda mais que</p><p>isso. Este metarrelato da modernidade como dispositivo</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>63</p><p>é um dispositivo de conhecimento colonial e imperial em</p><p>que se articula essa totalidade de povos, tempo e espaço</p><p>como parte de organização colonial/imperial do mundo</p><p>(LANDER, 2005, p. 13).</p><p>Neste cenário consideramos que a perspectiva da educação deco-</p><p>lonial constitui-se como um elemento de mudança de paradigma no pro-</p><p>cesso educacional, pois suas premissas nos permitem uma abordagem</p><p>mais completa e dedicada ao diálogo, participação e valorização da his-</p><p>tória do outro, conforme podemos observar nos trabalhos de Boaventura</p><p>de Sousa Santos (2018); Luciana Ballestrin (2013); Catherine Walsh</p><p>(2018); Luiz Fernandes Oliveira (2018); Victor Giraldo (2019); Walter</p><p>Mignolo (2020) e Edgardo Lander (2005).</p><p>Segundo Ballestrin (2013), o processo histórico que abarca as dis-</p><p>cussões acerca da abordagem decolonial, envolve a questão do pós colo-</p><p>nialismo, nos anos 60, podendo apresentar dois entendimentos: o pri-</p><p>meiro referindo-se a um tempo histórico e cronológico dos processos</p><p>de emancipação das sociedades exploradas através das políticas neo-</p><p>coloniais, e o segundo entendimento pode ser percebido pelas contri-</p><p>buições teóricas vindas dos estudos literários e culturais, nos anos 80,</p><p>principalmente dos EUA e da Inglaterra. Dialogando com este último,</p><p>na década de 90 surge o grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), no qual</p><p>através de diversas conferências emergem análises e possibilidades para</p><p>uma nova abordagem nos estudos de Humanidades e Ciências Sociais</p><p>da América Latina, a partir das importantes contribuições de Walter</p><p>Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano. Através de novas influências</p><p>teóricas, leituras e problematizações, estes autores propõem a opção</p><p>decolonial como forma epistêmica, teórica e política de ruptura com o</p><p>eurocentrismo enraizado das discussões latino-americanas. Este grupo,</p><p>durante os anos 2000, incorporou o pensamento de Catherine Walsh,</p><p>Nelson Maldonado-Torres e Boaventura de Sousa Santos, vislumbrando</p><p>um desdobramento das discussões relacionadas ao processo decolonial</p><p>na cultura, política, economia e educação nas nações colonizadas pelos</p><p>europeus (BALLESTRIN, 2013).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>64</p><p>A proposta decolonial apresenta uma perspectiva que permite</p><p>a valorização do outro colonizado, não concentrando suas análises so-</p><p>mente no colonizador, mas na estrutura e nos processos que operaram</p><p>as relações sociais, culturais, econômicas e políticas, valorizando prá-</p><p>ticas identitárias locais ao buscar a ruptura e a superação aos padrões</p><p>eurocêntricos.</p><p>Decolonialidade, portanto, é visibilizar as lutas contra a</p><p>colonialidade a partir de pessoas, das suas práticas so-</p><p>ciais, epistêmicas e políticas. A decolonialidade repre-</p><p>senta uma estratégia que vai além da transformação da</p><p>descolonização, ou seja, propõe-se também como cons-</p><p>trução e criação. Sua meta é a reconstrução radical do</p><p>ser, do poder e do saber (OLIVEIRA, 2018, p. 54).</p><p>Assim, visa articular elementos e narrativas de resistência, carac-</p><p>terizadas pelo processo de silenciamento e “apagamento” de grupos,</p><p>histórias e perspectivas, buscando oferecer um campo de possibilidades</p><p>e de reconstrução crítica que possa romper com dualidades ou mani-</p><p>queísmos presentes nas narrativas eurocentradas, fomentando, assim,</p><p>novos campos empíricos do conhecimento. Neste sentido, podemos</p><p>compreender, por exemplo, que o silenciamento das histórias dos po-</p><p>vos nativos do continente americano, seja através de práticas políticas</p><p>e embates militares ou da construção de narrativas que desprezem e di-</p><p>minuem o próprio nativo frente à relação com os europeus, são perspec-</p><p>tivas colonizadoras, pois, diversas vezes, retratam os indígenas como os</p><p>“próprios algozes de suas histórias”, justificando sua dominação e des-</p><p>truição cultural pelos europeus. Esta narrativa, eurocentrada e marcada</p><p>pelos interesses coloniais, manteve-se nos processos educacionais, cur-</p><p>rículo, literatura, história e visão sobre estes povos.</p><p>A decolonialidade se refere, portanto, a posicionamentos,</p><p>posturas, horizontes e projetos de resistência, de trans-</p><p>gressão, de intervenção e de insurgência (GIRALDO;</p><p>FERNANDES, 2019, p. 470).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>65</p><p>Com a intenção de ruptura com a proposta educacional caracte-</p><p>rizada pelo eurocentrismo e colonialismo, a educação decolonial busca</p><p>superar dicotomias e ampliar a compreensão das narrativas, permitindo</p><p>possibilidades de interpretação e valorização do outro, dentro de uma</p><p>perspectiva plural e dialógica.</p><p>Deste modo, acreditamos que a proposta de uma educação decolo-</p><p>nial possa ser inserida dentro da perspectiva de um currículo narrativo.</p><p>Ao abordarmos o currículo, através de uma perspectiva narrativa, con-</p><p>cordamos com os pressupostos teóricos de Ivor Goodson, os quais valo-</p><p>rizam as histórias de vida e as relações sociais como práticas identitárias</p><p>e indissociáveis ao sujeito, nas quais as narrativas revelam um campo</p><p>de possibilidades e experiências.</p><p>De acordo com Goodson, a narrativa possibilita a inclusão e a valo-</p><p>rização das histórias de vida como um mecanismo condutor do processo</p><p>educacional, promovendo uma alteração de uma prática prescrita e ba-</p><p>seada em elementos construídos por grupos que, muitas vezes, não con-</p><p>tribuíram para a elaboração destas normas, e não se localizam enquanto</p><p>sujeitos do processo. Assim, torna-se imperativo e urgente uma prática</p><p>narrativa onde o professor assuma-se como sujeito de promoção das ati-</p><p>vidades educacionais, ao ter uma voz efetiva na condução dos conteúdos.</p><p>Neste sentido, o processo de deslocamento para a narrativa pressupõe</p><p>uma quebra de ordenamento, viabilizando o questionamento de uma</p><p>tradicional ordem e naturalização frente ao documento, questionan-</p><p>do o currículo e tornando-o, de fato, presente e atuante nos processos</p><p>de ensino e aprendizagem.</p><p>Narrativas são vividas e experimentadas assim como</p><p>são contadas: elas podem ser descobertas, criadas, con-</p><p>tadas e recontadas. Narrativas são concretas e de final</p><p>aberto: requerem flexibilidade, fidelidade e imaginação.</p><p>São experienciais e, ao contá-las, fornecem uma manei-</p><p>ra de descrever e conectar mundos de vida alternativos,</p><p>de construir sistemas de símbolos e valores, regras e re-</p><p>gulações, permissões e estruturas de poder (GOODSON,</p><p>2019, p. 108).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>66</p><p>Ao apresentarmos o processo da construção de um currículo nar-</p><p>rativo, pretendemos valorizar os conhecimentos e narrativas que se</p><p>encontram silenciados no currículo oficial/prescrito, que foi elaborado</p><p>a partir de outros princípios e projetos que agora encontram-se sob pro-</p><p>fundos questionamentos e processos de ruptura. Neste sentido, o currí-</p><p>culo narrativo constitui-se como um caminho promissor para a inserção</p><p>da perspectiva decolonial na educação, em especial, a proposição de um</p><p>currículo decolonial. Acreditamos que o currículo narrativo possa per-</p><p>mitir que, através das experiências de vida e das práticas cotidianas</p><p>seja</p><p>realizada uma ressignificação da educação, uma vez que há uma ruptura</p><p>no processo de elaboração e execução do currículo.</p><p>The reason we put so much emphasis on narrative cur-</p><p>riculum is because it sits at the intersection of perhaps</p><p>the most major border crossing of all with regard to how</p><p>disenfranchised groups approach the unfamiliar world</p><p>of schooling and curriculum. This is because most tribal</p><p>groups or disenfranchised groups, whether they be: indi-</p><p>genous peoples or working-class constituencies or other</p><p>groups that have been subjugated to oppression (such as</p><p>women and gay minorities). All have a common sense of</p><p>oral culture as a major way of transmitting their values.</p><p>So, in their initial instantiation all of these groups learn</p><p>through talking and through talking with each other par-</p><p>ticularly (GOODSON; PETRUCCI-ROSA, 2020, p. 388).</p><p>Nesta proposta, o currículo passa a ter como foco as histórias</p><p>de vida e contextos plurais de desenvolvimento com destaque para</p><p>os aspectos locais e de forte relevância para o grupo, sem qualquer es-</p><p>calonamento ou hierarquização de conhecimentos, conforme ocorre</p><p>em documentos curriculares homogêneos e unidirecionais.</p><p>Como revalorizar as vozes silenciadas na escola? Como</p><p>promover o confronto e o diálogo das subjetividades?</p><p>Como tornar a escola um espaço para a reinvenção do</p><p>futuro? (MOREIRA, 1997, p. 26).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>67</p><p>Assim, ao alinharmos os pressupostos de um currículo decolonial</p><p>aos pressupostos de um currículo narrativo, pretendemos relacionar</p><p>e chamar a atenção para o fato de que muitos conhecimentos, e com</p><p>extrema relevância para diversas comunidades, foram silenciados/ocul-</p><p>tados em nome de grupos tradicionais que promoviam uma repetição</p><p>de conteúdos e conhecimentos, em nome de uma hegemonia cultural.</p><p>Consideramos que as histórias de vida permitiriam a revelação</p><p>de elementos do processo educacional e do currículo que o sistemati-</p><p>za, tornando temáticas invisibilizadas em eixos centrais das narrativas</p><p>de grupos/comunidades, focalizando práticas que outrora foram margi-</p><p>nalizados ou esquecidos.</p><p>A importância desta discussão constitui-se em uma inovação te-</p><p>órica ao propor a articulação entre a proposta da pedagogia decolonial</p><p>e o currículo narrativo, bem como oferecer novas possibilidades de diá-</p><p>logo aos professores em exercício da Educação Básica, proporcionando</p><p>um espaço de reflexão e conscientização frente às novas interpretações</p><p>e potencialidades de uma educação decolonial.</p><p>Assim, buscamos incrementar as práticas didáticas dos professo-</p><p>res, levando-os a desnaturalizar e questionar os conhecimentos, e a for-</p><p>ma de abordagem proposta pelos currículos tradicionais, subvertendo</p><p>uma ordem dominante e finalidade específica de um currículo, dotando-</p><p>-lhe de humanidade, diálogo e resgate sócio-histórico.</p><p>Considerações Finais</p><p>Os processos educacionais são complexos e multifacetados, assim</p><p>ao adentrarmos o campo do currículo nos deparamos com importantes</p><p>discussões e contribuições com vistas a compreender melhor suas forças</p><p>e tensões constituintes. O currículo e suas políticas tornam-se pilares</p><p>fundacionais para oferecer possibilidades mais completas de análise</p><p>de suas escolhas e metodologias, bem como dos conteúdos presentes</p><p>a sua prescrição. O processo de construção e execução do currículo</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>68</p><p>tem um forte impacto sobre os processos de ensino-aprendizagem e so-</p><p>bre as políticas de formação de professores, mas também nos fornece</p><p>indícios robustos de manutenção de poderes e silenciamento de gru-</p><p>pos, algumas vezes atuando como um elemento aprisionador, e não</p><p>libertador.</p><p>A educação decolonial possibilita um questionamento e uma des-</p><p>naturalização de temáticas, outrora, e ainda hoje, consideradas naturais</p><p>ou clássicas, que intentam descontruir e romper paradigmas epistêmi-</p><p>cos de análise e compreensão de sociedades ou grupos sociais, muitas</p><p>vezes retratados como vencidos ou inferiores, onde na verdade são víti-</p><p>mas de uma exploração política, econômica, social e cultural que visava</p><p>a manutenção de poderes e dos saberes.</p><p>Os aspectos vinculados as questões de memória, história e narra-</p><p>tivas podem permitir uma alteração na ordem e no status dos conheci-</p><p>mentos, sendo o currículo narrativo um dos fortes mecanismos de apre-</p><p>sentação e valorização destas narrativas, rompendo com um classicismo</p><p>eurocentrado e possibilitando a construção de uma educação outra, dia-</p><p>lógica e crítica, transgredindo uma suposta ordem linear e progressista,</p><p>possibilitando questionamentos e uma presença das ausências.</p><p>Consideramos que em momentos de intensos debates, questio-</p><p>namentos e discussões sobre os processos curriculares e suas altera-</p><p>ções, a valorização das vozes silenciadas emerge como uma poderosa</p><p>episteme de luta, afirmações e (re)existências nos espaços curriculares</p><p>contemporâneos.</p><p>Referências</p><p>BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o Giro decolonial. Revista Brasileira</p><p>de Ciência Política, nº 11, Brasília, p. 89-117, maio/ago. 2013.</p><p>GIRALDO, Victor; FERNANDES, Filipe. Caravelas à vista: giros decoloniais</p><p>e caminhos da resistência na formação de professoras e professores que</p><p>ensinam matemática. Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação</p><p>Matemática da UFMS, v. 12, n. 20, 2019.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>69</p><p>GOODSON, Ivor F. Currículo, Narrativa e o Futuro Social. Revista Brasileira de</p><p>Educação, v. 12, n. 35, p. 241-252, maio/ago. 2007.</p><p>GOODSON, Ivor F. Currículo: Teoria e História. 9. ed. Petrópolis: Editora Vozes,</p><p>2010.</p><p>GOODSON, Ivor F. Narrativas em Educação: a vida e a voz dos professores.</p><p>Porto: Porto Editora, 2015.</p><p>GOODSON, Ivor F. Currículo, narrativa pessoal e futuro social. Campinas:</p><p>Editora da Unicamp, 2019.</p><p>GOODSON, Ivor F.; PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. Curriculum as narrative:</p><p>crossing borders for a decolonized education. TraHs, n. 8, 2020, p. 376-390:</p><p>Narrativas de maestras (os) y normalistas en el giro decolonial.</p><p>KHAN, Sheila; MORGADO, José Carlos. Caminhos desobedientes: pensar</p><p>criticamente o contexto português de conhecimento. Revista de Sociologia,</p><p>on-line, v. 12, 2014.</p><p>LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. A</p><p>colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-</p><p>americanas. Edgardo Lander (org.). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad</p><p>Autónoma de Buenos Aires, Argentina, p. 7-24, 2005.</p><p>MIGNOLO, Walter D. História Locais/Desejos Globais: colonialidade, saberes</p><p>subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.</p><p>MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa. Currículo, utopia e pós modernidade. In:</p><p>MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa (org.). VEIGA-NETO, Alfredo; MACEDO,</p><p>Elizabeth Fernandes de; LOPES, José de Souza Miguel; SANTOS, Lucíola L.</p><p>De Castro P.; CORAZZA, Sandra Mara. Currículo: questões atuais. Campinas:</p><p>Editora Papirus, 1997.</p><p>MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa. Currículo: Políticas e Práticas. Campinas:</p><p>Editora Papirus, 2013.</p><p>MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa. O Campo do currículo no Brasil: os anos</p><p>noventa. Revista Currículo sem Fronteiras, v. 1, n. 1, p. 35-49, jan./jun. 2001.</p><p>OLIVEIRA, Luiz Fernandes. Educação e militância decolonial. Rio de Janeiro:</p><p>Editora Selo Novo, 2018.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>70</p><p>PACHECO, José Augusto. Escritos curriculares. São Paulo: Editora Cortez,</p><p>2005.</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. Experiências interdisciplinares e formação de</p><p>professore(a)s de disciplinas escolares: imagens de um currículo-diáspora. Pro-</p><p>Posições, v. 18, n. 2 (53), p. 51-65, maio/ago. 2007.</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês; CORRÊA, Bianca Rodrigues; RAMOS, Tacita</p><p>Ansanello; SOARES, Admir J. Narrativas e mônadas – potencialidades para uma</p><p>outra compreensão de currículo. Revista Currículo Sem Fronteiras, v. 11, n. 1,</p><p>p. 198-217, jan./jun. 2011.</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. A jornada do conhecimento, das políticas</p><p>curriculares às histórias de vida (1996-2015). 155f. Tese (Livre-Docência</p><p>em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas,</p><p>Campinas, 2016.</p><p>PIZA, Suze O.; PANSARELLI, Daniel. Sobre a descolonização do conhecimento:</p><p>a invenção de outras epistemologias. Estudos de Religião, v. 26, n. 43, p. 25-35,</p><p>2012.</p><p>SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. Identidades terminais – As transformações na</p><p>política da pedagogia e na pedagogia da política. Petrópolis: Editora Vozes,</p><p>1996.</p><p>SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. Documentos de identidade: uma introdução as</p><p>teorias do currículo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010.</p><p>WALSH. Catherine; OLIVEIRA; Luiz Fernandes; CANDAU, Vera Maria Ferrão.</p><p>Colonialidade e pedagogia decolonial: Para pensar uma educação outra.</p><p>Arquivos Analíticos de Políticas educativas, 26(83), 2018.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>71</p><p>As narrativas como recurso pedagógico</p><p>na formação de professores e</p><p>professoras para as escolas do campo</p><p>Antony Josué Corrêa1</p><p>Gabriela Furlan Carcaioli2</p><p>Natacha Eugênia Janata3</p><p>Introdução</p><p>Separe-se de seus amigos na estação</p><p>De manhã vá à cidade com o casaco</p><p>abotoado</p><p>Procure alojamento, e quando seu</p><p>camarada bater:</p><p>Não, oh, não abra a porta</p><p>Mas sim</p><p>Apague as pegadas!</p><p>1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América</p><p>Latina e Caribe (TerritoriAL), na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho",</p><p>professor da educação básica. E-mail: antonyjosue@gmail.com.</p><p>2 Doutora em Ensino de Ciências e Matemática e docente no curso de Licenciatura em</p><p>Educação do Campo, na Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: gabriela.carcaio-</p><p>li@ufsc.br.</p><p>3 Doutora em Educação e docente no curso de Licenciatura em Educação do Campo, na</p><p>Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: natacha.janata@ufsc.br.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>72</p><p>Este texto compõe o capítulo de um livro que aborda as narrati-</p><p>vas na formação de professores como temática central. Tendo em vista</p><p>nossa inserção no contexto das escolas do campo e sobretudo, a experi-</p><p>ência na Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal</p><p>de Santa Catarina, tivemos como objetivo refletir sobre as potencialida-</p><p>des das narrativas como recurso pedagógico na formação de professo-</p><p>res a partir da experiência do estágio supervisionado no Ensino Médio</p><p>ocorrido em 2017.</p><p>Embora para os mais próximos da Licenciatura em Educação</p><p>do Campo a origem, contexto e trajetória do Movimento de Educação</p><p>do Campo seja algo conhecido, compreendemos como relevante iniciar</p><p>apresentando alguns desses aspectos a fim de situar possíveis leitores</p><p>recém-chegados nesta discussão. Na sequência trazemos os principais</p><p>conceitos que fundamentam a compreensão das narrativas, para então</p><p>apresentarmos a experiência do estágio supervisionado e refletirmos</p><p>com ela as potencialidades das narrativas na formação de professores</p><p>e professoras para as escolas do campo.</p><p>Trajetória Histórica da Educação do Campo</p><p>A colonização brasileira garantiu a formação das elites pelo acesso</p><p>à educação formal, a qual foi negada aos trabalhadores e trabalhadoras,</p><p>desde os indígenas, catequizados e dizimados, seguidos pelos africanos</p><p>escravizados e os imigrantes. A esses e essas a escola não se fazia neces-</p><p>sária, uma vez que o entendimento era o de que as atividades laborais</p><p>não necessitavam do acesso aos conhecimentos científicos, técnicos,</p><p>artísticos e filosóficos, como demonstra Saviani (2007) e destaca Leite</p><p>(1999).</p><p>A preocupação com a educação dos rurais, termo utilizado ao lon-</p><p>go da história brasileira, vai aparecer somente na Constituição Brasileira</p><p>de 1934, com o intuito de refrear o movimento de migração do campo</p><p>para a cidade e “fixar o homem no campo” (BRASIL, 1934), além de au-</p><p>mentar os níveis de produtividade no campo, com o que ficou conhecido</p><p>como ruralismo pedagógico.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>73</p><p>O pano de fundo dessa condição é denominado por Oliveira (2003)</p><p>como o processo de desenvolvimento desigual e combinado assumido pe-</p><p>las elites que governavam o país, em que a industrialização e a urbani-</p><p>zação aliaram o moderno e o atrasado. O campo, nos moldes do atraso,</p><p>gerou as condições para o avanço da industrialização na cidade, porém</p><p>ambos determinados pelo capital externo, como reforça o autor.</p><p>Ao fim dos anos 1950 e ao longo da década seguinte, o país viveu</p><p>o que Wanderley (1996) denomina como a modernização conservadora</p><p>na agricultura, a qual ficou sob o comando dos latifundiários e influencia-</p><p>da pelo modelo estadunidense, tendo como ponto de apoio político e eco-</p><p>nômico o golpe de 1964 e a ditadura militar instaurada no Brasil até 1985.</p><p>Nos anos 1960 os pacotes tecnológicos e os convênios estabelecidos</p><p>entre o Ministério da Educação (MEC) do Brasil e a Agência dos Estados</p><p>Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID – United States</p><p>Agency for International Development), no contexto do programa de co-</p><p>operação técnico e financeira intitulado Aliança para o Progresso, mais</p><p>reconhecido como os Acordos MEC-USAID, trouxeram um reforço para</p><p>a educação rural. Entretanto, como afirma Natividade (2018), foi uma</p><p>estratégia de disseminação da modernização na agricultura submeti-</p><p>da aos interesses de expansão de capitais dos Estados Unidos utilizando</p><p>a educação como forma de convencimento de que o campo era o lugar</p><p>do atraso. Como afirma a autora, o “real objetivo repousava em suplan-</p><p>tar a educação escolar, transformando-a em uma educação produtivista”</p><p>(NATIVIDADE, 2018, p. 307), desqualificando os saberes dos/as trabalha-</p><p>dores/as rurais, colocando-os como atrasados, pouco produtivos e impe-</p><p>lindo-os a substituírem pelos modernos conhecimentos tecnológicos vol-</p><p>tados aos interesses do imperialismo estadunidense.</p><p>Wanderley (1996) e Graziano da Silva (1982) destacam que houve</p><p>consequências estruturais de empobrecimento da população rural e de</p><p>expulsão dos trabalhadores da terra. Sendo assim, a década de 1960 tam-</p><p>bém é marcada pela crise nesse formato, mediante o aumento da paupe-</p><p>rização nas periferias das grandes cidades e a organização coletiva dos/</p><p>as trabalhadores/as em movimentos sociais populares, tanto no campo</p><p>quanto na cidade.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>74</p><p>Vale destacar que desde a colonização houve processos de resis-</p><p>tência e lutas empreendidas pelos sujeitos do campo, sejam indígenas,</p><p>africanos/as escravizados/as, trabalhadores/as rurais, entre outros.</p><p>O Movimento de Educação do Campo é herdeiro de tais enfrentamentos</p><p>posto que há um fio histórico que liga a colonização à modernização</p><p>conservadora, com a concentração fundiária e a expulsão dos sujeitos</p><p>do campo e, ao mesmo tempo, as resistências e a luta por terra organiza-</p><p>da coletivamente. Considerando a extensão e foco deste texto nos detere-</p><p>mos nos movimentos e acontecimentos basilares da Educação do Campo</p><p>mais recentes abordando alguns aspectos desde meados do século XX.</p><p>No final da década de 1950 e início dos anos 1960, com a intensi-</p><p>ficação do processo migratório campo-cidade e a consequente paupe-</p><p>rização das pessoas, ao mesmo tempo em que permanece a dificuldade</p><p>de acesso à educação formal pelos/as trabalhadores/as, constituem-se</p><p>experiências de Educação Popular. Paludo (2008) cita o Movimento</p><p>de Cultura Popular, do qual Paulo Freire participou ativamente;</p><p>os Centros Populares de Cultura, ligado à União Nacional dos Estudantes</p><p>e o Movimento de Educação de Base, vinculado a uma ala da igreja cató-</p><p>lica entendida como progressista.</p><p>Na década seguinte, mesmo sob forte repressão da ditadura mili-</p><p>tar, Medeiros (1989) demonstra que houve várias lutas por terra, geradas</p><p>como respostas ao modelo de desenvolvimento adotado. Eclodiram re-</p><p>sistências dos/as posseiros/as, seringueiros/as, trabalhadores/as expul-</p><p>sos da terra sejam pela construção de usinas hidrelétricas ou pela incor-</p><p>poração de maquinários;</p><p>greve dos assalariados rurais; manifestações</p><p>por preços mínimos exigidos pelos pequenos agricultores, sendo esses</p><p>alguns dos exemplos citados pela autora.</p><p>Essas experiências foram essenciais para que, com a reabertura de-</p><p>mocrática do país em meados dos anos 1980 se intensificasse a organiza-</p><p>ção coletiva e as mobilizações voltadas à garantia de acesso à educação,</p><p>saúde, terra, moradia, saneamento, entre outros, aliadas às transforma-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>75</p><p>ções estruturais, consolidando a criação de vários movimentos sociais</p><p>populares do campo, entre eles o Movimento dos Trabalhadores Rurais</p><p>Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o</p><p>Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA).</p><p>A luta pela reforma agrária e pelo acesso à terra foi se consoli-</p><p>dando no país pela atuação desses coletivos organizados, com expressão</p><p>nacional assumida ao longo dos anos 1990 pelo MST, o qual contribuiu</p><p>também para o fortalecimento dos demais movimentos sociais do cam-</p><p>po no sentido da ampliação do enfrentamento dos/as trabalhadores/as</p><p>do campo às relações sociais de produção capitalista. Com a reabertura</p><p>política houve avanços da mobilização e de algumas conquistas e com</p><p>isto foi se percebendo a importância de assumir a educação e outras</p><p>demandas também nas pautas destes movimentos, a fim de garantir</p><p>o acesso a um conjunto de direitos básicos negados historicamente à po-</p><p>pulação camponesa, segundo registra Anhaia (2011).</p><p>Esse é o contexto histórico que demarca a origem da Educação</p><p>do Campo, primeiro como movimento, articulação política entre os su-</p><p>jeitos coletivos que já realizavam distintas experiências junto aos/às</p><p>trabalhadores/as do campo, depois como conceito, formulação prático-</p><p>-teórica, a fim de delimitar as concepções basilares que unificam os di-</p><p>ferentes movimentos sociais populares e instituições em torno da luta</p><p>pelo acesso à escolarização de qualidade, com sentido e significado</p><p>aos sujeitos do campo. Portanto, como destacado por Caldart (2012),</p><p>a materialidade de origem da Educação do Campo são as lutas sociais.</p><p>O I Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (I ENERA),</p><p>ocorrido de 28 a 31 de julho de 1997 explicitou a existência de diferentes</p><p>práticas educativas que buscavam uma conexão com as relações sociais</p><p>concretas de produção da vida no campo, associadas aos interesses dos/</p><p>as trabalhadores/as. Anhaia (2011) demonstra a importância histórica</p><p>deste momento para a consolidação da Educação do Campo,</p><p>Muito embora as práticas construídas por diferentes su-</p><p>jeitos do campo não se fizeram presentes na sua totali-</p><p>dade no I ENERA […] temos que entendê-lo como sín-</p><p>tese e possibilidade de um processo maior de educação.</p><p>Síntese, porque traz para a discussão, em âmbito nacio-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>76</p><p>nal, experiências vivenciadas nos mais diferentes esta-</p><p>dos no trabalho com educação formal e não formal no</p><p>campo brasileiro. […] Possibilidades, no sentido de que</p><p>foi possível desencadear uma série de ações que con-</p><p>tribuíram para que o Movimento Nacional de Educação</p><p>do Campo pudesse se consolidar, além de trazer para o</p><p>âmbito nacional a discussão de uma educação compro-</p><p>metida com, porque construída com, os trabalhadores do</p><p>campo. […] Podemos dizer que o I ENERA impulsionou a</p><p>discussão da educação do campo, levando os sujeitos do</p><p>campo a pensar a necessidade de compreender melhor a</p><p>realidade rural brasileira e a educação que se faz presen-</p><p>te neste espaço (ANHAIA, 2011, p. 66).</p><p>A finalização do evento foi marcada pelo compromisso de reali-</p><p>zação de uma conferência nacional, sendo que no mês seguinte ocor-</p><p>rem as primeiras reuniões organizativas e um ano após foi realizada a I</p><p>Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, sob a pro-</p><p>moção do MST, da Universidade de Brasília, da Conferência Nacional</p><p>dos Bispos do Brasil (CNBB), do Fundo das Nações Unidas para a Infância</p><p>(Unicef), e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência</p><p>e a Cultura (Unesco). Segundo Anhaia (2011) foi um momento que reu-</p><p>niu movimentos e organizações do Brasil envolvidos com a educação</p><p>de distintos segmentos de trabalhadores/as do campo, envolvendo su-</p><p>jeitos do MST, do MAB, da agricultura familiar, dos indígenas, dos povos</p><p>da floresta, dos ribeirinhos, quilombolas, dos sindicatos de trabalhado-</p><p>res rurais, entre outros.</p><p>O caderno de textos preparatórios à I Conferência assume uma im-</p><p>portância histórica, uma vez que é neste documento que o termo Educação</p><p>do Campo foi inaugurado. Nele é expressa uma concepção oposta à das</p><p>políticas governamentais existentes, tanto no que diz respeito à educa-</p><p>ção rural, como também na compreensão de campo, trazendo-o como</p><p>lugar de produção da vida, em suas mais diversas dimensões. Em trecho</p><p>de um dos textos, Kolling, Nery e Molina (1999) afirmam que:</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>77</p><p>Não basta ter escolas no campo; quer-se ajudar a cons-</p><p>truir escolas do campo, ou seja, escolas com um projeto</p><p>político pedagógico vinculado às causas, aos desafios,</p><p>aos sonhos, à história e à cultura do povo trabalhador do</p><p>campo (KOLLING; NERY; MOLINA, 1999, p. 29).</p><p>Uma das principais conquistas no âmbito das políticas oriundas</p><p>desse processo de aglutinação de forças ocorreu em 1998, com a institui-</p><p>ção do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA).</p><p>Cabe destacar a relevância que este programa assumiu para a consolida-</p><p>ção da Educação do Campo devido ao acúmulo de experiências produ-</p><p>zidas em todo o país. Como afirmam Fernandes e Tarlau (2017, p. 562),</p><p>essa “política expandiu a educação do campo para todo o Brasil e pos-</p><p>sibilitou a milhares de pessoas o acesso à educação em todos os níveis”.</p><p>Com a continuidade e o fortalecimento da articulação entre os mo-</p><p>vimentos e instituições em torno da Educação do Campo, outras con-</p><p>quistas no âmbito das políticas foram alcançadas após a I Conferência.</p><p>Um exemplo foi a aprovação no Conselho Nacional de Educação</p><p>da Resolução CNE/CEB nº 1, em 03 de abril de 2002, denominada como</p><p>Diretrizes Operacionais para a educação básica nas escolas do campo.</p><p>Em julho de 2004 ocorreu a II Conferência Nacional por uma</p><p>Educação do Campo, agregando cerca de 39 movimentos sociais, sindi-</p><p>cais e outras entidades em torno do lema “Educação do Campo: direi-</p><p>to nosso, dever do Estado!”. Como ressalta Caldart (2012), a ampliação</p><p>ocorrida se relaciona com o momento vivido no país, de avanço na con-</p><p>quista de direitos pelos/as trabalhadores/as do campo, ao mesmo tempo</p><p>em que a Educação do Campo vai se institucionalizando nos quadros</p><p>do Estado, com a criação de instâncias nos órgãos do governo federal,</p><p>estadual e municipal. É um contexto que traz tensionamentos tanto</p><p>por dentro das discussões entre os movimentos sociais e instituições</p><p>que debatem a Educação do Campo, quanto nas relações com os diferen-</p><p>tes segmentos estatais.</p><p>Uma das consequências da II Conferência foi a instituição</p><p>do Programa de Apoio às Licenciaturas em Educação do Campo</p><p>(PROCAMPO) pelo MEC e com ele a criação de uma “nova modalida-</p><p>de de graduação nas universidades públicas”, com o objetivo de “formar</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>78</p><p>e habilitar profissionais para atuação nos anos finais do ensino funda-</p><p>mental e médio, tendo como objeto de estudo e de práticas as escolas</p><p>de educação básica do campo”, como destacam Molina e Sá (2012, p.</p><p>469-468). Para Arroyo (2012, p. 361), “os movimentos sociais inauguram</p><p>e afirmam um capítulo na história da formação pedagógica e docente”</p><p>ao protagonizarem a luta pela Educação do Campo, projetando outro</p><p>modelo de sociedade e escola e fazendo com que outra concepção de for-</p><p>mação seja pensada.</p><p>Desde sua concepção, os cursos de Licenciatura em Educação</p><p>do Campo (LEdoC) preveem a formação de educadores e educadoras ca-</p><p>pazes de exercerem a docência interdisciplinar, de realizarem a gestão</p><p>de</p><p>processos educativos escolares, bem como comunitários. Nas LEdoC,</p><p>o objetivo é de formar educadores com noção de totalidade, capazes</p><p>de formularem sínteses básicas e críticas em relação aos conteúdos cien-</p><p>tíficos, aos projetos de formação humana, de campo, de agricultura e de</p><p>sociedade.</p><p>Procuramos refletir neste texto sobre uma das experiências ocorri-</p><p>das em 2017 na realização do estágio supervisionado no Ensino Médio4,</p><p>atividade que integra disciplinas ofertadas no último ano da Licenciatura</p><p>em Educação do Campo da Universidade Federal de Santa Catarina</p><p>(Educampo/UFSC). O estágio docência (ED) foi desenvolvido em uma</p><p>escola do campo5, junto à turma do 2° ano do Ensino Médio. As narrati-</p><p>vas foram mobilizadoras das experiências e saberes dos educandos e das</p><p>educandas, da comunidade escolar e local, tendo como elemento cen-</p><p>tral a Guerra do Contestado, dando subsídios para a organização do es-</p><p>tágio nos diferentes momentos pedagógicos e para a seleção de con-</p><p>teúdos na regência das aulas de Ciências da Natureza (compreendida</p><p>nos componentes curriculares escolares de Química, Física e Biologia)</p><p>e Matemática. Destaca-se que nos limites deste texto, as reflexões</p><p>4 Outros detalhes e reflexões da experiência do estágio estão sistematizadas no trabalho de</p><p>conclusão de curso intitulado: Pedagogia Socialista e Educação do Campo: Reflexões a par-</p><p>tir do estágio em Ciências da Natureza, 2019.</p><p>5 A escola em questão, embora não possua a designação do campo em seu nome e projeto po-</p><p>lítico pedagógico, possui um conjunto de elementos com os quais poderíamos considerá-la</p><p>como escola do campo, o que pode ser observado a partir do estudo do território em que</p><p>está inserida e de seus sujeitos, e a partir do Decreto nº 7352 da presidência da república</p><p>de novembro de 2010. Sendo assim, embora educadores, educandos e comunidade não a</p><p>denominem como escola do campo, foi compreendida por nós desta forma.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>79</p><p>se concentram em um primeiro momento da experiência, as “Oficinas</p><p>Temáticas: produção de conhecimento no território do Contestado”, ati-</p><p>vidade principal de produção das narrativas.</p><p>A partir disso, a experiência apresentada neste texto procura pro-</p><p>blematizar o uso das narrativas como recurso para a formação de profes-</p><p>sores e professoras do campo, bem como destacar suas potencialidades</p><p>como prática pedagógica, preservando as lutas e memórias dos campo-</p><p>neses e camponesas, procurando contribuir para que a memória coletiva</p><p>esteja viva e pulsante nas práticas docentes na escola e nas comuni-</p><p>dades, portanto, corroborando para reafirmar o princípio da Educação</p><p>do Campo da luta por uma educação e escola que se conecte com a pro-</p><p>dução da vida no campo, em suas distintas dimensões e problematizan-</p><p>do as contradições.</p><p>Os tempos do processo narrativo – lembrar, narrar e refletir sobre</p><p>o vivido – e da sua análise – pré-análise, leitura temática e leitura inter-</p><p>pretativa-compreensiva (SOUZA, 2014) separam-se e interpenetram-se</p><p>ao longo deste texto, em diferentes níveis de atuação: comunidade es-</p><p>colar, estudantes, estagiários e orientadoras. Todos esses sujeitos aden-</p><p>sam esse texto em seus diferentes níveis estruturais, procurando assim</p><p>compor uma argumentação a partir das experiências que vivem em cada</p><p>tempo histórico do processo relatado, através das narrativas como re-</p><p>curso para o trabalho educativo.</p><p>Narrativas como Recurso Pedagógico</p><p>Se encontrar seus pais na cidade de</p><p>Hamburgo ou em outro lugar</p><p>Passe por eles como um estranho,</p><p>vire na esquina, não os reconheça</p><p>Abaixe sobre o rosto o chapéu que</p><p>eles lhe deram</p><p>Não, oh, não mostre seu rosto</p><p>Mas sim,</p><p>Apague as pegadas!</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>80</p><p>O ato de narrar é também o ato de rememorar, de buscar nas me-</p><p>mórias, as imagens do passado. Ao narrar, os sujeitos se encontram,</p><p>em suas memórias, juntam histórias a fatos, constroem senso de coleti-</p><p>vidade e perpetuam os vínculos sociais de determinados grupos no tem-</p><p>po presente. Juntos, são capazes de lutarem pela memória do grupo</p><p>a que pertencem, por uma memória coletiva.</p><p>A disputa em torno da legitimidade das memórias cole-</p><p>tivas de diferentes grupos dá as bases para as interpreta-</p><p>ções do passado e para as disputas políticas do presen-</p><p>te; permite o reconhecimento de genocídios, violências,</p><p>conflitos, ou contribui para seus apagamentos.</p><p>As memórias coletivas não dizem respeito, evidente-</p><p>mente, apenas aos massacres e opressões. Elas também</p><p>representam as vitórias, as resistências e as agências</p><p>passadas, sendo pedra de toque para a construção das</p><p>identidades políticas do tempo presente (DE PAULA,</p><p>2021, p. 8).</p><p>A partir de Walter Benjamin, narrar pressupõe ter experiência</p><p>para contar e compartilhar. A experiência para ele é, tudo aquilo que nos</p><p>passa, o que nos acontece, o que nos toca (LARROSA, 2002), ou seja,</p><p>a transmissão da experiência é a fonte da narração. Benjamin, em dois</p><p>célebres textos “Experiência e Pobreza” (1933) e “O Narrador” (1936),</p><p>discute como a pobreza de experiência caracteriza o mundo moderno.</p><p>Benjamin apresenta diversos argumentos para essa afirmação, entre</p><p>eles, dois são apresentados com destaque, intencionalmente neste tex-</p><p>to, devido ao tema que será abordado: as guerras e a organização capita-</p><p>lista do trabalho. Ambos são discutidos pelo autor como a problemática</p><p>do desaparecimento dos rastros.</p><p>O primeiro deles, a guerra – Primeira Guerra Mundial – fez o autor</p><p>refletir sobre como a técnica pôde superar a vida humana, transforman-</p><p>do-a e submetendo-a às mudanças radicais que mal pode-se assimilar</p><p>por conta da velocidade com que ocorrem. Para Benjamin,</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>81</p><p>A Guerra consagrou esta “queda” da experiência e da</p><p>narração; aqueles que escaparam das trincheiras volta-</p><p>ram mudos e sem experiências a compartilhar, nem his-</p><p>tórias a contar. A Primeira Guerra manifesta, com efeito,</p><p>a sujeição do indivíduo às forças impessoais e todo-po-</p><p>derosas da técnica, que só faz crescer e transforma cada</p><p>vez mais nossas vidas de maneira tão total e tão rápida</p><p>que não conseguimos assimilar essas mudanças pela pa-</p><p>lavra (GAGNEBIN, 2011, p. 59).</p><p>Além disso, a guerra provoca traumas e, de acordo com Jeffrey</p><p>Alexander (2012), o trauma cultural ocorre quando “membros de uma</p><p>coletividade sentem que foram sujeitados a eventos horrendos que dei-</p><p>xaram marcas indeléveis em suas consciências, marcando suas memórias</p><p>para sempre e modificando sua identidade futura de modo fundamental</p><p>e irrevogável” (ALEXANDER, 2012, p. 6). Autores como Alexander e ou-</p><p>tros teóricos que estudam o tema da “memória” analisam que os trau-</p><p>mas impactam nas possibilidades de vida no tempo presente e futuro.</p><p>A experiência da guerra e os traumas que ela deixa calam os sujeitos,</p><p>seja pelo medo da repetição do fato, pelas perseguições que podem vir a</p><p>ocorrer, ou simplesmente por não querer lembrar da experiência vivida</p><p>gerando, dentro dos grupos, os traumas coletivos.</p><p>[…] um trauma coletivo não é uma categoria que surge</p><p>sozinha: para haver reconhecimento do trauma, é neces-</p><p>sária sua reivindicação por parte dos sobreviventes. Mais</p><p>do que isso, é preciso que as instituições públicas caracte-</p><p>rizem o trauma deste modo, o que permite a formulação</p><p>de políticas de reparação e reconhecimento, objetivo prin-</p><p>cipal da luta dos sobreviventes (JELIN, 2017; CCV, 2014).</p><p>Assim, é preciso que quem sofreu o trauma se organize e</p><p>apresente suas demandas no espaço público. Para Pollak</p><p>(1989), a construção de memória coletiva sobre um evento</p><p>traumático depende da capacidade dos sobreviventes em</p><p>narrarem o evento, bem como pressupõe que tal evento</p><p>tenha acabado (DE PAULA, 2021, p. 19).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>82</p><p>O segundo ponto a ser discutido é a perda de narrativas a partir</p><p>do anonimato social dos/as trabalhadores/as criado pela divisão capita-</p><p>lista do trabalho. Para</p><p>Benjamin, a burguesia, a partir do fim do século</p><p>XIX vai apresentando comportamentos e hábitos que a levam a um pro-</p><p>cesso de perda de referências coletivas e a um processo de interioriza-</p><p>ção. Com isso também o sentido da palavra experiência vai se invertendo</p><p>com o surgimento de um novo conceito, o de vivência6. Como explica</p><p>Gagnebin,</p><p>No domínio psíquico, os valores individuais e privados</p><p>substituem cada vez mais a crença em certezas coletivas,</p><p>mesmo se estas não são nem fundamentalmente criti-</p><p>cadas nem rejeitadas. A história do si vai, pouco a pou-</p><p>co, preencher o papel deixado vago pela história comum</p><p>(GAGNEBIN, 2011, p. 59).</p><p>Já, aos/às trabalhadores/as das cidades ou camponeses/as que abas-</p><p>tecem as cidades com alimentos produzidos nos campos, resta apenas</p><p>o trabalho exaustivo e as condições precárias de vida. A partir disso,</p><p>Benjamin vai problematizando como a experiência, inscrita numa tem-</p><p>poralidade comum a várias gerações é transmitida pelas sociedades “ar-</p><p>tesanais” através de histórias não apenas ouvidas ou lidas, mas escuta-</p><p>das e seguidas, levando os indivíduos de uma mesma coletividade a uma</p><p>verdadeira formação. Esse modo artesanal de narrar e assim transmitir</p><p>conhecimento vai rareando na vida moderna, pois o tempo deslocado</p><p>e entrecortado do trabalho no capitalismo moderno não permite a esses</p><p>sujeitos “dar e receber um verdadeiro conselho” (GAGNEBIN, 2011, p. 58).</p><p>A partir dos dois destaques apresentados até aqui sobre a disputa</p><p>em torno da memória coletiva, dos traumas, da escassez da transmis-</p><p>são dos conhecimentos e com isso, da inversão do sentido da palavra</p><p>6 Benjamin, ao criticar a burguesia e seu comportamento, constata a inversão de sentido</p><p>no conceito de experiência – Erfahrung (Experiência) para Erlebnis (Vivência). Para ele, a</p><p>Erlebnis trata apenas do indivíduo em si, o ser em particular, mas também reflete a sua</p><p>solidão. A partir disso ele vai observando e analisando por diversos aspectos: hábitos co-</p><p>tidianos, lazer, arquitetura, decoração, tendências estéticas, materiais como tecido, vidro</p><p>entre outros, o desespero da burguesia em deixar sua marca, seus rastros em suas posses e</p><p>ao mesmo tempo, apagá-los nos espaços públicos.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>83</p><p>experiência dando lugar à vivência, que reduz o coletivo ao indivíduo,</p><p>é que a proposta de um trabalho educativo utilizando as narrativas</p><p>como recurso pedagógico pode ser mais um instrumento significativo</p><p>que contribua com as lutas e disputas em torno da memória coletiva,</p><p>ou seja, nos interessa a dimensão histórica da narrativa, pois é a partir</p><p>dela que emerge a narrativa experienciável e que permite aos envolvidos</p><p>no processo formativo visualizarem aspectos de um tempo e um lugar</p><p>social (PETRUCCI-ROSA, 2017).</p><p>Além disso, as narrativas abordadas nas aulas como recurso pe-</p><p>dagógico do trabalho docente podem ser um instrumento de aproxi-</p><p>mação e também de coconstrução de sentido das histórias e memórias</p><p>dos sujeitos. Uma memória coletiva, que é atualizada de forma singular</p><p>por cada um/uma que a reconta nos espaços coletivos da narração oral,</p><p>em espaços de formação e de interlocução entre formadores e forman-</p><p>dos e nos espaços individuais da escrita e reescrita de relatos e relató-</p><p>rios, é contribuição para o processo de luta pela sua legitimidade.</p><p>Esses elementos teóricos fundamentam a escolha das oficinas te-</p><p>máticas realizadas no estágio supervisionado para o exercício da refle-</p><p>xão sobre as aproximações e contribuições das narrativas na formação</p><p>de professores/as para as escolas do campo, isto porque, como já citado,</p><p>tais oficinas abordaram o Contestado e a produção do conhecimento</p><p>a partir dele.</p><p>Cabe destacar que a denominação do território em que se localizava</p><p>a escola onde ocorreu o estágio se relaciona com a Guerra do Contestado,</p><p>um conflito social ocorrido nos planaltos catarinense e paranaense</p><p>no Brasil, entre 1912 e 1916, que colocou de um lado grandes fazen-</p><p>deiros, coronéis e governo e, de outro lado, pequenos agricultores, er-</p><p>vateiros e tropeiros, conhecidos como caboclos. Os caboclos tinham</p><p>um profetismo popular pelo monge João Maria (São João Maria como</p><p>é conhecido), e a partir de sua figura criou-se um ambiente cultural</p><p>de autonomia, um conjunto de práticas sociais e costumeiras do mundo</p><p>caboclo, autonomia em relação ao Estado, aos proprietários e ao clero</p><p>católico (MACHADO, 2012).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>84</p><p>Machado (2012) em seus estudos históricos sobre o Contestado</p><p>identifica a importância do monge no universo cultural caboclo do ter-</p><p>ritório, tratando-o como santo, por isso a denominação São João Maria.</p><p>Conforme o autor, o mesmo “pregava uma vida de respeito ao próximo,</p><p>aos animais e à natureza. Assinalava a existência de fontes de água (que</p><p>logo a população passou a chamar de ‘águas santas’ ou ‘águas do mon-</p><p>ge’) e recomendava a edificação de cruzeiros” (MACHADO, 2012, p. 3).</p><p>Os processos que levam à Guerra do Contestado estão intrinseca-</p><p>mente articulados com a questão agrária brasileira, compondo os con-</p><p>flitos por terra que estão na raiz da origem da Educação do Campo.</p><p>Machado (2012) aponta três níveis nas questões por terra que envolvem</p><p>a Guerra do Contestado: a concentração fundiária nos campos naturais</p><p>e faxinais, como em São Joaquim, Lages, Curitibanos e Campos Novos,</p><p>fruto do avanço de grandes estancieiros sobre a posse de pequenos</p><p>lavradores; a expulsão de milhares de sitiantes e posseiros ocasiona-</p><p>da pela grilagem de terras feita pela empresa destinada pelo governo</p><p>federal para a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande do Sul, a Brazil</p><p>Lumber and Colonization Company, ou simplesmente Lumber; a disputa</p><p>dos limites da fronteira entre Paraná e Santa Catarina, com extensões</p><p>de terra que possuíam dupla titulação. A instabilidade existente facili-</p><p>tava a grilagem praticada em grande escala por Coronéis, sobre muitas</p><p>terras habitadas por indígenas, negros e caboclos.</p><p>A Guerra do Contestado marcou a vida dos camponeses deste ter-</p><p>ritório, forjada a violências, sangue, traumas e lutas. Machado (2020)</p><p>ao relembrar os depoimentos de “sobreviventes das ‘cidades santas”</p><p>do Contestado, em entrevistas feitas para sua pesquisa de doutorado,</p><p>afirma que era “gente de coragem que depunha sobre situações dramáti-</p><p>cas, sobre maus-tratos, fuzilamentos, degolas, fome e epidemias.”. Cita</p><p>ainda o “longo período de sofrimento e do estigma que carregaram de fi-</p><p>lhos e parentes de ‘jagunços’ e ‘fanáticos’”, levando-o a compreender o</p><p>“silêncio de muitos anos, pelo menos por parte dos remanescentes das</p><p>‘cidades santas’”.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>85</p><p>Na atualidade os movimentos sociais do campo se destacam</p><p>em formar camponeses que lutam por direitos ao mesmo tempo em que</p><p>compreendem as contradições da vida no capitalismo, construindo</p><p>a memória coletiva, ainda que permeada de traumas e silenciamentos,</p><p>ocasionados pela histórica violência nos conflitos por terra.</p><p>A Experiência do Estágio Docência</p><p>Coma a carne que aí está. Não poupe.</p><p>Entre em qualquer casa quando chover,</p><p>sente em qualquer cadeira.</p><p>Mas não permaneça sentado. E não</p><p>esqueça seu chapéu.</p><p>Estou lhe dizendo:</p><p>Apague as pegadas!</p><p>A Licenciatura em Educação do Campo na UFSC prevê em sua grade</p><p>um total de 432 horas de Estágio Docência (ED), distribuídos em quatro se-</p><p>mestres, sendo dois deles direcionados ao estágio no Ensino Fundamental</p><p>e dois no Ensino Médio. O ED no Ensino Médio ocorre durante o 7° e 8°</p><p>semestres do curso. A cada semestre, a carga horária de 108 horas de ED</p><p>supervisionado é organizada com a alternância dos tempos educativos</p><p>que compõem a formação do futuro docente, são os chamados tempos</p><p>Universidade (TU) e Comunidade (TC). Cabe destacar que o ED é uma par-</p><p>cela do trabalho desenvolvido, e utiliza o acúmulo de produções feitas</p><p>pelo grupo de estudantes, que em sua maioria também é sujeito desta re-</p><p>gião, e que atua nas escolas</p><p>por Gadamer sobre</p><p>o sentido da compreensão. E o negativo aqui é no sentido da experiência</p><p>que nos falta, que não tínhamos percebido, que aparece, que se mostra.</p><p>Como disse, um alumbramento. E por quê? Tratarei de indicar, de suge-</p><p>rir, quase um método indiciário como em O Nome da Rosa, obviamente</p><p>que, com muito atrevimento.</p><p>Atrevimento é meu, não de se pensar um currículo como narrati-</p><p>va, pois a narrativa na formação de professores tem tradição. Clandinin</p><p>como Goodson são nomes que transitam faz décadas na aposta da nar-</p><p>rativa como uma abordagem que também é a vida e o modo de estudar</p><p>uma experiência. Não poderia me furtar a trazer Clandinin, minha pri-</p><p>meira inspiração na pesquisa narrativa para este prefácio, como é Ivor F.</p><p>Goodson para o grupo GEPraNa. Assemelham-se em argumentar que a</p><p>narrativa se amarra em contextos que têm dimensões sociais, culturais,</p><p>econômicas e históricas e nisto, este livro é um convite a atravessar</p><p>fronteiras.</p><p>Abre o livro o primeiro dos cinco blocos trazendo o currículo como</p><p>narrativa para uma educação descolonizada. Quero destacar este termo,</p><p>descolonizada, porque fomos colonizados e precisamos nos descoloni-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>11</p><p>zar. Não se surpreende quem vive a formação de professores e encon-</p><p>tra práticas colonizadoras muitas e ainda. Este livro nos convida a viver</p><p>na fronteira entre o conhecimento como um grande lugar de direitos</p><p>humanos, mas claro, é preciso assumir os riscos desta decisão de ousar.</p><p>É assim que se pode aprender com o Professor Kaji Waura, lá do</p><p>Parque do Xingu. É ele que nos apresenta o Raiô, um projeto para for-</p><p>mação de professores e a partir dele foi aprendendo sobre a pintura,</p><p>a cerâmica, a matemática do povo Waurá. Ele ensina todas as matérias</p><p>e esta sabedoria de ensinar tudo junto veio do povo Awetí. Os antigos</p><p>são dicionários, e quantas palavras perdemos desses dicionários quan-</p><p>do continuamos com práticas curriculares colonizadoras. Segue o livro</p><p>discutindo sobre a manutenção de poderes, mas a força ou possibilida-</p><p>des outras para educação que o texto deixa como interrogação adentra</p><p>para que tomemos consciência de que nossas decisões pequenas de sala</p><p>de aula envolvem e se inserem em heranças que precisamos problema-</p><p>tizar. O que pode nos parecer natural foi naturalizado para que não pen-</p><p>semos sobre a forma de organização de propostas curriculares. É preciso</p><p>pensar em pedagogias decoloniais em que é urgente ampliar contextos,</p><p>como é o título deste livro. O currículo narrativo valoriza o colonizado,</p><p>rompe com o colonialismo, valoriza histórias. Fica o convite a pensar</p><p>que vozes traremos para a escola depois de ler os textos que densamente</p><p>aprofundam esta proposição. Tenho certeza que nós, professores, pode-</p><p>mos inventar histórias, nossas histórias, nossas aulas contadas são aulas</p><p>decoloniais.</p><p>Claro que isso leva a pensar nas escolas do campo, como não?</p><p>As escolas do campo são apostas de deixar as pegadas que marcam</p><p>caminhos em currículos que tradicionalmente se esmeram em apagar</p><p>pegadas, conhecer a trajetória histórica da Educação do Campo, do na-</p><p>turalismo pedagógico, o aumento da pauperização dos trabalhadores</p><p>da terra, a luta pela reforma agrária estabelecem para o leitor a origem</p><p>da Educação do Campo em sua luta social pelo reconhecimento de uma</p><p>luta da formação pedagógica pelos LedoC! Bertold Brecht poetisa o texto</p><p>que termina afirmando que foi ensinado a apagar pegadas. Ao contrário,</p><p>o movimento decolonial quer trazer pegadas dos normalmente silencia-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>12</p><p>dos. Se tem um poema atual para retratar a barbárie para que possamos,</p><p>como Benjamin, lidar com as malvadezas do mundo, é este com refle-</p><p>xões sobre experiências, memórias e narrativas. Nada mais apropriado</p><p>para o momento quando vemos políticas públicas em destroços.</p><p>Neste sentido é triste reconhecer o que também está no tex-</p><p>to que em três anos de desgoverno contabilizamos incontáveis (aqui</p><p>no sentido de que não merecem ser contados, inenarráveis e inominá-</p><p>veis) ocupando a cadeira de ministro da educação. Esta história precisa</p><p>ser contada como esta narrativa que não é mínima e o que é ainda pior</p><p>é ver que este movimento de desvalorização de professores também está</p><p>em ingleses sofrer (aludindo a expressão para Inglês ver que tem origem</p><p>em nossos processos colonizadores no nordeste, assim li em algum lu-</p><p>gar), como a denúncia de Goodson sobre a desvalorização dos professo-</p><p>res na Inglaterra é trazida em um dos textos. Ou seja, o livro traz mundos</p><p>tão complexos para compreendermos nossa síntese de mundo que são</p><p>nossas aulas específicas amarradas em histórias-gigantes. É preciso ter-</p><p>mos currículos narrativos, indisciplinados para que na insubordinação</p><p>problematizemos o currículo como lugar de disputas. Um currículo di-</p><p>áspora! Distanciamento da BNCC e de modelos prontos a serem imple-</p><p>mentados nas escolas. Práticas contextualizadas acrescentam à larga</p><p>discussão sobre interdisciplinaridade assumida em muitos documentos</p><p>oficiais.</p><p>Gente, era um espelho! (brincadeira desta expressão com uma</p><p>grande amiga que nos descrevia um mundo que via e se deu conta que o</p><p>que nos contava via através de um espelho) o que escrevi até aqui foi só</p><p>a partir de inspirações advindas do primeiro bloco. Terei que reduzir mi-</p><p>nhas inspirações ao mínimo para que ainda alguém me leia até o final,</p><p>intenção de quem escreve como me alerta Mario Osório Marques, um de</p><p>meus clássicos no Escrever é Preciso.</p><p>O segundo bloco é a construção de histórias em contextos pan-</p><p>dêmicos em que vivemos todas as histórias que seriam inimagináveis</p><p>em qualquer outro que não este desgoverno. Como este livro vai ser</p><p>muito lido, dato este desgoverno iniciado em 2018 que termina, assim</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>13</p><p>almejo com toda a força de meu pensamento, em 2022 para sempre).</p><p>Distanciamento da BNCC também.</p><p>E como se realizaram estágios durante a pandemia? Impensável</p><p>que fossem possíveis antes deste atravessamento em que as casas</p><p>dos professores se transformaram em salas de aulas e em inúmeras “li-</p><p>ves” participaram filhos e filhas de professoras pedindo às mães, espe-</p><p>cialmente às mães, uma atenção. Instalação de necropolíticas e uberiza-</p><p>ções do trabalho docente.</p><p>Está em um dos textos deste bloco este conjunto de verbos: Contar,</p><p>escrever, lembrar, esquecer, explorar, refletir, apagar… Queremos mesmo</p><p>apagar as marcas tristes? Ou ao contrário, é preciso contá-las? Não es-</p><p>tamos vivendo agora algo impensável desde o final da Guerra Fria como</p><p>ameaças de guerra nuclear? Parece que nunca são suficientes as histó-</p><p>rias que contamos. Sempre aparece um “neo” fascista, nazista a espalhar</p><p>ruindade no mundo. Uma reorganização curricular se tornou presença</p><p>com encontros on-line, mas do outro lado os estudantes não apareciam</p><p>e as escolas fecharam as portas, entretanto proliferavam demandas</p><p>para os professores, conteúdos pela internet, e se neste texto que narra</p><p>uma experiência em São Paulo o narrador se inquieta com a requisição</p><p>de levar material aos alunos, aqui nos pagos do Rio Grande, professores</p><p>foram de porteira em porteira levando material impresso a seus alunos.</p><p>Que loucura!</p><p>Estamos em 2022 com o regresso para o ensino presencial com ou-</p><p>tros desafios. Como lidar com eles? Princesas e príncipes, meninos e me-</p><p>ninas em que meninos entregam flores às meninas? Estas narrativas</p><p>encontram ressonância medievais de desvalorização e violência con-</p><p>tra as mulheres. Estamos diante de práticas que se tornam documen-</p><p>tos. É preciso como professores estejamos atentos, aponta um dos tex-</p><p>tos a discursos heterossexistas, críticas aos estudos de gênero, críticas</p><p>à tentativa de alterar papéis tradicionais de homens e mulheres, como</p><p>pai, mãe, família, e ao antifeminismo. E isto constava como um aler-</p><p>ta no Plano Nacional de Educação. Veio por terra após fortes emba-</p><p>tes. Quanta história em tão pouco tempo estamos</p><p>e comunidades desde o primeiro ano de curso.</p><p>O 7° semestre é caracterizado pela preparação para a docência</p><p>no Ensino Médio. Os/As estagiários/as vivem e experienciam o cotidiano</p><p>escolar e comunitário a partir de uma abordagem etnográfica. Baseados</p><p>em André (1997) e Dayrell (1996), essa abordagem leva em conta questões</p><p>culturais, éticas, e de valores dos sujeitos que vivem a escola e das comu-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>86</p><p>nidades onde elas estão localizadas, ou seja, compreende as escolas como</p><p>espaços socioculturais e o ambiente como um espaço socioambiental.</p><p>Durante este período, se constrói um plano de ensino envolvendo um pro-</p><p>jeto comunitário, com o desafio de relacionar teoria e prática de forma</p><p>a envolver os diversos sujeitos e mobilizar os conceitos das Ciências</p><p>da Natureza e Matemática.</p><p>No 8° semestre, o foco se dá em produzir os planos de aulas, sele-</p><p>cionar conceitos e realizar a regência de 20 horas/aulas, divididas na área</p><p>de Ciências da Natureza (CN) e Matemática, como também, desenvol-</p><p>ver o projeto comunitário. No Ensino Médio, as Ciências da Natureza</p><p>comumente englobam os componentes curriculares de Biologia, Física</p><p>e Química.</p><p>Neste texto será dada maior atenção à experiência da oficina temá-</p><p>tica, ocorrida no 7° semestre, que utilizou das narrativas como recurso</p><p>pedagógico, sobretudo no esforço em garantir a relação da escola com a</p><p>vida, uma das bases da Educação do Campo. Esse destaque se dá, pois,</p><p>a partir da análise do contexto local, os estudantes desenvolveram algu-</p><p>mas intervenções na escola, das quais emergiram narrativas orais e escri-</p><p>tas que subsidiaram a seleção de conteúdos e a regência no 8° semestre.</p><p>A experiência de ED da qual abordaremos alguns elementos, fez par-</p><p>te de um trabalho coletivo realizado pelo grupo de estudantes da turma</p><p>Contestado7 e docentes da Licenciatura no ano de 2017. Trabalharam</p><p>na escola três duplas de estagiários, cada uma atuando com um dos anos</p><p>do Ensino Médio. As etapas de levantamento de dados, discussões e plane-</p><p>jamento foram feitas em conjunto, desde o período de observação na es-</p><p>cola, até os momentos de orientação e planejamento com o grupo inter-</p><p>disciplinar de professores. Alguns momentos da regência também foram</p><p>compartilhados.</p><p>7 A Turma Contestado da Licenciatura em Educação do Campo da UFSC chegou ao ano de</p><p>2017 com 06 estudantes, sendo eles: Antony Josué Corrêa, Daniel Bráz, Dara Ferreira, Katila</p><p>Thaiana Stefanes, Lucas Ruth Furtado e Rodrigo Castro Ramirez (in memorian). O contexto</p><p>é de um estágio coletivo, com ações integradas de todo o grupo numa única escola. A pro-</p><p>posição foi da docência compartilhada em duplas que atuaram em três turmas do Ensino</p><p>Médio, compartilhando ações de planejamento e execução das atividades em sala com os/</p><p>as educandos/as.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>87</p><p>No primeiro tempo comunidade no 7º semestre, o grupo de estagiá-</p><p>rios desempenhou diversas tarefas para conhecer e retomar o envolvimen-</p><p>to no cotidiano escolar. Foram realizadas visitas a todos os espaços da uni-</p><p>dade escolar, junto do levantamento de dados gerais, dos planos de ensino</p><p>dos professores das áreas das Ciências da Natureza e Matemática, e da</p><p>observação de aulas em todas as turmas de Ensino Médio nos três tur-</p><p>nos de trabalho da escola. Uma das turmas foi escolhida para a realização</p><p>de intervenções em sala, com objetivo de suscitar elementos para o desen-</p><p>volvimento de uma temática de estágio e assim, a regência. Duas inter-</p><p>venções foram realizadas com o intervalo de algumas semanas.</p><p>Após o período de observações, a dupla de estágio, a qual a expe-</p><p>riência neste texto é relatada, optou por uma turma de 2º ano do Ensino</p><p>Médio. A primeira intervenção objetivava levantar um volume maior</p><p>de informações sobre a turma e foi composta por uma atividade inicial</p><p>para abordar o imaginário sobre campo e cidade com desenhos principal-</p><p>mente, além de uma segunda atividade de confecção de um mapa men-</p><p>tal construído em uma dinâmica que, ao final expressaria a diversidade</p><p>de elementos que circundam a identidade de cada educando (CORRÊA,</p><p>2019). Como relembra Corrêa (2019, p. 79), sobre a intervenção, “Embora</p><p>completadas com êxito, as respostas não corresponderam ao nível de com-</p><p>plexidade esperado. Perguntas com certo cunho filosófico […] acabaram</p><p>trazendo como retorno respostas superficiais, colocando-nos numa con-</p><p>dição de análise imediata e individualizada”.</p><p>A partir da observação participante na comunidade, da intervenção</p><p>e da própria identidade dos estudantes, algumas propostas surgiram para</p><p>serem debatidas com os professores orientadores na universidade, a fim</p><p>de compor um tema principal de ED e estruturar a “Oficina Temática”.</p><p>Nos diálogos nas orientações e sistematizações, a questão</p><p>do Contestado “[…] sobressaiu aos olhos de quem havia observado, e tam-</p><p>bém era sujeito vindo deste chão” (CORRÊA, 2019, p. 80). A escola tinha pa-</p><p>redes e chão cobertos por marcas decorativas que remetiam ao tema, e con-</p><p>traditoriamente, em nenhum momento da atividade em sala o Contestado</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>88</p><p>foi mencionado como parte da vida dos/as educandos/as. Não ao acaso,</p><p>é possível avistar da escola o local que abrigou o último reduto de cabo-</p><p>clos/as reunidos/as em nome de São João Maria e que foi derrubado pelas</p><p>forças do governo, como relatou um professor local. O Contestado como</p><p>aspecto determinante na vida desses jovens não poderia ser ignorado,</p><p>mesmo em um ED na área de CN e Matemática. Uma segunda intervenção</p><p>foi planejada considerando os sujeitos e seu território como estruturado-</p><p>res do processo formativo (CORRÊA, 2017, 2019; FURTADO, 2017).</p><p>Procurando integrar elementos históricos e culturais do territó-</p><p>rio do Contestado em Santa Catarina, desde o conflito por terras na re-</p><p>gião à dimensão da cultura cabocla, ancorada em elementos como a re-</p><p>ligiosidade, o messianismo, na figura central do Monge São João Maria</p><p>e nas práticas culturais de uso e cura a partir de plantas e ervas medici-</p><p>nais, a oficina temática recebeu o título de “Produção de conhecimento</p><p>no território do Contestado”. Fundamentando-se como prática curricular,</p><p>os educandos/as e os professores da escola foram envolvidos em um pro-</p><p>cesso místico8, tendo as músicas, os objetos e os símbolos representativos</p><p>do trabalho e da cultura do Contestado como elementos em sala de aula,</p><p>permitindo que as experiências partilhadas a partir desse encontro fos-</p><p>sem capazes de tocar e envolver cada sujeito ali presente, produzindo nar-</p><p>rativas orais e escritas, individuais e coletivas.</p><p>Finda a oficina, algumas questões foram lançadas com a intenção</p><p>dos/as educandos/as do Ensino Médio (EM) levarem o tema para ser deba-</p><p>tido com suas famílias e assim poderem ouvir histórias, trocar experiên-</p><p>cias, aprender, e quem sabe seguirem, como dizia Benjamin (1983) tecen-</p><p>do “a rede em que está guardado o dom narrativo” (p. 9).</p><p>8 A mística, “[…] é um termo compreendido nas religiões como uma experiência da própria</p><p>vivência espiritual. […] pode-se compreender que a mística, em suas manifestações subje-</p><p>tivas, ultrapassa o espectro do sagrado e introduz-se na vida social e na luta política, numa</p><p>clara aproximação da consciência do fazer presente com a utopia do futuro” (BOGO, 2012,</p><p>p. 475). A partir da apropriação do fazer artístico, a mística contribui para mobilizar a cul-</p><p>tura e, intencionalmente, construir e trazer à tona a memória coletiva (BOGO, 2012).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>89</p><p>Apresentação de Dados e Reflexões – Sensibilização,</p><p>Mística e Produção de Narrativas na Oficina Temática</p><p>O que você disser, não diga duas vezes.</p><p>Encontrando o seu pensamento em</p><p>outra pessoa: negue-o.</p><p>Quem não escreveu sua assinatura,</p><p>quem não deixou retrato,</p><p>Quem não estava presente, quem nada</p><p>falou</p><p>Como poderão apanhá-lo?</p><p>Apague as pegadas!</p><p>Com o objetivo de organizar as reflexões,</p><p>os resultados serão divi-</p><p>didos em quatro momentos em torno da produção das narrativas, sen-</p><p>do o primeiro e segundo momentos concentrados nas narrativas dos/as</p><p>educandos/as do EM, o terceiro momento centrado no desenvolvimen-</p><p>to dos projetos na escola e o quarto em narrativas produzidas a partir</p><p>dos relatórios dos estagiários.</p><p>1° Momento – Produção de narrativas na Oficina Temática</p><p>Procurando sensibilizar os sujeitos ali presentes, organizou-se</p><p>uma grande roda, iniciando com dinâmicas de relaxamento, até os/</p><p>as educandos/as sentarem-se de olhos fechados. Ao som da Canção</p><p>da Terra, o baú que estava ao centro foi aberto, expondo uma diversidade</p><p>de itens que remetiam ao povo, à vida, trabalho e cultura no Território</p><p>do Contestado. Ao som do berimbau, os/as educandos/as escolheram al-</p><p>guns itens, justificando sua escolha oralmente e registrando em forma</p><p>de texto.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>90</p><p>Os elementos eram objetos que simbolizavam a vida naquele terri-</p><p>tório, a guerra, a resistência e a identidade cabocla. Itens como: um facão</p><p>de madeira, a bandeira sertaneja do Contestado, o monjolo, sementes,</p><p>a cuia do chimarrão, o terço em madeira de imbuia, um pequeno trem,</p><p>erva-mate, ramos de plantas como o alecrim, hortelã, arruda, imagens</p><p>do monge São João Maria e da população cabocla, utensílios do trabalho</p><p>no campo, entre outros elementos, como mostra a Figura 1.</p><p>Figura 1 – Oficina Temática – Elementos da Guerra do Contestado e da cultura cabocla</p><p>Fonte: Relatórios dos estagiários</p><p>Com os objetos em mãos, a proposta era que os participantes,</p><p>conforme se sentissem mais confortáveis, pudessem contar o porquê</p><p>de suas escolhas. Abaixo estão organizadas algumas narrativas produzi-</p><p>das a partir desse primeiro momento.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>91</p><p>Narrativa 1: Educando/a do EM</p><p>Escolhi o alecrim, porque na minha casa moro eu, minha mãe e meu irmão</p><p>e acreditamos no poder das ervas. Quando não estamos bem, recebemos al-</p><p>gum chá, nós fazemos geralmente chá de alecrim com guiné (não encontrei</p><p>aqui, mas ali em casa tem), e isso ajuda tanto na espiritualidade, quanto</p><p>na doença. O alecrim pode ser usado também para fazer banho de descar-</p><p>rego trazendo muitas energias boas. Ele é usado até mesmo como tempero</p><p>de carne, que também nos enche de boas energias pelo poder que tem. E ali</p><p>em casa nós usamos bastante esses tipos de erva, tem arruda, alecrim, gui-</p><p>né, hortelã. Tem bastante ervinhas assim que é usado pra banho, chá, e ali</p><p>em casa foi sempre assim, pois nós acreditamos muito no poder das ervas.</p><p>Narrativa 2: Educando/a do EM</p><p>Eu escolhi a erva-mate, que tem bastante lá onde eu moro, e sempre o pai,</p><p>a avó tomam chimarrão que é feito dela. Antes era feito no pilão, a avó</p><p>cortava, socava no pilão e esquentava, fazia a erva caseira mesmo. O mês</p><p>que ela fazia a erva, que é o mês mais adequado, é agosto, porque brota me-</p><p>lhor, nos outros meses já pega o inverno, e aí já não brota bem.</p><p>Narrativa 3: Educando/a do EM</p><p>Escolhi o terço pequeno porque simboliza um pouco da fé dos meus fami-</p><p>liares. No tempo da guerra tinha muita dor e sofrimento e as pessoas ti-</p><p>nham que buscar a fé. Esse terço me lembra também a minha bisavó, ela ti-</p><p>nha muito em casa, tinha muita fé, e quando ela faleceu eu vi um familiar</p><p>meu colocar na mão dela um terço parecido com esse aqui, e isso me lembra</p><p>muito ela e da fé forte que ela tinha. Ela tinha muita fé, no terço, em nossa</p><p>senhora, no São João Maria. Me lembrei dela.</p><p>Narrativa 4: Educando/a do EM</p><p>Escolhi o terço de imbuia porque na época da guerra tinha muito sangue,</p><p>morte e violência pra todos os lados. A única coisa que foi forte nessa região</p><p>foi a fé. A fé em Deus, e no São João Maria. A fé que eu tenho foi principal-</p><p>mente aprendida com a minha avó, que é curandeira. Ela aprendeu muita</p><p>coisa com a mãe dela e com a avó dela também. Minha avó usa muito a cruz</p><p>pra benzer.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>92</p><p>2° Momento: Produção de narrativas a partir do mate-</p><p>rial escrito</p><p>As narrativas 5 e 6 apresentadas abaixo foram produzidas a par-</p><p>tir dos materiais escritos que os estudantes do EM retornaram à escola</p><p>após realizaram a atividade requerida no contexto familiar. As Figuras</p><p>2 e 3 são parte do material produzido pelos/as educandos/as.</p><p>Narrativa 5: Material escrito – Educando/a do EM</p><p>[…] É uma prática da minha família fazer um mutirão para ir cortar erva-</p><p>-mate, fazer as bolas de erva, depois nós secamos a erva e mandamos para</p><p>o monjolo onde outro grupo vai moendo […]</p><p>Narrativa 6: Material escrito – Estudante E do EM</p><p>[…] João Maria dizia que “quem não soubesse ler a natureza é analfabeto</p><p>de Deus”. […] ele conhecia um conjunto de ervas nativas e seus efeitos te-</p><p>rapêuticos. […] Algumas são cozidas e outras podem ser misturadas na co-</p><p>mida […]</p><p>Figuras 2 e 3 – Imagem do material escrito – Educandos/as do EM</p><p>Fonte: Relatório dos estagiários</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>93</p><p>Lançando um olhar para as narrativas de 1 a 6 identificam-se</p><p>diversos elementos da identidade e cultura cabocla, que compõem</p><p>o Território do Contestado, os quais remetem ao trabalho e produção</p><p>da existência da população no modo de vida camponês. Podemos citar</p><p>o uso e manipulação de ervas e plantas medicinais para o tratamento</p><p>de enfermidades e alimentação; as técnicas de cultivo e beneficiamento</p><p>da erva-mate, arroz, mandioca; a coletividade da comunidade em torno</p><p>dos mutirões; a fé e os saberes em torno das curandeiras e curandeiros</p><p>que propagam conhecimentos e práticas herdados de seus ancestrais</p><p>e que, em alguns casos, remetem diretamente à São João Maria.</p><p>Mesmo que a história seja contada de modo velado e que não haja</p><p>compreensão da totalidade inicialmente, os estudantes demonstra-</p><p>ram conhecimento de aspectos que envolvem a Guerra do Contestado.</p><p>É comum na história das famílias ouvir que uma mulher (avó ou bisa-</p><p>vó) foi “pega a laço no mato”. Outra narrativa comum, é ter parentesco</p><p>com homens que lutaram bravamente no conflito armado. Há sempre</p><p>uma fonte de água, uma panelinha de ferro ou um cajado deixado pelo</p><p>Monge e, como um ato de fé, até hoje é guardado pelas comunidades.</p><p>Estes são elementos importantes para alcançar a compreensão da re-</p><p>lação de poder estabelecida durante os conflitos no território, ou seja,</p><p>entender dentro da complexidade de toda questão agrária envolvida,</p><p>de que a população cabocla fez o enfrentamento às forças de coronéis</p><p>e do exército do próprio Estado. As narrativas contribuíram para que o</p><p>trabalho educativo tornasse essa ampliação do conhecimento possível.</p><p>Há ritos, benzimentos, canções que embora se mesclem com as</p><p>tradições católicas, são específicas ao modo de vida constituído na sua</p><p>relação com o território. Essas narrativas também remetem a história</p><p>das mulheres, processos de violência e patologização de comporta-</p><p>mentos, e aos traumas por conflitos por terra, em destaque, a Guerra</p><p>do Contestado. As experiências vivenciadas no âmbito da comunidade,</p><p>da família, são mobilizadoras de memórias e saberes que adentram ago-</p><p>ra o âmbito escolar a fim de mobilizarem conhecimentos científicos.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>94</p><p>Destaca-se também nas Figuras 2 e 3, respectivamente, a expressão</p><p>dos estudantes a partir de desenhos como o monjolo, utilizado na mo-</p><p>agem da erva-mate e a bandeira do Contestado, símbolo da resistência</p><p>cabocla durante a guerra. Além disso, as narrativas impulsionam memó-</p><p>rias individuais e coletivas, sentimentos e saberes populares que deram</p><p>origem a outras narrativas, registradas nos relatórios finais dos estagiá-</p><p>rios a partir da análise crítica deles sobre o processo.</p><p>Narrativa 7: Estudantes (estagiários) 1 e 2 – relatório coletivo</p><p>Esse primeiro registro, foi compartilhado em roda novamente, devolven-</p><p>do o item ao centro […]. Foi o momento mais fantástico da aula, porque</p><p>além de propiciar o diálogo</p><p>durante a elaboração do registro, o movimento</p><p>de escrita, dúvidas dos/as estudantes, e lançar uma série de questões sobre</p><p>o Território do Contestado (sobre máquinas como o trem, sobre benzedei-</p><p>ras, etc.), muitos das/os estudantes sentiram-se confortáveis para contar</p><p>um pouco de si, de sua identidade, e coisas particulares de suas famílias,</p><p>que não contariam se não estivessem naquela atividade. As estudantes</p><p>que geralmente parecem caladas e estão na borda, interagiram porque esta-</p><p>beleceram esse laço de confiança ao sentirem-se valorizadas, o que na nos-</p><p>sa perspectiva, é crucial. Esta atividade tratava da identidade assim como</p><p>tratou a 1ª intervenção, com o diferencial de chegar às práticas e conhe-</p><p>cimentos locais, entretanto, foi muito melhor sucedida. A roda, o momen-</p><p>to místico, os objetos de família que remetiam ao Contestado mantiveram</p><p>o tom de curiosidade, de leveza à aula e proporcionaram um sentimento</p><p>de correspondência e identificação muito forte dos/as estudantes. A tarefa</p><p>foi a de elaborar um memorial com algumas questões orientadoras, dando</p><p>maior corpo às narrativas pela possibilidade de conversar com familiares.</p><p>3° Momento: O desenvolvimento dos projetos na escola</p><p>Experiências comuns suscitadas a partir das narrativas produzidas</p><p>na oficina contribuíram para estreitar laços de confiança, pertencimento</p><p>e de identidade dos sujeitos, dentro daquela sala de aula, como comen-</p><p>tam os estudantes (estagiários) na narrativa 7, que culminou na organi-</p><p>zação do trabalho de ED no 8° semestre.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>95</p><p>Procurando continuar com o tom narrativo durante a regência</p><p>das 20h/aula no 8°semestre, a presença de uma professora aposentada,</p><p>estudiosa da questão do Contestado, para contar sua experiência sobre</p><p>benzimentos e o trabalho com ervas medicinais envolveu a comunida-</p><p>de e contribuiu para romper algumas barreiras entre os conhecimen-</p><p>tos científicos que estavam presentes na regência das aulas e dar es-</p><p>paço aos saberes populares, que transitam na comunidade e raramente</p><p>adentram o espaço escolar. Além desta senhora, também se envolveram</p><p>no seminário e roda de chimarrão, professores da escola, que são com-</p><p>positores de canções regionais ligadas às histórias do período da guerra.</p><p>Com esses diversos sujeitos e saberes que puderam adentrar a sala</p><p>de aula, os conceitos das Ciências da Natureza e da Matemática também</p><p>precisavam estar presentes e em diversos momentos, dialogar com a se-</p><p>leção de conteúdos do currículo escolar, o que se tornou um dos maiores</p><p>desafios encontrados pelos estudantes estagiários e docentes orientado-</p><p>res. Não parecia haver tanta dificuldade em unir os conhecimentos po-</p><p>pulares que adentraram a sala e os conhecimentos científicos, mas sim</p><p>em seguir a seleção de conteúdos previstas para aquele momento no cur-</p><p>rículo escolar. Os estudantes (licenciandos) foram envolvidos nesse pro-</p><p>cesso, sendo participantes ativos na tomada de decisões:</p><p>Narrativa 8: Estudantes (estagiários) 1 e 2 – relatório coletivo</p><p>Buscamos as narrativas entendendo-as como expressão do saber popu-</p><p>lar e este como ciência, pelas discussões nas disciplinas da universidade,</p><p>de Laboratório e Saberes e Fazeres.</p><p>Além disso, o diálogo com a direção da escola e os professores desde o início</p><p>do ED sempre foi muito importante e permitiu que os estagiários participas-</p><p>sem das tomadas de decisões, adquirissem confiança no trabalho desenvol-</p><p>vido e se amparassem nas dificuldades que surgiam ao longo do ano.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>96</p><p>4º momento: Narrativas produzidas a partir dos rela-</p><p>tórios dos estudantes (licenciandos)</p><p>Este processo foi objeto de reflexão nas próprias narrativas, pelos</p><p>estagiários nos seus relatórios nos quais, para além de analisarem o pro-</p><p>cesso do ED e do uso de narrativas com os estudantes e a comunidade,</p><p>alertam para questões éticas que lhes foram surgindo ao aprofundarem</p><p>memórias individuais e coletivas ligadas à guerra:</p><p>Narrativa 9: Estudantes (estagiários) 1 e 2 – relatório coletivo</p><p>Nossa oficina nos deixou satisfeitos, e nossa preocupação ao analisá-la</p><p>é como lidar de uma forma não superficial com o que foi uma guerra na re-</p><p>gião do Contestado, e o que isso significa na formação de um povo […].</p><p>Narrativa 10: Estudantes (estagiários) 1 – relatório individual</p><p>Esquecer a guerra já foi uma política de governo. Muitas pessoas não gostam</p><p>de falar sobre isso ainda. Há cemitérios esquecidos nos matos, ossos de fa-</p><p>mílias caçadas e massacradas. A região já foi chamada de faixa da miséria,</p><p>pelos baixos índices de IDH. E o que foi compartilhado por alguns estudan-</p><p>tes do EM são experiências com alto teor sentimental e devem ser abordadas</p><p>com cuidado. Mesmo tendo que trabalhar a área de CN e MTM e objetivan-</p><p>do chegar aos conteúdos dessas áreas com o relato das práticas familiares,</p><p>depois de ter esse tipo de exposição, como podemos ser indiferentes? Nossa</p><p>postura deve ser a de trabalhar a identidade positivada destes sujeitos, con-</p><p>tribuindo para uma educação crítica e de qualidade para a classe trabalha-</p><p>dora. Mas, qual preparo temos para saber trabalhar o psíquico que estamos</p><p>revolvendo, e o bem-estar desses sujeitos ao trazerem à tona memórias fa-</p><p>miliares que estão ligadas a violência contra o povo?</p><p>Narrativa 11: Estudantes (estagiários) 1 e 2 – relatório coletivo</p><p>[…] por parte das e dos estudantes, o sentimento de correspondência com o</p><p>tema da oficina, compartilhando algumas narrativas familiares; e duran-</p><p>te a atividade de produção e registro escrito, foi notável a predominância</p><p>de marcas da fala coloquial, e limites de escrita e leitura.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>97</p><p>O conteúdo dos relatórios dá conta da capacidade crítica que os es-</p><p>tudantes – professores em formação – foram desenvolvendo com o tra-</p><p>balho realizado e da atenção e empatia que foram aprofundando no con-</p><p>tato com aqueles com quem se relacionaram. Acentuam, ainda, o papel</p><p>mediador das narrativas e dos artefatos no desenvolvimento das rela-</p><p>ções entre estudantes e estagiários, entre estudantes e suas famílias, en-</p><p>tre os supervisores e os estudantes (licenciandos). Também questionam</p><p>a responsabilidade da universidade e dos estagiários, que ao estreitarem</p><p>as relações com a escola e com a comunidade podem estar a criar ex-</p><p>pectativas às quais não dão depois continuidade. Além disso, podem es-</p><p>tar a abrir feridas que depois não têm condições para trabalharem mais</p><p>profundamente.</p><p>Cabe destacar que o trabalho desenvolvido por meio das narrati-</p><p>vas como recurso pedagógico neste estágio, criou grande impacto nos/</p><p>as estagiários/as que também pertencem a este território. Este exercício</p><p>de reflexão constituiu conexões com o passado e as experiências deste</p><p>grupo, produzindo mudanças qualitativas no ato da docência.</p><p>Destaca-se que essa formação foi construída considerando a ideia</p><p>de totalidade, conceito fundante na Educação do Campo, a partir do diá-</p><p>logo de saberes, da articulação entre teoria e prática, da estreita relação</p><p>entre local e global, procurando dialogar com as diferentes dimensões</p><p>da formação omnilateral (ecológica, cultural, política, social, estética).</p><p>Também, para favorecer este diálogo, a produção e partilha de narra-</p><p>tivas surgem como processos de mediação cognitiva e social. A análise</p><p>de narrativas e de todo o trabalho etnográfico prévio, em articulação</p><p>com a análise dos currículos escolares permitiu estabelecer as pontes</p><p>pelas quais se definiram os conteúdos e processos pedagógicos desen-</p><p>volvidos no último semestre de estágio.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>98</p><p>Considerações Finais</p><p>Queremos, neste final de texto, acentuar a importância da luta</p><p>e disputa pela memória coletiva de um grupo, com recurso às narrati-</p><p>vas, desencadeadas pelo uso de ferramentas que atribuem significado</p><p>cultural e pessoal, sendo transportadas por cada um/uma para o debate</p><p>onde se juntam, em um centro simbólico,</p><p>quase místico, onde também</p><p>se cruzam histórias, imaginários, mitos e podem fortalecer o sentido</p><p>de comunidade e de pertença.</p><p>São histórias intensas, marcas na memória pessoal daquele grupo,</p><p>que geraram traumas nunca esquecidos, mas que encontram no coleti-</p><p>vo o apoio para seguirem em luta permanente. Na aula cada experiên-</p><p>cia é revivida, contada e acolhida pelos que, de dentro e de fora, se en-</p><p>contram e da qual emergem aprendizagens para a vida de cada um/a</p><p>que experencia aquele lugar da narração. Se a experiência foi de fato</p><p>transmitida, ao fim do estágio, os sujeitos não serão mais os mesmos,</p><p>ainda que em um território que lhes é alheio, se reconhecem numa hu-</p><p>manidade partilhada. Compreendem juntos o poder do coletivo e da luta</p><p>por essa memória coletiva.</p><p>A experiência tratada demonstra a importância do estudo da ques-</p><p>tão do Contestado na formação de professores do campo em Santa</p><p>Catarina, abordando-o para além dos elementos decorativos, com o en-</p><p>tendimento da guerra sertaneja e dos conflitos que extrapolam o recor-</p><p>te temporal de 1912-1916, e que conectam o território do Contestado</p><p>com a questão agrária e da luta de classes na América Latina.</p><p>O Contestado se conecta com o cultivo e a luta pela terra, com o</p><p>modo de vida camponês, do negro e dos povos originários. É preciso su-</p><p>perar a política de apagamento histórico e ter compromisso ao tratar</p><p>da questão, considerando os diversos aspectos que levam os sujeitos e/</p><p>ou grupos sociais, como discute Benjamin, à pobreza de experiência.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>99</p><p>A construção da memória coletiva dos conflitos por terra por meio</p><p>da relação das narrativas com os saberes populares e os conhecimentos</p><p>científicos, contribuem para fortalecer a Educação do Campo e a forma-</p><p>ção de professores/as, ao superar a ideia do campo como local de atraso,</p><p>recolocando o camponês como sujeito produtor de conhecimento.</p><p>Cuide, quando pensar em morrer</p><p>Para que não haja sepultura revelando</p><p>onde jaz</p><p>Com uma clara inscrição a denunciá-lo</p><p>E o ano de sua morte a entregá-lo.</p><p>Mais uma vez:</p><p>Apague as pegadas!</p><p>(Assim me foi ensinado.)</p><p>(Bertold Brecht9)</p><p>Referências</p><p>ALEXANDER, Jeffrey. Trauma: a social theory. Cambridge: Polity Press, 2012.</p><p>ANDRÉ, Marli E. D. A de. Tendências atuais da pesquisa na escola. Cad. CEDES,</p><p>Campinas, v. 18, n. 43, dez. 1997.</p><p>ANHAIA, Edson M. Constituição do movimento de educação do campo na</p><p>luta por políticas de educação. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-</p><p>Graduação em Educação. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,</p><p>2011.</p><p>9 Benjamin foi muito amigo de Brecht e grande admirador de seu teatro. Ele cita esse poema</p><p>de Brecht – Apague as Pegadas – do Manual para Habitantes das Cidades (BRECHT, 1930),</p><p>como um poema exemplar por que ele indica, de forma irônica, que a única experiência que</p><p>pode ser ensinada hoje é a de sua própria impossibilidade, da interdição da partilha, da proi-</p><p>bição da memória e dos rastros, até na ausência de túmulo. Descreve também, com cruelda-</p><p>de, as condições de vida anônimas da maioria dos habitantes de grandes cidades. Também,</p><p>descreve a perseguição nazista e os processos de desumanização e despersonificação que os</p><p>campos de concentração iam instaurar, sistematicamente. O poema retrata a instauração</p><p>da barbárie real que Benjamin vai tentando lidar em sua vida pessoal como judeu e em suas</p><p>reflexões e escritas sobre experiência, memórias e narrativas (GAGNEBIN, 2011).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>100</p><p>ARROYO, Miguel. Formação de Educadores do Campo. Verbete do Dicionário</p><p>da Educação do Campo. EPSJV/Expressão Popular, 2012. p. 361-367.</p><p>BRASIL. Constituição (1934). Lex: Constituição dos Estados Unidos do Brasil,</p><p>de 16 de julho de 1934.</p><p>BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Magia e</p><p>técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.</p><p>BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: BENJAMIN, Walter. Os Pensadores. 2. ed.</p><p>São Paulo: Abril Cultural, 1983 [1936]. p. 57-74.</p><p>BOGO, Ademar. Mística. Verbete do Dicionário da Educação do Campo.</p><p>EPSJV/Expressão Popular, 2012. p. 475-479.</p><p>CALDART, Roseli S. Educação do campo. In: CALDART, Roseli Salete; PEREIRA,</p><p>Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio (org.). Dicionário</p><p>da Educação do Campo. São Paulo: Expressão Popular: 2012.</p><p>CORRÊA, Antony Josué. Pedagogia socialista e educação do campo:</p><p>reflexões a partir do estágio em ciências da natureza. Trabalho de conclusão de</p><p>curso (Licenciatura em Educação do Campo, Centro de Ciências da Educação)</p><p>– Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019. Disponível em:</p><p>https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/203027. Acesso em: 14 jan. 2022.</p><p>CORRÊA, Antony Josué. Relatório do estágio do ensino médio–2017.</p><p>Licenciatura em Educação do Campo – UFSC. Não publicado.</p><p>DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. In: DAYRELL, J. (org.).</p><p>Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Editora da</p><p>UFMG, 1996.</p><p>DE PAULA, Fernanda F. Terra, memória e trauma: notas a partir da história do</p><p>Acampamento Elizabeth Teixeira. Ruris, Campinas, v. 13, n. 01, p. 07-28, mar.</p><p>2021.</p><p>FERNANDES, Bernardo Mançano; TARLAU, Rebecca Tarlau. Razões para mudar</p><p>o mundo: a educação do campo e a contribuição do PRONERA. Educação e</p><p>Sociedade, Campinas, v. 38, n. 140, p. 545-567, jul./set., 2017. Disponível em: https://</p><p>www.scielo.br/j/es/a/XfFpNxPyMQ9z7QwbvL69KLp/?format=pdf&lang=pt.</p><p>Acesso em: 03 dez. 2021.</p><p>FURTADO, Lucas Ruth. Relatório do estágio de 04 horas-2017. Licenciatura</p><p>em Educação do Campo – UFSC. Não publicado.</p><p>https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/203027</p><p>https://www.scielo.br/j/es/a/XfFpNxPyMQ9z7QwbvL69KLp/?format=pdf&lang=pt</p><p>https://www.scielo.br/j/es/a/XfFpNxPyMQ9z7QwbvL69KLp/?format=pdf&lang=pt</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>101</p><p>GAGNEBIM, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2 ed.</p><p>São Paulo: Perspectiva, 2011.</p><p>GRAZIANO DA SILVA, José. A modernização dolorosa: estrutura agrária,</p><p>fronteira agrícola e trabalhadores rurais no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.</p><p>KOLLING, Edgar J.; NERY; Irmão Israel José, MOLINA, Monica Castagna. Por</p><p>uma educação básica do campo. Articulação Nacional Por uma Educação do</p><p>Campo. Brasília, 1999.</p><p>LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista</p><p>Brasileira de Educação. n. 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002.</p><p>LEITE, Sérgio Celani. Escola rural: urbanização e políticas educacionais. 2 ed.</p><p>São Paulo: Cortez, 1999.</p><p>MACHADO, Paulo Pinheiro. Guerra do Contestado. Os reflexos cem anos</p><p>depois. Entrevista especial com Paulo Pinheiro Machado: entrevista. [15</p><p>de outubro, 2012]. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos. Entrevista</p><p>concedida a Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: http://www.ihu.</p><p>unisinos.br/entrevistas/514385-guerra-do-contestado-os-reflexos-cem-anos-</p><p>depois-entrevista-especial-com-paulo-pinheiro-machado. Acesso em: 6 jan.</p><p>2019.</p><p>MACHADO, Paulo Pinheiro. Os camponeses: notas sobre rastros, indícios e</p><p>experiências de pesquisa. Revista Maracanan, n. 23, jan./abr. 2020, Disponível em:</p><p>https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/47135/32011.</p><p>Acesso em: 03 dez. 2021.</p><p>MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos movimentos sociais no campo.</p><p>Rio de Janeiro: FASE, 1989.</p><p>MOLINA, Monica Castagna; SÁ, Lais Mourão. Escola do campo. In: CALDART,</p><p>Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO,</p><p>Gaudêncio (org.). Dicionário da educação do campo. São Paulo: Expressão</p><p>Popular: 2012.</p><p>NATIVIDADE, Melissa de Miranda. A Aliança para o Progresso no Brasil:</p><p>influência estadunidense na educação e pesquisa para o campo (1961-</p><p>1970). Tese (Doutorado) – UFF, 2018. Disponível em: https://app.uff.br/</p><p>riuff/bitstream/handle/1/13487/Tese-melissa-de-miranda-natividade.</p><p>pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 15 dez. 2021.</p><p>https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/47135/32011</p><p>https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/13487/Tese-melissa-de-miranda-natividade.pdf?sequence=1&isAllowed=y</p><p>https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/13487/Tese-melissa-de-miranda-natividade.pdf?sequence=1&isAllowed=y</p><p>https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/13487/Tese-melissa-de-miranda-natividade.pdf?sequence=1&isAllowed=y</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>102</p><p>OLIVEIRA, Francisco. O desenvolvimento capitalista pós-anos 1930 e o</p><p>processo de acumulação. In: OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista, O</p><p>Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.</p><p>PALUDO, Conceição. Educação popular e movimentos sociais. In: ALMEIDA,</p><p>Benedita; ANTONIO, Clésio A.; ZANELLA, José Luiz; LUCINI, Marizete (org.).</p><p>Educação no campo: um projeto de formação de educadores em debate.</p><p>Cascavel: EDUNIOESTE, 2008.</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. Práticas Curriculares na formação profissional:</p><p>uma compreensão singular para as narrativas como forma de transgressão.</p><p>Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 23, n. 52, p. 560-577, jun./set. 2017.</p><p>SAVIANI, Demerval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas:</p><p>Autores Associados, 2007.</p><p>SOUZA, Elizeu Clementino. Diálogos cruzados sobre pesquisa (auto)biográfica:</p><p>análise compreensiva-interpretativa e política de sentido. Educação, Santa</p><p>Maria, v. 39, n. 11, p. 39-50, 2014.</p><p>WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. A modernização sob o comando da</p><p>terra; os impasses da agricultura moderna no Brasil. Ideias, Revista do IFCH/</p><p>Unicamp, Campinas, jul./dez. 1996.</p><p>Caminhos Paralelos ou Rotas</p><p>Entrecruzadas? Formação por área</p><p>de conhecimento e disciplinas na</p><p>licenciatura em Educação do Campo</p><p>Ana Gabriela de Souza Seal1</p><p>Introdução</p><p>A ideia deste artigo surgiu em meados de 2021, por convite</p><p>da professora Maria Inês Petrucci-Rosa para composição de uma obra</p><p>que revelasse os interesses de estudos e pesquisa do Grupo de Estudos</p><p>em Práticas Curriculares e Narrativas Docentes – GEPRANA-Unicamp.</p><p>Contabilizávamos então quase seiscentas mil mortes por covid-19</p><p>no Brasil. Víamo-nos em meio a um processo investigativo conduzi-</p><p>do por uma Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal</p><p>que apontou irresponsabilidades em diversas ordens pelo governo</p><p>do presidente Jair Bolsonaro no gerenciamento da pandemia em nos-</p><p>so país. Enquanto escrevia, a educação passava por ataques constantes,</p><p>bem como a ciência sofria com os cortes de verbas e com os repetidos</p><p>discursos de descredibilização.</p><p>1 Professora Adjunta da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), docente</p><p>do curso de Licenciatura em Educação do Campo. Doutoranda em Ensino de Ciências e</p><p>Matemática pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática –</p><p>PECIM-Unicamp, sob a orientação da Profª Drª Maria Inês Petrucci-Rosa.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>104</p><p>Iniciei sua escrita no mês de setembro, mês em que nos vemos</p><p>no centenário de Paulo Freire – comemorado no dia 19 de setembro.</p><p>Educador pernambucano, meu conterrâneo, que se tornou, ele mesmo,</p><p>palavra geradora, tema gerador, bandeira de luta e renovação de espe-</p><p>ranças para nós continuarmos defendendo a educação e o direito a ela</p><p>por aqueles que, historicamente, veem cerceado seu acesso a esse bem.</p><p>E, como tática de resistência, lancei-me à escrita deste artigo.</p><p>Nesses pouco mais de dois anos e meio de governo de extrema</p><p>direita, contabilizamos o quarto ministro da Educação: Ricardo Vélez,</p><p>Abraham Weintraub, Carlos Alberto Decotelli (este atuou apenas um dia</p><p>como ministro e, por esta razão não tem sido considerado o terceiro</p><p>na sequência) e o atual Milton Ribeiro. Todos os ministros demonstra-</p><p>ram estar de acordo com a política de governo instaurada e assim afina-</p><p>ram suas atuações a ela. Ribeiro, inclusive, considerado como um mi-</p><p>nistro “menos barulhento”, segundo reportagem publicada pelo canal</p><p>G1 em 28 de agosto de 2021, chegou a tecer diversas falas em defesa</p><p>do ensino técnico e da restrição da formação universitária, alegando</p><p>que atualmente existiam muitos formados com subemprego enquanto</p><p>o mercado necessitava de técnicos.</p><p>Vemos, portanto, a construção de um discurso que intenciona</p><p>cerrar as portas das universidades públicas aos estudantes das cama-</p><p>das populares – no mínimo, o estreitamento do ingresso destes a elas,</p><p>bem como a revisão das políticas destinadas à escolaridade básica e,</p><p>em particular, ao Ensino Médio. Este, de forma mais acentuada, atual-</p><p>mente já passa por mudanças, orientadas sobretudo com a aprovação</p><p>e a implementação da Base Nacional Comum Curricular – BNCC. Nesse</p><p>momento, essa iniciativa remete à organização deste nível de ensino</p><p>por áreas do conhecimento e a necessária revisão das disciplinas ofer-</p><p>tadas. Uma intencionalidade estreitamente relacionada à outra, voltan-</p><p>do diretamente os discentes das camadas populares – quando muito</p><p>– ao mercado de trabalho. Para Petrucci-Rosa (2018) desde a presidên-</p><p>cia de Fernando Henrique Cardoso, as disciplinas escolares nos currí-</p><p>culos do Ensino Médio já vinham passando por processos contínuos</p><p>de dissolução.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>105</p><p>Nesse contexto, voltamos nosso olhar à Licenciatura em Educação</p><p>do Campo, curso que ainda não atingiu a maioridade quanto à datação</p><p>de sua implantação, mas que em muito vem se consolidando enquan-</p><p>to área de estudos, pesquisas e atuação. Para se ter uma ideia, em um</p><p>levantamento realizado na Plataforma Capes de teses e dissertações</p><p>em 15 de dezembro de 2020, quando pesquisado pelo termo entre aspas</p><p>“Licenciatura em Educação do Campo” contabilizaram-se 163 resulta-</p><p>dos de pesquisas realizadas em programas de pós-graduação stricto sen-</p><p>so. De 2007 até a data de hoje, ano de 2021, com dois septênios comple-</p><p>tos, esse número se mostra bastante relevante.</p><p>A intenção de situarmos aqui a reforma do Ensino Médio, pontu-</p><p>ando-a junto à Licenciatura em Educação do Campo – LEdoC, destinada</p><p>à formação de docentes em nível superior, remete aos espaços em que</p><p>os formados nessa licenciatura irão atuar, bem como às relações coloca-</p><p>das entre a formação nas LEdoCs e o atual modelo de Ensino Médio. Esse</p><p>não é o foco central neste capítulo, apesar de aparecer como essencial</p><p>nessa discussão. A questão orientadora que se coloca é: Qual o papel</p><p>das disciplinas específicas no curso em análise, quando este tem por</p><p>proposta a formação por área do conhecimento? É nesse ponto que a</p><p>abordagem se coloca, na tensão entre o imposto e o proposto das instân-</p><p>cias postas em conflito.</p><p>A presente discussão dedica-se a retomar as construções realiza-</p><p>das até o momento acerca da compreensão da formação por área de co-</p><p>nhecimento, da contextualização dos conteúdos e da pertinência em se</p><p>pensar na configuração das disciplinas na Licenciatura em Educação</p><p>do Campo. Não há aqui a pretensão de inaugurar debates ou de instaurar</p><p>um ponto de vista único, rígido. Mas sim de assumir uma compreensão</p><p>dialógica, tal como propõe Freire (2005), para fazer refletir acerca das di-</p><p>ferentes possibilidades de trabalho e de pesquisas tomando por enfoque</p><p>os sujeitos do campo, seus saberes e suas vivências. Também não é in-</p><p>tenção estipular relações diretas entre as disciplinas acadêmicas e as</p><p>disciplinas escolares, o quanto essas instâncias mantém as interlocu-</p><p>ções e interferências em seus modos de constituição, apesar de reco-</p><p>nhecer essas relações com Goodson (2020) e Petrucci-Rosa (2014, 2018).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>106</p><p>Em 2007, começaram a funcionar as licenciaturas em Educação</p><p>do Campo no Brasil. Esta graduação buscou atender às demandas</p><p>de acesso das populações do campo no ensino superior, como também</p><p>às necessidades de professores com formação específica para atua-</p><p>ção nas escolas do campo. O Edital 002/2012 – SESU/SETEC/SECADI/</p><p>MEC de 31 de agosto de 2012 (BRASIL, 2012, p. 1) estipulou como perfil</p><p>de egressos dos cursos, docentes que pudessem atuar nos anos finais</p><p>do ensino fundamental</p><p>e no ensino médio de escolas do campo. Esses</p><p>cursos de graduação foram organizados por meio de matrizes curricu-</p><p>lares com um tronco comum e com uma grade de disciplinas específicas</p><p>de acordo com a habilitação ofertada. Fazem parte do tronco comum,</p><p>por exemplo, as disciplinas pedagógicas. Atualmente, as habilitações re-</p><p>gulamentadas são: Ciências da Vida e da Natureza; Ciências Humanas</p><p>e Sociais; Ciências da Natureza e Matemática; Matemática; Ciências</p><p>Agrárias; Línguas, Artes e Literatura). Hoje, são contabilizados 44 cur-</p><p>sos em funcionamento espalhados pelas cinco regiões do Brasil (LEAL;</p><p>DIAS; CAMARGOS, 2019, p. 42).</p><p>A iniciativa de uma formação por área do conhecimento, tomando</p><p>como base uma opção de organização multidisciplinar do curso, é oriun-</p><p>da de decisões fundamentadas e é fruto dos debates dos movimentos</p><p>de luta pela Educação do Campo, assim como a orientação acerca da am-</p><p>pliação do perfil do egresso para atender qualquer escola, assim como</p><p>atuar nos processos de gestão educacional definidos nos projetos peda-</p><p>gógicos dos cursos, como é comum às demais licenciaturas (MOLINA,</p><p>2019; CALDART, 2011).</p><p>Focalizaremos nosso debate na sistematização dos principais pon-</p><p>tos de vista assumidos e nas defesas realizadas na constituição desses</p><p>conceitos. Teceremos apreciações sobre eles, sobre a relevância dessa</p><p>compreensão para uma ampliação da visão do curso de licenciatura</p><p>em Educação do Campo. Estamos nos propondo a compreender os pos-</p><p>síveis percursos a serem seguidos em busca do fortalecimento da iden-</p><p>tidade do educador do campo, descobrindo se são caminhos paralelos</p><p>ou rotas entrecruzadas.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>107</p><p>A seguir, a compreensão aqui assumida acerca do currículo e das</p><p>disciplinas escolares, a relevância destes para o campo da educação,</p><p>bem como para a constituição das identidades docentes são socializa-</p><p>das. Em seguida, aborda-se a ideia de formação por área do conhecimen-</p><p>to, especificamente na Licenciatura em Educação do Campo, os avanços</p><p>e reflexões possíveis que esse formato de curso pode nos trazer. Por fim,</p><p>traremos ao debate os cruzamentos surgidos nos encontros das discus-</p><p>sões em pauta.</p><p>Currículo Escrito e Disciplinas Escolares: Tradição</p><p>e Padrões de Estabilidade</p><p>As reflexões escolhidas como pauta deste artigo foram iniciadas</p><p>com as leituras de Maria Inês Petrucci-Rosa (2007, 2014, 2018) e Goodson</p><p>(2001, 2008, 2019, 2020). Cresceram, criaram raízes com a continuidade</p><p>das leituras desses autores juntamente com as leituras sobre a Educação</p><p>do Campo.</p><p>No que tange à perspectiva teórica curricular, Goodson (2008,</p><p>2019) aponta que o currículo não é um conceito circunscrito ao deno-</p><p>minado “currículo escrito”, pelos quais muitas vezes são sistematizadas</p><p>as propostas curriculares e por meio das quais se define disciplinas, con-</p><p>teúdos a serem ministrados. Portanto, “o currículo, num sentido mais</p><p>amplo, pode ser compreendido como todo o conjunto de discursos, do-</p><p>cumentos, narrativas e práticas que imprimem identidades aos sujeitos</p><p>envolvidos no processo de escolarização (PETRUCCI-ROSA, 2018, p. 26).</p><p>Goodson (2008) chama a atenção para a relevância que é dada a este</p><p>modelo escrito nas relações estabelecidas entre as instâncias governa-</p><p>mentais e as instituições a ele vinculadas. O autor retoma a abordagem</p><p>de Hobsbawn de invenção da tradição e remete ao currículo educacional</p><p>escrito como um exemplo perfeito desse fenômeno (GOODSON, 2008).</p><p>Um ponto fulcral aos nossos estudos é a compreensão do autor so-</p><p>bre as dinâmicas de composição dos currículos oficiais. Goodson (2019,</p><p>p. 39) adverte para o rechaço com que são tratados os profissionais</p><p>do ensino e seus conhecimentos especializados. Em uma análise sobre</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>108</p><p>a configuração desse processo na Inglaterra pós-crise financeira de 2007,</p><p>o autor chama a atenção inclusive para declarações oficiais do minis-</p><p>tro da Educação – que não possuía experiência educacional, ridicula-</p><p>rizando a experiência dos peritos educacionais. No Brasil, o contexto</p><p>atual não se faz diferente. Foram muitas e eloquentes as declarações</p><p>proferidas pelos ministros da Educação do atual governo, com um es-</p><p>pecial destaque a Abraham Weintraub, quando se destinavam à des-</p><p>valorização da ciência e dos profissionais do magistério. A relevância</p><p>em se pensar sobre a ocorrência de situações como essas – assumidas,</p><p>inclusive, em discursos oficiais – ratificam as sistematizações regis-</p><p>tradas por Petrucci-Rosa (2018) acerca dos fatores internos e externos</p><p>que impulsionam as mudanças curriculares, pontos esses de destaque</p><p>nas produções de Goodson:</p><p>Os fatores internos dizem respeito às condições de traba-</p><p>lho na própria área, tais como: o surgimento de diferen-</p><p>tes grupos de liderança intelectual, a criação de centros</p><p>acadêmicos de prestígio atuando na formação de seus</p><p>profissionais, a organização de associações profissionais</p><p>e a política editorial na área. Já os fatores externos esta-</p><p>riam relacionados à política educacional e aos contextos</p><p>econômico, social e político mais amplos (PETRUCCI-</p><p>ROSA, 2018, p. 37).</p><p>Outra reflexão necessária colocada por Goodson (2019, p. 51) diz res-</p><p>peito aos processos de diferenciação implementados por meio do currí-</p><p>culo. Considerando os estudos de Bernstein, Goodson (2019) nos apon-</p><p>ta para a construção de currículos para a classe média na Inglaterra.</p><p>No Brasil, os estudos sobre a história da Educação (SAVIANI, 2016;</p><p>ROMANELLI, 1978; ARANHA, 2006) destacam a instauração de um mo-</p><p>delo dual da educação – educação para ricos (propedêutica) x educação</p><p>para pobres (domesticadora) – perpetuado até a contemporaneidade.</p><p>Para além desse fator, um currículo que reconhecidamente passa a dife-</p><p>renciar o status social no Brasil é aquele acessado por meio dos cursos</p><p>superiores. Esse aspecto detalharemos um pouco mais nesse momento,</p><p>pondo-nos a pensar no contexto brasileiro.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>109</p><p>A própria LDB 9394/96 (BRASIL, 1996) apresenta-se de forma a não</p><p>garantir a obrigatoriedade na oferta de vagas pelos órgãos competentes</p><p>a todas as crianças na educação infantil da mesma forma como aos jo-</p><p>vens no Ensino Médio. A falta de vagas na Educação Infantil, inclusive,</p><p>engendra reflexos no acesso tardio das crianças das classes populares</p><p>em relação às de classes médias, principalmente no que tange às “práti-</p><p>cas sociais de leitura e escrita” (SOARES, 2021, p. 27), bem como à conso-</p><p>lidação desse saber. Para as populações do campo, além do fechamento</p><p>de escolas, as comunidades campesinas ainda convivem com a dificul-</p><p>dade de acesso ao Ensino Médio, em geral disponibilizados em escolas</p><p>nas áreas urbanas dos municípios brasileiros.</p><p>O discurso para a continuidade daqueles das classes populares</p><p>que desejem se especializar em alguma área é de estímulo à formação</p><p>técnica – como colocado pelo atual ministro da educação e como era mo-</p><p>bilizado nas políticas educacionais do governo de Fernando Henrique</p><p>Cardoso. Com a assunção dos governos de esquerda, o cenário foi modi-</p><p>ficado. A garantia da interiorização de instituições, a ampliação das va-</p><p>gas para ingresso nas universidades, a abertura de concursos públicos</p><p>para docentes por meio da implantação de programas como o Programa</p><p>de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades</p><p>Federais – REUNI, a consolidação das cotas, os programas de permanên-</p><p>cia universitária, o aumento na quantidade de bolsas acadêmicas, a cria-</p><p>ção de programas como o Programa de Incentivo à Bolsas de Iniciação</p><p>à Docência – PIBID, dentre outros, gerou uma gama de possibilidades</p><p>de acesso à universidade pelos alunos de escolas públicas e, assim, pelo</p><p>acesso das camadas populares à universidade. E uma dessas possibi-</p><p>lidades aparece, como aqui estamos tratando, com a criação do Curso</p><p>de Licenciatura em Educação do Campo. As camadas populares passa-</p><p>ram a acessar o “mais alto grau de reconhecimento”,</p><p>que Goodson (2019,</p><p>p. 55) aponta como compreensão sobre a universidade pelos sistemas</p><p>de educação do Ocidente ao final do século XIX, mas que é uma repre-</p><p>sentação muito presente ainda hoje no Brasil, sobretudo a esses grupos</p><p>sociais para os quais o ingresso na universidade era e é pouco ou nada</p><p>almejado, pois se mostrava/mostra quase nada provável ou mesmo</p><p>impossível.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>110</p><p>Os fatores internos e externos que interferem nas mudanças cur-</p><p>riculares, continuam presentes frente às (re)configurações nos campos</p><p>disciplinares. Para além do regime político e do sistema educacional,</p><p>a maturidade do campo disciplinar, as associações de professores reuni-</p><p>das por identidades formativas, seus espaços de luta, o prestígio acadê-</p><p>mico e a atuação junto às políticas editoriais, contribuem para o forta-</p><p>lecimento das disciplinas (PETRUCCI-ROSA, 2014, p. 938). A disciplina</p><p>escolar aparece aqui como “campo cultural”, para a qual “ser professor</p><p>de uma disciplina escolar significa carregar consigo uma bagagem cul-</p><p>tural, constituída por jogos simbólicos, linguagem específica e formas</p><p>peculiares de compreender o mundo e a vida” (Ibidem, p. 943).</p><p>Desenvolvendo estudos acerca da história das disciplinas escolares,</p><p>Goodson (2019, p. 57-64) demonstra que essa compreensão do currícu-</p><p>lo como disciplina é consolidada na era moderna. Em seus estudos sobre</p><p>os contextos históricos do Reino Unido e Norte-Americano, ele identifi-</p><p>cou uma organização das disciplinas de forma hierárquica. Estas passa-</p><p>riam a compor também currículos diferentes, em escolas com finalidades</p><p>diferentes para públicos diferentes. Baseado em Kliebard, o autor indica</p><p>que os padrões de diferenciação curriculares norte-americanos se asse-</p><p>melhavam aos de diferenciação social. Em meio às constituições dos cur-</p><p>rículos e das disciplinas, atenta que frente a todo o conflito, as disciplinas</p><p>escolares aparecem como ponto de estabilidade (GOODSON, 2019, p. 65).</p><p>Ou seja, a dinâmica assumida na constituição das disciplinas</p><p>(seus profissionais, seus discursos, suas formas de organização discipli-</p><p>nar, seu modus operandi) ganham corpo e vida próprias independentes</p><p>dos conflitos e mudanças políticas e/ou sociais. E isso se torna relevante</p><p>quando pensamos na valorização da carreira docente, de sua especiali-</p><p>zação, de suas lutas e de garantias de espaços de trabalho. Esse reconhe-</p><p>cimento, necessário, não significa afirmar que os campos disciplinares</p><p>se encontram em convivência harmônica na sociedade. Muito pelo con-</p><p>trário, aparecem como espaço de disputas.</p><p>Sobre o caso brasileiro, em um artigo publicado no ano de 2007,</p><p>Petrucci-Rosa (2007) tece reflexões sobre as práticas interdisciplinares</p><p>na atuação de docentes em salas de aula após a publicação dos Parâmetros</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>111</p><p>Curriculares Nacionais do Ensino Médio (BRASIL, 1999), tomando</p><p>por base o estudo de duas investigações realizadas em contexto escolar.</p><p>A autora sistematiza os conceitos de currículo loteamento e de currículo</p><p>diáspora (PETRUCCI-ROSA, 2007, p. 55-57). O primeiro, toma como re-</p><p>ferência a preponderância da especialização e das limitações sobre o que</p><p>configura e o que não configura a disciplina, o segundo é marcado por re-</p><p>contextualizações e hibridismos, por espaços de concessões sobre o seu</p><p>“lote”. Os resultados mostram os conflitos enfrentados pelos docentes</p><p>para decidir quais ações adotar. A autora reconhece os próprios profes-</p><p>sores como as instâncias decisórias para ampliar e/ou fortalecer o seu</p><p>loteamento, ou abrir concessões quando concebiam o que teria maior</p><p>validade para a aprendizagem dos discentes. Petrucci-Rosa (2007) indica</p><p>que as disciplinas escolares estão sob rasura, mas que ainda possibilitam</p><p>formas de reconhecimento de suas identidades. Frente a essa compreen-</p><p>são, conclui que a vivência das práticas interdisciplinares são conquis-</p><p>tas de territórios desconhecidos por professores de disciplinas escolares</p><p>(PETRUCCI-ROSA, 2007, p. 63-64).</p><p>Em artigo mais recente, Petrucci-Rosa e Ramos (2015) apontam</p><p>para uma compreensão de que “a circularidade de discursos nas políti-</p><p>cas curriculares brasileiras vem provocando desestabilizações na noção</p><p>de disciplina escolar, especialmente no contexto da prática”. E, em par-</p><p>ticular, isso tem reflexos na própria constituição das identidades docen-</p><p>tes, relacionadas diretamente aos contextos de formação para os quais</p><p>se dedicaram de acordo com a formação escolhida, em que a universida-</p><p>de se mostra como espaço de potencialização desses saberes construídos</p><p>em seu “campo disciplinar” (PETRUCCI-ROSA; RAMOS, 2015, p. 157).</p><p>Os estudos aqui apresentados como referência nos ajudam</p><p>a pensar nas dinâmicas de produção curricular, bem como na relevân-</p><p>cia dos campos disciplinares enquanto núcleo estável da constituição</p><p>das identidades docentes e de suas lutas. Resta-nos agora observar</p><p>os caminhos dessas reflexões com os da proposta implementada pelos</p><p>cursos de Licenciatura em Educação do Campo no Brasil. Nesse senti-</p><p>do, torna-se relevante compreender se são caminhos paralelos ou rotas</p><p>entrecruzadas.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>112</p><p>Formação por Área na Educação do Campo</p><p>A formação do educador do campo por área do conhecimen-</p><p>to foi implementada partindo-se de iniciativas e debates bastante es-</p><p>pecíficos. As experiências pioneiras, encabeçadas pelas Universidade</p><p>Federal de Minas Gerais, Universidade de Brasília, Universidade Federal</p><p>de Sergipe e Universidade Federal da Bahia já assumiam uma propos-</p><p>ta com matriz formativa multidisciplinar e organizada por áreas do co-</p><p>nhecimento, definidas a princípio em quatro possibilidades: Ciências</p><p>da Natureza e Matemática, Ciências Humanas e Sociais, Ciências</p><p>Agrárias, Ciências da Linguagem (MOLINA; SÁ, 2011).</p><p>Com a abertura do Edital 02/2012, essa perspectiva passa a ser con-</p><p>solidada e fortalecida. O documento abre chamada pública de ampliação</p><p>de vagas a cursos de Licenciatura em Educação do Campo já existente</p><p>e possibilita abertura de novos cursos no Brasil, via universidades e ins-</p><p>titutos públicos. No item 5.1.3.1, letra j, salienta-se a “promoção de es-</p><p>tratégias de formação para a docência multidisciplinar com organização</p><p>curricular por áreas de conhecimento” (BRASIL, 2012, p. 3).</p><p>A Frente das Licenciaturas em Educação do Campo, vinculado</p><p>ao Fórum Nacional da Educação do Campo (FONEC), igualmente de acor-</p><p>do, se organiza em três grupos de trabalho, dos quais: 1) Formação</p><p>Inicial e Continuada; 2) Currículo, Formação por Área; Alternância</p><p>Pedagógica e Produção do Conhecimento; 3) Estudantes e egressos</p><p>(FONEC, 2021).</p><p>Sobre a escolha da organização do curso por área do conhecimen-</p><p>to, sistematizada nos projetos políticos pedagógicos dos cursos pio-</p><p>neiros e retomada nos editais de chamada para abertura ou ampliação</p><p>das vagas, assume-se posicionamentos necessários à nossa discussão e a</p><p>esse espaço de reflexão. Duas autoras nos ajudam a elucidar as decisões</p><p>acerca do percurso traçado: Caldart (2011) e Molina (2012, 2019).</p><p>Caldart (2011, p. 97) nos apresenta duas convicções fundamentais</p><p>que se mostram como pressupostos para o trabalho com o curso:</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>113</p><p>A primeira convicção é a de que a centralidade do Projeto</p><p>político Pedagógico da Licenciatura em Educação do</p><p>Campo não está/não deve estar na questão da docência</p><p>por área do conhecimento: ela é apenas uma das ferra-</p><p>mentas escolhidas (dentro de circunstâncias históricas</p><p>determinadas) para desenvolver uma das dimensões (a</p><p>da docência) do projeto de formação de educadores que</p><p>dê conta de pensar os caminhos da transformação da</p><p>escola desde o acúmulo de reflexões já existentes sobre</p><p>isso no âmbito da Educação do Campo e, especialmente,</p><p>dos movimentos sociais camponeses.</p><p>Esse primeiro esclarecimento já se mostra central em nossos es-</p><p>tudos, considerando que há um</p><p>cuidado em refletir acerca do modelo</p><p>colocado como proposta dos cursos. Inclusive, considerando-se o traba-</p><p>lho por áreas como uma das muitas ferramentas para o desenvolvimen-</p><p>to da docência visando a formação do educador do campo. Aqui já nos</p><p>é possível refletir sobre a necessidade de vivência dessa proposição para</p><p>só então ter condições de falar sobre ela. Na continuidade do texto, a au-</p><p>tora apresenta a segunda convicção:</p><p>A segunda convicção é a de que a discussão ou a elabora-</p><p>ção específica sobre a formação para a docência por área</p><p>deve ser ancorada em um projeto de transformação da</p><p>forma escolar atual, visando contribuir especialmente no</p><p>pensar de dois dos seus aspectos fundamentais, que são:</p><p>a alteração da lógica de constituição do plano de estudos,</p><p>visando a desfragmentação curricular pela construção</p><p>de um vínculo mais orgânico entre o estudo que se faz</p><p>dentro da escola e as questões da vida dos seus sujeitos</p><p>concretos; e a reorganização do trabalho docente, objeti-</p><p>vando superar a cultura do trabalho individual e isolado</p><p>dos professores (CALDART, 2011, p. 97).</p><p>Com Caldart (2011), parece claro que não é em busca da descons-</p><p>trução dos campos disciplinares que estaremos caminhando, mas sim</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>114</p><p>de um trabalho coletivo, superando os individualismos e fragmentações</p><p>apresentados nos modelos de escolas que se encontram instauradas</p><p>nessas dinâmicas sociais. Outra questão que se sobressai é a necessida-</p><p>de de compreensão e articulação dos estudos com os contextos dos quais</p><p>os alunos são originários e para os quais os docentes também estive-</p><p>ram comprometidos em atender – nesse aspecto também se reflete so-</p><p>bre a pertinência da formação de licenciados em Educação do Campo</p><p>com a possibilidade de atuação em suas próprias comunidades, sem pre-</p><p>cisar sair delas. A intenção é voltar-se à construção de um novo mo-</p><p>delo de escola, com a construção de novas referências para as famílias</p><p>e comunidades campesinas (Ibidem, p. 101). Ao mesmo tempo, passa-</p><p>mos a compreender que o curso de Licenciatura em Educação do Campo</p><p>é uma licenciatura nova, específica à discussão, ampliada após as ex-</p><p>periências com a Pedagogia da Terra e nascida das necessidades dessas</p><p>comunidades.</p><p>Alguns argumentos são colocados por Caldart (2011, p. 106-108)</p><p>que contribuem para essa assunção. Dentre eles, encontramos a ideia</p><p>de que o atendimento às comunidades do campo pode ser realizado</p><p>por docentes com atuação em mais de uma área do saber, numa mesma</p><p>instituição. Sobre esse argumento, a autora leva em consideração a im-</p><p>possibilidade de contratação de mais de um profissional para atender</p><p>às várias demandas disciplinares. Outra questão é a formação específica</p><p>para a atuação com pessoas do campo, considerando suas culturas e sa-</p><p>beres. De forma mais pragmática, estava em jogo também a aprovação</p><p>da proposta de cursos superiores de licenciatura, considerando que não</p><p>haveria a possibilidade de colocar-se formações específicas com a es-</p><p>pecialidade “do campo” (a autora exemplifica: Geografia do Campo,</p><p>Física do Campo). Mais uma questão – e essa aqui se coloca como cen-</p><p>tral – é que a opção é pela formação de uma Licenciatura em Educação</p><p>do Campo, não por uma formação por área do conhecimento.</p><p>Caldart (2011, p. 107-108) esclarece inclusive o uso do termo “mul-</p><p>tidisciplinar”, mantido na proposta para designar a formação por área</p><p>do conhecimento com a intenção de manter as disciplinas como re-</p><p>ferência. Ela ainda nos informa que essa foi uma discussão de fôlego,</p><p>sendo considerada por alguns participantes um retrocesso. Para além</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>115</p><p>de garantir a possibilidade de os egressos do curso atuarem nas escolas</p><p>do campo ainda não organizadas por área, optaram por esse viés para</p><p>ter a possibilidade de amadurecer a compreensão das relações entre</p><p>áreas e disciplinas. Essa reflexão se mostrou pertinente tanto no que</p><p>se refere à Educação Básica quanto no perfil dos cursos de formação</p><p>de professores, por não se inserirem de forma diferente nos sistemas</p><p>de matrícula das universidades, por mais que isso possa/pudesse vir a</p><p>ser modificado. A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade tam-</p><p>bém foram no mesmo sentido consideradas, assumindo a compreensão</p><p>destas como uma forma de trabalho e não diretamente a habilitação.</p><p>Os apontamentos aqui colocados revelam as rotas cruzadas. Esse</p><p>aspecto, caracterizado como uma discussão de fôlego, remete justamen-</p><p>te às tensões e aos embates entre as formas de organização do conheci-</p><p>mento nos cursos de Licenciatura em Educação do Campo. Se por áreas</p><p>ou por disciplinas, chegou-se a uma combinação desse primeiro mo-</p><p>mento de experimentação da formação por áreas, mas sem o abandono</p><p>completo das identidades disciplinares. Esse conflito revela justamente</p><p>a necessidade de não abandonar a “base sólida” que são as identida-</p><p>des disciplinares por meio dos quais os docentes se reconhecem como</p><p>oriundos e pertencentes.</p><p>Mônica Molina (2019) igualmente traz contribuições sobre</p><p>essa discussão. Na obra que sistematiza as experiências socializadas</p><p>nos Seminários Nacionais de Formação Continuada de Professores</p><p>das Licenciaturas em Educação do Campo no Brasil, a autora retrata essa</p><p>necessidade de se pensar na formação por áreas de forma semelhante</p><p>a Caldart. Vejamos:</p><p>Além da compreensão epistemológica que a sustenta, no</p><p>sentido de buscar estratégias capazes de contribuir como</p><p>desafio de superar a fragmentação do conhecimento,</p><p>essa escolha liga-se a um grave problema, que é a insufi-</p><p>ciência da oferta dos anos finais do ensino fundamental</p><p>e ensino médio no território rural. (…) Tal desproporção</p><p>na distribuição percentual das matrículas revela um afu-</p><p>nilamento na oferta educacional do meio rural, dificul-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>116</p><p>tando o progresso escolar daqueles alunos que almejam</p><p>continuar seus estudos em escolas localizadas nesse ter-</p><p>ritório (MOLINA, 2019, p. 200).</p><p>Em publicação anterior, como no verbete “Licenciatura</p><p>em Educação do Campo”, do Dicionário da Educação do Campo, a au-</p><p>tora remete a essa necessidade da “organização do trabalho pedagó-</p><p>gico, especialmente para as escolas de educação fundamental e média</p><p>do campo, destacando-se como aspectos importantes atuação educativa</p><p>em equipe e a docência multidisciplinar por áreas do conhecimento.”</p><p>(MOLINA, 2012, p. 469).</p><p>Para além dessas preocupações, Molina (2019, p. 201) advoga a ne-</p><p>cessidade de superação das fragmentações que as disciplinas apresen-</p><p>tam, tal como aparecem nas escolas e nas universidades. A perspectiva</p><p>de trabalho com a formação por áreas do conhecimento para esta autora</p><p>é geradora de espaços de trabalho coletivo, tomando por base as reali-</p><p>dades vivenciadas. Para ela, os docentes que atuam nessas licenciaturas</p><p>têm se empenhado em constituírem práticas interdisciplinares. Salienta</p><p>que apesar das inseguranças geradas por esse modelo, este não se mos-</p><p>tra aos docentes como imobilizador de suas ações, pelo contrário, en-</p><p>gendram um movimento de revisão das práticas, de forma a contribuir</p><p>com o diálogo entre conhecimentos científicos e saberes populares.</p><p>Para encerrar as reflexões sobre o trabalho com as áreas</p><p>na Licenciatura em Educação do Campo, as contribuições de Carcaioli</p><p>(2019, p. 106-107) aparecem como fundamentais. Em sua tese de douto-</p><p>rado, produzida junto ao Programa de Ensino de Ciências e Matemática</p><p>– PECIM-Unicamp retoma as considerações de Caldart (2011) se refe-</p><p>renda em Goodson (2007) para fazer duas importantes considerações.</p><p>A primeira delas, trata do direito ao acesso a essa proposta de gradu-</p><p>ação. O segundo, justamente, às tensões estabelecidas entre a propos-</p><p>ta do curso por área do conhecimento e à instauração do atual Ensino</p><p>Médio, em acordo com a BNCC. Vejamos as apreciações da autora:</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>117</p><p>Além disso, ao debater</p><p>a área do conhecimento, também</p><p>é importante tomarmos alguns cuidados, visto que algu-</p><p>mas interpretações rasas dessa ferramenta da Educação</p><p>do Campo podem levar a dois caminhos perigosos. O</p><p>primeiro diz respeito ao questionamento da necessidade</p><p>real de existência das LEdoCs, já que a formação por área</p><p>também interessa e pode servir à formação de educado-</p><p>res das escolas da cidade, e por que não reformar, então,</p><p>as licenciaturas atuais e nelas poder ingressar qualquer</p><p>estudante – do campo ou da cidade? Outro questiona-</p><p>mento e a má interpretação podem subsidiar favora-</p><p>velmente o debate da BNCC (Base Nacional Comum</p><p>Curricular) no momento atual. Mas é importante deixar-</p><p>mos registrado que o debate da área do conhecimento na</p><p>Educação do Campo, incluindo aonde se quer chegar, é</p><p>completamente diferente do debate da BNCC, que prevê</p><p>as competências e habilidades específicas de cada área</p><p>do conhecimento de cada componente curricular, ou</p><p>seja, é limitador do currículo escolar e não articulador</p><p>como se espera na Educação do Campo.” (CARCAIOLLI,</p><p>2019, p. 106-107).</p><p>Deixamos fortemente marcada aqui – por meio dos estudos elen-</p><p>cados – a compreensão de que a organização por áreas da Licenciatura</p><p>em Educação do Campo se apresenta de forma bastante distanciada da-</p><p>quela apresentada pela BNCC para o Ensino Médio. A primeira é fruto</p><p>de um trabalho coletivo, engendrada a partir de muito debate e ainda</p><p>se encontra em vias de experimentação. A segunda, surge como um di-</p><p>recionador de práticas e, por consequência, limitador delas. Para além</p><p>de todo o seu processo conturbado de construção, a BNCC é colocada</p><p>como um modelo pronto e o oficial a ser implementado pelas escolas.</p><p>Frente ao conjunto de ideias aqui relacionadas, aparentemente</p><p>poderíamos supor que os caminhos traçados pela formação por área</p><p>do conhecimento e a validação das disciplinas como centrais seriam</p><p>percursos paralelos. Contudo, com essas duas grandes discussões mui-</p><p>tos pontos de encontro se apresentam. A seguir, as rotas entrecruzadas</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>118</p><p>são reveladas nas abordagens colocadas para a compreensão dos campos</p><p>do saber e, necessariamente, das disciplinas, bem como as possíveis re-</p><p>lações a serem estabelecidas com as propostas de áreas do conhecimen-</p><p>to na Educação do Campo.</p><p>Quais os pontos de encontro?</p><p>O resultado desses estudos revelou o que consideramos três gran-</p><p>des apontamentos. O primeiro deles diz respeito à compreensão sobre</p><p>o papel das disciplinas na formação por áreas das LEdoCs. Sobre isso</p><p>ainda faz-se necessário aprofundarmos a compreensão sobre as relações</p><p>que têm sido estabelecidas nessa realidade. A necessidade de superação</p><p>da fragmentação desse modelo disciplinar nas escolas e nas universida-</p><p>des, o distanciamento entre os conteúdos de abordagem internos às dis-</p><p>ciplinas e o contexto do campo, as comunidades disciplinares às quais</p><p>os estudantes das LEdoCs se reconhecem e passam a atuar como prota-</p><p>gonistas de acordo com sua habilitação são preocupações pertinentes</p><p>às discussões aqui convocadas. Salientamos, entretanto, que neste pro-</p><p>cesso, superar a fragmentação e todas as relações de poder estabelecidas</p><p>nos modelos já em execução nas escolas e nas universidades não repre-</p><p>senta, necessariamente, diluir as identidades docentes disciplinares.</p><p>O segundo apontamento é sobre a própria compreensão de contex-</p><p>tualização. A perspectiva do trabalho interdisciplinar é colocada como</p><p>a saída para o trabalho com a Educação do Campo de forma contextua-</p><p>lizada. Como apontam os estudos de Petrucci-Rosa (2018), a interdisci-</p><p>plinaridade é para os docentes uma perspectiva ainda pouco esclarecida</p><p>e, como Caldart (2011) explicita, uma ferramenta de trabalho que den-</p><p>tro da licenciatura em Educação do Campo encontra-se em processo</p><p>de experimentação. Com os estudos de Goodson (2019), há muitas si-</p><p>tuações de trabalho contextualizados tomando por base as experiências</p><p>dentro de disciplinas específicas, inclusive quando estas têm seu campo</p><p>de atuação fortemente consolidado e articulado ao contexto de vivência</p><p>dos discentes. Esse segundo apontamento também nos coloca o desafio</p><p>de compreender as diferentes formas de construção de práticas contex-</p><p>tualizadas, considerando justamente o cotidiano e a cultura dos discen-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>119</p><p>tes e docentes do campo, na construção de currículos loteamento ou de</p><p>currículos diaspóricos. Por enquanto, compreender como conceitos dis-</p><p>tintos a “interdisciplinaridade” e a “contextualização” se torna pertinen-</p><p>te e relevante para atentar à dinâmica instaurada nos cursos de LEdoCs.</p><p>Por fim, e aqui convocado apenas ao final, mas com uma impor-</p><p>tância imensa, a promoção dos espaços de diálogo entre os professo-</p><p>res de diferentes áreas promovida pelas inúmeras situações nas quais</p><p>o modelo formativo das LEdoCs em âmbito nacional tem se esforçado</p><p>em constituir. Como salienta Molina (2019), esta vem demonstrando</p><p>ser uma prática validada pelos pares, um espaço de construção de novos</p><p>conhecimentos, um momento de consolidação de características pró-</p><p>prias do curso, uma ferramenta de potencialização da formação do edu-</p><p>cador do campo. É com os docentes trabalhando em grupos, dialogando,</p><p>que se cria a possibilidade de revisar os encaminhamentos das discipli-</p><p>nas, reorganizar os tempo-universidade e tempo-comunidade, pensar</p><p>nas propostas de inserção de atividades extensionistas no curso, ampliar</p><p>a realização de pesquisas, estabelecer as trocas de saberes e, sobretudo</p><p>compreender que o processo formativo da Educação do Campo não se</p><p>restringe ao discurso instrucional, mas é para a vida.</p><p>Considerações Finais</p><p>Os estudos aqui propostos intencionaram ampliar os deba-</p><p>tes acerca das relações entre a formação por área do conhecimento</p><p>nas Licenciaturas em Educação do Campo e a configuração das discipli-</p><p>nas específicas no curso. Obviamente, neste momento, o espaço discur-</p><p>sivo esteve restrito às reflexões teóricas que podemos tecer diante deste</p><p>debate. Há muito a ser dito e considerado, tomando por base as expe-</p><p>riências que vêm sendo realizadas, no seio dos cursos implementados</p><p>por todo o Brasil.</p><p>As abordagens convocadas com Goodson (2019) e Petrucci-Rosa</p><p>(2018) sobre a reflexão das disciplinas nos currículos e na constituição</p><p>das identidades docentes podem nos levar a uma melhor compreensão</p><p>dos espaços formativos da Licenciatura em Educação do Campo, sobre-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>120</p><p>tudo acerca de suas habilitações. Os níveis de relações entre as discipli-</p><p>nas, suas identidades quanto aos conteúdos ou formativas, bem como</p><p>a compreensão da função das áreas e das comunidades docentes con-</p><p>tribuem valorosamente para a consolidação e reflexão desses debates</p><p>estabelecidos no âmbito da Educação do Campo2.</p><p>Com Caldart (2011), Molina (2019) e Carcaioli (2019), a relevân-</p><p>cia de se compreender como as experiências na Educação do Campo</p><p>vêm sendo realizadas, consolidadas e, inclusive, tomar como central</p><p>as vivências das LEdoCs na compreensão desses percursos formativos</p><p>se apresentaram como foco de reflexão. Nesse processo, ouvir os docen-</p><p>tes e discentes acerca de suas experiências aparece de forma si ne qua non</p><p>para refletirmos sobre essas relações, aspecto que se conjuga em muito</p><p>às abordagens de Goodson (2019), Petrucci-Rosa (2018) e Freire (2005)</p><p>nos propiciando entrecruzar as rotas.</p><p>Referências</p><p>ARANHA, Maria Lúcia A. História da Educação e da Pedagogia – Geral e</p><p>Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006.</p><p>BRASIL, MEC. Edital de Seleção nº 02/2012 – SESU/SETEC/SECADI/</p><p>MEC, de 31 de agosto de 2012. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/</p><p>index.php?option=com_docman&view=download&alias=13300-edital-02-</p><p>2012-sesu-setec-secadi-31-agosto-2012-pdf&category_slug=junho-2013-</p><p>pdf&Itemid=30192. Acesso em: 19 set. 2021.</p><p>BRASIL, MEC. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9394/96.</p><p>Brasília: MEC, 1996.</p><p>BRASIL,</p><p>MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.</p><p>Brasília: MEC, 1999.</p><p>2 Outras discussões fundamentais consolidadas por Petrucci-Rosa e Goodson remetem às</p><p>“aprendizagens tribais”, ao “currículo narrativo” e aos “cruzamentos de fronteiras”. Estas</p><p>podem ampliar nossa compreensão sobre o trabalho com os campos disciplinares dentro</p><p>das áreas de ensino de forma a superar o modelo fragmentado e reprodutor.</p><p>Neste livro, essas abordagens são apresentadas no primeiro capítulo. São discussões que</p><p>podem contribuir muito nesse processo compreensivo sobre a Educação do Campo no</p><p>Brasil.</p><p>http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13300-edital-02-2012-sesu-setec-secadi-31-agosto-2012-pdf&category_slug=junho-2013-pdf&Itemid=30192</p><p>http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13300-edital-02-2012-sesu-setec-secadi-31-agosto-2012-pdf&category_slug=junho-2013-pdf&Itemid=30192</p><p>http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13300-edital-02-2012-sesu-setec-secadi-31-agosto-2012-pdf&category_slug=junho-2013-pdf&Itemid=30192</p><p>http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13300-edital-02-2012-sesu-setec-secadi-31-agosto-2012-pdf&category_slug=junho-2013-pdf&Itemid=30192</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>121</p><p>CALDART, Roseli Salete. Licenciatura em Educação do Campo e Projeto</p><p>formativo: qual o lugar da docência por área? In: MOLINA, Mônica Castagna;</p><p>SÁ, Laís Mourão (org.). Licenciaturas em Educação do Campo: registros e</p><p>reflexões a partir das experiências piloto. Belo Horizonte: Autêntica Editora,</p><p>2011.</p><p>CARCAIOLLI, Gabriela Furlan. Educação do Campo, Agroecologia e Ensino</p><p>de Ciências: o tripé da formação de professores. Tese (Doutorado) – Campinas:</p><p>PECIM-Unicamp, 2019.</p><p>FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.</p><p>GOODSON, Ivor F. Aprendizagem, currículo e política de vida: obras</p><p>selecionadas de Ivor F. Goodson. Petrópolis: Vozes, 2020.</p><p>GOODSON, Ivor F. Currículo, narrativa pessoal e futuro social. Campinas:</p><p>Editora Unicamp, 2019.</p><p>GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 2008.</p><p>GOODSON, Ivor F. O Currículo em Mudança: estudos na construção social do</p><p>currículo. Porto: Porto Editora, 2001.</p><p>LEAL, Álida Angélica Alves; DIAS, Alisson Correia; CAMARGOS, Otávio Pereira.</p><p>Cartografia das Licenciaturas em Educação do Campo no Brasil: expansão e</p><p>institucionalização. In: MOLINA, Mônica de Oliveira Castagna; MARTINS,</p><p>Maria de Fátima Almeida (org.). Formação de Formadores: reflexões sobre as</p><p>experiências da Licenciatura em Educação do Campo no Brasil. Belo Horizonte:</p><p>Autêntica editora, 2019.</p><p>MOLINA, Mônica de Oliveira Castagna; SÁ, Laís Mourão (org.). Licenciaturas</p><p>em Educação do Campo: registros e reflexões a partir das experiências piloto.</p><p>Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.</p><p>MOLINA, Mônica de Oliveira Castagna. Contribuições das Licenciaturas em</p><p>Educação do Campo para as políticas de formação de educadores. In: MOLINA,</p><p>Mônica de Oliveira Castagna; MARTINS, Maria de Fátima Almeida (org.).</p><p>Formação de Formadores: reflexões sobre as experiências da Licenciatura em</p><p>Educação do Campo no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2019.</p><p>MOLINA, Mônica de Oliveira Castagna. Verbete Licenciatura em Educação</p><p>do Campo. In: CALDART, Roseli Salete et al. (org.). Dicionário da Educação</p><p>do Campo. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim</p><p>Venâncio; Expressão Popular, 2012.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>122</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês; RAMOS, Tacita Ansanello. Identidades docentes</p><p>no Ensino Médio: investigando narrativas a partir de práticas curriculares</p><p>disciplinares. Pro-posições, Campinas, v. 26, n. 1 (76), p. 141-160, jan./abr.,</p><p>2015.</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. Currículo de Ensino Médio e conhecimento</p><p>escolar: das políticas às histórias de vida. Curitiba: CRV, 2018.</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. Experiências interdisciplinares e formação de</p><p>professore(a)s de disciplinas escolares: imagens de um currículo-diáspora. Pro-</p><p>posições, Campinas, v. 18, n. 2, p. 51-65, maio/ago., 2007.</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. Políticas curriculares e identidades docentes</p><p>disciplinares: a área de Ciências da Natureza e Matemática no currículo do</p><p>Ensino Médio no Estado de São Paulo (2008-2011). Ciência & Educação,</p><p>Bauru, v. 20, n. 4, p. 937-953, 2014.</p><p>ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 17. ed.</p><p>Petrópolis: Vozes, 1978.</p><p>SAVIANI, Demerval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas:</p><p>Autores Associados, 2016.</p><p>SOARES, Magda. Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e escrever. São</p><p>Paulo: Contexto, 2021.</p><p>Sites consultados:</p><p>https://fonec.org/frentes/ acesso em 19.09.21</p><p>https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/08/23/milton-ribeiro-veja-frases-</p><p>do-ministro-da-educacao-e-entenda-por-que-elas-foram-questionadas.ghtml</p><p>acesso em 24.10.21</p><p>https://fonec.org/frentes/</p><p>https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/08/23/milton-ribeiro-veja-frases-do-ministro-da-educacao-e-entenda-por-que-elas-foram-questionadas.ghtml</p><p>https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/08/23/milton-ribeiro-veja-frases-do-ministro-da-educacao-e-entenda-por-que-elas-foram-questionadas.ghtml</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E</p><p>NARRATIVAS DOCENTES EM</p><p>CONTEXTOS PANDÊMICOS</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>125</p><p>Currículo e a crise do coronavírus</p><p>no Brasil: o potencial do currículo</p><p>narrativo para a construção de</p><p>uma história sobre a pandemia</p><p>Henrique de Carvalho Calado1</p><p>“Dedicado a Rafaela Cristina Calado,</p><p>uma vida perdida para as consequências</p><p>indiretas da pandemia de covid-19”</p><p>Introdução</p><p>A pandemia global que começou no final de 2019 e se espalhou</p><p>no início de 2020 está longe de acabar, e sua história está sendo escrita</p><p>em todo o mundo, neste momento, por cada um de nós. Nesse sentido,</p><p>se a história da pandemia um dia será parte de uma lição aprendida ou</p><p>“apenas mais uma tragédia” na curta existência humana na Terra, está</p><p>além de qualquer previsão sobre o futuro que poderia ser feita leviana-</p><p>mente. Mesmo assim, havendo potencial de aprendizagem com ela, acre-</p><p>dito que esse potencial possa ser evidenciado por um currículo que leve</p><p>em conta as experiências vividas pelos sujeitos inscritos no processo</p><p>educacional, como os professores, os alunos e suas famílias (GOODSON;</p><p>SCHOSTAK, 2021).</p><p>1 Doutor em Educação pela UNICAMP</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>126</p><p>Neste capítulo, desenvolvo um ensaio teórico sobre o potencial</p><p>do currículo narrativo para a construção de uma história sobre a pan-</p><p>demia, no contexto brasileiro, que seja pautada em uma aprendizagem</p><p>narrativa. Para tal, apresento um conjunto de resultados de pesquisas</p><p>realizadas em 2020 e 2021 que demonstram o impacto da pandemia e do</p><p>isolamento social em diversos aspectos do cenário brasileiro, e os pro-</p><p>blematizo enquanto componentes de uma experiência sócio-histórica,</p><p>cultural e coletiva que aflige educadores e estudantes da atualidade.</p><p>A partir desse cenário, discuto os conceitos de narrativa, aprendizagem</p><p>narrativa e currículo narrativo, como conceitos instigantes para fomen-</p><p>tar discussões do campo curricular em frente ao contexto pandêmico</p><p>e pós-pandêmico no Brasil. Para desenvolver essa proposta, esse capítu-</p><p>lo está organizado em três partes: a pandemia de covid-19 no Brasil; ex-</p><p>periência e a aprendizagem narrativa; e o currículo narrativo em tempos</p><p>pandêmicos e pós-pandêmicos no Brasil.</p><p>A pandemia de covid-19 no Brasil</p><p>Seria muito improvável encontrar ainda argumentos de que a pan-</p><p>demia de covid-19 seja um evento passageiro e de pequeno impacto</p><p>no mundo. Sendo uma doença que em menos de um ano matou mais</p><p>de um milhão de pessoas, além de impactar a maior parte dos hábitos</p><p>de toda a população mundial, ela se tornou uma ameaça emergente</p><p>à humanidade. No entanto, está claro que a pandemia não está</p><p>vivendo. Este bloco</p><p>é repleto delas, narrativas densas, éticas, políticas, problematizadoras.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>14</p><p>Encerrou em 2020 o movimento escola sem partido e de propósito escre-</p><p>vo com minúsculas. Mas como diz um dos textos, o estrago estava feito.</p><p>A BNCC está aí para ser descartada. Assim espero.</p><p>É possível pensar em história e cultura afro-brasileira em quadri-</p><p>nhos? Forte movimento de colonização quando penso na minha his-</p><p>tória e na paixão por algumas meninas brancas da minha época de re-</p><p>vista em quadrinhos. Luluzinha e seus cabelos encaracolados e Bolota,</p><p>sem precisar adjetivar a quem se referia, eram as minhas favoritas. Com o</p><p>tempo nacionalizaram os personagens que no estrangeiro éramos repre-</p><p>sentados por um papagaio pilantrinha e falante, mesmo assim, quem</p><p>é o mais sujinho em personagens de revistas em quadrinho nacionais?</p><p>Que bom que houve avanços, e nem vou contar a vocês, há um conjunto</p><p>importante mas insuficiente de boas histórias em quadrinho que ago-</p><p>ra que me encaminho para um período de ter netas, são apresentadas</p><p>neste bloco. Que ideia decolonial presente e forte. Não é uma narrati-</p><p>va mínima.</p><p>E uma afirmativa que nunca antes tinha lido, mas pareceu-me im-</p><p>perdível: Paulo Freire, mesmo sendo um homem negro, se sentiu per-</p><p>tencente àquele continente no qual nunca havia estado anteriormente.</p><p>Negros ancestrais fizeram este país. Meu agradecimento aos ancestrais</p><p>dos negros que têm se mantido na luta por um país mais igualitário</p><p>e justo em todas as suas etnias e cores. Nunca havia pensado que Paulo</p><p>Freire era negro!</p><p>Já muito discuti no Programa de Educação Ambiental da FURG</p><p>em aulas, dissertações e teses os direitos dos animais e a alimentação</p><p>saudável. Nunca li antes um trabalho sobre o veganismo nos cursos</p><p>de graduação, mas não está caindo de maduro este tema justamen-</p><p>te num curso de Biologia? Me fixo num subtítulo: Por que falar sobre</p><p>os animais não-humanos. Isso me tira do livro e me faz pensar o que é ser</p><p>humano. Alguns animais não-humanos, como se refere o texto, não se-</p><p>riam mais humanos do que muitos animais humanos? Me fiz entender?</p><p>Animais não-humanos são criados para servir aos humanos. Mas esta</p><p>espécie de animais humanos não-humanos a que me refiro, ao contrário,</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>15</p><p>exercem o poder sem humanidade. O que caracteriza então o humano?</p><p>Nunca fomos? Esperamos alcançar?</p><p>Quando cheguei nesta parte da leitura do texto me dei conta do que</p><p>apresentei no início de texto reforçado por Clandinin no Seminário</p><p>Internacional de Narrativa organizado pela FURG e pela UFU que narra-</p><p>tiva é a experiência narrada e o método de pesquisá-la. Este livro é ins-</p><p>piração inovadora neste sentido. Vou tirar daqui exemplos como inspi-</p><p>rações para textos que gosto de escrever. Fui para o próximo bloco que é</p><p>o de contextos de aprendizagem em comunidades disciplinares.</p><p>Lembrei de uma conversa com Inês, como carinhosamente chama-</p><p>mos uma das organizadoras deste livro, sobre o que pensaria Goodson</p><p>sobre a BNCC. Estava por ser lançada a terceira versão no Brasil. O que</p><p>ela me disse que possivelmente encaminharia sua resposta, e que en-</p><p>contro ressonância nas narrativas docentes que este livro aprofunda,</p><p>fez eu fortalecer meu argumento sobre a (Des)necessária BNCC e ponto</p><p>final. Mas é com ela que outro bloco do texto inicia ao discutir uma dis-</p><p>ciplina em tempos de BNCC. Currículo mínimo prescritivo em um país</p><p>culturalmente diverso já sintetiza e nem precisamos ir a diante do pon-</p><p>to final. Sem nem precisar dizer da minha discordância com o Novo</p><p>Ensino Médio em que resistem algumas disciplinas. Vale cada narrati-</p><p>va de Edsger Dijkstra, Alan Turing e Ada Lovelace. Vocês sabem quem</p><p>são eles?</p><p>Foi o momento que minha ficha caiu! Quem já não teve este sen-</p><p>timento frente ao desconhecido que para nós parece, de nossos saltos</p><p>altos, óbvio quando prestamos atenção ao que mostram nossos alu-</p><p>nos? E sumô de robôs vocês sabem o que é? Eu faria a mesma cara para</p><p>o narrador do texto que fez, em um instante, cair a ficha! Arduino para</p><p>mim é nome de gente. Mais ainda, nome de Professor. Não fica bem,</p><p>Prof. Arduíno? Mas não é. Estamos em uma LCI. Temos a LedoC e agora</p><p>no texto a LCI.</p><p>Uma licenciatura em um Instituto Federal também merece análise</p><p>atenta. As Escolas Técnicas viraram Institutos Federais e neles se ins-</p><p>tauraram licenciaturas sobretudo de Matemática, Biologia, Química</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>16</p><p>e Física. E aos IFs foi dada a incumbência de se inventarem como insti-</p><p>tuições para pensar em algo que não era atribuição das Escolas Técnicas:</p><p>a formação de professores. Como gostei das mônadas apresentadas nes-</p><p>te texto pois remetem ao inédito viável em uma licenciatura em um IF,</p><p>pois não estão nem no Instituto da Ciência Exata nem na Faculdade</p><p>de Educação. Estão em um outro lugar em que o professor do Ensino</p><p>Médio é o professor que vai discutir a Licenciatura. Está em uma das mô-</p><p>nadas: Fizemos a ferro e fogo! Com isso o curso pode trilhar um caminho</p><p>ímpar. Sem dúvida com algumas dores e queimaduras!</p><p>Concordo quando Inês, como Petrucci-Rosa (2017, p. 573), é cha-</p><p>mada em um dos textos para argumentar sobre as práticas curriculares:</p><p>Nesse sentido, há dois níveis de transgressão nesta for-</p><p>ma de dizer sobre as práticas curriculares: 1. as narrati-</p><p>vas docentes trazem histórias de reinvenções cotidianas</p><p>ressignificadas e produtoras de outros modos de existên-</p><p>cia a partir da escola e da docência; 2. do ponto de vista</p><p>metodológico, há uma postura epistemológica da nossa</p><p>parte (como pesquisadores) de rompimento com padrões</p><p>analíticos mais conservadores, à medida que procuramos</p><p>aprender com as narrativas e não tratá-las estritamente</p><p>como dispositivos formativos (PETRUCCI-ROSA, 2017, p.</p><p>573).</p><p>Gente, e a mônada 8 de um dos textos: ela não estava perdendo</p><p>tempo nenhum na sala! Quem já não foi observar uma aula e de dentro</p><p>opina e pensa como faria. Nesta mônada a professora gostaria de apres-</p><p>sar o momento de cópia do texto do quadro, com a data. A professora</p><p>responde que é um tempo precioso para se deter em cada criança e ver</p><p>se tinha algum machucado! Eram crianças de contextos de alta vulnera-</p><p>bilidade social!</p><p>É mesmo como afirma Benjamin, em uma narrativa mergulhamos</p><p>na vida do narrador e o narrado, se tem a marca do narrador, nos marca</p><p>também como leitores, como a mão do oleiro na argila do vaso. Como</p><p>daqui para frente poder esquecer da Mônada 8?</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>17</p><p>Já me perdi totalmente da intenção inicial de escrita deste pre-</p><p>fácio porque mergulhei nas narrativas. E não tem como ser diferente.</p><p>A epígrafe de Manoel de Barros em uma delas parece ter sido escrita</p><p>a propósito: Agora não quero saber mais de nada, só quero aperfeiçoar</p><p>o que não sei! É a experiência negativa na estética poética de Manuel</p><p>de Barros. E com ele novamente chegou Freire, que eu estava com sau-</p><p>dade. Chegou forte. Igor e Paulo, um diálogo possível! E a pedagogia</p><p>alternativa com as gentes em suas histórias!</p><p>E se tem algo que pareceria estar fora de currículos narrativos se-</p><p>ria a educação financeira, mas nem ela ficou de fora e que falta ela nos</p><p>faz, não? Consumo, crise, as classes dos menos favorecidos, luta para</p><p>conseguir o mínimo para sua sobrevivência. Sempre me chama atenção</p><p>esta questão da classe dos menos favorecidos e isso levar a questões eco-</p><p>nômicas. O déficit poderia ser outro, mas o discurso está feito. Classe</p><p>menos favorecida são os pobres. Pobres de quê? Às crianças seria impor-</p><p>tante ensinar, entretanto, em 2019 isso foi por água abaixo. E não é que</p><p>a Educação Financeira está na BNCC? Claro nem surpreende, porque</p><p>a análise do autor do texto mostra que os objetivos são consumo cons-</p><p>ciente, investimento e previdência e assim individualiza erros e respon-</p><p>sabilidades, instalando a culpa em si mesmo.</p><p>Este livro me faz aprender tanta</p><p>sendo vi-</p><p>venciada da mesma forma em todo o mundo. Goodson e Lindblad (2010),</p><p>Rudd e Goodson (2012) e Goodson (2019) mostram, em uma perspecti-</p><p>va histórica, como as ideologias globais são refratadas entre os países.</p><p>De acordo com esses autores, os países respondem a influências de ní-</p><p>vel global criando uma variedade de políticas, que estão relacionadas</p><p>aos seus cenários políticos, sociais e culturais. Paralelamente, acredito</p><p>que a resposta contra a pandemia também está sendo refratada de for-</p><p>ma diferente em todo o mundo. Isso é sinalizado, por exemplo, quando</p><p>são levadas em consideração, mesmo sem um exame mais aprofundado</p><p>e detalhado, algumas das estatísticas da pandemia no mundo:</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>127</p><p>Imagem 1 – países com mais casos de covid-19, em números absolutos, em 28 de</p><p>novembro de 2021</p><p>Fonte: https://www.worldometers.info/coronavirus/?utm_</p><p>campaign=homeAdvegas1?. Acesso em: 28 nov. 2021.</p><p>Imagem 2 – países com mais mortes por covid-19, em números absolutos, em 28</p><p>de novembro de 2021</p><p>Fonte: https://www.worldometers.info/coronavirus/?utm_</p><p>campaign=homeAdvegas1?. Acesso em: 28 nov. 2021.</p><p>Considerando o número total de casos e o número de mortes</p><p>em cada país, o contexto brasileiro é sem dúvida um cenário profunda-</p><p>mente abalado pela crise ocasionada pela pandemia global, que afeta</p><p>a população em diversos aspectos. Sem ter qualquer pretensão de ex-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>128</p><p>plorar todos os impactos da pandemia do cenário brasileiro, acredito</p><p>que um conjunto de pesquisas recentes pode contribuir para a compre-</p><p>ensão de alguns desses aspectos. Apresentarei alguns dos resultados</p><p>dessas investigações nas considerações a seguir.</p><p>Costa (2020) discute a situação do mercado de trabalho no Brasil</p><p>e o aumento das taxas de desemprego ao longo do ano de 2020. Ela mos-</p><p>tra que as perspectivas são de aprofundamento do desemprego e da</p><p>informalidade junto com a pandemia, se as medidas governamentais</p><p>em vigor forem continuadas. A falta de programas e investimentos fede-</p><p>rais confiáveis vem reforçando a atual instabilidade econômica da popu-</p><p>lação, para a manutenção de um discurso de austeridade fiscal. Segundo</p><p>Cruz (2020), a reverberação da crise econômica durante a pandemia</p><p>de covid-19 também intensifica as projeções das estatísticas de fome.</p><p>Depois de sair do mapa da fome da ONU em 2014, o Brasil está prestes</p><p>a cruzar o índice de fome de 5% de sua população, recolocando-se na-</p><p>quela estatística mundial.</p><p>Bousquat et al. (2021) discutem a centralidade do Sistema Único</p><p>de Saúde, o SUS, no combate à pandemia no Brasil. Eles também mos-</p><p>tram o ponto de inflexão que sua imagem enfrentou com a pandemia.</p><p>Após anos de constantes ataques da mídia e da crítica conservadora, in-</p><p>dicando uma suposta necessidade de privatização, de repente ele é reco-</p><p>nhecido como uma política federal positiva. No entanto, essa mudança</p><p>não pôde fazer muito na prática. Em 2016, durante o governo de Michel</p><p>Temer, foi aprovada a emenda constitucional 95/2016, que fixa os gastos</p><p>federais nas áreas de Educação e Saúde durante 20 anos. Para D’Agostini</p><p>(2020), os argumentos para a extinção, ou pelo menos a reformulação,</p><p>dessa medida são defendidos por diversos economistas, instituições,</p><p>grupos de pesquisa e partidos políticos. Assim como Bousquat et al.</p><p>(2021), ele desenvolve uma série de razões para expressar a obsolescên-</p><p>cia do mesmo durante o período pandêmico. Essas investigações mos-</p><p>tram a importância de aprofundar os investimentos no SUS, para evi-</p><p>tar um colapso do mais importante sistema de saúde brasileiro neste</p><p>momento.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>129</p><p>Tal necessidade não está relacionada apenas às ondas da doença,</p><p>que continua apresentando novos casos a cada dia. Pesquisas projetam</p><p>e mostram o crescimento de outros efeitos negativos da pandemia entre</p><p>a população, devido à prolongada condição de isolamento social. Barros</p><p>et al. (2020) mostram que a frequência de sinais de instabilidade mental,</p><p>como sentimentos autorreconhecidos de tristeza, depressão, ansieda-</p><p>de, problemas nervosos e de sono, é muito elevada, segundo os 45.161</p><p>entrevistados brasileiros que estudaram. Seus dados apontam para</p><p>uma maior incidência desses sinais entre adultos jovens (18-29 anos)</p><p>e maior entre as mulheres do que entre os homens. Além disso, há evi-</p><p>dências do impacto da pandemia na saúde mental e no comportamento</p><p>das crianças:</p><p>Ficou evidenciado o quanto as crianças estão expostas</p><p>diretas ou indiretamente pelas repercussões da pande-</p><p>mia. Elas estão sujeitas às modificações estruturais na</p><p>vida, tais como: isolamento social, restrição do conví-</p><p>vio social com familiares e amigos; mudanças na rotina</p><p>escolar com redução da socialização, o que pode gerar,</p><p>conforme destacado pelos autores, modificações de hu-</p><p>mor, sintomas de estresse pós-traumático, depressão ou</p><p>ansiedade, destacando-se ainda as crianças em luto pe-</p><p>los familiares. […] Foi constatada pela revisão literária a</p><p>incidência de prejuízos à saúde mental assim como de-</p><p>sordens no comportamento infantil. Dessa forma, ressal-</p><p>ta-se os possíveis impactos ao desenvolvimento infantil</p><p>e a importância do cuidado das demandas infantis emer-</p><p>gidas pela pandemia (MATA et al., 2020, p. 1).</p><p>Pesquisas brasileiras (BARBOSA; BOFF, 2021; VIEIRA; GARCIA;</p><p>MACIEL, 2020; REIS et al., 2020) também analisam o impacto da pande-</p><p>mia no interior das casas e famílias. Os dados apresentados por Vieira,</p><p>Garcia e Maciel (2020) demonstram como, não apenas no Brasil, mas em</p><p>muitos países do mundo, ao passarem mais tempo em espaço confina-</p><p>dos com seus parceiros, as mulheres são mais frequentemente vítimas</p><p>da violência doméstica. A partir de uma análise histórica da desigualda-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>130</p><p>de de gênero no Brasil, além de dados relativos ao aumento das estatís-</p><p>ticas de violência doméstica e feminicídio durante a pandemia, Barbosa</p><p>e Boff (2021) também evidenciam esse impacto na vida das mulheres</p><p>durante o isolamento social. Segundo Reis et al. (2020), essa situação</p><p>constitui um paradoxo que as mulheres precisam enfrentar:</p><p>Nesse sentido, mulheres da maioria dos países tem li-</p><p>dado cotidianamente com um importante paradoxo:</p><p>atender as recomendações das autoridades sanitárias</p><p>de distanciamento social e, ao mesmo tempo, lidar com</p><p>o maior risco de serem agredidas ou assassinadas pelos</p><p>seus parceiros (REIS et al., 2020, p. 329).</p><p>Além de todos esses impactos, estudos sobre lesões autoprovoca-</p><p>das, tentativas de suicídio e taxas de suicídio em todo o mundo ainda</p><p>são inconclusivos sobre os efeitos da pandemia, embora a perspectiva</p><p>de aumento das condições mentais possa contribuir para o aumento</p><p>da frequência dessas também (SHER, 2020). As projeções do prolon-</p><p>gamento do isolamento também não parecem ser positivas em relação</p><p>a esse efeito da pandemia (APPLEBY, 2021). Schuck et al. (2020) reco-</p><p>nhece a preocupação emergente da comunidade internacional sobre</p><p>esta questão, porém encontraram poucas investigações sobre o impac-</p><p>to da pandemia no Brasil. Junior (2020) discute esse tema, focalizando</p><p>o estado do Rio Grande do Sul, aquele com os maiores índices de suicídio</p><p>do país. Ele aponta com muitos dados a fragilidade e a falta de políticas</p><p>de saúde mental no Brasil e sinaliza como isso pode impactar no aumen-</p><p>to das taxas de suicídio nacional e regional durante a pandemia.</p><p>Todos esses temas são muito mais complexos de serem compreen-</p><p>didos do que a rápida exposição deles feita aqui, mas pensamos que ela</p><p>contextualiza brevemente como alguns efeitos da pandemia estão se de-</p><p>senvolvendo no Brasil. Não seria possível deixa de mencionar o atual</p><p>presidente do país, Jair Bolsonaro:</p><p>O desenvolvimento da tragédia brasileira de abril em de-</p><p>corrência de ocorrências de acordo com o que fora plane-</p><p>jado por Bolsonaro. Progressivamente, setores cada vez</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES</p><p>E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>131</p><p>mais expressivos da população cansaram-se da adoção</p><p>de medidas de proteção desgastantes e para muitos eco-</p><p>nomicamente insustentáveis, e que eles pareciam pouco</p><p>efetivas (CALIL, 2021, p. 46).</p><p>A militarização do Ministério da Saúde logrou oficiali-</p><p>zar uma política negacionista, que difunde medicamen-</p><p>tos comprovadamente ineficazes, comemora o número</p><p>de “recuperados” (omitindo as sequelas permanentes</p><p>de parte deles), restringe gradativamente a testagem e</p><p>consolida o ocultamento da parte dos óbitos, registran-</p><p>do-os como síndrome respiratória aguda grave não fonte</p><p>(CALIL, 2021, p. 46).</p><p>O contexto brasileiro tem, na figura central de seu presidente,</p><p>um político militar, conservador, intolerante e negacionista. Como de-</p><p>monstra Calil (2021), sua aparente preocupação com a economia sobre</p><p>a vida de seus cidadãos está fazendo com que a pandemia no Brasil te-</p><p>nha uma singularidade própria, que não está posta ao acaso: o projeto</p><p>de morte em curso é uma estratégia que mescla a propagação de dados</p><p>errados, a falta de investimentos e políticas eficazes que contribuam para</p><p>um real isolamento social e a desqualificação da gravidade da pandemia.</p><p>É possível também focalizar a infraestrutura educacional e a pron-</p><p>tidão para o enfrentamento da pandemia do contexto brasileiro. Dias</p><p>e Pinto (2020) discutem uma pletora de variáveis que fazem parte do en-</p><p>sino atual em desenvolvimento nas plataformas digitais, que mudaram</p><p>a modalidade de ensino de mais de 90% dos alunos em todo o mundo.</p><p>Os autores localizam como as desigualdades da sociedade brasileira im-</p><p>pactam nas experiências educacionais que os alunos podem ter. Até o</p><p>papel que as famílias podem ter nas atividades dos filhos é drasticamen-</p><p>te variável, devido às condições e jornadas de trabalho que precisam en-</p><p>frentar diariamente.</p><p>Nascimento, Ramos, Melo e Castioni (2020) apresentam uma cole-</p><p>ção de dados sobre a situação do acesso à internet domiciliar no Brasil.</p><p>Suas estatísticas mostram que a internet não está universalizada para</p><p>os estudantes brasileiros e eles discutem que para uma parte deles (2,6</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>132</p><p>milhões de estudantes) uma política de distribuição de celular ou compu-</p><p>tador com chips para acesso móvel à internet poderia funcionar, no sen-</p><p>tido de fornecer um acesso mínimo ao ensino a distância. No entanto,</p><p>restariam ainda 3,2 milhões de alunos que moram em áreas sem sinal</p><p>de celular e, portanto, sem possibilidade de ter acesso à internet. É claro</p><p>que, para preservar e defender o direito legal constitucional à educa-</p><p>ção infantil, mais investimentos precisam ser feitos, no que diz respeito</p><p>à promoção de condições mínimas para o estabelecimento da conexão</p><p>remota durante a pandemia.</p><p>Acredito que esses aspectos da pandemia em curso no Brasil</p><p>são parte de um cenário complexo, dos quais muitos outros ainda po-</p><p>deriam ter sido destacados. Nele, reconheço uma experiência sócio-</p><p>-histórica, cultural e coletiva que aflige, de maneira não homogênea,</p><p>educadores e estudantes da atualidade, e que não pode ser ignorada</p><p>pelo campo do Currículo. Esse contexto possui um conjunto de parti-</p><p>cularidades que o distinguem, por exemplo, da posição a partir da qual</p><p>Goodson e Schostak (2021) teorizam, mas muitas de suas proposições</p><p>e ideias podem contribuir para que considerações importantes possam</p><p>ser elaboradas:</p><p>Isso não é algo que um professor sozinho possa resolver.</p><p>Esses são problemas reais, não os artificiais de muitos</p><p>projetos de solução de problemas que pedem às crianças</p><p>que usem cola, papel e caixas de cereais; nem são uma</p><p>coleção de questões em debate. Eles são oriundos de mi-</p><p>nha família, amigos e comunidade agora. Como faço para</p><p>lidar com eles? (GOODSON; SCHOSTAK, 2021, p. 12, tra-</p><p>dução própria2).</p><p>Assim, na próxima seção, apresento algumas significações sobre</p><p>os conceitos de experiência, de Walter Benjamin, e aprendizagem nar-</p><p>rativa, de Ivor Goodson, como ideias que podem inspirar práticas curri-</p><p>2 This is not something that a teacher alone can resolve. These are real problems, not the ar-</p><p>tificial ones of many a problem-solving project asking children to use glue, paper, and cereal</p><p>boxes; nor are they a collection of debating issues. They are drawn from my family, friends,</p><p>and community now. How do I deal with them? (GOODSON; SCHOSTAK, 2021, p. 12).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>133</p><p>culares durante e depois da pandemia. Acredito que eles podem ser con-</p><p>ceitos cruciais para ajudar educadores na tarefa coletiva de produzir</p><p>uma narrativa da pandemia, na qual ela seja mais que um pesadelo a ser</p><p>esquecido.</p><p>Experiência e a aprendizagem narrativa</p><p>Ao elencar a temática da experiência como relevante, seria possí-</p><p>vel supor que momentos radicais de mudanças das experiências sociais</p><p>pudessem se tornar marcos nas produções de novas narrativas, inspi-</p><p>radas em um conjunto de rupturas que se tornaram necessárias para</p><p>a continuidade da vida de cada pessoa. Nessa hipótese, as readequações</p><p>das atividades do cotidiano, em maior ou menor medida sujeitas a as-</p><p>pectos da experiência sócio-histórica, cultural e coletiva da pandemia,</p><p>seriam potenciais fontes para que novas histórias sejam contadas.</p><p>No entanto, inspirado na produção de Walter Benjamin, ensaísta,</p><p>tradutor, crítico literário e filósofo alemão da primeira metade do sé-</p><p>culo XX, reconheço um tom desedificante a ser considerado na experi-</p><p>ência brasileira da pandemia. Assim como Benjamin (2012) identifica</p><p>uma mudez entre os soldados que voltaram da Primeira Guerra Mundial,</p><p>que foram sujeitos a forças muito maiores do que aquelas que até então</p><p>a sociedade estava habituada, é possível fazer um paralelo com a situa-</p><p>ção atual. A pandemia colocou cada um de nós em frente a uma situação</p><p>sem precedentes, nos fazendo lidar com a morte em uma frequência di-</p><p>ária, seja através das notícias em todos os meios de comunicação, seja</p><p>através da perda de familiares, amigos e conhecidos.</p><p>Ao mesmo tempo, os sentimentos de aspectos diversos da pan-</p><p>demia, como os apontados na seção anterior e outros, podem contri-</p><p>buir para uma “pobreza de experiência” (BENJAMIN, 2012), na qual</p><p>as pessoas “[…] aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um</p><p>mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobre-</p><p>za, externa e também interna, que algo de decente possa resultar disso”</p><p>(BENJAMIN, 2012, p. 127). Nesse cenário, a experiência incomunicável</p><p>e desmoralizante favorece a mobilização da consciência empenhada</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>134</p><p>na interceptação dos choques, enquanto desfavorece a narrativa como</p><p>intercâmbio artesanal de histórias e memórias permeadas por sensos</p><p>práticos e conselhos (BENJAMIN, 2012; ARAÚJO, 2006). Dessa maneira,</p><p>não pretendo ignorar que a construção de uma história sobre a pande-</p><p>mia está atravessada por uma pobreza de experiência, no sentido colo-</p><p>cado por Benjamin, mas ao mesmo tempo, acredito que nela está parte</p><p>do desafio da aprendizagem narrativa.</p><p>Para Benjamin (2012), a narrativa é uma forma artesanal de comu-</p><p>nicação, na qual o narrador traz memórias, permeadas por esquecimen-</p><p>tos e ressignificações, em prol de práticas de aconselhamento. Diferente</p><p>da informação, que é datada, instantânea e pretende ser completa, a nar-</p><p>rativa propositalmente promove uma constituição da história repleta</p><p>de rupturas e incompletudes e cada ouvinte constrói seu adensamento,</p><p>com base em suas próprias experiências. Dessa maneira, as narrativas,</p><p>em um sentido benjaminiano, são sempre abertas para novos signifi-</p><p>cados e reflexões, como uma comunicação edificada sob a durabilidade</p><p>(ARAÚJO, 2006). Goodson e Petrucci-Rosa (2020) discutem o potencial</p><p>desse conceito de narrativa como uma forma de se fortalecer o currículo</p><p>com um propósito de futuro coletivo e social, a partir da aprendizagem</p><p>narrativa:</p><p>A aprendizagem narrativa pode ser vista como funda-</p><p>mental para a compreensão de um modo diferente de</p><p>produção de conhecimento. Se a escola passasse a exer-</p><p>cer esse papel no âmbito da cultura e da política, não</p><p>restaria espaço para um currículo previamente estru-</p><p>turado e definido sem diálogo com as histórias de vida.</p><p>Uma saída possível é o favorecimento da aprendizagem</p><p>narrativa, definida como o aprender a ser um ser social,</p><p>aprender sobre si mesmo e sobre o mundo (GOODSON;</p><p>PETRUCCI-ROSA, 2020, p. 100).</p><p>Goodson (2019) desenvolve o conceito de aprendizagem nar-</p><p>rativa na relação com as três formas de aprendizagem desenvolvi-</p><p>das por Bauman (2008), para o qual a educação no mundo globaliza-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>135</p><p>do precisa se transformar, se tornando uma atividade que prepara para</p><p>a vida. Nesse sentido, ele identifica mais pontualmente que ela precisa</p><p>ser capaz de “[…] cultivar a capacidade de conviver em paz com a in-</p><p>certeza e a ambivalência, com uma variedade de pontos de vista e com</p><p>a ausência de autoridades confiáveis e infalíveis” (GOODSON, 2019, p.</p><p>286). Por mais que tais palavras se refiram a condição moderna, acredi-</p><p>to que elas particularmente são apropriadas ao se pensar na educação</p><p>no contexto pandêmico e pós-pandêmico brasileiro. Sendo um período</p><p>permeado pela incerteza em relação ao futuro, além de uma plena des-</p><p>confiança em relação às intenções das autoridades no poder, a educação</p><p>precisa ocupar seu papel de auxiliar as pessoas a se preparar para a vida.</p><p>Nesse sentido, Goodson (2019) discute como o currículo prescri-</p><p>tivo, aquele cujo propósito é cumprir listas de atividades e conteúdos</p><p>previamente estabelecidos de forma centralizada, é incapaz de capturar</p><p>o interesse e as motivações de mais que um terço dos estudantes. Para</p><p>ele, o currículo que se propõe verticalmente, de maneira alheia às vidas</p><p>das pessoas, está fadado ao fracasso no mundo moderno. Dessa maneira,</p><p>ele propõe a necessidade de que a aprendizagem seja promovida em ca-</p><p>ráter narrativo, em oposição ao prescritivo:</p><p>O que demonstramos é que a aprendizagem – mais espe-</p><p>cificamente aquela que parte da vida – continua na vida</p><p>das pessoas, é significativa para elas e é um dos princi-</p><p>pais veículos para a educação, pois é narrativa; envolve</p><p>a construção e a “contação” de histórias sobre si mesmo</p><p>e sobre a sua vida. Nesse sentido, não apenas apresen-</p><p>tamos uma nova maneira de compreender a aprendiza-</p><p>gem, como também, por seu intermédio, somos capazes</p><p>de identificar processos altamente significativos para</p><p>os indivíduos e, portanto, para a sociedade (GOODSON,</p><p>2019, p. 112).</p><p>Para Goodson (2019), essa aprendizagem narrativa está situa-</p><p>da a partir de três histórias: a história de vida do indivíduo; a história</p><p>das trajetórias das instituições que oferecem oportunidades de apren-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>136</p><p>dizagem formal; e as histórias das comunidades e dos lugares em que</p><p>a aprendizagem informal acontece. Essa proposta visa construir a apren-</p><p>dizagem sobre a intersecção das experiências individuais de cada sujei-</p><p>to, enraizadas em seus sonhos, valores e personalidade, com suas expe-</p><p>riências de formação formal e informal. Nessa dinâmica, uma relação</p><p>de aprendizagem menos verticalizada entre sujeitos e conhecimentos</p><p>pode ser instigada, favorecendo um intercâmbio de experiências no sen-</p><p>tido proposto por Benjamin (GOODSON; PETRUCCI-ROSA, 2020).</p><p>A aprendizagem narrativa visa a defesa de propósitos pauta-</p><p>dos em valores de justiça social, ao mobilizar as histórias dos sujeitos</p><p>da educação como fundamentais para os processos educacionais, em vias</p><p>de contribuir para o preparo para a vida. Como defendido por Goodson</p><p>e Schostack (2021), ao serem alinhados o desenvolvimento curricular,</p><p>o ensino e a aprendizagem com as vidas das pessoas, é possível se dar</p><p>mais relevância para as práticas e conhecimentos locais, fortalecendo</p><p>os vínculos educacionais.</p><p>Com essa proposta em mente, a seguir abordo como essas ideias</p><p>podem ser articuladas em prol de uma compreensão sobre o poten-</p><p>cial do currículo narrativo para a construção de uma história sobre</p><p>a pandemia.</p><p>O currículo narrativo em tempos pandêmicos e pós-pandê-</p><p>micos no Brasil</p><p>Acredito que seja bastante importante se ter em mente as políticas</p><p>de currículo em curso para se discutir questões curriculares da atuali-</p><p>dade, para que as considerações realizadas não sejam retóricas em um</p><p>pano de fundo vazio. Tendo como ponto de partida o modelo da refra-</p><p>ção de Rudd e Goodson (2012), compreendo que o currículo é formado</p><p>tanto por narrativas sistêmicas, expressões de interesses institucionais,</p><p>que induzem políticas e práticas curriculares nos níveis supra, macro</p><p>e meso, e por narrativas de história de vida, as experiências dos sujeitos</p><p>da prática no nível micro. Para os autores, o currículo é constituído nessa</p><p>dinâmica, em processos nos quais as políticas são refratadas ao atraves-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>137</p><p>sar diferentes níveis e períodos históricos. Com essa forma de conceitu-</p><p>alizar o currículo, destaco as palavras de Goodson (2019) sobre o período</p><p>de “regime corporativo”:</p><p>Para dizer isso em termos de sociedade e governan-</p><p>ça, parece que estamos ingressando em um período de</p><p>“regime corporativo”, em que todos os critérios se ajus-</p><p>tam ao dogma neoliberal predominante e no qual, como</p><p>David Graeber indica, até possibilidades alternativas</p><p>imaginárias são expurgadas clínica e forçadamente. Há</p><p>tempos, tenho argumentado que o currículo fornece um</p><p>prisma, um teste de tornassol, através do qual se vê e se</p><p>testa a saúde e o caráter social. Então, a maneira como</p><p>o currículo opera sob regras corporativas se transforma</p><p>numa questão contemporânea de destacada importância</p><p>(GOODSON, 2019, p. 39)</p><p>Compreendo, através dessa ideia, a dinâmica curricular brasileira</p><p>que está em curso, mesmo antes da pandemia. Ela pode ser relacionada,</p><p>por exemplo, ao desenvolvimento da Base Nacional Comum Curricular</p><p>(BNCC) (BRASIL, 2018), uma política centralizadora que teve uma ver-</p><p>são com um percurso de criação e elaboração, mas que foi descartada,</p><p>apagando os avanços democraticamente desenvolvidos. No lugar dessa</p><p>versão, uma nova foi apresentada, que pode ser caracterizada a partir</p><p>das análises de Dourado e Oliveira (2018):</p><p>A lógica da diversidade dá lugar a uma perspectiva de</p><p>uniformização e homogeneização curricular, com a pres-</p><p>crição de currículo mínimo centrado em habilidades e</p><p>competências, permitindo maior atrelamento da BNCC</p><p>às avaliações externas. Além disso, observa-se subtração</p><p>da autonomia, da diversidade e da localidade em detri-</p><p>mento da centralização curricular, cujos planejadores da</p><p>política federal assumem as definições e os mecanismos</p><p>de sua implementação por meio do financiamento, da</p><p>gestão centralizada, da avaliação, da formação de profes-</p><p>sores, entre outros (DOURADO; OLIVEIRA, 2018, p. 41).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>138</p><p>Assim, entendo que discutir práticas curriculares alternati-</p><p>vas no contexto brasileiro atual é uma prática de resistência, uma vez</p><p>que a lógica em destaque no “regime corporativo” vigente é de promoção</p><p>da centralização e uniformização curricular verticalizada. Nesse sentido,</p><p>as propostas desenvolvidas por Goodson e Schostak (2021) se tornam</p><p>bastante relevantes, uma vez que elas têm como ponto de partida a ne-</p><p>cessidade de se resistir ao currículo prescrito.</p><p>Para os autores, os educadores precisam reaprender a trabalhar</p><p>coletivamente para compartilhar ideias e se organizar para que os pro-</p><p>pósitos das pessoas possam ser alcançados, e não apenas os propósi-</p><p>tos das classes mais abastadas. Essa tarefa estaria intimamente ligada</p><p>à valorização das narrativas de todos serem parte dos meios de tomadas</p><p>de decisões, o que instigaria a mudança da concepção de que governar</p><p>significa mandar nas pessoas. Ao mesmo tempo, ela deixa os educado-</p><p>res mais bem posicionados para se oporem a pensar</p><p>a Educação como</p><p>uma prática de transmissão de planos previamente criados pelas elites:</p><p>Por essa razão, é imperativo que os educadores comecem</p><p>a pensar em um currículo que possa trabalhar com e, em</p><p>certo sentido, aborde a incerteza endêmica desta época.</p><p>Assim, a noção de que a escolarização pode transmitir</p><p>certezas e verdades por meio de um currículo pré-pla-</p><p>nejado e pré-ativo não pode mais prevalecer. Precisamos</p><p>pensar em maneiras de ir além do planejamento pré-ati-</p><p>vo pelas elites e da transmissão de cima para baixo, para</p><p>um padrão de aprendizagem mais coletivo, cooperativo</p><p>e mútuo (GOODSON; SCHOSTAK, 2021, p. 7, tradução</p><p>própria)3.</p><p>3 For this reason, it is imperative that educationalists begin to think of a curriculum that</p><p>can work with and, in some sense, address the endemic uncertainty of this age. Hence,</p><p>the notion that schooling can transmit certainties and verities through a pre-planned and</p><p>preactive curriculum can no longer hold sway. We have to think of ways of moving beyond</p><p>preactive planning by elites and top-down transmission into a more collective, cooperative,</p><p>mutual pattern of learning (GOODSON; SCHOSTAK, 2021, p. 7).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>139</p><p>Ao problematizarem as práticas curriculares no cenário pandêmi-</p><p>co e pós-pandêmico, os autores sinalizam o imperativo de se romper</p><p>com as propostas de currículos padronizados, uma vez que a realidade</p><p>emergente despedaça a pretensão de previsibilidade dos contextos vivi-</p><p>dos pelos sujeitos da educação. Nesse sentido, compreendo que o elevado</p><p>grau de incerteza e heterogeneidade da experiência pandêmica favorece</p><p>abordagens mais abertas a pluralidade, ao diálogo e ao desconhecido.</p><p>Goodson e Schostak (2021) desenvolvem as suas ideias sobre es-</p><p>sas práticas chamando a atenção para duas considerações. A primeira,</p><p>é que os educadores precisam reconhecer e incentivar oportunidades</p><p>de aprendizados cooperativos, pois as escolhas dos estudantes, refle-</p><p>xos de suas experiências individuais, podem produzir interesses em ou-</p><p>tros estudantes. Esse destaque me chama atenção particularmente para</p><p>o desafio que acredito estar posto, sobre a dificuldade de lidar com a</p><p>experiência desmoralizante da pandemia. Em atividades com caráter</p><p>mais colaborativo, em que experiências e histórias possam ser compar-</p><p>tilhadas, pode haver uma dinâmica favorável para a emergência de te-</p><p>mas sensíveis e que talvez ficassem sob rasura em expressões mais in-</p><p>dividualizadas. E segundo, é que as práticas precisam encontrar formas</p><p>de engajar os estudantes, para romper com o baixo interesse deles pelas</p><p>propostas educacionais e para “[…] ultrapassar os ‘limiares de confina-</p><p>mento’ mentais, culturais, econômicos, sociais e políticos revelados pela</p><p>crise” (GOODSON; SCHOSTAK, 2021, p. 10, tradução própria)4.</p><p>Ambas as questões são abordadas em uma pesquisa realizada</p><p>por Ivor Goodson e Ruth Deakin Crick (GOODSON; CRICK, 2019). Nesse</p><p>trabalho eles analisam o papel da narrativa como uma ferramenta peda-</p><p>gógica capaz de transformar as práticas curriculares, ao se opor ao currí-</p><p>culo prescrito. A partir das histórias narradas por estudantes de origem</p><p>aborígene, os educadores formularam atividades e práticas investiga-</p><p>tivas para que eles reabilitassem o papel da narrativa em três modos</p><p>distintos: as narrativas de vida dos aprendizes; as narrativas das co-</p><p>munidades que eles fazem parte; e as narrativas desenvolvidas por eles</p><p>nos processos de investigação e construção coletiva.</p><p>4 […] to cross “a pedagogic threshold”, one that in effect takes us over the mental, cultural,</p><p>economic, social, and political “confinement thresholds” revealed by the crisis (GOODSON;</p><p>SCHOSTAK, 2021, p. 10).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>140</p><p>Os autores apresentam em suas discussões que as conexões pro-</p><p>movidas por estas formas de narrativas, profundamente enraizadas</p><p>em experiências pessoais e coletivas dos estudantes, se constituíram</p><p>como potentes abordagens para a promoção de engajamento. Eles iden-</p><p>tificam que “Quando a história de vida de uma pessoa está em foco e o</p><p>processo e conteúdo de aprendizagem se conectam, eles produzirão sig-</p><p>nificado e se engajarão. Sem engajamento, haverá pouca aprendizagem,</p><p>e, sem um senso de si, haverá pouco engajamento” (GOODSON; CRICK,</p><p>2019, p. 108-109). Nesse sentido, o potencial de identificação de si</p><p>com as práticas curriculares se torna um fator bastante relevante para</p><p>o estímulo do engajamento.</p><p>Essas conexões me remetem também aos escritos de Jorge Larrosa</p><p>sobre a experiência e o saber da experiência (LARROSA, 2002). Ao de-</p><p>senvolver suas ideias sobre a experiência, a partir de uma fundamenta-</p><p>ção benjaminiana, ele indica como os aparatos educacionais funcionam</p><p>cada vez menos para que alguma coisa nos aconteça. Para ele, a edu-</p><p>cação usualmente está organizada para que informações sejam trans-</p><p>mitidas e delas sejam elaboradas opiniões, deixando pequena margem</p><p>para o par experiência/sentir. Dessa forma, acredito que a crítica por ele</p><p>desenvolvida à escolarização se aproxima das realizadas por Goodson</p><p>e Crick (2019), que discorrem sobre a incapacidade do currículo desper-</p><p>sonalizado engajar os estudantes.</p><p>Essa preocupação volta para o problema colocado por Goodson</p><p>e Schostak (2021), ao conceituar um currículo capaz de se conectar</p><p>com as vozes e experiências das pessoas, que estão tendo que lidar</p><p>com novas dificuldades no cenário pandêmico. Eles argumentam como</p><p>conhecimentos de diversas esferas podem ser importantes para que as</p><p>pessoas possam enfrentar esses desafios, e que a inclusão das vozes de-</p><p>las no currículo é essencial no contexto atual:</p><p>Ao alinhar o desenvolvimento curricular, ensino e apren-</p><p>dizagem com suas vidas cotidianas, o desenvolvimento</p><p>de práticas, conhecimento e formas locais de organiza-</p><p>ção são estabelecidas em nível básico, de maneiras que</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>141</p><p>são continuamente relevantes para a formação e manu-</p><p>tenção de um público eficaz (GOODSON; SCHOSTAK,</p><p>2021, p. 13, tradução própria)5.</p><p>Ao voltar o foco para o contexto brasileiro, algumas das considera-</p><p>ções abordadas se mostram mais próximas dos desafios mais emergentes</p><p>da experiência sócio-histórica, cultural e coletiva da pandemia no Brasil.</p><p>É impossível descartar o grau de impacto que a crise atual tem pro-</p><p>duzido na sociedade brasileira como um todo, em praticamente todos</p><p>os segmentos das políticas públicas que são voltadas para os direitos</p><p>básicos das pessoas. E como apontado por Goodson (2019), os setores</p><p>da saúde e da educação são pontos cruciais em que é possível ver os</p><p>impactos do regime corporativo em ação, aplicando a lógica neoliberal</p><p>em áreas de direitos sociais.</p><p>Dando ênfase para a educação, a luta contra a unificação e pa-</p><p>dronização curricular pretendida com a BNCC (BRASIL, 2018) se torna</p><p>ainda mais emergente, quando se considera o potencial de práticas cur-</p><p>riculares pautadas na aprendizagem narrativa na pandemia. Acredito</p><p>que ela é uma potente referência para a construção de uma história</p><p>sobre a pandemia, no contexto brasileiro, ao promover o engajamento</p><p>de estudantes, os conectando a uma diversidade de experiências com-</p><p>partilhadas entre eles durante o isolamento, além de incorporar as vozes</p><p>deles, de suas famílias e comunidade no currículo. Esse currículo narra-</p><p>tivo seria em grande medida comprometido com valores de justiça social</p><p>e ao mesmo tempo, diametralmente oposto ao que se pretende com um</p><p>currículo prescrito e imposto em escala nacional.</p><p>Ele poderia vir a abordar os impactos da pandemia em diversos</p><p>aspectos, como o luto, o aumento do desemprego, a crise econômica,</p><p>a luta contra a fome e a miséria, o SUS e a questão da privatização de sis-</p><p>temas de saúde, a saúde mental, a violência doméstica e sexual contra</p><p>as mulheres, o feminicídio, a necropolítica governamental, a desigual-</p><p>5 By aligning curriculum development, teaching, and learning with their everyday lives,</p><p>the</p><p>development of practices, knowledge, and local forms of organization are established at</p><p>ground level in ways that are continually relevant for the formation and maintenance of an</p><p>effective public (GOODSON; SCHOSTAK, 2021, p. 13).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>142</p><p>dade de acesso à educação, entre muitas outros. Assim como Goodson</p><p>e Schostak (2021), acredito que a pandemia expôs ainda mais algumas</p><p>desigualdades sociais que já existiam, e que muitas vezes são afastadas</p><p>dos temas abordados nas escolas. No entanto, eles podem emergir nesse</p><p>currículo, que parte de experiências coletivas, heterogêneas e imprevi-</p><p>síveis de sobrevivência em um cenário pandêmico e que busca abordar</p><p>problemas reais dos estudantes e da sociedade, em prol de que a história</p><p>da pandemia possa ser mais do que um pesadelo a ser superado.</p><p>No entanto, é imprescindível destacar que essa não é uma concep-</p><p>ção apresentada como uma demanda cuja responsabilidade está exclusi-</p><p>vamente nas mãos dos professores. Retomando a perspectiva curricular</p><p>que envolve o conceito de refração (RUDD; GOODSON, 2012), é funda-</p><p>mental reforçar que o contexto micro está em grande medida conectado</p><p>à refração das narrativas sistêmicas, seja em uma perspectiva de resis-</p><p>tência ou de conformação. Sendo o nível no qual as políticas são mate-</p><p>rializadas e vivenciadas, a possibilidade de empoderamento da agência</p><p>dos professores frente as estruturas não pode ser descartada, no entanto</p><p>ela está plenamente conectada às condições particulares de trabalho,</p><p>dos docentes e das escolas. Assim, qualquer abordagem que simplifique</p><p>essa problemática como uma questão de “atitude” ou de “superação in-</p><p>dividual das adversidades” seria uma leitura ingênua, tanto do caráter</p><p>político que esse posicionamento promove, quanto da complexidade</p><p>do currículo.</p><p>Dessa forma, as transformações do currículo são alcançadas</p><p>com mudanças em todos os níveis, e nesse momento, a resistência a po-</p><p>líticas como a BNCC (BRASIL, 2018), que promovem o currículo prescrito</p><p>em sua forma mais perversa, mais apagada das experiências dos sujeitos,</p><p>talvez seja o desafio mais emergente para os educadores. Com um con-</p><p>texto menos ameaçado pelo ataque que a BNCC pretende à pluralidade</p><p>curricular e à autonomia dos educadores, práticas inspiradas na apren-</p><p>dizagem narrativa podem ter mais condições de contribuir para a cons-</p><p>trução de uma história da pandemia que ajude a sociedade a superar</p><p>essa crise e aprender com ela.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>143</p><p>Referências</p><p>APPLEBY, Louis. What has been the effect of covid-19 on suicide rates? BMJ,</p><p>372, n. 834, 2021.</p><p>ARAÚJO, Rodrigo O. O choque do moderno: experiência e narração em Walter</p><p>Benjamin. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Salvador: Universidade Federal</p><p>da Bahia, Brasil, 2006.</p><p>BARBOSA, Valéria Koch; BOFF, Rogers Alexandre. 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Epidemiologia, n. 23, 2020.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>147</p><p>Estágio supervisionado em ensino de</p><p>química durante a pandemia de covid-19:</p><p>ainda é possível apostar nas narrativas?</p><p>Franklin Kaic Dutra-Pereira1</p><p>Saimonton Tinôco2</p><p>Michele Bortolai3</p><p>Introdução</p><p>Desde que fomos atravessadas e atravessados pela pandemia</p><p>de covid-19, mais de meio milhão de brasileiras e brasileiros foram víti-</p><p>mas dessa grave doença. Muitas vidas poderiam ter sido poupadas se a</p><p>ciência fosse devidamente considerada pelo governo federal, sobretudo</p><p>no caso da compra de vacinas. População dilacerada, conjuntura política</p><p>negacionista, economia fracassante (típico da extrema direita neolibe-</p><p>ral) e educação desestabilizada.</p><p>Foi nessa onda de políticas irresponsáveis, conservadoras, prag-</p><p>máticas e enfraquecedoras que fizemos de nossas casas a sala de aula,</p><p>seja das universidades seja das escolas. Nossos computadores e celula-</p><p>res se potencializaram enquanto meios de comunicação, na ausência</p><p>da presença física dos/nos cotidianos institucionais. Tivemos que reor-</p><p>denar as nossas rotinas em meio ao luto e à luta, para que a “educação</p><p>não parasse”, mesmo diante dos inúmeros ataques e das intensas difi-</p><p>culdades enfrentadas.</p><p>1 Professor Adjunto no Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do</p><p>Recôncavo da Bahia</p><p>2 Professor Adjunto do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal da Paraíba</p><p>3 Professora Adjunta do Centro de Formação de Professores da UFRB</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>148</p><p>Em tal contexto avassalador, enquanto docentes de Estágio</p><p>Supervisionado Obrigatório (ESO) em Ensino de Química, tivemos</p><p>que enfrentar o denominado Ensino Remoto Emergencial (ERE), como</p><p>possibilidade formativa na Educação Básica e no Ensino Superior.</p><p>No primeiro ano de pandemia, nossa escolha foi não oferecer o referido</p><p>componente curricular, devido às fragilidades e às barreiras que o mo-</p><p>delo (nos) impunha. Porém, em meio às questões burocráticas e admi-</p><p>nistrativas, tivemos que recuar mesmo sem as condições que considera-</p><p>mos necessárias, sobretudo ao considerarmos a situação de estudantes</p><p>que estavam em vias de conclusão do curso de graduação.</p><p>Apesar da formação de professores apontar os ESO como oportu-</p><p>nidade de articulação entre teoria e prática, sem hierarquização ou so-</p><p>breposição, percebemos que ainda estamos longe de nos aproximar-</p><p>mos de tal relação. Os projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura,</p><p>em sua maioria, realizam intenso estudo teórico e descolado dos coti-</p><p>dianos escolares, para somente depois (e às vezes ao final do curso) per-</p><p>mitirem a imersão de estudantes nos contextos educativos (TAVARES</p><p>et al., 2021).</p><p>Entendemos os ESO como forma de viver-narrar-experienciar</p><p>os espaços educativos, principalmente os cotidianos escolares, por isso</p><p>discordamos de tal estruturação. Apostamos nas narrativas no Ensino</p><p>de Química pela força que possuem, pelos ecos que causam no mundo,</p><p>pela sensibilidade que mobilizam, pela estética que apresentam. Sendo</p><p>assim, possibilitam-nos a construção de sentidos, reflexões, saberes,</p><p>ideias, além de novas/outras/diferentes histórias de vida.</p><p>Nesse texto, apresentaremos vivências que se passaram durante</p><p>a pandemia de covid-19, bem como algumas apostas feitas por nós du-</p><p>rante o ano de 2021. Para além de se tratar de histórias da vida de do-</p><p>centes e estudantes da Licenciatura em Química, os registros expressam</p><p>visões de/sobre o mundo daquelas e daqueles que as escrevem, interpre-</p><p>tam quem e o que narram e apresentam reflexões por meio de narrativas</p><p>lidas/escritas/faladas.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>149</p><p>Desse modo, entendemos o ato de narrar como político, ético e es-</p><p>tético (PINEAU, 2003; DELORY-MOMBERGER, 2014), ao dar vida e voz</p><p>a quem narra. Postura diferente de uma linguagem acadêmica que se</p><p>pretende neutra, distante, fria e formal, comum em produções escritas</p><p>dos ESO, que diversas vezes transformam os relatórios em mera burocra-</p><p>cia universitária (DUTRA-PEREIRA, 2019).</p><p>Com o desejo de entendermos os movimentos e as implicações</p><p>da pandemia para o Ensino de Ciências da Natureza no Brasil, reuni-</p><p>mo-nos na tentativa de dialogarmos e problematizarmos as urgências</p><p>que esse tempo tem nos colocado enquanto formadores de docentes.</p><p>Assim, com tantas formas de ver-narrar o vivido, o respirado, o expe-</p><p>rienciado, esse texto tem como objetivo registrar experiências viven-</p><p>ciadas no ESO em Ensino de Química durante a pandemia de covid-19,</p><p>a partir das narrativas escritas de estudantes que o cursaram, na tentati-</p><p>va de encontrar elementos que tragam as marcas das impressões vividas</p><p>e das reflexões concebidas por estudantes e docentes.</p><p>Desse modo, constituímos tais narrativas como elemento funda-</p><p>mental para avaliarmos e (re)pensarmos as práticas e os planejamentos</p><p>didáticos referentes ao ERE, buscando construir um diferencial profis-</p><p>sional para a formação inicial de estudantes durante a pandemia da co-</p><p>vid-19. Com base em tais ideias, apresentamos trechos de narrativas</p><p>escritas durante uma experiência de ESO num curso de Licenciatura</p><p>em Química, de uma universidade pública federal localizada no interior</p><p>do nordeste brasileiro.</p><p>A leitura das narrativas levou-nos a fazermos perguntas como:</p><p>o que devemos entender sobre a formação docente em Química no ERE</p><p>ocorrido durante a pandemia de covid-19? Como o ERE tem influencia-</p><p>do o ESO no curso de licenciatura em Química? Como as experiências</p><p>da formação inicial de docentes em Química e as narrativas sobre o ESO</p><p>podem contribuir para a constituição profissional? Que narrativas sobre</p><p>os ESO foram produzidas pelas vivências de licenciandos em Química</p><p>durante a pandemia de covid-19?</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>150</p><p>Desse modo, trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo e ex-</p><p>ploratório (GIL, 2002; TRIVIÑOS, 1987), considerando o objetivo inves-</p><p>tigativo apresentado anteriormente e a escolha narrativa de registros</p><p>escritos produzidos por cinco estudantes durante o último ESO do cur-</p><p>so, realizado no ERE. Como consequência, na análise ressaltamos o sig-</p><p>nificado que os participantes deram aos fatos vivenciados e narrados</p><p>de forma escrita, interpretando os dados de maneira indutiva (LÜDKE;</p><p>ANDRÉ, 1986).</p><p>Também recorremos ao paradigma interpretativista, visto ser um</p><p>modelo que se propõe a evidenciar o entendimento do que foi percebido,</p><p>por meio da comunicação do que foi compreendido. Em tal contexto,</p><p>as pesquisadoras e os pesquisadores são consideradas e considerados</p><p>sujeitos com crítica, historicidade e capacidade de reflexão, que buscam</p><p>identificar como as pessoas estabelecem ligações entre suas experiências</p><p>cotidianas e as representações culturais de tais experiências (DENZIN;</p><p>LINCOLN, 2006) como veremos a seguir.</p><p>Narrativas de Estágio Remoto em Ensino de Química</p><p>Chegamos em 2022 e, ainda assim, não nos livramos das deman-</p><p>das exacerbadas do trabalho remoto, além de termos que lidar com as</p><p>preocupações relacionadas ao vírus e suas mutações, o que exige o uso</p><p>constante de máscaras, higienização das mãos e distanciamento social.</p><p>Sendo assim, esse momento pandêmico tem perpetuado o que conhe-</p><p>cemos como home office, possibilidade de implementação do ERE entre</p><p>docentes formados e em formação, como nos revela o trecho a seguir.</p><p>Em março de 2021 inicia a mudança, o estágio IV foi</p><p>disponibilizado para os alunos do curso de licenciatura</p><p>em química. A turma era pequena por ser somente for-</p><p>mandos, mas todos tinham o mesmo objetivo ali que</p><p>é formar. Iniciamos a separação das turmas e colégios</p><p>para realização do estágio, de forma remota, nas escolas</p><p>públicas da cidade […]. Onde cada aluno iria ficar com</p><p>um supervisor e uma turma, a minha turma seria a do</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES:</p><p>AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>151</p><p>terceiro ano da Escola […], supervisionada pelo profes-</p><p>sor […]4, que já era uma turma que eu conhecia e tinha</p><p>uma intimidade, pois, já dava aula para eles no projeto</p><p>de residência pedagógica. Até esse momento tudo pare-</p><p>cia o sonho perfeito, o professor da disciplina de estágio</p><p>já tinha tudo planejado e acertado e iniciamos algumas</p><p>atividades da disciplina voltadas para o entendimento do</p><p>que é ensino remoto, como ele surgiu, quais são as suas</p><p>dificuldades, e seus possíveis pontos positivos.</p><p>Como vemos, a pandemia impactou o trabalho formativo que vinha</p><p>sendo realizado na universidade, trazendo desestabilizações, angústias,</p><p>anseios e outras exigências para as atividades. Também fomos surpreen-</p><p>didos com imposições autoritárias, malévolas e excludentes do governo</p><p>do estado em que a universidade está inserida, que pareciam desconhe-</p><p>cer ou ignorar as realidades de docentes e estudantes, tanto da Educação</p><p>Básica quanto do Ensino Superior, conforme revela a narrativa seguinte.</p><p>Nesse meio tempo, o governador iniciou a volta às aulas</p><p>de maneira presencial de forma imediata na [nome do</p><p>estado], fazendo com que fosse iniciado os problemas e</p><p>as dificuldades que vinham a enfrentar durante os me-</p><p>ses finais do estágio. Com essa volta sem planejamento</p><p>do governo, não tínhamos como dar aula de forma re-</p><p>mota, afinal não tinha como fazer um estágio presen-</p><p>cial sem segurança para nós estagiários, além também</p><p>de não existir medidas de segurança para todos, afinal</p><p>uma volta presencial de várias escolas na [nome do esta-</p><p>do], sendo que os casos de COVID-19 no estado na época</p><p>ainda eram altos, era uma loucura e muitos professores</p><p>também acreditavam nisso, mas não houve mudança na</p><p>ideia do governador, fazendo com que iniciassem as au-</p><p>las presenciais. Sendo assim, todos os planejamentos de</p><p>estágio ficaram sem poder acontecer.</p><p>4 Por razões éticas, os nomes das instituições e das pessoas foram retirados, bem como os</p><p>nomes de cidades, bairros ou endereços que apareciam nas narrativas.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>152</p><p>Passados mais de um ano e cinco meses de pandemia, estando</p><p>vacinada parte da população, com apenas uma dose e sem a garantia</p><p>da imunização completa, o estado em questão lançou a profissionais</p><p>da educação a obrigatoriedade de retorno as atividades presencias, ale-</p><p>gando se tratar de ensino “híbrido”. O que, de fato, acontecia era a im-</p><p>posição de dupla jornada de trabalho em troca de única remuneração.</p><p>Ou seja, adolescentes não vacinados optariam entre retornar presencial</p><p>ou se manter remotamente, no entanto a mesma aula ministrada nas sa-</p><p>las de aula deveria ser repetida, posteriormente, em plataformas virtuais.</p><p>Como vemos, além das questões de saúde pública e direito à vida,</p><p>estávamos diante da uberização do trabalho e da formação docente.</p><p>Com a mudança repentina para o formato híbrido, ainda houve a pro-</p><p>posição governamental que, no caso da possibilidade da escola contar</p><p>com estágios universitários, as aulas remotas poderiam ser ministradas</p><p>exclusivamente pelos acadêmicos, que assumiriam a responsabilidade</p><p>e o ensino em turmas virtuais.</p><p>Ao invés de traçar um planejamento de retorno seguro e gradual,</p><p>que considerasse a importância da vida de todas as pessoas e a neces-</p><p>sária vacinação, o governo estadual cedeu às pressões advindas de di-</p><p>ferentes segmentos e diversificados interesses, dentre estas a cobrada</p><p>implementação da Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL,</p><p>2017). Mais importante seria garantir os cronogramas de questionáveis</p><p>reformas educacionais em andamento, mesmo que para isso fosse ne-</p><p>cessário bancar uma necropolítica (MBEMBE, 2018) pela banalização</p><p>da vida, naturalização da morte, negação de adoecimentos psíquicos,</p><p>dentre outros fatores.</p><p>Com isso, iniciou uma série de ansiedades em todos os</p><p>alunos da disciplina, afinal sem carga horária como irí-</p><p>amos terminar a disciplina? Sem poder terminar a dis-</p><p>ciplina como iríamos formar? E várias angústias foram</p><p>sendo desenvolvidas devido à necessidade de carga ho-</p><p>rária e da vontade de formar. Afinal muitos ali como eu,</p><p>já estávamos há um tempo à espera de que a disciplina</p><p>fosse ofertada, e quando isso aconteceu acabou aconte-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>153</p><p>cendo problemas. Mas como dizemos que na vida o ca-</p><p>minho mais fácil é o caminho errado, temos que ir pelo</p><p>caminho das pedras.</p><p>Devido a tal situação, tínhamos novos desafios a nossa frente: con-</p><p>cluir atividades de estágio que estavam em andamento, sem nos afastar-</p><p>mos do que acreditamos ser importante viabilizar na formação docente.</p><p>Entendemos o ESO em Ensino de Química como um tempo de apren-</p><p>dizagem no qual, através de um período de permanência em contexto</p><p>real, estudantes se apropriam de uma prática profissional, em ambientes</p><p>próprios, seguros e sob supervisão, para depois poderem exercê-la.</p><p>Como nos lembra Dubar (2009, p. 102):</p><p>A identidade de ofício é o exemplo-tipo de identidade</p><p>comunitária que supõe, então, a existência duma “co-</p><p>munidade” no seio da qual se transmitem “maneiras de</p><p>fazer, de sentir e de pensar” que constituem ao mesmo</p><p>tempo valores colectivos […] e referências pessoais […].</p><p>Na tentativa de sustentar a identidade de ofício, diante dos tan-</p><p>tos desafios trazidos pelo ensino remoto e, na sequência, a impossibili-</p><p>dade de manter-nos nos campos de estágio, propomos outras situações</p><p>didático-pedagógicas, sob a supervisão de docentes da área de Ensino</p><p>de Química, como demonstra o relato a seguir.</p><p>Com o passar dos dias tudo foi mudando de rumo, o</p><p>professor da disciplina de estágio nos acalmou, tranqui-</p><p>lizando sobre a carga horária, contando atividades da</p><p>disciplina e atividades novas que fizemos voltadas para</p><p>o ensino com novos supervisores, e claro todas as ati-</p><p>vidades planejadas foram voltadas para desenvolver ha-</p><p>bilidades que vão ser necessárias futuramente na nossa</p><p>profissão como professores. As atividades novas desen-</p><p>volvidas foram feitas através de uma avaliação de vídeo-</p><p>-aulas que estão no YouTube, onde cada aluno tinha que</p><p>escolher uma sequência de aulas sobre a temática que</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>154</p><p>desejava, e avaliar através de parâmetros que você mes-</p><p>mo tinha que pensar e analisar. Essa atividade foi muito</p><p>importante, pelo fato de que você está avaliando a aula</p><p>de outra pessoa, faz você refletir sobre como você vai dar</p><p>suas aulas e como você pensa e planeja as mesmas. Logo</p><p>após, a partir dessa atividade utilizamos a mesma temá-</p><p>tica escolhida nos vídeos, para desenvolver uma sequên-</p><p>cia didática para o ensino remoto, no meu caso a temá-</p><p>tica escolhida foi Química Orgânica, onde eu utilizei da</p><p>temática plantas para desenvolver o ensino das funções</p><p>orgânicas partindo da ideia de que os alunos já sabiam</p><p>alguns assuntos iniciais como introdução orgânica. Essa</p><p>atividade é muito importante na formação do professor,</p><p>pois, ele já compreende a importância de fazer aulas con-</p><p>textualizadas, e de levar a vivência dos alunos para a sala</p><p>de aula onde o aluno venha desenvolver seu senso críti-</p><p>co. Com base nessa sequência também foi realizada uma</p><p>atividade pensada para os espaços não formais no ensi-</p><p>no remoto. Os espaços não formais, são pouco utilizados</p><p>pelos professores, esses espaços podem ser comunidades</p><p>fora da escola, parques, cinemas e outros lugares onde o</p><p>professor pode levar os seus alunos para vivenciar novas</p><p>experiências além de ensinamentos químicos. Dessa ma-</p><p>neira, fiz uma sequência que seria um curso com Dona</p><p>Santa5 para a comunidade daqui […], pensando na divul-</p><p>gação científica e nos conhecimentos populares.</p><p>Tais estratégias foram necessárias para que pudéssemos aco-</p><p>lhê-los e driblar os mecanismos autoritários do governo do estado,</p><p>bem como para propor algum movimento formativo, visto que a uni-</p><p>versidade nos deixou sem nenhuma orientação, quanto aos ESO, desde</p><p>o início da pandemia. Nesse contexto, entendemos</p><p>que as narrativas au-</p><p>tobiográficas seriam dispositivos adequados para o registro do processo</p><p>vivenciado, apesar de ainda irem na contramão dos instrumentos avalia-</p><p>tivos geralmente utilizados na trajetória acadêmica.</p><p>5 Planta bastante utilizada em chás, pela comunidade citada no relato.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>155</p><p>As estratégias trabalhadas no ESO demonstraram o caráter com-</p><p>plexo e incerto da prática educativa, contrariando as prescrições pedagó-</p><p>gicas e a ilusão de controle da prática docente. Apontaram que, enquan-</p><p>to docentes, precisamos ter diferentes conhecimentos para enfrentar</p><p>as situações cotidianas dos ambientes educativos, especialmente os que</p><p>dizem respeito ao processo de ensino-aprendizagem (DUBAR, 2012).</p><p>Com base nas ideias de Tardif (2014), entendemos que as experi-</p><p>ências durante o ESO em Ensino de Química no ERE contribuem para</p><p>a constituição da identidade profissional docente. Ou seja, ao narrarem,</p><p>descreverem e escreverem o vivido, imagens da profissionalidade vão se</p><p>formando e a identidade profissional se constituindo, não devendo, por-</p><p>tanto, serem ignoradas.</p><p>Segundo Dubar (2012, p. 354),</p><p>É por e em um processo específico de socialização, ligan-</p><p>do educação, trabalho e carreira, que essas identidades</p><p>se constroem no interior de instituições e de coletivos</p><p>que organizam as interações e asseguram o reconheci-</p><p>mento de seus membros como “profissionais”.</p><p>Debruçando-nos em tais narrativas, concordamos com Josso (2010,</p><p>p. 54) ao dizer que se promovem diferentes aprendizagens pelas expe-</p><p>riências, pois “pensar as suas experiências diz respeito não a uma ex-</p><p>periência, a uma vivência particular, mas a um conjunto de vivências</p><p>que foram sucessivamente trabalhadas para se tornarem experiências”.</p><p>Sendo assim, esses conjuntos de experiências apresentadas nas narrati-</p><p>vas favorecem diferentes interpretações, bem como elucidam questões</p><p>que contribuem para a constituição da docência.</p><p>Pensamos, por conseguinte, que as narrativas do estágio ofere-</p><p>cem-nos a oportunidade de conhecer as visões de docência e as concep-</p><p>ções de ensino-aprendizagem, bem como as posturas necessárias para</p><p>atuação no contexto da escola e/ou noutros espaços educativos, a exem-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>156</p><p>plo dos espaços não-formais. Além disso, podemos também evidenciar</p><p>as percepções de vivenciar um ESO no ERE, diferente do habitual, con-</p><p>forme a narrativa a seguir.</p><p>Por fim, queria apresentar alguns pontos superimpor-</p><p>tantes para a experiência e vivência em Estágio, o pri-</p><p>meiro ponto foi o absurdo do governo voltar às aulas sem</p><p>nenhum planejamento ou cuidado com os professores e</p><p>com os estudantes, quando não houve um acordo sobre</p><p>a volta e nenhuma sensibilidade com as pessoas e suas</p><p>famílias que estão sendo expostas à COVID-19. Outro</p><p>ponto é como foi fundamental a importância do profes-</p><p>sor da disciplina ter planos e saídas para a caminhada</p><p>no estágio, sempre priorizando nossas vidas e cuidado</p><p>da nossa saúde. Não tivemos estágio presencial, mas ti-</p><p>vemos um estágio humano e agregador do mesmo jeito,</p><p>em que outras partes do ensino foram destaque sendo</p><p>desenvolvidas por nós alunos, mostrando a importância</p><p>de você professor ser humano e compreensivo, além é</p><p>claro de sempre estar pronto para qualquer coisa. Ao fim,</p><p>é um sentimento de gratidão por todos os ensinamentos,</p><p>apresentados pela disciplina, a todos os participantes</p><p>dela que me ajudaram e sofreram junto comigo com as</p><p>dúvidas e as incertezas e, claro, a Deus pelo final de mais</p><p>um novo ciclo.</p><p>Essa narrativa nos oferece pistas para repensarmos os caminhos</p><p>que temos percorrido nos ESO em Ensino de Química de forma presen-</p><p>cial. As pistas aqui apresentadas sinalizam outra forma de compreender</p><p>o ESO e de pensar os processos de aprender-ensinar, respeitando a vida,</p><p>resistindo aos impasses e contrapondo as visões que têm se enraiza-</p><p>do com afinco no Brasil e em suas instituições. Ademais, acreditamos</p><p>que tal vivencia favoreceu o desenvolvimento da reflexão sobre a práti-</p><p>ca, ou seja, da práxis pedagógica.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>157</p><p>Como apontam Oliveira e Mesquita (2018, p. 44),</p><p>Trazendo a concepção de práxis para o estágio nos cursos</p><p>de licenciatura em química, argumenta-se que se o está-</p><p>gio é um locus para a construção do conhecimento, ele</p><p>precisa ir muito além da aplicação da teoria ou da inter-</p><p>secção entre teoria e prática. O estágio pode ser propício</p><p>para a preparação da práxis em que os futuros professo-</p><p>res tenham formação e ação capazes de não apenas in-</p><p>terpretar o meio social, mas de transformá-lo objetiva e</p><p>subjetivamente, tendo ações intencionais, a partir de sua</p><p>formação, sobre o seu futuro campo de trabalho e sobre</p><p>a sociedade em geral.</p><p>Com isso, entendemos que as estratégias utilizadas durante o ESO</p><p>em Ensino de Química no ERE funcionaram como um lugar de aprendi-</p><p>zagem para quem esteve envolvido no processo. Apesar de não ser pre-</p><p>sencial, constituiu-se como saída possível para evitar que estudantes</p><p>estagiassem sozinhos, assumindo exclusivamente a responsabilidade</p><p>de uma sala de aula.</p><p>Considerações Finais: Por outras narrativas…</p><p>Quando buscamos alicerce na escrita para construir narrativas, en-</p><p>contramos pistas do porquê continuarmos relatando e apostando na for-</p><p>ça desse mecanismo como princípio formativo. As narrativas e o ato de</p><p>escrevê-las expressam a presença de sujeitos que estão se formando e se</p><p>sentem formados, pois ao expressarem suas lembranças e experiências,</p><p>dão vida e voz às suas memórias e identidades.</p><p>Contar, escrever, lembrar, esquecer, explorar, refletir, apagar…</p><p>Poderíamos listar diferentes estados e ações para reforçar a nossa aposta</p><p>e sua utilização no contexto do ESO em Ensino de Química. Sobretudo</p><p>num contexto de ERE, devido à pandemia de covid-19, que nos atravessa</p><p>e traz consigo a negação do conhecimento científico e ataques outros</p><p>de governos, que insistentemente preferem “passar a boiada” ao invés</p><p>de lutar em favor da vida.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>158</p><p>Narramos durante uma pandemia, durante um ESO, durante o ERE</p><p>e chegamos a uma conclusão: ainda é possível (ou agora mais do que</p><p>nunca é necessário) apostar na força formativa das narrativas nos cur-</p><p>sos de formação docente em Química, porque narrar é um ato político,</p><p>ético e estético. Narrar é dar vida e voz aos silenciamentos e imposições</p><p>de tempos duvidosos. Narramos porque queremos manter viva a nossa</p><p>vida e a nossa esperança em uma profissão que nos valorize.</p><p>Escrever narrativas sobre as relações e as experiências que exis-</p><p>tiram durante o ESO na pandemia de covid-19 é também uma (auto)</p><p>avaliação de todo o processo e, por isso, contribuiu para a constituição</p><p>do ser docente de Química. Permitiu considerar as narrativas como exer-</p><p>cício de práxis, ou seja, como possibilidade de refletir sobre e com o con-</p><p>texto escolar, pois narrar tais relações está muito além de só registrar</p><p>o ocorrido.</p><p>Sendo assim, aventurar-se e/ou pesquisar sobre/com narrativas</p><p>é debruçar-se no mundo das subjetividades e das existências humanas.</p><p>Diz respeito ao encontrar-se com/nas narrativas e tentar (re)contá-las,</p><p>a partir da escrita. Nesse processo estão arraigados os diversos signifi-</p><p>cados sociais que possibilitam uma formação alicerçada no cotidiano,</p><p>nos impactos da pandemia de covid-19, no sentido de ser docente e de</p><p>formar-se de maneira remota.</p><p>Ao escreverem sobre suas trajetórias, os estudantes se depararam</p><p>com diferentes modos de construir um olhar sobre o mundo e, até mes-</p><p>mo, sobre a docência. Tratou-se de um exercício de reflexão identitá-</p><p>ria, que entrelaçou as dificuldades encontradas no trabalho coletivo,</p><p>no aceite em narrar o novo e no enfrentamento de artimanhas políticas.</p><p>Trilhando esse caminho, temos nos interrogando sobre como a pan-</p><p>demia de covid-19 tem influenciado a formação docente em Química,</p><p>principalmente, nos ESO.</p><p>As narrativas aqui apresentadas trazem pistas</p><p>e propõem desafios para reconfigurarmos os cursos de formação inicial,</p><p>bem como contribuem para a proposição de formação continuada, so-</p><p>bretudo quanto à forma de lidarmos com o pós-pandemia (se é que sai-</p><p>remos dela).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>159</p><p>Referências</p><p>BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho</p><p>Pleno. Resolução nº 4, de 17 de dezembro de 2018. Institui a Base Nacional</p><p>Comum Curricular na Etapa do Ensino Médio (BNCC-EM), como etapa final</p><p>da Educação Básica, nos termos do artigo 35 da LDB, completando o conjunto</p><p>constituído pela BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, com base</p><p>na Resolução CNE/CP nº 2/2017, fundamentada no Parecer CNE/CP nº 15/2017.</p><p>Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/CNE, 2018.</p><p>DELORY-MOMBERGER, Christine. As histórias de vida: da invenção de si</p><p>ao projeto de formação. Natal: EDUFRN; Porto Alegre: EDIPUCRS; Brasília:</p><p>EDUNEB, 2014.</p><p>DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna, S. O planejamento da pesquisa</p><p>qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.</p><p>DUBAR, Claude. A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização</p><p>profissional. Cadernos de Pesquisa, v. 42, n. 146, p. 351-367, maio/ago. 2012.</p><p>DUBAR, Claude. A crise das identidades: a interpretação de uma mutação. São</p><p>Paulo: EDUSP, 2009.</p><p>DUTRA-PEREIRA, Franklin Kaic. Aventuras do contar(se): narrativas da</p><p>formação de professores de química à distância. 198 f. Tese (Doutorado em</p><p>Ensino de Ciências e Educação Matemática) – Universidade Federal do Rio</p><p>Grande do Norte, Natal, 2019.</p><p>GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo:</p><p>Atlas, 2002.</p><p>JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Trad. José Claúdio,</p><p>Júlia Ferreira. Rev. Maria da Conceição Passeggi. 2. ed., Natal: EDUFRN; São</p><p>Paulo: Paulus, 2010.</p><p>LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Pesquisa em</p><p>Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.</p><p>MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.</p><p>OLIVEIRA, Kenia Cristina Moura de; MESQUISA, Nyuara Araújo da Silva. Práxis</p><p>e identidade docente: entrelaces no contexto da formação pela pesquisa na</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>160</p><p>Licenciatura em Química. Química Nova na Escola, v. 40, n. 1, p. 44-52, fev.</p><p>2018.</p><p>PINEAU, Gaston. As histórias de vida como artes formadoras da existência. In:</p><p>PINEAU, Gaston. Temporalidades na formação. Tradução Lucia Pereira de</p><p>Souza. São Paulo: Trion, 2003.</p><p>TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 15. ed.</p><p>Petrópolis: Vozes, 2014.</p><p>TAVARES, Mari Inez; BORTOLAI, Michele Marcelo Silva; MOURA, Paulo Rogério</p><p>Garcez de; REZENDE, Daisy de Brito. O despertar para a docência: relatos de</p><p>alunos de estágio supervisionado em química. Educação química em Punto</p><p>de Vista. v. 5, n. 2, 2021, p. 39-61.</p><p>TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais:</p><p>a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>161</p><p>Fracasso curricular na Pandemia:</p><p>narrativas de uma professora</p><p>de Educação Infantil</p><p>Heloisa Dragojevic Bossalon1</p><p>Uma interrupção foi ocasionada</p><p>Uma patologia advinda de causas desconhecidas identificada</p><p>em Wuhan, na China, se espalhou para o mundo inteiro. Foi reportada</p><p>pela primeira vez em 31 de dezembro de 2019, pela OMS (Organização</p><p>Mundial da Saúde) e seguidamente, houve uma disseminação por to-</p><p>dos os continentes: a covid-192, causado pelo recém-descoberto vírus</p><p>SARS-CoV-23. No Brasil, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 188/</p><p>GM/MS, de 4 de fevereiro de 2020, declarando Emergência em Saúde</p><p>Pública de Importância Nacional. Essa situação não encontrou prece-</p><p>dentes na história mundial após a segunda guerra, e foi caracterizada</p><p>como pandemia na data de 11 de março de 2020.</p><p>A OMS recomendou três ações básicas para a contenção de no-</p><p>vos contágios: isolamento e tratamento dos casos identificados; testes</p><p>massivos; e distanciamento social. Esse último afetou diretamente todo</p><p>o sistema de ensino, as famílias, as crianças e estudantes, com a sus-</p><p>pensão das atividades escolares para o enfrentamento da emergência</p><p>de saúde pública.</p><p>1 Professora de Educação Infantil na DEDIC-Unicamp e mestranda no Programa</p><p>Multiunidades de Ensino de Ciências e Matemática.</p><p>2 O novo coronavírus recebeu a nomeação pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A sigla</p><p>covid-19 é derivada da língua inglesa: coronavírus disease, e do ano de descoberta, 2019.</p><p>3 A sigla também vinda do inglês SARS-CoV-2 significa coronavírus 2 da síndrome respirató-</p><p>ria aguda grave.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>162</p><p>A Portaria nº 343 de 17 de março de 2020 indicou a manifestação</p><p>do Ministério da Educação (MEC) sobre a substituição das aulas presen-</p><p>ciais por aulas através de mídias tecnológicas, pelo tempo que durasse</p><p>a situação da pandemia. Segundo a UNESCO, as aulas presenciais foram</p><p>suspensas e adaptadas para o regime remoto até maio de 2021, na maio-</p><p>ria dos estados e em todo território nacional.</p><p>Houve a necessidade de uma reorganização dos planos de aulas,</p><p>uma vez que, as aulas remotas/híbridas foram referência para a conti-</p><p>nuidade do ensino em todos os níveis e modalidades educacionais. Essa</p><p>interrupção necessária, mas não planejada, golpeou a sociedade como</p><p>um todo, pois além de as pessoas terem que lidar com a situação pan-</p><p>dêmica com todo desgaste físico e emocional, os gestores e professores</p><p>precisaram organizar as estruturas de ensino, identificando objetivos</p><p>de aprendizagens atrás das telas com os estudantes, modelando con-</p><p>teúdos disciplinares, “adaptando” o currículo prescrito e o calendário</p><p>escolar para a nova realidade.</p><p>O currículo prescrito é pensado e planejado fora da escola, antes</p><p>mesmo do professor ter contato com os estudantes. Esses documentos</p><p>oficiais, produzidos pelo órgão do poder público orientam a educação</p><p>nacional brasileira em forma de documentos oficiais.</p><p>A palavra currículo deriva da palavra latina currere, que</p><p>significa “correr” e se refere a um curso (ou corrida de</p><p>carruagens). As implicações da etimologia são que o cur-</p><p>rículo deve ser entendido como “o conteúdo apresenta-</p><p>do” para estudo (BARROW, 1984, p. 3). A construção e</p><p>o contexto social, segundo essa visão, são relativamente</p><p>sem problemas porque, pela implicação etimológica, o</p><p>poder de “definição da realidade” está firmemente nas</p><p>mãos daqueles que “elaboram” e definem o curso. O elo</p><p>entre currículo e prescrição forjado cedo, sobrevive e se</p><p>fortaleceu com o tempo (GOODSON, 2020, p. 72).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>163</p><p>Porém, bastou o “espaço” da escola ser alterado para as telas</p><p>que os “conteúdos curriculares” se tornaram descontextualizados e in-</p><p>suficientes, levando à necessidade de adaptação. Ainda, não houve ga-</p><p>rantia do direito ao acesso, pois nem todos os estudantes tiveram acesso</p><p>à tecnologia necessária para tal processo.</p><p>Acompanhamos com pesar nesses dois anos pandêmicos os retro-</p><p>cessos do processo educacional e social que famílias mais desfavorecidas</p><p>economicamente vivenciaram. Os estudantes tiveram que lidar com a</p><p>falta da merenda escolar, da qual muitos dependiam, com perturbações</p><p>familiares ao terem de dividir pequenos cômodos em tempo integral,</p><p>com o crescimento significativo de agressões domésticas. Em consequ-</p><p>ência, ampliou-se a já preocupante evasão escolar. Por esses motivos,</p><p>considero o tempo da pandemia um inoportuno momento do alarga-</p><p>mento da desigualdade na educação brasileira.</p><p>Documentos legais mostram que devemos preservar a igualdade</p><p>de condições de acesso e permanência na escola, seguindo a Constituição</p><p>(1988). Porém, é reconhecido que as condições de acesso às tecnologias</p><p>são desiguais e, as classes menos favorecidas economicamente ficaram</p><p>à margem desse ensino,</p><p>como apontam os dados do Núcleo de Informação</p><p>e Coordenação do Ponto (NIC.br), publicados em 2020.</p><p>A esse respeito, Santos (2020, p. 21) afirma que “a qua-</p><p>rentena não só torna mais visíveis, como reforça a in-</p><p>justiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimen-</p><p>to imerecido que elas provocam”, e alerta o autor que a</p><p>“pós-crise será dominada por mais políticas de austeri-</p><p>dade e maior degradação dos serviços públicos onde isso</p><p>ainda for possível” (Ibid. p. 25).</p><p>Nesse cenário, muitas perguntas e reflexões foram levantadas</p><p>pelos profissionais atuantes nas escolas, pois as instituições nunca an-</p><p>tes haviam se preparado para demandas remotas, sendo incabível para</p><p>os professores e dirigentes das escolas realizarem uma organização rá-</p><p>pida e eficiente, com atividades pedagógicas e curriculares atrás das te-</p><p>las. Não fez sentido reproduzir o currículo prescrito de antes para a re-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>164</p><p>alidade pandêmica. Os sistemas educacionais não sobrevivem somente</p><p>com as prescrições. Fomos e somos suscetíveis aos fluxos históricos vi-</p><p>vidos cotidianamente.</p><p>O currículo na pandemia</p><p>Durante aproximadamente um ano e três meses, com as unida-</p><p>des escolares de portas fechadas, abriram-se as janelas da comunicação</p><p>remota e os professores tiveram autonomia para realizar aulas on-line,</p><p>incumbidos de administrarem toda a comunicação com seus alunos.</p><p>A readequação curricular foi necessária para o prosseguimento dos estu-</p><p>dos. Mas de que estudo, currículo e aluno estamos falando? Dos alunos</p><p>que conseguiram durante o período pandêmico, ter ao menos um apa-</p><p>relho tecnológico com no mínimo acesso à internet por algumas horas</p><p>semanais?</p><p>Em minha realidade educacional, ainda que pública, os alunos</p><p>são privilegiados financeiramente. Em uma turma de pré-escola no ano</p><p>de 2020, foi obtida frequência de 80% dos alunos nas aulas remotas,</p><p>mesmo que de forma não assídua, enquanto o “currículo”, por sua vez…</p><p>Não fazia sentido abrir as câmeras de nossas casas e querer es-</p><p>tudar apenas o plano curricular escolar prescrito. Os alunos estavam</p><p>passando por processos pandêmicos, lidando com o luto, sentindo in-</p><p>seguranças, vivenciando a saudade da vida social e o currículo escolar</p><p>precisou dar ouvidos aos fluxos sociais.</p><p>O mundo descobriu novas cenas relacionadas a uma pandemia e,</p><p>como nos ensina Goodson (2019), autor renomado, pesquisador britâ-</p><p>nico, sobretudo no campo do currículo: “Precisamos entender o pessoal</p><p>e o bibliográfico se quisermos entender o social e o político […] inves-</p><p>tigando o empreendimento educacional de um ponto de vista altamen-</p><p>te produtivo”, nos mostrando ainda, o quanto os sistemas educacionais</p><p>estão sujeitos aos fluxos históricos uma vez que “[…] padrões globais</p><p>são redirecionados e reordenados pela sua configuração em períodos</p><p>históricos e contextos culturais” (Ibid., p. 87).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>165</p><p>Passando pelas perguntas “quem define o que os estudantes de-</p><p>vem saber?” e “quem legitima esse conhecimento todo?”, articulo pos-</p><p>síveis respostas argumentando que o currículo prescrito é uma forma</p><p>de se fazer política, de controle, poder e visão ideológica social, uma vez</p><p>que são os órgãos públicos quem organizam e cobram essas diretrizes.</p><p>Porém meu desejo é de que em breve, possamos responder essas mesmas</p><p>perguntas, mirando uma forma de se fazer currículo que leve em consi-</p><p>deração a cultura vivida pelas pessoas que compõem a realidade esco-</p><p>lar, às quais o currículo é “direcionado”. Dar espaço e voz aos sujeitos</p><p>que são integrantes e pertencentes aos espaços escolares quebra com a</p><p>prescrição fechada, abrindo espaços para a construção da identidade so-</p><p>cial e cultural.</p><p>O currículo faz parte integrante do cotidiano das escolas</p><p>e das instituições de educação e exerce direta ou indire-</p><p>tamente sua influência nos sujeitos que fazem parte do</p><p>processo educativo. Muitos currículos prescritos escola-</p><p>res têm a intenção de promover padrões de escolhas para</p><p>a criança, visando comportamentos esperados no adulto,</p><p>de modo que este futuramente se encaixe em um papel</p><p>social predeterminado.</p><p>Temos no Brasil diferentes sistemas educacionais: o público e o</p><p>privado, sendo muitas vezes regidos pelo monopólio de algumas redes</p><p>particulares diante da qualidade do ensino em todos os níveis da educa-</p><p>ção, mas em especial no ensino médio, visando o “sucesso” na aprova-</p><p>ção de exames vestibulares. Com esse propósito, materiais apostilados,</p><p>que são realidade na maioria das escolas privadas, se tornam negócios</p><p>extremamente lucrativos para as empresas do segmento, como eviden-</p><p>cia Ball:</p><p>Grandes empresas fazem da Educação seu grande negó-</p><p>cio (Edu-business) oferecendo soluções aos problemas</p><p>da política nacional de elevar os padrões e alcançar me-</p><p>lhorias educacionais, relacionando tanto a oportunida-</p><p>de individual como a competitividade nacional (BALL,</p><p>2012).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>166</p><p>O mercado editorial afirma que a aplicação de seus materiais didá-</p><p>ticos possibilita avanços no percurso escolar, ajudando a dar sequência</p><p>no trabalho do professor e ainda auxilia através dos conteúdos apre-</p><p>sentados nos materiais, a reciclar e aperfeiçoar os profissionais da área.</p><p>Britto (2011) traz em seu artigo esses apontamentos e ainda apresenta</p><p>as características dos programas do livro didático e seus mecanismos</p><p>de execução.</p><p>Contudo, enfatizo que a transferência de gestão, deixa a orien-</p><p>tação político-pedagógica nas mãos do mercado editorial, encobrindo</p><p>o controle e os interesses vindos de outros espaços, e encaminhando</p><p>para uma possível privatização da educação pública.</p><p>Nesse sentido, amparada em Goodson (2008), acredito que o currí-</p><p>culo pode ter um papel controlador e delimitador da autonomia do pro-</p><p>fessor na sala de aula. Portanto, a trajetória do currículo passa a ser</p><p>o objeto de reflexão e diálogo para todos os envolvidos com a educação:</p><p>os gestores, os docentes, os professores, as famílias e os alunos que são</p><p>os próprios sujeitos do currículo.</p><p>Nas palavras do autor: “Ao invés de escrever novas prescrições</p><p>para as escolas, novos currículos ou novas diretrizes de reforma, elas</p><p>precisam antes questionar a própria validade das prescrições pré-dige-</p><p>ridas em um mundo de fluxo e de mudança” (GOODSON, 2008, p. 142).</p><p>Uma reorganização curricular fez-se necessária</p><p>Os desafios incomensuráveis advindos do isolamento</p><p>social imposto pelas normas sanitárias para a preser-</p><p>vação da vida humana atingiram o ensino. Segundo a</p><p>UNESCO, milhões de estudantes ficaram sem aulas com</p><p>o fechamento total ou parcial de escolas e universidades,</p><p>em mais de uma centena de países, devido à pandemia</p><p>do coronavírus. No Brasil, as aulas presenciais foram</p><p>suspensas em todo o território nacional e, com isso, os</p><p>professores tiveram papel vital para que acontecesse a</p><p>comunicação e atividades on-line. Neste cenário, uma re-</p><p>organização curricular se fez necessária.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>167</p><p>Quando os encontros on-line começaram, não houve tempo há-</p><p>bil para que os professores “se tornassem” profissionais que ministram</p><p>aulas remotas. No curto espaço de tempo esses professores foram obri-</p><p>gados a se “apropriarem” de plataformas e sistemas operacionais até en-</p><p>tão desconhecidos pela maioria, a se “reinventarem”, contando com sua</p><p>própria intuição.</p><p>Os professores, envolvendo a escola, formaram redes de</p><p>apoio com os diretores, coordenadores, amigos, além de</p><p>contar com os próprios estudantes e seus familiares, es-</p><p>tabelecendo conversas e até tutoriais para encontrarem</p><p>melhores alternativas de atendimento. Ao elaborar pro-</p><p>postas, tornam-se linha de frente às respostas educacio-</p><p>nais, ou seja, os primeiros a reagir e tomar decisões dian-</p><p>te de situações existentes. O protagonismo educacional</p><p>decorre da preposição de “ações pela sua própria descri-</p><p>ção das experiências e práticas, elementos para uma pos-</p><p>sível</p><p>coisa! O próximo texto sobre</p><p>Licenciaturas em Ciências da Religião. Somos um país laico? Incluiu-se</p><p>Ensino Religioso na BNCC sem surpresa. São 29 cursos de Licenciatura</p><p>em Ciências da religião, 20 ativos. A narrativa sistêmica é de um Ensino</p><p>Religioso não confessional e não proselitista, mas a análise dos proje-</p><p>tos políticos-pedagógicos se embretou por outra esfera em que a pers-</p><p>pectiva judaico-cristã prepondera e diverge nas diretrizes oficiais. Será</p><p>o professor uma pessoa de fé ou um cientista social? O texto encaminha</p><p>argumentação para responder ou alinhavar a discussão. Nas conclusões</p><p>uma palavra chama atenção de alguém que se aventura pela hermenêu-</p><p>tica: obscura.</p><p>Se as mônadas já tinham me enfeitiçado na leitura até aqui,</p><p>os retratos narrativos em que a narrativa é articulada à Hermenêutica</p><p>Filosófica de Gadamer com a arte a desafiar as reflexões e as interpre-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>18</p><p>tações faz eu voltar para minha sala e encontrar as autoras, queridas</p><p>professoras, narradoras de suas aulas em cirandas de formação de pro-</p><p>fessores. E os retratos escreventes? E eu que estava sentindo falta de al-</p><p>guma imagem e elas apareceram: Rosa, Damiane, Eufrásia, Frésia mos-</p><p>tram que as férias renderam. Eu teria dito rendaram o texto com lindas</p><p>imagens de estudantes de Licenciatura de um PET.</p><p>Por fim, se vocês foram pelas minhas histórias ao encontro das nar-</p><p>rativas docentes nestes cinco blocos, ainda há uma, e vejam que linda</p><p>montagem de letras que trazem sentidos: ESCRE(VI)VER. Não é isso</p><p>mesmo? Rastrear indícios da constituição de educadores ambientais</p><p>em narrativas de pesquisa-formação docente. Rememorei ao ler este</p><p>texto algumas de minhas incursões em orientações na EA.</p><p>Em síntese, penso que tenha escrito um prefácio além do con-</p><p>to, além de um conto, além da conta. Este é o problema da narrativa,</p><p>uma história leva a outra e finalizo com a citação de Ricoeur:</p><p>A história contada diz o quem da ação. Portanto, a iden-</p><p>tidade do quem não é mais que uma identidade narra-</p><p>tiva. Sem o auxílio da narração, o problema da identi-</p><p>dade pessoal está, de fato, fadado a uma antinomia sem</p><p>solução: ou se supõe um sujeito idêntico a si mesmo na</p><p>diversidade de seus estados, ou então se considera, na</p><p>esteira de Hume e Nietzsche, que esse sujeito idêntico</p><p>não passa de uma ilusão substancialista, cuja eliminação</p><p>faz aparecer tão-somente um puro diverso de cognições,</p><p>emoções e volições (RICOEUR, 2010, p. 418).</p><p>O livro conta um grupo de pesquisadores que tem identidade</p><p>narrativa. Enquanto escrevo este prefácio-convite à leitura, lembrando</p><p>da discussão de Ricoeur em Tempo e narrativa, entre o idem e o ipse,</p><p>já não são os mesmos nem outros, são diferentes os narradores como</p><p>sou eu depois de ler este belo conjunto diverso de textos de narrativas</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>19</p><p>docentes. A intenção deste livro se cumpre concretamente ampliando</p><p>contextos. Eu completaria ampliando horizontes, hermeneuticamente</p><p>falando.</p><p>Intensa leitura para práticas curriculares narrativas insurgentes!</p><p>Outono de 2022</p><p>Maria do Carmo Galiazzi</p><p>Professora Titular do Programa de Pós Graduação em Educação</p><p>em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande (FURG)</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>CLANDININ, D. Jean; CONNELLY, Michael. Narrative Inquiry: experience and</p><p>story in qualitative research. Alberta: Jossey Bass, 2000.</p><p>GADAMER, Hans-George. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma</p><p>hermenêutica filosófica. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.</p><p>GENTIL, Hélio Salles. Introdução. In: RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São</p><p>Paulo: Martins Fontes, 2010.</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. Práticas curriculares na formação profissional</p><p>– uma compreensão singular para as narrativas como forma de transgressão.</p><p>Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 23, n. 52, p. 560-577, jun./set. 2017.</p><p>RICOEUR. Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010.</p><p>Algumas palavras introdutórias</p><p>sobre a obra</p><p>M. Inês Petrucci-Rosa1</p><p>Ana Gabriela de Souza Seal2</p><p>Paola F. G. Meneghin de Oliveira3</p><p>Nós somos parte do Grupo de Estudos de Práticas Curriculares</p><p>e Narrativas Docentes, sediado na Faculdade de Educação</p><p>da Universidade Estadual de Campinas (SP) (www.geprana.com). Há qua-</p><p>se vinte anos, um conjunto de pesquisas em diferentes níveis vêm sendo</p><p>desenvolvidas no seio desse grupo, seja como projetos de iniciação cien-</p><p>tífica, trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses</p><p>de doutorado. O grupo é um espaço de convergência pluridisciplinar,</p><p>somos educadoras e educadores com formações iniciais plurais, como</p><p>biólogas, físicas e físicos, químicas e químicos, matemáticos e matemá-</p><p>ticas, historiadores e historiadoras, pedagogas e administradores. Enfim,</p><p>somos uma equipe de educadora/es que nos compreendemos como su-</p><p>jeitos históricos que valorizam a dimensão autobiográfica em diálogo</p><p>com contextos sociais, culturais e políticos mais amplos.</p><p>1 Professora Associada do Departamento de Ensino e Práticas Culturais da Faculdade de</p><p>Educação da Unicamp.</p><p>2 Professora Adjunta da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) e doutoranda</p><p>no Programa Multiunidades de Ensino de Ciências e Matemática da Unicamp.</p><p>3 Professora na Educação Básica e doutoranda no Programa Multiunidades de Ensino de</p><p>Ciências e Matemática da Unicamp.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>22</p><p>Em 2017, publicamos a obra Práticas Curriculares e Narrativas</p><p>Docentes em Diferentes Contextos4, na qual um complexo de pesquisas</p><p>concluídas naquele período e outros ensaios compuseram a coletâ-</p><p>nea desenhando um retrato muito vivo da nossa dinâmica de trabalho,</p><p>bem como nossa relação com algumas autoras convidadas.</p><p>Vimos agora apresentar uma nova obra seguindo a mesma temáti-</p><p>ca que nos move politicamente na produção de conhecimentos no cam-</p><p>po da Educação. Apresentamos uma segunda obra coletiva do GEPraNa,</p><p>agora denominada Práticas Curriculares e Narrativas Docentes: amplian-</p><p>do contextos.</p><p>Por que ampliamos contextos? Essa questão é bastante intrincada</p><p>e desafiadora, à medida que hoje vivemos uma conjuntura que inunda</p><p>todas as nossas vidas no planeta Terra, que é o contexto da pandemia</p><p>da covid-19. No Brasil, vivemos mais uma onda de contaminação no iní-</p><p>cio de 2022, sob uma política genocida por parte do governo associada</p><p>ao alastramento da praga do negacionismo e de movimentos antivaci-</p><p>na. Assim, procuramos alargar nossos horizontes trazendo nessa obra</p><p>diferentes perspectivas por meio das quais desenhamos formas diver-</p><p>sas de produção de conhecimento acerca dos/de fazeres curriculares</p><p>com abordagem narrativa.</p><p>No que tange à produção do GEPraNa, há um interlocutor presente</p><p>e de fundamental relevância para nossos estudos. Trata-se do renomado</p><p>historiador e curriculista britânico prof. Ivor F. Goodson, hoje profes-</p><p>sor da Universidade de Tallin, na Estônia. Prof. Goodson tem sido nosso</p><p>mentor, desde que a coordenadora do GEPraNa, uma das organizadoras</p><p>dessa obra, realizou um estágio de pesquisa em seu laboratório, conso-</p><p>lidando uma colaboração efetiva e que perdura ao longo de vários anos.</p><p>Nesse sentido, destacamos a importância da mais recente sessão de tra-</p><p>balho desenvolvida com a presença do prof. Goodson e o GEPraNa5, onde</p><p>um conjunto de questões de pesquisa foram apresentadas e debatidas.</p><p>O professor Goodson também nos convida a pensar em histórias de vida</p><p>dentro de uma teoria de contexto, perspectiva fundamental para quem</p><p>4 Disponível em: https://www.editoracrv.com.br/produtos/detalhes/32965-detalhes.</p><p>5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bU9VNV5n43Y.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>23</p><p>busca na narrativa uma lente metodológica, combatendo pequenas nar-</p><p>rativas, relatos desprovidos de conexões com dimensões sociais, cultu-</p><p>rais, econômicas e históricas. O título deste livro de certa forma reme-</p><p>te a esta preocupação epistemológica, partilhada pelos pesquisadores</p><p>resolução”. Não se trata de um individualismo, mas</p><p>de estabelecimento de interdependência entre o coletivo</p><p>de professores que se apoiam e buscam possibilidades de</p><p>novas respostas diante da emergência de reorganizar as</p><p>práticas pedagógicas (SANTOS, 2019, p. 170).</p><p>Professores são interessados em situações de aprendizagens,</p><p>em ensino em processo de aprendizagem, são empenhados em conhe-</p><p>cer diferentes maneiras de olhar a vida, buscando cumprir seu propósi-</p><p>to social que ultrapassa o exercício profissional, sendo também huma-</p><p>no. A educação é a base da sociedade e, há tempos, nas considerações</p><p>de Paulo Freire:</p><p>Você, eu, um sem-número de educadores sabemos to-</p><p>dos que a educação não é a chave das transformações do</p><p>mundo, mas sabemos também que as mudanças do mun-</p><p>do são um quefazer educativo em si mesmas. Sabemos</p><p>que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa.</p><p>Sua força reside exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>168</p><p>pôr sua força a serviço de nossos sonhos (FREIRE, 1991,</p><p>p. 126).</p><p>O aprendizado reflete a natureza social do homem. São</p><p>os históricos pessoais que, ao serem interagidos com os</p><p>novos conhecimentos aprendidos, constroem o seu futu-</p><p>ro na sociedade e, ao conhecer as experiências narradas</p><p>das práticas dos professores conseguimos enxergar mui-</p><p>to mais do que apenas uma pedagogia em si, enxerga-</p><p>mos suas experiências, seus pontos de vista, seus sonhos,</p><p>desejos e crenças a respeito da sociedade, da cultura, da</p><p>docência. São pontos que Goodson (1992) valoriza e nos</p><p>ensina ao dizer darmos voz ao professor, as histórias de</p><p>vida dos professores e o desenvolvimento profissional”.</p><p>Ainda com Goodson (2019), vemos que</p><p>O currículo torna-se um “caminho narrável” em direção</p><p>à formação de identidade a agência, quando “o saber</p><p>como contação de história” é valorizado, promovido e</p><p>representado. Narrativas propiciam e criam espaço para</p><p>“momentos pedagógicos” nos quais as pessoas podem se</p><p>conectar consigo mesmas, uma com as outras, com suas</p><p>próprias culturas e tradição, com suas esperanças e as-</p><p>pirações e, em última instância, com uma construção de</p><p>conhecimento intencional e orientada, que serve as suas</p><p>trajetórias pessoais e públicas (p. 114).</p><p>Saliento que o discernimento da história, juntamente</p><p>com as narrativas, esclarecem as questões de cidadania</p><p>na aprendizagem. Extrair e compreender os elementos</p><p>da história na construção do conhecimento fornece uma</p><p>ampla perspectiva sobre o processo pelo qual diferentes</p><p>sociedades negociam “a verdade e o direito” (Id. p. 110).</p><p>As histórias se tornam parte da própria identidade da so-</p><p>ciedade e são pontos de referência nas discussões sobre</p><p>moralidade e na tomada de decisões políticas.</p><p>O que demonstramos é que a aprendizagem – mais espe-</p><p>cificamente aquela que parte da vida – continua na vida</p><p>das pessoas, é significativa para elas e é um dos princi-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>169</p><p>pais veículos para a educação, pois é narrativa; envolve</p><p>a construção e a “contação” de histórias sobre si mesmo</p><p>e sobre sua vida, Nesse sentido, não apenas apresenta-</p><p>mos uma nova maneira de compreender a aprendiza-</p><p>gem, como também, por seu intermédio somos capazes</p><p>de identificar processos altamente significativos para</p><p>os indivíduos e, portanto, para a sociedade (GOODSON,</p><p>2019, p. 112).</p><p>Dessa forma, percebemos o quão promissor é passar de um currí-</p><p>culo prescritivo para um currículo que possibilite aprendizagens narra-</p><p>tivas e de gerenciamento de vida. O desafio que se apresenta é o de ela-</p><p>borar, nos espaços institucionais da educação, novas epistemologias</p><p>que possibilitem “uma reforma do pensamento” (MORIN, 2000) “para</p><p>um conhecimento-emancipação” (SANTOS, 2000). Para isso, a base</p><p>da educação precisa estar firmada em fundamentos teóricos que emba-</p><p>sem os processos educativos, que envolvam a escola como um todo e a</p><p>mediação de conflitos, dando ouvidos inclusive para os próprios sujeitos</p><p>do currículo: os estudantes. Nesse cenário, aponto para o currículo nar-</p><p>rativo, uma vez que o planejamento curricular se perde quando os atores</p><p>não são envolvidos.</p><p>[…] uma grande quantidade de planejamento curricular</p><p>se perde, porque o aluno simplesmente não se envolve;</p><p>por isso, considerar o aprendizado como sendo localiza-</p><p>do na história de vida é compreender que o aprendizado</p><p>é situado contextualmente e que ele também tem uma</p><p>história (GOODSON, 2008, p. 155).</p><p>Bons frutos se dão a partir da afetividade construída,</p><p>pois o professor traz para o estudante um contexto social</p><p>a fim de incluir significados e símbolos no aprendizado.</p><p>Para tanto, no entanto, o professor deve estar consciente</p><p>da cultura vivida pelo aluno.</p><p>O currículo pode ser visto como algo que se origina, por</p><p>um lado, da demanda dos estudantes por algo relevan-</p><p>te, útil e interessante e, por outro lado, da demanda dos</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>170</p><p>professores por algo que amplie os horizontes dos estu-</p><p>dantes e ofereça entrada a novas formas de compreen-</p><p>são. Diferentemente de dar o direito para que o estudan-</p><p>te decida tudo sobre a situação de aprendizagem, uma</p><p>abordagem curricular narrativa possibilita a criação de</p><p>caminhos colaborativos entre professores e estudantes.</p><p>A pandemia nos trouxe a reflexão de que o currículo prescrito</p><p>não sustenta as mudanças sociais e tampouco representa comunidades</p><p>locais. Como discernir no macronacional o que se faz necessário com-</p><p>preender no micro, nas escolas? Como Petrucci-Rosa (2017) define,</p><p>em tempos de perda de autonomia docente, de desvalo-</p><p>rização de conhecimentos profissionais e de definição de</p><p>bases curriculares que pouco dialogam com o cotidiano</p><p>da escola, práticas curriculares como transgressão rei-</p><p>vindicam narrativas docentes que potencializem as pos-</p><p>sibilidades de criação e reinvenção da cultura escolar (p.</p><p>573).</p><p>A prática curricular narrativa rompe com a ideia de prescrição e va-</p><p>loriza a possibilidade de produção de um capital narrativo (GOODSON,</p><p>2019). Se o desafio pedagógico é aproximar a provisão curricular da con-</p><p>dição material da humanidade, precisamos investir na compreensão</p><p>das práticas curriculares, procurando romper com procedimentos usuais</p><p>de categorização de conceitos e de classificação de ideias que o currí-</p><p>culo prescritivo nos impõe, compreendendo o currículo narrativo como</p><p>um caminho.</p><p>Escrevo a seguir uma narrativa docente, trazendo nas expres-</p><p>sões sentimentos vivenciáveis e movimentos que experimentei duran-</p><p>te o trajeto institucional da busca de sentido curricular de uma escola</p><p>de Educação Infantil, durante os dias nebulosos da pandemia da covid-19.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>171</p><p>Recortes narrativos de uma professora na pandemia</p><p>O dia em que a escola fechou as portas</p><p>“Em um dia ensolarado comum, estava eu no parque com as crianças,</p><p>vivenciando brincadeiras tranquilas, conversas e trocas de experiên-</p><p>cias de maneira espontânea em meio ao faz de conta delas. Longe ainda</p><p>do horário da saída, quando de repente, me deparo com algumas famílias</p><p>vindo buscar seus filhos às pressas, aparentando preocupações. A seguir,</p><p>naquela mesma tarde, a gestão da escola solicitaria pessoalmente para</p><p>nós professores, que informássemos os familiares das crianças ao bus-</p><p>carem seus filhos que, no dia seguinte, a escola não abriria e que rece-</p><p>beriam mais informações por e-mail ou telefone. No boca a boca do por-</p><p>tão da escola, nós professoras ficamos sabendo que o temido vírus tinha</p><p>se espalhado, chegado na cidade e que providências precisariam ser to-</p><p>madas, mas que no máximo a ‘quarentena’ chegaria. Ainda pensávamos</p><p>que a ‘quarentena’ seria uma pausa de apenas quarenta dias para o vírus</p><p>‘ir embora’. Chegando em casa, logo soube da disseminação da covid-19</p><p>no Brasil e a sua gravidade, gerando uma emergência na saúde pública</p><p>que a seguir acarretaria muitos impactos em nosso trabalho. O grupo</p><p>de WhatsApp da</p><p>escola não parava de tocar, e as informações dos jornais</p><p>e na televisão não falavam de outra coisa. O mundo todo precisou parar</p><p>e dar atenção a esse vírus.”</p><p>As ofensas</p><p>“A pandemia se instaurou e, com isso as escolas precisaram fechar seus</p><p>portões. Como no Brasil há dois sistemas educacionais (público e pri-</p><p>vado), algumas escolas particulares não pararam seus atendimentos</p><p>com as crianças e, juntamente com uma discordância política, ora po-</p><p>diam abrir as escolas e ora precisavam fechá-las urgentemente, mas,</p><p>sempre tentando seguir com as atividades normalizando ao máximo</p><p>a condição do distanciamento social. Já na escola pública que traba-</p><p>lho, esse tempo de portas fechadas durou vários meses, ainda que to-</p><p>dos nós, educadores e gestores, sempre ficássemos esperando pela volta</p><p>dos atendimentos com as crianças… na próxima semana… no próximo</p><p>mês… mas sempre ocorriam adiamentos, uma vez que por aqui não ti-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>172</p><p>vemos seriedade política para a condução da contenção da pandemia.</p><p>Esse tempo só aumentava, quando na verdade deveria diminuir. Quando</p><p>compreendemos que as portas da escola onde atuamos não iriam abrir</p><p>naquele ano de 2020, um grupo de professores e alguns pais dos estu-</p><p>dantes, pressionaram a gestão para que acontecessem aulas on-line.</p><p>Queriam que criássemos conteúdos e atividades para as crianças atra-</p><p>vés da internet, e que os pais ajudassem seus filhos a compreender a</p><p>‘matéria’, seguindo primordialmente com o currículo escolar previsto.</p><p>Chegaram a cogitar em dispor os materiais da escola para serem levados</p><p>para a casa dos estudantes, uma vez que, pedir para comprar materiais</p><p>não era algo simples, pois contribuía na aglomeração dentro dos merca-</p><p>dos, com isso, muitas pessoas estocavam tudo o que podiam por medo</p><p>de um lockdown4. A pedidos, consideramos em ‘treinar’ pais para serem</p><p>pedagogos sem formação, e incentivar as crianças pequenas (somos cre-</p><p>che e pré-escola) a ficarem por horas atrás das telas, seja via computador</p><p>ou celular, sempre através das câmeras, a fim de seguirmos um currícu-</p><p>lo prescrito que já não fazia sentido, pois nunca cogitamos uma edu-</p><p>cação infantil sem interações presenciais. Que loucura! Não faltaram</p><p>ofensas de algumas famílias por recebermos o salário e não atendermos</p><p>presencialmente as crianças. Inclusive faziam comparações com as es-</p><p>colas particulares que atendiam a mesma faixa etária. Nós argumentá-</p><p>vamos, apresentando estudos sobre diversos pontos prejudiciais acerca</p><p>do frequente uso de telas pelas crianças e sobre como não fazia senti-</p><p>do a educação escolar sem sentido de comunidade e interações sociais.</p><p>Mas por fim, após muitas discussões e conversas via plataforma Google</p><p>Meet5, decidiu-se que as professoras seriam as responsáveis por mante-</p><p>rem contato com seus estudantes mesmo que por telefone, a fim de que</p><p>as crianças não perdessem a referência da escola, de seus professores</p><p>e colegas. E claro que tentaríamos alguns encontros on-line para propor</p><p>atividades.”</p><p>4 Lockdown é um termo em inglês que traduzido significa confinamento. Esse termo vem sen-</p><p>do usado para expor uma medida de fechamento de regiões onde a pandemia de Covid-19</p><p>se instaurou, obrigando assim o isolamento social da população.</p><p>5 Google Meet é uma ferramenta no serviço de videoconferência do Google, se tornou popu-</p><p>lar no período da pandemia, podendo ser usada tanto na web quanto em celulares Android</p><p>e IOS.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>173</p><p>O modelo híbrido que não conhecia</p><p>“Lá fomos nós professoras ligarmos para os estudantes, combinarmos</p><p>uma reunião no Meet e reestabelecermos contato, num mundo e num</p><p>convívio totalmente diferente, remoto e frio. Claro que alguns estudan-</p><p>tes mostraram um nível alto de ansiedade em suas casas, chateações</p><p>de todo tipo, lutos familiares… Alguns não conseguiam esperar sua vez</p><p>para falar em um microfone, outros monopolizavam a fala, enquanto</p><p>outros só desligavam. Alguns estudantes não davam importância para</p><p>a tela enquanto alguém tentava falar ou mostrar algo. Com algumas</p><p>crianças não houve interação, com outras conseguimos depois de um</p><p>tempo de adaptação. Lembro-me também que tivemos reuniões inva-</p><p>didas por hackers6 e imagens indevidas apareceram durante nossa reu-</p><p>nião. Após algumas experiências, fizemos bons combinados como os de</p><p>que em todos os encontros as crianças estivessem acompanhadas por al-</p><p>gum familiar (responsável). Percebemos que a duração de quarenta mi-</p><p>nutos nos encontros seriam um tempo máximo no qual os estudantes</p><p>conseguiam se prender com atenção a uma tela, e isso por três vezes</p><p>na semana e com grupos de no máximo seis crianças por vez. Esquecemos</p><p>os projetos e o currículo escolar, focamos nas interações, em ouvi-los</p><p>sobre seus cotidianos e seguimos montando jogos pelas telas e brinca-</p><p>deiras de adivinhas, pois era o que as crianças nos traziam de interesses.</p><p>Conseguimos fazer até chamadinhas diversas, favorecendo o letramen-</p><p>to, fizemos ainda jogos matemáticos e de lógica, mas quando o assunto</p><p>do encontro não agradava, a criança não entrava para participar, mes-</p><p>mo que a família insistisse. Algumas histórias, contos e culinária surgi-</p><p>ram no caminho, e seguimos até concluir o primeiro semestre de 2021,</p><p>não com ‘aulas remotas’, porque na nossa realidade não fazia sentido</p><p>algum, mas sim, com encontros e construções de conhecimento que sur-</p><p>giam a partir dos interesses e curiosidades que o grupo trazia. Nem to-</p><p>dos os estudantes matriculados participaram de forma assídua. Alguns</p><p>nunca apareceram. Sabemos que dentro de suas casas, cada criança vivia</p><p>uma realidade diferente. Nosso levantamento apontou que mais da me-</p><p>6 Hacker é uma palavra em inglês que indica uma pessoa que possui interesse e habilida-</p><p>de informática sendo capaz de fazer um “hack” que é uma modificação em algum sistema</p><p>informático.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>174</p><p>tade dos estudantes participaram em ao menos metade dos encontros</p><p>que tivemos. As famílias se apertavam para conseguirem acompanhar</p><p>seus filhos nesses encontros e verbalizavam que esperavam ansiosa-</p><p>mente as restrições afrouxarem para que as aulas presenciais voltassem,</p><p>mesmo que em formato de revezamento.”</p><p>Considerações Finais</p><p>Seguimos assim até o segundo semestre de 2021, quando voltamos</p><p>todos ao presencial e dentro dos espaços educacionais. Apesar da sau-</p><p>dade e empolgação, voltamos com muitos novos desafios a serem vivi-</p><p>dos e superados, por exemplo, o de seguir vários protocolos sanitários</p><p>de uma contenção pandêmica em meio às aventuras da Educação infan-</p><p>til. Lavagem de mãos a todo tempo, distanciamento nas mesas do re-</p><p>feitório e das demais salas, placas identificando a quantidade máxima</p><p>de pessoas que podem entrar nos ambientes, todas as janelas e por-</p><p>tas sempre abertas, troca de máscaras nos horários estipulados, álcool</p><p>em gel espalhado e usado constantemente, poucos brinquedos, apenas</p><p>os laváveis, preferência em usar espaços abertos. Enfim, diversos proto-</p><p>colos e muitas, enfatizo, muitas conversas com as crianças.</p><p>A partir da vivência em ser uma professora de educação básica an-</p><p>tes, durante e depois de uma pandemia, ficou evidente o quanto esta-</p><p>mos engessados dentro de um currículo prescritivo, o qual é limitante</p><p>por não abrir espaços para a individualidade, a cultura e os cursos his-</p><p>tóricos sociais a que estamos todos sujeitos. Bastou a escola precisar</p><p>fechar os portões, mudar de lugar e de acesso para percebermos que o</p><p>currículo que estamos acostumados não funcionou!</p><p>Ele falhou. A “matéria” curricular prevista estando distante da re-</p><p>lação entre professor e aluno ou entre alunos e seus pares, não fez senti-</p><p>do para a compreensão dos sujeitos do currículo. A relação atrás das te-</p><p>las somente começou a fazer sentido quando primeiramente ouvimos</p><p>as histórias que os alunos contavam de suas realidades, quando nós pro-</p><p>fessores nos aproximamos com assuntos da atualidade e quando coloca-</p><p>mos os princípios do conteúdo a serem aprendidos dentro da realidade</p><p>vivida por eles.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>175</p><p>É necessário que nos distanciemos dos conteúdos curriculares</p><p>que apenas categorizam conceitos e classificam ideias, abrindo assim</p><p>espaços de escrita que trazem as histórias de vida dos alunos e dos pro-</p><p>fessores, para que dessa forma haja conexão nos assuntos vividos com os</p><p>conteúdos aprendidos. É potente ter um currículo com capital narrativo,</p><p>pois favorece a justiça social, mitigando a exclusão por conter identida-</p><p>de social e cultura regional.</p><p>Referências</p><p>BALL, Stephen J. Global Education Inc. New Policy Networks and the neo-</p><p>liberal imaginary. London: Routledge, 2012.</p><p>BRITTO, Tatiana Feitosa. O livro didático, o mercado editorial e os sistemas</p><p>de ensino apostilados. Senado Federal. 2011. Disponível em: https://www12.</p><p>senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-</p><p>discussao/td-92-o-livro-didatico-o-mercado-editorial-e-os-sistemas-de-</p><p>ensino-apostilados. Acesso em: 12 dez. 2021.</p><p>FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez; 1991. p. 126.</p><p>GOODSON, Ivor. F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores</p><p>e o seu desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, António (org.). Vidas de</p><p>professores. Porto, 1992.</p><p>GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.</p><p>GOODSON, Ivor F. As políticas de Currículo e de Escolarização. Petropólis,</p><p>RJ: Vozes, 2008.</p><p>GOODSON, Ivor. F. Currículo, narrativa pessoal e futuro social. Tradução H.</p><p>C. Calado. Revisão da Tradução M. I. Petrucci-Rosa, J. P. de Queiroz. Campinas:</p><p>Editora da Unicamp, 2019.</p><p>GOODSON, Ivor. F. Aprendizagem, currículo e política de vida: Obras</p><p>selecionadas de Ivor Goodson. Tradução Daniela Barbosa Henriques. Petrópolis:</p><p>Vozes, 2020.</p><p>KLIEBARD, Herbert M. Burocracia e teoria de currículo. Currículo sem</p><p>Fronteiras, v. 11, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 2011. Disponível em: https://www.</p><p>https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-92-o-livro-didatico-o-mercado-editorial-e-os-sistemas-de-ensino-apostilados</p><p>https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-92-o-livro-didatico-o-mercado-editorial-e-os-sistemas-de-ensino-apostilados</p><p>https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-92-o-livro-didatico-o-mercado-editorial-e-os-sistemas-de-ensino-apostilados</p><p>https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-92-o-livro-didatico-o-mercado-editorial-e-os-sistemas-de-ensino-apostilados</p><p>https://www.curriculosemfronteiras.org/vol11iss2articles/kliebard-burocracia.pdf</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>176</p><p>curriculosemfronteiras.org/vol11iss2articles/kliebard-burocracia.pdf. Acesso</p><p>em: 4 out. 2021.</p><p>MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma – reformar o</p><p>pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.</p><p>PETRUCCI-ROSA, Maria Inês. Práticas Curriculares na formação profissional:</p><p>uma compreensão singular para as narrativas como forma de transgressão.</p><p>Linhas Críticas, v. 23, n. 52, 2018.</p><p>ROMANOWSKI, Joana Paulin. Protagonismo docente em tempos de pandemia.</p><p>Linhas críticas, 4 out. 2021. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.</p><p>php/linhascriticas/article/view/38846/31404. Acesso em: 30 out. 2021.</p><p>SANTOS, Bruna Mascarenhas; CORDEIRO, Maria Eduarda Coelho; SCHNEIDER,</p><p>Ione Jayce Ceola; CECCON, Roger Flores. Educação médica durante a pandemia</p><p>da covid-19: uma revisão de escopo. Revista Brasileira de Educação Médica,</p><p>44(1), 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/8bxyBynFtjnSg3nd</p><p>4rxtmhF/?lang=pt. Acesso em: 21 abril de 2022.</p><p>SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra:</p><p>Almedina, 2020.</p><p>SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o</p><p>desperdício da experiência. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.</p><p>UNESCO. Declaração universal da UNESCO sobre a diversidade</p><p>cultural. 2002. Disponível em: https://pt.unesco.org/fieldoffice/brasilia. Acesso</p><p>em: 30 out. 2021.</p><p>https://www.curriculosemfronteiras.org/vol11iss2articles/kliebard-burocracia.pdf</p><p>https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/38846/31404</p><p>https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/38846/31404</p><p>https://pt.unesco.org/fieldoffice/brasilia</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E</p><p>NARRATIVAS DOCENTES EM</p><p>CONTEXTOS IDENTITÁRIOS</p><p>Homem e mulher ideais nas políticas</p><p>de educação: o mito da “ideologia</p><p>do gênero” e seus impactos no</p><p>Plano Nacional de Educação e na</p><p>Base Nacional Comum Curricular</p><p>Laíssa Mayara da Silva Paz1</p><p>Introdução</p><p>Em seu discurso de posse em 3 de janeiro de 2019, Damares Alves,</p><p>nomeada para o Ministério da mulher, Família e Direitos Humanos, de-</p><p>clarou “Ninguém vai nos impedir de chamar nossas meninas de prince-</p><p>sas e nossos meninos de príncipes. No Brasil tem: meninos e meninas”</p><p>(FOLHA DE SÃO PAULO, 2019). Antes mesmo da posse, em entrevista,</p><p>a ministra esboçou um projeto de política pública no qual “todos os me-</p><p>ninos vão ter que entregar flores para as meninas nas escolas, para en-</p><p>tender que nós não somos iguais” (O GLOBO, 2018). As falas de Alves</p><p>sintetizam um ideário do que é ser homem e mulher que permeiam</p><p>os posicionamentos e políticas públicas vigentes.</p><p>No atual governo, as mulheres estão em foco, mas não como ci-</p><p>dadãs que necessitam de políticas públicas para reparar a desigual-</p><p>dade e violência históricas com as quais têm sofrido. O foco se dá</p><p>por serem um núcleo necessário para manter um ideal de nação sexista,</p><p>heteronormativo e religioso, com nuances de fundamentalismo católico</p><p>e neopentecostal.</p><p>1 Mestranda no Programa Multiunidades de Ensino de Ciências e Matemática da UNICAMP.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>180</p><p>Em nome da manutenção da instituição da família heteronor-</p><p>mativa, da reafirmação da crença de homens como detentores naturais</p><p>do poder de liderar e tomar decisões, e da naturalização das mulheres</p><p>como incubadoras ambulantes, dotadas de um dom natural de mater-</p><p>nar os filhos e a todos, os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres</p><p>têm sido especialmente atacados.</p><p>Entre 2019 e 2021, internacionalmente, o Brasil já recusou a se</p><p>comprometer com os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Além</p><p>disso, expôs sua ojeriza a palavra “gênero”, por entender que a mesma</p><p>remete a uma construção social, quando o que deve prevalecer é o bio-</p><p>lógico (CHADE, 2019). Em 2020, o então Ministro da Saúde Eduardo</p><p>Pazuello, cedeu às reclamações do presidente Bolsonaro, expostas</p><p>via Twitter, e exonerou um funcionário e uma funcionária do Ministério</p><p>após uma nota técnica assinada por ambos ser publicada. A nota tratava</p><p>do acesso à saúde sexual e reprodutiva no contexto da pandemia da co-</p><p>vid-19 e visava reduzir a gravidez não planejada e eliminar a violência</p><p>contra a mulher. Também afirmava que serviços como a atenção à vio-</p><p>lência sexual e o acesso à contracepção de emergência e ao aborto, para</p><p>os casos previstos em lei, deveriam ser considerados essenciais e inin-</p><p>terruptos (G1, 2020).</p><p>Ao mesmo tempo, o investimento em programas para a população</p><p>feminina até o momento foi o menor desde 2015 (BRANDALISE, 2021)</p><p>enquanto os indicadores de violência contra a mulher mostram um au-</p><p>mento de 50% do número de ocorrências durante a pandemia (MAZZI,</p><p>2020). Nesse caso, o problema se agrava tanto pelo claro desinteresse</p><p>do governo em fomentar políticas para a população feminina, como pela</p><p>sua inépcia em lidar com a pandemia da covid-19. No Brasil, a gestão</p><p>governamental da pandemia foi marcada por negacionismo científico,</p><p>testes com medicamentos sem qualquer precedente ético e científico</p><p>em pessoas infectadas, corrupção e atraso na compra de vacinas e insu-</p><p>mos para combater o vírus e tratar doentes.</p><p>A respeito da manutenção dos ideais</p><p>de masculino e feminino</p><p>que o governo tem se empenhado em manter, a educação é uma área</p><p>estratégica nesse sentido. Um marco na atual política antifeminista</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>181</p><p>foi a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,</p><p>Diversidade e Inclusão (Secadi), criada em 2004. Era competência desse</p><p>órgão desenvolver atividades de planejamento, orientação e coordena-</p><p>ção de forma articulada com os sistemas estaduais e municipais de ensi-</p><p>no e com as representações sociais (JAKIMIU, 2021).</p><p>A Secadi contemplava ações voltadas para a formação inicial</p><p>e continuada de professores, elaboração de materiais didáticos e paradi-</p><p>dáticos e iniciativas educativas para aumentar os índices de escolariza-</p><p>ção. O objetivo era implementar políticas voltadas para a alfabetização</p><p>de jovens e adultos, a educação do campo, a educação escolar indígena,</p><p>a educação em áreas remanescentes de quilombos, a educação nas rela-</p><p>ções étnico raciais, a educação especial e a educação em direitos huma-</p><p>nos. É neste último, principalmente, que se inserem questões relativas</p><p>às mulheres e equidade de gênero (JAKIMIU, 2021).</p><p>Embora seja um ícone do antifeminismo e conservadorismo,</p><p>o crescimento de discursos conservadores na política, principalmente</p><p>sobre os ditos papéis masculinos e femininos, antecedem Bolsonaro.</p><p>Os currículos prescritos, que dão diretrizes sobre o que deverá ser ensi-</p><p>nado nas escolas e até mesmo nas universidades e na formação de do-</p><p>centes, são um campo de disputa entre grupos sociais e um artefato im-</p><p>portante para compreender contextos políticos e sociais mais amplos.</p><p>Sendo a escola um espaço com grande influência na constituição de su-</p><p>jeitos, há enorme interesse em ditar como esses se constituirão de acor-</p><p>do com os valores hegemônicos de uma época. Tratando-se da mascu-</p><p>linidade e feminilidade tidas como “normais”, não só a escola investe</p><p>na constituição dessas identidades, a partir de suas práticas e lingua-</p><p>gens, mas também as famílias, as mídias, as igrejas e as leis (LOURO,</p><p>2000). É contraditório o papel da escola de incentivar a sexualidade</p><p>“normal”, ao mesmo tempo em que deve contê-la, pois ainda é recorren-</p><p>te o pensamento na sociedade de que falar sobre sexualidade na escola</p><p>incita jovens e crianças a fazerem sexo.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>182</p><p>Mapeando as origens do mito</p><p>No campo da Educação e, mais precisamente do currículo, o his-</p><p>tórico de elaboração de dois documentos, o Plano Nacional de Educação</p><p>(PNE) 2014-2024 e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), são car-</p><p>regados de embates entre setores sociais e políticos conservadores e pro-</p><p>gressistas. Seus processos de construção e de imposições sintetizam</p><p>as tensões existentes no campo político quando se trata de gênero.</p><p>Nesses contextos, destaca-se a ofensiva contra o que os setores con-</p><p>servadores-fundamentalistas denominam “Ideologia de gênero”, sen-</p><p>do o Movimento Escola Sem Partido um importante agente discursivo</p><p>em prol dessa causa.</p><p>Não há por parte dos propagadores da “ideologia de gênero”</p><p>uma preocupação em delimitar o que ela é. Essa falta de rigor teóri-</p><p>co parece servir justamente para rotular como “doutrinação” em favor</p><p>da mesma uma gama ampla de situações. Essa terminologia ignora dé-</p><p>cadas de pesquisa e produção de conhecimento no campo dos estudos</p><p>de gênero e sexualidades. Os grupos que a empregam têm justamente</p><p>o propósito de deslegitimar esses estudos científicos ao homogenei-</p><p>zar suas distintas vertentes (GALZERANO, 2020). Em sua visão, todas</p><p>convergem para o objetivo comum de extinguir a concepção biológica</p><p>de sexo, os papéis entendidos como naturais para homens e mulheres</p><p>(naturais porque decorrem da natureza, do biológico que é o sexo) e da</p><p>família (MORENO, 2016).</p><p>A literatura científica que investiga esse discurso conservador</p><p>sobre gênero aponta que as falas se apresentam sob quatro nuances</p><p>(MAIA; ROCHA, 2017 apud RAMOS, 2021):</p><p>1. Discurso heterossexista</p><p>2. Crítica aos estudos de gênero</p><p>3. Crítica a tentativa de alterar os papéis sociais de homens e</p><p>mulheres</p><p>4. Antifeminismo</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>183</p><p>O mito da Ideologia de gênero ao mesmo tempo em que acirra</p><p>a polarização política, necessita dela para se manter. Isso se dá porque</p><p>precisa de bolhas discursivas que blindem seus pressupostos e declara-</p><p>ções de qualquer controle de veracidade ou verossimilhança (MIGUEL,</p><p>2021). Para tal, ignora a produção científica sobre gênero e sexualida-</p><p>de, não estabelecendo qualquer diálogo ou paralelo com ela. Produzem</p><p>uma caricatura, um espantalho a respeito dessa área, de seus pesquisado-</p><p>res e divulgadores, e ataca esse espantalho. Os defensores da “Ideologia</p><p>de gênero” criam seus próprios termos e definições, impossibilitando</p><p>qualquer diálogo ou crítica. A partir disso, engendram um regime de ver-</p><p>dade que blinda qualquer questionamento externo, porque o que vale</p><p>em seu campo discursivo são as regras e os termos que eles mesmos</p><p>criaram. Além disso, os pressupostos dessa ideologia não se pautam</p><p>somente em ameaças de mudanças em estruturas políticas ou econô-</p><p>micas, mas sim em valores que fundam esses sujeitos (MIGUEL, 2021).</p><p>Isso dificulta ainda mais estabelecer diálogos e negociações, pois, para</p><p>esses indivíduos, significaria abrir mão do que pauta seu próprio modo</p><p>e sentido de existir.</p><p>Os primórdios da “Ideologia de gênero” encontram-se no final</p><p>da década de 1990 e início dos anos 2000 onde a Igreja Católica, princi-</p><p>palmente dentro do Conselho Pontifício para a Família, buscava cons-</p><p>truir uma doutrina contrária aos estudos de gênero (RAMOS, 2021).</p><p>O Documento de Aparecida, que traz conclusões da V Conferência Geral</p><p>do Episcopado Latino-americano e do Caribe (CELAM), evento com aber-</p><p>tura feita pelo Papa Bento XVI, trata de “diversos temas de interesse</p><p>de todos os católicos, como a família, as relações entre a Igreja e a socie-</p><p>dade globalizada, entre outros” (ANEC). O documento adverte que</p><p>Entre os pressupostos que enfraquecem e menospre-</p><p>zam a vida familiar encontramos a ideologia de gênero,</p><p>segundo a qual cada um pode escolher sua orientação</p><p>sexual, sem levar em consideração as diferenças dadas</p><p>pela natureza humana. Isto tem provocado modificações</p><p>legais que ferem gravemente a dignidade do matrimô-</p><p>nio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família</p><p>(CELAM, 2007, p. 8 apud CARVALHO, 2020).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>184</p><p>Apesar desse mito da “Ideologia de gênero” estar fortemente pau-</p><p>tado na fé, há um esforço em diminuir esse elemento e buscar trazer</p><p>à tona argumentos que recorrem à biologia para colocar papéis mas-</p><p>culinos e femininos como naturais (MIGUEL, 2021). Assim, a própria</p><p>configuração de família heterossexual seria natural e ir contra a mesma</p><p>e contra os padrões normativos de gênero e sexualidade é desafiar a pró-</p><p>pria natureza e, no caso do catolicismo, desafiar a própria criação divina.</p><p>O reconhecimento legal das uniões entre pessoas do mesmo sexo</p><p>na Argentina, em 2010, e no Brasil, em 2011, marcam o gatilho do pâni-</p><p>co moral sobre a “ideologia de gênero” em nosso país (MISKOLCI et al.,</p><p>2017). No mesmo mês desse importante acontecimento, o então depu-</p><p>tado federal Jair Bolsonaro esteve à frente do movimento contra o ma-</p><p>terial a ser distribuído nas escolas pelo programa Escola sem homo-</p><p>fobia. O programa visava combater a violência e discriminação contra</p><p>bissexuais, lésbicas, homossexuais, transexuais e travestis (MISKOLCI,</p><p>2018). Porém, foi durante 2014, nos debates sobre o novo Plano Nacional</p><p>de Educação, que o temor pela chamada “ideologia de gênero” se alas-</p><p>trou nacionalmente (MISKOLCI, 2018).</p><p>A partir disso, as atenções dos grupos conservadores e religiosos</p><p>se voltam ainda mais para as políticas de educação, de modo a vigiar</p><p>quais concepções sobre sexo, sexualidade e papéis sociais baseados</p><p>no sexo estavam sendo articuladas.</p><p>A problemática</p><p>da “Ideologia de Gênero” no Plano Nacional</p><p>de Educação</p><p>O Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela Lei nº</p><p>13.005/2014, consiste em documento decenal que “determina diretrizes,</p><p>metas e estratégias para a política educacional” (PNE EM MOVIMENTO,</p><p>2021). Essa lei também reitera o princípio de cooperação entre estados</p><p>e municípios, já presente na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes</p><p>e Bases (LDB), para alcançar as metas, estratégias e objetivos do Plano.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>185</p><p>Em 2001, foi aprovado o primeiro PNE, no qual aparecia a ideia</p><p>de um sistema nacional articulado de educação permeado pela inclu-</p><p>são, diversidade e igualdade (MORENO, 2016). Esse PNE destacava o au-</p><p>mento da escolaridade de mulheres como uma meta importante, por ter</p><p>grande impacto não só na vida das mesmas, mas no nível de escolarida-</p><p>de das próximas gerações. Havia também uma preocupação em relação</p><p>a aspectos de discussões sobre gênero nos livros didáticos, na formação</p><p>de professores e na permanência das mulheres nas instituições de en-</p><p>sino, considerando a maternidade e o trabalho doméstico (MORENO,</p><p>2016). Havia um caderno específico de “educação sexual” e o documento</p><p>como um todo sugeria que a temática de relações de gênero, assim como</p><p>a de orientação sexual, fosse trabalhada de forma transversal em todas</p><p>as disciplinas e articuladas com outros temas como saúde, ética, gênero</p><p>e pluralidade cultural (CARDOSO et al., 2019).</p><p>Esse documento, vigente até 2010, acabou sendo substituído so-</p><p>mente quatro anos depois, e não no ano seguinte, como o esperado, de-</p><p>vido a uma série de controvérsias sobre o que deveria constituir as metas</p><p>do Plano, principalmente nas questões de gênero e sexualidade.</p><p>Em 2010 foi convocada a Conferência Nacional de Educação</p><p>(Conae) pelo então presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva.</p><p>Precedida por conferências municipais, estaduais e intermunicipais</p><p>além de encontros e seminários temáticos que discutiam a educação</p><p>básica, a Conae teve participação de representantes do poder público</p><p>e da sociedade civil, incluindo movimentos sociais (MORENO, 2016).</p><p>Tendo como ponto de partida um Documento-referência, elaborado pela</p><p>Comissão Organizadora Nacional, composta por representantes da so-</p><p>ciedade civil e do poder público, as discussões e deliberações das confe-</p><p>rências municipais e estaduais foram sistematizadas no que foi chamado</p><p>de Documento-base (MORENO, 2016). O próprio Documento-referência</p><p>já continha alusões às questões de gênero e orientação sexual, enquan-</p><p>to no Documento-base o termo “gênero” aparecia 91 vezes relacionado</p><p>as questões de gênero, diversidade e orientação sexual (MORENO, 2016).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>186</p><p>As discussões e deliberações da Conae, na qual, novamente, hou-</p><p>ve participação civil, assim como nas etapas anteriores, resultaram</p><p>em um Documento-final. Esse documento contemplou gênero nos ei-</p><p>xos de acesso e permanência à escola, currículos, materiais didáticos,</p><p>formação docente, incentivo a pesquisas sobre o tema, política de reco-</p><p>nhecimento/identidade, formação para o trabalho e sistema de ensino.</p><p>Apesar das diversas metas e estratégias para os temas de gênero e sexu-</p><p>alidade contempladas no Documento-final, o poder Executivo encami-</p><p>nha o agora Projeto de Lei sob o nº 8.035/2010 à Câmara dos Deputados</p><p>para apreciação com apenas uma menção a gênero: “Implementar polí-</p><p>ticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação</p><p>à orientação sexual ou à identidade de gênero, criando rede de proteção</p><p>contra formas associadas de exclusão” (BRASIL, 2019).</p><p>Na Câmara dos Deputados foi instaurada uma Comissão Especial</p><p>para o PNE e entre maio e junho de 2011 várias propostas de emendas</p><p>foram apresentadas. Aqui houve um forte embate entre setores conser-</p><p>vadores/religiosos e os progressistas. Por um lado, faziam-se propos-</p><p>tas de emendas que pensavam na elaboração de Diretrizes Nacionais</p><p>Curriculares sobre Educação, Gênero e Sexualidade para a educação bá-</p><p>sica e formação inicial de professores; pensava-se no incentivo de pro-</p><p>dução acadêmica sobre esse tema e de ter como critério de seleção</p><p>de livros no Programa Nacional do Livro Didático Para o Ensino Médio</p><p>a abordagem dessas questões. Por outro, havia a luta contra o mito da</p><p>“ideologia de gênero” com base fortemente antifeminista.</p><p>Em apreciação no Senado, o texto sofreu ainda mais críticas e mo-</p><p>dificações. A diretriz sobre promoção da igualdade de gênero e orien-</p><p>tação sexual na educação foi substituída por uma que falava sobre pro-</p><p>mover equidade e não discriminação em geral, sem citar qualquer forma</p><p>específica de como essa discriminação possa vir a ocorrer, conforme</p><p>pode ser visto nos excertos abaixo.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>187</p><p>Quadro 1 – Comparativo entre o documento Substitutivo da Câmara dos Deputados</p><p>e o Substitutivo do Senado para o PL nº 8.035/2010</p><p>Substitutivo da Câmara</p><p>dos Deputados ao documento</p><p>do Executivo</p><p>Substitutivo do Senado Federal</p><p>ao Substitutivo da Câmara</p><p>III – Superação das desigualdades</p><p>educacionais, com ênfase na pro-</p><p>moção da igualdade racial, regional,</p><p>de gênero e de orientação sexual.</p><p>III – Superação das desigualdades</p><p>educacionais, com ênfase na pro-</p><p>moção da cidadania e na erradicação</p><p>de todas as formas de discriminação.</p><p>Fonte: a autora</p><p>O texto final do Senado não faz qualquer menção a gênero e sexu-</p><p>alidade. Mesmo outros termos que poderiam remeter às questões de gê-</p><p>nero têm baixa ocorrência. “Violência” aparece cinco vezes; “precon-</p><p>ceito”, quatro vezes; “mulher”, uma vez; enquanto “família” aparece</p><p>dezoito vezes (RAMALHO et al., 2019).</p><p>O Projeto com as censuras foi aprovado na Câmara dos Deputados</p><p>e sancionado como Lei nº 13.005 pela presidenta Dilma Rousseff em ju-</p><p>nho de 2014.</p><p>O crescimento do discurso sobre “ideologia de gênero”, juntamen-</p><p>te com o contexto eleitoral da época foram o terreno propício para o de-</p><p>sastre. Já em sua campanha eleitoral, em 2010, ano em que se iniciaram</p><p>as discussões sobre o novo PNE, Dilma firmou compromissos com gru-</p><p>pos religiosos. Em sua “Carta aberta ao povo de Deus”, publicada em seu</p><p>site, a ex-presidente garantiu que em seu mandato o Poder Executivo</p><p>não encaminharia nenhuma proposta de lei que envolvesse o aborto,</p><p>a união civil entre pessoas do mesmo sexo e a liberdade religiosa. O ano</p><p>de aprovação do PNE, 2014, foi um ano eleitoral. Buscando uma reelei-</p><p>ção em meio a uma crise de popularidade com fortes tons de machismo</p><p>e misoginia, esperava-se que Dilma evitaria o combate direto com cor-</p><p>rentes com força eleitoral, como os grupos religiosos.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>188</p><p>“Ideologia de gênero”, Movimento Escola Sem Partido</p><p>e Base Nacional Comum Curricular</p><p>Em 2014, em meio ao destaque que o mito da “Ideologia de gêne-</p><p>ro” ganhou com a repercussão das discussões sobre o PNE, um impor-</p><p>tante interlocutor dessa agenda conservadora-fundamentalista emerge.</p><p>O Movimento Escola Sem Partido (MESP) foi fundamental nas discussões</p><p>posteriores à promulgação do PNE nos planos estaduais e municipais</p><p>de educação. Nesse contexto, incorporou o discurso antifeminista e an-</p><p>ti-LGBTQIA+ em sua “caça-as-bruxas” contra o que denominou “dou-</p><p>trinação ideológica nas escolas”, sendo os professores o principal alvo.</p><p>Fundado em 2004 por iniciativa do procurador paulista Miguel</p><p>Nagib, a motivação inicial para o Escola sem partido, segundo seu fun-</p><p>dador, foi sua tentativa de denunciar um professor de história de sua</p><p>filha que comparou Che Guevara a São Francisco de Assis. Ao não encon-</p><p>trar canais para fazê-lo e nem apoio de outros responsáveis por alunos,</p><p>Nagib inspira-se em movimentos estadunidenses e funda o Movimento</p><p>Escola Sem partido, com o intuito de acolher denúncias de alunos e res-</p><p>ponsáveis que julgassem ter tido uma experiência de “doutrinação mar-</p><p>xista” em salas de aula (ESCOLA SEM PARTIDO,2019).</p><p>A leitura equivocada e fantasiosa da obra de Antonio Gramsci ali-</p><p>mentou a ameaça da “doutrina marxista” recorrente em discursos de gru-</p><p>pos da direita no espectro político. Gramsci, a partir de sua compreen-</p><p>são de que a transformação social nas sociedades capitalistas ocidentais</p><p>não deveria ser restrita somente à conquista do Estado, formulou a ideia</p><p>de que o combate pela hegemonia inclui a disputa por projetos e visões</p><p>de mundo em diferentes espaços da sociedade civil (MIGUEL, 2016).</p><p>Na interpretação de grupos da direita, essa concepção de luta po-</p><p>lítica representa uma estratégia maquiavélica que objetiva, por meio</p><p>da manipulação das mentes ou “lavagem cerebral”, obliterar os consen-</p><p>sos que permitem o atual funcionamento da sociedade.</p><p>O MESP se aproveitou do discurso ascendente de combate a cha-</p><p>mada “ideologia de gênero” para ganhar espaço e aliados. Ao fundir</p><p>a denúncia da doutrinação marxista com a oposição à “ideologia de gê-</p><p>nero”, ganhou aliados com relevância na atuação política e uma grande</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>189</p><p>e imediata repercussão popular (MIGUEL, 2016). Em 2014 o MESP ga-</p><p>nhou o apoio político das bancadas legislativas do agronegócio, da defe-</p><p>sa das armas e das igrejas, conhecidas como “bancadas boi-bala-bíblia”.</p><p>Protocolou mais de 150 Projetos de Lei em todo o país, incluindo dis-</p><p>positivos que visavam interferir na LDB/1996, combater a doutrinação</p><p>ideológica e proibir as discussões de gênero nas escolas.</p><p>Em 2020, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de uma</p><p>lei estadual baseada no MESP a colocou como inconstitucional, dando</p><p>fim às diversas iniciativas a nível federal, estadual e municipal que bus-</p><p>cavam implementar legalmente o projeto ao ensino (AMORIM et al.,</p><p>2020). Com isso, o próprio criador do projeto decidiu por encerrá-lo</p><p>(ESCOLA SEM PARTIDO, 2021), mas, ainda assim, o estrago já estava fei-</p><p>to. A BNCC também sofreu influências do MESP na medida em que seto-</p><p>res empresariais, religiosos e conservadores acrescentaram suas convic-</p><p>ções e crenças no documento norteador dos currículos da escola básica.</p><p>Na versão final da BNCC do Ensino Médio há 5 ocorrências do ter-</p><p>mo “gênero”. Somente uma delas, na área de Ciências Humanas e Sociais</p><p>Aplicadas fala sobre os e as estudantes reconhecerem contextos geográ-</p><p>ficos e históricos a partir da compreensão de diferentes noções de tempo</p><p>e espaço, e da diversidade religiosa, de tradições étnicas, de gênero, etc.</p><p>As demais referem-se a gênero textual e literário. Há somente uma men-</p><p>ção a “mulher”, quando fala da possibilidade de estudantes criarem</p><p>núcleos de estudos, sendo “mulher” um tema possível. Porém, dentro</p><p>das áreas de conhecimento não há nenhuma menção.</p><p>Na última versão da BNCC do ensino fundamental, “gênero” apa-</p><p>rece 67 vezes e todas elas dizem respeito a gênero textual e literário.</p><p>“Mulher” aparece 7 vezes e somente na área de História. Uma das ocor-</p><p>rências refere-se a proposta de discutir causas de violência a populações</p><p>marginalizadas. As demais tratam de reconhecer como a mulher era vis-</p><p>ta no passado, como na antiga Grécia e na Europa da Idade Média. Essa</p><p>aparição das mulheres somente nessa área e dessa forma remete à ideia</p><p>de que o machismo, o sexismo e a ausência de direitos para as mulheres</p><p>são coisas do passado, quando se fazem ainda muito presentes e atuais.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>190</p><p>Considerações finais</p><p>Com os dados de violência contra a mulher não mostrando me-</p><p>lhoras, combater qualquer menção sobre gênero, reiterar uma identi-</p><p>dade feminina submissa e cercear possibilidades de discutir a situação</p><p>das mulheres no Brasil, fazem da misoginia não só realidade nas rela-</p><p>ções sociais, mas um valor que pauta as políticas do atual governo.</p><p>Deveríamos estar nos encaminhando para discutir formas de, cada</p><p>vez mais, as mulheres terem direitos assegurados para não serem ex-</p><p>ploradas, violentadas, objetificadas e mortas. Parece que andamos para</p><p>trás e nossos esforços se direcionam para que não nos tirem os direitos</p><p>já conquistados e, assim, não fazemos avanços.</p><p>Uma escola que impede qualquer discussão sobre gênero e sexu-</p><p>alidade, que não problematiza os modelos hegemônicos de identidades</p><p>masculinas e femininas e pune quem tenta fazê-lo, ensina aos seus estu-</p><p>dantes que a violência contra as mulheres é natural e inevitável. É como</p><p>se ensinássemos que não existem outras possibilidades de ser.</p><p>Discutir gênero e sexualidade na escola em nada se relaciona</p><p>com sexualizar crianças e jovens ou ensinar práticas sexuais aos mesmos.</p><p>Tem a ver com encontrar sua própria maneira de ser e estar no mundo,</p><p>sem se pautar em estereótipos e podar a si para se encaixar neles; tem a</p><p>ver com respeitar as formas que outras pessoas encontram para expres-</p><p>sar sua identidade e serem felizes; com entender que o sexo, a orienta-</p><p>ção sexual e o gênero de uma pessoa não são critérios para desqualifi-</p><p>cá-la e tomá-la como alguém indigno de respeito. Também é uma forma</p><p>de garantir direitos sexuais e reprodutivos, principalmente das meninas,</p><p>que são as mais penalizadas por gravidezes não planejadas e as que mais</p><p>têm prejuízos em sua vida escolar, acadêmica e profissional, mesmo</p><p>com filhos planejados. Uma educação para equidade de gênero e sobre</p><p>sexualidade também protege jovens e crianças de assédio e abuso sexu-</p><p>al, alertando para o que configura tais coisas e mostrando como procu-</p><p>rar ajuda.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>191</p><p>Pensar em uma educação livre de estereótipos sobre sexo, que dis-</p><p>cuta pressupostos machistas que pautam as relações sociais no presen-</p><p>te e aponte novos caminhos para construir tais relações se apoiando</p><p>em princípios de equidade, perpassa pensar além de discussões em dis-</p><p>ciplinas ou momentos pontuais. Os ideais de equidade de gênero deve-</p><p>riam permear todo o processo de ensino e as relações escolares.</p><p>Referências</p><p>AMORIM, Felipe; OLIVEIRA, Marcelo. STF decide que lei inspirada no Escola</p><p>Sem Partido é inconstitucional. Uol Notícias. 21 ago. 2020. Disponível em:</p><p>https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/08/21/stf-tem-</p><p>maioria-contra-lei-de-alagoas-inspirada-no-escola-sem-partido.htm. Acesso</p><p>em: 20 out. 2021.</p><p>ANEC. Documento de Aparecida – 2007. ANEC (Associação Nacional de</p><p>Educação Católica do Brasil). Disponível em: https://anec.org.br/biblioteca/</p><p>documento-de-aparecida-2007/. Acesso em: 15 out. 2021.</p><p>BRANDALISE, Camila. Gastos com políticas para mulheres tem menor patamar</p><p>desde 2015. Uol Notícias, 23 jul. 2021. Disponível em: https://www.uol.com.</p><p>br/universa/noticias/redacao/2021/07/23/orcamento-e-acoes-em-politicas-</p><p>para-mulheres-durante-a-pandemia.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 4 nov.</p><p>2021.</p><p>BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei do Plano Nacional de</p><p>Educação 8035/2010. Aprova o Plano Nacional de Educação para o decênio</p><p>2011-2020 e dá outras providências. PL 8035/2010. Disponível em: https://</p><p>www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=831421&fi</p><p>lename=Tramitacao-PL+8035/2010. Acesso em: 31 out. 2021.</p><p>CARDOSO, Lívia de R. et al. Gênero em políticas públicas de educação e currículo:</p><p>do direito às invenções. Revista e-curriculum, v. 17, n. 4, p. 1458-1479, 2019.</p><p>Disponível em: https://revistas.pucsp.br/curriculum/article/view/44651. Acesso</p><p>em: 22 out. 2021.</p><p>CARVALHO, Daniel; VALENTE, Rubens. Acabou a doutrinação de crianças</p><p>e adolescentes, diz Damares em posse. Folha de São Paulo, 2 jan. 2019.</p><p>Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/01/acabou-a-</p><p>https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/08/21/stf-tem-maioria-contra-lei-de-alagoas-inspirada-no-escola-sem-partido.htm</p><p>https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/08/21/stf-tem-maioria-contra-lei-de-alagoas-inspirada-no-escola-sem-partido.htm</p><p>https://anec.org.br/biblioteca/documento-de-aparecida-2007/</p><p>https://anec.org.br/biblioteca/documento-de-aparecida-2007/</p><p>https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/07/23/orcamento-e-acoes-em-politicas-para-mulheres-durante-a-pandemia.htm?cmpid=copiaecola</p><p>https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/07/23/orcamento-e-acoes-em-politicas-para-mulheres-durante-a-pandemia.htm?cmpid=copiaecola</p><p>https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/07/23/orcamento-e-acoes-em-politicas-para-mulheres-durante-a-pandemia.htm?cmpid=copiaecola</p><p>https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=831421&filename=Tramitacao-PL+8035/2010</p><p>https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=831421&filename=Tramitacao-PL+8035/2010</p><p>https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=831421&filename=Tramitacao-PL+8035/2010</p><p>https://revistas.pucsp.br/curriculum/article/view/44651</p><p>https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/01/acabou-a-doutrinacao-de-criancas-e-adolescentes-diz-damares-em-posse.shtml</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>192</p><p>doutrinacao-de-criancas-e-adolescentes-diz-damares-em-posse.shtml. Acesso</p><p>em: 26 out. 2021.</p><p>CARVALHO, Fabiana A. Para além do “meninas vestem rosa, meninos vestem</p><p>azul”: As conjunturas e as ideologias nos novos rumos da educação para os</p><p>gêneros e as sexualidades. Educação (UFSM), v. 45, p. 1-30, jan./dez. 2020.</p><p>Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/39468/</p><p>html. Acesso em: 30 out. 2020.</p><p>CHADE, Jamil. Brasil veta termo “gênero” em resoluções da ONU e cria mal-</p><p>estar. Uol Notícias, jun. 2019. Disponível em: https://jamilchade.blogosfera.</p><p>uol.com.br/2019/06/27/brasil-veta-termo-genero-em-resolucoes-da-onu-e-</p><p>cria-mal-estar/?cmpid=copiaecola. Acesso em: 26 out. 2021.</p><p>Escola Sem Partido. Disponível em: https://www.escolasempartido.org/.</p><p>Acesso em: 20 out. 2021.</p><p>GALZERANO, Luciana Sardenha. A ofensiva antigênero na sociedade brasileira.</p><p>Trabalho Necessário, v. 19, n. 38, p. 82-104, 2020.</p><p>JAKIMIU, Vanessa C. L. Extinção da Secadi: a negação do direito à educação.</p><p>Revista de Estudos em Educação e Diversidade, v. 2-3, p. 115-137, 2021.</p><p>LOURO, Guacira L. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira L. (org.). O</p><p>corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.</p><p>p. 07-34.</p><p>MAZZI, Carolina. Violência doméstica dispara na quarentena: como reconhecer,</p><p>proteger e denunciar. O Globo, 1 maio 2020. Disponível em: https://oglobo.</p><p>globo.com/saude/coronavirus-servico/violencia-domestica-dispara-na-</p><p>quarentena-como-reconhecer-proteger-denunciar-24405355. Acesso em: 4</p><p>nov. 2021.</p><p>MIGUEL, Luis Felipe. Da “doutrinação marxista” à “ideologia de gênero” – Escola</p><p>sem Partido e as leis da mordação no parlamento brasileiro. Revista Direito e</p><p>Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, p. 590-621, 2016.</p><p>MIGUEL, Luis Felipe. O mito da “ideologia de gênero” no discurso da extrema</p><p>direita brasileira. 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Revista Sociedade e</p><p>https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/01/acabou-a-doutrinacao-de-criancas-e-adolescentes-diz-damares-em-posse.shtml</p><p>https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/39468/html</p><p>https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/39468/html</p><p>https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/06/27/brasil-veta-termo-genero-em-resolucoes-da-onu-e-cria-mal-estar/?cmpid=copiaecola</p><p>https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/06/27/brasil-veta-termo-genero-em-resolucoes-da-onu-e-cria-mal-estar/?cmpid=copiaecola</p><p>https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/06/27/brasil-veta-termo-genero-em-resolucoes-da-onu-e-cria-mal-estar/?cmpid=copiaecola</p><p>https://www.escolasempartido.org/</p><p>https://oglobo.globo.com/saude/coronavirus-servico/violencia-domestica-dispara-na-quarentena-como-reconhecer-proteger-denunciar-24405355</p><p>https://oglobo.globo.com/saude/coronavirus-servico/violencia-domestica-dispara-na-quarentena-como-reconhecer-proteger-denunciar-24405355</p><p>https://oglobo.globo.com/saude/coronavirus-servico/violencia-domestica-dispara-na-quarentena-como-reconhecer-proteger-denunciar-24405355</p><p>https://www.scielo.br/j/cpa/a/CsFcz5vm5bLShxPN3LHDYkk/</p><p>https://www.scielo.br/j/cpa/a/CsFcz5vm5bLShxPN3LHDYkk/</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>193</p><p>Estado, v. 32, n. 3, p. 725-747, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/</p><p>se/a/Ns5kmRtMcSXDY78j9L8fMFL/abstract/?lang=pt. Acesso em: 29 out. 2021.</p><p>MISKOLCI, Richard. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do</p><p>combate à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu, v. 53, 2018. Disponível em:</p><p>https://www.scielo.br/j/cpa/a/7Yd3hfBsD9rH3NW3YqPpzvD/?lang=pt. Acesso</p><p>em: 29 out. 2021.</p><p>MORENO, Meire E. Feminismos e antifeminismos na política brasileira:</p><p>“Ideologia de gênero” no Plano Nacional de Educação 2014. 147p. Tese</p><p>(Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Londrina,</p><p>Londrina, 2016. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.uel.br/</p><p>document/?code=vtls000206286. Acesso em: 8 out. 2021.</p><p>Pazuello exonera coordenadores de área dedicada à saúde sexual de mulheres</p><p>e homens. Portal de Notícias G1, 5 maio 2020. Disponível: https://g1.globo.</p><p>com/politica/noticia/2020/06/05/pazuello-exonera-coordenadores-de-area-</p><p>dedicada-a-saude-sexual-de-mulheres-e-homens.ghtml. Acesso em: 26 out.</p><p>2021.</p><p>PNE em Movimento. Disponível em: https://pne.mec.gov.br/. Acesso em: 4</p><p>nov. 2021.</p><p>PORTINARI, Natália. “Homens e mulheres não são iguais” diz futura ministra</p><p>dos Direitos Humanos. O Globo, dez. 2018. Disponível em: https://oglobo.</p><p>globo.com/brasil/homens-mulheres-nao-sao-iguais-diz-futura-ministra-</p><p>de-direitos-humanos-23285553#:~:text=Todos%20os%20meninos%20</p><p>v%C3%A3o%20ter,porque%20s%C3%A3o%20iguais%20aos%20meninos.</p><p>Acesso em: 26 out. 2021.</p><p>RAMALHO, Carla C.; VIEIRA, José J. Do Projeto de Lei nº 8.035/2010 à Lei nº</p><p>13.005/2014: a inviabilização da temática gênero. TEXTURA – Revista de</p><p>Educação e Letras, v. 21, n. 48, 2019.</p><p>RAMOS, Edimauro. Tecnologias antigênero e educação: por epistemologias que</p><p>rompam com a “ideologia de gênero”. Cadernos da Pedagogia (UFScar), v. 15,</p><p>p. 163-173, 2021. Disponível em: http://www.cadernosdapedagogia.ufscar.br/</p><p>index.php/cp/article/view/1442. Acesso em: 21 out. 2021.</p><p>https://www.scielo.br/j/se/a/Ns5kmRtMcSXDY78j9L8fMFL/abstract/?lang=pt</p><p>https://www.scielo.br/j/se/a/Ns5kmRtMcSXDY78j9L8fMFL/abstract/?lang=pt</p><p>https://www.scielo.br/j/cpa/a/7Yd3hfBsD9rH3NW3YqPpzvD/?lang=pt</p><p>http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000206286</p><p>http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000206286</p><p>https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/pazuello-exonera-coordenadores-de-area-dedicada-a-saude-sexual-de-mulheres-e-homens.ghtml</p><p>https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/pazuello-exonera-coordenadores-de-area-dedicada-a-saude-sexual-de-mulheres-e-homens.ghtml</p><p>https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/pazuello-exonera-coordenadores-de-area-dedicada-a-saude-sexual-de-mulheres-e-homens.ghtml</p><p>https://pne.mec.gov.br/</p><p>https://oglobo.globo.com/brasil/homens-mulheres-nao-sao-iguais-diz-futura-ministra-de-direitos-humanos-23285553#:~:text=Todos os meninos v%C3%A3o ter,porque s%C3%A3o iguais aos meninos</p><p>https://oglobo.globo.com/brasil/homens-mulheres-nao-sao-iguais-diz-futura-ministra-de-direitos-humanos-23285553#:~:text=Todos os meninos v%C3%A3o ter,porque s%C3%A3o iguais aos meninos</p><p>https://oglobo.globo.com/brasil/homens-mulheres-nao-sao-iguais-diz-futura-ministra-de-direitos-humanos-23285553#:~:text=Todos os meninos v%C3%A3o ter,porque s%C3%A3o iguais aos meninos</p><p>https://oglobo.globo.com/brasil/homens-mulheres-nao-sao-iguais-diz-futura-ministra-de-direitos-humanos-23285553#:~:text=Todos os meninos v%C3%A3o ter,porque s%C3%A3o iguais aos meninos</p><p>http://www.cadernosdapedagogia.ufscar.br/index.php/cp/article/view/1442</p><p>http://www.cadernosdapedagogia.ufscar.br/index.php/cp/article/view/1442</p><p>História e cultura afro-</p><p>brasileira nos quadrinhos</p><p>Naeldson Expedito Alves da Silva1</p><p>Introdução</p><p>A população brasileira é composta, em sua maioria, por pessoas</p><p>pardas ou pretas, conforme divulgado pelo IBGE (2019). Ainda, segundo</p><p>o Instituto (2019), em 2018, elas representavam 55,8% da população.</p><p>O Instituto também identificou que enquanto 27,9% da população bran-</p><p>ca sofre com a falta de pelo menos um serviço de saneamento, esse per-</p><p>centual sobe para 44,5% quando se trata da população negra. As pessoas</p><p>pretas ou pardas, de todos os grupos etários, mostraram-se as maiores</p><p>vítimas de violência, com as taxas de homicídios entre elas, sempre</p><p>superando a de pessoas brancas. A taxa entre jovens pretos ou pardos</p><p>de 15 a 29 anos atingiu a marca de 98,5 homicídios por 100 mil jovens,</p><p>enquanto entre os jovens brancos do mesmo grupo etário a taxa foi de</p><p>34 por 100 mil.</p><p>Mesmo sendo maioria no país, a população negra também apre-</p><p>sentou situações de desigualdade em relação ao acesso à educação.</p><p>Jovens negros entre 18 e 24 anos representam apenas 18,3% de es-</p><p>tudantes universitários que frequentavam a academia ou já haviam</p><p>se formado, enquanto 36,1% eram referentes a jovens brancos na mes-</p><p>1 Administrador no Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal Rural</p><p>do Semi-Árido (UFERSA) e doutorando no Programa Multiunidades de Ensino de Ciências</p><p>e Matemática da UNICAMP.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>196</p><p>ma faixa etária (IBGE, 2019). Essas desigualdades também foram iden-</p><p>tificadas quanto aos ingressantes no nível superior com 35,4% para</p><p>negros e 53,2% para brancos.</p><p>Ainda em relação às desigualdades por cor ou raça identificadas</p><p>pelo IBGE, é importante destacar que no ensino médio, os estudan-</p><p>tes brancos também representam a maioria entre os jovens entre 20 e</p><p>22 anos que concluíram os estudos, sendo 15% a mais que a popula-</p><p>ção negra.</p><p>Os dados e informações apresentados até aqui nos ajudam a com-</p><p>preender, mesmo que parcialmente, o quanto a população negra ain-</p><p>da vive, sob muitos aspectos, à margem da sociedade, mesmo com as</p><p>conquistas já obtidas, principalmente devido às lutas dos movimentos</p><p>e representações sociais.</p><p>As desigualdades sociais e raciais estão presentes em praticamen-</p><p>te todos os lugares e espaços, inclusive os escolares e em seus currículos</p><p>e torna-se necessário quebrar o silenciamento das histórias dos negros</p><p>como forma de se combater a desigualdade social e racial. Como afirma</p><p>Teixeira (2020), é necessário romper com a tradição eurocêntrica pre-</p><p>sente nos currículos de História.</p><p>É nesse contexto que a Lei nº 10.639/03 torna obrigatório o Ensino</p><p>da História e Cultura Afro-brasileira com o intuito de proporcionar</p><p>o aprofundamento da compreensão da história da África e dos africanos,</p><p>a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na for-</p><p>mação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro</p><p>nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.</p><p>Backes (2013) identificou, em uma de suas pesquisas, que na educa-</p><p>ção básica brasileira existem pelo menos dois tipos de ressignificação</p><p>de currículo. A primeira ressignificação refere-se à luta para que se reco-</p><p>nheça que a educação atende aos anseios da população branca. Segundo</p><p>Backes (2013), essa ressignificação identifica que no currículo da educa-</p><p>ção básica torna-se habitual a presença de estereótipos sobre pessoas</p><p>negras e que essas mesmas pessoas são inferiorizadas e discriminadas</p><p>por esse currículo. A primeira ressignificação, também, define que o</p><p>currículo é organizado e desenvolvido a partir da cultura hegemônica</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>197</p><p>que, na nossa sociedade, refere-se à valorização da cultura das pessoas</p><p>brancas, ao mesmo tempo em que influencia que outras pessoas que não</p><p>fazem parte dessa cultura assumam a mesma, levando a uma homoge-</p><p>neização cultural.</p><p>O segundo tipo de ressignificação, exposta por Backes (2013), está</p><p>relacionada com experiências positivas na educação básica, como a de-</p><p>monstração de quanto as ações afirmativas e experiências antirracistas</p><p>são importantes para o levantamento de discussões sobre racismo, dis-</p><p>criminações e relações culturais, e identifica a necessidade da imple-</p><p>mentação de um currículo que não se restrinja à cultura hegemônica.</p><p>A partir daqui, abordaremos, em um primeiro momento, o que</p><p>determina a Lei nº 10.639/03 e suas contribuições contra o racismo</p><p>no espaço escolar. Prosseguiremos analisando as possibilidades oferta-</p><p>das pelo Programa Nacional do Livro e Material Didático – PNLD, mais</p><p>especificamente, o PNLD Literário de 2018. O terceiro ponto é a análise</p><p>de obras com histórias em quadrinhos que abordam assuntos relacio-</p><p>nados à vida, luta e resistência de pessoas negras. Esses livros tratam</p><p>de temas como o Quilombo dos Palmares e a resistências nas senzalas,</p><p>nas obras Cumbe e Angola Janga, ambas de Marcelo D’Salete, e contam</p><p>a história da escritora negra Maria Carolina de Jesus, na obra Carolina,</p><p>de Sirlene Barbosa e João Pinheiro.</p><p>A seguir, buscamos compreender o que determina a Lei nº 10.639/03,</p><p>que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.</p><p>Lei nº 10.639/03 e as Diretrizes Curriculares Nacionais</p><p>para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para</p><p>o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana</p><p>O Ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira passou</p><p>a compor a parte obrigatória do currículo da Educação Básica. Com a</p><p>Lei nº 10.639/03, que altera a Lei nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases</p><p>da Educação Nacional – estabelece a obrigatoriedade tanto no ensino</p><p>fundamental quanto no ensino médio e prevê como conteúdo progra-</p><p>mático o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros</p><p>no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da socieda-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>198</p><p>de nacional. Nesse sentido, intenciona resgatar a contribuição do povo</p><p>negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História</p><p>do Brasil. Segundo Gomes (2008, p. 79), o principal objetivo da lei é pos-</p><p>sibilitar a “correção de desigualdades” e “a construção de oportunidades</p><p>iguais para os grupos sociais e etnicorraciais com um comprovado his-</p><p>tórico de exclusão”.</p><p>A Lei, publicada em 03 de janeiro de 2003, passou a vigorar a par-</p><p>tir dessa data. Determina, em seu parágrafo segundo, que os conteúdos</p><p>referentes à história e cultura afro-brasileira sejam ministrados em todo</p><p>o currículo escolar, principalmente nas áreas de Educação Artística e de</p><p>Literatura e Histórias Brasileiras.</p><p>Tolentino (2018) enxerga na Lei nº 10.639/03 uma porta que abriu</p><p>caminhos capazes de estruturar uma política educacional incentivado-</p><p>ra de práticas pedagógicas que têm a finalidade de combater o racismo</p><p>no espaço escolar. Santana e Moraes (2009) também apontam a Lei como</p><p>uma abertura de caminhos capaz de proporcionar ao país a oportunida-</p><p>de de corrigir danos materiais, físicos e psicológicos resultantes do ra-</p><p>cismo e de outras formas de discriminação relacionadas ao racismo.</p><p>No ano de 2004 foram apresentadas as Diretrizes Curriculares</p><p>Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino</p><p>de História e Cultura Afro-brasileira e Africana em um documento orga-</p><p>nizado pelo Ministério da Educação e pela Secretaria Especial de Políticas</p><p>de Promoção da Igualdade Racial. A apresentação do documento destaca</p><p>que a Lei nº 10.639/03 “resgata historicamente a contribuição dos ne-</p><p>gros na construção e formação da sociedade brasileira” e defende que as</p><p>diretrizes são o principal instrumento para transpor as barreiras que ne-</p><p>gam à população negra o desenvolvimento pleno.</p><p>Destaca-se um trecho da Resolução nº 01/2004 que institui</p><p>as diretrizes e no qual se afirma que o objetivo do Ensino de História</p><p>e Cultura Afro-Brasileira e Africana é, entre outras coisas, reconheci-</p><p>mento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasilei-</p><p>ra, ao lado das indígenas, europeias, asiáticas.</p><p>É importante reconhecermos que esse é um passo importante ten-</p><p>do em vista que a História</p><p>do Brasil é contada com o nosso país sendo</p><p>considerado fruto da miscigenação de três diferentes raças, porém, ape-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>199</p><p>nas a branca tem o seu protagonismo destacado. Além disso, é válido</p><p>considerarmos o desaparecimento parcial das culturas africanas e in-</p><p>dígenas em decorrência da colonização europeia, ou seja, da escravidão</p><p>e exploração praticada pelo homem branco.</p><p>Em 2008, entra em vigor a Lei nº 11.645/08 que reafirma a obri-</p><p>gatoriedade da inclusão da temática história e cultura afro-brasileira</p><p>e promove a inclusão da história e cultura indígena no currículo oficial</p><p>da educação básica.</p><p>No nosso próximo ponto, por considerarmos fundamental para</p><p>a compreensão do nosso texto, falaremos um pouco sobre o PNLD e o</p><p>PNLD literário.</p><p>O Programa Nacional de Livro e Material Didático e o PNLD</p><p>literário</p><p>O PNLD, Programa Nacional do Livro e Material Didático, res-</p><p>ponsável por avaliar e disponibilizar obras didáticas, pedagógicas</p><p>e literárias, é fruto da unificação de dois programas responsáveis pe-</p><p>las ações de aquisição e distribuição de livros, ocorrida em 2017, devido</p><p>ao Decreto nº 9.099/2017. O primeiro era o antigo PNLD, denominado</p><p>Programa Nacional do Livro Didático e criado em 1985, e o segundo era o</p><p>PNBE, Programa Nacional Biblioteca da Escola, desenvolvido desde 1997</p><p>e que tinha como finalidade promover o acesso à cultura e o incentivo</p><p>à leitura nos alunos e professores da educação básica, através da distri-</p><p>buição de obras de literatura, de pesquisa e de referência. O programa</p><p>era dividido em três ações: PNBE Literário, PNBE Periódicos e o PNBE</p><p>do Professor.</p><p>Como dito anteriormente, o PNLD é o programa destinado a adqui-</p><p>rir e distribuir materiais para as escolas públicas brasileiras. Uma parte</p><p>desse programa, denominado PNLD Literário, é responsável pela en-</p><p>trega de obras literárias. As ações do programa têm o objetivo de com-</p><p>por o acervo literário das escolas e contribuir para as práticas das sa-</p><p>las de aula. É um programa de grande importância, que tem colaborado</p><p>com os espaços escolares ao realizar a seleção e distribuição de obras</p><p>que contribuem para discussão de temas que costumam ficar à margem</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>200</p><p>no currículo etnocêntrico, como o racismo, a desigualdade social, entre</p><p>outros. Meneses (2019) destaca que no etnocentrismo uma sociedade</p><p>julga outros povos e culturas, estabelecendo como padrão a sua própria</p><p>cultura. Segundo o autor, o preconceito etnocentrista é capaz de fazer</p><p>com que grupos rejeitem, oprimam, dominem e até eliminem grupos</p><p>considerados inferiores ou ameaças.</p><p>Braga (2020, p. 167) destaca a importância do PNLD literário para</p><p>a chegada de novos materiais nas escolas.</p><p>Houve um grande avanço na chegada de livros na escola</p><p>por programas como o PNLD literário, além de muitas</p><p>obras atuais da historiografia que podem dar o apoio teó-</p><p>rico para o professor desenvolver um projeto pedagógico</p><p>com novas linguagens cujo uso possa ser e que seja sig-</p><p>nificativo e transformador. Vimos, assim, como é impor-</p><p>tante a utilização das narrativas gráficas para aproximar</p><p>o professor do universo da juventude do aluno e partir</p><p>de seus saberes discentes, mas, como apontamos, em sua</p><p>práxis educacional é fundamental, principalmente, agir</p><p>como um mediador e agente intelectual, pois apenas as-</p><p>sim poder-se-á angariar uma verdadeira transformação</p><p>social por meio da educação.</p><p>Considerando o que foi constatado nessa pesquisa sobre as diver-</p><p>sas formas de desigualdades vigentes em nossa sociedade, identificamos</p><p>algumas obras selecionadas pelo PNLD literário de 2018 que abordam</p><p>questões sociais e étnico-raciais. Tratam-se de três histórias em quadri-</p><p>nhos que apresentam recursos e elementos importantes para a contri-</p><p>buição e suporte do ensino da história e cultura afro-brasileira e africa-</p><p>na, abordando temas como o quilombo dos Palmares e vida cotidiana,</p><p>a luta e a resistência nas senzalas presentes nas obras Cumbe e Angola</p><p>Janga, de Marcelo D’Salete, e a história da escritora negra Maria Carolina</p><p>de Jesus, na obra Carolina, de Sirlene Barbosa e João Pinheiro.</p><p>As obras escolhidas eram as únicas que atendiam a dois critérios</p><p>estabelecidos para análise: ser uma história em quadrinhos e abor-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>201</p><p>dar a temática racial. Outras obras, como a Autobiografia do poeta es-</p><p>cravo e Mayombe, tratam de questões raciais, mas não são histórias</p><p>em quadrinhos. Haviam, também, outras histórias em quadrinhos, como</p><p>Dom Quixote HQ, Macunaíma em quadrinhos e Odisseia em quadrinhos,</p><p>porém a temática racial não era o foco desse material.</p><p>O próximo passo é a análise das histórias em quadrinhos selecio-</p><p>nadas pelo PNLD literário 2018, que abordam temas estabelecidos na Lei</p><p>nº 10.639/03.</p><p>Obras selecionadas</p><p>Cumbe</p><p>Cumbe é uma obra de história em quadrinhos, publicada origi-</p><p>nalmente em 2014, pelo escritor e professor Marcelo D’Salete, na qual</p><p>são apresentadas histórias distintas sobre a vida cotidiana e as formas</p><p>de resistência do povo negro contra a vida de escravidão.</p><p>Figura 1 – Capa de Cumbe, edição nacional</p><p>Fonte: https://veneta.com.br/categoria-produto/historia-em-quadrinhos/</p><p>quadrinhos-nacionais/.</p><p>https://veneta.com.br/categoria-produto/historia-em-quadrinhos/quadrinhos-nacionais/</p><p>https://veneta.com.br/categoria-produto/historia-em-quadrinhos/quadrinhos-nacionais/</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>202</p><p>A obra, que aborda a luta das pessoas negras em condição de es-</p><p>cravidão, já foi publicada em diversos países, como Áustria, Estados</p><p>Unidos, França e Portugal. Em 2018, Cumbe foi premiada com o Eisner</p><p>Awards como melhor publicação estrangeira nos EUA.</p><p>Segundo explica Rosa (2018), para alguns países americanos</p><p>a palavra cumbe significa quilombo, porém, “nas línguas congo/ango-</p><p>la tem também os sentidos de sol, luz, fogo e força trançada ao po-</p><p>der dos reis e à forma de elaborar e compreender a vida e a história”</p><p>(ROSA, 2018, p. 5).</p><p>Em Cumbe, a voz principal pertence ao subalterno, ao oprimi-</p><p>do, enfim, ao escravo. É o cotidiano e a vida dos escravos que é nar-</p><p>rada e exposta. Em muitos momentos não temos textos, mas imagens</p><p>que falam muito mais que palavras.</p><p>Através das imagens podemos enxergar a escravidão das pessoas</p><p>negras e o trabalho dos mesmos na monocultura da cana-de-açúcar.</p><p>A violência dos fazendeiros e donos de engenhos também é destaca-</p><p>da, em alguns momentos apenas através de imagens nas quais vemos</p><p>escravos marcados pelos chicotes e açoites, em outro, por ameaças</p><p>e ações de castigo e punição.</p><p>A obra é composta por quatro contos. O primeiro é Calunga</p><p>e conta a história de Valu que deseja fugir com sua amada, uma escrava</p><p>que trabalha na casa grande. A mesma decide não fugir e é morta pelo</p><p>próprio protagonista. Sumidouro, o segundo, aborda a história de Calu</p><p>que tem um filho do seu dono e que é jogado no poço da casa pela espo-</p><p>sa do senhor. Ela denuncia o ocorrido ao padre e por isso será castigada</p><p>pelo seu dono, o que só não tem consequências piores para ela por-</p><p>que, em um descuido, ela o mata. Cumbe é o conto que intitula a obra</p><p>e apresenta o planejamento de uma rebelião por parte dos escravos</p><p>que é reprimida após a traição da companheira do líder da rebelião.</p><p>Malungo, conta a história de um quilombo que vai até uma fazenda</p><p>para libertar os escravizados de lá, motivados por um escravo fugiti-</p><p>vo que deseja vingança contra o dono da fazenda que havia estuprado</p><p>e assassinado sua irmã.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>203</p><p>Nas histórias observam-se vários vocábulos de origem africa-</p><p>na utilizados para compor as narrativas. Esses temos são explicados</p><p>no Glossário da obra. Aspectos das crenças africanas também estão</p><p>presentes, seja em esculturas apresentadas na obra, seja em bebi-</p><p>das produzidas com plantas medicinais e utilizadas em práticas ritu-</p><p>ais. São identificadas</p><p>ainda nas obras o uso de armas africanas como</p><p>a Zagaia, que é uma lança africana, marcas corporais de iniciação e per-</p><p>tencimento e seres mitológicos pertencentes à cultura africana.</p><p>É importante destacar a prática de silenciamento do homem ne-</p><p>gro pelo homem branco, exposta na obra. Existem as ações de ame-</p><p>aça para que os escravos não apresentem nenhum comportamento</p><p>que possam prejudicar os seus donos.</p><p>Mesmo nos dias atuais, podemos observar que o silenciamento</p><p>que ocorreu entre os séculos XVI e XIX ainda se faz presente no nosso</p><p>país, com narrativas opostas em torno da escravidão. O racismo estru-</p><p>tural existe e ainda é muito forte no nosso país e no mundo. Almeida</p><p>(2021) explica que o racismo está vinculado à ordem social e condicio-</p><p>nado a uma estrutura social existente. Sendo assim, se uma sociedade</p><p>é racista, então o racismo estrutural está presente na mesma.</p><p>Hooks (2017) explica que a organização do currículo tende a focar</p><p>na homogeneização das culturas, na inferiorização dos negros, na dis-</p><p>criminação implícita e na falta de posicionamento sobre as práticas</p><p>racistas. Cumbe é uma obra que expõe o sofrimento e a luta dos pri-</p><p>meiros negros no Brasil e leva para a sala de aula a denúncia de que</p><p>as hierarquias entre as culturas existentes não devem ser legitimadas</p><p>como um processo natural, mas consequência de anos de opressão.</p><p>A obra apresenta, sobretudo, o protagonismo das pessoas negras</p><p>no período de escravidão em seus processos de luta e resistência e de</p><p>organização em busca de liberdade. Histórias de protagonismo que fo-</p><p>ram apagadas pela hegemonia cultural branca e deixadas de lado pelo</p><p>ensino de história tradicional.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>204</p><p>Angola Janga</p><p>Em Angola Janga é narrada a história de luta do quilombo</p><p>de Palmares e a morte de Zumbi líder do quilombo. Trata-se de uma</p><p>obra com mais de 400 páginas publicada em 2017, também por Marcelo</p><p>D’Salete. Angola Janga significa “pequena Angola” na língua banto</p><p>quimbundo e era o nome utilizado para se referir a Palmares.</p><p>Figura 2 – Capa de Angola Janga</p><p>Fonte: https://veneta.com.br/categoria-produto/historia-em-quadrinhos/</p><p>quadrinhos-nacionais/.</p><p>A exemplo de Cumbe, em Angola Janga são trazidas diversas refe-</p><p>rências linguísticas e culturais dos povos escravizados e que fazem refe-</p><p>rência ao continente africano. O livro também traz um glossário com o</p><p>significado e a explicação para essas referências.</p><p>O livro é dividido em doze capítulos, estruturado por meio de uma</p><p>narrativa que toma por base um recorte temático na história, organiza-</p><p>do a partir de uma cronologia linear. Há uma apresentação intitulada</p><p>Mocambos e Engenhos trazendo a origem de Quilombo de Palmares.</p><p>https://veneta.com.br/categoria-produto/historia-em-quadrinhos/quadrinhos-nacionais/</p><p>https://veneta.com.br/categoria-produto/historia-em-quadrinhos/quadrinhos-nacionais/</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>205</p><p>Há também um posfácio denominado “picadas e sonhos”, no qual</p><p>D’Salete explica como foi sua pesquisa para produção da obra. Há ainda</p><p>uma cronologia da Guerra de Palmares, entre outras informações.</p><p>A história apresenta uma Palmares já estabelecida e tendo como</p><p>uma das principais lideranças, Zumbi. Ao mesmo tempo em que expõe</p><p>as disputas entre negros e brancos, Angola Janga também nos mostra</p><p>que existem disputas internas pelo poder no próprio Quilombo.</p><p>A obra expõe a igreja católica como uma das responsáveis pela</p><p>hegemonia ao mesmo tempo em que apresenta pessoas em condição</p><p>de escravidão que permanecem fiéis às suas crenças, agindo em oposição</p><p>ao que deseja a igreja, e retrata a violência física e o sofrimento ao qual</p><p>do povo africano escravizado foi submetido, com imagens de persona-</p><p>gens sendo castigados e açoitados. Braga (2020) afirma que esse caso</p><p>de violência, exposto na obra, e que representa muitos outros ocorri-</p><p>dos, de fato, naquele período, simboliza a naturalização da violência</p><p>que as pessoas negras sofreram e ainda sofrem nas gerações posterio-</p><p>res. Ou seja, a violência sofrida pelas pessoas em condição de escravi-</p><p>dão reforça o processo de marginalização que os negros sofrem, mesmo,</p><p>nos dias atuais. Ainda, segundo Braga (2020), o racismo, que persiste</p><p>nos dias atuais, é consequência do que aconteceu nos países sob o domí-</p><p>nio português e, consequentemente, no Brasil, e da narrativa histórica</p><p>criada e estabelecida pelos grupos dominantes.</p><p>Ao final da obra, D’Salete (2017) parece apontar para as conse-</p><p>quências da escravidão negra no Brasil ao mostrar uma personagem</p><p>que era escrava vivendo nas ruas dos dias atuais, indicando que o racis-</p><p>mo estrutural, hoje existente e persistente, é fruto de uma hegemonia</p><p>etnocêntrica que obviamente se recusa a recontar a história, ou quan-</p><p>do a faz, produz sempre uma narrativa de determinada forma a manter</p><p>o discurso oficial da cultura dominante.</p><p>É por isso que trabalhar a História e a Cultura Afro-brasileira, utili-</p><p>zando Histórias em Quadrinhos como Cumbe e Angola Janga, que narram</p><p>a história dos africanos e suas lutas no Brasil são também importantes</p><p>para uma sociedade mais consciente. O resgate dessas histórias é extre-</p><p>mamente importante, como considera Munanga (2005, p. 16):</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>206</p><p>O resgate da memória coletiva e da história da comuni-</p><p>dade negra não interessa apenas aos alunos de ascen-</p><p>dência negra. Interessa também aos alunos de outras</p><p>ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao</p><p>receber uma educação envenenada pelos preconceitos,</p><p>eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas.</p><p>Além disso, essa memória não pertence somente aos ne-</p><p>gros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura</p><p>da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de to-</p><p>dos os segmentos étnicos que, apesar das condições de-</p><p>siguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada um</p><p>de seu modo na formação da riqueza econômica e social</p><p>e da identidade nacional.</p><p>Essas obras não são importantes apenas para os estudantes ne-</p><p>gros, mas para todos os estudantes que conheceram apenas a versão</p><p>“branca” da história, a versão de quem detinha o poder. Um currículo</p><p>que possa atuar em concordância com a Lei nº 10.939/03 oferece impor-</p><p>tante contribuição para uma sociedade menos racista e preconceituosa.</p><p>Torna-se relevante considerar o que dizem Petrucci-Rosa, Varsone</p><p>e Ramos (2008) sobre a existência do contexto de influência no qual</p><p>as políticas são iniciadas e são construídos os discursos políticos,</p><p>com a atuação de distintos agentes, como órgãos governamentais e gru-</p><p>pos privados. Há ainda o contexto que é formado por documentos oficiais</p><p>que tentam designar o que é política para a escola, nos quais são produ-</p><p>zidos textos que são resultado de disputas e negociações de grupos e,</p><p>por fim, o contexto da prática, no qual as produções dos contextos an-</p><p>teriores são reinterpretados e ressignificados, modificando os sentidos</p><p>iniciais.</p><p>Desse modo, mesmo que um material seja produzido especifica-</p><p>mente para atender a um determinado currículo formal, ou seja, apenas</p><p>adequado a esse mesmo currículo, devemos considerar que esse material</p><p>pode ser submetido a diferentes interpretações na prática escolar.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>207</p><p>Carolina</p><p>O livro Carolina é de autoria da professora Sirlene Barbosa e do</p><p>artista visual João Pinheiro. Publicada originalmente em 2016, a obra</p><p>é uma biografia Carolina Maria de Jesus, escritora, poetisa e compositora</p><p>brasileira que ficou bastante conhecida com a publicação do seu livro</p><p>Quarto de despejo, no qual ela narra sua vida na favela. Também foi uma</p><p>das primeiras escritoras negras do Brasil.</p><p>Figura 3 – capa de Carolina</p><p>Fonte: https://veneta.com.br/categoria-produto/historia-em-quadrinhos/</p><p>quadrinhos-nacionais/.</p><p>A obra retrata a vida de Carolina, que vive em São Paulo e trabalha</p><p>como catadora de lixo reciclável para se manter e cuidar de seus três</p><p>filhos</p><p>autores.</p><p>Ainda em relação à presente obra, nessa tão rica oportunidade</p><p>de congregar textos, convidamos também importantes pesquisadora/es</p><p>brasileira/s que comungam conosco perspectivas curriculares e narra-</p><p>tivas. São colegas oriundas/os de diferentes instituições universitárias</p><p>comprometidas com a formação docente e com o compromisso político</p><p>de uma educação pública, de qualidade e socialmente referenciada.</p><p>Em relação à organização da presente obra, a coletânea se divide</p><p>em cinco blocos que derivam do tema Práticas Curriculares e Narrativas</p><p>Docentes, que focalizam: I – em contextos decoloniais; II – em contextos</p><p>pandêmicos; III – em contextos identitários; IV – em contextos de apren-</p><p>dizagem e comunidades disciplinares e, V – em contextos de educação</p><p>ambiental.</p><p>No primeiro bloco, Práticas Curriculares e Narrativas Docentes</p><p>em contextos decoloniais, temos quatro artigos que abordam de dife-</p><p>rentes pontos de vista discussões acerca de possibilidades de se pensar</p><p>a educação a partir daquilo que não está instituído, que não é hegemô-</p><p>nico, mas que emerge com consistência e potência para trilhar caminhos</p><p>na direção de um futuro de justiça social. Assim, dialogamos, nessa se-</p><p>ção, com Goodson e Inês Petrucci, conhecendo a história de vida de um</p><p>professor da etnia Waurá; com Eduardo E. Mantovani e suas reflexões</p><p>sobre as teorizações decoloniais; com Gabriela Furlan Carcaioli (UFSC),</p><p>Antony J. Corrêa (UNESP) e Natacha E. Janata (UFSC), que trazem ex-</p><p>periências singulares a partir de escolas do campo e, Ana Gabriela de S.</p><p>Seal, que discute como o conhecimento escolar pode ser mobilizado</p><p>na Educação do Campo.</p><p>No segundo bloco, Práticas Curriculares e Narrativas Docentes</p><p>em contextos pandêmicos, Henrique C. Carvalho nos apresenta uma to-</p><p>cante e dolorida reflexão sobre a crise do coronavírus no Brasil e apon-</p><p>ta para a potência do currículo narrativo; Franklin Kaic Dutra-Pereira</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>24</p><p>(UFRB), Saimonton Tinôco (UFPB) e Michele Bortolai (UFRB) nos fazem</p><p>conhecer uma experiência significativa de estágio supervisionado no en-</p><p>sino de química via ensino remoto neste período e Heloisa D. Bossalon</p><p>nos conta sobre os desafios da Educação Infantil em meio ao terreno</p><p>pantanoso configurado pelo cenário da pandemia.</p><p>No terceiro bloco, Práticas Curriculares e Narrativas Docentes</p><p>em contextos identitários, um grupo muito interessante de trabalhos</p><p>se apresenta com as contribuições de Laissa Paz, ao discutir a falácia</p><p>em torno da ideia de “ideologia do gênero” e seus impactos em políti-</p><p>cas curriculares; de Naeldson E. A. da Silva que nos mostra importan-</p><p>tes reflexões acerca da presença de elementos da cultura afro-brasileira</p><p>em histórias em quadrinhos e, Maira M. Trentin, que traz uma história</p><p>de vida mobilizadora de uma professora vegana vinculada a um instituto</p><p>de biologia.</p><p>No quarto bloco, Práticas Curriculares e Narrativas Docentes</p><p>em contextos de aprendizagem e comunidades disciplinares, Paola F.</p><p>G. M. de Oliveira discute a emergência da disciplina escolar Robótica</p><p>Educacional; João Henrique C. Moura apresenta por meio de histó-</p><p>rias de vida, a origem da licenciatura em Física num instituto federal;</p><p>Giovana de Oliveira escuta e adensa a história de vida de uma profes-</p><p>sora de Matemática; Elisabete A. Rampini faz relações entre diferentes</p><p>perspectivas pedagógicas com destaque para a pedagogia alternativa</p><p>de Goodson; Gelindo M. Alves debate a dinâmica da política curricular</p><p>em torno da Educação Financeira, e Lucas M. de Azevedo expõe um inte-</p><p>ressante debate acerca da institucionalização do ensino religioso a par-</p><p>tir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).</p><p>E, por fim, no último bloco, Práticas Curriculares e Narrativas</p><p>Docentes em contextos de educação ambiental, temos mais uma vez</p><p>a presença preciosa de convidada/os. Aline M. Dornelles (FURG) e Rafaela</p><p>E. Günzel (FURG) apresentam retratos narrativos que delineiam senti-</p><p>dos ambientais, e Marlécio Maknamara (UFPB) nos traz uma instigante</p><p>discussão sobre indícios de constituição de educadores/as ambientais.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>25</p><p>Narrativas sistêmicas e micronarrativas permeiam as discussões,</p><p>evidenciando o agenciamento docente e trazendo as subjetividades</p><p>inerentes às práticas curriculares. São capítulos sensíveis à experiência</p><p>profissional, focalizando a docência como atividade intelectual especia-</p><p>lizada e necessária nestes tempos de desvalorização do conhecimento.</p><p>O livro que aqui se apresenta pretende não só deixar um regis-</p><p>tro do momento atual vivenciado a partir dos estudos apresentados,</p><p>mas também se propõe a entrelaçar-se às perspectivas e expectativas</p><p>dos leitores que a eles tenham acesso de forma a contribuir com a am-</p><p>pliação destes debates. Convidamos os interessados nas temáticas apre-</p><p>sentadas a construir conosco os caminhos que nos levam à justiça social</p><p>tomando como leme a área da educação, por meio da leitura da obra</p><p>e da produção de novas compreensões. Desejamos boa leitura a todas</p><p>e todos.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E</p><p>NARRATIVAS DOCENTES EM</p><p>CONTEXTOS DECOLONIAIS</p><p>Currículo como narrativa:</p><p>cruzar fronteiras para uma</p><p>educação descolonizada1</p><p>Ivor F. Goodson2</p><p>M. Inês Petrucci-Rosa3</p><p>Introdução</p><p>Vivemos em tempos incomuns e inimagináveis para a maioria</p><p>da população mundial. Socialmente isolados devido à crise sanitária</p><p>causada pela pandemia de covid-19, também estamos geograficamente</p><p>imobilizados, dentro de nossas fronteiras, nossas casas e nossos muros.</p><p>Apesar deste cenário dramático, nunca foi tão valioso considerar que a</p><p>educação deve atravessar fronteiras.</p><p>Desta forma, Goodson e Schostak objetivam o conceito de currícu-</p><p>los prefigurativos como um processo educacional baseado na solidarie-</p><p>dade, compaixão e acordos coletivos. Torna-se essencial agora reapren-</p><p>der como trabalhar juntos para compartilhar ideias, e como se organizar</p><p>1 Esse capítulo é a tradução do original em inglês: Curriculum as narrative: crossing borders for</p><p>a decolonized education, publicado na Revista Trayectorias Humanas Transcontinentales,</p><p>disponível em: www.unilim.fr/trahs, acessado em 25 de maio de 2022.</p><p>2 Professor of Learning Theory International Research Professor, University of Tallinn,</p><p>Estonia. Senior Research Associate, Guerrand-Hermès Foundation for Peace. E-mail: ivor-</p><p>goodson@gmail.com.</p><p>3 Professora Associada no Departamento de Ensino e Práticas Culturais da Faculdade de</p><p>Educação da Unicamp.</p><p>mailto:ivorgoodson@gmail.com</p><p>mailto:ivorgoodson@gmail.com</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>30</p><p>juntos para criar recursos que alimentem todos os nossos propósitos,</p><p>e não apenas os propósitos de uma classe rica em propriedade. Crianças,</p><p>jovens e professores precisam ver como as organizações sociais são os</p><p>blocos de construção de um governo que age de acordo com os interes-</p><p>ses expressos de todos. Para isso, todos eles precisam reaprender como</p><p>ter uma voz livre e igualitária com os outros (GOODSON; SCHOSTAK,</p><p>2020).</p><p>Para este propósito de reaprender formas comuns de existência</p><p>social e cultural, a experiência de atravessar fronteiras soa significativa</p><p>e com muitas potencialidades. Neste artigo, discutimos o sentido de cru-</p><p>zar fronteiras antes de uma educação descolonizada que resulta em um</p><p>currículo descolonizado também.</p><p>O que significa atravessar fronteiras no contexto das políti-</p><p>cas curriculares?</p><p>Cruzar fronteiras de diferentes maneiras dá uma postura pedagó-</p><p>gica muito informada de onde viemos, e isso é avaliar conscientemen-</p><p>te de onde iremos e o que isso significa. Entretanto, levanta a questão</p><p>do que desafia nossa lealdade, a compreensão do mundo, e como pode-</p><p>mos permanecer fiéis à lealdade anterior nesta jornada. Como manter-</p><p>-nos fiéis a princípios que são preciosos para nós? Quais são os custos</p><p>e benefícios de cruzar fronteiras?</p><p>É um erro pensar que esta é uma rua de mão única, ou que se tra-</p><p>ta apenas de uma questão de perdas.</p><p>que moram com ela na favela do Canindé, onde ela escreve à noite</p><p>suas histórias.</p><p>Carolina expõe diversos problemas sociais pelos quais passam pes-</p><p>soas negras ou pobres, como a falta de uma moradia digna e o abandono</p><p>pelo poder público, a fome, explicitada na história em muitos momen-</p><p>tos, a violência doméstica e contra a mulher, entre tantos outros.</p><p>https://veneta.com.br/categoria-produto/historia-em-quadrinhos/quadrinhos-nacionais/</p><p>https://veneta.com.br/categoria-produto/historia-em-quadrinhos/quadrinhos-nacionais/</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>208</p><p>A história em quadrinhos conta a história de Carolina na década</p><p>de 50, com algumas páginas mostrando a mesma em 1977, seu último</p><p>ano de vida, enfatizando, porém, o período de 1955 a 1960, que é o ano</p><p>em que ela publica seu livro mais famoso, Quarto de Despejo, no qual</p><p>ela narra sua vida na favela.</p><p>O livro é dividido em três partes e, na segunda, intitulada, escrevi-</p><p>vências, é detalhado como o jornalista Audálio Dantas conhece Carolina</p><p>e fica interessado em ver o livro que a escritora está escrevendo. Em 1960</p><p>o livro é publicado e relata o cotidiano da vida na favela de uma forma</p><p>sensível, profunda e realista.</p><p>É importante destacar que o termo que intitula o segundo capí-</p><p>tulo, escrevivências, foi criado pela escritora negra Conceição Evaristo</p><p>e refere-se ao que a autora escreve sobre seu cotidiano e sobre suas ex-</p><p>periências de vida. Evaristo (2018) considera que toda história é inven-</p><p>tada quando contada, e isso ocorre porque entre o fato ocorrido e o fato</p><p>narrado existem espaços nos quais surgem as invenções.</p><p>O sucesso do livro Quarto de Despejo deu condições a Carolina</p><p>de sair com os seus três filhos da favela do Canindé e morar em um bair-</p><p>ro de classe média onde ela continuou a conviver com o preconceito</p><p>por ser uma mulher negra e vinda da favela.</p><p>Carolina publicou outros livros, entre eles, Casa de alvenaria, po-</p><p>rém, nenhum fez tanto sucesso quanto o primeiro.</p><p>Ela faleceu em 13 de fevereiro de 1977.</p><p>Carolina é uma obra que pode ser trabalhada na área de litera-</p><p>tura, mas nada impede que as discussões entrem nas áreas de socio-</p><p>logia e história e que o uso da obra leve a diálogos mais aprofundados</p><p>sobre o racismo estrutural e as desigualdades sociais. O fato de contar</p><p>uma história mais atual pode fazer com que mais jovens, negros ou não,</p><p>se identifiquem com a protagonista.</p><p>Pensando na obra que retrata a vida de Carolina me vem à memó-</p><p>ria o que diz Werneck (2016, p. 8):</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>209</p><p>A mulher negra tem muitas formas de estar no mundo</p><p>(todos têm). Mas um contexto desfavorável, um cená-</p><p>rio de discriminações, as estatísticas que demonstram</p><p>pobreza, baixa escolaridade, subempregos, violações</p><p>de direitos humanos, traduzem histórias de dor. Quem</p><p>não vê?</p><p>Apesar de Werneck (2016) não estar falando especificamente</p><p>da história de Carolina, a sua afirmação pode ser aplicada a um número</p><p>incontáveis de mulheres negras que vivem ou viveram em nossa socie-</p><p>dade. A obra Carolina, mesmo trazendo um recorte da vida da escrito-</p><p>ra de Quarto de despejo, consegue traduzir toda dor e dificuldades pe-</p><p>las quais a mesma passou e expõe várias situações de vulnerabilidade</p><p>nas quais as pessoas negras e/ou pobres vivem.</p><p>Ao analisarmos e refletirmos sobre o que trazem as três obras, po-</p><p>demos ressaltar um posicionamento importante de Goodson (2018, p.</p><p>96), que afirma:</p><p>O que está prescrito não é necessariamente o que é apre-</p><p>endido, e o que se planeja não é necessariamente o que</p><p>acontece. Todavia, como já afirmamos, isso não implica</p><p>que devamos abandonar nossos estudos sobre a prescri-</p><p>ção como formulação social, e adotar, de forma única, o</p><p>prático. Pelo contrário, devemos estudar a construção</p><p>social do currículo tanto em nível de prescrição como em</p><p>nível de interação.</p><p>As histórias em quadrinhos expostas nesse trabalho, provavel-</p><p>mente, só foram selecionadas no PNLD literário e podem ser trabalha-</p><p>das em sala de aula em virtude da Lei nº 10.639/03. Isso evidencia a im-</p><p>portância do currículo prescrito. O alerta que Goodson (2018) faz sobre</p><p>o currículo prescrito não é com o intuito que o abandonemos, mas que</p><p>possamos compreender que no contexto da prática aquilo que foi plane-</p><p>jado pode não ocorrer da forma esperada. Desse modo, podemos pensar</p><p>que, por um lado, fatores culturais e sociais, como o racismo, podem</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>210</p><p>ser reproduzidos nas práticas de sala de aula, e, por outro lado, pode</p><p>haver a ressignificação do currículo prescrito, com um maior aprofun-</p><p>damento dos temas propostos e considerando o contexto social no qual</p><p>aquele espaço escola está inserido.</p><p>Considerações Finais: Redescobrir e retornar às nossas</p><p>origens</p><p>Em resumo, as obras analisadas levam os leitores a repensarem</p><p>as histórias e as condições de vida das pessoas negras no Brasil. Os acon-</p><p>tecimentos apresentados trazem detalhes desde o período de escravidão,</p><p>que durou mais de três séculos no Brasil, até os dias atuais, com situa-</p><p>ções de pobreza, desigualdade social, intimidação e racismo. Entretanto,</p><p>as HQs também possibilitam uma maior compreensão da cultura e da</p><p>história afro-brasileira, apresentando protagonistas reais e humaniza-</p><p>dos, que não se mostram passivos ou submissos diante das adversidades</p><p>e processos de dominação que os afligem, mas levantam-se e lutam.</p><p>As obras Cumbe, Angola Janga e Carolina demonstram, pela pro-</p><p>fundidade e seriedade com que trabalham os temas relacionados</p><p>à História e Cultura Afro-Brasileira, que podem contribuir efetivamente</p><p>para uma discussão mais ampla sobre a vida e a história das pessoas</p><p>negras no Brasil, trazendo elementos que não são abordados de maneira</p><p>tão detalhada, geralmente, nas obras e no ensino tradicionais. A insti-</p><p>tucionalização de novas políticas curriculares que demonstrem preocu-</p><p>pações com as minorias, os oprimidos e os esquecidos são de extrema</p><p>importância. Porém, para que as mesmas possam funcionar a contento,</p><p>precisam dar voz aos silenciados e redescobrir as histórias esquecidas.</p><p>Sendo assim, torna-se necessário que todos os brasileiros, de as-</p><p>cendência negra ou não, possam conhecer mais do que é narrado pela</p><p>história tradicional e hegemônica e se reconhecerem nas histórias</p><p>que estão sendo recontadas. Nesse contexto, políticas como as apresen-</p><p>tadas nas Leis nos 10.639/03 e 11.645/08 podem contribuir para tornar</p><p>os espaços escolares menos intimidadores e desiguais para população</p><p>negra e permitir que essas mudanças se reflitam na sociedade.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>211</p><p>Paulo Freire (2013) faz um relato importante sobre o sentimento</p><p>de pertencimento e isso se dá em sua primeira viagem à África:</p><p>Meu primeiro contato com África não se deu, porém,</p><p>com a Guiné-Bissau, mas com a Tanzânia, com a qual</p><p>me sinto, por vários motivos, estreitamente ligado. Faço</p><p>esta referência para sublinhar quão importante foi, para</p><p>mim, pisar pela primeira vez em chão africano e sentir-</p><p>-me nele como quem voltava e não como quem chegava</p><p>(FREIRE, 2013, p. 9).</p><p>Paulo Freire, mesmo não sendo um homem negro, se sentiu per-</p><p>tencente àquele continente no qual nunca havia estado anteriormen-</p><p>te. Então, seguindo o exemplo de Paulo Freire, espero que a população</p><p>negra brasileira, na qual esse autor se inclui, possa ter o mesmo senti-</p><p>mento de pertencimento e de reencontro com essa terra, na qual nossos</p><p>ancestrais fizeram história.</p><p>Referências</p><p>ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2021.</p><p>BACKES, José Licínio. Os estudos étnico-raciais e a Ressignificação do currículo</p><p>da Educação básica. Revista Contrapontos, Itajaí, v. 13, n. 1, p. 15-23, jan./abr.</p><p>2013.</p><p>BARBOSA, Sirlene; PINHEIRO, João. Carolina. São Paulo: Veneta 2018.</p><p>BRAGA, Evandro José. Leitura da HQ angola janga no ensino de história: uma</p><p>reflexão sobre o racismo e a escravidão. Dissertação (Mestrado)</p><p>Porque é também, de certa for-</p><p>ma, uma fuga para coisas melhores e não se deve negar isso. Portanto,</p><p>há dois lados desta mobilidade social formal: por um lado, alguém perde</p><p>algo e, por outro, parte de alguém, sem dúvida, quer fazer isso, parte</p><p>de alguém quer abraçar novas realidades. Portanto, seria errado consi-</p><p>derar que a viagem é prejudicial a alguém. A verdadeira questão é como,</p><p>de certa forma, nos agarramos à nossa cabeça, agarrando-nos ao que</p><p>somos quando viajamos.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>31</p><p>Neste contexto, há dois tipos de fronteiras em jogo: uma delas é a</p><p>diferença entre as referências locais e cosmopolitas. Algumas pessoas</p><p>viajam para longe de seu ambiente local e desenvolvem o conhecimento</p><p>cosmopolita. Tornar-se cosmopolita significa trazer uma visão diferen-</p><p>te e mais estratificada do que é ser local. Além disso, há uma diferença</p><p>entre viver uma vida e ser capaz de teorizar esta compreensão das ex-</p><p>periências. Assim, o cruzamento de fronteiras entre local e cosmopoli-</p><p>ta, ou as interseções entre uma vida vivida experimentalmente e uma</p><p>vida teorizada, são os deveres primários da travessia de fronteiras que os</p><p>professores precisam pensar. Essencialmente, os professores embarcam</p><p>nesta jornada com os alunos, porque, considerando a natureza do co-</p><p>nhecimento escolar, eles tentam fazer com que os alunos tenham um co-</p><p>nhecimento mais abstrato, descontextualizado, dependendo de como</p><p>os conteúdos escolares permanecem organizados. Eles pedem aos alu-</p><p>nos que embarquem em uma jornada que deve envolver o cruzamento</p><p>de fronteiras intelectuais, partindo do conhecimento básico enraizado</p><p>no “local” para um conhecimento teórico mais genérico. Portanto, estes</p><p>tipos de viagens são precisamente as viagens intelectuais que o estu-</p><p>dante bem-sucedido será levado a fazer. Neste sentido, estas interseções</p><p>de fronteiras informam profundamente a pedagogia que cada profes-</p><p>sor deve adotar a fim de transmitir um sentido original do mundo para</p><p>um entendimento mais teórico genérico. Além disso, como diz Richard</p><p>Sennett (2008), provar o sabor do conhecimento é um sucesso se for pos-</p><p>sível testar o conhecimento. Esta afirmação também é verdadeira por-</p><p>que levanta um entendimento diferente do “local”, um entendimento</p><p>diferente da experiência justa da vida, para começar a teorizar, e vem</p><p>com ganhos e perdas. Esta questão diz muito sobre professores e peda-</p><p>gogia: pensar nos custos e benefícios que existem para os estudantes</p><p>é falar sobre os custos e benefícios que os estudantes têm quando fazem</p><p>a viagem que os professores lhes pedem para fazer. É crucial conside-</p><p>rar o que os professores lhes pedem para desistir enquanto se movem</p><p>ou cruzam fronteiras intelectualmente, porque essa é uma tremenda</p><p>jornada psicológica que eles vão fazer e é necessário ser sensível a ela.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>32</p><p>Passar de um conhecimento local para um conhecimento cosmopolita</p><p>também vem com custos. É uma viagem complicada para pedir aos es-</p><p>tudantes que a façam e, portanto, os professores que pensam que isso</p><p>é uma coisa inteiramente boa de se fazer estão errados porque não estão</p><p>cientes do tipo de custos que pedem aos estudantes, bem como dos in-</p><p>dubitáveis benefícios que estão oferecendo. Devem estar cientes de am-</p><p>bos – ganhos e perdas – e sensíveis à cultura que estão pedindo aos alu-</p><p>nos que abandonem, saiam, se estendam, transcendam.</p><p>O grande problema dos professores do ensino médio é se o pro-</p><p>fessor é um especialista em conhecimento formal de um conteúdo apro-</p><p>priado e como esse conhecimento em particular traz excelentes benefí-</p><p>cios, mas também, custos consideráveis porque a matéria escolar é uma</p><p>categoria de conhecimento muito peculiar. Todos os elementos das ma-</p><p>térias escolares estão na ordem social, e muitas vezes se trata de deslocar</p><p>grupos do lugar para outro nesta ordem social. A matéria escolar como</p><p>categoria tende a estar em um nível mais elevado, abstrato, descontex-</p><p>tualizado e teórico. Esta condição significa que as pessoas têm que abrir</p><p>mão de seus conhecimentos experimentais, localizados antes que pos-</p><p>sam prosperar educacionalmente. Neste contexto, este tipo de catego-</p><p>ria parece ser a questão mais problemática sobre a qual os professores</p><p>precisam pensar: até que ponto o conhecimento da matéria escolar eles</p><p>precisam demais dos alunos no sentido do que eles têm que abandonar,</p><p>e quão sensível é o professor para mudar o conhecimento local, práti-</p><p>co, fundamentado, que obviamente é de uso imediato, para um conhe-</p><p>cimento muito mais esotérico, cosmopolita, abstrato, que pode ou não</p><p>ser de alguma utilidade neste novo mundo em que eles estão entran-</p><p>do. Portanto, é sobre esta mudança de categorias que os professores</p><p>têm que refletir, e principalmente ao ensinar: que tipos de conexões</p><p>são possíveis de fazer entre a percepção “local” que as pessoas têm delas</p><p>– o sentido enraizado de identidade, classe, gênero – e o conhecimento</p><p>mais abstrato que estão sendo convidados a alcançar. Um bom professor</p><p>faz continuamente conexões entre o sentido local, concreto e imediato</p><p>que as pessoas têm de si mesmas e o conhecimento especializado. Ele/</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>33</p><p>ela regularmente sustenta o conhecimento abstrato sobre exemplos lo-</p><p>cais, exemplos concretos que têm uma forte ressonância para as pessoas.</p><p>De certa forma, uma pedagogia de passagem de fronteira ajuda os estu-</p><p>dantes a embarcar nessas viagens.</p><p>Esses cruzamentos de fronteira e de conhecimento atravessam</p><p>circunstâncias da relação entre professores e alunos, e a relação dos pro-</p><p>fessores com suas próprias vidas. Ficar preso ao conhecimento teórico</p><p>não é apenas um problema para o aluno, mas também para o professor.</p><p>A importância de trabalhar as histórias de vida com os professores é que</p><p>isto permite ao professor refletir sobre os pontos de passagem de fron-</p><p>teira que eles atravessaram.</p><p>Muitos professores passaram pelos mesmos cruzamentos de fron-</p><p>teira, deslocando-se do “local”, às vezes trabalhando com a tutoria fa-</p><p>miliar, para se tornarem profissionais. Eles vão para a Universidade; eles</p><p>continuam se movendo para passar por uma gama considerável de des-</p><p>locamentos, atravessando muitas fronteiras. À medida que pensam mais</p><p>sobre suas histórias de vida, eles partem deste lugar para o qual foram</p><p>presos e percebem as fronteiras que gostariam de atravessar e, ao fazê-lo,</p><p>refletem sobre os tipos de passagens de fronteira que os estudantes estão</p><p>atravessando. Quando os professores são reflexivos, eles saem do apri-</p><p>sionamento de um conhecimento particular de formação formal e agora</p><p>têm um senso mais geral de si mesmos como pessoas: o professor como</p><p>pessoa é pelo menos tão necessário quanto o professor como especialista</p><p>(ABRAHAM, 1984). Ao se olharem como pessoas que vivem experiências,</p><p>eles se tornam professores mais felizes e melhores porque serão mais sen-</p><p>síveis à maneira como os estudantes estão vivenciando o mundo.</p><p>A fronteira entre o conhecimento abstrato e o conhecimento con-</p><p>creto, entre o mundo cosmopolita e local e, entre as aulas, entre as cul-</p><p>turas é a questão que professores e alunos devem tratar. Os estudantes</p><p>estão vivendo “nas fronteiras”, que é um excelente lugar para se viver,</p><p>porque nas fronteiras tudo é possível. Em certo sentido, eles podem ir a</p><p>qualquer lugar; tudo pode acontecer. É um lugar de grandes possibilida-</p><p>des para os direitos humanos, bem como de risco humano considerável.</p><p>Portanto, a fronteira é um lugar para se especializar (GOODSON, 2007).</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>34</p><p>Em outras palavras, cruzar fronteiras é também o encontro entre</p><p>o conhecimento do artesão sedentário e o do estrangeiro como conside-</p><p>rado por Walter Benjamin em The Storyteller (2007). Esta é uma condição</p><p>essencial para desenvolver o currículo como narrativa (GOODSON, 2014)</p><p>Segundo Benjamin, transmitir uma experiência não é apenas</p><p>repetir</p><p>uma história, mas transmitir o conhecimento de uma experiência vivida</p><p>para as gerações futuras, algo tornado possível em um currículo narrati-</p><p>vo. As narrativas têm sempre uma dimensão utilitária (BENJAMIN, 2007).</p><p>O narrador pode transmitir a experiência de uma maneira útil e, numa di-</p><p>mensão mais elaborada, como um conselho. Portanto, a narrativa ensina.</p><p>Com as tecnologias atuais, as antigas fronteiras estão desapare-</p><p>cendo. Podemos escrever juntos enquanto estamos em lugares diferentes</p><p>no Brasil e na Inglaterra, entrelaçando nossas histórias. Toda noção de es-</p><p>paço está mudando, e Benjamin nos alertaria para estarmos cientes disso,</p><p>já que várias dessas fronteiras não estão relacionadas a espaços externos,</p><p>mas aos interiores das pessoas. Eles são lugares secretos onde as pessoas</p><p>decidem sobre seus modos de julgamento, decidem quem são, quem que-</p><p>rem ser e quais são seus projetos de identidade.</p><p>No memorial a Benjamin na pequena aldeia de Portbou, Espanha4,</p><p>perto da fronteira com a França, há a seguinte inscrição: “a constru-</p><p>ção histórica concentra-se na memória daqueles que não têm nome”</p><p>(GOODSON, 2011, p. 49). Uma questão emergente se apresenta: Para</p><p>quem produzimos o conhecimento? Tradicionalmente, a pesquisa é feita</p><p>para o povo – ao contrário de ser feita com o povo – que poderíamos cha-</p><p>mar de “sem nome”: imigrantes, desabrigados, mulheres, crianças, entre</p><p>outros. Se trabalharmos com eles em um diálogo permanente, a pesqui-</p><p>sa pode produzir uma aprendizagem narrativa colaborativa. Além disso,</p><p>há um grupo com uma excelente necessidade de aprendizagem – não os</p><p>“sem nome” – mas aqueles que cometem violência contra os “sem nome”.</p><p>Os poderosos são os que mais precisam aprender (GOODSON, 2007, p. 69).</p><p>4 O memorial foi criado pela artista israelita Dani Karavan. Foi inaugurado em 1994 como</p><p>uma Homenagem a Walter Benjamin pelo lugar da sua morte. Mais informações podem ser</p><p>recuperadas em: https://walterbenjaminportbou.org/pasajes-karavan/.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>35</p><p>De fato, os poderosos não precisam aprender a operar o poder;</p><p>isso, eles já sabem. Entretanto, eles precisam aprender a exercer esse</p><p>poder compassivamente. Não é possível conceber um mundo onde o po-</p><p>der não exista – isto é parte da condição humana. Por exemplo, em uma</p><p>situação de aprendizagem colaborativa, o professor detém mais poder</p><p>no grupo. Proporcionar à maioria das pessoas uma vida razoável e pagar</p><p>aos mais fracos um salário decente são exigências prováveis e executá-</p><p>veis que se apresentam aos ricos do mundo. Não seria algo absurdo; pelo</p><p>contrário, poderia custar tanto quanto algumas das naves espaciais pro-</p><p>duzidas nos Estados Unidos. Em outras palavras, seria suficiente conce-</p><p>der acesso universal à alimentação necessária e a uma educação adequa-</p><p>da. Em um mundo de absoluta inexpressão, insensibilidade, desprezo,</p><p>anticristianismo, anti-islamismo, isso poderia acontecer? Tornou-se</p><p>inadmissível notar que aqueles que têm tanto não estão preparados para</p><p>compartilhar apenas um pouco. A compaixão poderia ser uma forma li-</p><p>vre de exercer um poder normalmente ganancioso e profundamente</p><p>implacável.</p><p>Existem possíveis relações entre cultura ética e educação estética</p><p>que implicam estas aspirações de ações sociais. Há uma estética humana</p><p>que permite às pessoas entrar em contato com suas emoções, espíritos</p><p>e almas, investindo-as com bondade. A questão central é compreender</p><p>os limites estabelecidos entre cultura, educação e ensino, na medida</p><p>em que eles não podem abordar os sentimentos e as emoções. Com es-</p><p>tas considerações, enfrentamos o desafio de desenvolver experiências</p><p>educacionais e intelectuais que permitam que as pessoas se aproximem</p><p>de suas emoções e espíritos.</p><p>Professor Kaji Waura – um contador de histórias que cruza</p><p>fronteiras</p><p>Mantendo o propósito de escrutinar os desafios e as lições do cru-</p><p>zamento de fronteiras em práticas curriculares descolonizadas, consi-</p><p>deramos como é vital entender as histórias de vida em seus ambientes</p><p>históricos e culturais se quisermos investigar e entender o significado</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>36</p><p>individual e pessoal (GOODSON, 2013). Conforme os temas emergem</p><p>dos detalhes das entrevistas da história de vida, torna-se claro que al-</p><p>guns contadores de histórias de vida cobrem muitos dos temas relevan-</p><p>tes, enquanto outros podem conter apenas evidências de um pequeno</p><p>número de temas ou podem cobrir os temas rapidamente. A densidade</p><p>temática é uma maneira de caracterizar aquelas entrevistas de histó-</p><p>ria de vida que ou cobrem uma ampla gama de temas ou cobrem temas</p><p>particulares de forma profunda. Tendo então identificado os principais</p><p>temas de trabalho nas narrativas de vida, e tendo começado a empre-</p><p>gar alguns desses temas para conceituar o caráter histórico, pode surgir</p><p>uma nova etapa de trabalho. O desenvolvimento de estudos de casos</p><p>pessoais detalhados define um retrato das histórias de vida mais den-</p><p>sas tematicamente. O retrato refina estas análises temáticas gerais e as</p><p>apresenta na forma de um retrato individual detalhado de uma narrativa</p><p>de vida.</p><p>A fim de apresentar aspectos da história da vida de Kaji Waura</p><p>como professor, vamos mostrar seu retrato narrativo extraído de uma</p><p>entrevista que ele fez com seu professor na Universidade. Waura é uma</p><p>das 14 etnias que vivem no Parque do Xingu, na região norte do Brasil.</p><p>Sua tribo é constituída por cerca de trezentas pessoas que vivem na fron-</p><p>teira entre a floresta amazônica e a savana, e são notórias pela singula-</p><p>ridade de suas cerâmicas, o grafismo de suas cestas, a arte das penas</p><p>e as máscaras rituais. Além disso, têm uma complexa e fascinante mi-</p><p>to-cosmologia, na qual as ligações entre animais, coisas, seres humanos</p><p>e nenhum ser humano permeiam sua concepção do mundo e são cruciais</p><p>para as práticas do xamanismo.</p><p>Kaji fala a língua aruaque e o português como segunda língua.</p><p>Ele nasceu em 1974. Em 2011, formou-se em Pedagogia, e desde então,</p><p>trabalha em uma escola localizada no vilarejo. Em suas palavras:</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>37</p><p>Comecei na área educacional porque estava preocupado</p><p>com as crianças. Vejo muitas crianças sem aulas, apenas</p><p>brincando. Conheci a alfabetização sobre como ensiná-</p><p>-las a ler e escrever. Fiquei apreensivo em relação a elas.</p><p>Havia também outros professores na aldeia, mas eles não</p><p>se preocupavam com as crianças. Na época, era o ano de</p><p>1996, eu comecei a estudar, certo? Comecei a estudar.</p><p>Comecei a pensar em como ser professor, sabe. Era meu</p><p>sonho poder transmitir conhecimento para as crianças.</p><p>Como tínhamos muitas histórias que os antigos nos con-</p><p>tavam como um coletivo, você sabe. Então eu disse para</p><p>mim mesmo: “Bem, há muitas crianças sem aulas no vila-</p><p>rejo. Não há alfabetização para elas”. Fiquei ansioso com</p><p>elas, sabe. Além disso, mesmo assim, continuei estudan-</p><p>do, estudando, estudando. Foi em 1997. (Eu estava na)</p><p>escola suplementar na época. Eu fiz a escola suplemen-</p><p>tar até a 8ª série. Então o “Projeto Tucum” (Programa</p><p>de Formação de Professores Indígenas pelo Governo do</p><p>Estado de Mato Grosso) apareceu para os professores</p><p>indígenas como uma possibilidade de formação educa-</p><p>cional. Além disso, fiquei interessado em voltar à aldeia</p><p>para poder participar deste treinamento para professo-</p><p>res, e trabalhar na sala de aula da comunidade. Não foi a</p><p>comunidade que me indicou. Fui eu. Foi o meu interesse</p><p>em poder trabalhar em sala de aula, você vê? Porque ha-</p><p>via muitas crianças e os jovens não estão aprendendo.</p><p>Não há esse conhecimento de alfabetização, esse conhe-</p><p>cimento de fora, você sabe. Então, fiquei preocupado com</p><p>quem vai poder trabalhar para a comunidade, para ajudar</p><p>a comunidade a escrever documentos. Nós mesmos de-</p><p>vemos ensinar as crianças. Então, comecei a participar</p><p>de cursos de treinamento. Em 2000, participei do curso</p><p>de treinamento de professores. Participei até 2004, e de-</p><p>pois</p><p>fui impedido porque fiquei doente. Fui internado em</p><p>um hospital em Brasília durante dois meses, no CAUB</p><p>(Conglomerados Agro-Urbanos de Brasília). Eu tinha um</p><p>acúmulo de água dentro de meus pulmões. Foi terrível.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>38</p><p>Então fiquei na cidade por dois meses, e depois me recu-</p><p>perei. Entretanto, por isso não consegui terminar o curso</p><p>que estava fazendo para ensinar. As pessoas o termina-</p><p>ram. Era o ano de 2004, certo? Mas depois eu fiquei para</p><p>trás e comecei a estudar de novo. Eu tenho que estudar</p><p>para buscar o conhecimento. Fiz muitos destes cursos,</p><p>como “Controle Ambiental”, “Capacitação Financeira”,</p><p>“Mecânica”. Tirei um total de 22 cursos.</p><p>Havia um projeto de treinamento de professores cha-</p><p>mado “Raiô”. Na língua do povo Terena, significa a ju-</p><p>ventude. Para os meninos, dizemos “raiô”, sabe? Havia</p><p>um projeto de “raio”, e eu voltei a entrar. Voltei para ter-</p><p>minar os estudos. Então, em 2010, eu o terminei. Entre</p><p>2000 e 2010, eu estava trabalhando na sala de aula. Até</p><p>agora, já formei seis turmas diferentes de alunos, e eles</p><p>estão trabalhando como agentes comunitários de saúde,</p><p>no “ASAM” (Centro de Apoio à Juventude, uma institui-</p><p>ção de assistência social), ou como ambientalista. Eles</p><p>estão aqui trabalhando. Eu fiz meu exame de ingresso na</p><p>faculdade depois, exame de ingresso na faculdade indí-</p><p>gena da Universidade de Mato Grosso. Consegui entrar</p><p>para estudar Pedagogia. Concluí a graduação após cinco</p><p>anos de estudo de Pedagogia, me formei em 2016. Em</p><p>2020, me inscrevi no programa de mestrado. Eu queria</p><p>fazer isso logo após terminar a faculdade, mas tive que</p><p>descansar um pouco. Tive que descansar um pouco até</p><p>2018-2019 para fazer pesquisa. Eu me formei em 2016,</p><p>e em 2017 eu descansei… Eu tinha acabado de continu-</p><p>ar trabalhando na sala de aula… Trabalhando na sala de</p><p>aula do ensino médio. Quando me formei em Pedagogia,</p><p>eles me colocaram para ensinar no colegial. Em 2017,</p><p>2018, 2019… Em 2019, aconteceu a chamada aberta do</p><p>programa de mestrado na Universidade de Campinas, e</p><p>eu comecei a escrever meu projeto. Enviei meu projeto</p><p>para a Universidade de Campinas, e ele foi aprovado. Meu</p><p>projeto foi aprovado. Eu sabia que ia ser aprovado porque</p><p>vou entrar em uma história muito longa… Em como o</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>39</p><p>povo Waurá apareceu, a aparência do povo Waurá. É isso</p><p>que é minha pesquisa. Agora, eu escrevi muito porque,</p><p>durante meu colegial, comecei a pesquisar esta histó-</p><p>ria. A formação do surgimento do povo Waurá. Eu es-</p><p>tudei isso também na faculdade… Ainda não terminou.</p><p>Não pude terminá-la porque fiz parte de três projetos de</p><p>pesquisa. Conseguimos uma bolsa de estudos para fazer</p><p>pesquisa. Fiz um sobre a pintura corporal dos Waurá, ou-</p><p>tro sobre nossa cerâmica e outro sobre a matemática do</p><p>povo Waurá: como praticar a cestaria, este estuf. Bem,</p><p>agora, estou aqui disposto a voltar à sala de aula para</p><p>trabalhar porque há muitas coisas que os antigos nos es-</p><p>tão tirando. Porque os antigos estão morrendo e estão</p><p>tirando esse conhecimento. Eu os considero como um</p><p>dicionário, sabe? Esta é minha história, minha narrativa</p><p>de como eu entrei neste campo educacional. Porque é do</p><p>meu interesse, tenho gostado muito deste trabalho, gos-</p><p>to de transmitir história, de ensinar as crianças. Como</p><p>posso dizê-lo? Você deve falar com elas, para que elas</p><p>gostem de sua classe, da história, deste tipo de coisas.</p><p>Você não pode trabalhar diretamente com alfabetização,</p><p>para escrever as palavras ou fazer as leituras imediata-</p><p>mente. Você não pode. Você deve trabalhar primeiro com</p><p>a oralidade. Você deve contar histórias… Lentamente elas</p><p>se acostumam e depois você vai e lhes mostra as letras,</p><p>os escritos, ainda em maiúsculas. Não se pode exagerar</p><p>com estas crianças. Você tem que ser muito paciente com</p><p>as crianças, isso é o que eu digo aos meus colegas.</p><p>Entrevistador: E você trabalha no colegial como profes-</p><p>sor de História, não é verdade?</p><p>K.W.: História… Todos os assuntos, você sabe… Há a</p><p>Geografia….</p><p>Entrevistador: Você pode ensinar todas as matérias?</p><p>K.W.: Eu posso. Há Português, Língua Materna,</p><p>Matemática, Geografia.</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>40</p><p>Entrevistador: Ok. Você me disse que sua escola tem 16</p><p>professores indígenas e é uma escola apoiada pelo esta-</p><p>do, não é verdade?</p><p>K.W.: Sim… Certo…</p><p>Entrevistador: Pelo estado de Mato Grosso. Então… que-</p><p>ro lhe perguntar o seguinte: que conhecimentos a escola</p><p>ensina? É o conhecimento da aldeia ou o conhecimento</p><p>que vem do manual do MEC (Ministério da Educação do</p><p>Brasil) e da escola da cidade? Como funciona esta rela-</p><p>ção? Quais são os conhecimentos que são trabalhados na</p><p>escola: os do povo Waurá ou os que o governo ordena?</p><p>K.W.: Bem, nós trabalhamos com ambos. Aprendemos</p><p>junto com Matemática, Português, Ciências, Sociologia,</p><p>Biologia, Ciências, certo? E depois vem a Tecnologia</p><p>Indígena, a Prática Cultural Sustentável, a Prática da</p><p>Agroecologia. Trabalhamos com eles na sala de aula.</p><p>Há também a Língua Materna. Você entendeu? Quando</p><p>trabalhamos com a Prática Cultural, vamos trabalhar</p><p>com…. Vamos dançar, organizar festas… Como se fosse</p><p>na sala de aula. Onde você vai avaliar se os alunos estão</p><p>aprendendo a dançar, sabe? Isso é um conhecimento. Em</p><p>Tecnologia Indígena, ensinamos como fazer um instru-</p><p>mento musical, como fazer cestaria, flecha… Construções</p><p>artesanais… Essa é uma tecnologia indígena e um assun-</p><p>to no qual você aprenderá a fazer cerâmica, cestas, uma</p><p>pequena flauta que você poderá tocar como Taquara (um</p><p>instrumento musical feito de bambu), a grande flauta</p><p>que você usará para ensinar-lhes música. Isso é o que é</p><p>Tecnologia Indígena. É onde aprendemos a tocar Taquara</p><p>que se chama Urá. Você vai aprender a fazer cestaria. Esta</p><p>Tecnologia Indígena vem junto com a Matemática. Tudo</p><p>envolve Matemática. É também aí que você vai aprender</p><p>a pintar com a mão. Pintura à mão, você sabe? Você vai</p><p>tecer com a mão e pintar com a tecelagem, sabe? É outro</p><p>tipo de conhecimento. Por exemplo, a Química que tra-</p><p>balhamos dentro da sala de aula é a fabricação do sal…</p><p>Você entendeu? Nós extraímos sal das plantas para mos-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>41</p><p>trar aos alunos como obter alimentos e como funciona</p><p>o consumo de Aguapé… Você extrai. Ele era extraído da</p><p>água, depois era seco, queimado, filtrado e depois você</p><p>toma seu refrigerante. Depois você o joga na panela, e ele</p><p>se torna o próprio sal. Isto é Química para nós.</p><p>Entrevistador: Ok. Este conhecimento, esta sabedoria, de</p><p>onde ele vem?</p><p>K.W.: Esta sabedoria… Este conhecimento vem do povo</p><p>Awetí para o nosso povo. Awetí tinha tido esse conhe-</p><p>cimento, e então o povo Waurá foi morar na aldeia com</p><p>eles para aprender como fazer isso… Esta transformação</p><p>de sal. É por isso que agora, por exemplo…</p><p>Entrevistador: Então esta é a razão pela qual você diz que</p><p>os antigos são como dicionários? Porque, na verdade, os</p><p>mais velhos o passam para os mais jovens, é isso mesmo?</p><p>K.W.: Sim, sim. Esta é a razão pela qual eu chamo os di-</p><p>cionários antigos de dicionários. Quando você faz pes-</p><p>quisa, você tem que consultá-los. A origem disso. Se o</p><p>povo Waurá começou com ele ou se foi o outro povo.</p><p>Quando eu trabalhava com a transformação do sal em</p><p>química, eu lhes perguntava, sabe? Consultei este meu</p><p>dicionário, e disse que alguém me disse que era um en-</p><p>sinamento dos Waurá. Mas não é. Nós aprendemos com</p><p>outras pessoas. Na cerâmica, éramos nós. O povo Waurá</p><p>tinha aprendido primeiro, e nós continuamos passando</p><p>isso de geração em geração. Outras pessoas aprenderam</p><p>de nós. É assim que as coisas são.</p><p>Entrevistador: Ok, então vamos imaginar isto… Como</p><p>você disse, há um conhecimento de biologia sobre o</p><p>corpo humano, os animais, as plantas… Sobre quími-</p><p>ca, sobre cerâmica, extração de sal, pigmentos… Há um</p><p>conjunto de conhecimentos que é transmitido através de</p><p>gerações e transmitido</p><p>de um povo para outro… Até ago-</p><p>ra, tão bom… As crianças vão à escola. Como funciona a</p><p>escola se existe um livro didático que não dialoga com</p><p>isso? Há um livro didático que não estabelece diálogo</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>42</p><p>com o conhecimento das pessoas. Não há conhecimen-</p><p>to dos povos indígenas no livro didático que é enviado</p><p>para as escolas pelo Ministério da Educação. Existe um</p><p>conhecimento estrangeiro dos brancos, dos brancos es-</p><p>trangeiros. O que você faz com isso como professor?</p><p>K.W.: Bem… Nós não damos o livro didático às crianças,</p><p>principalmente porque só os professores estudarão a</p><p>partir dele, sabe, para que eles aprendam como entende-</p><p>rão esse conhecimento a partir do livro didático enquan-</p><p>to olham para nossa cultura… Se o livro didático não tem</p><p>nada para fazer, nós nem sequer o tocamos (na sala de</p><p>aula). É por isso que não trabalhamos com ele, você o</p><p>entende? Já lemos os livros muitas vezes, e quando chega</p><p>a esse conhecimento que está relacionado à nossa reali-</p><p>dade, podemos levá-lo embora. Então fazemos o plane-</p><p>jamento, e então seremos capazes de explicar… Vocês o</p><p>conseguem? Então podemos desenhar, podemos mostrar</p><p>as coisas para as crianças. Assim é como eles estão levan-</p><p>do a Biologia, sabe? No momento em que ela chega ao</p><p>entendimento do povo, podemos trabalhá-la. Fazemos o</p><p>planejamento com base no livro didático. Podemos nos</p><p>adaptar. Podemos estudar a partir do livro didático, se ele</p><p>entrou em nossa realidade, então podemos trabalhar com</p><p>ele. Isso é o que estamos fazendo. A geografia tem mui-</p><p>to a ver com nossa geografia, sabe? Porque trabalhamos</p><p>a geografia, a paisagem, a paisagem cultural e todas as</p><p>construções que o ser humano destruiu. Porque também</p><p>temos a Astronomia como tema. A astronomia vai com a</p><p>geografia. Quando trabalhamos com ciência, com plan-</p><p>tação, porque temos o conhecimento que vem de nos-</p><p>sa ciência, nossa medicina, essas coisas… Medicinais…</p><p>Podemos trabalhar com isso. A biologia tem pouco para</p><p>trabalharmos… Por que isso acontece? Porque a Biologia</p><p>envolve um microscópio, fazendo essa análise de coisas</p><p>minúsculas. É preciso abrir um pássaro, é preciso ma-</p><p>tar um pássaro para poder exibi-lo. É por isso que não</p><p>trabalhamos muito com a Biologia. Trabalhamos mui-</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>43</p><p>to com História, Geografia e Matemática porque a sua</p><p>Matemática também se dá bem com a nossa matemática.</p><p>Números e artesanato…</p><p>Entrevistador: Mas, Kaji, você acha que sua escola preci-</p><p>sa do conhecimento do povo branco?</p><p>K.W.: Talvez… Se pudermos trabalhar com eles dois, você</p><p>vê? Por ambos os conhecimentos, quero dizer que pode-</p><p>mos trabalhar com o português, temos que entendê-lo,</p><p>temos que falar português, você entende? Porque nossas</p><p>comunidades devem ser capazes de escrever documentos.</p><p>Se me pedem para ser o interlocutor de uma liderança</p><p>comunitária para fazer uma tradução de seu idioma para</p><p>o português, esta é a razão. Somente o português é um</p><p>assunto que trabalhamos muito com a Língua Materna</p><p>e o português… português com a Língua Materna. No</p><p>momento em que as crianças e os jovens começam a en-</p><p>tender e a falar um pouco de português. Depois haverá</p><p>aquela pessoa que é i. No livro didático, há muitas coi-</p><p>sas sobre a cultura negra, a cultura de outras pessoas,</p><p>mas não há nada sobre nós. É por isso que trabalhamos</p><p>tanto a Prática Cultural Sustentável como a Prática da</p><p>Agroecologia como Ciência, você sabe… Trabalhamos</p><p>em como fazer plantações, forças-tarefas, para preparar</p><p>a plantação… Pesca… Depois há a Tecnologia Indígena,</p><p>onde você aprenderá, onde convidará o antigo, para ir à</p><p>sala de aula e ajudar o professor a transmitir as informa-</p><p>ções aos alunos. Isto é o que está acontecendo…</p><p>Entrevistador: Quantos anos têm os antigos, aproxima-</p><p>damente?</p><p>K.W.: 60, 65 anos de idade…</p><p>Entrevistador: Oh, eles são jovens…</p><p>K.W.: Jovem…</p><p>Entrevistador: Muito jovem. Você disse que os antigos e</p><p>eu achávamos que eles tinham uns 90 anos de idade.</p><p>K.W.: Não, eles não são… Antigos… Nosso povo nunca</p><p>chegou tão longe… Até os 90 anos de idade, você sabe?</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>44</p><p>Quando chegam aos 90, sua cabeça não sabe mais como</p><p>plantar… Quando têm 60 ou 70 anos, ainda podem tra-</p><p>balhar com você, e você pode trabalhar com eles. Quando</p><p>fazem 80 ou 90 anos, eles nem sabem explicar o que vai</p><p>dentro da cabeça deles… Como meu padrasto que tem</p><p>87 anos… Ele agora é surdo. Ele ficou surdo. Você não</p><p>pode mais perguntar a ele sobre uma história… Tudo o</p><p>que você pode fazer é aproveitar quando ele começa a</p><p>contar uma história… Isso é tudo… O que ele se lembra</p><p>que ele fala, ele conta.</p><p>Entrevistador: E o que você já descobriu sobre o apareci-</p><p>mento do povo Waurá?</p><p>K.W.: Descobri como aparecemos de quem chamamos</p><p>Kuwamutõ … Kuwamutõ fez uma mulher… Ele transfor-</p><p>mou cinco mulheres. Ele pegou pedaços de madeira e as</p><p>transformou em seres humanos. Depois, elas foram ca-</p><p>sadas com o povo da onça-pintada. Houve uma gravidez</p><p>de gêmeos, e eles eram o Sol e a Lua. Nós somos cien-</p><p>tistas, sabe? O Sol e a Lua são cientistas… Isto é o que</p><p>vai organizar alguém. Esse Sol e essa Lua transformaram</p><p>muitas flechas que foram transformadas em seres huma-</p><p>nos. Ainda não é realmente um ser humano de verdade.</p><p>O Kuwamutõ é dos tempos antigos, sabe. Foi assim que a</p><p>Terra apareceu. Ele estava lá e começou a trabalhar, a tra-</p><p>balhar, a trabalhar até a aparência. Ele apareceu primeiro</p><p>em sua cabeça a ser transformado. Ele fez um desenho</p><p>de madeira para que pudesse transformá-lo em sua filha.</p><p>Para que pudesse oferecê-la às onças para casar-se com</p><p>uma delas. Então ela se casou com a onça-pintada e en-</p><p>gravidou de gêmeos: o Sol e a Lua. Em seguida, a Lua vai</p><p>criar uma flecha pedindo ao avô dela que o faça, obrigan-</p><p>do-o a colocar as flechas na aldeia, colocando as flechas</p><p>ao redor. Não sei quantas flechas ele fez, como mil delas,</p><p>depois ele formou um círculo com elas e rezou. Ele rezou</p><p>e as transformou em seres humanos. Todos os tipos de</p><p>seres humanos: brancos, negros, vermelhos, amarelos,</p><p>marrons, indígenas, brancos, americanos, africanos, foi</p><p>PRÁTICAS CURRICULARES E NARRATIVAS DOCENTES: AMPLIANDO CONTEXTOS</p><p>45</p><p>o que eu descobri. Assim, nosso povo veio da “flechinha</p><p>da boca”. É por isso que não estamos zangados, não so-</p><p>mos corajosos como aquelas outras pessoas que nasce-</p><p>ram de outra flecha. Eles são destemidos. Como Kayapó</p><p>ou Krenakarore ou Kayabi. Eles estão realmente furiosos.</p><p>Nós os chamamos de índios. Em nossa língua, dizemos</p><p>muteitsi. Nós os chamamos de muteitsi. Nós os conside-</p><p>ramos um outro grupo de pessoas porque eles estão com</p><p>raiva. Nós, o povo do Xingu, nos chamamos de putaká.</p><p>Porque os putaká não estão zangados. Eles têm culturas</p><p>semelhantes. Nós temos culturas similares e línguas di-</p><p>ferentes. Descobri que existem 14 grupos étnicos dentro</p><p>do Xingu (Parque Indígena). Porque existem famílias lin-</p><p>guísticas, como Arawak, (Macro-)Jê, Tupi-Guarani, Karib.</p><p>Acho que há quatro delas: quatro famílias de línguas que</p><p>foram criadas para nós pelo Sol e pela Lua.</p><p>Entrevistador: Ok. E a escola? Você transmite esta histó-</p><p>ria para os jovens e as crianças?</p><p>K.W.: Sim. Quando trabalhamos na história, nós lhes</p><p>contamos. Eu transmito o que aprendi e até escrevi um</p><p>livro, sabe? Eles fazem a leitura. Nós escrevemos em nos-</p><p>sa língua materna, sabe? E os alunos fazem desenhos,</p><p>eles pesquisam com seus pais para ver se foi isso que re-</p><p>almente aconteceu. No dia seguinte, eles trazem muitas</p><p>informações para a sala de aula, nós discutimos isso. É</p><p>assim que contamos a história, é assim quando trabalha-</p><p>mos a história. Quando entramos na história, não vamos</p><p>contar a história do povo branco, temos que abordar nos-</p><p>sa história, sabe? A história do lago, a história da casa, a</p><p>história do plantio, a história da rota, a história do pe-</p><p>qui, a história do… Como dizer? Da farinha de tapioca,</p><p>da mandioca… Toda plantação tem sua</p>