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TEORIA DA NORMA JURÍDICA - NORBERTO BOBBIO_240919_104543

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<p>Norberto Bobbio TEORIA Outras obras de Noberto Bobbio em português: DA NORMA A Era dos Direitos, Campus, Rio de Janeiro. A Teoria das Formas de Governo, UnB, Brasília. JURÍDICA Diário de um Século, Campus, Rio de Janeiro. Dicionário de Política, UnB, Brasília. Direita e Esquerda, UNESP, São Paulo. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Mandarim, São Tradução Paulo. Fernando Pavan Baptista Ensaios sobre Gramci e o Conceito de Sociedade Civil, Paz e Terra, São Paulo. Ariani Bueno Sudatti Entre Duas UnB, Brasília. Estado, Governo, Sociedade, Paz e Terra, São Paulo. Apresentação Igualdade e Liberdade, UnB, Brasília. Alaôr Caffé Alves Liberalismo e Democracia, Brasiliense, São Paulo. Locke e o Direito Natural, UnB, Brasília. Futuro da Democracia, Paz e Terra, São Paulo. Positivismo São Paulo. Tempo da Campus, Rio de Janeiro. Os Intelectuais e o Poder, UNESP, São Paulo. Sociedade e Estado na Filosofia Politica Moderna, Brasiliense, São Teoria do Ordenamento Jurídico, UnB, Brasília. EDIPRO</p><p>Teoria da Norma Jurídica NORBERTO BOBBIO Edição 2001 Supervisão Editorial: Lot Vieira Coordenação Editorial: Vinicius Lot Vieira Editor: Alexandre Rudyard Benevides Tradutores: Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti Capa: Maria do Carmo Fortuna SUMÁRIO Revisão Técnica: Edson Bini Revisão: Priscila Digitação: Disquetes fornecidos pelos tradutores de Catálogo: 1319 APRESENTAÇÃO Caffé Alves 9 Dados de Catalogação na Fonte (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) NOTA DOS TRADUTORES 21 Bobbio, Norberto Capítulo Teoria da norma jurídica / Norberto Bobbio / trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti / apresentação Caffé O DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA 23 Alves Bauru, SP: 2001. 1. Um mundo de normas 23 Título original: Teoria della norma giuridica (G. Giappichelli Editore, Torino, 1993) 2. Variedade e multiplicidade das normas 25 ISBN 85-7283-327-7 3. O direito é instituição? 28 1. Direito - Filosofia 2. Direito Teoria I. Alves, Alaôr Caffé 4. O pluralismo jurídico 30 II. Título. 5. Observações críticas 33 01-3717 CDU-340.13 6. O direito é relação intersubjetiva? 37 Índices para catálogo sistemático: 7. Exame de uma teoria 40 1. Norma jurídica Teoria Direito 340.13 8. Observações críticas 42 EDIPRO - Edições Profissionais Ltda. Capítulo II Rua Conde de São Joaquim, 332 - Liberdade JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA 45 CEP 01320-010 São Paulo SP Fone (011) 3107-4788 FAX (011) 3107-0061 9. Três critérios de valoração 45 EDIPRO E-mail: edipro@uol.com.br 10. Os três critérios são independentes 48 Atendemos pelo Reembolso Postal 11. Possíveis confusões entre os três critérios 51</p><p>6 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA 7 TEORIA DA NORMA JURÍDICA SUMÁRIO 12. O direito natural 55 33. Relação entre imperativos e permissões 128 13. O positivismo jurídico 58 34. Imperativos e regras finais 132 14. O realismo jurídico 62 35. Imperativos e juízos hipotéticos 135 36. Imperativos e juízos de valor 140 Capítulo III AS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS 69 Capítulo V 15. Um ponto de vista formal 69 AS PRESCRIÇÕES JURÍDICAS 145 16. A norma como proposição 72 37. Em busca de um critério 145 17. Formas e funções 75 38. De alguns critérios 147 18. As três funções 77 39. Um novo critério: a resposta à violação 152 19. Características das proposições prescritivas 80 40. A sanção moral 154 20. Pode-se reduzir as proposições prescritivas a pro- 41. A sanção social 157 posições descritivas? 83 42. A sanção jurídica 159 21. Pode-se reduzir as proposições prescritivas a pro- 43. A adesão espontânea 162 posições expressivas? 87 44. Normas sem sanção 166 22. Imperativos autônomos e heterônomos 89 45. Ordenamentos sem sanção 170 23. Imperativos categóricos e imperativos hipotéticos 92 46. As normas em cadeia e O processo ao infinito 173 24. Comandos e conselhos 95 25. Os conselhos no direito 99 Capítulo VI 26. Comandos e instâncias 102 CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS 177 Capítulo IV 47. Normas gerais e singulares 177 AS PRESCRIÇÕES E DIREITO 105 48. Generalidade e abstração 180 27. O problema da imperatividade do direito 105 49. Normas afirmativas e negativas 184 28. Imperativos positivos e negativos 109 50. Normas categóricas e hipotéticas 187 29. Comandos e imperativos impessoais 112 30. O direito como norma técnica 115 BIBLIOGRAFIA 191 31. Os destinatários da norma jurídica 119 32. Imperativos e permissões 125</p><p>APRESENTAÇÃO Norberto Bobbio, nascido em Turim, norte da Itália, em 18 de outubro de 1909, é um dos mais ilustres e destacados jusfilósofos do século XX. Foi professor de filosofia do direito em Camerino (1936-1938), em Siena (1938-1940), logo em Pádua (1940-1948) e, de 1948 a 1972, ensinou na Faculdade de Direito da Universi- dade de Turim. A partir de 1973, até a sua jubilação em 1984, lecionou filosofia política na Faculdade de Ciências Políticas da mesma Universidade. Bobbio se intitulava um empirista, sempre preocupado em bus- car fatos. No âmbito metodológico, considerava a necessidade de forjar os instrumentos para buscar os fatos, pois estes não estão ao alcance das mãos. A crítica e a análise da linguagem seriam um destes instrumentos. Esta postura filosófica, adotada por força do "novo iluminismo" (Nicola Abbagnano) e da crescente influência da escola neopositivista, marcou a transição, na Itália do pós- guerra, do clima hegemônico do pensamento idealista (Croce e Gentile) para o neopositivismo, sob a influência de Ludovico Geymonat. Foi um grande esforço de superação das posições do- minantes na Itália, desde o início do século XX, representadas pelas doutrinas neohegelianas, neokantianas, neotomistas, feno- menológicas e outras. Rechaçando tanto o idealismo como o exis- tencialismo, Bobbio defendia uma filosofia positiva comprometida</p><p>10 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA 11 TEORIA DA NORMA JURÍDICA APRESENTAÇÃO com espírito científico e contra as posturas metafísicas. Propug- concepção empiricista da ciência, induzindo Bobbio a perfazer, nava a substituição da filosofia como concepção do mundo pela naquele período, caminho da defesa do rigor lógico das proposi- filosofia como metodologia, que pudesse, do ponto de vista políti- ções da jurisprudência ao invés da contrastabilidade empírica. O co-cultural, promover as condições de uma sociedade democráti- que importava, na verdade, era esforço metodológico de clarifi- ca, laica, universal e pautada nas conquistas da ciência. Por efeito cação e coerência da linguagem do direito, esforço que foi prosse- deste clima cultural, Bobbio, Geymonat e Abbagnano fundaram, guido pelos estudos dos discípulos da escola analítica de Turim, com outros intelectuais, em Turim, em 1946, um "Centro de Es- Uberto Scarpelli e Gavazzi, em defesa da concepção analítica do tudos Metodológicos". saber jurídico, objetivando também, como proposta, segundo a Em duas séries de conferências, entre 1946 e 1950, aquele avaliação de Alfonso Ruiz Miguel, a integração da filosofia analítica centro promoveu, dentre outros assuntos, a primeira agenda pro- com normativismo de Kelsen. As preocupações metodológicas gramática do positivismo lógico no âmbito dos estudos jusfilosófi- se emparelham, na construção da teoria jurídica positivista- na Itália, sob a influência das idéias de Carnap, resultando, analítica, com as da teoria geral do direito e da jurisprudência (ciência do direito). posteriormente, na escola analítica da filosofia jurídica. Bobbio, com a sua conferência "ciência do direito e análise da linguagem", Durante o período entre 1950 e 1960 Bobbio dedicou-se à naquele período, mostra a sua grande preocupação com os estu- construção de uma teoria geral do direito de caráter formal, afas- dos metodológicos da ciência jurídica, cujos temas vão se univer- tando dela as questões axiológicas e sociais, tornando-a, em grande salizar para além da cultura italiana, especialmente ao considerar o medida, semelhante à concepção normativista de base kelseniana. direito como discurso que deverá ser submetido à análise da lin- O combate intelectual se fez, especialmente, na arena onde outras guagem, nos limites da teoria da ciência segundo os paradigmas teorias foram consideradas impuras, como as de Carnelutti, Paul do positivismo lógico. Esta postura define claramente, na fala de Roubier ou Jean Dabin, ou incompletas, como as teorias realistas Riccardo Guastini, clima de rompimento paradigmático com as ou relacionistas. Entretanto, na mesma linha de Kelsen, Bobbio tendências jusnaturalistas e metafísicas na filosofia e na ciência do não excluía a validez e importância de outros saberes que analisa- Direito, dominantes na Itália na primeira metade do século XX. vam o direito sob outros aspectos e segundo outros princípios Estes fatos demarcam a atmosfera cultural dos estudos jurídicos metodológicos e científicos. Neste período, Bobbio acentua sua em que foi produzida sua "Teoria da Ciência Jurídica", publicação preocupação metodológica na crítica ao jusnaturalismo, a partir de esta derivada de um curso realizado pelo jusfilósofo italiano, no premissas claramente biênio 1949/1950. Neste sentido, e repelindo a duplicação do A construção da teoria geral do direito de Bobbio tem como saber jurídico que caracterizava o campo teórico e prático do di- preliminares os estudos de lógica jurídica (1954), onde diferencia reito, desde as concepções clássicas do jusnaturalismo do século as distintas categorias deônticas (proibição, obrigação e permissão) XVII até as formulações da sociologia jurídica da primeira metade e analisa as relações de oposição lógica entre as proposições nor- do século XX, Bobbio propugnou pela unidade desse saber vinca- mativas, base dos estudos de teoria geral do direito sobre, respec- do na idéia convencionalista da ciência e, por da tivamente, a imperatividade e permissividade das normas jurídicas jurisprudência como ciência empírica que elabora proposições e sobre as antinomias e lacunas do ordenamento jurídico. Foram sobre discurso normativo, mas cuja validade deste só tem reali- visitados os textos recém-publicados na época, de Kalinowski, Von dade se for polarizado com os fatos. Certamente, esta posição vai Wright e Garcia Maynez. Neste período, o nosso jusfilósofo tece e suscitar inúmeras críticas ao jusfilósofo (Enrico Opocher, Luigi desenvolve as premissas básicas da teoria geral do direito, parti- Caiani, Virgilio Giorgianni, entre outros), especialmente sobre a cularmente no que respeita à coatividade como elemento do or-</p><p>12 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA 13 TEORIA DA NORMA JURÍDICA APRESENTAÇÃO denamento jurídico e não da norma isolada; à coerência do orde- modo não reciprocamente dialético, ensejou o jusfilósofo brasilei- namento jurídico como princípio e não como fato e à permanente ro, Miguel Reale, a considerar que Bobbio propugnava por uma possibilidade de integração do ordenamento jurídico, que não é concepção tridimensional genérica do fenômeno jurídico e não em si mesmo completo. Tudo isso perfaz núcleo dos cursos que tridimensional específica, de base dialética, como a dele. Assim, Bobbio realizou em dois biênios, 1957/1958 e 1959/1960, sobre a Bobbio caracteriza, em tese, direito como objeto de três ciências norma jurídica e sobre ordenamento jurídico, respectivamente, distintas: quanto a sua formação e evolução, isto é, quanto à eficá- cursos inovadores no que respeita ao enfoque analítico-lingüístico cia a que correspondem os problemas de observância, aplicação da teoria geral do direito, emparelhados com as posições da mes- efetiva e sanção da norma jurídica (sociologia do direito); quanto a ma vertente teórica de Alf Ross (Direito e 1958) e de Hart sua estrutura formal, a que corresponde a questão da validez, ou (O Conceito de Direito, 1961), que apareceram nesse mesmo seja, aos problemas de existência da norma jurídica (jurisprudência período, embora com fundamentos empíricos diferentes. Note-se ou ciência formal do direito), independentemente do juízo de valor que também, em 1960, é publicada a segunda edição revisada e que sobre ela se possa emitir; e, finalmente, quanto ao seu valor, aumentada da Teoria Pura do Direito de Kelsen, indicando um ao qual correspondem os problemas ideais de justiça ou injustiça momento histórico fecundo na órbita da metateoria do direito. da norma jurídica (filosofia do direito). Estes três critérios, segundo Bobbio, são independentes entre si, no sentido de que a justiça de A teoria da norma jurídica, objeto deste livro, é, pois, uma uma norma jurídica não é condição de sua validez ou eficácia; que parte da teoria geral do direito de Bobbio, tal como concebida no a sua validez nada tem a haver com a eficácia e a justiça; e, final- período citado, sofrendo alterações e revisões posteriores. Ela é mente, que a eficácia igualmente independe da validez e da justi- completada pela teoria do ordenamento jurídico, do mesmo perío- ça. Isto supõe, na opinião do jusfilósofo brasileiro Miguel Reale, a do, já traduzida para nosso vernáculo. Na teoria da norma jurí- simples generalização empírica das múltiplas facetas do direito e dica, o jusfilósofo de Turim dedica-se inicialmente, no primeiro não, conforme culturalismo jurídico de índole neokantiana pro- capítulo, à crítica das concepções institucionalistas e realistas (rela- fessado por este último, a expressão da dialética de implicação e cionistas); ao monismo e estatalismo jurídicos; ao significado ideoló- polaridade recíproca entre aqueles aspectos, ao elevá-los à catego- gico da teoria; às relações intersubjetivas (jurídicas) autônomas, ria de "dimensões" de um mesmo fenômeno. Finalizando o capí- abrindo por a perspectiva do tratamento normati- vista do direito como a mais coerente e completa. É preciso notar, tulo, Bobbio trata das possíveis confusões entre os três critérios acima aduzidos e traça um panorama crítico do direito natural, do entretanto, que neste período Bobbio está envolvido com uma positivismo jurídico e do realismo jurídico. concepção estrutural do direito, ficando para depois, por conta da crise do positivismo na Itália, como vamos ver, a sua preocupação Calcado nos estudos lógicos de Copi, na análise da linguagem com a linha funcionalista do direito. e moral de Hare e nas reflexões sobre a definição e o conceito de direito de Scarpelli, Bobbio, no terceiro capítulo, desenvolve uma No segundo capítulo, aborda os critérios da validez, da eficácia e série de considerações sobre a estrutura da norma jurídica do da justiça como critérios distintos de investigação jurídica, critérios ponto de vista formal, isto é, da norma jurídica independente- estes que levam a disciplinas distintas, independentes, mas não mente de seu conteúdo. Como estrutura a nor- excludentes entre si. Estes critérios correspondem, respectiva- ma jurídica pode ser preenchida pelos mais diversos conteúdos. mente, às funções ontológica, fenomenológica e deontológica da Porém, ela se manifesta como proposição prescritiva, cujo valor é filosofia do direito. Esta forma de entender os três critérios, de a validade, e não como proposição descritiva, cujo valor é a vera- cidade. Como proposição (prescritiva), a norma jurídica é um Publicado em português na Série Clássicos Edipro, trad. e notas de Edson Bini, 2000.</p><p>14 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA 15 TEORIA DA NORMA JURÍDICA APRESENTAÇÃO conjunto de que tem um significado. A mesma proposi- normativos dinâmico e estático, o primeiro relacionado com a ção normativa, o mesmo sentido, pode formular-se com diferentes autoridade que a norma, independentemente de seu conteú- enunciados Isto quer dizer que Bobbio já atinava com do, e o segundo, com o conteúdo de valor seguido autonoma- a distinção entre texto normativo (literal) e a norma jurídica mente pelo endereçado, de acordo com suas etc. Estas como estrutura de sentido, inconfundível mas dependente de seu linhas, em resumo, dão apenas uma pálida idéia do que o ilustre enunciado. Por isso, que interessa ao jurista, quando interpreta a autor deste livro pretende abordar em sua teoria da norma jurídica. lei, é seu significado e não apenas enunciado literal correspon- O sentido normativo, a norma jurídica, portanto, é o pro- Outras questões de suma importância são abordadas nesta duto de uma interpretação e não o objeto da interpretação. O parte da Teoria Geral do Direito. Bobbio analisa, no quarto capí- objeto a ser interpretado é enunciado, texto do qual tulo, com grande acuidade e de forma profunda, dentre outros sobressai, mediante a interpretação, significado, a norma jurídica. assuntos, problema da imperatividade do direito; dos imperati- positivos e negativos; dos comandos e imperativos impessoais; No âmbito de sua preocupação analítica, visando esclareci- do direito como norma técnica; dos destinatários da norma jurídi- mento pragmático-lingüístico do discurso do direito, Bobbio distin- ca; das relações entre imperativos e permissões; dos nexos entre vários tipos de proposições, segundo os critérios da forma imperativos e juízos de valor etc. gramatical e da função da linguagem. Analisa as três funções fun- damentais da linguagem, a descritiva, a expressiva e a prescritiva, No capítulo quinto desta obra, Bobbio empreende tenazmente e mostra que elas dão origem a três tipos de linguagem bem dis- a tarefa de esclarecer as relações entre a sanção e direito. Esta tintos, caracterizando, assim, a linguagem científica (fazer conhe- questão é de suma importância, pois permite demarcar o limite cer), a poética (fazer participar) e a normativa (fazer fazer), a pri- entre a concepção estrutural do direito, dominante no período da meira performativa do discurso teórico e a última, do discurso edição desta obra, e a concepção funcional do direito, professada normativo, incluindo aqui discurso jurídico-imperativo. Já nesse por Bobbio posteriormente, em decorrência da crise do positivis- período do positivismo analítico, Bobbio faz notar que entre as mo jurídico. Do ponto de vista estrutural-positivista, nenhum dos características das proposições prescritivas está precisamente critérios examinados bastou para caracterizar plenamente o direi- fato de elas exigirem justificação, de ordem persuasiva, por meio to, especialmente no que diz respeito à difícil distinção entre nor- da retórica, diferentemente das proposições descritivas, que exi- mas jurídicas, normas morais e normas sociais. Ao fazer um con- gem a condição lógica da demonstração e a condição empírica fronto entre estas normas, Bobbio faz notar a característica especí- da verificação. fica do direito como conjunto de normas (ordenamento) garanti- das por sanções externas e institucionalizadas Disto decorre, em Após uma série de outras questões relacionadas com a conver- primeiro lugar, que ordenamento jurídico é que fixa critério de sibilidade das proposições descritivas ou das proposições expressi- qualificação da norma jurídica como norma jurídica e não con- vas em proposições prescritivas, mostrando as várias tentativas trário. Vale dizer, ordenamento não é jurídico porque é consti- para esse efeito, Bobbio tece considerações analíticas sobre pro- tuído por normas jurídicas enquanto tais, mas, ao contrário, as blemas referentes aos imperativos autônomos e heterônomos, em normas são jurídicas porque justamente pertencem a um ordena- ordem à distinção entre moral e direito; sobre questões entre im- mento jurídico. O critério substancial da juridicidade é dado pelo perativos categóricos e imperativos hipotéticos, visando a melhor conjunto de normas, pelo ordenamento, e não pelas normas isola- compreensão da normatividade, especialmente a distinção entre damente consideradas. Isso vai ser explorado com maior verticali- normas éticas e normas técnicas; e sobre as questões da diferença dade em sua teoria do ordenamento jurídico que, com a presente entre comandos e conselhos, com fim de distinguir os sistemas obra, circunscreve núcleo de sua teoria geral do direito.</p><p>16 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA 17 TEORIA DA NORMA JURÍDICA APRESENTAÇÃO Por outro lado, a sanção, neste momento da teoria geral do di- tanto, a sua juridicidade calcada não no fato de ser ou não sancio- reito, é considerada, segundo jusfilósofo italiano, pelo seu lado nada, mas precisamente por pertencer a um sistema ou ordena- negativo, como reação institucionalizada de imposição de conduta mento jurídico. Com isto, Bobbio julga ter respondido à questão, destinada a fazer cumprir a norma violada. A relação entre a san- propugnada pelos defensores da tese oposta de caráter anti- ção e a lei jurídica pressupõe a violação ou transgressão, algo bem sancionista, da existência de normas jurídicas não garantidas por diferente do que ocorre com a lei natural. Se a lei científica não for uma sanção. A única dificuldade desta posição é a referente à or- observada, deixa de ser lei científica, pois não comporta exceção. dem jurídica internacional em que se torna difícil falar-se em san- Ao contrário, a lei jurídica (a norma jurídica) não observada cons- ção organizada, promovida por um organismo unificado. Bobbio titui sua violação ou transgressão, mas ela continua válida, que tenta superar esta limitação fazendo a distinção entre autotutela e motiva a aplicação da sanção. A norma jurídica, portanto, está sob heterotutela, postulando que se esta última é mais perfeita em regime da liberdade e não da necessidade. Ali, por não observa- razão da maior eficácia e garantia de melhor proporção entre ção do fato segundo a lei científica, modifica-se esta para reajustá- transgressão e sanção, aquela não deixa também de ser operacio- la ao fato. Aqui, pela transgressão da lei jurídica, procura-se inter- nal, em razão da regulamentação, interdependência dos Estados e ferir na ação transgressora e salvar a norma jurídica. Esta interfe- dos costumes internacionais. rência para anular, modificar ou neutralizar a ação transgressora, Finalizando o curso, no sexto capítulo, Bobbio aborda tema de forma institucionalizada, denomina-se sanção jurídica. Por meio da classificação das normas jurídicas, detendo-se sobre a análise desta, salvaguarda-se a norma da erosão das ações transgressoras, das questões relativas à generalidade e à abstração das normas cujo sentido contraria seu conteúdo prescritivo. jurídicas. Neste passo, jusfilósofo afirma, de início, que toda pro- Porém, a sanção apenas interior (sanção moral) não é sufici- posição prescritiva está formada por dois elementos constitutivos: ente para compor um mecanismo destinado a tornar a norma sujeito, isto é, destinatário da norma, e objeto da prescrição, socialmente eficaz e conduzir com segurança a ação de todos os representado pelo comportamento prescrito pela norma. Tanto o indivíduos da comunidade em direção à concórdia e à paz. Já a sujeito-destinatário como objeto-ação podem tomar, cada um, a sanção externa é de caráter heterônomo, provém de outros, to- forma universal, referente à classe de pessoas ou à ação-tipo, ou a mados individualmente ou em grupo. Contudo, se esta sanção é forma individual, referente a determinadas pessoas ou à ação par- de caráter social, isto não elide a subjetividade, ou a incerteza ou a ticular, consignando, assim, quatro situações proposicionais nor- indeterminação ou mesmo a desproporção entre a violação e a mativas diferentes. Posteriormente, Bobbio critica a doutrina tradi- resposta. Assim, a sanção para ser objetivamente jurídica, cons- cional que defende somente as características da generalidade e da tante e certa deve ser regulamentada e confiada a órgãos institucio- abstração para as normas jurídicas. Fundado na classificação ante- nalizados da sociedade. Nesse sentido, a sanção é elemento essen- rior, mestre italiano propõe também a existência de normas in- cial do direito, porém ela não se refere a cada uma das normas dividuais e concretas. As normas jurídicas são gerais se forem uni- individualmente consideradas, mas, diferentemente do positivismo versais com respeito aos destinatários, porque se dirigem a uma de Kelsen, ao conjunto das normas constitutivas do classe de pessoas, e são abstratas se forem universais com respeito ordenamento jurídico. Assim, para que exista direito eficaz, deve a uma classe de ações (ação-tipo). As normas serão particulares se haver a garantia de execução da sanção, fornecida pelos órgãos têm por destinatário um determinado indivíduo, e são concretas se institucionalizados da comunidade jurídica. Esta institucionalização regulam uma ação particular. pressupõe a existência de um sistema de normas, de um tipo de Bobbio finaliza capítulo e, com isso, curso sobre a teoria da ordenamento que se qualifica como jurídico. A norma tem, por- norma jurídica, apresentando e explicando o velho quadro das</p><p>18 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA 19 TEORIA DA NORMA JURÍDICA APRESENTAÇÃO oposições lógicas, de origem aristotélica. Ali trata das relações de objetivando as condições jurídicas da promoção social e inferência imediata, e sua tradução para as proposições prescriti- econômica, próprias dos Estados sociais. vas, articulando as equivalências da categoria deôntica da obriga- ção com as da proibição e das permissões positiva e negativa, as Entretanto, mestre italiano está longe de substituir o enfoque quais deverão ser utilizadas, no curso seguinte sobre a teoria do da análise estrutural do direito, dominante na primeira fase de ordenamento jurídico, nas explicações e soluções a respeito das suas investigações acadêmicas, pela análise funcional ou teleológi- antinomias jurídicas. ca do direito. A primeira via de investigação, a da análise estrutu- ral, que responde à pergunta "de que se compõe direito?", é No período seguinte ao dos cursos acima mencionados, após um complementada e aprofundada pela segunda via de pesquisa, a da intenso debate teórico e desenvoluimentos conceituais mais precisos análise funcional, que responde à pergunta "para que serve o di- sobre o positivismo jurídico e sobre o jusnaturalismo, com uma reito?", onde se coloca em jogo a relação entre meio e fim, numa crítica mais acentuada sobre positivismo kelseniano, especial- perspectiva mais sociológica do que lógica. Nesse sentido, mais mente no que respeita à natureza da norma fundamental e de suas tarde, nos estudos da obra intitulada "Dalla struttura alla funzio- relações com poder, nosso autor realiza uma revisão extensa e ne", editada em 1977, Bobbio reúne os seus mais maduros e signi- bastante significativa de sua posição no que respeita à teoria da ficativos trabalhos sobre tema. Ali, procura esclarecer motivo sanção jurídica. Esta revisão está fundada nas profundas alterações do pouco interesse, até aquele período, pela análise funcional do do panorama político, social e econômico que marcaram singu- direito, bem como o nascente e crescente interesse por esta análise larmente o mundo europeu, no final dos anos 60 do século XX, finalística, que demanda considerações de conteúdo que traspassa levando à crise do positivismo jurídico, como ideologia e como a mera análise formal da estrutura do ordenamento. De qualquer teoria, no âmbito da filosofia do direito. forma, o professor italiano não exclui um tipo de análise por outro. No período anterior, professor italiano defendeu, como vi- Em seu Prólogo à edição castelhana da Teoria Geral do Direito, mos, uma teoria geral do direito formal isenta de valorações e de editada em 1987, Bobbio faz clara a sua posição ao afirmar que considerações sociais, contra os jusnaturalistas e sociólogos do "Os elementos deste universo (do direito), que são postos em evi- direito, em nome da objetividade da ciência que visa antes conhe- dência pela análise estrutural, são diferentes daqueles que podem cer a realidade do que valorá-la, e da ciência normativa que busca ser postos em evidência pela análise funcional. Os dois pontos de estudo da esfera do dever ser e não do ser. Porém, já no fim da vista não só são perfeitamente compatíveis senão que se integram década de 60, Bobbio, em um trabalho publicado sob título "A mutuamente e de maneira sempre útil. Se ponto de vista estru- função promocional do direito", aponta para as novas técnicas de tural é predominante em meus cursos de teoria do direito, isto se controle social como exigência do Estado social contemporâneo. deve exclusivamente ao fato de que quando os desenvolvi esta era Estas técnicas não são centradas apenas no desalento de determi- a orientação metodológica dominante em nossos estudos. Se hoje nados comportamentos repudiados pela sociedade, mediante a os devesse retomar, decididamente não pensaria em substituir a aplicação de sanções negativas, de caráter punitivo ou repressivo, teoria estruturalista pela funcionalista. Agregaria uma segunda mas também nas formas de estímulo às condutas desejadas, medi- parte sem sacrificar nada da primeira." ante a aplicação de sanções positivas, de caráter promocional. Vê-se, por estas rápidas linhas, que a obra que o leitor tem em Posteriormente, em 1971, Bobbio considera a distinção entre as mãos, editada pela Edipro, é testemunho de um momento da teorias do direito que o enfocam sob o ponto de vista estrutural, evolução do pensamento do grande mestre italiano, a qual não se pautadas na perspectiva protetora ou repressiva do direito, própria como algo ultrapassado porque editada em seu vernáculo dos Estados liberais, e as que enfocam sob ângulo funcional, original há mais de quarenta anos, mas como uma forma de análi-</p><p>20 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA se do direito sempre imprescindível para aqueles que desejam desenvolver e aprofundar seus estudos jurídicos. A investigação desta forma de ver o direito não só completa a formação e a cultu- ra do jurista, mas também fornece os fundamentos e os horizontes para a plena compreensão das teorias mais atuais, o que mostra a necessidade de tê-la sempre à mão. São Paulo, agosto de 2001 NOTA DOS TRADUTORES Nestes últimos anos, no exercício de nossa dupla atividade Alaôr Caffé Alves acadêmica na Faculdade de Direito da Universidade de São Pau- Professor Associado da Faculdade de Direito lo, ou seja, como alunos da pós-graduação e professores bolsistas do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, enfrenta- da Universidade de São Paulo mos a dificuldade crônica de ter de consultar obras clássicas da literatura jurídica universal ainda sem tradução para o vernáculo pátrio. Uma das obras investigativas mais importantes escritas no século XX, no campo da pesquisa jusfilosófica, é justamente a Teoria della Norma Giuridica, escrita por Norberto Bobbio, que finalmente temos a honra de apresentar, através desta primeira tradução mundial em língua portuguesa. A idéia de traduzir este tratado, fundamental para a compreen- são teórica do fenômeno jurídico, surgiu há algum tempo, mas a iniciativa de realizar efetivamente trabalho foi inspirada nas co- memorações, em toda a Europa, dos noventa anos de vida de Bobbio, em outubro de 1999, que nos encorajou a também oferecer nossa pequena homenagem ao emérito professor. Escrevemos, então, uma carta para professor (e também se- nador vitalício) Bobbio, expondo nosso projeto, e em poucos dias recebemos sua amável resposta, nos incentivando e autorizando a negociar os direitos autorais com a editora Giappichelli, de Turim. Em seguida, contatamos a editora paulista Edipro, cientes de sua criteriosa seleção de publicações filosóficas e jurídicas e de sua exímia qualidade gráfica, que imediatamente nos deu todo apoio necessário.</p><p>22 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA A tradução foi realizada com rigorismo técnico possível, bus- cando atingir a fidelidade máxima ao texto original da obra em italiano. Mesmo assim, os obstáculos foram inúmeros, obviamente pertinentes a toda tradução de uma obra jurídico-literária maior, como a Teoria da Norma Jurídica, em que algumas expressões idiomáticas e termos técnicos não têm correspondência em nossa língua, bem como certas metáforas perdem sentido em nossa cultura. Porém, nossa grande preocupação, durante a árdua tare- CAPÍTULO I fa, sempre foi manter primoroso estilo do autor, isto é, límpido, mas denso, ao expor idéias complexas, a um só tempo com clareza e profundidade. DIREITO Esperamos que esta obra traduzida venha suprir uma grave la- COMO REGRA DE CONDUTA cuna na bibliografia de filosofia do direito disponível em portu- guês. Temos a certeza de que será muito útil para alunos e profes- sores de graduação e de pós-graduação em direito, filosofia e ciências sociais, e também para todos aqueles que queiram apro- fundar seus conhecimentos sobre normas jurídicas, mormente Sumário: 1. Um mundo de normas 2. Variedade e sobre as características fundamentais que as distinguem de outras multiplicidade das normas 3. O direito é instituição? espécies de normas de conduta social. 4. O pluralismo jurídico 5. Observações críticas 6. O direito é relação intersubjetiva? 7. Exame de Por fim, agradecemos a todos os colaboradores que, de muitas uma teoria 8. Observações críticas. formas, nos auxiliaram para que nosso ambicioso projeto se con- cretizasse neste livro, em especial ao próprio professor Norberto Bobbio que, do patamar de sua inestimável grandeza intelectual, nos acolheu com a humildade que apenas os sábios remanescen- 1. UM MUNDO DE NORMAS tes da pura linhagem socrática podem alcançar. A ele, dedicamos esta tradução como homenagem, ainda que um pouco tardia, por seus noventa anos, já nos desculpando pre- O ponto de vista acolhido neste curso para estudo do di- viamente se, por alguns momentos, e apesar dos esforços em reito é ponto de vista normativo. Com isto, entendo que O contrário, corremos risco, inerente ao desafio a que nos propu- melhor modo para aproximar-se da experiência jurídica e semos, de sermos talvez identificados pela espirituosa e intraduzí- apreender seus traços característicos é considerar direito vel alcunha italiana: traduttori traditori. como um conjunto de normas, ou regras de conduta. Come- Obs.: A tradução dos títulos de algumas das obras citadas e ainda não cemos então por uma afirmação geral do gênero: a experiência editadas em português, foi feita de forma livre. jurídica é uma experiência normativa. Os Tradutores A nossa vida se desenvolve em um mundo de normas. Acreditamos ser livres, mas na realidade, estamos envoltos em Agosto de 2001 uma rede muito espessa de regras de conduta que, desde</p><p>24 NORBERTO BOBBIO Capítulo I 25 TEORIA DA NORMA JURÍDICA o DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA nascimento até a morte, dirigem nesta ou naquela direção as "civilização". Há, indubitavelmente, um ponto de vista norma- nossas ações. A maior parte destas regras já se tornaram tão tivo no estudo e na compreensão da história humana: habituais que não nos apercebemos mais da sua presença. ponto de vista segundo qual as civilizações são caracterizadas Porém, se observarmos um pouco, de fora, desenvolvimento pelos ordenamentos de regras nas quais as ações dos homens da vida de um homem através da atividade educadora exerci- que as criaram estão contidas. A história se apresenta então da pelos seus pais, pelos seus professores e assim por diante, como um complexo de ordenamentos normativos que se suce- nos daremos conta que ele se desenvolve guiado por regras de dem, se se contrapõem, se integram. Estudar uma conduta. Com respeito à permanente sujeição a novas regras, civilização do ponto de vista normativo significa, afinal, per- já foi justamente dito que a vida inteira, e não só a adolescên- guntar-se quais ações foram, naquela determinada sociedade, cia, é um contínuo processo educativo. Podemos comparar proibidas, quais ordenadas, quais permitidas; significa, em ou- nosso proceder na vida com o caminho de um pedestre em tras palavras, descobrir a direção ou as direções fundamentais uma grande cidade: aqui a direção é proibida, lá a direção é em que se conduzia a vida de cada indivíduo. Perguntas do obrigatória; e mesmo ali onde é livre, lado da rua sobre gênero: "Junto a determinado povo, eram permitidos ou proi- qual ele deve manter-se é em geral rigorosamente sinalizado. bidos os sacrifícios humanos? Era proibida ou permitida a poli- Toda a nossa vida é repleta de placas indicativas, sendo que gamia, a propriedade dos bens imóveis, a escravidão? Como umas mandam e outras proíbem ter um certo comportamento. eram reguladas as relações de família e que era permitido e Muitas destas placas indicativas são constituídas por regras de que era proibido ao pai ordenar aos filhos? Como era regulado direito. Podemos dizer desde já, mesmo em termos ainda gené- exercício do poder e quais eram os deveres e os direitos dos ricos, que direito constitui uma parte notável, e talvez tam- súditos diante do chefe, e quais os deveres e os direitos do bém a mais visível, da nossa experiência normativa. E por isso, chefe diante dos súditos?", são todas perguntas que pressu- um dos primeiros resultados do estudo do direito é de nos conhecimento da função que tem sistema normativo tornar conscientes da importância do "normativo" na nossa de caracterizar uma dada sociedade; e não podem ser respon- existência individual e social. didas senão através do estudo das regras de conduta que mol- Se nos distanciarmos por um momento do homem singular daram a vida daqueles homens, distinguindo-a da vida de ou- e considerarmos a sociedade, ou melhor, as sociedades, dos tros homens, pertencentes a outra sociedade inserida em outro homens, se deixarmos de nos referir à vida do indivíduo e sistema normátivo. contemplarmos aquela vida complexa, tumultuada e sem inter- rupção das sociedades humanas, que é a História, O fenômeno 2. VARIEDADE E MULTIPLICIDADE DAS NORMAS da normatividade nos aparecerá de modo não menos impres- sionante e ainda mais merecedor da nossa reflexão. A História pode ser imaginada como uma imensa torrente fluvial represa- Nem bem começamos a deslocar olhar para mundo do da: as barragens são as regras de conduta, religiosas, morais, normativo e uma das razões de maior surpresa é que este jurídicas, sociais, que detiveram a corrente das paixões, dos mundo é enormemente vário e múltiplo. interesses, dos instintos, dentro limites, e que permiti- As normas jurídicas, às quais dedicaremos de modo parti- ram a formação daquelas sociedades estáveis, com suas cular a nossa atenção, não passam de uma parte da instituições e com os seus ordenamentos, que chamamos de cia normativa. Além das normas jurídicas, existem preceitos</p><p>26 NORBERTO BOBBIO Capítulo I 27 TEORIA DA NORMA JURÍDICA o DIREITO COMO REGRA DE religiosos, regras morais, sociais, costumeiras, regras daquela O número de regras que nós, seres que agem com finalida- ética menor que é a etiqueta, regras da boa educação, etc. de, cotidianamente encontramos em nosso caminho é incalcu- Além das normas sociais, que regulam a vida do indivíduo lável, ou seja, é tal que enumerá-las é um esforço vão, como quando ele convive com outros indivíduos, há normas que contar os grãos de areia de uma praia. O itinerário de todas as regulam as relações do homem com a divindade, ou ainda do nossas ações, ainda que modesto, é assinalado por um tal nú- homem consigo mesmo. Todo indivíduo pertence a diversos mero de proposições normativas que é dificilmente imaginável grupos sociais: à Igreja, ao Estado, à família, às associações que por aquele que age sem muito pensar nas condições em que têm fins econômicos, culturais, políticos ou simplesmente recrea- faz. Para dar um exemplo, tirado da vida cotidiana, vamos tivos. Cada uma destas associações se constitui e se desenvolve tentar perceber número de regras jurídicas (e refiro-me ape- através de um conjunto ordenado de regras de conduta. Cada nas às regras jurídicas para não estender muito a análise) que indivíduo, ademais, separado da sociedade a que pertence, traçam percurso do simples ato de enviar uma carta. A aqui- formula para a direção da própria vida programas individuais sição do selo é um negócio jurídico, particularmente, um con- de ação: também estes programas são conjuntos de regras. trato de compra e venda, regulado em detalhes pelo Código Cada grupo humano, cada indivíduo singular, enquanto esti- Civil, do qual derivam obrigações e portanto limites bem preci- pula objetivos a atingir, estipula também os meios mais ade- SOS para a conduta (o adquirente, por exemplo, deve oferecer quados, ou aqueles que julga mais adequados para atingi-los. justo preço e vendedor dar uma mercadoria sem defeitos). A relação meio/fim dá, geralmente, origem a regras de conduta Qual selo devo colar na carta? O tipo de selo a ser colado está do tipo: "Se você quer atingir objetivo A, deve praticar a ação prescrito em uma outra minuciosa regulamentação de tarifas B." São regras de conduta tanto os dez mandamentos quanto postais: e depende, não só do tipo de remessa, mas do seu as prescrições do médico, tanto os artigos de uma Constituição formato, do seu peso, da maior ou menor garantia que eu que- quanto as regras do xadrez ou do bridge, tanto as normas de ro ter pela sua entrega à destinação. Como devo colar selo? direito internacional, que estabelecem como devem comportar- Posso colá-lo como e onde quiser? No nosso ordenamento, se os Estados em suas relações recíprocas, quanto o regula- não há limites para esta ação (e portanto é uma ação permiti- mento de um condomínio, tanto as consideradas normas so- da, ou pelo menos sujeita não a um comando, mas a um con- ciais quanto as regras da gramática, da sintaxe de uma língua, selho); porém não se pode excluir a possibilidade de que ama- tanto as normas religiosas para bom proceder nesta vida nhã até mesmo isto se torne regulado juridicamente, decorren- quanto as regras de trânsito para mover-se no tráfego sem aci- do daí que agir contra a regra traria desagradá- dentes. Todas essas regras são muito diversas pelas finalidades veis, como a de que a carta não chegue a seu destino ou então que perseguem, pelo conteúdo, pelo tipo de obrigação que a de uma multa. No momento em que eu colo o selo correto, fazem surgir, pelo âmbito de suas validades, pelos sujeitos a surge uma nova relação, nada menos que entre mim e a admi- quem se dirigem. Mas todas têm em comum um elemento ca- nistração pública, e deste vínculo nascem obrigações (não es- racterístico que consiste, como veremos melhor em seguida, em tamos a precisar se perfeitas ou imperfeitas, em quais casos ser proposições que têm a finalidade de influenciar o compor- perfeitas e em quais casos não) para que a carta alcance seu tamento dos indivíduos e dos grupos, de dirigir as ações dos destino. O trajeto da carta, do momento em que parte ao mo- indivíduos e dos grupos rumo a certos objetivos ao invés de mento em que chega, é fonte de inumeráveis obrigações por rumo a outros. parte de todos aqueles que a este trajeto estão relacionados:</p><p>28 NORBERTO BOBBIO Capítulo I 29 TEORIA DA NORMA JURÍDICA DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA empregados postais, encarregados do transporte das cartas, O conceito de direito deve conter os seguintes elementos es- carteiros, etc. Finalmente, como se não bastasse, escrever uma senciais: carta envolve também a Constituição. De fato, o que significa a) Antes de tudo, deve-se retornar ao conceito de socieda- art. 15 da Constituição italiana que diz: "a liberdade e sigilo de, isto em dois sentidos recíprocos que se completam: da correspondência e de toda outra forma de comunicação são que não sai da esfera puramente individual, que não su- invioláveis", senão que no ato de enviar uma carta, surge em pera a vida de cada um enquanto tal, não é direito (ubi mim um direito subjetivo para que esta carta, por exemplo, não ius ibi societas) e, além disso, não há sociedade, no sen- seja aberta pelas autoridades policiais e, portanto, uma limita- tido correto da palavra, sem que nela se manifeste fe- ção obrigatória à ação dos órgãos estatais? nômeno jurídico (ubi societas ibi ius). 3. DIREITO É INSTITUIÇÃO? b) O conceito de direito deve, em segundo lugar, conter a idéia de ordem social: que serve para excluir cada ele- mento que conduza ao arbítrio puro ou à força material, Embora possa parecer, pelo que se disse até aqui, que isto é, não ordenada... Cada manifestação social, elemento característico da experiência jurídica seja fenômeno mente pelo fato de ser social, é ordenada pelo menos em da normatização, sendo portanto legítimo ponto de vista relação aos cidadãos... normativo por onde iniciamos, não podemos deixar de men- cionar que existem teorias diversas da normativa, que conside- c) A ordem social posta pelo direito não é aquela que é ram como elementos característicos da experiência jurídica dada pela existência, originada de qualquer maneira, de fatos diversos das regras de conduta. Há, segundo penso, pelo normas que disciplinam as relações sociais: ela não exclui menos duas teorias que são distintas da normativa: a teoria do tais normas, ao contrário, serve-se delas e as compreen- direito como instituição e a teoria do direito como relação. An- de em sua órbita; contudo, ao mesmo tempo, as ultra- tes de proceder adiante, devemos examiná-las, com intuito passa e supera. Isto quer dizer que, antes de ser norma, de julgar sua maior ou menor validade. antes de concernir a uma simples relação ou a uma série de relações sociais, é organização, estrutura, situação da A teoria do direito como instituição foi elaborada, ao menos na Itália (deixo de ocupar-me daquela que habitualmente se mesma sociedade em que se desenvolve, e a qual cons- titui como unidade, como ente por si considera como precedente francês, ou seja, a doutrina de Hauriou), por Santi Romano em um livro muito importante: Disto se vê que, para Romano, os elementos constitutivos L'Ordinamento Giuridico [O Ordenamento Jurídico ed. do conceito de direito são três: a sociedade, como base de fato 1917, ed. revista e anotada, 1945)]. O polêmico alvo de sobre a qual o direito ganha existência; a ordem, como fim a Romano é precisamente a teoria normativa do direito. Desde que tende direito; e a organização, como meio para realizar a as primeiras páginas ele lamenta a insuficiência e os equívocos ordem. Pode-se dizer, em síntese, que para Romano existe da teoria normativa tal como é aceita pela maior parte dos ju- direito quando há uma organização de uma sociedade ordena- ristas, e contrapõe à concepção do direito como norma, a con- da ou, em outras expressões análogas, uma sociedade ordena- cepção do direito como instituição. O que ele entende por ins- da através de uma organização, ou uma ordem social organi- tituição se extrai do tópico 10, do qual aqui reproduzo os pon- zada. Esta sociedade ordenada e organizada é aquilo que Ro- tos relevantes. mano chama de instituição. Dos três elementos constitutivos.</p><p>30 NORBERTO BOBBIO Capítulo I 31 TEORIA DA NORMA JURÍDICA DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA mais importante, aquele decisivo, é certamente terceiro, a dade não jurídica, esta teoria rompeu com círculo fechado da organização: os dois primeiros são necessários, mas não sufici- teoria estatalista do direito, que considera direito apenas di- entes. Só terceiro é a razão suficiente do direito, a razão pela reito estatal, e identifica âmbito do direito com do Estado. qual direito é aquilo que é, e sem a qual não seria que é. Embora possa escandalizar um pouco jurista que, limitando Isto significa que o direito nasce no momento em que um gru- as suas próprias observações e estudo ao ordenamento jurídico po social passa de uma fase inorgânica para uma fase orgânica, estatal, é induzido a julgar que não haja outro direito senão da fase de grupo inorgânico ou não organizado para a fase de aquele do Estado, para a teoria institucionalista, até uma asso- grupo organizado. Por exemplo, a classe social é certamente ciação de delinqüentes, desde que seja organizada com a fina- uma forma de grupo humano, mas não tendo uma organização lidade de manter ordem entre seus membros, é um orde- própria, não exprime um direito próprio, não é uma instituição. namento jurídico. Além disso, não existiram, historicamente, Uma associação de delinqüentes, ao contrário, que se exprime Estados que pudessem ser comparados com associações de em uma organização e cria seu próprio direito (o direito da delinqüentes, devido à violência e à fraude com que se condu- sociedade de delinqüentes), é uma instituição. O fenômeno da ziram frente aos seus cidadãos e àqueles de outros Estados? passagem da fase inorgânica para a fase orgânica se chama Não chamava Santo Agostinho os Estados de magna latroci- também institucionalização. Dizemos que um grupo social se nia? E eram talvez por isso menos Estados, isto é, menos orde- institucionaliza quando cria a própria organização, e através namentos jurídicos do que aqueles Estados que porventura se dela se torna, segundo Romano, um ordenamento jurídico. fizeram conduzir segundo a justiça? Com isto, no entanto, se revela uma incongruência, embora A teoria estatalista do direito é produto histórico da forma- marginal, na doutrina de Romano: se é verdade que a organi- ção dos grandes Estados modernos, erigidos sobre a dissolução zação é o elemento constitutivo primário da sociedade jurídica, da sociedade medieval. Esta sociedade era pluralista, isto é, e se também é verdade que há sociedades não organizadas, formada por vários ordenamentos jurídicos, que se opunham pode-se aceitar a máxima ubi ius ibi societas, mas não se pode ou se integravam: havia ordenamentos jurídicos universais, aceitar a máxima inversa, também acolhida por Romano, ubi acima daqueles que hoje são os Estados nacionais, como a societas ibi ius. Em outras palavras: pode-se muito bem admitir Igreja e Império, e havia ordenamentos particulares abaixo que direito pressuponha a sociedade, ou que seja produto da sociedade nacional, como os feudos, as corporações e as da vida social, mas não se pode admitir que toda sociedade comunas. Também a família, considerada pela tradição do seja jurídica. pensamento cristão como uma societas naturalis, era em si mesma um ordenamento. O Estado moderno foi formado atra- 4. o PLURALISMO JURÍDICO vés da eliminação ou absorção dos ordenamentos jurídicos superiores e inferiores pela sociedade nacional, por meio de um processo que se poderia chamar de monopolização da pro- É preciso reconhecer mérito da teoria institucionalista de dução jurídica. Se por poder entendêssemos a capacidade que ter alargado os horizontes da experiência jurídica para além das têm certos grupos sociais de emanar normas de conduta váli- fronteiras do Estado. Fazendo do direito um fenômeno social e das para a totalidade dos membros daquela comunidade, e de considerando o fenômeno da organização como critério fun- fazê-las respeitadas recorrendo até mesmo à força (o conside- damental para distinguir uma sociedade jurídica de uma socie- rado poder coativo), a formação do Estado moderno caminha-</p><p>NORBERTO BOBBIO Capítulo 33 32 TEORIA DA NORMA JURÍDICA DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA ria lado a lado com a formação de um poder coativo sempre de Scienza Giuridica, 1929, pp. 43-125); pelos historiadores do mais centralizado, e portanto com a gradual supressão dos direito como Grosso, que se vale do conceito de instituição e centros de poder a ele inferiores e superiores, que gerou da teoria da pluralidade de ordenamentos jurídicos, para uma como a eliminação de todo centro de produção mais adequada compreensão do direito romano [ver Problemi jurídica que não fosse próprio Estado. Se hoje persiste ainda generali del diritto attraverso il diritto romano (Problemas Ge- uma tendência em identificar direito com direito estatal, rais do Direito através do Direito Romano), Giappichelli, 1948, essa é a histórica do processo de centralização do pp. 3 e ss.]; e, mais recentemente, por um civilista, Salvatore poder normativo e coativo que caracterizou surgimento do Romano, que retomando estudo de Cesarini-Sforza, reexa- Estado nacional moderno. A máxima consagração teórica deste mina todo problema do direito privado à luz da teoria da processo é a filosofia do direito de Hegel, na qual Estado é pluralidade de ordenamentos jurídicos giuridici considerado Deus terreno, ou seja, sujeito último da histó- privati" ("Ordenamentos jurídicos privados"), em Rivista Tri- ria, que não reconhece nem abaixo nem acima de si, qualquer mestrale del Diritto Pubblico, 1995, pp. 249-331]. Uma aplica- outro sujeito, e a quem os indivíduos e os grupos devem obe- ção ao caso específico da relação entre ordenamento cava- diência incondicional. lheiresco e ordenamento estatal foi realizada com incompa- rável apuro por Piero Calamandrei [ver ensaio "Regole ca- A doutrina institucionalista representa uma reação ao esta- valleresche e processo" ("Regras cavalheirescas e processo") de talismo. Ela é uma das tantas maneiras pelas quais os teóricos 1929, em Studi sul processo civile (Estudos sobre Processo do direito e da política tentaram resistir à invasão do Estado. Civil), III, pp. 155-170]. Ela nasce, ora da revaloração das teorias jurídicas da tradição cristã, como em Georges Renard [ver a Théorie de l'institution (Teoria da 1930], ora da influência das correntes 5. OBSERVAÇÕES CRÍTICAS socialistas libertárias (Proudhon), ou anárquicas, ou sindicalis- tas como é caso de Georges Gurvitch [ver L'idée du droit social (A Idéia do Direito Social), 1932, e a Dichiarazione dei Toda teoria pode ser considerada do ponto de vista do seu diritti sociali (Declaração dos Direitos Sociais), 1949], e se con- significado ideológico e do ponto de vista do seu valor científi- verte em teoria do direito, na França, com Maurice Hauriou, e CO. Como ideologia, uma teoria tende a afirmar certos valores na Itália com Santi Romano. Foi acolhida e universalizada na ideais e a promover certas ações. Como doutrina científica, sua Itália por Guido que considerando instituição até mesmo meta não é outra senão compreender uma certa realidade e a relação jurídica entre duas pessoas, faz dela a categoria pri- dar-lhe uma explicação. Aqui não estamos discutindo a teoria mária da experiência jurídica [ver a Storia come esperienza da instituição como ideologia, e por isso não nos propomos a giuridica (História como Experiência Jurídica), 1953]. Encon- julgar se é bom ou mau, útil ou nocivo, oportuno ou inoportu- trou fecunda aplicação no estudo dos ordenamentos particula- no afirmar que Estado não é único centro produtor de res ou das situações concretas por parte de um filósofo do di- normas jurídicas, nem quais são as práticas reito como Cesarini-Sforza, que estuda o direito dos particula- desta afirmação. A teoria da instituição é por nós examinada res, isto é, a esfera da chamada "autonomia privada", como como teoria científica, isto é, como teoria que se propõe a ofe- um ordenamento jurídico distinto do ordenamento estatal recer meios distintos e melhores do que os oferecidos pela teo- diritto dei privati" ("O direito dos particulares"), in Rivista Italiana ria normativa para a compreensão do fenômeno jurídico. Di-</p><p>34 NORBERTO BOBBIO Capítulo I 35 TEORIA DA NORMA JURÍDICA DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA gamos somente, com relação ao alargamento dos horizontes do ria normativa se limita a afirmar que fenômeno originá- jurista para além das fronteiras do Estado, que problema rio da experiência jurídica é a regra de conduta, en- sobre qual se insiste na polêmica entre pluralistas e monistas, quanto que a teoria estatalista, além de afirmar que di- se direito é apenas aquele produzido pelo Estado ou também reito é um conjunto de regras, afirma que estas regras aquele produzido por grupos sociais diversos do Estado, é uma têm características particulares (por exemplo: serem coa- questão fundamentalmente de palavras. As definições de ter- tivas) e, como tais, distinguem-se de qualquer outro tipo mos científicos são convencionais (os lógicos falam de defini- de regra de conduta. A teoria estatalista é uma teoria ções estipulativas), que significa que ninguém tem mono- normativa restrita. E, portanto, não há nenhuma razão pólio da palavra "direito", e que pode ser usada tanto no senti- para se considerar a teoria normativa em si, menos am- do mais amplo quanto no mais restrito, conforme a ocasião em pla do que a teoria institucional. Em suma, não existe que único juiz é próprio cientista. Quem afirma que direito nenhuma razão que induza a rejeitar que a teoria nor- é apenas direito estatal, usa a palavra "direito" em sentido mativa também possa ser compatível com pluralismo restrito. Quem sustenta, seguindo os institucionalistas, que di- jurídico, já que não há nenhum motivo para restringir a reito é também aquele de uma associação de delinqüentes, usa palavra "norma", assim como é usada pela teoria nor- termo "direito" em sentido mais amplo. Porém, não há uma mativa, somente às normas do Estado. definição verdadeira e uma falsa, mas somente, se tanto, uma definição mais oportuna e uma menos oportuna. Posta a b) Romano escreveu que "antes de ser norma", o direito "é questão nestes termos, se devesse exprimir a minha opinião, organização". Ora, esta afirmação é contestável. O que diria que me parece mais oportuna a definição ampla, isto é, significa organização? Significa distribuição de tarefas de aquela proposta pelos institucionalistas, porque, limitando modo que cada membro do grupo contribua, segundo significado da palavra "direito" às normas de conduta emana- suas próprias capacidades e competências, para a reali- das do poder estatal, se contraria uso lingüístico geral que zação do fim comum; mas esta distribuição de tarefas chama de direito também direito internacional e aquele da não pode ser cumprida senão mediante regras de con- Igreja, que pode gerar algumas confusões. duta. E então, não é verdadeiro que a organização venha No que concerne ao valor científico da teoria da instituição, antes das normas, mas sim oposto, que as normas ve- isto é, se a consideração do direito como instituição é válida nham antes da organização. Uma sociedade organizada, para substituir a teoria normativa na compreensão e explicação uma instituição, é constituída por um grupo de indivíduos, do fenômeno jurídico, proponho as duas observações críticas os quais disciplinam suas respectivas atividades com seguintes: objetivo de perseguir um fim comum, isto é, um fim que não poderia ser alcançado por indivíduos sozinhos, iso- a) Antes de tudo, a teoria da instituição, acreditando com- ladamente considerados. A instituição nasce ali onde sur- bater a teoria normativa ao demolir a teoria estatalista do ge e toma forma uma certa disciplina de condutas indivi- direito, aponta para um alvo falso. A teoria normativa duais, destinada a conduzi-las a um fim comum. Mas não coincide absolutamente em linha de princípio com a uma disciplina é produto de uma regulamentação, isto teoria estatalista, ainda que, em linha de fato, muitos ju- é, de um complexo de regras de conduta. Particular- ristas estatalistas sejam normativistas e vice-versa. A teo- mente, para que se possa desenvolver processo de ins-</p><p>36 NORBERTO BOBBIO Capítulo I 37 TEORIA DA NORMA JURÍDICA DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA titucionalização que transforma um grupo inorgânico em produção de normas, quaisquer que sejam, não basta para criar um grupo organizado, isto é, em um ordenamento jurídi- uma instituição, é também verdadeiro que uma instituição não CO ocorrem três condições: 1) que sejam fixados os fins pode ser criada sem uma produção de regras. E portanto, a pro- que a instituição deverá perseguir; 2) que sejam esta- dução de regras é sempre fenômeno originário, ainda que não belecidos os ou pelo menos, os meios princi- exclusivo, para a constituição de uma instituição. pais que se consideram apropriados para alcançar aque- Tudo que dissemos até aqui para defender a teoria normati- les fins; 3) que sejam atribuídas as funções específicas va significa que talvez queiramos repelir totalmente a teoria da dos indivíduos componentes do grupo para que cada um instituição? Certamente, não. Para nós, a teoria da instituição colabore, através dos meios previstos, na obtenção do teve O grande mérito, mesmo prescindindo de seu significado fim. Ora, está claro que, quer a determinação dos fins, ideológico, que não pretendemos discutir, de pôr em relevo quer a determinação dos meios e das funções só podem fato de que somente se pode falar em direito onde há um ocorrer através de regras, sejam elas escritas ou não, pro- complexo de normas formando um ordenamento e, portanto, clamadas solenemente em um estatuto (ou Constituição) direito não é norma, mas conjunto coordenado de normas; ou aprovadas tacitamente pelos membros do grupo, concluindo, uma norma jurídica não se encontra nunca sozi- que vale dizer que processo de institucionalização e a nha, mas é ligada a outras normas com as quais forma um sis- produção de regras de conduta não podem andar sepa- tema normativo. Graças também à teoria da instituição, a teo- rados e que, portanto, onde quer que haja um grupo or- ria geral do direito veio evoluindo cada vez mais da teoria das ganizado, estaremos seguros de também encontrar um normas jurídicas à teoria do ordenamento jurídico, e os pro- complexo de regras de conduta que deram vida àquela blemas que vêm se apresentando aos teóricos do direito são organização ou, em outras palavras, se instituição equivale cada vez mais conexos à formação, à coordenação e à integra- a ordenamento jurídico, ordenamento jurídico equivale a ção de um sistema normativo. complexo de normas. Porém, assim, a teoria da instituição não exclui, ao contrário, inclui a teoria normativa do di- reito, a qual não sai dessa polêmica vencida, mas, talvez, 6. DIREITO É RELAÇÃO INTERSUBJETIVA? reforçada. Temos esta confirmação em um ensaio de M. S. Giannini, Que elemento característico da experiência jurídica seja a Sulla pluralità degli ordinamenti giuridici (Sobre a Pluralidade relação intersubjetiva é, ao contrário da teoria institucional, dos Ordenamentos Jurídicos, 1950), que, reafirmando a equi- doutrina velhíssima e periodicamente recorrente. Se observar- valência das duas expressões "grupo organizado" e "ordena- mos bem, ela nasce da mesma idéia fundamental de que nasce mento jurídico", tem cuidado de distinguir fenômeno da a teoria da instituição, qual seja, a de que direito é um fenô- normatização (isto é, da produção das normas) do fenômeno da meno social, que tem sua origem na sociedade. de se notar organização. Ele observa que pode haver normatização sem que a teoria da instituição surgiu criticando não apenas a teoria organização: por exemplo, a classe social, mesmo não sendo um normativa, como mostramos até aqui, mas também a teoria da grupo organizado, produz regras de conduta (normas sociais) relação intersubjetiva. Segundo os defensores do instituciona- para os seus componentes; mas não pode haver organização lismo (sobretudo os franceses), uma pura e simples relação sem normatização. Em outras palavras, se é verdadeiro que uma entre dois sujeitos não pode constituir direito; para que surja</p><p>38 NORBERTO BOBBIO Capítulo I 39 TEORIA DA NORMA JURÍDICA DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA direito, é necessário que esta relação esteja inserida em uma constitutivos do conceito de direito. E assim ele descreve série mais vasta e complexa de relações constituintes, ou seja, a primeiro destes requisitos: "O conceito de direito, quando se instituição. Duas pessoas isoladas que se encontram somente refere a uma obrigação correspondente... considera em pri- para estabelecer entre si a regulamentação de certos interesses meiro lugar apenas a relação externa, e precisamente prática, particulares, não constituem ainda direito. Este nascerá apenas de uma pessoa para com outra, enquanto suas ações possam quando esta regulamentação se tornar de um certo modo está- (imediatamente ou mediatamente) exercer, como fatos, influên- vel, e originar uma organização permanente da atividade dos cia umas sobre as outras" (op. cit., p. 406). Quanto ao segundo dois indivíduos. requisito, Kant afirma que esta relação entre dois sujeitos, para Os institucionalistas, em geral, refutam a doutrina da relação ser uma relação jurídica, deve se dar entre dois arbítrios, e não porque julgam que seja inspirada em uma concepção individua- entre arbítrio de um e simples desejo do outro. O que im- lista do direito, aquela prevalecente no jusnaturalismo dos sé- porta sobretudo a Kant, ao colocar o direito como relação entre culos XVII e XVIII, segundo a qual direito é produto da von- dois sujeitos, é afastar a tese de que ele possa consistir também tade dos indivíduos isolados, considerados cada um como uma em uma relação entre um sujeito e uma coisa. Para Kant, há unidade separada das outras e que, de fato, tinha elevado à quatro tipos possíveis de relações entre um sujeito e outros: 1) suprema categoria jurídica acordo entre duas ou mais vonta- a relação entre um sujeito que tem direitos e deveres com outro des individuais, isto é, contrato, de modo a gerar a sociedade que tem apenas direitos e não deveres (Deus); 2) a relação de por excelência, ou seja, Estado, mediante o ajuste de vonta- um sujeito que tem direitos e deveres com outro que tem ape- des entre indivíduos particulares que se chamou contrato social. nas deveres e não direitos (o escravo); 3) a relação de um su- A doutrina da instituição, ao contrário, se inspira nas correntes jeito que tem direitos e deveres com outro que não tem nem sociológicas mais modernas, que acusaram individualismo direitos nem deveres (os animais, as coisas inanimadas); 4) a jusnaturalista de utopismo e racionalismo abstrato, e afirmam a relação de um sujeito que tem direitos e deveres com outro que realidade do grupo social como distinta da dos indivíduos par- tem direitos e deveres (o homem). Destas quatro relações, ticulares que a compõem. Logo, partindo deste pressuposto, mente a última é relação jurídica. consideram direito como um produto não do indivíduo ou Uma segunda contraprova é dada pelo mais notável e influ- dos indivíduos, mas da sociedade em seu complexo. ente representante da corrente neokantiana na filosofia do di- Como contraprova da afirmação dos institucionalistas, se- reito contemporânea na Itália, Giorgio del Vecchio. Para Del gundo a qual a teoria da relação enterra suas raízes no indivi- Vecchio, mesmo princípio ético se pode traduzir em uma dualismo abstrato dos iluministas, pode-se lembrar que um dos dupla ordem de valoração: 1) em relação ao mesmo sujeito mais ilustres e coerentes representantes do iluminismo jurídico, que pratica a ação (que pode escolher a ação devida e afastar Immanuel Kant, expõe na sua Doutrina do Direito (1797) uma a proibida); 2) em relação aos sujeitos a quem a ação é dirigida clara teoria do direito como relação jurídica. Kant, depois de ter (que podem escolher entre deixar cumprir a ação ou impedi- dado sua célebre definição do Direito como "conjunto das la). A primeira ordem de valoração constitui a valoração moral; condições por meio das quais arbítrio de um pode acordar-se a segunda, a valoração jurídica. Daqui derivam a subjetividade com arbítrio de um outro segundo uma lei universal da liber- da ação moral e a intersubjetividade da ação jurídica, a unilate- dade" [Metafisica dei costumi (Metafísica dos Costumes), trad. ralidade da norma moral e a bilateralidade da norma jurídica; it., ed. Utet, 1956, p. 407] se a investigar os elementos deriva, conseqüentemente, a definição do direito como coor-</p><p>40 NORBERTO BOBBIO Capítulo I 41 TEORIA DA NORMA JURÍDICA o DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA denação objetiva do agir, O que implica na visão do direito (à valoriza ato em relação às coisas sobre as quais se exerce, ou, diferença da moral) como um conjunto de relações entre su- mais apropriadamente, em relação aos bens, materiais ou jeitos, onde se um tem O poder de executar uma certa ação, imateriais, com os quais sujeito tende a satisfazer suas neces- outro tem dever de não impedi-la. sidades; nem em relação a um ideal de vida, a que sujeito aspira aproximar-se, ou, mais particularmente, em relação à 7. EXAME DE UMA TEORIA divindade, que se crê observar e julgar todo movimento da alma; mas tão somente em relação a outros sujeitos, isto é, aos seus comportamentos, positivos ou negativos, complementares A mais recente teoria do direito como relação jurídica está ao comportamento do sujeito de quem se trata, na medida em exposta na Teoria generale del diritto (Teoria Geral do Direito que eles tenham O direito de exigir-lhe um determinado com- de Alessandro Levi, Pádua, Cedam, ed., 1953). Pode-se portamento, ou, ao contrário, um dever complementar a um dizer que Levi fez do conceito de relação jurídica a pilastra sobre direito seu, ou pelo menos a obrigação de abster-se de impedir a qual erigiu sua construção. Desde início, fala da relação jurí- esse comportamento" (p. 27). dica como conceito "sobre qual se funda a construção siste- mática, ou científica, de todo ordenamento jurídico" (p. 23). A Não obstante propósito várias vezes declarado de cons- relação jurídica tem sido muitas vezes definida como conceito truir uma teoria geral do direito fundada no conceito de relação fundamental do ordenamento jurídico: "Este conceito de rela- jurídica, receio que Levi não tenha permanecido sempre fiel a ção jurídica. não conceito de dever, nem de direito subje- seu intuito. Para realizá-lo, Levi deveria ter resolvido os pro- tivo, e tampouco de norma,... é conceito fundamental, blemas fundamentais da teoria geral do direito recorrendo ao central do ordenamento jurídico" (p. 26). Sua importância se conceito de relação jurídica. Mas isto nem sempre aconteceu. revela também no fato de que Levi eleva a conceito filosófi- Desde início, nos gera suspeita fato de considerar a norma co, quase uma espécie de categoria fundamental e originária como a fonte ideal da relação, e afirmar que não pode haver para a compreensão do direito. Fala do conceito de relação direito fora do reconhecimento dado pelo direito objetivo. Mas, jurídica como daquele em que se concretiza "universal jurídi- então, não é verdadeiro que a juridicidade de uma relação seja co", ou "o momento jurídico do espírito humano" (p. 27). Mais intrínseca à relação, porque ela nasce, ao invés, do fato de que precisamente: "Não é um conceito meramente empírico ou esta relação é regulada por uma norma jurídica; e, em conse- técnico, que represente uma síntese aproximada de dados to- para responder à pergunta que é Direito?", ele se mados indutivamente da realidade considerada a parte obiecti, refere, como qualquer seguidor da teoria normativa, à regra porém constitui, em sua mais concreta essência, limite lógico que define a relação, e não à relação regulada. Esta suspeita se de todo outro conceito técnico" (p. 29). Por "relação jurídica", agrava quando, devendo indicar as características constitutivas Levi entende, no sentido tradicional da palavra, uma relação da relação jurídica (isto é, não de qualquer relação intersubjeti- intersubjetiva, quer dizer, entre dois sujeitos dos quais um é va, mas de uma específica), diz que são elas a tutela, a sanção, titular de uma obrigação e outro de um direito. A função a pretensão e a prestação (p. 30). No entanto, estas não são categorial da intersubjetividade é dada pelo fato de que dela se características da relação intersubjetiva considerada em si serve filósofo do direito para distinguir direito da moral mesma (uma relação de amizade, por exemplo, é intersubjeti- (que é subjetiva) e da economia (que relaciona homem com va, sem que, por outro lado, tais características se manifestem), as coisas). Assim Levi se exprime: "[a valoração jurídica] não mas antes são deduzidas do fato de que esta relação é regulada</p><p>42 NORBERTO BOBBIO Capítulo I 43 TEORIA DA NORMA JURÍDICA DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA por uma norma que prevê uma sanção no caso de seu rompi- versa, não altera em nada a questão substancial, isto é, que mento; em suma, do fato de que é regulada por uma norma direito e dever são as figuras subjetivas nas quais se refletem a jurídica. Neste ponto nos perguntamos se o que constitui a re- presença de uma regra, e portanto a relação jurídica é aquela lação como relação jurídica não é porventura a norma que a que se distingue de todos os outros tipos de relação por ser regula e, neste caso, a teoria da relação jurídica também acaba- regulada por uma norma jurídica. ria por desembocar, assim como a teoria da instituição, na teo- ria normativa. É que veremos melhor no tópico seguinte. A relação jurídica é caracterizada não pela matéria que constitui seu objeto, mas pelo modo com que os sujeitos se comportam um em face do outro. E se exprime também desta 8. OBSERVAÇÕES CRÍTICAS maneira: que caracteriza a relação jurídica não é conteúdo, mas a forma. E isto significa: não se pode determinar se uma relação é jurídica com base nos interesses em jogo; pode-se A razão pela qual acreditamos que conceber direito como determiná-la apenas com base no fato de ser ou não regulada relação intersubjetiva não elimina a consideração normativa, por uma norma jurídica. O problema da caracterização do di- pode ser formulada do seguinte modo. Uma relação jurídica, reito não reside sobre plano da relação; se encontra somente como foi visto, é uma relação entre dois sujeitos, dentre os sobre plano das normas que regulam a relação. Em outras quais um deles, sujeito ativo, é titular de um direito, outro, palavras: dado um vínculo de interdependência entre relação sujeito passivo, é titular de um dever e obrigação. A relação jurídica e norma jurídica, nós não diríamos que uma norma é jurídica é, em outras palavras, uma relação direito-dever. Ora, jurídica porque regula uma relação jurídica, mas sim que uma que significa ter um direito? Significa, como veremos melhor relação é jurídica porque é regulada por uma norma jurídica. em seguida, ter poder de realizar uma certa ação. Mas, de Não existe, na natureza, ou melhor, no campo das relações onde deriva este poder? Não pode derivar senão de uma regra, humanas, uma relação que seja por si mesma, isto é, ratione a qual no mesmo momento em que me atribui este poder, atri- materiae, jurídica: há relações econômicas, sociais, morais, bui a um outro, a todos os outros, dever de não impedir a culturais, religiosas, há relações de amizade, indiferença, inimi- minha ação. E que significa ter um dever? Significa estar zade, há relações de coordenação, de subordinação, de inte- obrigado a comportar-se de um certo modo, quer esta conduta gração. Mas nenhuma dessas relações é naturalmente jurídica. consista em um fazer, quer em um não fazer. Mas de onde de- Relação jurídica é aquela que, qualquer que seja O seu conteú- riva esta obrigação? Não pode derivar senão de uma regra, a do, é tomada em consideração por uma norma jurídica, é sub- qual ordena ou proíbe. Em essência, direito não passa do sumida por um ordenamento jurídico, é qualificada por uma reflexo subjetivo de uma norma permissiva, dever não é se- ou mais normas pertencentes a um ordenamento jurídico. Ve- não reflexo subjetivo de uma norma imperativa (positiva ou remos melhor em seguida quais as geradas por negativa). A relação jurídica, enquanto direito-dever, remete uma ação humana estar qualificada como jurídica. Até aqui, sempre a duas regras de conduta, dentre as quais a primeira basta ter colocado em evidência que é a norma que qualifica a atribui um poder, a outra atribui um dever. Que depois, de relação e a transforma em relação jurídica, e não vice-versa. fato, destas duas normas seja suficiente que se enuncie uma só, Como conseqüência, se é verdade que nenhuma relação é que momento em que se atribui um direito a um sujeito im- naturalmente jurídica, é igualmente verdade que qualquer rela- plica sempre a atribuição de um dever a outros sujeitos, e vice- ção entre homens pode se tornar jurídica, desde que seja re-</p><p>44 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA gulada por uma norma pertencente a um sistema jurídico. Diz- se entre os juristas que uma relação, enquanto não for regulada pelo direito, é uma relação de fato. A recepção por parte do ordenamento jurídico recepção esta que vem a atribuir a um dos dois sujeitos uma obrigação e ao outro um dever trans- forma a relação de fato em jurídica. A relação entre um vende- dor e um comprador é de natureza econômica; que a torna jurídica é fato do ordenamento jurídico atribuir aos seus dois sujeitos direitos e deveres. A relação de fidelidade entre os cônjuges é antes de tudo de natureza ética; torna-se jurídica quando ordenamento transforma esta relação moral em uma CAPÍTULO II relação geradora de direitos e obrigações juridicamente rele- vantes. JUSTIÇA, VALIDADE A conclusão que queremos tirar dessas considerações é que a teoria da instituição e a da relação não excluem, mas incluem E EFICÁCIA a teoria normativa, que equivale a dizer que a teoria norma- tiva permanece válida não obstante a teoria da instituição e a da relação, ou melhor, ela é pressuposto de validade de ambas. Pode-se somar ainda a consideração seguinte: as três teorias Sumário: 9. Três critérios de valoração 10. Os três não se excluem entre si, e assim é estéril toda batalha doutrinal critérios são independentes 11. Possíveis confusões entre os três critérios 12. O direito natural 13. O para fazer triunfar uma ou outra. Diria até mesmo que estas positivismo jurídico 14. O realismo jurídico. três teorias se integram utilmente. Cada uma em evidência um aspecto da multiforme experiência jurídica: a teoria da rela- 9. TRÊS CRITÉRIOS DE VALORAÇÃO ção, O aspecto da intersubjetividade; a da instituição, da or- ganização social; a normativista, O da regularidade. Com efeito, a experiência jurídica nos coloca frente a um mundo de rela- O estudo das regras de conduta, em particular das regras ju- ções entre sujeitos humanos organizados estavelmente em rídicas, apresenta muitos interessantes e atuais, não ciedade mediante uso de regras de conduta. Ocorre que dos só da teoria geral do direito (sobretudo depois de Kelsen), mas três aspectos complementares, fundamental é sempre as- também da lógica e da filosofia Este curso se pecto normativo. A intersubjetividade e a organização são con- propõe a enfrentar alguns destes problemas. dições necessárias para a formação de uma ordem jurídica; O primeiro ponto que, a meu juízo, é preciso ter bem claro aspecto normativo é a condição necessária e suficiente. em mente se quisermos estabelecer uma teoria da norma jurí- dica com fundamentos sólidos, é que toda norma jurídica pode ser submetida a três valorações distintas, e que estas valorações são independentes umas das outras. De fato, frente a qualquer</p><p>46 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 47 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA norma jurídica podemos colocar uma tríplice ordem de pro- julgar a justiça de uma norma, é preciso compará-la a um valor blemas: 1) se é justa ou injusta; 2) se é válida ou inválida; 3) se ideal, para julgar a sua validade é preciso realizar investigações é eficaz ou ineficaz. Trata-se dos três problemas distintos: da do tipo empírico-racional, que se realizam quando se trata de justiça, da validade e da eficácia de uma norma jurídica. estabelecer a entidade e a dimensão de um evento. Em parti- O problema da justiça é problema da correspondência ou cular, para decidir se uma norma é válida (isto é, como regra não da norma aos valores últimos ou finais que inspiram um jurídica pertencente a um determinado sistema), é necessário determinado ordenamento jurídico. Não tocamos aqui na com realizar três operações: 1) averiguar se a auto- questão se existe um ideal de bem comum idêntico para todos ridade de quem ela emanou tinha poder legítimo para ema- os tempos e para todos os lugares. Para nós, basta constatar nar normas jurídicas, isto é, normas vinculantes naquele deter- que todo ordenamento jurídico persegue certos fins, e convir minado ordenamento jurídico (esta investigação conduz inevi- sobre fato de que estes fins representam os valores a cuja tavelmente a remontar até a norma fundamental, que é fun- damento de validade de todas as normas de um determinado realização legislador, mais ou menos conscientemente, mais ou menos adequadamente, dirige sua própria obra. No caso de sistema); 2) averiguar se não foi ab-rogada, já que uma norma se considerar que existam valores supremos, objetivamente pode ter sido válida, no sentido de que foi emanada de um evidentes, a pergunta se uma norma é justa ou injusta equivale poder autorizado para isto, mas não quer dizer que ainda o a perguntar se é apta ou não a realizar esses valores. Mas, tam- seja, que acontece quando uma outra norma sucessiva no bém no caso de não se acreditar em valores absolutos, pro- tempo a tenha expressamente ab-rogado ou tenha regulado a blema da justiça ou não de uma norma tem um sentido: eqüi- mesma matéria; 3) averiguar se não é incompatível com outras vale a perguntar se essa norma é apta ou não a realizar os valo- normas do sistema (o que também se chama ab-rogação implí- res históricos que inspiram certo ordenamento jurídico concreto cita), particularmente com uma norma hierarquicamente supe- e historicamente determinado. O problema se uma norma é rior (uma lei constitucional é superior a uma lei ordinária em justa ou não é um aspecto do contraste entre mundo ideal e uma Constituição rígida) ou com uma norma posterior, visto mundo real, entre que deve ser e que é: norma justa é que em todo ordenamento jurídico vigora princípio de que aquela que deve ser; norma injusta é aquela que não deveria duas normas incompatíveis não podem ser ambas válidas (as- ser. Pensar sobre problema da justiça ou não de uma norma sim como em um sistema científico duas proposições contradi- equivale a pensar sobre problema da correspondência entre tórias não podem ser ambas verdadeiras). O problema da vali- que é real e que é ideal. Por isso, problema da justiça se dade jurídica pressupõe que se tenha respondido à pergunta: denomina comumente de problema deontológico do direito. que se entende por direito? Trata-se, querendo adotar uma terminologia familiar entre os jusfilósofos, do problema ontoló- O problema da validade é problema da existência da regra gico do direito. enquanto tal, independentemente do juízo de valor sobre ela ser justo ou não. Enquanto problema da justiça se resolve O problema da eficácia de uma norma é o problema de ser com um juízo de valor, problema da validade se resolve com ou não seguida pelas pessoas a quem é dirigida (os chamados um juízo de fato, isto é, trata-se de constatar se uma regra jurí- destinatários da norma jurídica) e, no caso de violação, ser im- dica existe ou não, ou melhor, se tal regra assim determinada é posta através de meios coercitivos pela autoridade que a evo- uma regra jurídica. Validade jurídica de uma norma equivale à cou. Que uma norma exista como norma jurídica não implica que seja também constantemente seguida. Não é nossa tarefa existência desta norma como regra jurídica. Enquanto para</p><p>48 NORBERTO BOBBIO Capítulo 49 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA aqui indagar quais possam ser as razões para que uma norma 2. Uma norma pode ser válida sem ser justa. Aqui não seja mais ou menos seguida. Limitamo-nos a constatar que há é preciso ir muito longe para buscar exemplos. Nenhum orde- normas que são seguidas universalmente de modo espontâneo namento jurídico é perfeito: entre ideal de justiça e a realida- (e são as mais eficazes), outras que são seguidas na generalidade de do direito há sempre um vazio, mais ou menos grande, de- dos casos somente quando estão providas de coação, outras, pendendo dos regimes. Certamente direito, que em todos os ainda, que não são seguidas apesar da coação, e outras, enfim, regimes de um certo período histórico e em alguns contempo- que são violadas sem que nem sequer seja aplicada a coação (e râneos que consideramos civilmente ultrapassados, admite a são as mais ineficazes). A investigação para averiguar a eficácia- escravidão, não é justo, mas nem por isso é menos válido. Não ou a ineficácia de uma norma é de caráter histórico-sociológico, faz muitos anos vigoravam leis raciais que nenhuma pessoa se volta para estudo do comportamento dos membros de um racional estaria disposta a considerar justa e, não obstante, determinado grupo social e se diferencia, seja da investigação eram válidas. Um socialista dificilmente conceberá como justo tipicamente filosófica em torno da justiça, seja da tipicamente um ordenamento que reconhece e protege a propriedade indi- jurídica em torno da validade. Aqui também, para usar a termi- vidual; assim como um reacionário dificilmente admitirá como nologia douta, se bem que em sentido diverso do habitual, justa uma norma que considere a greve lícita. E ainda, nem pode-se dizer que problema da eficácia das regras jurídicas é socialista nem reacionário terão dúvidas sobre fato de que, problema fenomenológico do direito. em um ordenamento positivo como italiano, tanto as normas que regulam a propriedade individual quanto as que reconhe- 10. os TRÊS CRITÉRIOS SÃO INDEPENDENTES cem direito de greve são válidas. 3. Uma norma pode ser válida sem ser eficaz. O caso Estes três critérios de valoração de uma norma dão origem a mais clamoroso é sempre das leis de proibição de bebidas três ordens distintas de problemas, e são independentes um do alcoólicas nos Estados Unidos da América, que vigoraram du- outro, no sentido em que a justiça não depende nem da vali- rante vinte anos entre as duas guerras. Afirma-se que consu- dade nem da eficácia, a eficácia não depende nem da justiça mo de bebidas alcoólicas durante regime proibicionista não nem da validade. Para mostrar estas várias relações de inde- era inferior ao consumo do período imediatamente sucessivo, pendência, formulemos as seis proposições seguintes: quando a proibição foi abolida. Certamente se tratava de leis 1. Uma norma pode ser justa sem ser válida. Para dar "válidas", no sentido que emanadas dos órgãos que tinham um exemplo clássico, os teóricos do direito natural formulavam competência para tanto, mas não eram eficazes. Sem ir tão em seus tratados um sistema de normas advindo de princípios longe, muitos artigos da Constituição Italiana não foram até jurídicos universais. Quem formulava estas normas, considera- hoje aplicados. O que significa a tão deplorável de- va-as justas, porque as inferia de princípios universais de justi- saplicação da Constituição? Significa que nos encontramos ça. Mas estas normas, a não ser que fossem escritas em um frente a normas jurídicas que, embora válidas, isto é, existentes tratado de direito natural, não eram válidas. Tornavam-se váli- enquanto normas, não são eficazes. das apenas na medida em que eram acolhidas por um sistema 4. Uma norma pode ser eficaz sem ser válida. Há de direito positivo. O direito natural pretende ser direito justo muitas normas sociais que vão sendo seguidas espontanea- por excelência, mas somente pelo fato de ser justo não é tam- mente ou pelo menos habitualmente, isto é, são eficazes, como bém válido. por exemplo, entre um certo círculo de pessoas, as regras da</p><p>50 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 51 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA boa educação. Estas regras, pelo simples fato de serem segui- considerar como máxima de direito natural a que seja acolhida das, não se tornam por isso regras pertencentes a um sistema por todos os povos (alguns diziam "todos os povos civiliza- jurídico, ou seja, não adquirem validade jurídica. Poder-se-ia dos")? A resposta dos mais intransigentes era a negativa explí- objetar que o direito consuetudinário constitui um exemplo cita e com razão, pois fato de a escravidão, por exemplo, ter evidente de normas que alcançam validade jurídica, quer dizer, sido praticada por todos os povos civilizados em um certo perío- chegam a fazer parte de um sistema normativo, apenas através do histórico não a transformava numa instituição conforme a da eficácia. E o que é uso constante, regular, generalizado, justiça. A justiça é independente da validade, mas também uniforme que se exige de um costume para que ele se torne independente da eficácia. jurídico, senão aquilo que chamamos de "eficácia"? Mas a esta objeção se pode responder que nenhum costume se torna jurí- 11. POSSÍVEIS CONFUSÕES dico só através do uso, porque o que faz tornar-se jurídico, ENTRE os TRÊS CRITÉRIOS que insere no sistema, é fato de ser acolhido e reconhecido pelos órgãos competentes desse sistema para produzir normas Cada um dos três critérios até aqui examinados delimita um jurídicas, como o legislador ou juiz. Enquanto for apenas campo bem determinado de investigação para filósofo do eficaz, uma norma consuetudinária não se torna jurídica. direito. Pode-se inclusive sustentar que os três problemas fun- Transforma-se em jurídica quando os órgãos de poder lhe atri- damentais, de que tradicionalmente se ocupa e sempre se ocu- buem validade, que confirma que a eficácia não se transfor- pou a filosofia do direito, coincidem com as três qualificações ma diretamente em validade, e portanto uma norma pode normativas da justiça, da validade e da eficácia. O problema da continuar a ser eficaz sem por isso se tornar jurídica. justiça dá lugar a todas aquelas investigações que visam eluci- 5. Uma norma pode ser justa sem ser eficaz. Vimos dar os valores supremos a que tende direito, em outras pala- que uma norma pode ser justa sem ser válida. Não devemos vras, os fins sociais, cujo instrumento mais adequado de reali- deixar de acrescentar que pode ser justa sem ser eficaz. Quan- zação são os ordenamentos jurídicos, com seus conjuntos de do a sabedoria popular diz que "não há justiça neste mundo", leis, de instituições e de órgãos. Nasce daí a filosofia do direito refere-se ao fato de que muitos são aqueles que exaltam a jus- como teoria da justiça. O problema da validade constitui nú- tiça com palavras, poucos são os que a transformam em ato. cleo das investigações que pretendem determinar em que con- Em geral, uma norma para ser eficaz deve também ser válida. siste direito enquanto regra obrigatória e coativa, quais são as Se é verdade que muitas normas de justiça não são válidas, características peculiares do ordenamento jurídico que distin- com maior razão não são nem mesmo eficazes. guem dos outros ordenamentos normativos (como moral), e 6. Uma norma pode ser eficaz sem ser justa. O fato de portanto, não os fins que devem ser realizados, mas os meios uma norma ser universalmente seguida não demonstra sua cogitados para realizar esses fins, ou o direito como instru- justiça, assim como também, o fato de não ser absolutamente mento de realização da justiça. Daí nasce a Filosofia do Direito obedecida não pode ser considerado prova de sua injustiça. A como Teoria Geral do Direito. O problema da eficácia nos leva derivação da justiça da eficácia poderia equiparar-se a um dos ao terreno da aplicação das normas jurídicas, que é terreno argumentos mais freqüentemente discutidos entre os jusnatura- dos comportamentos efetivos dos homens que vivem em socie- listas, chamado consensus humani generis, ou simplesmente dade, dos seus interesses contrastantes, das ações e reações consensus omnium. Perguntam-se os jusnaturalistas: pode-se frente à autoridade, dando lugar às investigações em torno da</p><p>52 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 53 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA vida do direito, na sua origem, no seu desenvolvimento, na sua Province and Function of Law as Logic, Justice and Social modificação, investigações estas que normalmente são conexas Control [O Campo e a Função do Direito como Lógica, Justiça a indagações de caráter histórico e sociológico. Daí nasce e Controle Social (Sidney, 1946)]. sustenta que o estudo do aquele aspecto da filosofia do direito que conflui para a socio- direito, para ser completo, resulta destas três partes: 1) juris- logia jurídica. prudência analítica, que é aquela que chamaremos de teoria Esta tripartição de problemas é hoje geralmente reconhecida geral do direito, ou seja, estudo do direito do ponto de vista pelos filósofos do direito e, ademais, corresponde em parte à formal; 2) jurisprudência crítica ou ética, que compreende distinção das três funções da filosofia do direito (funções de- estudo dos vários ideais de justiça e, portanto, do direito ideal ontológica, ontológica e fenomenológica) que tem se desenvol- nas suas relações com direito real, e coincide com a parte da vido desde início do século XX na filosofia do direito italiano, filosofia do direito que chamamos de teoria da justiça; 3) juris- principalmente por obra de Giorgio Del Vecchio. Para dar uma prudência sociológica, que estuda, segundo a expressão prefe- prova do consenso geral sobre esta concepção tripartida da rida de Pound, não mais direito nos livros (law in books), experiência jurídica, cito aqui testemunho de três teóricos do porém direito em ação (law in action), e corresponde à socio- direito pertencentes a três países diversos e a logia jurídica enquanto estudo do direito vivente na sociedade. três tradições culturais diferentes. Eduardo Garcia Maynez, O terceiro testemunho obtemos com Alfred von Verdross, pro- professor da Universidade do México, seguidor do filósofo es- fessor da Universidade de Viena, que segue orientação jusnatu- panhol Ortega y Gasset e do seu "perspectivismo", em um ralista. Em um artigo intitulado Zur Klärung des Rechtsbegriffes ensaio, La Definición del Derecho Ensayo de Perspectivismo (Para Esclarecimento do Conceito de Direito) de 1950, de- Juridico [A Definição do Direito Ensaio de Perspectivismo pois de ter distinguido acuradamente problema da justiça do Jurídico (México, 1948)], diz que, por "direito", se compreende problema da validade, precisa que existem três modos diversos geralmente três coisas: direito formalmente válido, direito de considerar direito, segundo seja observado no seu valor intrinsecamente válido, direito positivo ou eficaz. Com a pri- ideal (que é a justiça), no seu valor formal (que é a validade), meira expressão entende aquelas regras de conduta que "a ou na sua realização prática (que é a eficácia), e assim se ex- autoridade política considera como vinculantes em um deter- prime: "O sociólogo pode com seus meios compreender minado território e em uma determinada época"; com a se- mente a eficácia do direito, teórico do direito, só a forma do gunda, pretende indicar direito justo, isto é, as regulamenta- direito e a conexão intrínseca das normas positivas, enquanto ções das relações de coexistência entre os homens que mais filósofo moral (o teórico do direito natural) se interessa unica- correspondem ao ideal de justiça; com a terceira, indica aque- mente pela justiça ética das normas jurídicas e pela sua obri- las regras de conduta que "determinam efetivamente a vida de gatoriedade interior" (pp. 98-99). uma sociedade em um determinado momento histórico". Não Nota-se que esta distinção de problemas não deve ser con- precisamos fazer muito esforço para reconhecer, nestes três cebida como uma separação em compartimentos estanques. modos de compreender direito, a distinção entre validade, Quem desejar compreender a experiência jurídica nos seus justiça e eficácia. Como segundo testemunho, citamos Julius vários aspectos deverá considerar que ela é a parte da Stone, professor da Universidade de Sidney (Austrália), aluno cia humana cujos elementos constitutivos são: ideais de justiça do mais influente filósofo do direito de sua época, americano a realizar, instituições normativas para realizá-los, ações e rea- Roscoe Pound. Stone, na sua obra de maior empenho, The ções dos homens frente àqueles ideais e a estas instituições. Os</p><p>54 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 55 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA três problemas são três aspectos diversos de um só problema validade; a segunda julga poder se livrar do problema da justi- central, que é o da melhor organização da vida dos homens em ça. Em seguida, as examinaremos separadamente. sociedade. Se insistimos sobre a distinção e a independência dos três valores, é porque julgamos prejudicial sua confusão e, 12. o DIREITO NATURAL sobretudo, consideramos que não se pode aceitar outras teorias que não fazem esta distinção claramente, e tendem, ao contrá- Não é nossa tarefa ilustrar um problema tão rico e comple- rio, a reduzir ora um, ora outro dos três aspectos, aos outros XO como o do direito natural. Aqui, a corrente do direito natu- dois, elaborando, como se costuma dizer, através de feio neo- ral vem à tona apenas devido ao fato de que há uma tendên- logismo da linguagem filosófica, um "reducionismo". Creio que cia geral entre os seus teóricos de reduzir a validade à justiça. se podem distinguir três teorias reducionistas, à crítica das quais Poderíamos definir esta corrente de pensamento jurídico dedico os últimos três tópicos deste capítulo. como aquela segundo a qual uma lei para ser lei deve estar Há uma teoria que reduz a validade à justiça, afirmando que de acordo com a justiça. Lei em desacordo com a justiça non uma norma só é válida se é justa; em outras palavras, faz de- est lex sed corruptio legis. Uma recente e exemplar formula- pender a validade da justiça. O exemplo histórico mais ilustre ção desta doutrina pode ser lida na seguinte passagem de desta redução é a doutrina do direito natural. Gustav Radbruch: "Quando uma lei nega conscientemente a Uma outra teoria reduz a justiça à validade, quando afirma vontade de justiça, por exemplo concede arbitrariamente ou que uma norma é justa somente pelo fato de ser válida, isto é, refuta os direitos do homem, carece de validade... até mesmo faz depender a justiça da validade. O exemplo histórico desta os juristas devem encontrar coragem para refutar-lhe caráter teoria é dado pela concepção do direito que se contrapõe à jurídico."; e em outra parte: "Pode haver leis com tal medida naturalista, que é a concepção positivista (no sentido mais res- de injustiça e de prejuízo social que seja necessário refutar- trito e limitado do termo). lhes caráter jurídico... tanto há princípios jurídicos funda- mentais mais fortes que toda normatividade jurídica, que uma Finalmente, há uma teoria que reduz a validade à eficácia, lei que os contrarie carece de validade"; e ainda: "Onde a quando tende a afirmar que direito real não é aquele que se justiça não é nem mesmo perseguida, onde a igualdade, que encontra, por assim dizer, enunciado em uma Constituição, ou constitui núcleo da justiça, é conscientemente negada em em um Código, ou em um corpo de leis, mas é aquele que os nome do direito positivo, a lei não somente é direito injusto homens efetivamente aplicam nas suas relações cotidianas: esta como carece em geral de juridicidade. [Rechtsphilosophie teoria faz depender, em última análise, a validade da eficácia. (Filosofia do Direito), ed., 1950, pp. 336-353]. O exemplo histórico mais radical é dado pelas correntes consi- deradas realistas da jurisprudência americana e pelas suas an- A esta abordagem do problema da relação entre justiça e di- tecipações no continente. reito nós responderíamos: que direito corresponda à justiça é uma exigência, ou se quisermos, um ideal a alcançar que nin- Consideramos que todas as três concepções estão viciadas guém pode desconhecer, mas não é uma realidade de fato. pelo erro do "reducionismo", que leva à eliminação ou, pelo Ora, quando nos colocamos o problema do que é o direito em menos, ao ofuscamento de um dos três elementos constitutivos uma dada situação histórica, nos questionamos sobre que é da experiência jurídica e, portanto, a mutilam. A primeira e a de fato direito e não sobre que queríamos que ele fosse ou terceira não conseguem ver a importância do problema da que deveria ser. Mas, se nos perguntarmos que de fato é</p><p>56 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 57 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA direito, não poderemos deixar de responder, ao menos, que na unívoco, e todos os que a ele fazem referência estivessem de realidade vale como direito também direito injusto e que não acordo em aceitar que algumas tendências são naturais e outras existe nenhum ordenamento perfeitamente justo. não, da constatação que uma tendência é natural não se pode Em uma só hipótese poderíamos aceitar reconhecer como di- deduzir se ela é boa ou má, já que não se pode deduzir um juízo reito unicamente que é justo: se a justiça fosse uma verdade de valor de um juízo de fato. Hobbes e Mandeville estavam de evidente ou pelo menos demonstrável como uma verdade ma- acordo em considerar que a tendência natural do homem era temática, de modo que nenhum homem pudesse ter dúvidas instinto utilitário: porém, se para Hobbes este instinto conduzia à destruição da sociedade e precisava ser contido, para Mandeville sobre que é justo ou injusto. E esta, na realidade, foi sempre a (o célebre autor da Fábula das Abelhas) era vantajoso e deveria pretensão do jusnaturalismo nas suas várias fases históricas. ser liberado. Com uma outra definição, poderia se dizer que a teoria do di- reito natural é aquela que se considera capaz de estabelecer Mas então, se a observação da natureza não oferece base que é justo e que é injusto de modo universalmente válido. suficiente para determinar que é justo e que é injusto_de Mas esta pretensão tem fundamento? A julgar pelas controvér- modo universalmente a redução da validade à sias entre os vários seguidores do direito natural sobre o que há justiça leva a apenas uma só e grave a destrui- de ser considerado justo ou injusto, a julgar pelo fato de que ção de um dos valores fundamentais sobre qual se apóia que era natural para uns não era para outros, deveríamos res- direito positivo (entendido como direito válido), valor da ponder que não. Para Kant (e em geral para todos os jusnatura- certeza. De fato, se a distinção entre justo e injusto não é listas modernos) a liberdade era natural; mas, para Aristóteles, universal, é preciso colocar o problema: a quem compete esta- era natural a escravidão. Para Locke, era natural a propriedade belecer que é justo ou injusto? Há duas respostas possíveis: a) individual, mas para todos os utopistas socialistas, de Campa- compete àquele ou àqueles que detêm poder. Mas esta res- nella a Winstanley e a Morelly, a instituição mais adequada à posta é aberrante, porque neste caso se conserva, é verdade, a natureza humana era a comunhão de bens. Esta variedade de certeza do direito, mas se converte a doutrina que transforma a juízos entre os próprios naturalistas dependia de duas razões validade em justiça na doutrina perfeitamente oposta, que con- fundamentais: 1) "natureza" é um termo genérico que adquire sidera a justiça como validade, no momento em que reconhece diversos significados dependendo do modo como é usado. Já justo no que é comandado; b) compete a todos os cidadãos; Rousseau dizia: "Ce n'est point sans surprise et sans scandale neste caso, uma vez que os critérios de justiça são diversos e qu'on remarque le peu d'accord qui règne sur cette importante irredutíveis, em relação àqueles que desobedecerem a lei por- matière entre les divers auteurs qui en ont traité. Parmi les plus que a julgam injusta, e sendo injusta é inválida, os governantes graves écrivains, à peine on trouve-t-on deux qui soient du mê- nada poderiam objetar, e a segurança da vida civil no âmbito me avis sur ce point" (Discours sur l'origine et les fondements das leis estaria completamente destruída. de l'inégalité, pref.); 2) ainda que significado do termo fosse Por fim, que nesta mesma corrente do direito natural a re- dução da validade à justiça seja mais afirmada do que aplicada parece-me que pode ser demonstrado com dois argumentos 1. "Não é sem surpresa ou escândalo que notamos o pouco acordo que reina sobre esta importante matéria entre os diversos autores que dela trataram. Entre os mais tirados da mesma doutrina jusnaturalista: a) é doutrina recor- sérios escritores, com dificuldade encontramos dois que tenham a mesma opinião rente para os jusnaturalistas que os homens, antes de entrar no sobre este ponto." (Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade, estado civil (dirigido pelo direito positivo), tivessem vivido no pref.) (tradução livre).</p><p>58 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 59 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA estado de natureza, cuja característica fundamental é de ser justo, para a doutrina oposta é justo só que é comandado e regido apenas pelas leis naturais, pois, conforme doutrina pelo fato de ser comandado. Para um jusnaturalista, uma nor- aceita, o estado de natureza é impossível e dele é necessário ma não é válida se não é justa; para a teoria oposta, uma nor- sair (segundo Locke e Hobbes se trata de um cálculo utilitário, ma é justa somente se for válida. Para uns, a justiça é a confir- segundo Kant, de um dever moral) para fundar o Estado. Isto mação da validade, para outros, a validade é a confirmação da deve ser interpretado no sentido em que o direito natural não justiça. Chamamos esta doutrina de positivismo jurídico, embo- cumpre a função de direito positivo, onde, se chamamos de ra devamos convir que a maior parte daqueles que são positi- "direito" direito positivo, não podemos considerar "direito" vistas na filosofia e teóricos e estudiosos do direito positivo (o da mesma maneira o direito natural. Kant, perfeitamente cons- termo "positivismo" se refere tanto a uns quanto a outros), ciente desta distinção, chamou direito natural de "provisório" nunca sustentaram uma tese tão extremada. Entre os filósofos para distingui-lo do direito positivo que chamou de "peremptó- positivistas do direito, tomemos, por exemplo, Levi: rio", dando com isso a entender que somente direito positivo mesmo que, como positivista, seja relativista, e não reconheça era direito no sentido que está impregnado na palavra; b) é valores absolutos de justiça, todavia admite que é preciso dis- doutrina comum para os jusnaturalistas que direito positivo tinguir aquilo que vale como direito dos ideais sociais que insti- em desconformidade com direito natural seja considerado gam continuamente a modificação do direito constituído, e injusto, mas não obstante deve ser obedecido (a chamada teo- que, portanto, direito pode ser válido, sem ser justo. Entre os ria da obediência). Porém, que significa propriamente "obe- juristas, tomemos, por exemplo, Kelsen: quando Kelsen sustenta decer"? Significa aceitar uma certa norma de conduta como que aquilo que constitui direito como direito é a validade, não vinculante, isto é, como existente em um dado ordenamento quer em absoluto afirmar que direito válido seja também justo, jurídico, e portanto válida. E que é a validade de uma norma mesmo porque os ideais de justiça, para ele, são subjetivos e senão a pretensão, de preferência garantida pela coação, de ser irracionais; o problema da justiça, para Kelsen, é um problema obedecida até mesmo por aqueles que a ela se opõem por con- ético e é distinto do problema jurídico da validade. siderá-la, segundo um critério pessoal de valoração, injusta? Se quisermos encontrar uma teoria completa e coerente do Pois bem, afirmar que uma norma deve ser obedecida mesmo positivismo jurídico, devemos remontar à doutrina política de se injusta, é um modo de, ainda que indiretamente, alcançar a Thomas Hobbes, cuja característica fundamental me parece ser, mesma conclusão de que partimos, qual seja, a justiça e a vali- na verdade, a reviravolta radical do jusnaturalismo clássico. Se- dade de uma norma são duas coisas diversas; é em suma, uma gundo Hobbes, efetivamente não existe outro critério do justo e volta mais longa para chegar a reconhecer que uma norma do injusto fora da lei positiva, quer dizer, fora do comando do pode ser válida (isto é, deve ser obedecida) mesmo que injusta, soberano. Para Hobbes, é verdade que é justo o que é coman- e que portanto justiça e validade não coincidem. dado, somente pelo fato de ser comandado; é injusto que é proibido, somente pelo fato de ser proibido. Como chega a esta 13. POSITIVISMO JURÍDICO conclusão tão radical? Hobbes é um racionalista, e como para todos os racionalistas, também para Hobbes, que conta é que A teoria oposta à jusnaturalista é a doutrina que reduz a jus- a conclusão seja tirada rigorosamente das premissas. No estado tiça à validade. Enquanto para um jusnaturalista clássico tem, de natureza, como todos estão à mercê dos próprios instintos e ou melhor dizendo, deveria ter, valor de comando só o que é não há leis que determinem a cada um o que é seu, todos têm</p><p>60 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 61 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA direito sobre todas as coisas (ius in omnia) e nasce a guerra de A doutrina de Hobbes tem um significado ideológico bem todos contra todos. Sobre estado de natureza, somente se preciso, que não cabe discutir aqui: ela é a justificação teórica pode dizer que é intolerável e que dele é preciso sair. E de fato, mais do poder absoluto. Para nós, basta pôr em a primeira lei da razão para Hobbes é a que prescreve buscar a evidência qual seríamos obrigados a deduzir do paz (pax est quaerenda). Para sair do estado de natureza de problema que nos interessa, se aceitássemos ponto de vista modo estável e definitivo, os homens pactuam entre si objeti- hobbesiano. A seria a redução da justiça à força. vando renunciar reciprocamente aos direitos que tinham in natu- Se não existe outro critério do justo e do injusto além do CO- ra e transmiti-los a um soberano (pactum subiectionis). Ora, mando do soberano, é preciso resignar-se a aceitar como justo direito fundamental que os homens têm no estado de natureza é que agrada ao mais forte, uma vez que soberano, se não é de decidir, cada um segundo os próprios desejos e interesses, mais justo entre os homens, certamente é mais forte (e perma- aquilo que é justo e injusto, e tanto isso é verdade que enquanto nece soberano, não enquanto for justo, mas enquanto for mais perdura estado de natureza não existe nenhum critério para forte). A distinção entre validade e justiça serve justamente para distinguir justo do injusto, exceto arbítrio e poder do indi- diferenciar a justiça da força. Se esta distinção desaparece, e a víduo. Na passagem do estado de natureza ao Estado civil, os justiça é reduzida à validade, também a distinção entre justiça e indivíduos transmitindo todos os seus direitos naturais ao sobe- força não é mais possível. Somos assim reconduzidos à célebre rano, lhe transmitem também O direito de decidir que é justo doutrina sofística sustentada por Trasímaco no livro I de A Re- ou injusto; e assim, desde momento em que Estado civil é pública de Platão, e refutada por Sócrates. Trasímaco, impaci- constituído, não há outro critério do justo e do injusto que não ente com a discussão sobre a justiça que Sócrates desenvolve seja a vontade do soberano. Esta doutrina hobbesiana está liga- com seus amigos, intervém como um animal selvagem escreve da à concepção da simples convencionalidade dos valores mo- Platão que deseja dilacerar os presentes, e, depois de afirmar rais e, portanto, também da justiça, segundo a qual não existe que tudo que Sócrates estava dizendo era mentira, enuncia a um justo por natureza, mas somente um justo por convenção sua definição com estas célebres palavras: "E me escutem agora. (também por este aspecto a doutrina hobbesiana é a antítese da Eu afirmo que a justiça não é outra coisa senão útil para mais doutrina jusnaturalista). No estado de natureza, não existe forte" (A República, 338 c.). E algo semelhante tinha dito um justo e injusto porque não existem convenções válidas. No outro sofista, Cálicles, que em um outro diálogo de Platão Estado civil, o justo e injusto repousam sobre o comum acordo (Górgias), dispara esta condenação dos fracos e exaltação dos entre os indivíduos de atribuir ao soberano poder de decidir fortes: "Mas a própria natureza, em minha opinião, demonstra que é justo e injusto. Para Hobbes, então, a validade de uma ser justo que mais forte esteja por cima do mais fraco e mais norma jurídica e a justiça dessa norma não se distinguem, por- capaz do menos capaz. Tal critério do justo aparece também nos que a justiça e a injustiça nascem juntas com direito positivo, outros animais, entre Estado e Estado e entre povo e povo, isto isto é, juntas com a validade. Enquanto se permanece no estado é, mais forte dominando mais fraco e obtendo maiores van- de natureza não há direito válido, mas tampouco há justiça; tagens" (Górgias, d.). quando surge Estado nasce a justiça, mas esta nasce ao mes- mo tempo que direito positivo, de modo que, onde não há A doutrina segundo a qual a justiça é a vontade do mais direito não há também justiça, e onde há justiça, significa que há forte tem sido refutada várias vezes no curso do pensamento um sistema constituído de direito positivo. ocidental. Mas talvez as páginas mais expressivas sejam aquelas que escreveu Rousseau no início de Do Contrato Social, em</p><p>62 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 63 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA um capítulo justamente intitulado "Du droit du plus fort" (Do de vista por eles defendido, pecam por abstração tanto os jus- direito do mais forte), do qual cito alguns dos trechos mais inci- naturalistas quanto os positivistas, os primeiros porque substi- sivos: "A força é uma potência física: não vejo qual moralidade tuem direito real pela aspiração à justiça, segundos porque possa derivar dela. Ceder à força é um ato de necessidade, não substituem pelas regras impostas e formalmente válidas, que de vontade: quando muito, um ato de prudência. Em que sen- freqüentemente são pura forma vazia de conteúdo. Os positi- tido poderia ser um dever?.. Admitindo-se que é a força que vistas veriam apenas contraste existente entre direito válido e cria direito, efeito muda com a causa: toda força que su- direito justo. Os sequazes destas correntes vêem também um pera a primeira tem direito de sucedê-la. Admitindo-se que se contraste entre direito imposto e aquele efetivamente aplicado, pode desobedecer impunemente, então pode-se fazê-lo legiti- e consideram apenas este último direito em sua concretude, mamente e, uma vez que mais forte tem sempre razão, trata- único objeto passível de pesquisa por parte dos juristas que não se somente de se fazer mais forte... Se é preciso obedecer por pretendem perder tempo com fantasmas vazios. força, não é por dever, e se não somos mais forçados a obe- Acredito que no século XIX se possa individualizar ao me- decer, tampouco somos obrigados". nos três momentos em que uma peculiar maneira de conceber o direito emergiu e, emergindo, contribuiu para alargar hori- 14. o REALISMO JURÍDICO zonte da ciência jurídica. O primeiro momento é representado pela Escola histórica No decorrer do pensamento jurídico do século XX, em di- do direito, do grande jurista alemão Friedrich Carl von Savigny, versos momentos, houve teóricos do Direito que buscaram e de seu discípulo Friedrich Puchta, que na época da captar momento constitutivo da experiência jurídica não Restauração. Esta escola representa, no campo do direito, a tanto nos ideais de justiça nos quais se inspiram os homens, ou mudança de clima do pensamento jurídico derivada da difusão dizem inspirar-se, ou ainda nos ordenamentos jurídicos consti- do romantismo: é a expressão mais genuína do romantismo tutivos, mas sim na realidade social, onde direito se forma e jurídico. Como romantismo em geral combate a abstração se transforma, nas ações dos homens que fazem e desfazem racionalista do iluminismo do século XVIII (ou pelo menos suas com seu comportamento as regras de conduta que os gover- degenerações), também a escola histórica do direito ataca nam. Seguindo a terminologia adotada, poderíamos dizer que aquele modo racionalista e abstrato de conceber o direito, que estes movimentos, dentre os vários aspectos pelos quais apre- é jusnaturalismo, segundo qual há um direito universal- sentam o fenômeno jurídico, colocaram em relevo a eficácia, mente válido dedutível de uma natureza humana sempre igual. mais do que a justiça ou a validade. Travam uma batalha em Para a escola histórica, o direito não se deduz dos princípios duas frentes: contra jusnaturalismo, que teria uma concepção racionais, mas é um fenômeno histórico e social que nasce ideal do direito, e contra positivismo em sentido estrito, que espontaneamente do povo: seu fundamento é, para usar tem uma concepção formal do direito. Em antítese ao primeiro, uma expressão que se tornou famosa, não a natureza universal, estas correntes podem ser chamadas de realistas e ao segundo, mas o espírito do (Volksgeist), daí a de conteudísticas, no sentido em que não vêem direito como existirem tantos direitos diversos quanto diversos são os povos deve ser, mas como efetivamente é, e nem entendem como com suas inúmeras características e em suas várias fases de complexo de normas válidas, mas como normas efetivamente desenvolvimento. A mudança de perspectiva no estudo do aplicadas em uma determinada sociedade. Segundo ponto direito se manifesta sobretudo na consideração do direito con-</p><p>64 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 65 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA suetudinário como fonte primária do direito, isto porque ele adaptar a regra jurídica às necessidades práticas da legislação, surge imediatamente da sociedade e é a expressão genuína do a ciência jurídica, à qual cabe encontrar, tendo em vista os sentimento jurídico popular em confronto com o direito im- dados históricos, ideais, racionais e reais, as regras jurídicas posto pela vontade do grupo dominante (a lei) e aqueles elabo- novas; a obra de Eugene Ehrlich sobre a lógica dos juristas (Die rados pelos técnicos (o chamado direito científico). Poderíamos Juristische Logik de 1925), que é uma das mais documentadas ver nesta reabilitação do costume como fonte do direito um e intransigentes polêmicas contra positivismo estatalista em aspecto de sua valorização social que se contrapõe tanto ao nome da livre apreciação do direito por parte do juiz e do ju- jusnaturalismo abstrato quanto ao rígido positivismo estatalista rista, os quais devem procurar as soluções das controvérsias predominante em geral entre os juristas. não tanto apegando-se ao dogma da vontade estatal passiva- O segundo momento de reação antijusnaturalista e também mente aceito, mas imergindo-se no estudo do direito vivente antiformalista é representado por um vário e vasto movimento que a sociedade em contínuo movimento permanentemente histórico, iniciado na Europa continental no final do século XIX produz. A polêmica contra rígido estatalismo, acompanhada e podemos chamá-lo de concepção sociológica do direito. Sur- da polêmica contra uma jurisprudência predominantemente ge como efeito da defasagem que se vinha criando entre a lei conceitual, a chamada jurisprudência dos conceitos (Begriffsju- escrita nos códigos (o direito válido) e a realidade social que risprudenz), suscitou como reação uma jurisprudência realista seguiu a revolução industrial (o direito eficaz). O efeito mais cuja tarefa deveria ser julgar com base na valoração dos inte- relevante desta nova concepção se traduz na evocação mais resses em conflito, chamada, pelo seu principal expoente Philip insistente, não tanto do direito consuetudinário, mas do direito Heck, de jurisprudência dos interesses. judiciário, isto é, daquele elaborado pelos juízes no contínuo Poderíamos considerar como terceiro momento, mais vio- labor de adaptação, da lei às necessidades concretas emergen- lento e radical da revolta antiformalista, a concepção realista do tes da sociedade, que deveriam constituir, de acordo com os direito que logrou êxito na primeira metade do século passado seguidores desta corrente, remédio mais eficaz para acolher nos Estados Unidos da América. Não se pode esquecer que os as instâncias do direito que se elabora espontaneamente no países anglo-saxões são naturalmente mais inclinados às teorias variado entrelaçar das relações sociais e no diversificado entre- sociológicas do direito devido à posição que direito consue- choque de interesses contrapostos. Não podemos seguir aqui tudinário (common law) ocupa em seus sistemas normativos, as múltiplas manifestações desta corrente. Limitaremo-nos a que não conhecem as grandes codificações. O pai espiritual recordar o movimento do direito livre, advindo sobretudo da destas modernas correntes realistas é um grande jurista, que Alemanha, pela obra de Kantorowicz, que escreveu um mani- por longos anos foi juiz da Corte Suprema, Oliver Wendell festo em defesa da liberdade de criação normativa por parte do Holmes (1841 1935), o primeiro, no exercício mesmo de suas juiz (La lotta per la scienza del diritto [A Luta pela Ciência do funções de juiz, a repudiar o tradicionalismo jurídico das cortes, Direito], publicado em 1906 com o pseudônimo de Gnaeus e a introduzir uma interpretação evolutiva do direito, mais sen- Flavius). Pode-se enumerar, entre as obras mais notáveis deste sível às mudanças da consciência social. Além disso, a jurispru- movimento, os quatro volumes de François Gény, Science et dência sociológica teve como teórico na América o mais notá- téchnique en droit privé positif (Ciência e Técnica em Direito vel filósofo do direito americano destes últimos cinqüenta anos, Privado Positivo) (1914-1924), onde se contrapõe à técnica do Roscoe Pound, o qual, em uma longa série de escritos que direito, voltada para o objetivo secundário e subordinado de alcançaram grande ressonância entre os juristas americanos, se</p><p>66 NORBERTO BOBBIO Capítulo II 67 TEORIA DA NORMA JURÍDICA JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA fez defensor da figura do entendendo com suetudinário e direito judiciário (o juiz legislador). Observe- esta expressão jurista que leva em conta, em sua interpreta- mos então como se apresentam a relação entre validade e efi- ção e aplicação do direito, os fatos sociais dos quais direito cácia nestas duas fontes: deriva e que deve regular. A escola realista, por outro lado, que a) No que concerne ao direito consuetudinário, foi dito que teve como mais radical defensor Jerome Frank, vai bem mais nele validade e eficácia coincidem, no sentido que embo- adiante dos princípios que se podem extrair de Holmes e ra se possa imaginar uma lei que seja válida mas não seja Pound. A tese fundamental por ela sustentada é que não existe eficaz, não se pode imaginar um costume que seja válido um direito objetivo, isto é, objetivamente dedutível de dados sem ser eficaz, porque, faltando a eficácia, perde-se tam- determinados, sejam estes fornecidos pelos costumes, pela lei bém a repetição constante, uniforme e geral, que é um ou pelo precedente jurídico: direito é contínua criação do dos requisitos essenciais para caracterizar costume. Mas juiz, é obra exclusivamente do magistrado no ato em que deci- esta afirmação não é de todo exata: se é justo dizer que de uma controvérsia. Cai deste modo tradicional princípio da no direito consuetudinário a validade vem sempre acom- certeza jurídica, e de fato, qual pode ser a possibilidade de pre- panhada da eficácia, a proposição inversa, que a eficácia ver a de um comportamento nisto consiste a seja sempre acompanhada da validade, não é aceitável. certeza se direito é uma contínua nova criação do juiz? Dizer que um costume se torna válido devido a sua eficá- Para Frank, realmente, a certeza, uma das pilastras dos orde- cia equivaleria a sustentar que um comportamento se faz namentos jurídicos continentais, é um mito, que deriva de uma jurídico pelo simples fato de ser constantemente repetido. espécie de aquiescência infantil do princípio de autoridade Nota-se, ao invés disso, que não basta que um compor- [esta tese foi sustentada em um livro dos anos 30, Law and tamento seja efetivamente seguido pelo grupo social para Modern Mind (Direito e Pensamento Moderno)]: um mito a ser se tornar um costume jurídico. O que é necessário além derrubado para se elevar sobre as suas ruínas direito como disso? É necessário, precisamente, que que se chama contínua e imprevisível criação. "validade", ou seja, aquele comportamento constante À parte inaceitável extremismo do realismo americano, que constitui conteúdo do costume, receba uma forma grande foi mérito das correntes sociológicas no campo do jurídica, ou venha a ser acolhido em um determinado direito, porque impediram a cristalização da ciência jurídica em sistema jurídico, como comportamento obrigatório, isto uma dogmática sem inovador. Outro, porém, é dis- é, cuja violação implica uma sanção. Essa forma jurídica curso que aqui nos interessa sobre a relação entre validade e é atribuída ao direito consuetudinário pela lei, quando eficácia. Pode-se dizer que mediante a acentuação do mo- invoca, ou pelo juiz quando ele traz como matéria de sua mento ativo, evolutivo, social do direito, venha a desaparecer a decisão um costume, ou pela vontade concorde das diferença entre validade e eficácia no sentido de que só o di- partes. Os juristas dizem que para a formação de um reito válido seja eficaz, isto é, efetivamente seguido e aplicado? costume jurídico se dá, além da repetição, também re- Não acredito nisso. Para circunscrever e precisar a discussão, quisito interno ou psicológico da opinio Mas para tenhamos em vista o fato de que a crítica das correntes socioló- que se forme esta opinio isto é, a convicção que gicas se resolve freqüentemente em uma revisão das fontes do comportamento é obrigatório, é necessário que ele seja direito, vale dizer, em uma crítica ao monopólio legal, e na qualificado como obrigatório por qualquer norma válida reabilitação de duas outras fontes diversas da lei, direito con- do sistema e isto implica, em última análise, que a norma</p><p>68 NORBERTO BOBBIO TEORIA DA NORMA JURÍDICA que regula não seja apenas eficaz, mas também, na- quele sistema, válida. b) No que concerne ao novo e maior relevo dado pelas es- colas sociológicas à figura do juiz criador do direito, aqui nasce somente O problema de se poder considerar pro- priamente direito aquele direito vivente, ou em forma- ção, aquele direito que nasce espontaneamente da socie- dade, a quem os teóricos da corrente sociológica do di- reito apelam. Socorre-nos, a este propósito, a distinção CAPÍTULO III entre fontes de cognição e fontes de qualificação do di- reito. O direito vivente é pura e simplesmente um fato ou As PROPOSIÇÕES uma série de fatos de onde juiz tira conhecimento das aspirações jurídicas que vêm se formando na sociedade. PRESCRITIVAS Mas para que estas aspirações se tornem regras jurídicas, é necessário que juiz as acolha e lhes atribua a autori- dade normativa que incorpora a sua função de órgão ca- paz de produzir normas jurídicas. O direito vivente não é ainda direito, isto é, norma ou complexo de normas do Sumário: 15. Um ponto de vista formal 16. A nor- sistema, enquanto seja apenas eficaz. Torna-se tal no ma como proposição 17. Formas e funções 18. As momento em que juiz, reconhecido como criador do três funções 19. Características das proposições pres- critivas 20. Pode-se reduzir as proposições prescriti- direito, lhe atribui também a validade. Na realidade, vas a proposições descritivas? 21. Pode-se reduzir as pode-se falar de um juiz criador do direito, propriamente proposições prescritivas a proposições expressivas? na medida em que as regras que ele descobre na reali- 22. Imperativos autônomos e heterônomos 23. Im- dade social não sejam ainda regras jurídicas, e não se- perativos categóricos e imperativos hipotéticos 24. Comandos e conselhos 25. Os conselhos no direito rão até que ele as reconheça e lhes atribua força coativa. 26. Comandos e Mesmo as famosas opiniões expressas pelo juiz Holmes, na sua atividade de juiz, embora surgissem da observa- ção da realidade social, e fossem mais sensíveis ao cha- 15. UM PONTO DE VISTA FORMAL mado direito em formação do que as sentenças de seus colegas, não se tornaram direito positivo dos Estados O ponto de vista pelo qual nos propomos a estudar a norma Unidos enquanto ele as sustentou na qualidade de mino- jurídica, neste curso, pode-se dizer formal. É formal no sentido ria, já que naquele sistema era direito válido somente em que consideraremos a norma jurídica independentemente reconhecido pela maioria da Corte. Se direito vivente do seu conteúdo, ou seja, na sua estrutura. Toda norma, assim pode ser considerado como fonte de cognição jurídica, como toda proposição, apresenta problemas estruturais que apenas juiz (e com maior razão legislador) podem ser são formulados e resolvidos sem se atentar para fato de que considerados como fontes de qualificação. ela tenha este ou aquele conteúdo. Como qualquer outra pro-</p><p>70 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 71 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS posição, a norma também tem uma estrutura um dos tantos formalismos que têm adquirido direito de cidada- que pode ser preenchida com os mais diversos conteúdos. As- nia no campo do saber jurídico, e contra os quais se acendeu, de sim como a estrutura do juízo "S é P" vale tanto para a propo- modo particularmente vivo, a polêmica em décadas atrás. sição: "Sócrates é mortal" quanto para a proposição "A baleia é um também a estrutura da norma "Se é A, deve Por "formalismo jurídico" se entende uma consideração ser B" vale tanto para a prescrição "Se pisou no canteiro, deve- exclusiva do direito enquanto forma. Como a polêmica anti- rá pagar multa", como para a prescrição "Se matou com pre- formalista nem sempre distingue um tipo de formalismo do meditação, deverá sofrer a pena de prisão perpétua". O que outro, e disto nasça comumente uma grande confusão, creio faremos objeto de estudo na do curso será a norma que, sob nome genérico de "formalismo jurídico" hoje se jurídica na sua estrutura lógico-lingüística. Frente ao complexo compreendem pelo menos três teorias diversas, que têm visões de normas jurídicas, nosso problema será de nos pergun- diversas e que requerem, posto que se queira combatê-las, tarmos que tipo de proposições são elas, se são proposições argumentos diversos. Um primeiro tipo de formalismo no di- prescritivas, que classes de proposições prescritivas compreen- reito é que se poderia chamar de formalismo ético, vale dizer, dem, e assim por diante. a doutrina segundo a qual é justo que é conforme à lei, e como tal repele todo critério de justiça que esteja acima das leis Entenda-se que estudo formal das normas jurídicas que positivas e com base no qual as mesmas leis positivas podem aqui se desenvolve não exclui absolutamente outros modos de ser avaliadas. Esta doutrina pode ser considerada formal, no considerar o direito. Se me proponho a conhecer não qual é a sentido em que faz a justiça consistir na lei só pelo fato de que estrutura da norma jurídica, mas qual é a oportunidade ou a é lei, ou seja, de que é comando posto pelo poder soberano, e conveniência ou a justiça das normas jurídicas que compõem por isso prescinde, para produzir um juízo de valor, do seu um determinado sistema, ou qual é a eficácia social que certas conteúdo. Um segundo tipo de formalismo é o que se poderia normas exercem em um determinado ambiente histórico, chamar mais precisamente de formalismo jurídico, e compre- objeto da minha investigação não será mais a forma ou estrutu- ende a doutrina segundo a qual a característica do direito não é ra, ou seja, para usar uma metáfora, invólucro, recipiente, a de prescrever aquilo que cada um deve fazer, mas simples- mas conteúdo, que recipiente contém, isto é, os compor- mente modo em que cada um deve agir se quiser alcançar os tamentos regulados. A norma "É proibido pisar no canteiro" é, próprios objetivos e, portanto, não cabe ao direito estabelecer do ponto de vista formal, um imperativo negativo, e não difere o conteúdo da relação intersubjetiva, mas a forma que ela deve da norma "É proibido matar". Mas se quero saber quais são os assumir para ter certas Este tipo de formalismo motivos pelos quais esta norma foi emanada, se estes motivos remonta à velha definição kantiana do direito, que foi retomada são aceitáveis, se ela é efetivamente seguida ou continuamente pelas correntes neokantianas, segundo a qual, uma das caracte- violada, etc., deverei fazer investigações em um campo com- rísticas da relação jurídica é que nela não entra em consideração pletamente diverso daquele que se tornaria meu objeto de es- a matéria do arbítrio, isto é, o fim a que alguém se propõe com tudo se quisesse fazer perguntas análogas em torno da proibi- objeto que deseja, mas somente a forma, enquanto os dois arbí- ção de matar. trios são considerados como absolutamente livres. Advertindo desde princípio que ponto de vista formal não Finalmente, há um terceiro tipo de formalismo, que se po- é um modo exclusivo de considerar a norma jurídica, quero deria chamar de formalismo científico porque concerne não ao evitar que se confunda o estudo formal da norma jurídica com modo de definir a justiça (formalismo ético), nem ao modo de</p><p>72 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 73 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS definir O direito (formalismo jurídico), mas ao modo de conce- das proposições prescritivas e sua distinção dos outros tipos de ber a ciência jurídica e trabalho do jurista, a quem é atribuída proposições; 2) exame e crítica das principais teorias sustenta- a tarefa de construir sistema de conceitos jurídicos tal como das sobre a estrutura formal da norma jurídica; 3) estudo dos se deduzem das leis positivas, tarefa puramente declarativa ou elementos específicos da norma jurídica enquanto prescrição; recognitiva e não criativa, e de extrair dedutivamente do siste- 4) classificação das prescrições jurídicas. ma assim construído a solução de todos os possíveis casos Por proposição entendemos um conjunto de palavras que controversos. possuem um significado em sua unidade. Sua forma mais É inútil dizer que os três tipos de formalismos não devem ser mum é que na lógica clássica se chama juízo, uma proposi- confundidos porque cuidam de problemas diversos. O primeiro ção composta de um sujeito e de um predicado, unidos por responde à pergunta: "O que é a justiça?"; segundo: "O que uma cópula (S é P). Mas nem toda proposição é um juízo. Por é direito?"; terceiro: "Como deve comportar-se a ciência exemplo: "Olhe!", "Quantos anos você item?" são proposições, jurídica?". Um autor pode ser formalista no primeiro sentido e mas não juízos. Além disso, é necessário distinguir uma propo- não no segundo e no terceiro, e assim por diante. E deste sição de seu enunciado. Por enunciado entendemos a forma modo, a polêmica antiformalista avessa, digamos, ao formalis- gramatical e lingüística pela qual um determinado significado é mo jurídico, não vale para O formalismo ético e para forma- expresso, por isso a mesma proposição pode ter enunciados lismo científico. a maior parte dos autores não faz diversos, e mesmo enunciado pode exprimir proposições qualquer distinção e, muitas vezes, sob nome genérico de diversas. Uma mesma proposição pode ser expressa por enun- "revolta contra o formalismo" englobam-se conceitos diversos. ciados diversos quando se altera a forma gramatical. Por Para nós, basta aqui ter posto em evidência que ponto de exemplo: "Mário ama Maria" e "Maria é amada por Mário", vista formal, do qual partimos, não tem nada a ver com ne- significado é idêntico e que muda é apenas a expressão; ou nhum dos três formalismos, porque não pretende ser uma teo- ainda na passagem do mesmo significado de uma expressão ria exclusiva, nem da justiça, nem do direito, nem da ciência numa língua para seu equivalente em outra. Por exemplo: jurídica, mas é pura e simplesmente um modo de estudar "Chove"; "Piove"; "Il pleut"; "It's raining"; "Es regnet" são fenômeno jurídico na sua complexidade, um modo que não só enunciados diversos da mesma proposição. Ao contrário, com não exclui, como exige os demais para que se possa obter um mesmo enunciado pode-se exprimir, em contextos e cir- conhecimento integral da experiência jurídica. cunstâncias variáveis, proposições diversas. Por exemplo, quando eu digo, voltando-me para um amigo com quem estou 16. A NORMA COMO PROPOSIÇÃO passeando: "Gostaria de beber uma limonada", pretendo ex- primir um desejo meu e além disso dar ao meu amigo uma Do ponto de vista formal, que aqui elegemos, uma norma é informação sobre meu estado de espírito; se dirijo as mesmas uma proposição. Um Código, uma Constituição, são um con- palavras para uma pessoa que está atrás do balcão de um bar, junto de proposições. Trata-se de saber qual é status dessas não pretendo expressar um desejo nem dar-lhe uma informa- proposições que compõem um Código, uma Constituição. A ção, mas impor-lhe uma determinada conduta. (Enquanto no tese que sustentamos é que as normas jurídicas pertencem à primeiro uso da expressão é previsível, por parte do amigo, a categoria geral das proposições prescritivas. Assim, a nossa resposta: "Eu também"; a mesma resposta por parte do segun- investigação se desenvolve por meio de quatro fases: 1) estudo do interlocutor seria quase uma ofensa).</p><p>74 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 75 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS Quando defino uma proposição como um conjunto de pa- 17. FORMAS E FUNÇÕES lavras que possuem um significado em sua unidade, entendo excluir do uso deste termo conjuntos de palavras sem significa- do. Um conjunto de palavras pode não ter um significado em Há vários tipos de proposições. Pode-se distingui-los com sua unidade, embora tenham um significado as palavras que o base em dois critérios: a forma gramatical e a Com componham, como, por exemplo: "César é um número pri- base na forma gramatical, as proposições se distinguem princi- mo"; "o triângulo é democrático". Ou ainda podem não pos- palmente em declarativas, interrogativas, imperativas e excla- suir um significado como unidade, porque as palavras mesmas mativas. Com respeito às funções, se distinguem em asserções, que compõem não têm, tomadas singularmente, um signifi- perguntas, comandos, exclamações. Exemplos: "Chove" (pro- cado, como por exemplo: "Pape Satan, pape Satan aleppe". posição formalmente declarativa e com função de asserção); Um conjunto de palavras sem significado não pode ser confun- "Chove?" (proposição formalmente interrogativa e com função dido com uma proposição falsa. Uma proposição falsa é sem- de pergunta); "Pegue guarda-chuva" (proposição formal- pre uma proposição porque tem um significado. Por exemplo: mente imperativa e com função de comando); "Como você "César morreu nos idos de abril"; "o triângulo tem quatro la- está molhado!" (proposição formalmente exclamativa com fun- dos". É falsa porque, se submetida ao critério de verdade que ção de exclamação). como resulta dos dispomos para demonstra-se que não possui os requi- exemplos dados forma gramatical e função se correspondem sitos solicitados para afirmar-se como verdadeira. Se é uma segundo a ordem acima exposta: um comando vem habitual- proposição sintética, o critério para julgá-la é a maior ou menor mente expresso na forma imperativa. Mas os dois critérios se correspondência aos fatos; se é uma proposição analítica, o distinguem, porque o primeiro diz respeito ao modo com critério é a coerência ou validade formal. Seja como for, para qual a proposição é expressa, e segundo ao fim a que se que uma proposição possa ser verificada ou falsificada é neces- propõe alcançar aquele que a pronuncia. E que os dois critérios sário que tenha um significado. sejam distintos, pode-se mostrar pelo fato de que a mesma Quando dizemos que uma norma jurídica é uma proposi- função pode ser expressa com formas diferentes e, inversa- ção, queremos dizer que é um conjunto de palavras que têm mente, com a mesma forma gramatical pode-se exprimir fun- um significado. Com base no que dissemos acima, a mesma ções diversas. proposição normativa pode ser formulada com enunciados Entre todos os tipos de proposições, nos interessam de diversos. O que interessa ao jurista, quando interpreta uma lei, modo particular os comandos, ou seja, aquelas proposições é o seu significado. Como uma proposição em geral pode ter cuja função é, como veremos melhor em seguida, influir sobre um significado, mas ser falsa, também uma proposição norma- o comportamento alheio para modificá-lo, e que por ora cha- tiva pode ter um significado e ser não digamos falsa mas, maremos genericamente de "comandos", ainda que seja ne- pelas razões que veremos a seguir, inválida ou injusta. Tam- cessário introduzir distinções ulteriores. Pois bem, um coman- bém para as proposições normativas, o critério de significância do, ou uma proposição que se distingue por uma função parti- pelo qual se distinguem as proposições propriamente ditas de cular, pode ser expresso, segundo as circunstâncias e os con- um conjunto de palavras sem significados se diferencia do crité- textos em todas as formas gramaticais mencionadas acima. rio de verdade ou validade, pelo qual se distinguem proposi- ções verdadeiras e válidas de proposições falsas ou inválidas. 2. Para este tópico e o seguinte, dentre os vários tratados de parti- cularmente o de J. M. Copi, Introduction to Logic (1953).</p><p>76 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 77 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS Certamente, a forma mais comum é a imperativa: "Estude!" na sua aparência de exclamação, tem função de comando, ou (não se afirma, com isto, que a forma imperativa corresponda pelo menos de recomendação, ou seja, não exprime sentimen- sempre ao modo verbal imperativo; há outras formas gramati- tos, mas tende a influir no comportamento alheio. Há um sinal cais imperativas como aquela constituída pelo verbo auxiliar nas estradas que todos conhecemos, composto por uma espécie "dever": "Você deve estudar"). Mas um comando é às vezes de ponto exclamativo: inútil dizê-lo, este sinal não é expressão expresso na forma declarativa, como ocorre na maioria dos de um estado de espírito, mas um convite à prudência. artigos de lei que, mesmo tendo uma indubitável função impe- Assim como a mesma função pode ser expressa através de rativa, são quase sempre expressos na forma declarativa. formas gramaticais diversas, também a mesma forma gramati- Quando art. 566 do Código Civil italiano diz: "Ao pai e à cal pode exprimir diversas funções. Em um tratado de geogra- mãe sucedem os filhos legítimos em partes iguais", a intenção fia pode ocorrer que eu leia a seguinte frase: "A Itália se divide de quem pronunciou esta fórmula não é a de dar uma infor- em regiões, províncias e municípios". Ninguém duvida que esta mação, mas a de impor uma série de comportamentos: trata-se proposição declarativa é, em relação à função, uma asserção, manifestamente de uma proposição declarativa com função de ou seja, uma proposição cujo fim é dar uma informação. Na comando. Assim, quando um pai dirigindo-se ao filho lhe diz Constituição da República italiana leio art. 114: "A República com ameaçador: "Você não acha que esta tarefa está cheia se divide em regiões, províncias e municípios". A proposição é, de erros?", a proposição é formalmente interrogativa, mas a em relação à forma gramatical, idêntica àquela que eu li no função que pronunciante lhe atribui é de induzir destinatá- tratado de geografia. Mas significado é também mesmo? O rio a corrigir a tarefa, e por isso, em última análise, não obs- constituinte não se propôs absolutamente, editando este artigo, tante a forma interrogativa, a proposição é um comando, ainda a dar aos cidadãos italianos uma informação geográfica, mas a que expresso como uma interrogação. Muitas das "interroga- estabelecer uma diretriz para legislador: a frase, em suma, ções" que se fazem no Parlamento, segundo um procedimento não é uma asserção, mas uma norma. estabelecido, são proposições, ou séries de proposições, cujo fim principal não é tanto aquele de receber informações (o in- terrogante comumente sabe com antecedência o que gover- 18. AS TRÊS FUNÇÕES no responderá ou não), quanto de induzir governo a modi- ficar próprio comportamento: também aqui, atrás da forma Julgo que seja possível distinguir três funções fundamentais interrogativa, aparece, em sentido amplo, a função preceptiva. da linguagem: a função descritiva, a expressiva e a prescritiva. Por fim, passando em frente de um portão de uma casa leio um cartaz assim escrito: "Cuidado com É uma excla- Estas três funções dão origem a três tipos de linguagens bem diferenciadas mesmo que nunca as encontremos em estado mação? Se a proposição tivesse a função exclamativa, significa- puro na realidade, quais sejam a linguagem científica, a poética ria que os proprietários da casa quiseram com aquela frase e a normativa. Interessa-nos de modo particular a função pres- exprimir publicamente o seu estado de ânimo sobre a periculo- critiva: um conjunto de leis ou regulamentos, um Código, uma sidade do seu Mas não é assim: lendo cartaz, compreen- Constituição, constituem os mais interessantes exemplos de do que devo passar longe. Mas isto quer dizer que aquela frase, linguagem normativa, assim como um tratado de física ou de biologia constituem exemplos característicos da linguagem ci- 3. Artigo alterado pela reforma do Direito de Família de 1975. entífica, e um poema ou uma canção, exemplos representativos</p><p>78 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 79 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS da linguagem poética. Tais exemplos já elucidam a distinção. um sermão é uma combinação de proposições expressivas e Sem a pretensão de dar definições rigorosas)e exaustivas, aqui prescritivas (trata-se de suscitar certos sentimentos piedade nos basta dizer que a função descritiva, própria da linguagem pelos mortos, compaixão pelos aflitos, etc. e de persuadir a científica, consiste em dar informações, em comunicar aos ou- cumprir certas obras); pronunciamento de um advogado de tros certas notícias, na transmissão do saber, em suma, em fa- defesa é quase sempre uma combinação de informações (por zer conhecer; a função expressiva, própria da linguagem poéti- exemplo, a figura moral e intelectual do imputado), de evoca- ca, consiste em evidenciar certos sentimentos e em tentar evo- ção de sentimentos (a chamada "moção de afetos"), e de pres- cá-los, de modo a fazer participar os outros de uma certa situa- crições (o pedido de absolvição). ção sentimental; a função prescritiva, própria da linguagem Que uma prescrição venha acompanhada de outros tipos de normativa, consiste em dar comandos, conselhos, recomenda- proposições, não é difícil de explicar. Para que a pessoa a ções, advertências, influenciar comportamento alheio e mo- quem se dirige a prescrição resolva agir nem sempre basta que dificá-lo, em suma, no fazer fazer. escute pronunciamento do comando puro e simples: é neces- Embora seja difícil encontrar estes tipos de linguagem no sário, às vezes, que ela conheça certos fatos e deseje certas estado puro, deve-se admitir, porém, que a linguagem científica Para que tenha conhecimento destes fatos que tende a despir-se de toda função prescritiva e expressiva, onde a induzem a agir, é necessário dar-lhe informações; para que nasce. ideal científico que, segundo Espinosa, não chora e deseje certas é preciso suscitar-lhe um certo não ri. e é indiferente às práticas que possam estado de espírito; logo, para que venha a conhecer certos fatos derivar de suas próprias descobertas. Uma poesia quanto mais e desejar certas é necessário informá-la e sus- se libera da função informativa mais genuína se torna (para citar-lhe um determinado estado de espírito. Assim, quando obter dados sobre Zacinto lerei um tratado de geografia e não digo: "Pegue o guarda-chuva" e acrescento: "Chove", uno a um soneto de Foscolo), e da prescritiva (uma poesia que se prescrição à informação. Se digo, ao invés, "Dê uma esmola proponha a promover uma ação é uma poesia didascálica ou para aquele pobrezinho" e continuo: "Como é triste a misé- oratória, e, conforme os cânones bem conhecidos da estética ria!", uno a prescrição à evocação de um sentimento. Dizendo, da intuição-expressão, uma não-poesia). Um corpo de leis ten- enfim: "Coma aquilo que está no prato", e em seguida: "É de a eliminar tudo o que não é preceito, e portanto a caracte- leite", e depois, como se não bastasse: "Se você soubesse rística de um moderno Código em confronto com as leis de como é bom!", uno a prescrição à informação e à evocação de uma civilização menos desenvolvida está propriamente na eli- um estado de espírito favorável ao cumprimento da ação. Até minação de todos os elementos descritivos e evocativos que mesmo O legislador pode recorrer a discursos descritivos e evo- com frequência aparecem misturados aos prescritivos. Há, ape- cativos para reforçar os seus preceitos: pode ser muito útil para sar disso, tipos de discurso cuja característica consiste propria- fazer-se cumprir uma lei fornecer as mais amplas informações mente em combinar dois ou mais tipos de linguagem: um dis- sobre as vantagens que se pode obter com isso, ou então sus- curso celebrativo, uma comemoração, é uma combinação de citar com evocações passionais, por exemplo, amor à pátria, proposições descritivas e expressivas (trata-se de dar notícias estados de espírito favoráveis à obediência. A linguagem pres- sobre a vida do homenageado e ao mesmo tempo suscitar critiva é a que tem maiores pretensões, porque tende a modifi- certos sentimentos de admiração pelas obras realizadas, indig- car comportamento alheio: nada estranho que se faça valer nação pelas injustiças sofridas, dor pela morte precoce, etc); das outras duas para exercitar a sua própria função.</p><p>80 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 81 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS 19. CARACTERÍSTICAS proposição é verdadeira. Em uma proposição prescritiva, ao DAS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS contrário, consentimento do destinatário se manifesta pelo fato de que a executa. Em outras palavras, pode-se dizer que a Um dos problemas em que estiveram majoritariamente em- prova da aceitação de uma informação é a crença (um com- penhados os lógicos nos últimos tempos é a distinção entre pro- portamento mental), a prova da aceitação de uma prescrição é posições descritivas e prescritivas. É um assunto sobre qual a execução (um comportamento prático, ainda que a distinção foram escritos nestes anos centenas de livros e artigos. A obra entre comportamento mental e prático seja muito duvidosa e que teve mais sucesso neste campo, e que está geralmente no aqui se faça apenas uma primeira aproximação). Diz Hare: centro das discussões, é a de R. M. Hare, The Language of Mo- "Podemos caracterizar provisoriamente a diferença entre asser- rals [A Linguagem da Moral (Oxford, Clarendon Press, 1952)], à ções e comandos, dizendo que, enquanto consentir sincera- qual remeto leitor de uma vez por todas. Na Itália, primeiro mente nas primeiras implica em crer em alguma coisa, con- estudo sobre assunto é de U. Scarpelli, Il problema della sentir sinceramente nos segundos implica em fazer alguma coi- definizione e il concetto di diritto [O Problema da Definição e o sa" (op cit., p. 20). Conceito de Direito (Milão, Nuvoletti, 1955)], cujo primeiro ca- O caráter distintivo que parece decisivo é que se refere ao pítulo é dedicado ao tema "Linguagem prescritiva e linguagem descritiva". critério de valoração. Sobre as proposições descritivas, pode-se dizer que são verdadeiras ou falsas; sobre as prescritivas, não. Pode-se resumir as características diferenciais das proposições As proposições prescritivas não são nem verdadeiras nem fal- prescritivas e descritivas em três pontos: a) em relação à função; sas, no sentido em que não estão sujeitas à valoração de ver- b) em relação ao comportamento do destinatário; c) em relação dade e falsidade. Há sentido em perguntar se a asserção "Ulan ao critério de valoração. Bator é a capital da Mongólia" é verdadeira ou falsa; não há Pelo que se refere à função, já dissemos essencial. Com a sentido em perguntar se preceito "Pede-se para limpar os descrição queremos informar outrem; com a prescrição, modi- sapatos antes de entrar" é verdadeiro ou falso. Verdade e falsi- ficar seu comportamento. Não significa que uma informação dade não são atributos das proposições prescritivas, mas também não influa sobre comportamento alheio. Quando em mente das descritivas. Os critérios de valoração com base em uma cidade estrangeira pergunto a indicação de uma rua, a que aceitamos ou rejeitamos uma prescrição são outros. A pro- resposta me induz a andar em uma direção ao invés de em pósito das normas jurídicas, falamos da valoração segundo a outra. Mas a influência da informação sobre meu comporta- justiça e a injustiça (e segundo a validade e a invalidade). Então mento é indireta, enquanto a influência da prescrição é direta. diremos que, enquanto não tem sentido perguntar-se se um A fim de que a informação: "Via Roma é a quarta à direita" preceito é verdadeiro ou falso, tem sentido perguntar-se se é tenha uma influência sobre meu comportamento, deve inse- justo ou injusto (oportuno ou inoportuno, conveniente ou in- rir-se em um contexto mais amplo, de que faça parte a prescri- conveniente) ou válido ou inválido. ção: "Devo in à via Roma". Toda modificação voluntária do A diferença entre os predicados aplicáveis às proposições comportamento pressupõe momento prescritivo. descritivas e os aplicáveis às prescritivas deriva da diferença de Quanto ao destinatário, foi precisamente Hare quem colo- critérios com base em que valoramos umas e outras para dar- cou em relevo que, frente a uma proposição descritiva, pode-se lhes nosso consentimento. O critério com que valoramos as falar em consentimento do destinatário quando este crê que a primeiras para aceitá-las ou rejeitá-las é a correspondência com</p><p>82 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 83 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS os fatos (critério de verificação empírica), ou com postulados ao domínio da emoção ou do sentimento. Pode-se dizer, para auto-evidentes (critério de verificação racional), segundo se marcar esta diferença, que a verdade de uma proposição cien- trate de proposições sintéticas ou analíticas. Chamamos de tífica pode ser demonstrada, enquanto sobre a justiça de uma empiricamente verdadeiras as proposições cujo significado é norma, pode-se somente procurar persuadir os outros (daí a verificado por via empírica, e racionalmente verdadeiras as que diferença, que vem se firmando, entre lógica, ou teoria da de- são verificadas por via racional. O critério com que valoramos monstração, e retórica, ou teoria da persuasão). as segundas para aceitá-las ou rejeitá-las é a correspondência com os valores últimos (critério de justificação material) ou a derivação das fontes primárias de produção normativa (critério 20. PODE-SE REDUZIR AS PROPOSIÇÕES de justificação formal). Chamamos de justas (ou convenientes) PRESCRITIVAS A PROPOSIÇÕES DESCRITIVAS? as primeiras, de válidas as segundas. Observe-se que para am- bos os tipos de proposições valem dois critérios, um material, Julgamos que a diferença entre os dois tipos de proposições, outro formal, mas que não se correspondem entre si. Se tanto, examinadas no tópico precedente, seja irredutível. Trata-se de pode-se visualizar uma correspondência entre o segundo crité- dois tipos de proposições que possuem um status diverso. Mas, rio de verificação (uma proposição é verdadeira quando dedu- não desejamos passar em silêncio sobre a mais séria tentativa zida das proposições primitivas formuladas como verdadeiras) de redução até agora e primeiro critério de justificação (uma norma é justa quando A tese reducionista é formulada do seguinte modo: uma é deduzida de uma norma superior formulada como justa). O prescrição, por exemplo, "Faça X" pode ser sempre reduzida a primeiro critério de verificação das proposições descritivas não uma proposição alternativa do tipo: "Ou faça X ou lhe sucede encontra correspondência com a valoração das prescrições Y", onde Y indica uma desagradável. A proposi- (seria possível encontrar uma correspondência com critério ção alternativa, sustenta-se, não é mais uma prescrição, mas da eficácia, precedentemente ilustrado, mas este não é de for- uma descrição, uma proposição que descreve que sucederá, ma alguma um critério decisivo para a aceitação ou a rejeição O que tanto é verdade que é possível dizer se ela é verdadeira das normas). O segundo critério de justificação não encontra ou falsa: verdadeira quando Y se verifica, falsa quando Y não correspondência com a valoração das proposições descritivas se verifica. É claro que esta redução repousa sobre pressu- (seria possível fazê-lo corresponder ao que se chama de valora- posto de que ordenar implica sempre a ameaça de uma san- ção segundo princípio de autoridade, mas esta é uma valo- ção; em outras palavras, a força do comando, que torna ração tão acolhida no mundo normativo quanto desacreditada um conjunto de palavras significantes cuja função é modificar no domínio descritivo). comportamento alheio, reside nas desagradá- Em última análise, a diferença entre a verificação das pro- veis que destinatário deve esperar de sua inexecução. Se eu posições descritivas e a justificação das proposições prescritivas digo ao estudante da primeira carteira: "Feche a porta", esta está na maior objetividade da primeira em relação à segunda; minha proposição é um comando apenas se estudante estiver enquanto a primeira tem como último ponto de referência 4. que é observável e pertence ao domínio da percepção, a se- Ver A. Visalberghi, Esperienza e valutazione (Experiência e Valoração), Turim, 1958, sobretudo o capítulo II, "La logica degli imperativi e delle norme" ("A lógica gunda encontra seu último ponto de referência no que é de- dos imperativos e das normas"), pp. 37-67, onde se retoma e se desenvolve a tese sejado, apetitoso, objeto de tendência ou inclinação, e pertence de H. G. Bonhert, "The semiotic status of command" ("O status semiótico de co- mando"), em Philosophy of Science (Filosofia da Ciência), XII, 1945, pp. 302-315.</p><p>84 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 85 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS convencido de que, não executando, eu possa repreendê-lo; mum, notamos que há comandos que são seguidos unicamente ou pior, prejudicá-lo com um mau juízo de conduta. Se, ao in- devido ao prestígio, a ascendência ou autoridade das pessoas vés, estudante estivesse convicto de que, não seguindo que ordenam, e assim, através de uma postura que não é de mando, não lhe sucederia propriamente nada, aquelas três pala- temor, mas de estima ou respeito pela autoridade (é caso em vras por mim pronunciadas, embora estando expressas na forma que a ordem do chefe é obedecida não porque ele se coloque imperativa, não passariam de um flatus vocis [vozes ao em posição de infligir uma pena, mas porque é O chefe). Em ou então de uma mera manifestação do meu estado de espírito. todos esses casos não há alternativa, e portanto, a redução da Não há dúvida de que a tese é sugestiva; não obstante, creio proposição prescritiva à proposição alternativa é impossível. não poder aceitá-la, especialmente, por três considerações: 2. De qualquer forma, este primeiro argumento não é deci- 1. Que todo comando seja caracterizado pela sanção é uma sivo. Podemos mesmo admitir que haja verdadeira e propria- afirmação dificilmente confirmável por fatos; poderia talvez ser mente um comando (e não apenas uma proposição que tem a verdadeiro para os comandos jurídicos (como veremos em forma gramatical de comando, mas não cumpre a função), seguida), mas não se consegue perceber como pode ser sus- unicamente onde a ausência de execução comporta conse- tentado para toda forma de comando. Hare, que não aceita a qüências desagradáveis, e que portanto se possa admitir sem- tese da redução, para dar um exemplo de comando sem con- pre que uma prescrição se converta em uma alternativa. Mas, propõe o seguinte: "Diga a seu pai que eu lhe tele- deste modo, foi realmente dada uma resposta satisfatória ao fonei". Certamente trata-se de uma prescrição, porque com problema de reduzir a prescrição a uma descrição? Não creio. esta frase locutor pretende fazer com que uma outra pessoa A segunda parte da alternativa: sucede Y" não se refere faça alguma coisa. Mas se esta pessoa não a executa, que a um fato qualquer, mas a um fato desagradável para o desti- sucede? Tentemos colocar esta proposição sob forma alternati- natário do comando. Ora, "desagradável" é um termo não va e convenhamos que venha a faltar a segunda parte: "Ou descritivo, mas de valor, isto é, não indica uma qualidade ob- diga a seu pai que eu lhe telefonei, ou então...." Ou então o jetiva, observável, do fato, mas a atitude que se assume diante quê? Muito em geral, parece que por trás da tese da redução daquele fato, que neste caso é uma atitude de condenação ou haja a convicção de que a única razão pela qual se segue um de recusa, ou seja, é um termo que tem um significado não comando é temor da sanção, e portanto a função de ordenar descritivo e que não é redutível a termos descritivos, mas em é realizada somente mediante a ameaça. Mas, trata-se mani- última análise, como todo termo de valor, tem um significado festamente de uma falsa generalização. Não quero empenhar- prescritivo. Quando, de fato, eu julgo uma coisa desagradável, me aqui na discussão se há imperativos incondicionais ou cate- nada digo sobre a qualidade da coisa; digo simplesmente que góricos, isto é, imperativos que são seguidos apenas porque esta coisa deve ser evitada, isto é, formulo um convite ou uma são imperativos, mesmo se sobre a existência de tais imperati- recomendação para evitá-la; em outras palavras, pretendo in- vos Kant funde a autonomia da lei moral, que se distingue de fluenciar comportamento dos outros em um certo sentido. todas as outras leis pelo fato de ser obedecida por si mesma (o Mas então, se a segunda parte da alternativa é constituída de dever pelo dever), e não devido à vantagem ou desvantagem um termo de valor, a função prescritiva expulsa pela porta re- que delas se possa tirar (o dever por um fim externo). Mas, torna pela janela, no sentido em que estímulo para modificar prescindindo totalmente da teoria kantiana da moral, e con- o comportamento não será mais dado pelo comando conside- tentando-se com observações no campo da experiência rado em si mesmo, porém pelo juízo de valor sobre a conse-</p><p>86 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 87 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS qüência que dele decorreria em caso de violação, e portanto, a mediante expediente da alternativa é uma solução irreal. A função prescritiva é só mascarada, não eliminada, reenviada alternativa não tem por si mesma a forma de uma proposição do comando para a do comando, mas não su- descritiva: tem uma forma na qual se pode exprimir tanto primida. Imaginemos que a segunda parte da alternativa con- uma proposição descritiva quanto uma prescritiva, conforme tenha um termo não de valor, mas descritivo, por exemplo: a preenchamos com termos descritivos ou com termos de "Ou feche a porta ou choverá" (supondo-se que fato de cho- valor (que desempenhem função prescritiva), ou ainda com ver seja indiferente ao interlocutor), e já fica claro que esta pro- outras prescrições. posição não pode ser considerada como a resolução em termos de alternativas de um comando. E não pode ser considerada 21. PODE-SE REDUZIR AS PROPOSIÇÕES como a resolução de um verdadeiro comando, porque falta à PRESCRITIVAS A PROPOSIÇÕES EXPRESSIVAS? segunda parte um juízo de valor que realize a função prescritiva própria do comando. 3. Há, enfim, um terceiro argumento que me parece decisi- Outra tentativa de redução das proposições prescritivas, po- VO. A que é atribuída à inexecução de um co- rém, em nossa opinião, também não convincente, é a que con- mando não é um efeito naturalmente ligado à ação contrária à siste em afirmar que as proposições prescritivas não passam de lei, mas é uma que é atribuída a esta ação pela uma formulação de proposições expressivas. Esta tese é for- mesma pessoa que colocou comando. Como veremos me- mulada deste modo, dizer: "Você deve fazer X" ou "Faça X", lhor em seguida, aqui, seguindo a terminologia usada por Kel- equivale a dizer: "Eu desejo (ou eu gostaria, eu quero, etc.) que sen, digamos que a não está para ilícito em você faça X". O comando seria redutível, em última análise, à relação de causalidade, mas de imputação. O imperativo: "Fe- expressão de um estado de espírito e consistiria na comunica- che a porta", não se reduz à alternativa: "Ou feche a porta ou ção desse estado de espírito a outrem. pegará um resfriado", mas a esta outra alternativa: "Ou feche a Tampouco esta redução nos parece convincente, e para porta ou será punido". Ora, no que importa este tipo de conse- mostrar a nossa perplexidade, aduzimos, também aqui, três Importa que, no caso de violação, intervém um novo argumentos: comando e correlativamente uma nova obrigação, vale dizer: 1. Não há dúvida que eu posso formular um comando na comando para quem deve executar a punição e a obrigação, forma de uma expressão de desejo ou de vontade. Quando de quem recebe este comando, de segui-lo. Não interessa se a digo, por exemplo, a meu filho: "Desejo (ou quero) que você pessoa que deve executar a punição é a mesma que formulou faça a lição", a minha intenção não é suscitar nele igual desejo, comando. O que importa notar é que a da mas fazê-lo executar aquela determinada ação. No entanto, transgressão em ação outro imperativo, que implica que como dissemos várias vezes, que permite distinguir os diver- imperativo excluído da primeira parte do comando, se en- SOS tipos de proposições não é a forma em que são expressas, contra, embora de modo implícito, na segunda. Um comando mas a sua funcionalidade. Ora, em relação à funcionalidade, como: "Você não deve roubar" transforma-se na alternativa: permanece sempre insuperável a diferença entre fazer alguém "Ou você não rouba ou juiz o punirá". participar de um estado de espírito e fazê-lo cumprir uma de- Estas considerações nos convidam a concluir que a tentati- terminada ação. Pode-se dizer, além disso, que a evocação de va de redução de um comando a uma proposição descritiva</p><p>88 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 89 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS um estado de espírito é preparatória ao cumprimento de uma 3. Finalmente, pode-se acrescentar a consideração de que ação, ou, mais genericamente, à modificação de um compor- uma lei dura no tempo e, como dizem os juristas, no decurso tamento. Mas também é preparatória da ação, como já vimos, da sua existência ela se afasta da vontade do legislador, e con- uma informação sobre as circunstâncias e da tinua a ter sua função de comando, independentemente das ação que se deseja ser cumprida. valorações que a fizeram surgir. Estas valorações podem até desaparecer; não obstante, a lei continua a ser uma lei e a de- 2. Uma segunda consideração, e mais decisiva, a seguin- terminar comportamento dos cidadãos. Neste caso, seria te: um comando é tal, em função do resultado que consegue, muito difícil dizer qual a valoração que a lei exprime. Não ex- independentemente do sentimento que evoca na pessoa do prime claramente nenhuma. No entanto, desde que seja obe- destinatário. Não é inteiramente indispensável que destinatá- decida, é um comando. rio execute comando depois de ter participado do estado de espírito de quem tenha enunciado. Um comando permanece como tal, ainda se destinatário executar com um estado de 22. IMPERATIVOS AUTÔNOMOS E espírito diferente daquele de quem comanda. O estado de espí- rito do pai que manda filho estudar é determinado pelo valor que ele atribui ao estudo para sua formação cultural ou para a Com as considerações precedentes procuramos mostrar a obtenção de um título de estudo útil. O filho que obedece especificidade da categoria das proposições prescritivas em pode, ao invés, estar determinado a cumprir o comando uni- confronto com as duas outras categorias de proposições, des- camente pela sujeição aos confrontos da autoridade paterna ou critivas e expressivas. Agora devemos tentar precisar melhor pelo temor de um castigo. Neste caso, comando desenvolve a seu caráter, distinguindo tipos diversos de prescrições. A cate- sua função independentemente da participação do sujeito ativo goria das prescrições é vastíssima: compreende tanto as regras e do sujeito passivo na valoração. Isto se nota habitualmente morais quanto as regras da gramática, tanto as normas jurídi- no mundo do direito, onde a relação entre legislador e os cas quanto as prescrições de um médico. Aqui ilustramos três cidadãos não é necessariamente de participação a uma igual critérios fundamentais de distinção: 1) com respeito à relação valoração da oportunidade ou da justiça da lei: legislador, ao entre sujeito ativo e passivo da prescrição (tópico 22); 2) com estabelecer uma lei, pode ter uma valoração diferente daquela respeito à forma (tópico 23); 3) com respeito à força obrigante que tem cidadão que a obedece. Mas a lei é que é, pelo fato (tópicos 24 e 25). Não negamos, no entanto, que existam de realizar função que lhe é própria, de exercer uma influência outros. Estes três critérios de distinção nos interessam porque sobre comportamento dos cidadãos. O que importa à lei para eles possuem particular relevância no estudo das normas jurí- que seja um comando não é a transmissão de certas valorações dicas. e, portanto, de certos sentimentos que são a origem dessas Com respeito à relação entre sujeito ativo e passivo, distin- valorações, mas que seja executada quaisquer que forem as guem-se os imperativos autônomos dos heterônomos. Diz-se valorações que determinem a execução. Pode muito bem autônomos aqueles imperativos nos quais uma mesma pessoa acontecer que dois cidadãos cumpram a mesma lei por razões é quem formula e quem executa a norma. Diz-se heterônomos diferentes. É claro, neste caso, que a lei exerceu a sua função aqueles nos quais quem formula a norma e quem a executa prescritiva sem ter desenvolvido ainda a função de proposição são pessoas diversas. Esta distinção é historicamente impor- expressiva. tante porque foi introduzida por Kant (no Fundamento da Me-</p><p>90 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 91 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS tafísica dos Costumes) para caracterizar os imperativos morais tinguir a moral do direito, ou, de qualquer forma, para identifi- em confronto com todos os outros imperativos. Para Kant, os car direito com as normas heterônomas. Se prescindimos do imperativos morais, e só os imperativos morais, são autôno- modo que Kant dispôs problema da moralidade, devemos mos. São autônomos porque a moral consiste em comandos convir que há sistemas morais fundados na heteronomia. Uma que homem, enquanto ser racional, dá a si mesmo e não os moral religiosa, por exemplo, que funda os preceitos morais na recebe de nenhuma outra autoridade que não seja a própria vontade de um ser supremo, é uma moral heterônoma, sem razão. Quando homem, ao invés de obedecer à legislação da por isso confundir-se com um sistema jurídico. Os dez manda- razão, obedece aos instintos, às paixões, aos interesses, segue mentos e as prescrições que deles podem derivar fundam um imperativos que desviam do aperfeiçoamento de si próprio: sistema moral heterônomo, mas não chegam a ser, por si seu comportamento consiste, nestes casos, na adesão a princí- mesmos, um ordenamento jurídico. E assim, se considerarmos pios que estão fora dele e, enquanto tal, não é mais um com- um sistema moral oposto ao fundado sobre a vontade divina, portamento moral. Com as próprias palavras de Kant: "A auto- por exemplo, um sistema moral inspirado em uma filosofia nomia da vontade é a qualidade que possui a vontade de ser positivista, para qual a moral é complexo de normas sociais lei de si mesma"; e a antítese: "Quando a vontade procura a lei originadas das relações de convivência entre os homens no que deve determiná-la em lugar distinto ao da inclinação de curso de sua história, e formando aquilo que se chama ethos suas máximas de instituir como sua uma legislação universal, de um povo, ainda neste caso, nos encontramos frente a uma quando, por ultrapassando a si mesma, procura moral heterônoma, que nem por isso se converte imediata- esta lei na qualidade de qualquer de seus objetos, disso resulta mente em um sistema jurídico. sempre uma heteronomia. A vontade não dá então a lei a si Por outro lado, não se afirmou que os imperativos autôno- mesma; é objeto, ao invés, graças as suas relações com ela, mos não podem ser encontrados também no campo do direito: que lhe dá a nem direito, somente por este fato, se confunde com a moral. A distinção entre imperativos autônomos e heterônomos O conceito de autonomia é utilizado, no sentido próprio de tem importância para estudo do direito, porque constituiu um normas ou complexo de normas nas quais O legislador e exe- dos tantos critérios com os quais se desejou distinguir a moral cutor se identificam, tanto no direito privado, quanto no direito do direito. Segundo Kant, a moral se resolve sempre em impe- público. No direito privado, fala-se em esfera da autonomia rativos autônomos e direito em imperativos heterônomos, privada para indicar a regulamentação de comportamentos que visto que o legislador moral é interno e jurídico é externo. Em os cidadãos dão a si mesmos, independentemente do poder outras palavras, esta distinção pretende sugerir que quando nos público. Podemos entender um contrato como uma norma comportamos moralmente, não obedecemos a ninguém além autônoma, no sentido que é uma regra de conduta que deriva de a nós mesmos; quando, ao contrário, agimos juridicamente, da mesma vontade das pessoas que se submetem a ela. Em um obedecemos a leis que nos são impostas por outros. contrato, aqueles que estabelecem as regras e aqueles que de- vem segui-las são as mesmas pessoas. O mesmo pode-se dizer Aqui, nós não discutimos a distinção. Limitamo-nos a le- de um tratado internacional, que dá origem a regras de com- vantar alguma dúvida de que ela possa ser utilizada para dis- portamento que valem apenas para os Estados que participa- ram da estipulação do tratado. No campo do direito público, 5. As duas citações são tiradas da tradução italiana do Fundamento da Metafísica dos Estado moderno tende para ideal do Estado democrático. E Costumes, Paravia, p. 104.</p><p>92 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 93 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS que é o Estado democrático senão Estado fundado sobre luto, que deve ser cumprida incondicionalmente, ou com ne- princípio da autonomia, isto é, sobre princípio de que as leis, nhum outro fim a não ser seu cumprimento enquanto ação que devem ser seguidas pelos cidadãos, devem ser elaboradas devida. É um imperativo categórico o seguinte: "Não se deve por esses mesmos cidadãos? Rousseau, o teórico do Estado mentir". Imperativos hipotéticos são aqueles que prescrevem democrático moderno, define de maneira bastante clara prin- uma ação boa para atingir um fim, isto é, uma ação que não é cípio inspirador da democracia em termos de autonomia, quan- boa em sentido absoluto, mas boa somente quando se deseja, do diz (com uma fórmula que inspirou próprio Kant): "A liber- ou se deve, atingir um fim determinado e, assim, é cumprida dade consiste na obediência à lei que cada um se prescreveu" condicionalmente para a obtenção do fim. É um imperativo hi- (Do Contrato Social, capítulo VIII). Hoje, podemos ler em um potético seguinte: "Se você quiser sarar do resfriado, deve dos tratados mais difundidos de teoria do Estado, de Kelsen, a tomar aspirina". Os imperativos categóricos seriam próprios, distinção entre dois tipos de regimes contrapostos, democráti- segundo Kant, da legislação moral, e podem, portanto, ser cha- CO e autocrático, fundada na distinção entre autonomia, que mados de normas éticas. Quanto aos imperativos hipotéticos, é a característica do regime democrático, e heteronomia, a distinguem-se, por sua vez, segundo Kant, em duas subespécies, característica do regime aristocrático. Entende-se que um Esta- de acordo com fim a que a norma se refere, como diz Kant, do com uma legislação perfeitamente autônoma é um ideal- um fim possível ou um fim real, isto é, um fim que os homens limite, realizável somente onde a democracia direta, ou seja, a podem perseguir ou não, ou um fim que os homens não podem democracia sem representação (que, aliás, era ideal de Rous- deixar de perseguir. Exemplo do primeiro fim são as regras que seau) substituísse a democracia indireta, tal como é praticada Kant chama de habilidade, como por exemplo: "Se quiser nos Estados modernos. Isto não impede que haja sentido em se aprender latim, você deve fazer exercícios de tradução do italia- falar de autonomia também em relação às normas jurídicas e no para latim"; exemplo do segundo fim são as regras que que, portanto, a distinção entre normas autônomas e heterô- Kant chama de prudência, como por exemplo: "Se você quiser nomas, prescindindo da particular acepção dada por Kant, não ser feliz, deve dominar as Este segundo fim se distin- possa ser utilizada para distinguir a moral do direito. gue do primeiro porque, ao menos conforme Kant, a felicidade é um fim cuja obtenção não é deixada à livre escolha do indiví- duo, como de aprender latim, mas é um fim intrínseco à pró- 23. IMPERATIVOS CATEGÓRICOS pria natureza do homem. A rigor, um imperativo deste gênero, E IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS por ser condicionado (ou seja, condicionado à obtenção do fim) não se exprime com uma proposição hipotética. A sua fórmula Uma outra distinção que remonta a Kant, e que também foi correta é: "Visto que deve Y, deve X". Seguindo a terminologia utilizada, como veremos em seguida, para distinguir a moral do de Kant, que podemos adotar, os imperativos condicionados do direito, é aquela entre imperativos categóricos e imperativos primeiro tipo são normas técnicas, os do segundo tipo são nor- hipotéticos. Esta distinção repousa na forma em que o coman- mas pragmáticas. Concluindo, para Kant podem-se distinguir, do é expresso, ou seja, se é expresso por um juízo categórico com base na forma, três tipos de normas: as normas éticas, cuja ou por um juízo hipotético. fórmula é: "Você deve X"; as normas técnicas, cuja fórmula é: "Se você quiser Y, deve X"; as normas pragmáticas, cuja fór- Imperativos categóricos são aqueles que prescrevem uma mula é: "Visto que você deve Y, também deve X". ação boa em si mesma, isto é, uma ação boa em sentido abso-</p><p>94 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 95 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS Enquanto nos perguntamos se a distinção entre normas Existem, como veremos, imperativos hipotéticos no direito: autônomas e heterônomas é de alguma utilidade para uma aliás, segundo alguns, todos os imperativos jurídicos são hipo- melhor compreensão da normatividade jurídica, com relação à téticos. A norma que estabelece, por exemplo, que a doação distinção entre imperativos categóricos e imperativos hipotéti- deve ser feita por ato público, pode ser formulada em forma o problema que se coloca é sobre seu fundamento, isto hipotética deste modo: "Se você quiser fazer uma doação, deve é, se os imperativos hipotéticos, em particular as normas técni- realizar um ato público". A característica de um imperativo cas, são verdadeiramente imperativos. Disto se duvida. Notou- hipotético deste tipo é que a ou fim não é se que as normas técnicas derivam, comumente, de uma pro- efeito de uma causa no sentido naturalista, mas é uma conse- posição descritiva cuja relação entre uma causa e um efeito foi qüência imputada a uma ação, considerada como meio, pelo convertida em uma relação de meio e fim, onde à causa vem ordenamento jurídico, ou seja, por uma norma. Aqui, a relação atribuído valor de meio e ao efeito valor de fim. A norma meio/fim não é a conversão em forma de regra de uma relação técnica: "Se quiser ferver a água, você deve aquecê-la a 100 entre causa e efeito, mas de uma relação entre um fato qualifi- graus", em que a fervura é fim e aquecimento é meio, cado pelo ordenamento como condição e um outro fato que deriva da proposição descritiva: "A água ferve a 100 graus", mesmo ordenamento qualifica como Logo, onde o calor de 100 graus é a causa e a fervura é o efeito. O neste caso, uma vez escolhido o fim, que é livre segundo o imperativo hipotético mencionado anteriormente: "Se você exemplo, dar algo a um outro a ação que realizo para atingir quiser sarar do resfriado, tome aspirina" deriva da proposição fim segundo o exemplo, celebrar um ato público não é a descritiva: "A aspirina cura resfriado". Ora, se imperativo adequação a uma lei natural, mas a uma regra de conduta, isto tem a função de produzir na pessoa a quem se dirige uma é, a uma verdadeira prescrição, e pode-se falar propriamente obrigação de comportar-se de um determinado modo, não se de ação obrigatória. Assim, enquanto se pode duvidar que vê qual obrigação deriva de um imperativo hipotético dessa muitos dos denominados imperativos hipotéticos são propria- espécie: e de fato, a escolha do fim é livre (e portanto não obri- mente imperativos, não se pode negar que há prescrições que gatória), e uma vez escolhido fim, comportamento que dele assumem a forma de imperativos hipotéticos, quer dizer, de deriva não pode ser considerado obrigatório, porque é neces- imperativos que não impõem uma ação como boa em si mes- sário, no sentido de uma necessidade natural, e não jurídica ma, mas ao atribuir a uma determinada ação uma certa conse- nem moral. Se eu quiser ferver a água, ato de aquecê-la a (favorável ou desfavorável), induzem a cumprir aquela 100 graus não é a de uma norma, mas uma lei ação não por si própria, mas porque ela se torna meio para natural, que não me obriga, mas me constrange a comportar- alcançar um fim (quando a atribuída é favorável) me daquele modo. ou para evitar alcançá-lo (quando a atribuída é Efetivamente, se todos os imperativos hipotéticos fossem desfavorável). normas técnicas do tipo descrito até agora, seria muito discuti- vel que pudessem ser considerados imperativos, visto que o 24. COMANDOS E CONSELHOS comportamento que contemplam, quando cumprido, não é por força de um comando, mas por força de uma necessidade O último critério de distinção que aqui consideramos no natural. Mas nem todos os imperativos hipotéticos podem ser âmbito das proposições descritivas é o que diz respeito à força reconduzidos ao tipo de normas técnicas até aqui descrito. vinculante. Até agora, falamos dos imperativos (ou comandos).</p><p>96 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 97 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS Mas, os imperativos (ou comandos) são aquelas prescrições sustenta que a distinção é prejudicial porque pode desviar os que têm maior força vinculante. Esta maior força vinculante se homens da virtude (em De belli ac pacis [Do Direito da exprime dizendo que comportamento previsto pelo imperati- Guerra e da Paz], trad. Barbeyrac, I, 2, 9, n. 19). VO é obrigatório, ou, em outras palavras, imperativo gera Observa-se, também, que a distinção entre comandos e uma obrigação à pessoa a quem se dirige. Imperativo e obriga- conselhos pode servir para distinguir direito da moral, assim ção são dois termos correlativos: onde existe um, existe ou- como servem as distinções entre normas autônomas e tro. Pode-se exprimir o imperativo em termos de obrigatorie- nomas, e entre normas categóricas e hipotéticas. Deveríamos dade da ação-objeto, assim como se pode exprimir a obrigato- dizer então, que só direito obriga; a moral se limita a acon- riedade em termos de comando-sujeito. Mas nem todas as selhar, a dar recomendações que deixam indivíduo livre (isto prescrições, ou melhor dizendo, nem todas as proposições com é, apenas ele responsável) de segui-las ou não. Certamente, as quais tentamos determinar comportamento alheio impli- autor ao qual, talvez, melhor do que a nenhum outro, se possa cam em obrigações. Há modos mais brandos ou menos vincu- atribuir uma distinção deste gênero seja Thomas Hobbes no lantes de influenciar comportamento alheio. Aqui examina- seu onde dedica um capítulo inteiro (o XXV) aos con- mos dois tipos que têm particular relevância no mundo do di- selhos e à distinção destes em relação aos comandos (na edi- reito: os conselhos e as instâncias. ção italiana de Laterza, vol. I, pp. 202-209). Os argumentos Embora as modernas teorias gerais do direito costumem pas- que Hobbes aduz para distinguir comando do conselho são sar em silêncio pelo problema da distinção entre comandos e substancialmente cinco: 1) em relação ao sujeito ativo: aquele conselhos (há, porém, uma indicação na Juristische Grundlehre que comanda um se reveste de uma autoridade que lhe dá [Doutrina Jurídica Fundamental] de F. Somlo, pp. 179 e ss.), a direito de comandar; aquele que aconselha não pode pretender disputa é antiga: os teólogos conhecem a diferença entre con- direito (nós diríamos, mais exatamente, poder) de fazê-lo; selhos evangélicos, que são aquelas máximas de Cristo cujo 2) em relação ao conteúdo: os comandos se impõem pela conteúdo não é obrigatório, mas é um meio pura e simples- vontade que os emite (isto é, derivam sua força vinculante por mente recomendado para atingir uma mais alta perfeição espi- serem expressão de uma vontade superior); os conselhos con- ritual, e os preceitos ou mandamentos cujo conteúdo, ao con- seguem determinar a ação de outrem em razão de seu conteú- trário, é obrigatório. Com parâmetros nesta distinção, não há do (isto é, segundo sua maior ou menor racionalidade); que antigo tratadista de direito natural que não tenha tocado na equivale a dizer que comando é caracterizado pelo princípio questão e não tenha discutido a validade e os critérios que a stat pro ratione voluntas [a vontade está acima da razão], e norteiam. Em uma longuíssima nota a Grócio, que admitira a conselho pelo princípio oposto (os comandos, enquanto se distinção, tradutor e comentarista Jean Barbeyrac afirma que valem do prestígio de uma vontade superior, podem dirigir-se a ela não é sustentável e assim não se pode falar em conselhos qualquer um, os conselhos apenas às pessoas racionais); 3) em morais, porque onde se encontram aquelas máximas que se relação à pessoa do destinatário: no comando destinatário é denominam conselhos como, por exemplo, a máxima de não obrigado a segui-lo, no conselho não é obrigado, isto é, é livre se casar novamente ou de permanecer solteiro, esta ou indica para segui-lo ou não; em outras palavras, diz-se que com- uma ação indiferente (e então não é comando nem conselho) portamento previsto pelo comando é obrigatório, previsto ou indica uma ação obrigatória em certas circunstâncias e para pelo conselho é facultativo; 4) em relação ao fim: comando é certas pessoas (e então é um comando). Além disso, Barbeyrac dado no interesse de quem comanda, conselho é dado no</p><p>98 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 99 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS interesse de quem se aconselha; 5) em relação às ça"), mas com a convicção de que que foi aconselhado é cias: se da execução de um comando deriva um mal, a respon- racional, isto é, conforme os objetivos a que nos propomos sabilidade é de quem comanda; se mesmo mal deriva de atingir. Quanto ao comportamento da pessoa do destinatário, ter seguido um conselho, a responsabilidade não é de quem aqui intervém a diferença indubitavelmente mais importante e aconselhou, mas somente do aconselhado; esta distinção faz que sozinha bastaria para distinguir comando do conselho um contrapeso, por assim dizer, à precedente, porque se é ver- (embora não seja suficiente para distinguir conselho também dade que aquele que comanda realiza, através do comando, da instância): enquanto sou obrigado a seguir um comando, próprio interesse, disso resulta que não pode descarregar sobre tenho a faculdade de seguir ou não um conselho, que signifi- outro a responsabilidade de sua própria ruína, já que de uma ca que, no caso em que eu não siga comando, aquele que certa gratuidade própria do conselho resulta também a impos- emitiu não se desinteressa pelas que disto deri- sibilidade por parte do aconselhado de imputar a responsabili- vam; no caso em que eu não siga um conselho, quem aconse- dade de seu insucesso a quem aconselhou. lhou se desinteressa pelas ("se você não quiser Não julgamos que todas essas características diferenciais, fazer que eu aconselho, pior para você": quem fala deste listadas por Hobbes, sejam relevantes. Em particular, não cre- modo não é uma pessoa investida do poder de comandar, mas mos que seja relevante a primeira, que diz respeito ao sujeito um conselheiro). Enfim, pode ser acolhido, porém com alguma ativo: no campo do direito, por exemplo, também para dar cautela, também quinto argumento, com relação às conse- conselhos (o chamando "poder consultivo") é necessário ter é verdade que comando exige mais do indivíduo a autoridade (isto é, direito, ou melhor, poder) para fazê-lo; quem se dirige, mas recompensa, eximindo da responsabi- trata-se de duas autoridades de tipo diferente, e provavelmente lidade do ato cumprido (existe, em todo ordenamento jurídico, de peso diverso, mas não se pode negar que mesmo poder um artigo como art. 51 do Código Penal italiano que exclui a de aconselhar deva estar investido de uma particular autorida- punibilidade de uma ação realizada em cumprimento do pró- de. Também quarto argumento, relativo ao fim, não me prio dever ou por ordem de uma autoridade superior); porém parece aceitável: se é verdade que conselho é dado no inte- ninguém poderia eximir-se das da própria ação resse do aconselhado, não afirmou-se que comando seja aduzindo como pretexto ter acatado um conselho. Nenhuma emitido apenas pelo interesse de quem comanda. Seria real- autoridade que impõe ordens e, logo, comportamentos obri- mente ingênuo crer que as leis são emanadas somente no inte- gatórios, poderia dizer que em geral pronunciaria um conse- resse público, assim como seria muito malicioso crer que são lheiro a quem se dirige em busca de uma luz: "Esta é a minha emanadas apenas no interesse de quem detenha sumo po- opinião, mas não assumo nenhuma responsabilidade pelo que der. Melhores são os outros três argumentos: em relação ao possa suceder a você". conteúdo, é um fato que uma lei geralmente seja obedecida somente porque é uma lei, independentemente de qualquer 25. os CONSELHOS NO DIREITO consideração pelo seu conteúdo (antes, com a convicção de que se ordenam coisas irracionais), enquanto no seguir um conselho, no momento que a execução é livre, conta-se não Ainda que a teoria do direito não tenha se dedicado muito tanto com a autoridade de quem aconselha (no caso do con- ao problema da distinção entre comandos e conselhos, esta selheiro, aliás, mais do que autoridade, fala-se em "confian- distinção tem considerável importância em todos os ordena-</p><p>100 NORBERTO BOBBIO Capítulo III 101 TEORIA DA NORMA JURÍDICA As PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS mentos jurídicos. Nem todas as prescrições que encontramos Desenvolve a função de preparar a via para comando, de quando estudamos um ordenamento jurídico no seu conjunto que falamos no tópico 18. são comandos. Basta pensar que em todo ordenamento jurídi- co, ao lado dos órgãos deliberativos, há os órgãos consultivos, Visto que conselho é uma prescrição que tem menor força vinculante que comando, conclui-se que os órgãos consulti- que têm justamente a tarefa não de emanar ordens, mas de dar vos são órgãos que, em um ordenamento jurídico, são titulares conselhos. Afirma-se que eles "não exercem funções de vonta- de uma autoridade menor ou secundária em relação aos ór- de, mas apenas de apreciação técnica: são colocados ao lado gãos com função imperativa. Historicamente tem-se observado dos órgãos ativos para seus pareceres e con- selhos" (Zanobini). Basta pensar, ainda, que na teoria dos atos que um certo órgão se desenvolve e adquire maior peso em um ordenamento transformando-se de órgão consultivo em jurídicos, distinguem-se os atos de vontade dos atos de repre- órgão legislativo (as leis são a forma mais perfeita de comandos sentação e de sentimento, e que enquanto uma ordem é classi- ficada entre os atos de vontade, um conselho ou um parecer é do Estado), como aconteceu com os parlamentos, que no re- gime de monarquia absoluta tinham funções meramente con- classificado entre os atos de representação, porque não se trata sultivas, e se tornaram, no regime de monarquia constitucional, de uma declaração de vontade, mas "o seu objetivo é sempre e órgãos que participam da função legislativa. Inversamente, um unicamente de aconselhar: é a lei que depois impõe provi- órgão decai e é considerado desautorizado quando, perdida a mentos semelhantes ao modo aconselhado" (Romano). Ora, função imperativa, conserva ainda somente a consultiva, como que caracteriza os atos dos órgãos consultivos, ou pareceres, ocorreu com a segunda Câmara do Parlamento francês (o anti- em confronto com os comandos ou ordens, é propriamente aquilo que ilustramos no tópico precedente, vale dizer, fato go Senado) que, segundo a Constituição de 1946, tinha fun- ções meramente consultivas (e de fato não se denomina mais de que estes têm, assim, a função de guiar ou dirigir com- Senado, mas Conselho da República). Que a função consultiva portamento alheio, mas a sua orientação não é tão eficaz como a dos comandos, e esta menor eficácia se revela porque a pes- seja característica de órgãos que têm menor prestígio em rela- ção àqueles com função imperativa, está claramente demons- soa ou as pessoas a quem são dirigidos não são obrigadas a trado pelo que ocorre no ordenamento internacional, onde os segui-los, que em linguagem jurídica se exprime dizendo que organismos internacionais não têm nos confrontos entre Esta- os pareceres não são vinculantes (quando se diz que um pare- dos (que conservam suas soberanias) poder de decidir obri- cer é obrigatório, não significa obrigação de segui-lo, mas obri- gatoriamente, isto é, de emanar seus comandos, mas simples- gação de requerê-lo, portanto liberdade para segui-lo ou não). Isto não quer dizer que todos os atos que em direito se deno- mente de endereçar suas recomendações. O que na termi- minam pareceres são conselhos no sentido por nós ilustrado: nologia do direito internacional é recomendação, na termino- também chamam-se pareceres aquelas relações sobre determi- logia jurídica tradicional e na linguagem comum é conselho, nados provimentos a tomar, cujo fim não é absolutamente de vale dizer, uma proposição cuja força de influir sobre com- portamento alheio não atinge a eficácia máxima como a da guiar comportamento alheio, mas só de iluminar quem obrigatoriedade. deve tomar uma deliberação, isto é, como se diz comumente, de fornecer os elementos de conhecimento suficientes para que Do conselho e da recomendação, que pertencem à mesma quem deve deliberar o faça com razões conhecidas. Neste caso, species, distingue-se a exortação. É curioso que Hobbes, depois parecer não tem função diretiva, mas apenas informativa. de ter indicado as características do conselho do modo que expusemos, passa a falar da exortação, e a define como um</p>

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