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DANTE LUCCHESI SINTAXE DA LINGUA PORTUGUESA 2013 2 Copyright © 2013 Dante Lucchesi Sumário Introdução O Estudo da Gramática................................................................03 Capítulo 1 A Arquitetura da Linguagem.......................................................16 Capítulo 2 As Classes de Palavras.................................................................25 Capítulo 3 O Núcleo da Estrutura Sintática...................................................63 Capítulo 4 Os Constituintes Oracionais.........................................................86 Capítulo 5 As Construções Sintáticas Especiais..........................................113 Capítulo 6 O Período Composto..................................................................118 Capítulo 7 Os Sintagmas..............................................................................133 3 Introdução O Estudo da Gramática A Sintaxe é a disciplina que estuda o sistema através do qual combinamos as unidades significativas da língua (as palavras) para formar frases. Atualmente, esse sistema é chamado pela Linguística, a ciência que estuda a linguagem humana, de gramática. Porém, tradicionalmente o termo gramática tem outro significado: conjunto de regras que devem ser usadas para falar e escrever corretamente em uma língua. Não se trata de um conhecimento científico, mas de uma convenção social, perpetuada pela tradição, nas sociedades letradas. Este livro não faz parte dessa corrente de estudos da língua que se denomina tradição gramatical, pois não se preocupa em definir “o que é certo ou errado” no uso da língua. Ao invés disso, apresenta uma proposta de estudo científico da gramática (no sentido que a Linguística contemporânea atribui ao termo), descrevendo sua estrutura e analisando suas propriedades essenciais. Assim, como primeiro passo, vamos definir o objeto do estudo científico da língua, em contraposição à visão de língua desenvolvida há mais de dois milênios pela tradição gramatical. 1. O que é gramática? A gramática é o sistema mental através do qual transformamos os nossos pensamentos em frases. Quando um indivíduo conversa em sua língua materna, ele analisa a estrutura e interpreta o significado de todas as frases que fala e ouve, sem ter, obviamente, a consciência de que está sempre fazendo essa “análise semântica e sintática”, pois o conhecimento que o falante tem de sua língua materna (sua competência linguística) pode ser definido como um conhecimento intuitivo ou implícito – ou seja, trata-se de um saber do qual o indivíduo não tem consciência. 4 Contudo, essa competência linguística do falante nativo é um sistema tão complexo que o mais poderoso computador já produzido é incapaz de fazer o que qualquer ser humano faz trivialmente – conversar em sua língua materna –, seja esse indivíduo um falante erudito, seja ele um falante iletrado. Tal constatação nos leva a uma conclusão muito importante: não existe linguagem caótica e sem regras. Toda frase que qualquer falante de uma língua humana produz é gerada por um sistema articulado de regras, independentemente de se ajustar ou não aos modelos fixados socialmente pela tradição gramatical. Por dominar esse sistema que gera todas as potenciais frases de sua língua, o falante sabe distinguir uma frase bem formada (uma frase gramatical) de uma frase mal formada (uma frase agramatical). Assim, qualquer falante nativo do português sabe que a frase (1) é agramatical. (1) * Eu cortar o cabelo amanhã. 1 Se ouvirmos alguém falar essa frase, pensaremos logo que se trata de um estrangeiro, que fala o português imperfeitamente, provavelmente como segunda língua. Mas, de onde vem esse nosso conhecimento? Quem nos ensinou a reconhecer as sentenças de nossa língua? Como já foi dito, trata-se de um conhecimento intuitivo, ou seja, o falante nativo do português sabe que essa frase é mal formada, mas não sabe explicar por que ela é mal formada. 2 O estudo científico da linguagem humana tem como um de seus objetivos principais explicitar esse conhecimento intuitivo – a competência linguística do falante nativo de uma língua humana –, por meio de procedimentos analíticos que formalizam suas propriedades constitutivas. 1.1. As propriedades universais da linguagem humana Com base na análise empírica da estrutura gramatical das línguas humanas, a Linguística é capaz de dizer que a frase exemplificada acima em (1) é agramatical porque não cumpre um dos requisitos universais da linguagem humana: o evento referido em qualquer frase produzida em qualquer língua humana deve ser situado 1 O asterisco colocado antes da frase é a notação utilizada para indicar que a frase é agramatical. 2 Não se deve confundir esse conceito de gramaticalidade do conceito de correção gramatical. A frase exemplificada em (a) abaixo não está correta de acordo com a norma gramatical vigente, mas não é uma frase agramatical, pois é produzida naturalmente por um falante nativo do português brasileiro e aceita com naturalidade pelos demais falantes que com ele convivem no mesmo universo cultural. Apesar de violar as convenções sociais da língua, a frase não viola os mecanismos psíquico-biológicos da linguagem humana, por isso ela é gramatical, conquanto seja considerada incorreta do ponto de vista normativo. (a) Meus filho estuda muito. 5 temporalmente em relação ao momento em que a frase é produzida, por meio de um elemento gramatical. Na frase (1), o ato de cortar o cabelo ocorrerá no dia seguinte ao momento em que a frase é dita, mas essa informação é fornecida pela palavra amanhã, ou seja, é fornecida lexicalmente. É preciso, então, introduzir um elemento gramatical que expresse a informação de tempo futuro – o verbo auxiliar ir – para tornar essa frase aceitável em português: (2) Eu vou cortar o cabelo amanhã. Como já foi dito, essa não é uma exigência exclusiva da língua portuguesa, ela está presente em todas as línguas humanas e diz respeito ao que se denomina Sistema de Tempo, Modo e Aspecto (TMA). 3 Em francês, também não se pode dizer je me couper les cheveux demain, é preciso introduzir o auxiliar vais, como em português: je vais me couper les cheveux demain. O mesmo acontece em chinês. A frase (3) é agramatical, porque falta o verbo auxiliar que marcará futuro 去 (qù). A frase assume a forma gramatical em (4) com a partícula que indica tempo, modo e aspecto. (3) * 明天 我 理发 (4) 明天 我 去 理发 Míngtiān wǒ qù lǐfà Amanhã eu vou cortar-cabelo 4 Além do sistema de TMA, todas as línguas humanas têm um sistema de pronomes, para expressar as pessoas do discurso. Quando nos referimos a uma ação, por exemplo, devemos informar se essa ação foi praticada por quem fala, por quem ouve ou por uma terceira pessoa. Gramaticalmente, essa informação é dada por um pronome (e.g., eu, você, eles) ou por uma flexão verbal (trabalhamos, partiram). Assim, toda língua tem uma partícula gramatical, através do qual o falante se refere a si mesmo: eu, em português; I [ái], em inglês; 我 [wǒ], em chinês mandarim; ami, em quimbundo; saya, em malaio; ako, em tagalog (filipino), etc. Também é possível, em qualquer língua humana, encaixar uma proposição na outra, como podemos ver nos exemplos abaixo. (5) Eu vi que ela caiu. (6) J’ai vu qu’elle était tombée. (francês) 3 Ver seção 7 do capítulo 1. 4 Lǐfà é uma lexia composta que reúne o verbo e objeto de cortar o cabelo em uma única palavra. 6 (7) Vido sam da je pala. (croata) (8) Saya melihat bahawa dia jatuh. (malaio) Mas será que estamos diante de meras coincidências? Não, o sistema de TMA, os pronomespessoais e o encaixamento de orações são propriedades universais da linguagem humana. Fazem, parte, portanto, da Faculdade da Linguagem, também chamada Gramática Universal (GU). 1.2. A Faculdade da Linguagem como parte do patrimônio genético da espécie humana A GU é uma representação de uma faculdade da mente humana, que distingue o homo sapiens de todas as outras espécies animais, inclusive de outras espécies de hominídeos, como o Homem de Neandertal, hoje extintas. Isso significa que a Faculdade da Linguagem está presente na mente de todos os indivíduos da espécie humana, desde o seu surgimento, há mais de cem mil anos; fazendo parte, portanto, do patrimônio genético da espécie. Ela é o resultado de um longo processo de evolução, no qual os hominídeos foram se tornando bípedes, desenvolvendo o polegar opositor; rebaixando a glote e aumentando o espaço da cavidade faríngea; ingerindo mais proteínas e aumentando sua massa cerebral, até que esse conjunto de condições deu origem a um animal simbólico, com uma consciência que lhe permite decompor a sua percepção do real em unidades significativas e articular essas unidades de sentido em proposições lógicas. Essa capacidade cognitiva está intimamente associada à linguagem verbal, na forma como a conhecemos hoje. A substância natural da linguagem humana é a fala – ondas sonoras produzidas por um conjunto de órgãos do corpo humano denominado aparelho fonador. Trata-se de uma manifestação do que os antropólogos chamam de cultura imaterial. Isso torna a questão da origem das línguas uma das mais desafiadoras para o conhecimento científico, por conta da falta de evidências materiais que possam dar sustentação empírica ao seu estudo pela ciência. 5 Nesse campo de investigação, uma das hipóteses fortes é a de que só o homo sapiens teria desenvolvido esse sistema tão sofisticado de 5 O conhecimento científico se baseia na observação rigorosamente controlada dos fatos do mundo real, o que se denomina sustentação empírica – ou seja, qualquer afirmação científica deve ser comprovada por meio de testes, experiências e observações controladas que demonstrem, de acordo com os procedimentos metodológicos definidos e aceitos pela comunidade científica, se essa afirmação corresponde aos fatos do mundo real ou não. 7 linguagem. Com isso, pode desenvolver formas mais avançadas de relação e cooperação social, predominando sobre as demais espécies de hominídeos – como, por exemplo, o homem de Neandertal –, levando ao desaparecimento total dessas outras espécies, o que ocorreu há cerca de 30 mil anos. 1.3. Gramática Universal e gramática das línguas particulares A Faculdade da Linguagem, ou Gramática Universal, presente na mente de todos os indivíduos da espécie homo sapiens, constituiria o arcabouço estrutural que está na base da linguagem humana – um conjunto de propriedades e mecanismos que estão presentes na gramática de todas as línguas. Assim, em termos de estrutura gramatical, haveria pequenas diferenças na forma como as línguas realizam as propriedades universais da Linguagem. Por exemplo, a categoria pessoa do discurso, como vimos, está presente na gramática de todas as línguas. Porém, há línguas, como o italiano e o português (de Portugal), que expressam essa categoria, preferencialmente, pela flexão verbal, omitindo o pronome sujeito – como se pode ver nas frases (9) e (10); 6 e há línguas, como o francês e o inglês, em que o pronome sujeito tem de estar obrigatoriamente realizado para expressar essa categorial gramatical, 7 já não praticamente flexão no verbo para dar essa informação – cf. exemplos (11) e (12). (9) Ieri siamo andati al teatro. (10) Ontem fomos ao teatro. (11) Hier nous sommes allés au théâtre. * Hier sommes allés au théâtre. (12) Yesterday we went to the theater. * Yesterday went to the theater. Outro exemplo de como as propriedades da Gramática Universal se apresentam de forma diferente nas línguas humanas pode ser encontrado na ordem dos constituintes na frase. Em todas as línguas, existe a relação entre o verbo transitivo e seu complemento. Porém, em línguas, como o português, o complemento vem normalmente após o verbo (ordem VO), já em línguas, como o japonês a ordem normal é objeto-verbo (ordem OV), como se pode ver nos exemplos abaixo: 6 As formas verbais siamo e fomos indicam que o sujeito corresponde à 1ª pessoa do plural (nós). 7 A falta do pronome sujeito – nous e we, nos exemplos apresentados em (11) e (12) – torna a frase agramatical em francês e inglês. 8 (13) Maria leu a carta. SUJ verbo OBJ (14) Miwa-ga tegami-o yonda. SUJ OBJ verbo Miwa a carta ler 1.4. A manifestação da gramática A diferença na forma como as propriedades da Gramática Universal se apresentam nas gramáticas particulares das línguas humanas fará com que certos mecanismos gramaticais estejam mais explícitos em umas línguas e mais implícitos em outras. Tomemos a relação entre o sujeito, o verbo e o objeto (SVO). Em latim essa relação é expressa através de desinências, como exemplificado em (15) a., em que o –s indica que lupus (lobo) é o sujeito de vidit (viu), e o –m indica que puellam (menina) é o objeto, independentemente da ordem em que essas palavras figurem na frase, de modo que, se alterarmos a ordem das palavras na frase – como se observa em (15) b. – o significado permanece o mesmo: ‘o lobo viu a menina’. Já em português, essa mesma relação é expressa através da ordem, como exemplificado em (16) a. Se alterarmos a ordem dos constituintes da frase em português, como em (16) b., o seu significado muda. Para alterar as funções sintáticas na frase latina, é preciso mudar as desinências nominais, como em (15) c., que tem o mesmo sentido de (16) b.: 8 (15) a. Lupus puellam vidit b. Puellam vidit lupus. c. Lupum puella vidit. (16) a. O lobo viu a menina. b. A menina viu o lobo. A chamada flexão de caso, expressa pelas desinências (como o –m final do caso acusativo) que indicavam a função sintática dos nomes, propiciava uma liberdade maior de colocação dos constituintes na frase em latim. Por outro lado, é evidente que o fato de o português não ter uma sinalização explícita não significa que a relação SVO não 8 No caso da palavra para ‘lobo’, lupus é a forma do caso nominativo, própria para a função sintática de sujeito, enquanto que lupum (com a desinência final –m) é a forma do caso acusativo, própria para a função sintática de objeto direto (OD). Já no caso da palavra para ‘menina’, puella é forma do nominativo (função sintática de sujeito), e puellam (com a mesma desinência –m), a forma do acusativo (OD). 9 exista nessa língua. Portanto, as relações gramaticais podem ser sinalizadas explicitamente numa língua e não serem em outra. O fato não significa que a língua latina seja mais complexa do que a língua portuguesa, ou mesmo mais difícil. Podemos afirmar, com muita segurança, que o tempo que as crianças romanas levavam para adquirir o latim (na época em que essa língua era uma língua viva, obviamente) era o mesmo tempo que as crianças do Brasil e de Portugal levam hoje para adquirir o português, assim como as crianças suecas levam para adquirir o sueco, as crianças nigerianas levam para adquirir o iorubá, e assim por diante, com qualquer lúngua humana. Esse fato, sobejamente comprovado por inúmeros estudos de aquisição da linguagem, nos autoriza a concluir que não há diferenças significativas entre as línguas no que concerne à complexidade estrutural, se consideramos a gramática como um todo. 9 Consideramos uma língua estrangeira mais difícil do que a nossa simplesmente porque não estamos condicionados à sua estrutura gramatical. Provavelmenteo falante dessa língua terá a mesma impressão em relação à nossa língua. 10 1.5. A mudança na estrutura gramatical e o funcionamento das línguas Como vimos na seção anterior, na passagem do latim para as línguas românicas, ou neolatinas, a flexão de caso dos nomes latinos desapareceu. Poderíamos pensar que, durante essa transição (que durou muitos séculos – desde os primeiros séculos da nossa era até os últimos do primeiro milênio), os falantes enfrentaram dificuldades em identificar o sujeito e o objeto das frases, quando as desinências nominais (como o –m do acusativo) foram desaparecendo. E, levando esse raciocínio às últimas consequências, poderíamos até pensar que essa teria sido uma das causas da queda do Império Romano do Ocidente, ocorrida no V século d.C. O absurdo desse raciocínio serve para demonstrar a inconsistência da ideia de que a mudança linguística pode comprometer o funcionamento da língua ou seu poder de expressão. Durante todo o 9 Isso significa que uma língua A pode ter um sistema de TMA morfologicamente mais complexo do que uma língua B, mas essa língua B pode ter, em compensação, um sistema pronominal morfologicamente mais complexo do que a língua A, de modo que considerando a gramática como um todo, e não módulos específicos, não haveria grandes diferenças no grau de complexidade morfológica das línguas humanas que têm uma longa tradição de transmissão geracional regular, na qual a língua materna dos pais vai sendo transmitida para os seus filhos, de geração para geração. 10 No exemplo do latim, podemos imaginar que, se um falante nativo do latim viajasse no tempo e entrasse em contato com falantes do português (ou de qualquer outra língua neolatina, como o francês e o catalão), ele provavelmente acharia essas línguas muito difíceis, porque somos capazes de codificar as frases de nossa língua sem as marcas de caso que facilitam tanto essa tarefa para ele. Ou seja, assim como só outro tem sotaque, a língua difícil e exótica é a do outro, a nossa é sempre a mais lógica e simples. 10 período em que o latim se transformou nas línguas românicas, não se tem notícia de casos de falhas ou colapsos linguísticos. A passagem de um sistema de marcação morfológica de caso para sistemas sem essa marcação em nenhum momento comprometeu o funcionamento da variedade linguística em uso. Na medida em que as marcas de caso se enfraqueciam, a ordem das palavras e o uso das preposições assumiam o papel de definir a função sintática de cada constituinte na frase. E assim, gradualmente, a estrutura da língua foi mudando sem que o seu funcionamento fosse comprometido. 1.6. A complexidade das Línguas Da mesma forma que a ideia de que a perda da marcação morfológica de caso poderia comprometer o funcionamento da língua não tem fundamento, não cabe pensar que a língua latina é mais complexa que as línguas românicas, ou que lhes é superior. Em sua essência, os processos estruturais são os mesmos em latim, português e italiano – em todas essas línguas, a frase se constrói a partir de uma estrutura que une o verbo ao seu sujeito e ao seu objeto. A diferença é que no latim essa relação é marcada de uma forma mais explícita – com as desinências de caso –, enquanto, no português e no italiano, ela é menos explícita – indicada apenas pela ordem. Mas a relação que o verbo estabelece com seu sujeito, por um lado, e seu objeto, por outro, é a mesma em todas as línguas. Podemos postular, portanto, que a estrutura subjacente da frase é a mesma, independentemente da forma que ela assume em cada língua particular. Assim, podemos pensar que a estrutura nuclear da gramática de todas as línguas é a mesma, desde o surgimento do homo sapiens na terra. As milhares de línguas que a humanidade tem falado ao longo de sua história nada mais são do que realizações diferentes de uma mesma faculdade que integra o complexo da mente humana. As diferentes formas que as línguas humanas assumem refletem as diferenças culturais e as experiências particulares de cada povo, mas não entram em contradição com a estrutura básica da Gramática Universal. Isso explica por que qualquer a criança nasce com a capacidade de desenvolver indistintamente qualquer língua humana. Se uma criança coreana for levada para a Suécia e for criada por uma família que fala sueco, ela aprenderá o sueco como qualquer outra criança sueca. Da mesma forma que uma criança sueca criada por uma família angolana falante do quimbundo falará o quimbundo perfeitamente, como qualquer outro indivíduo dessa etnia. 11 1.7. A aquisição da linguagem A concepção da Faculdade da Linguagem como uma espécie de software mental inato permite explicar como as crianças adquirem sua língua materna tão rapidamente sem a necessidade de qualquer treinamento específico para esse fim. Como enfatiza o mais importante estudioso da Teoria da Gramática, o linguista norte-americano Noam Chomsky, “um olhar cuidadoso sobre a interpretação de expressões revela bem rapidamente que, desde os primeiros estágios [do desenvolvimento da linguagem], a criança sabe muito mais do que lhe foi fornecido pela experiência”. 11 A ideia central de Chomsky é a de que as crianças estão programadas para falar. A mente da criança já conteria um arcabouço básico da gramática de qualquer língua humana (a Gramática Universal), composta por subsistemas como o sistema de TMA. Só que seriam valores abstratos puros, sem uma forma definida. Ao ouvir, por exemplo, uma frase como “Eu vou brincar com você.”, a criança receberia a forma concreta eu, com a qual deveria preencher a categoria abstrata 1ª pessoa do singular de sua gramática mental; assim como o verbo auxiliar ir é associado ao valor abstrato de futuro em seu sistema mental de TMA. Ao associar as formas linguísticas que ouve dos adultos às categorias abstratas da GU, a criança vai definindo os valores da gramática específica de sua língua materna. E esse processo é regido por uma programação bem definida, em função das fases do desenvolvimento biológico da criança, de modo que a aquisição das estruturas gramaticais em cada fase ocorre com uma grande independência em relação às condições socioambientais em que a criança se encontra. Isso explica por que, aos cinco ou seis anos de idade, qualquer criança, que nessa fase da vida ainda tem um desenvolvimento intelectual muito limitado (não é capaz, por exemplo, de realizar as quatro operações aritméticas elementares), já domine a parte essencial de um sistema gramatical tão sofisticado – seja essa criança moradora da periferia pobre de uma grande cidade, seja ela membro da elite econômica e cultural do país. Assim como a competência linguística, a aquisição da língua materna é um processo mental intuitivo e espontâneo, que não carece de treinamento especial. 12 Bem diferente é o processo de aquisição da escrita e da linguagem formal, que envolve técnicas que requerem uma formação específica e um treinamento especial. A escola deve fazer com que o aluno seja capaz de transitar do senso comum, o conhecimento 11 Revista DELTA, Vol. 13, Nº Especial, 1997, p. 54. 12 Ou seja, os pais não precisam se preocupar em ensinar os filhos a falar, pois isso ocorrerá naturalmente, exceto em situações excepcionalmente traumáticas, ou em casos de sérios distúrbios mentais. 12 intuitivo com que ele lida com as coisas em sua vida cotidiana e familiar, para o saber formal, da ciência e das representações institucionais da cultura de tipo civilizado. O estudo da modalidade especial de língua (tradicionalmente denominada norma culta), na qual é plasmado o saber formal e, é um dos requisitos essenciais para o aluno aceder ao conhecimento científico, jurídico, institucional etc. A tradição gramatical está intimamente ligadaa esse estudo, próprio das sociedades letradas. 2. A Tradição Gramatical O funcionamento da língua tem intrigado os estudiosos desde a Antiguidade. Na Grécia Clássica, grandes filósofos, como Sócrates, Platão e Aristóteles, procuraram analisar o sistema da língua, decompondo a estrutura dos enunciados verbais, no que era denominado partes do discurso. E categorias como verbo e substantivo, que até hoje são utilizadas na análise gramatical, foram formuladas nessa época. Mas a análise gramatical começou a adquirir as feições que a caracterizam nas sociedades modernas, no século III a.C., na cidade de Alexandria, no Egito, um dos grandes centros do conhecimento na época. Em seus scriptoria, os filólogos alexandrinos buscavam recuperar a forma original dos grandes poemas homéricos – a Ilíada e a Odisséia (textos capitais da cultura helênica) –, que haviam sido escritos cerca de quinhentos anos antes. As mudanças que a língua grega sofrera nesse período eram vistas como corrupções de sua forma mais perfeita: a língua de Homero. Assim, o estudo da língua passou a ter como princípio norteador a fixação da forma considerada a mais perfeita do idioma – aquela encontrada nos clássicos do cânone literário. No pragmatismo da cultura romana, que dominou o mundo antigo, após o período helênico, o estudo da Gramática adquiriu um fim mais prático, associando-se ao estudo da Retórica. Os debates públicos travados no Fórum e no Senado eram cruciais na disputa pelo poder na sociedade romana. Assim, era imperioso ser um exímio orador, usando a língua com destreza e grande poder de persuasão. Nesse contexto, o estudo da gramática se identificou com a arte de escrever e falar bem. Essa concepção atravessou a Idade Média e foi transferida na era moderna ao estudo das línguas nacionais. A homogeneização linguística em torno de uma forma de língua considerada superior desempenhou um papel ideológico decisivo na formação dos modernos estados 13 nacionais, estabelecendo a equação: uma nação – um governo – uma língua. Isso explica a força do paradigma da tradição gramatical nas sociedades contemporâneas, dominadas pela cultura letrada. No senso comum, a existência de uma única forma correta de língua é tida como uma verdade objetiva e inquestionável, de modo que o estudo da língua só pode ser concebido como uma forma de fazer o aluno falar e escrever corretamente. Por sua vez, o estudo científico da linguagem humana tem demonstrado que há uma grande dose de mistificação nessa concepção de língua e do seu ensino, mas o peso de uma tradição cultural secular e as poderosas forças ideológicas que a sustentam fazem que uma visão mais realista de língua fique restrita aos muros das universidades, e a modernização do ensino de língua materna ainda tem de vencer uma enorme resistência na ideologia hegemônica na sociedade. 3. O estudo científico da gramática e a variação linguística Com o advento da Linguística Moderna no início do século XX, pesquisas empíricas demonstraram que toda variedade de língua tem uma organização estrutural e goza de plenitude funcional dentro de seu universo cultural próprio. Em outras palavras, qualquer falante de uma língua humana é capaz de dizer tudo o que ele pensa em sua língua materna. Ele não é capaz de dizer o que não pensa. Isso implica que muitas deficiências que são vistas como deficiências linguísticas são, na verdade, limitações de ordem cognitiva e refletem a incapacidade do indivíduo em desenvolver um raciocínio mais formalizado e complexo. No plano estritamente linguístico, é muito difícil encontrar deficiências, já que até os indivíduos com graves transtornos mentais têm a sua competência linguística preservada; são raros os indivíduos que não conseguem dar uma forma verbal aos seus pensamentos. Porém, elaborar textos mais longos e bem articulados, com encadeamento lógico e coerência interna, não é uma habilidade vulgar, e requer todo um treinamento especial para o indivíduo possa dominar essa técnica. Em seu sentido próprio, o nosso saber linguístico é a competência que simplesmente nos permite transformar nossos pensamentos em frases, produzir textos mais longos e complexos depende de outras habilidades cognitivas. Diante disso, um axioma muito em voga em certos modelos pedagógicos, segundo o qual o estudo da gramática tem de ser feito no texto e não em 14 frases soltas, não tem qualquer fundamento empírico. O material da análise gramatical é constituído, sim, simplesmente por frases, sem necessitar, na larga maioria dos casos, do texto ou do contexto, em que foram produzidas. Todas as frases que os falantes de uma língua reconhecem como de sua língua nativa são dados para o estudo científico da gramática, independentemente de serem consideradas certas ou erradas pela tradição gramatical. E uma das características de todas as línguas humanas vivas é que sempre existe mais de uma forma linguística de expressar um mesmo conteúdo cognitivo, como se pode ver nos exemplos abaixo: (17) A aluna cujo pai é engenheiro tirou uma nota boa na prova de matemática. (18) A aluna que o pai dela é engenheiro tirou uma nota boa na prova de matemática. Essa possibilidade de dizer a mesma coisa de forma diferente é o que a ciência da linguagem chama de variação linguística. As frases (17) e (18) estão perfeitamente estruturadas e são aceitas pelos falantes nativos do português como frases da sua língua, ou seja, todas são gramaticais. Entretanto, as duas frases são avaliadas de forma diferenciada, no plano sociocultural, em função das prescrições veiculadas pela tradição gramatical. Segundo os preceitos da gramática normativa, a frase (17) é a forma correta, enquanto a (18) está errada. Esta distinção baseia-se em uma convenção social, e não há qualquer fundamentação linguística que sustente a avaliação de que (17) é melhor que (18), nem o contrário. O estudo científico da gramática deve contemplar a variação linguística, tomando como objeto de análise legítimo qualquer variedade de uso da língua e buscando explicar os mecanismos gramaticais que permitem a produção de estruturas sintáticas alternativas. O estudo da variação linguística é importante, em primeiro lugar, por que é essa flexibilidade inerente à estrutura da língua que permite que ela funcione em situações culturais tão diversas, como uma feira livre e uma sessão de um tribunal de justiça. Em segundo lugar, é importante estudar a variação linguística para tentar compreender uma das características essenciais de todas as línguas humanas: elas estão sempre mudando, mesmo que seus falantes não se deem conta disso. E as mudanças se implementam na língua através dos processos de variação linguística. No início, uns poucos falantes começam a expressar uma ideia com uma forma linguística diferente, essa forma linguística nova se difunde socialmente e passa a alternar com a forma 15 linguística antiga. Essa situação de variação pode durar séculos ou mesmo se manter indefinidamente na língua. Porém, pode acontecer de a forma antiga cair em desuso e desaparecer. Assim, a mudança se completa. Esses são os princípios que nortearão a análise gramatical da língua portuguesa que será desenvolvida aqui. O objetivo principal deste estudo é descrever e analisar o conhecimento que um falante nativo do português emprega quando usa sua língua, o que inclui sua capacidade de produzir frases formalmente distintas, mas que têm o mesmo significado, bem como compreender frases formadas de uma maneira diferente daquela que ele normalmente emprega. 16 Capítulo 1 A Arquitetura da Linguagem Em termos bem básicos, podemos dizer que quem sabe falar uma língua sabe um conjunto mínimo de palavras dessa língua e as regras que nela se empregam para combinar essas palavras em frases. Isso nos permite distinguiros dois módulos essenciais do conhecimento linguístico: o léxico e a gramática (também denominada sintaxe, ou ainda, morfossintaxe). Essa divisão do conhecimento linguístico é confirmada pelos livros que tradicionalmente descrevem uma língua: o dicionário e a gramática. Conquanto seja evidente essa separação entre o léxico e a gramática, poderemos constatar que existe uma profunda interação entre esses dois módulos do conhecimento linguístico, não se podendo falar de dois conjuntos discretos e sem pontos de contato entre si. 1. O Léxico O léxico é o conjunto de palavras de uma dada língua e resulta da capacidade cognitiva dos seres humanos de decompor o real em coisas distintas, através da faculdade mental de atribuir um significado individualizado a cada coisa. Podemos denominar essa faculdade como a capacidade de conceituar. Assim, cada palavra da língua expressa um conceito. Ou seja, uma palavra, em princípio, não remete a um objeto do mundo real, mas expressa uma definição, com a qual é possível identificar um conjunto potencialmente infinito de objetos que se ajustam a essa definição. A palavra árvore não remete a um objeto do mundo real (uma árvore em particular), mas expressa um conceito que permite ao indivíduo identificar um conjunto potencialmente infinito 17 de objetos que se enquadram no conceito ‘árvore’. Portanto, cada palavra da língua é uma unidade básica de sentido. Ferdinand de Saussure, o fundador da Linguística Moderna, definiu, assim a palavra como signo linguístico, constituído pela relação arbitrária entre uma sequência sonora (a combinação de sons que formam a palavra árvore, por exemplo), dita significante, e um conteúdo semântico (a ideia que vem a nossa mente quando ouvimos a sequência sonora árvore), dita significado. A relação entre o significante e o significado é imediata e indissociável, tanto que Saussure comparou o signo linguístico a uma folha de papel, sendo um lado da folha o significante, e o seu verso, o significado; portanto, não se pode separar um do outro. 13 O léxico de uma língua reflete o mundo cultural em que vive a coletividade que usa essa língua, bem como seu meio ambiente. Assim, na língua dos esquimós existem várias palavras para designar o que designamos apenas com uma única palavra: neve. Por outro lado, palavras como cadeira, ortografia e computador, que fazem parte do léxico da nossa língua, estão ausentes em muitas línguas de sociedades tribais, que desconhecem esses objetos. O advento da civilização e da escrita são fatores que determinam um enorme crescimento do léxico de uma língua, tanto que línguas como o português, o alemão, o francês e o inglês, usadas por sociedades que têm uma tradição escrita milenar, têm atualmente um léxico constituído por cerca de meio milhão de palavras, enquanto o léxico de uma comunidade ágrafa (sem escrita) não chega a seis mil palavras. Mas, se analisarmos o léxico de uma língua como o português, veremos que a grande maioria das palavras pertence aos vocabulários técnicos da medicina, do direito, da filosofia, da física etc., e são desconhecidas do grande público. Um falante dessas línguas, com pouca ou nenhuma escolaridade, domina entre três a quatro mil palavras somente. 2. A gramática A gramática diz respeito às regras de combinação das palavras para formar as frases e a forma adequada que cada palavra deve assumir em cada frase. As regras de formação das frases definem, entre outras coisas, a ordem em que as palavras devem 13 Curso de Lingüística Geral. 5 ed. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein; prefácio de Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Cultrix, 1973. 18 figurar no enunciado verbal e a relação que se estabelece entre elas. Muitas vezes, é necessário introduzir partículas gramaticais para sinalizar essas relações. Em uma frase como: (1) A Maria gosta de chocolate. A partícula gramatical de indica que chocolate completa o sentido de gosta. Já em uma expressão como o chocolate da Maria, a mesma partícula de é empregada para estabelecer uma relação entre a coisa possuída (o primeiro termo da expressão: o chocolate) e o possuidor (o segundo termo: a Maria). Por outro lado, a forma que a palavra assume na frase tem a ver com algumas informações que a gramática da língua determina que sejam fornecidas quando se usa um determinado tipo de palavra. Essas informações são denominadas categorias gramaticais. Quando se usa, por exemplo, um nome, como menino, é preciso dizer normalmente se se trata de um ou mais de um indivíduo, bem como informar o seu gênero. Assim, a palavra menino, ao ser empregada em uma frase concreta da língua, deve assumir uma das seguintes formas: menino, menina, meninos, meninas. Cada uma dessas formas indica um valor básico em relação ao gênero e ao número, da seguinte maneira: 14 menino: um indivíduo do sexo masculino menina: um indivíduo do sexo feminino meninos: mais de um indivíduo do sexo masculino meninas: mais de um indivíduo do sexo feminino Portanto, podemos dizer que o gênero e o número são as categorias gramaticais da classe gramatical dos nomes, em português. 15 E os valores das categorias de gênero e número devem ser corretamente indicados no contexto de cada frase; caso contrário, essa frase se torna agramatical, como se pode ver no exemplo abaixo: (2) *Essas menino são lindas. As categorias gramaticais definem propriedades essenciais da faculdade da linguagem, tornando-a um sistema muito eficaz e econômico. A categoria gramatical de 14 Apresentamos agora só o significado básico de cada forma, porém a questão da significação dessas formas é mais complexa e será retomada adiante. 15 Esse tema será objeto do próximo capítulo deste livro. 19 número, por exemplo, é uma forma muito econômica de codificar a informação. Se precisássemos de uma palavra para designar ‘um menino’ e outra para designar ‘mais de um menino’, e assim por diante, necessitaríamos de quase o dobro das palavras de que dispomos, para expressarmos essa informação que fazemos apenas com o acréscimo de um –s ao final da palavra. Por outro lado, as categorias gramaticais correspondem às categorias mentais, por meio das quais os seres humanos organizam a sua percepção do mundo. Portanto, estudar gramática é também uma forma de estudar as categorias que formam o pensamento humano. Nesse sentido, uma das categorias essenciais da gramática das línguas humanas é a categoria de tempo, modo e aspecto ligada à classe dos verbos. Qualquer frase produzida em qualquer língua humana tem de conter ao menos um elemento gramatical que: (i) situe temporalmente o evento referido em relação ao momento em que a frase é proferida (a categoria tempo), (ii) indique se o evento referido é real ou irreal (a categoria modo); (iii) as características de duração e realização do evento (a categoria aspecto). Como vimos na introdução deste livro, a frase abaixo é agramatical, porque não possui uma marca gramatical de tempo, modo e aspecto (TMA). (3) * Eu cortar o cabelo amanhã. A frase só será bem formada se contiver uma marca gramatical que expresse os valores de tempo, modo e aspecto, adequados à essa frase (os valores do futuro do indicativo), seja pela flexão do verbo – cf. (4) a. –, seja pela introdução de um verbo auxiliar, formando uma locução verbal – cf. (4) b.: 16 (4) a. Eu cortarei o cabelo amanhã. b. Eu vou cortar o cabelo amanhã. A possibilidade de expressar os valores gramaticais do futuro do indicativo de duas formas diferentes – uma única formal verbal flexionada (construção sintética) ou uma locução verbal (construção analítica) – reflete uma das propriedades universais das línguas humanas: a variação linguística (conformevimos na seção 3 da Introdução deste livro). Também aqui as duas formas diferentes de expressar o futuro do indicativo, ou seja, as duas variantes linguísticas, funcionam perfeitamente, não havendo uma 16 Essa distinção entre flexão verbal e locução verbal será tratada no próximo capítulo. 20 variante que seja, superior, mais funcional, ou mais gramatical que a outra. E, embora a forma sintética seja a preferida pela tradição gramatical, o que realmente interessa para o bom funcionamento da língua é que os valores de tempo, modo e aspecto sejam expressos gramaticalmente, seja na forma sintética, seja na forma analítica. Assim, podemos concluir que as palavras possuem propriedades formais e semânticas que definem a maneira como elas vão se combinar com as outras palavras da língua para formar frases, bem como determinam a forma que elas devem assumir em cada frase concreta da língua. Isso nos conduz à concepção de uma relação bem dinâmica que reúne o léxico e a gramática. 3. A relação entre léxico e gramática Como estamos vendo, o conhecimento do léxico não está dissociado do conhecimento da gramática. Nesse sentido, o conhecimento que nos permite falar nossa língua materna (a nossa competência linguística) resulta da relação dialética entre léxico e gramática, na qual o conhecimento da gramática permeia o conhecimento do léxico, e este se projeta naquele. Isso quer dizer que o conhecimento que o falante tem das palavras de sua língua não se restringe ao conhecimento da relação entre forma e significado referencial, esse conhecimento abarca também as propriedades gramaticais de cada palavra. Essa especificação gramatical é que orienta a seleção das palavras para formar as frases. Tomemos, como exemplo, as palavras brincar e brincadeira. Ambas têm um significado referencial muito semelhante, que remete ao ‘ato de brincar’, mas essas duas palavras têm especificações gramaticais muito distintas, que fazem de brincar um verbo e brincadeira um nome. O falante nativo sabe, por exemplo, que, numa frase, um verbo como brincar deve ser acompanhado de um constituinte que informe o agente da ação que esse verbo expressa, como exemplificado com a expressão as crianças, no exemplo (5); já um nome como brincadeira deve ser precedido por um determinante (como, por exemplo, o artigo definido a) e pode vir seguido por um modificador (um sintagma preposicionado, como de roda, por exemplo), formando um conjunto que pode funcionar como sujeito de um verbo, como ocorre na frase apresentada em (6). (5) As crianças brincaram à tarde toda. 21 (6) A brincadeira de roda acabou tarde. Por saber isso, o falante nativo não se atrapalha, nem faz confusões, como exemplificado abaixo: (7) *As crianças brincadeiras à tarde toda. (8) *Este brincamos de roda é muito divertido. Isso nos leva a uma conclusão inexorável: para produzir e entender as frases de sua língua materna, o falante deve ser capaz de analisar a estrutura sintática e semântica de todas as frases que podem ser produzidas nessa língua. Quando falamos, estamos fazendo, de forma inconsciente e ininterruptamente, a análise semântica e sintática das frases que falamos e ouvimos. Isso significa que qualquer falante nativo do português, mesmo que não tenha qualquer escolaridade, sabe que brincar é um verbo, ou seja, sabe quais são as propriedades morfossintáticas e semânticas dessa palavra, de modo que é capaz de empregá-la adequadamente nas frases que produz e interpretar as frases construídas com esse palavra que ele ouve, mesmo que não seja capaz de explicar esse conhecimento, ou sequer tenha consciência desse conhecimento internalizado em sua mente. Mas essa ignorância em relação ao funcionamento da linguagem humana não é um “privilégio” apenas das pessoas sem instrução formal. A visão preconceituosa e deformada da língua que predomina na sociedade faz com que muitas pessoas instruídas digam disparates como: “a linguagem popular é caótica e sem regras”. Qualquer pessoa que tenha um mínimo de informação sobre como funciona a linguagem humana sabe que não existe frases formadas aleatoriamente, sem obedecer a um conjunto de regras muito bem estruturadas e articuladas entre si. Muitos falantes do português no Brasil produzem frases como a exemplificada em (9) – que é uma frase considerada errada, do ponto de vista da tradição gramática, mas é uma frase gramatical, dentro da ótica do estudo científico da gramática –, mas nenhum deles produz uma frase como a apresentada em (10), que uma frase agramatical, porque viola as regras internalizadas na mente de qualquer falante nativo da língua portuguesa. (9) Meus filho trabalha muito. (10) *Meus filhos trabalhamos muito. A análise gramatical tem por objetivo explicitar essas regras que geram as frases bem formadas na língua, o conhecimento intuitivo do falante nativo dessa língua. Por 22 essa razão, o termo gramática pode ser empregado com dois sentidos. Por um lado, significa o conjunto de regras que compõem o conhecimento intuitivo do falante nativo (gramática mental, implícita). Por outro lado, refere o livro que busca descrever essas regras (gramática formalizada, explícita). A diferença entre a gramática tradicional, de caráter normativo, e a análise científica da gramática, de caráter descritivo, é que a primeira subordina sua descrição da formação das frases a uma forma específica de uso da língua – a norma padrão, também denominada norma culta –, considerada superior e a mais perfeita, enquanto a segunda busca depreender as regras que formam as frases no uso concreto da língua, sem considerar as convenções sociais que restringem esse uso. Porém, em sua essência, tanto a análise normativa, quanto a análise científica, produzem o mesmo tipo de conhecimento: uma descrição estrutural das frases da língua, base para a formalização das regras que geram essas frases. Para analisar a gramática como sistema de regras que geram as frases de uma língua, é preciso, em primeiro lugar, definir bem o produto desse sistema de regras. Assim, buscaremos definir, na sessão seguinte, o que é uma frase da língua, ou mais precisamente, uma frase gramaticalmente estruturada. 17 4. Frase, Oração e Período Com base no que foi dito até agora, podemos afirmar que a gramática é o sistema mental que transforma os nossos pensamentos em frases sintaticamente estruturadas. 18 Uma frase sintaticamente estruturada deve conter ao menos uma forma verbal marcada gramaticalmente para tempo, modo e aspecto; seja uma forma verbal flexionada, como em (11) abaixo, seja uma locução verbal, como em (12). Essa forma verbal pode ser apenas a conexão entre um predicador nominal ao seu argumento externo, como em (11), ou ser um predicador verbal que seleciona seu(s) próprio(s) argumento(s), como em (12): 19 17 Com esse sentido, podemos dizer também uma frase sintaticamente estruturada. 18 Não estamos considerando aqui certos tipos especiais de frase que a tradição gramatical chama de frase nominal e frase de situação – exemplificadas abaixo em (1) e (2) b., respectivamente – e que só são usadas em situações muito específicas. (1) Votação da reforma tributária hoje na Câmara dos Deputados. (2) a. A Maria chegou? b. Não. 19 A estrutura dessas predicações nominais e verbais será tratada no Capítulo 3. 23 (11) Maria estava insegura ontem, na reunião. (12) João vai trabalhar com o avô no comércio. Como se verá em detalhes no Capítulo 3, o conjunto formado por um predicador nucelar, seja ele nominal ou verbal, e seu(s) argumento(s) é o núcleo da estrutura sintática básica da língua, denominada oração. Além do predicador nucelar e seu(s) argumento(s), a oração pode conter outros constituintes denominados adjuntos e apostos.A oração per se pode constituir uma frase da língua, como em (11) e (12) acima, o que a tradição gramatical denomina oração absoluta e período simples. Porém, a frase pode ser constituída por mais de uma oração, como em (13) abaixo, em que a frase é constituída por três orações que se organizam a partir das formas verbais tinha dito, é e discordo. Portanto, o número de orações de um período é igual ao número de formas verbais que esse período contém. (13) João tinha dito que a Maria é imatura, mas eu discordo de sua opinião. A tradição gramatical denomina período composto a essas frases constituídas por mais de uma oração. Portanto, uma frase é um conjunto de orações, podendo ser um conjunto unitário. Por outro lado, uma oração só poderá constituir uma frase sozinha se contiver uma forma verbal marcada em tempo modo e aspecto (TMA). As orações abaixo, formadas em torno de formas verbais não marcadas em TMA não podem formar sozinhas uma frase: (14) *José agredir o colega. (15) *João trabalhando com o irmão. (16) *Finalizado o trabalho. Em (14) o verbo está no infinitivo; em (15), no gerúndio e em (16), no particípio passado; são as chamadas formas nominais ou formas não-finitas do verbo. As orações que contêm esse tipo de forma verbal só podem formar uma frase se combinadas com uma oração que tenha uma forma verbal finita, ou seja, uma forma verbal flexionada em TMA, como em (17) e (18), ou uma locução verbal, como em (19): (17) Maria viu José agredir o colega. (18) O pai quer o João trabalhando com o irmão. (19) Finalizado o trabalho, vamos poder descansar. 24 Portanto, uma frase sintaticamente estruturada deve conter ao menos uma forma verbal finita, ou uma locução verbal. E para ser bem formada (isto é, gramatical) ela deve combinar as palavras que a compõem dentro da forma prevista pela gramática da língua, e essas palavras devem assumir a forma adequada, de acordo com suas propriedades gramaticais especificas. 5. Conclusão Neste capítulo, buscamos delinear o conhecimento que nos torna falantes de uma língua humana. Em linhas gerais, o conhecimento requerido para falar uma língua se divide, por um lado, no conhecimento de um conjunto representativo de palavras dessa língua e, por outro lado, no conhecimento do conjunto regras necessárias para combinar essas palavras em frases sintaticamente estruturadas, definindo precisamente a forma que cada palavra deve assumir em cada combinação frásica. Esses dois módulos do conhecimento linguístico – denominados, respectivamente, léxico e gramática – guardam uma relação dialética entre si. Quando aprendermos as palavras de uma língua, não aprendemos apenas sua forma e seu significado referencial, aprendemos também uma série de propriedades gramaticais que especificam a maneira como essa palavra deve ser empregada na formação das frases da língua. Portanto, as palavras não estão armazenadas em ordem alfabética, no que podemos chamar de dicionário mental do falante, como no livro que retrata o léxico da língua (o dicionário), mas agrupadas de acordo com suas especificações gramaticais. A análise gramatical denomina esses subconjuntos do léxico, que o conjunto global de palavras de uma língua, classes de palavras ou classes gramaticais. Esse será o objeto do próximo capítulo deste livro. 25 Capítulo 2 As Classes de Palavras Como vimos no capítulo anterior, as palavras – ou seja, as unidades que constituem o léxico de uma língua – estão organizadas na mente do falante nativo dessa língua, de acordo com suas propriedades gramaticais. Esse conhecimento é necessário para que o falante possa selecionar as palavras que devem figurar em cada frase da língua, bem como definir a forma adequada que devem assumir em cada contexto específico. Portanto, uma descrição do conhecimento que nos permite formar as frases com que nos comunicamos deve começar pela análise dessas propriedades gramaticais que estruturam o léxico da língua. Não é à toa que as gramáticas tradicionais contêm uma parte destinada à descrição das classes de palavras, que precede a parte destinada à descrição da sintaxe. 20 As classes de palavras são, portanto, subconjuntos do léxico de uma língua e se definem, essencialmente, por propriedades compartilhadas por um conjunto de palavras, que as distinguem do restante de palavras dessa língua. Neste capítulo, vamos procurar identificar que propriedades são essas. 1. Parâmetros para a classificação das palavras Ao dividir as palavras de uma língua em classes, como a dos verbos, nomes, preposições e advérbios, a tradição gramatical tem realizando um procedimento muito frequente no saber formal, denominado taxonomia, o qual consiste basicamente em dividir e classificar os elementos de um conjunto, segundo as propriedades e 20 Nos estudos linguísticos, as classes de palavras fazem parte do objeto de estudo de uma disciplina específica denominada Morfologia. Em função disso, devemos advertir que a descrição que se apresenta neste capítulo está longe de ser exaustiva e se presta, sobretudo, a fornecer bases mínimas sobre a estruturação do léxico, necessárias ao desenvolvimento de uma análise sintática da língua, que será feita nos capítulos seguintes. 26 características que agrupam esses elementos e os distinguem dos demais. É assim, por exemplo, que a Biologia tem classificado os animais em mamíferos, aves, anfíbios, repteis e peixes. Para fazer essa classificação, os biólogos se baseiam nas propriedades mórficas e comportamentais que caracterizam cada grupo de animais. Os mamíferos são animais que têm pelos, geram os filhotes em seu útero e os amamentam quando nascem, enquanto as aves são animais que têm penas e bico, põem ovos e não amamentam os seus filhotes, e assim por diante. A identificação precisa das propriedades que individualizam cada grupo e o distinguem dos demais é a base para uma taxonomia eficaz. É o que podemos denominar parâmetros de classificação. Na tradição gramatical, o parâmetro semântico tem sido tomado como base para a classificação das palavras. Dito de outro modo, as palavras da língua são classificadas pelo tipo de significado que normalmente veiculam. Assim, o nome é definido como “a palavra com que nomeamos os seres em geral”; o verbo, como a palavra “que denota ação, estado ou fenômeno”; e o adjetivo, como a palavra que exprime “aparência, modo de ser, ou qualidade”. 21 Com efeito, se olharmos para as palavras tradicionalmente classificadas como substantivos (isto é, os nomes), encontraremos um grande número de palavras que designam seres ou coisas, como: cachorro, orquídea, cadeira, estrela, farinha etc. Da mesma forma, muitas palavras classificadas como verbos exprimem, de fato, uma ação – como, por, exemplo correr, falar e esculpir –, e muitas das classificadas como adjetivos denotam qualidades, como alto, magro e inteligente. Contudo, qualquer um que queira classificar as palavras de uma língua utilizando apenas o parâmetro semântico enfrentará sérias dificuldades. Senão, vejamos. Uma palavra como corrida não denota uma ação (‘ato de correr’)? Então deveria ser classificada como verbo; porém, todos nós sabemos que se trata de um nome. E brilhar, não é a palavra que exprime a qualidade ou propriedade de refletir a luz? Entretanto, é classificada como verbo, não como adjetivo. 22 Nós sabemos que brilhar é um verbo, não por causa do seu significado, mas porque essa palavra pode figurar nas frases da língua, assumindo formas como: brilharei, brilhamos, brilharam etc. Da mesma forma que sabemos que corrida é um nome, porque é uma palavra que pode figurar nas frases da língua precedida de uma palavra que lhe determina o sentido e 21 ROCHA LIMA,Carlos Henrique. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 5 ed. Rio de Janeiro: Briguiet & Cia, 1960. 22 Para uma discussão desse tema, veja-se: PERINI, Mário. Para uma nova Gramática do Português. 4 ed. São Paulo: Ática, 1989. 27 seguida por outra que o modifica, como em: uma corrida longa. Em vista disso, conquanto não seja de todo inadequado, o parâmetro semântico está longe de ser o mais eficaz para classificar as palavras da língua – apesar de, infelizmente, ser o mais referido nas aulas de língua portuguesa que tratam das classes de palavras. Uma boa taxonomia do léxico da língua precisa, necessariamente, mobilizar outros parâmetros, para além do parâmetro semântico. Considerando essa necessidade, vamos adotar aqui três parâmetros para proceder à delimitação das Classes de Palavras da Língua Portuguesa: 23 parâmetro semântico parâmetro formal parâmetro distribucional Para além do parâmetro semântico, já discutido aqui, o parâmetro formal (ou parâmetro morfológico) tem a ver com a forma que a palavra deve assumir em cada frase concreta, por meio do processo gramatical denominado flexão. Em línguas flexivas como o português, existem partículas que se afixam à palavra para expressar um valor de uma informação coficada na gramática da língua. Dizendo o mesmo em linguagem técnica, essa partícula é um morfema flexional, que se une ao radical da palavra para expressar um valor de uma categoria gramatical. Por exemplo, o morferma de plural –s se junta a um nome, como gato, formando gatos, forma usada para a referência a mais de um individuo dessa espécie doméstica de felinos, ou seja, expressa o plural, valor da categoria gramatical de número da classe gramatical dos nomes. As palavras de uma classe gramatical se flexionam de acordo com as categorias gramaticais dessa classe gramatical. Assim, enquanto os nomes, em português, se flexionam em função das categorias gramaticais de gênero e número, os verbos se flexionam em tempo, modo e aspecto e pessoa e número. Já o parâmetro distribucional (ou parâmetro sintático) diz respeito à posição que uma palavra normalmente ocupa na frase, bem como a forma como ela deve se combinar na formação frases (o que podemos chamar de distribuição da palavra). Combinamos nomes com determinantes e modificadores para formar um conjunto que se combina com um verbo para formar o núcleo de uma oração, que, por sua vez, pode se combinar com um adjunto, para dar forma definitiva a uma frase da língua. Exemplificando: combinamos o nome geladeira com o determinante esta e o 23 Cf., entre outros: BASILIO, Margarida. Teoria Lexical. 7 ed. São Paulo: Ática, 2001. 28 modificador velha para formar o Sintagma Nominal esta geladeira velha, o qual se combina com o verbo pifar dando forma à predicação esta geladeira velha pifou, à qual se adjunge o advérbio ontem, para formar a frase esta geladeira velha pifou ontem. Nas próximas seções, vamos utilizar os parâmetros semântico, formal e distribucional para descrever sumariamente as classes de palavras em português. Mas, antes, vamos fazer uma distinção básica na composição do léxico da língua, a qual divide as palavras em dois grandes grupos: palavras referências e palavras gramaticais. 2. Palavras referenciais e palavras gramaticais Observemos a seguinte frase: (1) O cozinheiro disse que aquele peixe está gostoso. A informação contida nessa frase está expressa pelas seguintes palavras: COZINHEIRO DIZER PEIXE GOSTOSO. 24 Já as palavras o, que, aquele e está não contribuem para o conteúdo informacional da frase, mas são imprescindíveis para sua boa formação, ou seja, para que essa frase tenha gramaticalidade. É como se as primeiras palavras fossem os tijolos, e as últimas a argamassa usada para unir os tijolos na construção de uma parede. Podemos denominar o primeiro tipo de palavra como palavras referências (utiliza-se também a expressão palavras lexicais), e o segundo tipo como palavras gramaticais (utiliza-se também a expressão palavras funcionais). As palavras referenciais constituem a grande maioria das palavras de uma língua e se referem às coisas do mundo exterior. Podem ser classificadas como referenciais palavras como homem, micróbio, feiura, tempestade, falar, morrer, trabalhar, sorrir, feliz, inteligente, simples, complexo, ruidosamente, sorrateiramente etc. Ou seja, formam o conjunto das palavras referenciais de uma língua as palavras das classes dos nomes, verbos, adjetivos e advérbios. As palavras gramaticais, numericamente limitadas, ligam-se a palavras referenciais, para expressar uma determinada informação, codificada na gramática da língua. Na frase (1), por exemplo, o artigo definido o liga-se ao nome cozinheiro, para 24 Reparem que, em situação comunicativa favorável, esse conjunto de palavras pode transmitir a mesma informação que transmitimos normalmente com a frase (1). 29 informar que o cozinheiro em questão é conhecido, tanto pelo falante, quanto pelo ouvinte. Já o demonstrativo aquele se liga ao nome peixe, para informar que o referido peixe não está próximo, nem do falante, nem do ouvinte. Por outro lado, a palavra gramatical pode não ter qualquer significado servindo apenas para ligar os termos na frase. Tal é o caso da partícula que, que seve apenas para ligar, ou melhor, articular a primeira parte da frase (1) o cozinheiro disse com a segunda, aquele peixe está gostoso. 25 Pode-se dizer praticamente o mesmo da forma verbal está, que serve basicamente para estabelecer uma ligação entre o grupo nominal aquele peixe e o adjetivo gostoso. Por fim, há palavras gramaticais que servem pra recuperar uma referência já feita anteriormente no discurso. Ampliando a frase (1) em (1) a. abaixo, encontramos o pronome ele, cumprindo a função de retomar a referência ao cozinheiro feita em oração anterior. (1) a. O cozinheiro disse que aquele peixe está gostoso, e ele está certo. As palavras referenciais e gramaticais também se distinguem em função do tipo de conjunto que formam no léxico da língua. As palavras referenciais formam conjuntos muito numerosos e potencialmente abertos, enquanto as palavras gramaticais formam conjuntos numericamente restritos e virtualmente fechados. Em português existem muitas dezenas de milhares de nome e verbos, e é praticamente impossível dizer, com precisão, quantos nomes e verbos existem na língua, porque, a qualquer momento pode surgir um nome ou um verbo novo. Periguete e deletar são, respectivamente, exemplos de um nome e um verbo recentemente criados, o que ilustra bem o processo incessante de ampliação do inventário dessas classes gramaticais. O mesmo não ocorre com as palavras gramaticais. É possível, por exemplo, dizer com absoluta precisão o número de artigos que existem em português. Existem tão somente dois artigos em português, que se flexionam em número e gênero: o artigo definido (o, a, os, as) e o artigo indefinido (um, uma, uns, umas). Trata-se de um conjunto binário e virtualmente fechado. Quando dizemos que as classes de palavras gramaticais constituem um conjunto virtualmente fechado, não queremos dizer que não é possível que se crie uma nova palavra gramatical na língua. Estamos apenas fazendo referência ao fato de que, ao contrário do que ocorre com as palavras referenciais, a criação de uma nova palavra gramatical é um processo que envolve praticamente todos os falantes da língua e 25 Tanto é assim que, em inglês, por exemplo, essa partícula pode não figurar na frase: (1) The chef said (that) that fish is delicious. 30 demanda séculos para sua implementação. Esse processo de mudança linguística, que resulta na criação de uma nova palavra gramatical, é denominado gramaticalização.O próprio artigo definido é o resultado de um processo de mudança linguística desse tipo, sendo derivado da antiga forma do demonstrativo latino illum (illa, illos, illas). Processos de gramaticalização mais recentes que se observam na língua portuguesa são aqueles que deram origem ao pronome a gente, derivado da expressão nominal, que originalmente significava ‘um grupo humano’ (e.g., “a gente deste lugar é muito desconfiada”), e passou a funcionar como pronome da primeira pessoa do plural, concorrendo com a forma canônica nós, sobretudo na linguagem falada O mesmo ocorreu com a expressão nominal Vossa Mercê, que, no século XIV, era uma forma de tratamento do rei em Portugal e hoje, na forma reduzida você(s), funciona como pronome da segunda pessoa, referindo-se a qualquer pessoa que atue como receptor em um processo de interação verbal. Por designarem as coisas do mundo exterior, o inventário de palavras referenciais vai variar muito de língua para língua, tanto em termos quantitativos, quanto em termos qualitativos. Como já foi dito aqui, línguas com uma tradição de escrita milenar, como o português, o alemão e o francês, têm um léxico de quase meio milhão de palavras, enquanto que o léxico de línguas de comunidades ágrafas mal chega a seis mil palavras. Entretanto, a grande maioria das palavras das primeiras pertence aos vocabulários técnicos de atividades especializadas que se desenvolvem em sociedades de tipo civilizado. Assim, palavras como aeronave, ortografia e digitalizar não fazem parte do léxico da maioria das línguas humanas que existem ou já existiram no mundo. Portanto, essa enorme diferença quantitativa diz respeito somente ao inventário das palavras referenciais. Podemos afirmar, com alguma segurança, que o número de palavras gramaticais não varia muito de língua para língua. Por expressarem significados e relações previstos pela gramática mental dos seres humanos (isto é, a Gramática Universal ou Faculdade da Linguagem), 26 as palavras gramaticais são virtualmente universais. Pode-se esperar que qualquer língua humana tenha uma partícula para que o falante se refira a si mesmo, como o pronome eu em português, ou que tenha uma partícula de negação, similar ao nosso não, e assim por diante. Por que isso acontece? Porque esses valores fazem parte programação mental inata da espécie humana. Ou seja, todos os possíveis valores e relações expressos pelas partículas 26 Ver Introdução. 31 gramaticais de todas as línguas humanas estão presentes na mente de toda criança que está adquirindo sua língua materna, mas só serão ativados os valores expressos nas partículas gramaticais usadas na língua que ela houve, ou seja, na língua de sua comunidade. O conjunto de relações e mecanismos gramaticais de cada língua humana é uma combinação possível dentro das possibilidades previstas na Gramática Universal. Portanto, se o elenco de palavras referências pode variar muito de língua para língua, os inventários de palavras gramaticais tendem a ser mais uniformes entre as diversas línguas, da mesma forma que a relação entre as classes de palavras também será mais ou menos constante através das línguas. 3. Relações entre as classes de palavras referenciais Tradicionalmente, as análises taxonômicas buscam decompor o seu objeto de estudo em conjuntos discretos. Contudo, modelos epistemológicos mais recentes, como a Teoria dos Conjuntos Difusos, 27 têm argumentado no sentido de que um modelo que prevê a existência de interseções entre os conjuntos, de modo que esses conjuntos formem um continuum, se ajusta melhor à realidade. Esse princípio epistemológico será adotado na análise que estamos desenvolvendo aqui. Dessa forma, a disposição das classes de palavras na estruturação do léxico da língua deve ser vista como um continuum, que vai desde as classes de palavras mais referências (como os nomes e verbos) até as classes de palavras mais gramaticais (como os artigos e preposições). Entre esses extremos, as demais classes de palavras vão se dispondo, de acordo com suas propriedades e distribuição, de modo que, nos níveis intermediários se encontram classes de palavras (como os advérbios e numerais) que apresentam, tanto características de palavras referencias, quanto características de palavras gramaticais. Se a demarcação entre esses dois conjuntos não é nítida, o mesmo se pode dizer do limite entre as próprias classes de palavras, havendo muitas zonas de interseção entre elas. Entre as classes de palavras, podemos afirmar que os nomes e verbos são aquelas que reúnem a significação básica da grande maioria das frases da língua. Desde os primórdios do estudo sistemático da linguagem no mundo ocidental, os filósofos gregos perceberam que o núcleo das frases situava-se na relação entre o nome e o verbo, 27 Cf. ZADEH, Lotfali. Fuzzy Sets and Systems. In: FOX, J. (Ed.). System Theory. Nova York: Polytechnic Press, 1965b. p. 29–39. 32 numa relação denominada predicação. Podemos, então, definir nomes e verbos como primitivos da língua. Já os adjetivos são palavras que normalmente se relacionam aos nomes, modificando-lhes o sentido, como em dia claro e bicho feroz. Isso faz dos adjetivos uma classe de palavras mais gramatical que os nomes (dentro do continuum referencial-gramatical), já que o adjetivo se liga ao nome por uma relação dependência semântica e sintática a este. Mais além, estão os advérbios, que, não apenas se ligam aos verbos (como em fala demais e escreve lentamente), mas também aos adjetivos (como em muito alto e tremendamente estúpido), e aos próprios advérbios (como em respondeu muito tranquilamente às perguntas). Ou seja, a relação de dependência semântico-sintática que o adjetivo estabelece com o nome, é observada também entre o advérbio e o verbo e entre o advérbio e o adjetivo, e mesmo entre um advérbio e outro. A classe dos advérbios seria, portanto, a mais gramatical das classes de palavras referenciais. Trata-se de uma classe muito heterogênea, reunindo tanto palavras de natureza nitidamente gramatical (como não, muito e ontem), quanto palavras com características das palavras referenciais, como os advérbios em –mente (e.g., claramente, notoriamente, friamente etc), que constituem, inclusive, um conjunto potencialmente aberto, na medida em que, a qualquer momento, se pode criar um advérbio, juntando-se o sufixo –mente a um adjetivo da língua. Por outro lado, os limites entre as classes dos nomes, adjetivos e advérbios nem sempre são nítidos, já que há palavras, como velho e brasileiro, que podem funcionar tanto como nomes – cf. exemplos (2) e (3) – ou como adjetivos – cf. exemplos (4) e (5): (2) Os velhos são sempre ranzinzas. (3) O brasileiro adora samba e futebol. (4) “O homem velho é o rei dos animais.” (5) A mulher brasileira é muito admirada no mundo. Já adjetivos como alto e redondo, podem funcionar também como advérbios, como se observa, respectivamente, nos exemplos (6) e (7). (6) O supervisor fala muito alto. (7) “A cerveja que desce redondo.” Assim, podemos agrupar de um lado nomes, adjetivos e advérbios, como classes de palavras não verbais, em oposição à classe dos verbos, que se destacam como uma classe de palavras muito diferenciada, seja por suas propriedades mórficas, seja por suas propriedades distribucionais. 33 4. As palavras gramaticais Como foi dito na seção 2 acima, as palavras gramaticais cumprem basicamente três funções na língua: (i) expressar o valor de uma categoria gramatical da palavra a que se liga; (ii) recuperar uma informação já disponibilizada anteriormente no discurso, ou fazer uma referência vinculada à situação em que ocorre a interação verbal. (iii) estabelecer relação entre palavras, sintagmas ou orações; As palavrasgramaticais que cumprem a função (i) podem ser definidas como especificadores. As palavras gramaticais que cumprem a função (ii) podem ser definidas como pronomes. Já as palavras que cumprem a função (iii) são denominadas conectivos . 4.1. Os especificadores Os especificadores ligam-se às palavras de uma determinada classe gramatical, de cujas categorias gramaticais eles expressam os valores. Em português, os especificadores gramaticais ligam-se precipuamente à classe dos nomes; são, portanto, especificadores nominais. Incluem-se aí, as seguintes classes de palavras gramaticais: artigos, demonstrativos, possessivos, pronomes indefinidos e numerais. Essas palavras gramaticais, assim como o adjetivo, também se flexionam em gênero e número de acordo com o nome com que se relacionam para formar um Sintagma Nominal (SN), através do mecanismo sintático da concordância nominal, como se pode ver na frase abaixo: (8) As mulheres inteligentes intimidam os homens. No SN as mulheres inteligentes, enquanto o artigo expressa os valores de feminino e plural relativos ao nome mulheres, o adjetivo só se flexiona em número; no SN os homens, o artigo também se flexiona em gênero e número para concordar com a forma do nome núcleo homens. As informações de gênero e número, contudo, dizem respeito apenas ao nome, e não ao artigo ou ao adjetivo. Na frase são feitas referências no plural aos indivíduos adultos da espécie humana do gênero feminino e masculino. O fato de estar no plural não significa que o adjetivo inteligente esteja se referindo a vários tipos de inteligência. O adjetivo inteligente recebe a marca de plural apenas porque está 34 se relacionando com um nome mulher, este sim está sendo empregado no plural porque se refere a mais de um indivíduo. Portanto, o mecanismo sintático da concordância nominal, segundo o qual todas as palavras flexionáveis que se relacionam com o nome dentro de um SN devem exibir as mesmas marcas de gênero e número desse nome núcleo do SN, pode ser visto apenas como um mecanismo de marcação de relações sintagmáticas, sem valor informacional. Ou seja, é um mecanismo que não interfere no significado final da frase, tanto que em línguas, como o inglês, ele está praticamente ausente, como se pode ver na tradução da frase (8) apresentada em (9) abaixo: (9) Intelligent women usually scare men. Em inglês, praticamente só o nome se flexiona dentre as palavras que podem ser selecionadas para formar um SN. E os nomes só se flexionam em número, pois não há flexão de gênero nessa língua. No exemplo dado, o nome woman vai para o plural – através da alternância vocálica: woman (singular) versus women (plural) 28 –, enquanto o adjetivo inteligent não se flexiona, como todos os adjetivos em inglês, que constituem, nessa língua, uma classe de palavras invariáveis. Nessa frase, a gramática do inglês não permite o uso do artigo definido, mas mesmo em contextos em que o artigo definido the seja empregado – como na frase (10) –, isso não altera o quadro, porque em inglês essa partícula gramatical também é invariável, da mesma forma como o pronome indefinido all (todos/todas) também não se flexiona em gênero e número, ao contrário do que ocorre em português. (10) All the intellgent women i know get their respect in the workplace. Todas as mulheres inteligentes que eu conheço conquistam seu respeito no local de trabalho. Como se pode ver, a ausência do mecanismo sintático da concordância nominal não compromete o funcionamento da língua, nem a torna menos expressiva ou menos eficaz. Esse mecanismo fazia parte da gramática da língua inglesa no passado. Nos últimos séculos, ele desapareceu, e isso não impediu que o inglês se tornasse o idioma mais valorizado no mundo contemporâneo – a língua da globalização, como se diz. Isso demonstra que a avaliação negativa das variedades populares e coloquiais da língua portuguesa no Brasil, nas quais o mecanismo da concordância nominal (e verbal) está 28 A forma mais comum de flexão de número em inglês é o acréscimo do morfema de plural –s, como ocorre em português. Vejam-se os seguintes exemplos: book / books (livro / livros); girl / girls (garota / garotas). 35 quase ausente – como exemplificado em (11), abaixo –, não tem qualquer fundamento linguístico. Trata-se de uma mera convenção social. 29 (11) As mulhé inteligente costuma assustá os home. Por outro lado, não se pode pensar, no sentido inverso, que uma língua sem concordância seja uma evolução em relação a uma língua com concordância, de modo que aquela seria melhor do que esta, por ser mais econômica ou mais eficiente. A concordância não onera a língua, nem a torna mais difícil. Uma criança adquire com mesmo nível de esforço mental uma língua com concordância ou uma língua sem concordância, porque as duas possibilidades já estão previstas em sua programação mental inata. 30 Algumas classes de palavras que funcionam como especificadores apresentam igualmente propriedades pronominais, tal é o caso dos demonstrativos, dos pronomes indefinidos e principalmente dos possessivos. Há, portanto, uma clara interseção, entre os conjuntos dos especificadores e o dos pronomes, o que ratifica a perspectiva teórica aqui adotada dos conjuntos difusos que formam um continuum. Essa questão será desenvolvida nas seções seguintes. 4.2. Os pronomes Os pronomes são palavras gramaticais que desempenham duas funções na língua: (i) função dêitica: fazer referência aos participantes da situação interação verbal; 31 (ii) função anafórica: recuperar o conteúdo referencial de um termo já mencionado anteriormente no discurso. Os pronomes pessoais eu e você cumprem uma função dêitica, o primeiro se refere à pessoa que está falando na situação de interação verbal, ao passo que o segundo se refere à pessoa que está ouvindo. Ou seja, o valor referencial dessas formas é determinado, não apenas pela situação comunicativa em que elas são empregadas, mas 29 Na verdade, estamos diante de um poderoso mecanismo de discriminação social e de dominação ideológica. 30 Ver Introdução. 31 A dêixis recobre “qualquer categoria gramatical [dita categoria dêitica] que expressa distinções que dizem respeito ao tempo e lugar em que ocorre o ato de fala, ou aos diferentes papeis de seus participantes. A palavra dêixis significa ‘apontar por meios linguísticos’, e os falantes fazem uso da dêixis sempre que usam palavras como aqui, lá, este, você, agora e então.” [TRASK, R. L. Dicionário de Linguagem e Linguística. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 51-52.] 36 inclusive pelo participante da situação que as emprega. 32 Já o pronome ele tem um valor anafórico, como podemos ver na frase (37) abaixo, na qual esse pronome serve para recuperar a referência do SN O Pedro. Nesse caso, o termo ao qual o pronome se refere é classificado como antecedente, e o pronome estabelece com seu antecedente uma cadeia de correferência. 33 (12) O Pedroi perdeu o filho. Elei está inconsolável. A tradição gramatical costuma definir o pronome como a palavra que “substitui um nome”. A definição não é muito precisa porque o pronome pode ter como antecedente, não um SN, mas uma oração, como ocorre no exemplo abaixo, em que o pronome o retoma o conteúdo referencial de denunciar o amigo. (13) Não queria denunciar o amigoi, mas oi fez, por achar que era o certo. No plano semântico-morfológico, os pronomes expressam valores da categoria gramatical pessoa do discurso, quais sejam: referência ao falante, 1ª pessoa; referência ao ouvinte, 2ª pessoa; referência a uma pessoa ou coisa que não participa da interação verbal, 3ª pessoa. A categoria pessoa se combina com a categoria número (singular e plural), do que resultam seis valores da categoria gramaticalcompósita número- pessoal. As formas canônicas dos pronomes pessoais que as gramáticas normativas apresentam para expressar pessoa e número divergem bastante das formas em uso corrente na língua, particularmente no Brasil, como se pode ver no quadro abaixo: PESSOA/NÚMERO FORMA CANÔNICA FORMA(S) CORRENTE(S) 1ª pessoa do singular eu eu 2ª pessoa do singular tu você / tu 3ª pessoa do singular ele/elas ele/elas 1ª pessoa do plural nós nós / a gente 2ª pessoa do plural vós vocês 3ª pessoa do plural eles/elas eles/elas 32 Numa conversa entre João e Maria, o valor referencial dos pronomes eu e você só poderá ser João ou Maria. Se esses pronomes ocorrerem na fala do João, o eu se refere ao próprio João e o você à Maria; e vice-versa, se são usados pela Maria. 33 Na notação da análise linguística, os termos de uma cadeia de correferência são marcados com o mesmo índice (um i subscrito, que é posto logo após o termo), são, portanto, coindexados. Isso foi feito no exemplo (37), colocando-se um i logo após o SN O Pedro e logo após o pronome Ele, para indicar que eles têm o mesmo valor referencial. 37 As mudanças afetaram, sobretudo, a 2ª pessoa, com o desaparecimento do vós e a substituição do tu pelo você na maior parte do Brasil. A forma a gente, também resultante de um processo de gramaticalização (como vimos acima) concorre fortemente com a forma canônica nós, superando-a, inclusive, na língua falada. Vários autores contestam o estatuto da chamada 3ª pessoa, alegando que ela se distingue das demais (as pessoas propriamente ditas), nos níveis formais, semânticos e funcionais, podendo ser melhor definida como não pessoa, em oposição à 1ª e à 2ª pessoas, as pessoas propriamente ditas. 34 Formalmente, a 3ª pessoa se flexiona em gênero (ele versus ela) e número (ele versus eles; ela versus elas), como os nomes, ao contrário do que ocorria com os pronomes da 1ª e 2ª pessoas, que não exibem flexão de gênero e expressavam a oposição singular/plural lexicalmente (eu versus nós; tu versus vós). 35 Semanticamente, enquanto os pronomes de 1ª e 2ª pessoa se referem sempre a seres humanos, o pronome da 3ª pessoa pode se referir a seres humanos, coisas e até a eventos, conceitos e proposições. Por fim, no plano funcional, a diferença reside, como vimos acima, no fato, de os pronomes da 1ª e 2ª pessoas terem uma função dêitica, enquanto o pronome de 3ª pessoa cumpre sempre uma função anafórica. Os pronomes pessoais ocupam na frase as posições sintáticas normalmente ocupadas pelos nomes, mas, ao contrário dos nomes, que não se flexionam em função disso, os pronomes alteram sua forma de acordo com a posição sintática que ocupam na oração, o que se denomina flexão de caso. Assim, os pronomes pessoais têm uma forma para ser usada na posição de sujeito (denominada pela tradição gramatical forma do caso reto) e duas outras formas para serem usadas nas funções de complemento e adjunto adverbial (as formas átonas e tônicas do caso oblíquo). As formas canônicas que a tradição gramatical aponta para cada caso são apresentadas no quadro abaixo: 36 FORMAS DO CASO RETO FORMAS DO CASO OBLÍQUO FORMAS ÁTONAS FORMAS TÔNICAS eu me mim, comigo 34 Cf., entre outros: BENVENISTE, Emile. A natureza dos pronomes. In: DASCAL, Marcel (Org.). Fundamentos metodológicos da lingüística. v.4: Pragmática - Problemas, críticas, perspectivas da Lingüística. Campinas: Ed. do Autor, 1982. 35 Com o processo de gramaticalização da expressão pronominal Vossa Mercê, do que resultou a forma você, que funciona hoje como pronome de 2ª pessoa, a forma pronominal dessa pessoa do discurso também passou a se flexionar em número, como os nomes: você : vocês. 36 A flexão de caso dos pronomes nominais será retomada no Capítulo 4, quando será feita uma descrição das formas efetivamente em uso na língua, no Brasil. 38 tu te ti, contigo ele o/a e lhe si, consigo nós nos nós, conosco vós vos vós, convosco eles os/as e lhes si, consigo Os pronomes possessivos constituem uma classe de palavras que combina as propriedades de especificadores com a de pronomes. Na frase abaixo, o pronome possessivo seu especifica o nome trabalho, estabelecendo uma relação gramatical possuidor – coisa possuída, e, ao mesmo tempo, retoma a referência ao nome João, o seu antecedente. (14) Joãoi está muito feliz, pois seui trabalho foi o escolhido para representar a escola. A dupla função do pronome possessivo (a um só tempo especificador e pronome) se manifesta no mecanismo da concordância. Enquanto os pronomes pessoais concordam em gênero e número com o seu antecedente – como podemos ver na frase (15) –, o pronome possessivo não concorda em gênero e número com o seu antecedente, mas com o termo que especifica, como podemos ver no exemplo (16) abaixo. Em (15) o pronome ele tem as marcas de masculino e singular, concordando com seu antecedente João; da mesma forma, o pronome elas tem as marcas de feminino e plural do seu nome antecedente irmãs. Já na frase (16), o pronome possessivo vem na forma do feminino plural concordando com o nome que especifica (irmãs), e não com o seu antecedente (João): (15) As irmãsi do Joãoj implicam muito com elej. Elasi são muito chatas. (16) O Joãoi não se dá com suasi irmãs. A natureza pronominal dos possessivos se evidencia também pelo fato de sua significação estar associada às pessoas do discurso. Nesse sentido, podemos definir os possessivos como a forma dos pronomes pessoais que expressa o caso genitivo (ou seja a função sintática relacionada à expressão do possuidor). Se assim o fazemos, podemos ampliar a tabela da flexão de caso dos pronomes pessoais da seguinte maneira: 39 FORMAS DO CASO RETO FORMAS DO CASO OBLÍQUO FORMAS DO CASO GENITIVO FORMAS ÁTONAS FORMAS TÔNICAS eu me mim, comigo meu, minha, meus, minhas tu te ti, contigo teu, tua, teus, tuas ele o/a e lhe si, consigo seu, sua, seus, suas nós nos nós, conosco nosso, nossa, nossos, nossas vós vos vós, convosco vosso, vossa, vossos, vossas eles os/as e lhes si, consigo seu, sua, seus, suas A tradição gramatical costuma distinguir a função adjetiva dos demonstrativos, possessivos e dos chamados pronomes indefinidos (ou seja, quando eles funcionam como espcificadores), do que chama função substantiva, que corresponderia à função de pronome. A análise tradicional baseia-se seguintes casos, que configurariam a função substantiva: (17) Eu pego essa cadeira, você pega aquela. (18) Meu trabalho está melhor que o seu. (19) Eu escolho um prato, você escolhe outro. Porém, o valor pronominal de aquela, seu e outro, respectivamente, nos exemplos (17), (18) e (19) é apenas aparente. Em uma análise mais adequada, vamos postular que essas palavras gramaticais atuam como especificadores de um núcleo nominal não realizado na frase, como se pode ver baixo: (17) a. Eu pego essa cadeira, você pega aquela (cadeira). (18) a. Meu trabalho está melhor que o seu (trabalho). (19) a. Eu escolho um prato, você escolhe outro (prato). Ou seja, os nomes cadeira, trabalho e prato estão implícitos na segunda oração de cada período acima, apesar de não estarem concretamente realizados. Esse fenômeno é muito comum na língua e podemos denominá-lo elipse. Qualquer constituinte pode ser omitido se o contexto o permitir. Isso é muito frequente nas chamadas construções de coordenação, como se pode ver abaixo: (20) O João comprou os salgadinhos, a Maria as bebidas. (21) Maria entregou o trabalho, o João não. 40 A forma linguística de cada uma dessas frases é, de fato, a que está representada abaixo, em (20)a. e (21)a. abaixo. Ocorre que os constituintes entre parênteses não estão realizados na frase. Mas isso não significa que eles não façam parte da frase. Pode-sedizer que sua presença é virtual, no que, como dissemos, denominamos elipse de constituintes. (20) a. O João comprou os salgadinhos, a Maria (comprou) as bebidas. (21) a. Maria entregou o trabalho, o João não (entregou o trabalho). Portanto, a elipse do núcleo nominal não altera a função de especificadores de possessivos, demonstrativos e indefinidos. 37 4.3. Os conectivos As preposições e conjunções são as classes de palavras que funcionam como conectivos gramaticais. No que concerne à morfologia, são palavras que, ao contrário do que ocorre com os pronomes e especificadores nominais em português, não se flexionam; sendo, portanto, chamadas de palavras invariáveis. Os conectivos são empregados para estabelecer relações: (i) entre um nome e um SN que o qualifica, como em (22) abaixo, em que a cultura qualifica história; (ii) entre um nome ou um adjetivo e um SN que lhes completa o sentido, como em (23) e (24) abaixo, em que o estádio e o serviço completam, respectivamente, o sentido do nome ingresso e do adjetivo apto; (iii) entre um verbo e SNs que podem funcionar como seu argumento, como em (25), ou como um adjunto, como em (26) – em (25) liberdade é o complemento do verbo clamar (quem clama clama por alguma coisa); já em (26) com a Maria agrega uma informação circunstancial ao ato de trabalhar; (iv) entre orações, como em (17) e (18). (22) a história da cultura (23) ingresso no estádio (24) apto ao serviço 37 Essa questão será retomada na seção 5 abaixo. 41 (25) clamou por liberdade (26) trabalho com a Maria (27) João disse que a Maria não participará da reunião. (28) Maria estava doente, mas não faltou ao trabalho. Em princípio, as preposições são empregadas para relacionar palavras e sintagmas – como de, em, a, por e com, respectivamente em (22), (23), (24), (25) e (26) –, enquanto as conjunções, para relacionar orações – como que e mas, respectivamente, em (27) e (28). Entretanto, tanto as preposições podem ser empregadas para conectar orações – como exemplificado em (29) abaixo –, quanto as conjunções podem ser usadas para conectar palavras e sintagmas – cf., respectivamente, exemplos (30) e (31): (29) Eu fiz tudo para o João não prejudicar a Maria. (30) É preciso comprar frutas e verduras. (31) Eu vou trabalhar com o João ou com a Maria? 4.3.1. As preposições As preposições que integram o núcleo gramatical da língua são palavras pequenas (ou seja, de pouca substância fonética) e com um alto valor funcional (ou seja, cumprem muitas funções e são muito empregadas). Encontram-se nesse “núcleo duro” as preposições: de, com, em, para, a, por, sem. Constituem um conjunto numericamente reduzido de palavras relacionais, com conteúdo semântico muito abstrato, não raro meramente gramatical (funcional). Juntam-se a essas preposições mais gramaticais, as outras que, conquanto sejam também palavras relacionais, têm um conteúdo semântico mais específico, tendo, portanto, um rendimento funcional menor. Tal é o caso das seguintes preposições: até, contra, desde, sobre, sob, ante, perante, após, trás. Algumas palavras que não são, ou não foram em sua origem preposições, são empregadas na língua como preposição, sendo denominadas pela tradição gramatical preposições acidentais. Tal é o caso de: durante, conforme, exceto, segundo, visto, salvo, mediante, fora, afora, consoante etc. Segundo a tradição gramatical, as preposições propriamente ditas, ou preposições essenciais, distinguem-se das preposições acidentais, porque, enquanto as preposições essenciais se relacionam com as formas pronominais do caso oblíquo – cf. (32) –, as acidentais se relacionam com as formas do caso reto – cf. (33): 38 38 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro, Lucerna, 2001. p. 301. 42 (32) Sem mim não fariam isso. (33) Exceto eu, todos foram contemplados. Quando não estão atuando para conectar orações, as preposições ligam-se a um Sintagma Nominal (SN), formando o que denominamos Sintagma Preposicionado (SPrep). 39 Sendo palavras fonologicamente dependentes, algumas preposições fundem- se com os determinantes que introduzem o SN. Vejamos alguns exemplos no quadro abaixo: PREPOSIÇÃO SINTAGMA NOMINAL SINTAGMA PREPOSICIONADO de o meu irmão mais velho do meu irmão mais velho com o apoio da família com o apoio da família em a aula de matemática na aula de matemática para o bem de todos para o bem de todos 40 a o lado do motorista ao lado do motorista por o amor de Deus pelo amor de Deus 41 sem qualquer ajuda sem qualquer ajuda As relações que as preposições marcam entre as palavras não verbais (isto é, nomes, adjetivos e advérbios) são basicamente as seguintes: a. coisa possuída – possuidor A preposição de é a utilizada para marcar essa relação, em que o nome que a antecede refere-se à coisa possuída, e o SN a que ela se junta indica o possuidor, como em casa da Maria, onde casa refere-se à coisa possuída e da Maria indica o possuidor. 42 b. termo qualificado – qualificador A preposição de é também a mais utilizada para marcar a relação entre um nome e um SN que lhe modifica o sentido, como em: a cor da esmeralda; o livro de ouro; algumas questões de trabalho etc. Porém, outras preposições 39 A estrutura dos Sintagmas será descrita em detalhe no Capítulo 7. 40 Na linguagem coloquial, faz-se a contração: pro bem de todos. 41 Manteve-se, nesse caso, a construção arcaica resultante da fusão da antiga preposição per com a forma arcaica do artigo definido lo, com assimilação do –r final da preposição ao l- inicial do artigo e posterior simplificação: per + lo > perlo > pello > pelo. 42 Essa construção substituiu o antigo caso genitivo da língua latina: domus Mariae, na qual a desinência –e em Maria indica o caso genitivo, ou seja, a forma morfológica que corresponde a essa informação de ‘possuidor’. 43 podem ser empregadas também com essa função: aquele homem com uma moral rígida; uma comida sem gosto; a palavra em negrito etc. c. nome/adjetivo/advérbio – complemento Alguns nomes, adjetivos e advérbios requerem um SN que lhes complete o sentido. Esses SNs devem vir regidos por uma preposição, como podemos ver nos seguintes exemplos: o pagamento dos impostos (nome + SPrep Complemento); apto ao trabalho (adjetivo + SPrep Complemento); longe dos pais (advérbio + SPrep Complemento). No que concerne aos verbos, as preposições servem para marcar a relação, tanto entre estes e seus complementos, quanto entre estes e adjuntos expressos por um SN. 43 As frases de (34) a (37) são exemplos de complementos verbais introduzidos por preposição, enquanto as frases (38) a (41) contêm exemplos de adjuntos adverbiais preposicionados. (34) Maria gosta de chocolate. (35) O João só pensa no trabalho. (36) Luísa foi ao teatro ontem. (37) Pedro chegou em casa abatido. (38) Nos divertimos muito com as crianças ontem. (39) José trabalha em casa. (40) Ontem passeamos de bicicleta. (41) Sempre nos falamos por e-mail. No plano lógico-semântico e no plano sintático-funcional, as preposições, sobretudo as mais gramaticais, assumem inúmeros valores, como se pode ver, por exemplo, no quadro abaixo que esquematiza os valores assumidos pela preposição de: Valores e funções marcados pela preposição de Valor / Função do SN que introduz Exemplo possuidor / caso genitivo livro do João qualificador / adjunto adnominal bandeira do Brasil argumento interno / complemento nominal destruição de Cartago argumento interno / complemento verbal preciso da sua ajuda proveniência / complemento verbal locativo saiu de casa 43 As relações entre verbos, argumentos e adjuntos serãotratadas no próximo capítulo. 44 meio / adjunto adverbial voei de helicóptero Em vista disso, não nos parecem muito profícuas as tentativas de precisar o valor semântico de cada preposição, conquanto o valor semântico de preposições que podemos definir como menos gramaticais (tais como contra, até e sobre/sob) seja mais preciso. 4.3.2. As conjunções Há basicamente dois tipos de conjunções. As conjunções propriamente ditas conectam orações estabelecendo entre elas algum tipo de relação lógico-semântica – como se pode ver no exemplo (42) abaixo, no qual a conjunção porque, além de funcionar como conectivo das duas orações, indica que a segunda oração contem a causa da primeira. O mesmo ocorre na frase (43), em que a conjunção mas relaciona a segunda oração com a primeira, marcando entre elas uma relação lógica de contradição. Ou seja, ao ver o mas, o leitor já sabe que a informação que vem em seguida se opõe à informação que a antecede (42) Não trabalhei ontem, porque meu filho estava doente. (43) Pedro se esforçou bastante, mas não obteve o resultado esperado. Há, entretanto, um tipo especial de conjunção que atua exclusivamente como conectivo, sendo desprovido de qualquer conteúdo semântico. Tal é o caso do que no exemplo (44) abaixo, que serve somente para encaixar a oração o João estava blefando como complemento da forma verbal pensou da primeira oração (sem acrescentar qualquer informação à frase). (44) Pedro pensou que João estava blefando. Em nossa classificação, vamos destacar os conectivos oracionais que não têm conteúdo semântico, como uma subclasse especial das conjunções denominada complementizadores. 44 Trata-se de uma classe bem gramatical, praticamente desprovida de valor semântico, exibindo apenas valor funcional, e sendo constituída por um número reduzidíssimo de elementos – apenas dois: o que e o se. O se tem um emprego muito mais restrito que o que; e, ao contrário deste último, exibe um valor semântico associado à dúvida, como se pode ver na frase abaixo: (45) Não sei se a Maria vai trabalhar hoje. 44 A tradição gramatical também reconhece essa especificidade, classificando os complementizadores como conjunções integrantes. 45 Não se deve confundir o complementizador se, exemplificado em (45) acima, com a conjunção condicional se, exemplificada em (46) abaixo. Esta última integra o vasto elenco das conjunções propriamente ditas e indica que a oração que introduz expressa uma condição para o que é proposto na oração principal ou matriz, com a qual essa oração condicional se relaciona. Na frase (46), a vinda da Maria é condição para a conclusão do trabalho. (46) Se a Maria vier hoje, concluímos o trabalho. As conjunções constituem uma classe muito numerosa e heterogênea, como os advérbios (havendo, inclusive, uma zona de interseção entre essas duas classes de palavras). Essa característica aproxima as conjunções das classes de palavras referenciais. 45 Ao lado das palavras gramaticais que funcionam como conjunções – exemplos: e, ou, contudo, porém, todavia, pois, conquanto, embora etc –, existe um grande número de conjuntos de palavras, denominados tradicionalmente locuções conjuntivas, que exercem essa função, tais como: já que, desde que, visto que, tanto que, posto que, ao passo que, à medida que etc. O caráter conjuntivo é fornecido pelo complementizador que, que se combina com um sem número de palavras e expressões, servindo de base para a locução conjuntiva. 4.4. Para uma taxonomia das palavras gramaticais Do que foi dito até aqui, podemos sintetizar a classificação que propomos para as palavras gramaticais, a qual toma como parâmetro a principal função que a palavra exerce na língua. Essa taxonomia está esquematizada no quadro abaixo: PALAVRAS GRAMATICAIS TIPO FUNÇÃO CLASSES especificadores especificam o conteúdo referencial de um núcleo nominal em função de uma dada categoria gramatical artigos demonstrativos numerais indefinidos pronomes/ especificadores pronomes possessivos pronomes referem-se a um dos participantes da pronomes pessoais 45 Devemos fazer aqui menção ao fato de que o elenco de conjunções tende a ser mais numeroso em línguas usadas em sociedades letradas. Essa relação com a cultura é própria das palavras referenciais. 46 interação verbal (função dêitica) ou retomam o conteúdo referencial de um termo mencionado anteriormente (função anafórica) conectivos estabelecem relações entre palavras, sintagmas e orações preposições conjunções E como foi dito acima, a fronteira entre o primeiro conjunto, dos especificadores e o segundo, dos pronomes, não é tão nítida, já que os elementos do primeiro, particularmente os pronomes possessivos, não deixam de exibir certas características do segundo. 46 4.5. Pronomes Relativos e Palavras Interrogativas Assim como os pronomes possessivos, há outras palavras gramaticais que não se enquadram perfeitamente nesse esquema. Tal é o caso dos pronomes relativos e das palavras interrogativas 47 . 4.5.1. Os pronomes relativos Os pronomes relativos cumprem uma dupla função: retomar o conteúdo referencial de um termo antecedente e introduzir uma nova oração, denominada oração relativa 48 ; dessa forma essas palavras gramaticais são simultaneamente pronomes e conectivos. Como podemos ver na frase (47) abaixo, o pronome relativo que liga-se ao termo antecedente o livro, ao tempo em que introduz a oração relativa que eu comprei ontem, da qual ele é um elemento constituinte. (47) O livroi quei eu comprei ontem é muito caro. O pronome relativo funciona como um elo na cadeia de correferência, ligando o termo antecedente a uma posição vazia no interior da oração relativa. 49 No caso da frase (47), essa posição é a posição de complemento do verbo comprar – como podemos ver esquematicamente em (47)a. –, já que o significado da oração relativa é ‘eu comprei o livro (que é muito caro) ontem’. 46 Essa questão será retomada na seção 5 a seguir. 47 A tradição gramatical as denomina pronomes interrogativos; a Gramática Gerativa usa o termo Palavras QU- (do inglês WH- Words). 48 A tradição gramatical as nomeia orações subordinadas adjetivas. 49 A estrutura das orações relativas será analisada em detalhe no Capítulo 6. 47 (47) a. O livroi quei eu comprei ____i ontem é muito caro. Compõem o elenco dos pronomes relativos do português: que, o qual (a qual, os quais, as quais) e cujo (cuja, cujos, cujas). Os dois últimos se flexionam em gênero e número, o que não ocorre com o que, o pronome relativo mais empregado na língua corrente. Nesse sentido, é imprescindível distinguir o que que – como vimos na subseção 4.3.2. acima – funciona como um mero conectivo oracional – que a tradição gramatical denomina conjunção integrante, e nós denominamos complementizador, 50 do que pronome relativo. São homônimos, ou seja, palavras distintas que têm o mesmo significante. 51 Vejamos as frases abaixo: (48) A Maria disse que o João está muito doente. (49) A meninai quei eu atendi ____i ontem estava com gastrenterite. Em (48) o que é um complementizador – serve apenas para encaixar a oração o João está muito doente como complemento da forma verbal disse da oração denominada principal ou matriz; não recupera o conteúdo de um termo antecedente, nem está ligado a qualquer posição vazia na oração que introduz, até porque não há qualquer posição vazia nessa oração (com o sentido com que empregamos essa expressão aqui). Já em (49), o que é um pronome relativo, que estabelece uma cadeia de correferência entre o termo antecedente a menina e a posição vazia de complemento da forma verbal atendi, 52 na oração relativa, cujo significado é ‘eu atendia menina (que estava com gastrenterite) ontem’. 4.5.2. As palavras interrogativas As palavras interrogativas, como seu nome indica, têm como função básica introduzir perguntas que focalizam uma determinada informação, como podemos ver nos exemplos abaixo: (50) Quem encontrou os documentos? (51) O que você fez ontem? (52) Quando a Maria chegou? (53) Onde o João nasceu? (54) Como ela descobriu isso? (55) Quanto você me dá? 50 Denominação adotada na análise gerativa. 51 Tal como ocorre com manga ‘fruta’ e manga ‘parte da camisa que cobre o braço’. 52 Por isso os três elementos estão coindexados com um i, em nossa notação. 48 (56) Por que você chegou atrasado? As palavras interrogativas quem, o que, quando, onde, como, quanto e por que são especificadas semanticamente com os seguintes valores: quem => pessoa; o que => coisa; quando => tempo; onde => lugar; como => modo; quanto => quantidade; por que => causa. Em termos lógicos, essas palavras gramaticais funcionam como variáveis. Em (50), por exemplo, o valor lógico de quem pode ser formalizado da seguinte maneira: quem = x tal que x é a pessoa que encontrou os documentos em questão Algumas palavras gramaticais se juntam a um nome para formar um sintagma que funciona como palavra interrogativa, como se pode ver nos exemplos abaixo: (57) Qual a camisa você escolheu? (58) Quantas vezes o João vomitou ontem? (59) Que interesse a Maria tem nisso? Por outro lado, as orações introduzidas por palavras interrogativas podem ser encaixadas sintaticamente como um constituinte de outra oração, dita principal ou matriz, como se pode ver nos exemplos abaixo: (60) Não sei quando a Maria chegou. (61) Estamos chegando onde o João nasceu. (62) Já tenho uma ideia de quanto eu vou lhe dar. Nesses casos, a palavra interrogativa acumula as funções de variável e conectivo oracional. Cabe ainda fazer uma distinção entre a palavra interrogativa por que e a conjunção causal porque. Apesar de terem a mesma carga semântica relacionada à causa, trata-se de outro exemplo de homonímia, já que estamos diante de duas palavras funcionais distintas. Tanto é assim que, outras línguas indo-europeias, como o inglês e o francês, têm duas palavras distintas para desempenhar cada uma das funções, como se pode ver nos exemplos abaixo: (63) Why didn’t Mary work yesterday? She didn’t work because she is sick. (64) Por quoi Marie n’a-t-ll travaille hier? Elle n’a travaille, parce qu’elle était malade. No português de Portugal, há uma diferenciação fônica, já que a palavra interrogativa é oxítona como no Brasil [porquê], enquanto a conjunção causal é pronunciada como paroxítona [púrqui], sendo fonologicamente mais fraca. No Brasil, a 49 distinção é feita apenas na convenção ortográfica, que prescreve que a palavra interrogativa deve vir separada como se fossem duas palavras distintas, enquanto a conjunção causal deve ser escrita como uma palavra única, como se pode ver abaixo em (65), que é a tradução para o português das frases apresentadas em (63) e (64): (65) Por que a Maria não trabalhou ontem? Ela não trabalhou, porque estava doente. As palavras interrogativas também podem funcionar como pronomes relativos, referindo-se a um termo antecedente, como se pode ver nos exemplos abaixo: (66) Esta é a casai ondei nasceu o grande poeta. (67) O rapazi com quemi você saiu ontem é meu primo. As palavras interrogativas são, portanto, palavras multifuncionais que desempenham um papel importante na estrutura gramatical, estando virtualmente presentes no elenco das palavras gramaticais de todas as línguas humanas. 53 5. Nomes e especificadores nominais Morfologicamente, os nomes se flexionam em número e gênero. A maioria dos nomes se flexiona em número, através do acréscimo do morfema de plural –s, que indica se tratar de mais de um indivíduo: casa : casas; ponto : pontos; pé : pés, etc. A flexão de gênero informa o sexo, no caso dos nomes dos seres vivos: gato : gata; menino : menina; sogro : sogra, etc. Mas, para a maioria dos nomes, o gênero é só um classificador gramatical, indicado pela flexão dos determinantes e dos modificadores: (68) uma casa bonita (69) o muro alto (70) essa foto é linda (71) o planeta mais afastado O gênero nesses casos é arbitrário. Não há nenhuma razão para casa e foto serem nomes femininos e muro e planeta serem nomes masculinos; tanto que o gênero das palavras que se referem às coisas varia mesmo entre línguas bem aparentadas, como as 53 As funções exercidas pelas palavras interrogativas na articulação de orações serão retomadas no Capítulo 6. 50 línguas românicas. Em português mar é masculino (o mar); em francês, é feminino (la mer). Já flor, que é feminino em português (a flor), é masculino em italiano (il fiori). 5.1. A relação dos artigos e demonstrativos com os nomes No plano de sua significação, os nomes designam, tanto seres e coisas, em um plano mais imediato de percepção do real, quanto, conceitos, lugares, ações e processos, num plano mais abstrato de percepção do mundo. Tal distinção se traduz na distinção entre substantivos concretos e abstratos, que é feita pela tradição gramatical. Mas mesmo no plano de sua significação mais concreta, uma distinção importante deve ser feita. O nome pode referir-se a espécie como um todo, no que se denomina referência genérica, como exemplificado na frase (72), ou a um indivíduo dessa espécie, como ocorre na frase (73), na chamada referência específica. (72) Um livro é sempre uma boa companhia. (73) Comprei um livro ontem. Não há em português, uma marca gramatical específica para a referência genérica. Um nome precedido por um artigo indefinido pode ter uma referência genérica, como ocorre em (72) acima, e ter a mesma referência genérica sendo precedido por um artigo definido, como em (74), ou mesmo não vir acompanhado por qualquer determinante, como em (75), o que, na linguística contemporânea, se denomina nome nu. (74) O livro é o grande símbolo da civilização ocidental. (75) Vou comprar um livro pra dar de presente ao João. Livro é sempre bom. Assim, a categoria gramatical que podemos chamar de nível de referencialidade não é marcada em português. Porém, no plano da referência específica, há uma marcação gramatical para a categoria definitude. Vejamos as frases abaixo: (76) Gente, eu já comprei o livro. (77) Gente, eu comprei um livro ontem. Em ambas as frases, o falante se refere a um livro específico, porém, na primeira frase, o os ouvintes já sabem a qual livro o falante está se referindo, ao passo que, na segunda frase, os ouvintes não sabem que livro o falante comprou. O artigo definido indica que aquela referência faz parte do conhecimento compartilhado entre o falante e 51 o ouvinte. O artigo indefinido indica que o nome traz uma informação nova, ou seja, indica uma primeira menção àquele referente. Anaforicamente, o artigo definido substitui o artigo indefinido, após a primeira menção, como podemos ver no seguinte exemplo: (78) O João encontrou um meninoi perdido. O meninoi estava muito assustado. O demonstrativo também pode fazer as vezes do artigo definido, nesse contexto: (79) O João emprestou um livroi para a Maria. Esse livroi lhe será muito útil. Não obstante seu emprego anafórico, a função básica dos demonstrativos está relacionada à dêixis, da seguinte maneira: o demonstrativo este (esta, estes, estas) indica proximidade ao falante; o demonstrativo esse (essa, esses, essas) indica proximidade ao ouvinte; o demonstrativo aquele (aquela, aqueles, aquelas) indica distância do falante e do ouvinte. 54 Tal distinção funciona em planos mais abstratos, tal como plano temporal, como exemplificado abaixo: (80) Vamos resolver o problemaainda esta semana. [na semana em curso] (81) Naquele tempo, havia mais respeito. [um passado distante] Retornando ao plano das relações anafóricas, os demonstrativos podem funcionar como verdadeiros pronomes: (82) O antibióticoi ataca a causa da doença, o analgésicoj atua sobre os sintomas. Estej deve ser ministrado três vezes ao dia, enquanto aquelei deve ser minitrado em dose única. A distinção básica se mantém, de modo que o este se refere ao antecedente mais próximo (o analgésico), enquanto o aquele retoma a referência do antecedente mais distante (o antibiótico). Ainda nesse plano, existe a distinção entre esse, usado para retomar um termo já referido – cf. exemplo (83) –, e este, usado para indicar um termo que vem a seguir – cf. exemplo (84): (83) O nível do programa caiu. Esse problema deve ser reconhecido pela produção. (84) Temos que encontrar uma solução para este problema: a queda no nível das vendas. 54 Atualmente, a distinção entre este e esse se perdeu, de modo que as duas formas são usadas indistintamente. 52 Alguns autores fazem a seguinte distinção, denominando a primeira – exemplificada em (83) – como referência anafórica, e a segunda como referência catafórica – cf. exemplo (84). Quanto ao gênero, os demonstrativos conservam uma forma do gênero neutro: isto, isso, aquilo. Essas formas não funcionam como especificadores, pois não podem se ligar a um núcleo nominal, 55 só funcionam como pronomes, seja no plano dêitico – como exemplificado em (85) –, seja no plano anafórico – como exemplificado em (86): (85) Pegue aquilo pra mim. (86) Você desrespeitou seus pais. Isso não está correto. Algumas análises agrupam artigos e demonstrativos em uma única classe: a classe dos determinantes. Uma motivação para essa proposta é a impossibilidade de coocorrência dessas duas partículas gramaticais, o que explica a agramaticalidade da frase abaixo; (87) *A esta cadeira está quebrada. Os determinantes, em contrapartida, podem coocorrer com as outras palavras que atuam como especificadores nominais, como os possessivos, numerais e indefinidos. 56 5.2. Os numerais e os pronomes indefinidos Os numerais são especificadores nominais que quantificam exatamente os nomes, como em: cinco cadeiras, três crianças, duas agremiações etc. Nesse caso, os nomes se referem sempre a indivíduos (referência específica) e não à espécie (referência genérica). Em um contexto mais específico, os numerais têm um valor nominal indicando a quantidade em si mesma: (88) “Tudo certo como dois e dois são cinco” 57 Para além desses numerais que indicam quantidades aritméticas, denominados numerais cardinais, existem numerais que indicam uma ordenação (numerais ordinais): primeiro, segundo, terceiro etc. Os numerais cardinais e ordinais, para além de funcionarem como especificadores nominais (e.g., o quarto candidato), podem funcionar também como pronomes: 55 Veja-se, como exemplo, a agramaticalidade desta frase: 56 Essa questão será retomada, quando tratarmos da composição do Sintagma Nominal no Capítulo 7. 57 Verso da famosa canção Como 2 e 2, do compositor e poeta Caetano Veloso. 53 (89) Disputam uma única vaga o João, o Pedro e o Luís. Os três têm chance de conquistá-la. (90) Eu tinha de escolher entre o João e o Pedro. Escolhi o segundo. Há ainda os numerais multiplicativos e fracionários. Esses tem um valor nominal, como exemplificado em (91), ou podem funcionar como adjetivos, como em (92). Porém, em seu emprego mais frequente, formam expressões quantificadoras, 58 como exemplificado em (39): (91) Um terço de seis é o dobro de um. (92) Eu quero uma dose dupla. (93) Já gastei dois terços do meu salário. A maioria dos chamados pronomes indefinidos também expressa uma quantificação: algum, nenhum, todo, muito, pouco, vário, tanto, quanto; por essa razão são classificadores como quantificadores, em análises da linguística contemporânea. Mas há também indefinidos que não têm um valor quantitativo como: outro, certo e qualquer. A maioria dos indefinidos se flexiona em gênero e número, à exceção do qualquer, que só se flexiona em número. Nessas formas os indefinidos funcionam precipuamente como especificadores de um núcleo nominal, realizado ou não: (94) Muitas questões foram resolvidas, mas algumas ficaram sem resposta. Mas podem funcionar esporadicamente como um núcleo nominal, como em: (95) Você dá muito importância à opinião dos outros. Para além das formas que se flexionam, os pronomes indefinidos apresentam as seguintes formas neutras, que não se flexionam: alguém, ninguém, tudo, outrem, nada, cada, algo. Essas formas têm sempre um valor nominal: (96) Algo precisa ser feito. (97) Ninguém me escuta! (98) Tudo está em seu lugar. A única exceção é a forma cada, que funciona sempre como especificador nominal, como em , ou integra uma locução quantificadora, como em (99) Cada macaco no seu galho. (100) Cada um tem de fazer a sua parte. 58 As expressões quantificadoras serão tratadas no Capítulo 7, quando analisarmos a composição do Sintagma Nominal . 54 6. Os adjetivos No plano do significado, os adjetivos normalmente expressam estados e qualidades. Na medida em que esses estados e qualidades são atribuídos a seres e coisas expressos por nomes, os adjetivos atuam sintaticamente como predicadores desses nomes. Essa predicação pode se desdobrar sintaticamente numa oração, como ocorre no exemplo (101), ou ocorrer no âmbito de um Sintagma Nominal, como no exemplo (102): 59 (101) Aquele rapaz é tímido. (102) O rapaz tímido evitou a moça. No plano morfológico, os adjetivos se flexionam em gênero e número (bonito, bonita, bonitos, bonitas), apenas em função do mecanismo sintático da concordância nominal (cf. seção 4.1. acima), pois o conteúdo dessas categorias gramaticais nada tem a ver com o valor semântico dos adjetivos. A flexão em número é mais geral do que a flexão em gênero. São raros os adjetivos que não se flexionam em número (e.g., simples), mas há muitos que não se flexionam em gênero e só se flexionam em número: feliz : felizes; grande : grandes; etc. Como destacado anteriormente, na seção 3, a classe dos adjetivos mantém zonas de interseção, com a classe dos nomes, por um lado, e com a classe dos advérbios, por outro. Em (103), temos adjetivos funcionando como nomes, ao passo que em (104) temos um exemplo de adjetivo funcionando como advérbio: (103) Enquanto os fracos tremiam, os bravos retesavam os músculos. (104) Não fale tão baixo. Isso revela o continuum das classes não verbais, que vai desde a classe dos nomes, a mais referencial, até a classe dos advérbios, a mais gramatical das classes de palavras referenciais; ficando a classe dos adjetivos numa posição medial. 7. Os advérbios Os advérbios são palavras que se situam na fronteira entre as classes de palavras referenciais e as classes de palavras gramaticais. Trata-se de uma classe muito 59 A estrutura sintática das predicações será analisada no próximo capítulo. 55 heterogênea, pois há advérbios que têm um caráter bem gramatical – tais como: hoje, sempre, longe, já, mais, muito etc – e advérbios que têm uma natureza mais referencial, como é caso dos advérbios em -mente (tranquilamente, fatalmente, mansamente etc.), que constituem, inclusive, um conjunto aberto (a qualquer momento, é possível criar um novo advérbio em -mente), o que é uma característica proeminente das classes de palavras referenciais. Portanto, como temos enfatizado aqui, a divisão de palavras em classes, bem como a distinção entre palavras gramaticais e palavras gramaticais, deve ser vista, menos como uma divisãodo conjunto de palavras de uma língua em compartimentos estanques, do que como um continuum, em que se passa gradualmente de uma classe para outra. 8. Os verbos Podemos dizer que os verbos são as palavras que desencadeiam a estrutura sintática, tanto que não possível construir uma frase sintaticamente estruturada na língua sem a presença de uma forma verbal flexionada. Os verbos se flexionam em função das categorias gramaticais de tempo, modo e aspecto, por um lado, e pessoa e número, por outro. Essas categorias gramaticais do verbo podem ser marcadas separadamente – como em trabalharemos e trabalhavam, em que os morfemas -re- e -va- expressam os valores de tempo, modo e aspecto e os morfemas -mos e -m expressam os valores de pessoa e número –, ou simultaneamente, como em trabalhei e trabalhou, em que os morfemas -ei e -ou indicam cumulativamente tempo, modo e aspecto e pessoa e número. 8.1. A flexão verbal Sendo uma língua indo-europeia, o português é uma língua flexiva, de modo que os valores de muitas categorias gramaticais são expressos através da flexão, tal é caso das categorias verbais de tempo, modo e aspecto. Para marcar os valores dessas categorias, um morfema flexional se une ao radical do verbo como um sufixo, gerando formas como: trabalhará, corria, partiram, etc. Na primeira forma, o morfema –rá– expressa a informação de modo indicativo e tempo futuro. Já na segunda forma, o morfema –ra– informa que se trata do modo indicativo, tempo passado (que a tradição 56 gramatical chama de pretérito) e aspecto concluído (que a tradição gramatical chama de perfeito). O modo é categoria gramatical que se refere ao grau de realidade atribuído a um enunciado. Essa informação pode ser fornecida lexicalmente por meio de expressões, como: (105) Eu acho que o João estava nervoso. (106) Não há dúvida de que o João estava nervoso. Gramaticalmente, essa informação de modo é fornecida pela flexão do verbo, simultaneamente com a informação de tempo e, em alguns casos, com a informação de aspecto. Tradicionalmente, distinguem-se três valores para a categoria gramatical de modo: indicativo, subjuntivo e imperativo. O indicativo expressa a certeza do falante sobre o evento referido, de modo que a frase traduz um fato real 60 – cf. exemplo (107). O subjuntivo é o modo da incerteza, quando o falante se refere a um evento possível, hipotético ou mesmo irreal 61 – cf. exemplo (108). Já o imperativo indica uma ordem, um pedido ou um apelo – cf. exemplo (109). (107) João estuda latim. (108) Se eu me controlasse, não teria dito aquilo. (109) Por favor, passe-me a caneta. No plano lógico-semântico, devemos distinguir apenas dois modos: o indicativo (realis) e o subjuntivo (irrealis), sendo o imperativo incluído no subjuntivo, já que um evento referido numa ordem/pedido/apelo é um evento que não tem uma existência objetiva. Porém, a distinção do modo imperativo pode ser mantida em função do seu valor pragmático: a função de uma frase no imperativo afeta diretamente o ouvinte, distinguindo-se das frases dos tempos indicativo e subjuntivo, normalmente frases declarativas, em princípio, neutras, em relação ao ouvinte. O tempo gramatical é sempre um tempo relativo, pois a categoria gramatical do tempo situa o evento referido em relação ao momento da enunciação. Em (110), o evento referido ocorreu antes do momento da enunciação – tempo passado; em (111), está ocorrendo no momento da enunciação – tempo presente; e em (112), ocorrerá depois do momento da enunciação – tempo futuro. 60 Na literatura linguística, usa-se também a palavra latina realis para indicar esse modo. 61 Donde a designação irrealis, que também se encontra na literatura linguística. 57 (110) A Maria saiu com o João. (111) A Maria está em casa. (112) Ela voltará. Assim como ocorre em relação ao modo, a informação de tempo pode ser dada lexicalmente, como se pode ver na frase abaixo, em que a essa informação de futuro é dada pelo advérbio amanhã, enquanto o verbo exibe a forma morfológica do presente: (113) A Maria viaja amanhã. A categoria gramatical aspecto diz respeito a certas características ou dimensões do evento ou processo designado pelo verbo, tais como: duração, início, conclusão, frequência etc. A tradição gramatical não dá muita atenção a essa categoria gramatical, fazendo somente a distinção aspectual de concluso e inconcluso em relação ao passado: (114) A Maria saiu antes do João chegar. (115) A Maria saía quando o João chegou. Em (114) a ação de sair ocorreu no passado e já se concluiu – o que a tradição gramatical denomina pretérito perfeito; 62 já em (115), a ação situada no passado não se concluiu – o que a tradição gramatical denomina pretérito imperfeito. Comparado a outras línguas, como as línguas eslavas, o português exibe, de fato poucas marcas gramaticais de aspecto. Contudo, essa informação é frequentemente expressa na língua por meio de locuções verbais. 7.2. Locuções Verbais Para além da flexão verbal, as informações de TMA também podem ser fornecidas por meio de uma locução verbal, em que um verbo – denominado verbo auxiliar – se liga a uma forma não-finita de outro verbo (infinitivo, gerúndio ou particípio passado) – denominado verbo principal, como no exemplo abaixo: (116) Maria já tinha saído, quando João chegou. O verbo principal (o particípio passado do verbo sair) carrega a significação referencial do processo verbal (a ação de deixar um lugar). Já o verbo auxiliar combina- se ao verbo principal para marcar o valor da categoria gramatical de TMA, no caso da frase (116), a locução verbal tinha saído indica um passado anterior a outro passado 62 Em sua origem, o adjetivo perfeito significada ‘concluído’. 58 (que a tradição gramatical denomina pretérito mais-que-perfeito); ou seja a ação de Maria sair já havia se concluído antes da ação de João chegar acontecer. Os verbos auxiliares são partículas gramaticais. Portanto, devemos destacar essa dupla possibilidade de emprego dos verbos, ora como palavras refernciais, ora como palavras gramaticais. Vejamos as frases abaixo: (117) Não vou trabalhar amanhã. (118) Vou ao teatro esta noite. (119) João tem estudado muito. (120) João tem uma casa de praia. Em (117) e (118), os verbos ir e ter são empregados como palavras gramaticais. Em (118) e (120) são palavras referenciais. Em (117) o verbo ir é o verbo auxiliar, que se combina com a forma do infinitivo do verbo principal, para expressar a informação gramatical de futuro do indicativo. O conteúdo referencial da locução verbal vou trabalhar, ou seja, ‘o ato de trabalhar’, é dado pelo verbo principal. Já em (118) o valor do verbo ir é referencial, designando o ato de deslocar-se para algum lugar. A informação gramatical é dada pela flexão verbal, na forma vou, da 1ª pessoa do singular do presente do indicativo. Em (119) o verbo ter é uma palavra gramatical que se combina com a forma do particípio passado para expressar o que podemos denominar de presente perfeito (uma ação que se inicia no passado esse prolonga até o presente). Em (120) o verbo ter é uma palavra referencial que remete à relação de posse. Atuando como palavras gramaticais, alguns verbos, denominados verbos auxiliares, se ligam as formas do infinitivo, gerúndio e particípio passado de outros verbos, ditos verbos principais, para formar as locuções verbais, conforme descrito no início desta seção. As locuções verbais por excelência são os chamados tempos compostos, formados com os verbos que funcionam tipicamente verbos auxiliares: ter/haver, estar e ir: (121) A Maria tem saído bastante. (122) A Maria já havia saído. (123) A Maria está saindo. (124) A Maria vai sair. Como verbos auxiliares, funcionando comopalavras gramaticais, esses verbos têm um alto rendimento funcional, não obstante mantêm, como destacado acima, o seu valor referencial, sendo também empregados como verbos plenos: 59 (125) Maria tem muitos livros. (126) Há um depósito no fundo da construção. (127) João está no escritório agora. (128) Luíza vai à praia todo fim de semana. Dessa forma, podem funcionar como verbos principais em locuções verbais: (129) Maria vai ter muitas tarefas diferentes nessa nova função. (130) Tem havido muitos problemas nesse setor. (131) João vai estar no escritório amanhã. (132) Estou indo agora para o trabalho. Um verbo que tem uma função eminentemente gramatical é verbo poder. Esse verbo, que indica possibilidade, é o verbo auxiliar modal prototípico: (133) Maria poderia emprestar essa quantia ao João. Dessa forma, o verbo poder pode ser definido como uma palavra gramatical, já que é praticamente nula a possibilidade de seu emprego como palavra referencial. 63 Já o verbo dever também atua como auxiliar modal com valor deôntico (de obrigação): (134) Devemos ajudar ao próximo. O verbo querer também pode ser empregado como auxiliar modal, com o sentido de volição (vontade): (135) João quer terminar este trabalho hoje. Outros verbos podem atuar como auxiliares, mas expressando um valor aspectual. Tal é o caso de verbos como: continuar, indicando o prolongamento do processo verbal; começar, indicando o início do processo verbal; ou acabar, indicando a conclusão da ação expressa pelo verbo: (136) Ela continua trabalhando em casa. (137) Ela começou a gritar. (138) Ela acabou de escrever um livro. Assim, como o verbo poder é o auxiliar modal prototípico, o verbo costumar é o auxiliar aspectual prototípico. Assim, como aquele, este só é empregado como verbo auxiliar, indicando a habitualidade de uma ação: (139) Eu costumava correr todas as manhãs. 63 A única frase em que o verbo poder não é empregado como auxiliar seria uma frase do tipo: (1) O João pode tudo, eu não posso nada. Mas, mesmo nesse caso, podemos postular a elipse do verbo principal fazer: (2) O João pode (fazer) tudo, eu não posso (fazer) nada. 60 A locução verbal formada pelo verbo ser + o particípio passado do verbo principal é usada para expressar a voz passiva. 64 Nessa construção, a locução verbal recebe como sujeito (denominado sujeito paciente), o que seria normalmente o complemento do verbo principal, na chamada voz ativa, como se pode ver no cotejo entre as frases (140) e (141), e entre as frases (142) e (143), estando as primeiras na voz passiva e as segundas na voz ativa: (140) Este documento é assinado pelo supervisor. (141) O supervisor assinou o documento. (142) Todos os sobreviventes do naufrágio já foram resgatados. (143) Já resgataram todos os sobreviventes do naufrágio. Por fim, podemos acrescentar algumas construções, que, não sendo propriamente locuções verbais, são composições lexicais com valor verbal, que denominamos lexias verbais compostas. Nessas construções, um verbo, denominado verbo leve, forma com seu complemento uma expressão que equivale a um verbo da língua, como ocorre nos seguintes exemplos: (144) Ele deu um beijo na irmã. [ = Ele beijou a irmã] (145) Vamos dar uma volta na cidade? [ = Vamos passear na cidade?] (146) É melhor você dar um tempo. [ = É melhor você aguardar] O verbo dar é o verbo leve por excelência, podendo ser empregado com esse valor em um vasto elenco de expressões. Contudo outros verbos podem ser usados como verbos leves, em um número mais restrito de expressões, como nos seguintes casos: (147) Depois do almoço, eu sempre tiro um cochilo. [ = cochilar ] (148) O patrão passou uma descompostura no empregado. [ = repreender] (149) Chamou a atenção do subordinado. [ = advertir ] Se considerarmos como locução verbal a combinação de um verbo auxiliar com um verbo principal, a lexia verbal composta não seria propriamente uma locução verbal. Mas, se considerarmos o termo locução verbal no sentido mais amplo de conjunto de palavras que funcionam como um único verbo, a lexia verbal composta pode ser considerada uma locução verbal. 64 A construção da voz passiva será tratada no capítulo 5. 61 As locuções verbais podem-se combinar, formando conjuntos com três ou quatro formas verbais: (150) Eu não estou podendo lhe atender agora. (151) O supervisor já tinha chamado a atenção desse funcionário antes. (152) Desse jeito, o regulamento vai continuar sendo desrespeitado. Em (150), temos o verbo auxiliar no tempo composto (estou podendo) em uma locução modal (podendo atender); em (151) a lexia verbal composta (chamar a atenção) vem na forma de um tempo composto (tinha chamado); e em (152), combinam-se o tempo composto (vai continuar), com uma locução aspectual (continuar sendo) e uma estrutura passiva (sendo desrespeitado), conjugando, assim, quatro formas verbais em uma única locução. Portanto, a locução verbal é um conjunto de duas ou mais formas verbais que funcionam como um único verbo. Independentemente do número de verbos que congregue (dois, três ou quatro, no máximo), a locução verbal terá apenas um verbo flexionado, estando os demais nas formas não finitas (infinitivo, gerúndio e particípio passado). Sumariamente, podemos classificar as locuções verbais (no sentido mais amplo do termo) nos seguintes tipos: 1. Tempo composto Locução verbal formada pela junção de um verbo auxiliar (ter/haver, estar e ir) com uma forma particípio, gerúndio ou infinitivo de um verbo principal, para dar as informações de TMA. Ex.: A Maria vai viajar na semana que vem. 2. Locução modal Locução verbal formada por verbos, como poder, querer e dever, com uma forma do infinitivo de outro verbo, para expressar o modo irrealis. Ex.: Eu posso terminar o relatório hoje mesmo. 3. Locução aspectual Locução verbal formada por verbos, como começar, continuar e costumar, com uma forma do infinitivo de outro verbo, para expressar um valor do aspecto verbal. Ex.: Júlia continua trabalhando neste jornal. 62 4. Estrutura passiva Locução verbal formada pelo verbo ser e o particípio passado do verbo principal, que recebe como sujeito o que seria, de outra forma, complemento do verbo principal. Ex.: Este bilhete ainda não foi carimbado. 5. Lexia verbal Combinação de um verbo leve (no geral o verbo dar) com um Sintagma Nominal, que funciona como um único verbo. Ex.: Ela até me deu um beliscão quando eu falei isso. 63 Capítulo 3 O Núcleo da Estrutura Sintática O primeiro objetivo do método de análise aqui desenvolvido é fornecer os elementos para uma análise taxonômica básica de todas as frases da língua, reduzindo os elementos da análise a uns poucos primitivos teóricos. Assim, vamos apresentar um esquema taxonômico baseado, fundamentalmente, em quatro categorias analíticas básicas: predicador, argumento, adjunto e aposto. Como exposto na seção 4 do primeiro capítulo deste livro, a estrutura sintática básica da língua, a oração, tem como núcleo uma predicação, o conjunto formado por um predicador e seu(s) argumento(s). A essa estrutura nuclear, podem-se acrescentar informações suplementares através dos adjuntos. E, por fim, qualquer informação sobre um dos constituintes dessa estrutura pode ser inserida, por meio de um constituinte parentético, denominado aposto. Tomemos como exemplo a seguinte frase: (1) Felizmente, a Maria não contou logo a verdade para o João, seu irmão mais novo. O primeiro passo do método de análise aqui proposto é identificar a forma verbal. Nesse exemplo, só há uma forma verbal – contou –, portanto a frase (1) é constituída por apenas uma oração. A estrutura sintática dessa oração se articula em torno da formaverbal contou, que é um predicador verbal. Enquanto predicador, o verbo é uma palavra relacional, e o conteúdo semântico da predicação definida por cada verbo da língua faz parte da competência linguística de qualquer falante nativo. No exemplo em foco, o conteúdo semântico da predicação definida pelo verbo contar é: quem conta, conta alguma coisa a/para alguém. A partir dessa configuração semântica, podemos identificar os argumentos do predicador verbal: quem contou: a Maria 64 o que contou: a verdade a quem: o João O conteúdo semântico do verbo contar define os actantes do processo a que esse verbo se refere: (i) o agente do processo, que deve ser um ser humano que transmite (ii) uma informação verbal, o tema do processo verbal, a (iii) outro ser humano, o destinatário do processo. Se essas especificações semânticas fossem violadas, o resultado seria uma frase agramatical: (2) *Felizmente, o altar não contou logo a verdade para o João, seu irmão mais novo. (3) *Felizmente, a Maria não contou logo uma cadeira para o João, seu irmão mais novo. (4) *Felizmente, a Maria não contou logo a verdade para o vazio da existência, seu irmão mais novo. Assim, a carga semântica define a estrutura argumental do verbo, ou seja, os constituintes que deverão conter as informações requeridas pelo verbo enquanto predicador. Esses constituintes, que são os argumentos do verbo, saturam a predicação (preenchendo as lacunas abertas pelo verbo – o predicador), e o conjunto formado pelo verbo e seus argumentos constitui o núcleo da estrutura sintática da oração verbal. Na frase (1), o núcleo da oração que a constitui é: a Maria contou a verdade ao João. Os argumentos verbais se dividem em externos e internos, sendo a predicação verbal máxima constituída por um argumento externo e dois argumentos internos. A frase (1) constitui um exemplo da predicação verbal máxima, sendo a Maria o argumento externo do verbo, e a verdade e ao João, os argumentos internos. O argumento externo (ou seja, o sujeito – segundo a denominação consagrada pela tradição gramatical) situa-se, normalmente, à esquerda do verbo e especifica a flexão verbal relativamente à categoria de pessoa e número. Assim, na frase (5), o sujeito os convidados não se refere nem ao falante, nem ao ouvinte, e se refere a mais de um indivíduo, o que tradicionalmente se denomina 3ª pessoa do plural. Com isso, o verbo deve vir marcado morficamente com esse valor para a categoria pessoa do discurso, por meio do morfema –m, no fenômeno morfossintático denominado concordância verbal. (5) Os convidados ainda não chegaram. 65 Além do argumento externo, o verbo também pode selecionar um ou dois argumentos internos, também denominados complementos verbais. Os complementos verbais podem vir regidos por uma preposição, como exemplificado em (7), ou se ligarem diretamente ao verbo, como exemplificado em (6). Não há qualquer mecanismo morfossintático de concordância entre o verbo e seu(s) argumento(s) internos em português. (6) Maria escreveu várias cartas esta manhã. (7) Maria gosta de chocolate. Definidos o verbo e seu(s) argumento(s), o que resta na estrutura da oração são os adjuntos, que contêm informações circunstanciais relativas ao processo referido pelo verbo (tais como: tempo, modo, causa, lugar etc), ou um comentário geral sobre o que está sendo dito, ou a fonte dessa informação. Na frase (1), os constituintes que desempenham a função de adjunto são: felizmente, não e logo. Por fim, temos um constituinte parentético, uma explicação sobre quem é o João: o irmão mais novo da Maria – esse constituinte parentético é um aposto. Tomemos agora a frase apresentada em (8) abaixo. Nesta frase, a forma verbal era não é um predicador, pois não seleciona semanticamente os seus argumentos. (8) Segundo seu relato, a Maria, sua irmã mais velha, era muito introvertida na infância. A seleção dos argumentos implica uma restrição de sentido, como ocorre com verbo contar, que é um predicador verbal. Ao contrário do verbo contar, o verbo ser não restringe de modo algum o constituinte que pode ocupar a posição de sujeito, em termos de traços semânticos, tais como: ser humano ou não, ser concreto ou abstrato, e assim por diante. Como se pode ver nas frases abaixo (todas formadas com o verbo ser), o sujeito da frase (9), a Maria, tem o traço semântico [+humano]; já em (10), o sujeito, esta poltrona, tem os traços semânticos [-humano, -animado, +concreto]; e em (11), o sujeito, a felicidade, tem os traços semânticos [-humano, -animado, -concreto]. (9) A Maria é loura. (10) Esta poltrona é confortável. (11) A felicidade é uma quimera. Nessas frases, o termo que restringe semanticamente o sujeito é o predicador nominal: loura, em (9); confortável, em (10); e quimera, em (11). O adjetivo loura seleciona um argumento que deve ter o traço semântico [+humano], o que tornaria agramatical uma frase como: 66 (12) *Esta poltrona é loura. Já o adjetivo confortável, ao contrário, seleciona um argumento com o traço semântico [-humano], o que tornaria a frase (13) agramatical, e assim por diante. (13) *A Maria é confortável. Logo, a forma verbal nessas frases liga o argumento ao predicador nominal, introduzindo as informações de tempo modo e aspecto. Esse conjunto argumento – verbo de ligação – predicador nominal forma o núcleo das orações nominais. Retornando à frase (8), o núcleo da oração nominal é: a Maria era muito introvertida; sendo o predicador nominal introvertida modificado pelo intensificador muito. Definido, assim, o núcleo da estrutura sintática da oração, os constituintes remanescentes são, ou adjuntos, ou apostos. Os constituintes segundo seu relato e na infância são adjuntos, e o constituinte sua irmã mais velha é aposto de a Maria. Todas as orações, que formam as frases da língua, são estruturas sintáticas que se articulam em torno, ou de uma predicação verbal, ou de uma predicação nominal. Portanto, o melhor método para analisar a estrutura sintática das frases de uma língua é identificar, primeiramente, o(s) predicador(es) e seu(s) argumento(s). Feito isso, classificam-se os constituintes eventualmente remanescentes entre adjuntos e apostos. Assim, com base em apenas quatro categorias taxonômicas, é possível analisar a grande maioria das estruturas sintáticas da língua. Ficam de fora apenas algumas estruturas especiais relativas a uma posição estrutural que se situa à esquerda da oração, na qual são inseridos o tópico frasal, as estruturas de focalização, os conectivos oracionais e as palavras interrogativas; aos quais podemos acrescentar ainda, como constituintes para-sintáticos, o vocativo e as interjeições. Neste capítulo, vamos fazer uma descrição detalhada das predicações nominais e verbais. Iniciaremos essa descrição distinguindo as situações em que a predicação forma uma oração das situações em que a predicação não forma uma oração. Chamaremos as primeiras de predicações nucleares, e as últimas de predicações secundárias. 1. A predicação como núcleo da estrutura sintática O principal objetivo da análise gramatical é explicar como combinamos as palavras, para formarmos as frases da língua. Como vimos na introdução deste capítulo, 67 a hipótese central desta análise é que a predicação está na base da formação de qualquer frase da língua. A predicação é um processo desencadeado por uma palavra relacional denominada predicador. Os verbos são os predicadores por excelência. Por exemplo, ao formar uma frase com o verbo ver, o falante tem de necessariamente informar duas coisas: (i) o ser vivo que vê e (ii) a coisa vista. Os constituintes que fornecem essa informação na frase são os argumentos, enquanto o verbo é o predicador. A predicação é conjunto formado pelo predicador e seus argumentos. Assim, na frase (14), a forma verbalviu é o predicador e os constituintes Maria e o acidente são seus argumentos. (14) Maria viu o acidente. 65 Adotaremos aqui a seguinte notação, que informa que ver é um predicador verbal que seleciona dois argumentos: (15) ver [ __ V __ ] Para além dos verbos, os adjetivos também podem atuar como predicadores, como na frase abaixo: (16) Maria era imatura. Para formar uma oração a partir do adjetivo imaturo, é preciso informar o ser que vai ser qualificado dessa maneira. Assim, na frase (16), Maria é argumento externo do predicador nominal imatura, o que é representado pela seguinte notação: (17) imatura [ __ N ] Nas orações formadas com um predicador nominal, é preciso introduzir uma forma verbal, denominada verbo de ligação, mais para introduzir a informação de tempo, modo e aspecto, do que para fazer a ligação entre o nome e o adjetivo. 66 A denominação predicador nominal equivale a predicador não-verbal, função que pode ser desempenhada também por um nome que assume uma função predicativa, como na frase abaixo: (18) Maria é professora. professora [ __ N ] 65 Neste e nos próximos exemplos, o predicador vem em negrito, e o(s) argumento(s), em itálico. 66 Tanto é assim que, em algumas línguas, como as línguas crioulas, com o valor default da categoria de tempo, modo e aspecto (que grosso modo corresponde ao presente do indicativo), o verbo de ligação é suprimido como no exemplo abaixo, extraído do caboverdiano, crioulo português falado no arquipélago de Cabo Verde: (1) Maria bunito. Maria é bonita. 68 Como já dissemos, a predicação é o núcleo da unidade sintática básica da língua: a oração. Mas nem sempre uma predicação se manifesta como núcleo de uma oração. 2. Predicações Nucleares e Secundárias Ao contrário da predicação verbal, a predicação nominal nem sempre desencadeia uma estrutura sintática oracional. Observemos as frases abaixo: (19) A mulher muito inteligente intimida os homens. (20) A implosão do prédio ocorreu antes do amanhecer. Em (19) o predicador nominal, o adjetivo inteligente, que tem como argumento o nome mulher, forma apenas o Sintagma Nominal a mulher inteligente (com a aposição do artigo definido a como especificador). 67 Esse Sintagma Nominal, por sua vez, é o argumento externo do predicador verbal intimida. A predicação formada em torno da forma verbal intimida é que constitui o núcleo da oração. Nesse caso, a forma verbal intimida é o predicador nuclear, enquanto o adjetivo inteligente é um predicador secundário. O mesmo ocorre na frase (20). O predicador nuclear é a forma verbal ocorreu, que seleciona, como argumento externo, o constituinte a implosão do prédio, sendo o constituinte antes do amanhecer um adjunto, que trás a informação de quando ocorreu o evento referido pelo verbo. Porém, esses dois constituintes, o argumento e o aposto, contêm, cada um, uma predicação secundária. O nome implosão requer um argumento interno, do prédio (que a tradição gramatical classifica como complemento nominal), o que representamos assim: [N __]. O advérbio antes também necessita de um argumento interno, do amanhecer, que a tradição gramatical também classifica como complemento nominal e pode ser representado pela mesma notação: [N __]. Chamamos a atenção para o fato de que nesses casos, o predicador nominal seleciona um argumento interno, que fica à direita do predicador, e não um argumento externo, que fica à esquerda do predicador, como no caso do adjetivo inteligente. 67 Cf. capítulo anterior. 69 3. Predicações Nominais Os predicadores não verbais, ou seja, as palavras relacionais que não são verbos, denominadas predicadores nominais, podem pertencer a qualquer uma das seguintes classes de palavras: adjetivos, nomes, advérbios e preposições. Qualquer uma dessas palavras pode ser um predicador nuclear, ligando-se ao seu argumento externo por meio de um verbo de ligação, como exemplificado abaixo: (21) Ele é capaz de tudo. (22) Eu sou a cura de todos os males. (23) João está longe de casa. (24) Luísa é contra a sua proposta. Sintagmas Nominais e Sintagmas Preposicionados também podem funcionar como predicadores nominais, como exemplificado, respectivamente, abaixo: (25) João é meu primo de segundo grau. (26) Maria está em estado choque. A tradição classifica os predicadores nominais nucleares como predicativos do sujeito, sendo o sujeito o argumento externo do predicador nominal. 3.1. Estrutura sintática das predicações nominais É mais comum que os adjetivos e nomes possam atuar como predicadores nucleares – cf. respectivamente (21) e (22), acima. Já os advérbios e as preposições que podem atuar como predicadores nucleares – cf. respectivamente (23) e (24), acima – são raros. Quando são predicadores, advérbios e preposições formam normalmente predicações secundárias. Por outro lado, chamamos a atenção para o fato de que, nas frases (21) a (24) acima, os predicadores nominais selecionarem tanto um argumento externo, quanto um argumento interno, o que representamos com a seguinte notação: [ __ N __ ]. Portanto, os predicadores nominais podem ter uma das seguintes configurações: (27) [ __ N ] (28) [ N __ ] (29) [ __ N __ ] Os adjetivos e os nomes, como já dissemos, formam mais comumente a predicação do tipo [ __ N ], exemplificada assim: 70 (30) Maria ficou nervosa. (31) João já é pai. Os adjetivos e nomes que selecionam um argumento interno são minoritários: (32) Maria está consciente disso. (33) Esta é a resposta às suas críticas. Nesses casos, os adjetivos sempre têm dois argumentos – [ __ N __ ], seja ele um predicador nuclear – como em (32) –, seja ele um predicador secundário – como em (34) abaixo. Já os nomes que selecionam um argumento interno podem receber também um argumento externo, numa predicação nuclear – como em (33) –, ou só selecionar um argumento interno – [ N __ ] –, como em (35) abaixo, quando funcionam como predicadores secundários. (34) Ele assumiu uma posição favorável à sua. (35) Todos desejam a superação desse impasse. Já os advérbios e as preposições, quando são predicadores, normalmente só selecionam um argumento interno – [ N __ ] –, funcionando como predicadores secundários, como nos exemplos abaixo: (36) Pedro chegou depois do chefe. (37) Maria assumiu essa posição perante os colegas. 3.2. Estrutura semântica das predicações nominais Semanticamente, uma predicação nominal, em princípio, une um termo qualificado – o argumento, que a tradição gramatical denomina sujeito de um predicado nominal – a um termo qualificador, o predicador nominal – que a tradição gramatical denomina predicativo do sujeito. Tomemos como exemplo as frases abaixo: (38) João é professor. (39) Maria está muito irônica. (40) Gilda continua debilitada. Nas frases acima, o predicador nominal atua como termo qualificador, atribuindo uma condição, uma qualidade ou um estado ao termo qualificado, o seu argumento externo. Nesses casos, a predicação nominal pode ser definida como uma predicação atributiva. Não sendo um predicador, mas apenas o elemento gramatical que expressa os valores da categoria tempo, modo e aspecto, o verbo de ligação não impõe qualquer 71 restrição semântica ao argumento externo (o sujeito), no que diz respeito, por exemplo, aos traços [+/- concreto] ou [+/- humano]: (41) Maria é morena. (42) Esta cadeira é confortável. (43) Esse raciocínio é metafórico. Ou seja, o termo que restringe a seleção semântica do argumento, numa predicação atributiva, é o predicador nominal. Em (41), o adjetivo morena seleciona um argumento com o traço semântico [+humano]; já em (42) o adjetivo confortável requer um argumento externo com o traço semântico [-animado]; e em (43), o adjetivometafórico só é compatível com um argumento com o traço [-concreto]. A incompatibilidade semântica entre o predicador nominal e seu argumento externo explica a agramaticalidade das frases abaixo: 68 (44) *Maria é confortável. (45) *Esta cadeira é metafórica. (46) *Esse raciocínio é moreno. O fato de o verbo de ligação não atuar como um predicador não significa que esse elemento gramatical não tenha um conteúdo semântico próprio, como veremos a seguir. 3.3. Propriedades essenciais e propriedades acidentais Em português, os verbos de ligação, por excelência, são os verbos ser e estar. Essa oposição lexical entre os verbos ser e estar permite a distinção entre propriedades essenciais e acidentais: (47) Maria é inteligente. (48) Maria está cansada. O verbo ser é usado para atribuir uma qualidade que faz parte da própria condição do ser, da essência do indivíduo – como em (47). Já o verbo estar é usado para atribuir a um indivíduo um estado passageiro, transitório – como em (48). Isso permite uma distinção como a apresentada a seguir, que não é possível em muitas línguas: 69 68 Como dito na apresentação deste livro, a análise aqui desenvolvida se restringe, no que concerne aos seus aspectos semânticos, ao plano denotativo da linguagem. A liberdade criativa da linguagem poética, não permite uma verificação rigorosa das hipóteses sobre as restrições semânticas da língua. 69 Em inglês, por exemplo, só há um verbo de ligação, o verbo to be. Assim, às duas frases em português corresponde uma única forma possível em inglês, expressa abaixo, que pode assumir um valor semântico ou outro, consoante o contexto em que a frase é proferida, ou seja, pragmaticamente: (1) Mary is sick. 72 (49) Maria é doente. (50) Maria está doente. Em (49) a doença é uma condição permanente e característica da pessoa, ao passo que em (50) é um estado transitório. 3.4. Outros verbos de ligação Outros verbos podem funcionar como verbos de ligação, expressando uma informação aspectual (de duração, reiteração, etc): (51) João continua doente. (52) João anda nervoso. O emprego desses verbos como formas palavras gramaticais se distingue, nos planos semântico e sintático, do valor que esses verbos assumem quando são usados como palavras lexicais, ou seja, como predicadores verbais plenos: (53) João andou muito ontem. (54) João continuou o trabalho do seu antecessor. 3.5. Predicações nominais equitativas Para além das predicações nominais atributivas, de que vimos tratando até aqui, existem as chamadas predicações nominais equitativas, nas quais, ao contrário do que ocorre nas predicações nominais atributivas, não há propriamente um termo qualificado e um termo qualificado, de modo que os dois termos da equação se equivalem e podem se alternar nessas funções, como se vê nos seguintes exemplos: (55) A causa do acidente foi a falta de manutenção. A falta de manutenção foi a causa do acidente. (56) Joaquim é o melhor aluno da turma. O melhor aluno da turma é o Joaquim. Nos exemplos acima, a inversão dos termos não implica qualquer alteração na entoação da frase, diferentemente do que ocorre em uma predicação nominal atributiva: (57) A Maria está doente. Doente está a Maria. Nesse caso, a inversão dos termos, com o termo qualificador vindo antes do termo qualificado, é necessariamente acompanhada de uma alteração da entoação da frase, que assume um valor contrastivo, de ênfase, como ocorre num diálogo do tipo: 73 - O João está doente. - Não, doente está a Maria. 3.6. Predicações nominais sem argumento Há frases em que a predicação nominal ocorre sem que o predicador nominal selecione um argumento externo, o que se enquadra no que a tradição gramatical denomina como orações sem sujeito: (58) Era inverno. (59) Já são três horas da tarde! (60) Foi no tempo da colheita. Como podemos ver nos exemplos acima, a predicação nominal sem argumento ocorre em frases que se referem a épocas, estações do ano, datas ou horários. Mas é possível que esse tipo de frase também ocorra em comentários genéricos sobre uma situação em que o falante se encontra: (61) É complicado. (62) Está difícil. Nesses casos, podemos assumir que a predicação nominal também não contém argumento. 3.7. Concordância verbal nas predicações nominais Normalmente o verbo concorda com o argumento externo (o sujeito), em pessoa e número – cf. exemplo (63) abaixo –, contudo, nas predicações nominais, o verbo de ligação ser pode concordar com o predicador nominal (o predicativo do sujeito), quando este vem no plural, como ocorre em (64): (63) Tudo está em ordem. (64) No início, tudo são flores. 3.8. Formas alternativas dos predicadores nominais Os predicadores nominais podem vir na forma de uma expressão preposicionada ou serem introduzidos pela conjunção como: (65) Maria está de cama. (66) O João era como um irmão pra mim. 74 4. Predicações Verbais As predicações verbais são as mais frequentes na língua e podem assumir uma das seguintes configurações: (67) [ V ] (68) [ V __ ] (69) [ __ V ] (70) [ __ V __ ] (71) [ __ V __ __ ] Cada uma dessas cinco possíveis configurações da predicação verbal na língua pode ser exemplificada, respectivamente, da seguinte maneira: (72) Choveu muito ontem. (73) Havia três pessoas na sala, no momento da explosão. (74) João trabalha muito. (75) Maria escreveu um belo poema. (76) José entregou o envelope ao funcionário. As configurações apresentadas acima definem o que denominamos estrutura argumental do verbo. A definição da estrutura argumental é parte da especificação gramatical de cada verbo da língua. Semanticamente, os verbos que têm a estrutura argumental representada em (67) – [ V ] –, expressam um fenômeno da natureza. Já os verbos que têm a estrutura argumental (68) – [ V __ ] –, têm, normalmente um valor existencial. Já os verbos que têm uma das estruturas argumentais representadas em (69), (70) e (71) expressam, normalmente, um processo orgânico ou psicológico ou uma ação. 4.1. Predicações verbais sem argumento [ V ] Nas frases que se referem a fenômenos meteorológicos – com representação em (67) e exemplo em (72) acima –, o verbo reporta o processo em si, sem qualquer actante que pudesse ocupar a posição de argumento. Nesse caso, o verbo não é propriamente um predicador, mas não deixa de desencadear o processo sintático que forma uma frase/oração na língua, que a tradição gramatical denomina oração sem sujeito. Em certas línguas, como o inglês e o francês, um pronome ocupa a posição sujeito: (77) It’s raining. 75 Está chovendo. (78) Il pleut. Chove. Mas não se trata, a rigor, de argumento externo do verbo, mas da expressão gramatical da categoria de pessoa do discurso, o que é necessário para tornar a frase gramatical. No português, a forma verbal da 3ª pessoa do singular (a forma da não pessoa) expressa o valor negativo dessa categoria, ou seja, a forma impessoal do verbo. No inglês e no francês, como o verbo praticamente não se flexiona em número- pessoa, 70 é necessário colocar sempre um pronome para indicar o valor dessa categoria gramatical. Esses pronomes (it e il) são partículas expletivas (ou pronomes expletivos), isto é não têm valor referencial (ou informacional), têm apenas um valor gramatical. 4.2. Predicações existenciais [ V __ ] A representação (68), exemplificada em (73), remete às predicações existências canônicas, nas quais o verbo seleciona apenas um argumento interno. A forma canônica do verbo existencial em português é o verbo haver, contudo, no Brasil, o verbo ter comumente assume essa função: (79) Tinha três pessoas na sala, no momento da explosão. A tradição gramatical também classifica essas orações como oração sem sujeito, sendo o verbo existencialum verbo impessoal, que não deve concordar com seu argumento interno, devendo permanecer sempre na 3ª pessoa do singular – a forma do verbo não marcada para a categoria pessoa do discurso. 71 Porém, é comum no português do Brasil a construção de frases em que o verbo existencial concorda com o que seria o seu argumento interno: (80) Haviam três pessoas na sala, no momento da explosão. Nesse caso, fica em questão o estatuto do constituinte três pessoas, pois o verbo só concorda com o argumento externo, não com o argumento interno. Poder-se-ia 70 As marcas de pessoa e número que aparecem na escrita do francês não têm, na maioria das vezes, correspondência na linguagem falada. 71 Em inglês, a posição de sujeito, nesses casos, é preenchida por uma partícula locativa – there (lá) –, e o verbo existencial to be (ser) concorda com o argumento interno (cf. tradução abaixo): (1) There were three people in the room at the moment of the explosion. Em francês, a posição de sujeito também preenchida pelo mesmo pronome il, que aparece nas frases que se referem a fenômenos meteorológicos, acompanhado da partícula locativa y: (2) Il y avait trois personnes dans la salle au moment de l'explosion. 76 invocar o paralelo com outra predicação existencial da língua, constituída com o verbo existir. Nesse caso, a tradição recomenda a concordância do verbo com seu argumento: (81) Ainda existem muitas coisas sem explicação na ciência. As predicações existenciais com o verbo existir ficam na fronteira entre as predicações com apenas um argumento interno – [ V __ ] – e as predicações com apenas um argumento externo – [ __ V ]. Essa alternância se verifica em outras estruturas da língua, como as frases com o verbo fazer que se referem ao tempo meteorológico ou ao tempo decorrido: (82) Fez muito calor ontem. (83) Faz dois anos que ele partiu. De acordo com o padrão normativo do português, o verbo fazer deve assumir, nessas construções, a forma impessoal da 3ª pessoa do singular. Porém, no uso corrente da língua, o verbo concorda com o constituinte que o segue, o que apontaria para uma estrutura argumental do tipo [ __ V ], com a posposição do argumento externo, o sujeito: (84) Fazem dois anos que ele partiu. O contrário ocorre com o verbo dar também usado com referência ao tempo. A normatização gramatical recomenda a concordância com argumento, o que pressupõe a estrutura argumental [ __ V ] com a posposição do sujeito: (85) Já deram três horas. Contudo, é comum o emprego do verbo dar nesse contexto com valor impessoal – como no exemplo abaixo –, o que apontaria para a estrutura argumental [ V __ ]: (86) Já deu três horas. Esses casos só vêm a reforçar a ideia de que as fronteiras entre as construções predicativas [ V __ ] e [ __ V ] não são muito nítidas, na estrutura gramatical da língua. 4.3. Predicações com apenas um argumento externo [ __ V ] Os verbos que selecionam apenas um argumento externo podem ser divididos em dois grupos: os verbos agentivos – exemplificados em (87) – e os verbos não- agentivos 72 – exemplificados em (88): (87) João trabalhou muito. (88) Um paciente morreu ontem. 72 Denominados verbos inacusativos no âmbito da Gramática Gerativa. 77 Verbos como trabalhar selecionam um argumento que é o agente da ação, ou seja, o indivíduo efetivamente pratica a ação de trabalhar, trata-se de um ato voluntário. Já verbos como morrer selecionam um argumento que não é o agente da ação, mas que designa o ser que é a sede de um processo orgânico ou psicológico, denominado experienciador. A tradição gramatical classifica indistintamente toda essa classe de verbos como verbos intransitivos (ou seja, que não selecionam um argumento interno), mas há diferenças que justificam a subdivisão dessa classe de verbos monoargumentais em duas subclasses distintas. Em algumas línguas, como o francês e o italiano, que expressam o passado concluído (pretérito perfeito) através de uma locução verbal – denominada passado composto –, o auxiliar empregado junto aos verbos agentivos é o haver – cf. exemplos em (89) –, enquanto que o auxiliar utilizado com os verbos não- agentivos é o verbo ser – cf. exemplos em (90): (89) Jean a travaillé beaucoup. Giovanni ha lavorato molto. (90) Un patient est mort hier. Un paziente é morto ieri. No português brasileiro, os sujeitos dos verbos não-agentivos tendem a ser pospostos ao verbo, sem que ocorra a concordância verbal: (91) Até agora só apareceu três candidatos. Assim, os verbos não-agentivos aproximam-se do verbo existencial existir e ficam no espaço indistinto da fronteira entre as predicações [ __ V ] e [ V __ ], já referido acima 4.4. Predicações com um argumento externo e um interno [ __ V __ ] Os verbos com essa estrutura argumental são os mais numerosos na língua. Nesses casos, o verbo pode se ligar diretamente ao seu argumento interno, sendo denominado pela tradição gramatical verbo transitivo direto – cf. exemplo (92) –, ou a ligação entre o verbo e seu argumento interno pode ser feita por meio de uma preposição, o que tradição gramatical denomina verbo transitivo indireto – cf. exemplo (93), em que o argumento interno ajuda é regido pela preposição de: (92) Maria comeu o bolo todo. (93) João precisa de ajuda. 78 Incluímos nessa classe os chamados verbos de movimento – cf. exemplos em (94) –, que a tradição gramatical classifica como verbos intransitivos e a Gramática Gerativa classifica como verbos inacusativos. (94) Luísa foi ao teatro. Maria saiu de casa ontem. João ainda não chegou em casa. Assumimos que os verbos de movimento têm a estrutura argumental [ __ V __ ], em função de sua carga semântica: (i) quem vai, vai a algum lugar; (ii) quem chega, chega em algum lugar; (iii) quem sai, sai de algum lugar; e assim por diante. 73 Por fim, vamos chamar a atenção para os verbos de posse e os verbos locativos, exemplificados, respectivamente, em (95) e (96): (95) João tem dois irmãos. (96) Três pessoas estavam na sala, no momento da explosão. Semanticamente, esses verbos se aproximam dos verbos existenciais, tanto que as frases acima podem ser parafraseadas, respectivamente, da seguinte maneira: (97) Há duas pessoas no mundo que são irmãs do João. (98) Havia três pessoas na sala, no momento da explosão. Ou seja, ter um irmão não implica o ato de possuir. É possível que a pessoa nem tenha consciência da existência de um irmão seu. Do mesmo modo, o verbo estar em (96) indica mais a existência do que o ato de estar em algum lugar. Há, entretanto, frases em que esses verbos de posse e locativos têm uma carga semântica mais condizente com a dos verbos transitivos, como nos exemplos abaixo: (99) João tem uma casa de praia. (100) Dois alunos ficaram na sala, após o fim da aula. Em (99), o verbo ter refere-se ao ato consciente e voluntário de possuir alguma coisa; assim como o verbo ficar, em (100) expressa a ação consciente e voluntária de permanecer em um lugar. Portanto, os verbos de posse e locativos, ora exibem uma natureza semântica de verbo transitivo, ora exibem uma natureza semântica de verbo existencial. 73 A relação entre a carga semântica do verbo e sua estrutura argumental será tratada na subseção 4.6. abaixo. 79 4.5. Predicações com um argumento externo e dois argumentos internos [ __ V __ __ ] Por fim, o predicador verbal pode selecionar um argumento externo e dois argumentos internos (sendo classificados como verbos transitivos diretos e indiretos ou verbos bitransitivos), exibindo a seguinte estrutura argumental: [__ V __ __ ]. Nessa predicação, o primeiro argumento interno liga-se diretamente ao verbo sem a interveniência de uma preposição, ao passo queo segundo argumento interno tem de ser regido por uma preposição. Nas estruturas em que o segundo argumento expressa o destinatário da ação verbal, a preposição tradicionalmente empregada na língua é preposição a; sendo que, no português brasileiro, é crescente a substituição dessa preposição pela preposição para nesse contexto. Esse grupo, por sua vez, se divide em dois subgrupos. O primeiro é constituído pelos verbos dativos, tais como: dar, doar, entregar, fornecer etc. O segundo grupo é constituído pelos verbos discendi: dizer, contar, relatar, pedir etc. Esses dois subgrupos podem ser exemplificados, respectivamente, com as seguintes frases: 74 (101) João entregou o documento ao / para o funcionário. 75 (102) Luísa disse a verdade aos / para os pais. Por outro lado, há estruturas na língua que são simetricamente opostas a essas, exemplificadas em frases do tipo: (103) O meliante tomou o doce da criança. (104) O menino ouviu bons conselhos do avô. Nesses casos, o segundo argumento vem sempre regido pela preposição de. Há ainda as predicações com três argumentos, em que o segundo argumento interno tem um valor locativo, pois o processo verbal se refere ao ato de colocar alguma coisa em algum lugar. Fazem parte desse grupo verbos tais como: pôr, colocar, depositar, inserir, etc. A frase abaixo é um exemplo dessa predicação: (105) Maria pôs a chave na gaveta. 74 Como uma variante do primeiro grupo, temos ainda as frases formadas com verbos como dedicar, devotar, etc; em que o destinatário pode ser uma causa ou uma atividade fim, como podemos ver nos exemplos abaixo: (1) Dedicou sua vida à luta pela liberdade. (2) João dedica todo tempo livre ao estudo. 75 Para uma melhor visualização, os argumentos internos virão sublinhados a partir de agora. 80 Nesses casos, o segundo argumento vem sempre regido pela preposição em. Para esse tipo de predicação também há uma construção invertida, com o segundo argumento sendo igualmente regido pela preposição de: (106) João tirou a chave do bolso. O segundo argumento com valor locativo pode ser regido também pela preposição a/para, em frases do tipo: (107) A enfermeira conduziu o paciente à sala de radioterapia. (108) Um carro-forte transportou o dinheiro do pagamento para a sede da empresa. Com esse tipo de verbos, o segundo argumento, ao invés de ter um valor locativo, pode representar o destinatário do processo verbal: (109) Joana levou a encomenda a /para os avós. Há ainda os casos de predicação com dois argumentos internos em que o segundo argumento vem regido pela preposição com: (110) A menina dividiu o lanche com os colegas. (111) Vou falar do seu caso com o diretor. No plano semântico, o segundo argumento dessas predicações tem caráter semelhante ao das predicações dativas, ou seja, representam o DESTINATÁRIO ou o BENEFICIÁRIO do processo expresso pelo verbo. Por fim, há os casos das predicações de verbos, como trocar e preferir, que subcategorizam dois argumentos internos que têm ambos o papel temático de TEMA, 76 como se pode vernos exemplos abaixo: (112) João trocou a camisa por uma bermuda. (113) Normalmente, preferimos o sofrimento ao desconhecido. Nesses casos, o processo verbal envolve duas coisas, seja a troca de uma coisa por outra, seja a preferência de uma coisa por outra. No segundo contexto, a relação de preferência pode ser reforçada com uma expressão que constitui uma locução prepositiva, como exemplificado abaixo: (114) Escolheu o mais novo em detrimento do mais velho. Portanto, podemos sumarizar essa subseção, afirmando que os verbos com dois argumentos internos se distribuem pelas seguintes equações semânticas: 1. dar/dizer alguma coisa a/para alguém 76 Os papeis temáticos assumidos pelos argumentos do predicador verbal serão tratados com mais detalhes, no próximo capítulo. 81 2. colocar algo/alguém em algum lugar // levar algo/alguém a/para alguém/algum lugar 3. dividir/falar algo com alguém 4. trocar uma coisa por outra // preferir uma coisa à outra As duas primeiras equações têm suas contrapartidas invertidas em estruturas que expressam os processos de: 1a. tirar alguma coisa de alguém // ouvir alguma coisa de alguém 2a. retirar/trazer algo/alguém de algum lugar Nas predicações 1 e 3, o verbo expressa um processo de transmissão de uma coisa de um ente para outro (algo que alguém dá a outrem, ou algo que alguém diz a outrem), sendo o primeiro argumento interno do verbo um constituinte nominal não preposicionado que se refere a coisa transmitida, e o segundo argumento interno, um constituinte nominal preposicionado, que se refere aquele a quem a coisa é transmitida, que pode ser pessoa ou instituição. Na predicação 2, o verbo expressa um processo em que uma coisa é posta em algum lugar, ou uma pessoa é conduzida a algum lugar; o agente do processo (aquele que põe ou conduz) é expresso pelo argumento externo do verbo; o primeiro argumento interno, um Sintagma Nominal que se liga diretamente ao verbo sem a interveniência de uma preposição, expressa a coisa posta ou a pessoa conduzida; o segundo argumento interno, um sintagma preposicionado, refere-se ao lugar em que a coisa é posta ou ao qual a pessoa é conduzida. Por fim, na predicação 4 o verbo expressa um processo que envolve duas coisas ou entes distintos, numa relação de permuta ou preferência. 4.6. Especificação semântica da estrutura argumental dos verbos A estrutura argumental do verbo é determinada pela carga semântica desse verbo e diz respeito à ação ou processo do mundo real a que ele se refere. Essa especificação semântica, que determina a estrutura argumental do verbo, faz parte da competência linguística de qualquer falante nativo da língua, de modo que qualquer falante sabe intuitivamente a estrutura semântica de cada verbo de sua língua nativa, como exemplificado abaixo: Verbo nevar: neva. Verbo existir: existe algo. 82 Verbo derrubar: alguém/algo derruba alguém/algo. Verbo doar: alguém doa algo a alguém. Assim sendo, muitos verbos restringem semanticamente os seus argumentos. Por exemplo, verbos como ver, pensar, escrever, discordar, entre muitos outros, só aceitam como argumento externo um ser vivo, como se pode contatar nos exemplos abaixo: 77 (112) Maria viu o acidente. *A ambulância viu o acidente. (113) João só pensa na namorada. *A pedra só pensa na chuva. (114) João já escreveu o requerimento. *A cadeira escreveu uma carta. (115) O vendedor discordou do gerente. *A árvore discordou da Maria. Essa especificação contida no significado referencial do verbo determina a seleção semântica dos elementos nucleares da estrutura sintática da oração. 4.7. Variação na estrutura argumental dos verbos Em princípio, cada verbo teria somente uma estrutura argumental, definida em função de seu conteúdo semântico. Contudo há alguns verbos que admitem mais de uma estrutura argumental. Tal é o caso de verbo falar e tratar, como se pode ver nos exemplos abaixo: (116) Maria já falou com o João. (117) O professor falará hoje sobre o Modernismo. (118) Ontem a Maria falou de você (com o diretor). (119) Você deveria tratar esse ferimento com mais cuidado. (120) Os membros do júri não trataram do seu caso. (121) Vou tratar do seu problema com o diretor. Muitos verbos que a tradição normativa recomenda que sejam usados com um argumento interno regido pela preposição a, são usados normalmente como transitivos diretos no português do Brasil, como se pode ver nos exemplos abaixo: (122) Mais de vinte mil pessoas já assistiram (a) esse espetáculo. 77 Cf. nota 19. 83 (123) Hoje em dia os filhos não obedecem mais (a)os pais. No geral, a variação naestrutura argumental de um dado verbo decorre da gama de significados distintos, porém relacionados, que esse verbo pode assumir, o que se chama polissemia. Tomemos como exemplo o verbo contar, que pode ser usado com os seguintes sentidos: (124) João não contou o dinheiro que recebeu do irmão. (125) A professora contou uma fábula para os alunos no início da aula. Em (124), o verbo contar tem o sentido de ‘computar’ e seleciona um argumento interno sem preposição; já em (125), tem o sentido de ‘narrar’ e seleciona dois argumentos internos. Assim, o espectro semântico do verbo pode determinar uma variação na composição de sua estrutura argumental. Além desses, há muitos casos em que o verbo pode admitir mais de uma estrutura argumental. O verbo escrever, por exemplo, pode ter a estrutura [ __ V __ ], quando se refere ao ato de escrever per se, ou estrutura [ __ V __ __ ], incluindo um destinatário em sua estrutura argumental, como exemplificado abaixo: (126) João está escrevendo suas memórias. João está escrevendo uma carta para a namorada. Portanto, o princípio de que cada verbo tem uma e apenas uma estrutura argumental, não é geral na língua. 78 4.8. Predicadores verbais que selecionam como argumento interno uma nova predicação Alguns verbos podem selecionar como argumento interno uma nova predicação. Nesses casos, a predicação encaixada como argumento interno do verbo da predicação principal pode ser de natureza nominal e verbal. 4.8.1. Verbos que selecionam como argumento interno uma predicação nominal Verbos que se referem ao ato de avaliar alguém ou alguma coisa selecionam uma predicação nominal como argumento interno, como podemos ver nos seguintes exemplos: (127) O tribunal julgou a ação improcedente. (128) João acha a Maria inteligente. 78 Essa questão será retomada adiante, na seção 8. 84 Além do argumento externo, esses verbos selecionam como argumento interno uma predicação nominal, o que pode ser representado pelo seguinte notação: (129) [ __ V [ __ N ] ] Na frase (127), o argumento externo da forma verbal julgou é o tribunal, já o argumento interno é composto pelo predicador nominal, o adjetivo improcedente, e seu argumento externo, a ação – o mesmo se aplica à frase (128). A tradição gramatical classifica o predicador nominal dessas orações como predicativo do objeto direto. Assim, os adjetivos improcedente e inteligente seriam os predicativos dos objetos diretos a ação e a Maria, respectivamente, em (127) e (128). A estrutura formada pelo predicador nominal (o predicativo do objeto) e o seu argumento (o objeto direto) constitui uma oração nominal reduzida. Assumimos que essas orações nominais são reduzidas, porque elas correspondem a orações nominais plenas, formadas com a introdução de um conectivo oracional (que) e um verbo de ligação: (130) O tribunal julgou que a ação era improcedente. (131) João acha que a Maria é inteligente. Nessa configuração, a oração como um todo constitui o argumento interno do verbo. Verbos causativos como fazer e tornar também podem selecionar uma predicação nominal como argumento interno: (132) João tornou a Maria feliz. (133) João fez a Maria feliz. Nesses casos, a oração nominal reduzida não pode ser desdobrada em uma oração plena: (134) *João tornou que a Maria seja feliz. (135) *João fez que a ficasse Maria feliz. Também verificamos uma variação na forma sintática dos termos da predicação nominal encaixada, podendo vir um dos termos regido por uma preposição: (136) João fez da Maria uma mulher feliz. (137) Eles transformavam lixo em mercadoria. O predicador nominal também pode vir precedido pela conjunção como: (138) A Maria vê o João como um bom partido. (139) Vamos tomar esta amostra como exemplo. 85 Isso também se verifica quando a predicação nominal constitui uma oração (cf. 3.8. acima): (140) Esses vizinhos eram como membros da família. 4.8.2. Verbos que selecionam como argumento interno outra predicação verbal Os verbos que podem selecionar como argumento interno outra predicação verbal se distribuem basicamente em dois grupos: os verbos perceptivos (ver, observar, escutar, surpreender, etc) e os verbos causativos (mandar, permitir, impedir, proibir, etc.), exemplificados respectivamente da seguinte maneira: (141) Uma testemunha viu o sequestrador entrando no prédio. (142) O professor mandou o João sair da sala. A estrutura argumental dessas frases pode ser representada esquematicamente da seguinte maneira: (143) [ __ V [ __ V __ ] ] 79 Assim, o verbo da predicação principal seleciona como argumento interno uma oração verbal reduzida, cujo verbo vem na forma do gerúndio – como em (141), em que o predicador verbal viu toma como argumento interno a oração reduzida de gerúndio o sequestrador entrando no prédio –, ou na forma do infinitivo – como em (142), em que o predicador verbal mandou toma como argumento interno a oração reduzida de infinitivo o João sair da sala. Como ocorre com as orações nominais reduzidas, essas orações verbais reduzidas também podem ser desdobradas em orações plenas, com a introdução do conectivo oracional e com a forma verbal se flexionando em tempo, modo e aspecto: (144) Uma testemunha viu que o sequestrador entrou no prédio. (145) O professor mandou que o João saísse da sala. Nesses casos também, a oração como um todo passa a ser o argumento interno do verbo da predicação principal. Com os verbos causativos, uma preposição pode reger a forma verbal da predicação encaixada: (146) O marido proibiu a Maria de trabalhar. 79 A estrutura argumental da predicação encaixada mudará consoante o verbo empregado: (1) Eu vi você nascendo. [ __ [ __ V] ] (2) A testemunha viu o acusado entregando um envelope ao policial . [ __ [ __ V __ __ ] ] Em (1), o verbo nascer só seleciona um argumento externo; já em (2), o verbo entregar seleciona um argumento externo e dois internos. 86 (147) O cardeal convenceu o sequestrador a se entregar. Nesses casos, alguns verbos admitem uma oração plena como complemento, outros não: (148) O marido proibiu que a Maria trabalhasse. (149) *O cardeal convenceu que o sequestrador se entregasse. 5. Predicações Verbo-nominais Para além das estruturas descritas em 4.8.1. acima, um predicador verbal se combina com um predicador nominal em estruturas do tipo: (150) João chegou em casa triste. Nesses casos, o predicador nominal não toma como argumento externo o objeto direto do verbo da predicação principal – como em 4.8.1. acima –, e sim o mesmo constituinte que já é o argumento externo do predicador verbal. Na frase (150), o nome João é argumento externo, tanto do verbo chegar, quanto do adjetivo triste. Assim sendo, a tradição gramatical classifica esse predicador nominal como predicativo do sujeito. Com base nisso, assumimos que, nessas estruturas, as predicações estão coordenadas, o que fica claro quando desdobramos a predicação nominal em uma oração plena: (151) João chegou em casa e estava triste. Em (151) temos duas orações coordenadas, e o argumento externo do predicador nominal triste é o pronome ele, não realizado foneticamente, mas que é sujeito da segunda oração. 87 Capítulo 4 Constituintes Oracionais Como vimos no capítulo anterior, os constituintes da oração são basicamente o predicador e seus argumentos, os adjuntos e o aposto. No caso das predicações verbais (as mais frequentes na língua), o verbo expressa um evento ou processo, e seus argumentos, os actantes desse evento ou processo. Os adjuntos acrescentam informações circunstanciais relativamente ao processo expresso pelo verbo; por outro lado, em outro nível, expressam um comentário geral sobre a proposição, ou a fonte dainformação contida na oração. O aposto é uma explicação que pode ser agregada a qualquer constituinte da oração. Semanticamente, os argumentos e os adjuntos adverbiais se distinguem da seguinte maneira. Os argumentos se referem a seres, coisas, fenômenos eventos e conceitos, ao passo que os adjuntos adverbiais dão informações relativas a lugar, tempo, modo, intensidade, causa etc. 80 Morficamente, os argumentos são constituídos por constituintes de natureza nominal, enquanto os adjuntos adverbiais por um constituinte de natureza adverbial. Uma dificuldade maior se coloca em face dos constituintes nominais preposicionados, que podem figurar, tanto como argumentos, quanto como adjuntos. Assim, a distinção entre argumentos e adjuntos nem sempre é fácil. Frases como (1) e (2) abaixo podem sugerir que os constituintes no comércio e com vendas sejam argumentos do verbo trabalhar, com base em raciocínios falaciosos, do tipo: quem trabalha, trabalha em algum lugar, ou quem trabalha, trabalha com alguma coisa. (1) João trabalha no comércio. (2) João trabalha com vendas. 80 Uma exceção são os complementos locativos, que serão tratados na subseção 1.2 deste capítulo. 88 Na verdade, o verbo trabalhar é normalmente intransitivo, isto é, não seleciona um argumento interno, apesar de que frases formadas somente por esse verbo e seu argumento (externo) sejam raras na língua, ocorrendo apenas em situações pragmaticamente bem específicas. Entretanto a naturalidade de frases, como (3), em que muito não pode ser obviamente tomado como argumento interno de trabalha – dado o seu caráter eminentemente adverbial –, revelam caráter predominantemente intransitivo do verbo trabalhar. (3) João trabalha muito. Em face desses problemas, vamos propor dois procedimentos analíticos, para distinguir os argumentos dos adjuntos. Em primeiro lugar, vamos tomar axiomaticamente a tipologia da predicação verbal apresentada na seção 4 acima, segundo a qual o verbo pode ter, no máximo, três argumentos – um externo e dois internos. Além disso, vamos propor o princípio da projeção estrita. Segundo esse princípio, a estrutura argumental de um verbo é definida por sua carga semântica essencial. Tomemos como exemplo a seguinte frase: (4) João fugiu do stress da cidade para a vida tranquila do campo. Como identificar o(s) argumento(s) dessa frase? Recorrendo à significação essencial do verbo fugir: quem foge, foge de alguém, ou de algo. Assim, os argumentos da frase (4) são: João e do stress da cidade. O constituinte para a vida tranquila do campo é um adjunto adverbial. Outro caso interessante é o de verbos como sentar(-se) e deitar(-se). Frases como (5) e (6) podem sugerir que esses verbos selecionam um argumento interno: quem senta, senta em algum lugar; quem se deita, se deita em algum lugar. (5) Maria sentou no chão mesmo. (6) João deitou-se no sofá, para descansar depois do almoço. Porém, vamos assumir aqui que a significação essencial desses verbos concentra-se no movimento de sentar e deitar, analogamente ao que ocorre com verbos como agachar(-se) e ajoelhar(-se). O local onde se senta ou se deita não integra o núcleo da carga semântica do verbo. Consequentemente, esses verbos devem ser classificados como intransitivos, e o constituinte locativo que eventualmente os acompanhar deve ser classificado como adjunto adverbial de lugar. Apesar da coerência e da consistência da adoção desses dois procedimentos analíticos, reconhecemos que não há na língua uma fronteira sempre nítida entre argumentos e adjuntos, devendo-se pensar sempre em um continuum, com uma zona de 89 interseção entre os dois conjuntos. Além disso, deve-se reconhecer também o fenômeno da flutuação na transitividade verbal, da qual falaremos agora. Verbos como trabalhar, correr e estudar são normalmente intransitivos como se pode ver nas frases abaixo: (7) João trabalha muito. (8) Maria estudou com Pedro ontem. (9) Luísa corre sempre pela manhã. Contudo, esses mesmos verbos podem selecionar um argumento interno em alguns contextos. Na frase (10) abaixo, nesse projeto é argumento interno de estou trabalhando. Podemos considerar de modo análogo, astronomia, em (11), e a Maratona de Nova York, em (12). (10) Estou trabalhando muito nesse projeto. (11) Maria vai estudar astronomia. (12) O João já correu a Maratona de Nova York. Se alguns verbos normalmente intransitivos podem funcionar eventualmente como verbos transitivos, o inverso também ocorre. Verbos como comer e beber são transitivos, ou seja, selecionam um argumento interno, o que é determinado por sua significação essencial: (i) quem como come alguma coisa; (ii) quem bebe, bebe alguma coisa. Isso pode ser exemplificado da seguinte maneira: (13) João comeu três pedaços do bolo. (14) Maria bebeu dois copos d’água. Porém, esses verbos são empregados frequentemente sem argumento interno em frase do tipo: (15) João come bem. (16) Maria quase não bebe. Nesse contexto, o verbo comer assume a significação de ‘alimentar-se’, e o verbo beber, a significação de ‘ingerir bebida alcoólica’. Portanto, ocorre uma flutuação na estrutura argumental de alguns verbos, no que concerne à seleção de seu argumento interno. Um fenômeno relacionado a isso é a ocorrência de falsos argumentos, exemplificados a seguir: (17) Os nativos dançavam uma dança frenética. (18) Naquela tarde chovia uma chuvinha rala. Nessas frases, os constituintes uma dança frenética e uma chuvinha rala apresentam-se como argumentos internos dos verbos dançar e chover respectivamente. 90 Entretanto, não obstante sua forma, esses constituintes têm um valor adverbial, como se pode ver nas paráfrases apresentadas abaixo: (19) Os nativos dançavam freneticamente. (20) Naquela tarde chovia ligeiramente. Em face disso, esses constituintes são classificados como falsos argumentos, pois têm forma de argumento, mas valor de adjunto adverbial. 1. Argumentos do verbo Os elementos que saturam a predicação verbal, os argumentos, dividem-se em: argumento externo e argumento(s) interno(s). O argumento externo é o primeiro que aparece na fórmula da predicação, antes do verbo. O(s) argumento(s) interno(s) figura(m) na fórmula da predicação, após o verbo. O verbo pode selecionar, no máximo, um argumento externo e dois argumentos internos. Na classificação sintática tradicional, o argumento externo corresponde ao sujeito do verbo, e os argumentos internos, aos objetos ou complementos verbais. A estrutura sintática composta pelo verbo e seus argumentos está intimamente relacionada ao conteúdo semântico que tal predicação expressa, numa relação estreita entre forma e conteúdo. Assim, podemos dizer a estrutura sintática formal, denominada estrutura argumental do verbo, está dialeticamente relacionada a seu conteúdo semântico, que pode ser formalizado através do que se denomina grade temática do verbo. Tomemos a seguinte frase como exemplo: (21) Ontem, na festa, João beijou Maria. Em sua estrutura argumental, o verbo subcategoriza o constituinte João como seu argumento externo, que desempenha a função sintática de sujeito; e o constituinte Maria como seu argumento interno, que desempenha a função de objeto direto, o que é formalizado em (22). No plano semântico, a grade temática do verbo beijar atribui o papel temático de AGENTE a João (aquele que pratica a ação expressa pelo verbo voluntariamente) e o papel temático de PACIENTE a Maria (aquele que sofre a ação expressa pelo verbo), o que é formalizado abaixo, em (23): (22) beijar [ ___SUJ V ___OD ] (23) beijar { AGENTE ____ PACIENTE } 91 A seguir, vamos descrever a função sintática e os papeis temáticos do argumento externo, na subseção 1.1.; e as funções sintáticas e os papeis temáticos do(s) argumento(s) interno(s), na subseção1.2. 1.1. Argumento externo Sintaticamente, no plano da estrutura argumental, o argumento externo desempenha a função sintática de sujeito, aquele constituinte que normalmente precede o verbo, especificando os traços de pessoa e número que, em línguas flexivas, como o português, o verbo deve exibir, flexionando-se adequadamente, no que a tradição gramatical denomina concordância verbal. Semanticamente, de acordo com a grade temática do verbo, o argumento externo pode designar o ente que, voluntária ou involuntariamente, desencadeia a ação ou o processo expresso pelo verbo, como exemplificado, respectivamente em (24) e (25) abaixo; mas pode designar também o ser que é sede de um processo psíquico ou fisiológico, como exemplificado em (26), ou ainda, excepcionalmente, o sujeito pode vir a se referir ao ente que sofre a ação expressa pelo verbo, como exemplificado em (27). (24) Maria escreveu um belo ensaio. (25) O calor derreteu a fiação. (26) Essa planta está murchando. (27) João apanhou dos colegas na escola. Como foi dito acima, essas diferentes formas como o ente referido pelo sujeito atua no processo ou ação expressa pelo verbo define o seu papel temático. 1.1.1. Papeis temáticos do sujeito Em (24) acima, o verbo escrever seleciona um argumento externo (Maria), ao qual atribui o papel temático de AGENTE, e um argumento interno (um belo ensaio), ao qual atribui o papel de TEMA – cf. representação da grade temática em (28). Em (25), o verbo derreter seleciona um argumento externo (O calor), ao qual atribui o papel temático de FONTE, e um argumento interno (a fiação), ao qual atribui o papel de PACIENTE – cf. representação da grade temática em (29). Em (26), o verbo murchar seleciona somente um argumento externo (Essa planta), ao qual atribui o papel temático de EXPERIENCIADOR – cf. representação da grade temática em (30). Em (27), o verbo apanhar seleciona um argumento externo (João), ao qual atribui o papel temático 92 de PACIENTE, e um argumento interno (os colegas na escola), ao qual atribui o papel de AGENTE – cf. representação da grade temática em (31). [Veja a definição dos papeis temáticos no BOX abaixo] (28) escrever { AGENTE ____ TEMA } (29) derreter { FONTE ____ PACIENTE } (30) murchar { EXPERIENCIADOR ____ } (31) apanhar { PACIENTE ____ AGENTE } Portanto, o argumento externo, o sujeito, pode assumir vários papeis temáticos, conquanto a tradição gramatical faça referência, no mais das vezes, ao papel de AGENTE da ação expressa pelo verbo. A diferença no papel temático do sujeito tem implicações na configuração da oração, o que reforça a relação entre o nível semântico e o nível sintático. Podemos destacar, por exemplo, que, nas orações com sujeito que recebe o papel temático de EXPERIENCIADOR, a inversão verbo-sujeito é mais frequente do que nas orações em que o sujeito recebe o papel temático de AGENTE, como se pode ver nas frases abaixo: (32) As crianças brincaram ontem no jardim. (33) Nasceram três crianças ontem, nesta maternidade. A inversão verbo-sujeito é mais natural na frase (33), cujo argumento externo três crianças tem o papel temático de EXPERIÊNCIADOR, do que seria em (32), cujo sujeito exerce a função de AGENTE do processo a que verbo se refere. Definição dos papeis temáticos desempenhados pelos argumentos do verbo A classificação dos argumentos verbais por papeis temáticos busca capturar a função do ente a que se refere cada argumento no processo expresso pelo verbo. Trata-se de uma classificação de base semântica, mas que tem implicações no plano da sintaxe. Há na literatura linguística, muitas propostas de classificação por papeis temáticos, que variam, tanto no número, quanto na definição dos papeis temáticos. Essa variação nas análises só reflete as dificuldades com que a análise linguística se depara no plano do significado. Em nossa análise, vamos adotar a seguinte lista de papeis temáticos: AGENTE, FONTE, EXPERIENCIADOR, TEMA, PACIENTE, DESTINATÁRIO e LOCATIVO. Abaixo, apresentamos uma definição sumária de cada papel temático assumido nesta análise, acompanhada de um exemplo. AGENTE Definição: refere-se ao ente que voluntariamente desencadeia o processo expresso pelo verbo; contém, em sua carga semântica, o 93 traço [+animado]. Exemplo: Maria comprou um vestido novo. FONTE Definição: refere-se ao ente que involuntariamente desencadeia o processo expresso pelo verbo; contém, em sua carga semântica, o traço [-animado]. Exemplo: O vento derrubou a barraca. EXPERIENCIADOR Definição: refere-se ao ente no qual ocorre um processo psíquico ou biológico expresso pelo verbo; contém, em sua carga semântica, o traço [+animado]. Exemplo: Meu gato de estimação adoeceu ontem. PACIENTE Definição: refere-se ao ente que atingido física ou psicolgicamente pelo processo expresso pelo verbo; pode ser um ser animado ou inanimado. Exemplo: João agrediu a Maria, ao final da reunião. TEMA Definição: refere-se ao ente ao qual o processo expresso pelo verbo se refere, sem ser afetado diretamente por esse processo; pode ser um ser animado ou inanimado. Exemplo: O João só pensa em dinheiro. DESTINATÁRIO 81 Definição: refere-se ao ente ao qual alguma coisa material ou verbal é transmitida; normalmente, contém, em sua carga semântica, o traço [+animado]. Exemplo: Maria já deu a ração aos animais. LOCATIVO Definição: refere-se ao local onde alguma coisa é posta ou para onde alguém é conduzido. Exemplo: Os enfermeiros já levaram o paciente para a sala de cirurgia. 1.1.2. A função sintática do argumento externo e concordância verbal Ainda no que concerne ao significado, mas já no plano da estrutura gramatical, o sujeito está associado à expressão da categoria gramatical pessoa do discurso. Essa categoria faz parte da programação linguística da espécie humana, ou seja, integra a 81 Na literatura linguística, esse papel temático também é denominado BENEFICIÁRIO. 94 Gramática Universal (GU), logo está presente, de alguma forma, na estrutura gramatical de qualquer língua humana. Em qualquer língua, a referência verbal a um processo específico deve estar associada a uma das pessoas do discurso: aquele que fala, ou primeira pessoa; aquele que ouve, ou segunda pessoa; ou um terceiro ente, externo à interação verbal, ou terceira pessoa. A categoria pessoa está associada à categoria número. Assim, temos: a primeira pessoa do plural, a referência ao falante e outra(s) pessoa(s); a segunda pessoa do plural, a referência aos ouvintes; e a terceira pessoa do plural, a referência a pessoas ou coisas que não estão interagindo no ato ilocutório. 82 A expressão dessa categoria gramatical pode-se dar por meio de um pronome que ocupa a posição de sujeito, ou por meio da flexão verbal, ou ainda por esses dois meios simultaneamente. O inglês e o chinês dispõem basicamente dos pronomes pessoais para dar essa informação na frase, já o espanhol e o italiano, usam precipuamente a flexão verbal, embora disponham também de pronomes pessoais sujeito. Situação análoga à dessas últimas é a que encontramos no português, fazendo com que a categoria de pessoa do discurso se expresse simultaneamente pela presença de um pronome sujeito e pela flexão verbal, como nas formas fixadas no período clássico da língua, conservadas até os dias atuais pela tradição gramatical e apresentadas no quadro a seguir: 1ª pessoa do singular eu trabalho 2ª pessoa do singular tu trabalhas 3ª pessoa do singular ele trabalha 1ª pessoa do plural nós trabalhamos 2ª pessoa do plural vós trabalhais 3ª pessoa do plural eles trabalham Nesse paradigma, o verbo assumia uma forma específica para cada pessoa do discurso (sendo a forma da 3ª pessoa do singular a forma não marcada, ou seja, a única que não exibe um morfema flexional paraindicar a informação de pessoa e número), 83 o que tornava dispensável a presença do pronome sujeito. O uso do pronome sujeito nos casos em que se quer enfatizar essa informação é uma característica de boa parte das línguas que evoluíram do latim (uma língua 82 Ver seção 4.2. do Capítulo 2. 83 Os morfemas flexionais das demais pessoas do discurso estão em negrito no quadro acima. 95 amplamente flexiva), como o espanhol e o italiano atuais. Situação semelhante é encontrada em Portugal, que mantém esse paradigma de flexão verbal, à exceção da 2ª pessoa do plural, em função da perda do vós e da forma verbal correspondente. Já é distinta a situação do português brasileiro, pois, para além do vós, o tu caiu em desuso em boa parte do território brasileiro e a forma a gente predomina sobre o nós na linguagem oral, na maioria das regiões do país. Como essas formas inovadoras – você(s) e a gente – se conjugam com as formas verbais não marcadas da 3ª pessoa, houve uma sensível redução na flexão verbal, como se pode ver no quadro abaixo: 1ª pessoa do singular eu trabalho trabalhava 2ª pessoa do singular você trabalha trabalhava 3ª pessoa do singular ele trabalha trabalhava 1ª pessoa do plural a gente trabalha trabalhava 2ª pessoa do plural vocês trabalham trabalhavam 3ª pessoa do plural eles trabalham trabalhavam Nesse paradigma, o verbo só incorpora dois morfemas flexionais, sendo que, a rigor, só a 1ª pessoa do singular dispõe de um morfema privativo, que só figura em dois tempos verbais – o presente do indicativo e o pretérito perfeito. Com essa configuração, o português brasileiro exibe um paradigma de flexão verbal “mais pobre” que o francês, uma língua românica em que a presença do pronome sujeito é obrigatória. Contudo, o português brasileiro ainda permite a construção de frases sem a presença do pronome sujeito, com exemplificado abaixo: (32) Fomos à praia ontem e nos divertimos bastante. Apesar de admitir frases com o chamado sujeito nulo, a frequência de emprego do pronome sujeito no português brasileiro é bem superior à observada nas demais línguas românicas que admitem a ausência do sujeito, como o italiano e o espanhol, bem como do português de Portugal. Com isso, os brasileiros, sobretudo na linguagem informal, não seguem o preceito da tradição gramatical de só empregar o pronome sujeito nos casos de ênfase. Na variedade popular da língua no Brasil, aquela empregada por boa parte da população que não tem acesso à escolaridade, o nível de emprego do mecanismo da concordância verbal é ainda muito baixo, sendo preservado somente, em relação à 1ª pessoa do singular, como se pode ver no quadro abaixo: 96 1ª pessoa do singular eu trabalho 2ª pessoa do singular tu trabalha 3ª pessoa do singular ele trabalha 1ª pessoa do plural nós trabalha 2ª pessoa do plural vocês trabalha 3ª pessoa do plural eles trabalha Pesquisas sociolinguísticas sobre a fala de comunidades rurais isoladas das regiões mais pobres do país (como a região nordeste) constataram que a frequência de emprego de formas verbais flexionadas (e.g., nós trabalhamos e vocês/eles trabalham) não passa de 20%. Ou seja, em cada dez frases produzidas por esses falantes, apenas em duas o mecanismo da concordância verbal se faz presente, embora a falta de concordância verbal, como exemplificado em (33) abaixo, sofra uma forte condenação social. (33) Nós pega os peixe. O estigma social que se abate sobre essas construções, típicas da linguagem popular brasileira, resultam de uma atitude discriminatória e preconceituosa, que não tem qualquer fundamento linguístico ou científico. Um paradigma flexional similar a esse é encontrado, por exemplo, na língua inglesa (como se pode ver no quadro comparativo abaixo), que é hoje o idioma mais valorizado no mundo. Nos dois paradigmas, somente uma pessoa tem uma marca flexional própria: no português popular do Brasil é a 1ª pessoa do singular (trabalho); no Inglês, a 3ª pessoa do singular (works). Se isso não compromete o poder de expressão da língua inglesa, nem a impede de ser veículo do saber formal, o mesmo se aplica ao português popular do Brasil. Português Popular Inglês eu trabalho I work tu trabalha You work ele trabalha He/she/it works nós trabalha We work vocês trabalha You work eles trabalha They work 97 O que ocorre é que as línguas humanas dispõem, basicamente, de dois mecanismos gramaticais para expressar a categoria de pessoa e número na oração: a flexão verbal e a presença do pronome sujeito. Como se pode ver no quadro abaixo, línguas como o italiano expressam essa informação gramatical através da flexão do verbo, o que inibe a presença do pronome sujeito, que acaba tendo nessas línguas um valor mais lexical, do que gramatical; já línguas como o inglês, expressam essa informação gramaticalmente através da presença obrigatória do pronome sujeito. Italiano Inglês lavoro I work lavori You work lavora He/she/it works lavoriamo We work lavorate You work lavorano They work Uma situação ainda mais idêntica ao do português popular do Brasil é a do chinês, que não tem flexão verbal de pessoa e número, e admite o sujeito nulo. Mais uma vez, essa característica estrutural da variedade linguística não constitui um óbice ao desenvolvimento, pois a China é o país que experimenta o maior nível de crescimento econômico no mundo contemporâneo. Portanto, no português brasileiro, a informação gramatical de pessoa e número pode ser dada, ora pela flexão verbal, ora pela presença de um pronome sujeito. E muitas vezes, sobretudo na comunicação oral, essa informação pode não ter uma forma gramatical na frase, sendo capturada pragmaticamente, pelas informações não verbais, sempre disponíveis na situação de interação verbal, ou por relações co-textuais que o ouvinte pode estabelecer, independentemente de uma sinalização linguística explícita na oração. 1.1.3. Sujeito não referencial Como vimos acima, o verbo pode não selecionar um argumento externo. É o que acontece com os verbos que indicam fenômenos meteorológicos (cf. seção 4.1. do capítulo anterior). Verbos como chover e ventar não requerem, em sua grade temática, 98 um AGENTE, ou, mais precisamente, uma FONTE, para o processo do mundo real a que se referem se desencadeie. A questão que se coloca, então, é se haveria uma posição para o argumento externo nesses casos. A observação de línguas como o inglês sugere que sim, na medida em que um pronome expletivo (it) ocupa a posição de sujeito nas orações com esses verbos, como exemplificado em (34) abaixo. Já no português brasileiro, essa posição tem de ficar obrigatoriamente vazia – cf. (35) –, sendo a presença de um pronome expletivo agramatical – cf. (36). 84 (34) It´s raining a lot. (35) Está chovendo muito. (36) *Ele está chovendo muito. Seria o caso de pensar na existência de um sujeito não referencial, que não teria uma forma fonética em algumas línguas, mas que teria em outras. Dessa forma haveria sempre uma posição argumental de sujeito na estrutura argumental do verbo – [ __ V ] – , mesmo no caso desses verbos, que não têm um sujeito referencial, para receber um papel temático. 85 Porém, adotaremos aqui uma interpretação formal distinta dessa. Manteremos a posição de que, na estrutura argumental dos verbos que indicam fenômenos meteorológicos e de verbos existenciais, como haver (cf. seção 4.2. do capítulo anterior), não há a posição de argumento externo, ou seja, de sujeito. A presença de uma partícula expletiva, aparentemente na posição de sujeito, em línguas como inglês, não passaria de uma expressão gramatical obrigatória da categoria de pessoa e número, não se podendo ver, a rigor, nessas marcas gramaticais, a expressão de um sujeito sintático. Tanto é assim que, em línguasem que a categoria de pessoa e número é expressa gramaticalmente pela flexão verbal, a posição de sujeito não pode ser preenchida. É o caso do português, língua em que esses chamados verbos impessoais (como chover e haver) devem vir sempre na 3ª pessoa do singular, que é, na verdade, a forma verbal não marcada para pessoa (cf. seção anterior). Portanto, ratificamos a formalização das estruturas argumentais dos verbos que indicam fenômenos meteorológicos e de verbos existenciais, apresentadas, respectivamente, nas seções 4.1. e 4.2. do capítulo anterior, quais sejam: [ V ] e [ V __ ]. Com isso, mantemos a devida simetria entre a grade temática e a estrutura argumental dos predicadores verbais. O 84 Em variedades dialetais de Portugal, é admitida a presença desse pronome expletivo, de modo que essa frase não seria agramatical nessas variedades dialetais portuguesas. 85 Essa é a posição assumida pela Gramática Gerativa. 99 verbo só abre uma posição argumental na estrutura sintática se atribui a essa posição um papel temático no plano da significação referencial. 1.1.4. Indeterminação do sujeito O constituinte que ocupa a posição do sujeito (assim como todos os constituintes que possuem um núcleo nominal) pode-se referir a indivíduos, como exemplificado em (37), ou a uma espécie, gênero ou classe de indivíduos, como exemplificado em (38): 86 (37) A Maria respeita muito o avô. (38) As pessoas devem respeitar os mais velhos. Gramaticalmente, o português dispõe de uma partícula o pronome se para expressar a indeterminação do sujeito – cf. exemplificado em (39) –, o que se denomina também sujeito de referência arbitrária. Para além do se, outros pronomes pessoais podem assumir essa referência genérica, para além da referência específica em que são normalmente empregados. Tal é o caso do você e do nós ou a gente, como se pode ver, respectivamente, nos exemplos (40) a (42): (39) Vive-se mais quando se vive com moderação. (40) Você sempre deve evitar conflitos desnessários. (41) Devemos respeitar os mais velhos. (42) A gente deve respeitar os mais velhos. As frases (39) a (42) não se referem a uma pessoa específica, mas aos seres humanos em geral. Em orações reduzidas que se articulam em torno de uma forma verbal não finita, como as em destaque nos exemplos (43) e (44), pode-se postular também a existência de um sujeito de referência arbitrária que não tem expressão fonética. 87 (43) Vivendo com moderação, vivemos mais. (44) É proibido fumar nesta sala. A língua é forma, portanto, em frases em que o se funciona como índice de indeterminação do sujeito (segundo a terminologia da tradição gramatical), podemos postular que o sujeito formal dessas orações é o pronome se, que assume aí o valor nominativo, em oposição ao valor acusativo que assume quando funciona como pronome reflexivo ou recíproco (cf. seção 1.2.5. abaixo). Nesses casos, o verbo vem 86 Ver seção 5.1. do Capítulo 2. 87 Esse sujeito recebe o rótulo PRO na análise gerativista, em oposição ao rótulo pro, atribuído aos sujeitos nulos de referência específica. 100 sempre na 3ª pessoa do singular, como ocorre em (39) acima. Porém, a gramática normativa postula que, com os verbos transitivos diretos, o se tem outro valor, o de partícula apassivadora, indicando que o verbo estaria na voz passiva. 88 De acordo com a análise tradicional, a frase (45) corresponderia à frase (46), sendo está última classificada como voz passiva analítica, enquanto aquela seria a voz passiva sintética. (45) Cumpriu-se o prazo estabelecido. (46) O prazo estabelecido foi cumprido Em face dessa correspondência entre as frases (45) e (46), o sujeito da oração (45) seria, não o se, mas o Sintagma Nominal o prazo estabelecido, assim como ocorre em (46). Com base nisso, a gramática normativa prescreve que o verbo deve concordar com esse constituinte, quando estiver no plural, como ocorre em (47): (47) Cumpriram-se todos os prazos estabelecidos no edital. Porém, essa análise não é consensual, mesmo na tradição gramatical. 89 E, se ela reflete a intuição de pelo menos uma parte dos falantes de alguma época pretérita da língua, hoje ela entre em flagrante conflito com a percepção da maioria dos usuários da língua no Brasil, mesmo os chamados cultos, que percebem o se sempre como índice de indeterminação do sujeito, mesmo com os verbos transitivos diretos, de modo que não fazem a concordância prescrita pela tradição normativa, como exemplificado em (48), que soa mais natural para os brasileiros do que a frase (47): (48) Cumpriu-se todos os prazos estabelecidos no edital. 1.2. Argumentos internos Na análise das orações formadas com verbos transitivos (aqueles que selecionam um argumento externo e um ou dois argumentos internos), uma questão que se põe é: com qual dos dois lados o verbo estabelece uma relação mais íntima? Com o argumento externo que o precede ou com o(s) argumento(s) interno(s) que a ele se segue(m)? Adotamos aqui a hipótese de que, no processamento sintático-semântico da oração, o verbo une-se primeiramente a seu(s) argumento(s) interno(s). Esse conjunto constituído pelo verbo e seu(s) complemento(s) forma uma unidade sintática que, por sua vez, se combina, em seguida, com o argumento externo, o sujeito do verbo. Isso fica 88 A voz passiva será tratada no próximo capítulo. 89 Gramáticos da estatura de um Said Ali, por exemplo, da primeira do século XX, opuseram-se a tal visão, defendendo que o se seria sempre índice de indeterminação do sujeito independentemente da transitividade do verbo. 101 claro, por exemplo, com um verbo como quebrar. Esse verbo define a sua significação através da relação com seu argumento interno, para depois selecionar um argumento externo. Ao combinar-se, por exemplo, com o SN o copo, o verbo assume um significado que requer um sujeito AGENTE, cf. exemplo (49). Mas, ao combinar-se com o SN a perna, o conjunto formado passa a requerer um sujeito EXPERIENCIADOR, cf. exemplo (50): (49) João quebrou o copo. (50) João quebrou a perna. Esquematicamente, a relação do verbo com seus argumentos pode ser representada, então, da seguinte maneira: (51) [ ___ [ V ___ ___ ] ] Esse fato é também percebido pela gramática tradicional, que define o argumento interno como complemento verbal, ou seja, o constituinte que completa o sentido do verbo. O sentido final do verbo só se atualiza na oração com a presença de seu(s) complemento(s), o que pode alterar até sua estrutura argumental, como ocorre, por exemplo, com o verbo contar. Na frase (52), o verbo contar tem o sentido de ‘computar’ e só seleciona um argumento interno; já na frase (53), o verbo assume o sentido de ‘narrar’, relacionando-se a dois argumentos internos. (52) João não contou o dinheiro. (53) João contou a verdade à Maria. Como já foi visto acima, quando o verbo seleciona apenas um argumento interno, este pode-se ligar diretamente ao verbo, ou vir regido por uma preposição. Quando o verbo seleciona dois argumentos internos, o primeiro normalmente liga-se diretamente ao verbo, enquanto o segundo vem regido por uma preposição. O papel temático assumido pelo argumento interno está parcialmente relacionado à sua posição sintática. 1.2.1. Os papéis temáticos dos argumentos internos Quando o verbo seleciona somente um argumento interno, este assume normalmente o papel temático de PACIENTE – cf. exemplo (54) – ou TEMA – cf. exemplo (55). No primeiro caso, o ente referido pelo argumento interno é diretamente afetado pela ação ou processo expresso pelo verbo, o que não ocorre quando o argumento interno tem o papel de TEMA (para uma definição dos papeis temáticos, veja-se o BOX acima). 102 (54) A ventaniadestelhou algumas casas. (55) João sonha com uma casa de praia. Uma outra relação interessante que se pode observar entre o nível semântico e o nível sintático decorre do fato de que, geralmente, os argumentos internos que têm o papel de PACIENTE (ou seja, no plano referencial, são afetados diretamente pela ação expressa pelo verbo) ligam-se diretamente ao verbo, enquanto os que têm o papel de TEMA (ou seja, não são diretamente afetados pela ação expressa pelo verbo) vêm regidos por uma preposição, não se ligam diretamente ao verbo também no plano da forma. As correntes funcionalistas da análise linguística contemporânea buscam explicar essa relação por meio do princípio da iconicidade, segundo o qual haveria uma relação direta entre forma e sentido na estruturação da língua. A preposição serviria para expressar a relação indireta do objeto com a ação verbal; já sua ausência expressaria melhor a forma como a ação verbal afeta o ente referido pelo argumento interno. Porém, trata-se apenas de uma tendência geral, que admite muitas exceções, como se pode ver nas frases abaixo: (56) João bateu na Maria. (57) Eu imaginei outra coisa. Em (56), o argumento interno tem o papel temático de PACIENTE, pois é diretamente afetado pela ação expressa pelo verbo, porém é regido pela preposição em. Já em (57) ocorre o contrário, o argumento interno, que não é afetado pela ação verbal, assumindo o papel de TEMA, liga-se diretamente ao verbo. Mais raramente, o argumento interno pode assumir o papel temático de FONTE – cf. exemplo (58) –, ou até mesmo AGENTE – cf. exemplo (59). Em ambos os casos, esse argumento vem regido por uma preposição. (58) A radiação está emanando do reator da usina. (59) O vizinho apanhou da mulher ontem. Quando o verbo seleciona dois argumentos internos, em uma estrutura dativa ou discendi, o primeiro argumento assume normalmente o papel de TEMA, enquanto o segundo, o papel de DESTINATÁRIO, tendo como referência, normalmente, seres humanos, como exemplificado abaixo: 90 (60) João deu uma rosa à namorada. (61) O avô contava histórias para as crianças. 90 Todas as possíveis configurações dos verbos que selecionam dois argumentos internos são apresentadas na seção 4.5. do capítulo anterior. 103 Por fim, os verbos de movimento selecionam um argumento interno que expressa um lugar, como exemplificado em (62), nesses casos o argumento interno assume o papel temático LOCAL. Esse também é o papel temático do segundo argumento dos verbos do campo semântico de pôr ou de conduzir, que selecionam dois argumentos, como exemplificado em (63): (62) Luísa viajou para São Paulo ontem. Não passamos por Itabuna ainda. Maria foi à padaria logo cedo. (63) Coloque sempre as chaves nesta gaveta. Vou levar você pra casa. Portanto, considerando todos os papeis temáticos que os argumentos internos podem assumir, podemos pensar que a relação entre o conteúdo semântico (papel temático) e a forma (estrutura sintagmática – Sintagma Nominal ou Sintagma Preposicionado) dos argumentos internos poderia ser explicada por outro princípio distinto do princípio da iconicidade – o princípio da economia. Como o papel temático mais comum do argumento interno é o de PACIENTE , essa seria, normalmente, a forma não marcada (sem preposição). Ao assumir papeis temáticos menos frequentes (particularmente, os papeis de FONTE, AGENTE, DESTINATÁRIO e LOCAL), o argumento interno viria marcado por uma preposição. 1.2.2. Funções sintáticas dos argumentos internos Na estrutura dativa ou discendi, o primeiro argumento, que se liga diretamente ao verbo e tem o papel de TEMA, desempenha a função de objeto direto (OD) do verbo; o segundo argumento, o DESTINATÁRIO, regido pela preposição a ou para, a função de objeto indireto (OI), como exemplificado acima em (60) e (61), e representado pelo seguinte esquema: (64) dar contar etc [ ___SUJ V ___OD ___OI ] Entretanto, a tradição gramatical também classifica como OI todos os argumentos internos regidos por preposição, mesmo quando esse constituinte é o único argumento interno do verbo, como os exemplificado abaixo: (65) Ela gosta de mim. O João só pensa na Maria. Antes de morrer, clamou por piedade. Nunca briguei com esse funcionário. 104 Porém, é necessário fazer uma distinção no conjunto de argumentos internos regidos por preposição. Nas frases (60) e (61), o constituinte preposicionado é o segundo argumento interno, é regido pela preposição a/para, tem o papel de DESTINATÁRIO, com o traço semântico [+humano], e pode ser substituído por um clítico, como se vê abaixo: (66) João deu-lhe uma rosa. (67) O avô contava-lhes histórias. Já os argumentos preposicionados das frases apresentadas em (65) têm o papel de TEMA ou PACIENTE, podem se referir a seres animados ou inanimados, são regidos pelas preposições de, em, por e com e não podem ser substituídos por um clítico, como se vê abaixo: (68) *Ela gosta-me. *O João só lhe pensa. *Antes de morrer, clamou-lhe. *Nunca lhe briguei. Assim, consideramos falha a classificação tradicional, que agrupa sob o mesmo rótulo, objeto indireto, elementos de natureza diversa, como constatamos aqui. Por isso, vamos fazer a distinção entre objeto indireto e complemento oblíquo. Serão classificados como objeto indireto apenas os argumentos regidos pela preposição a/para, com papel temático de DESTINATÁRIO e que podem ser cliticizados. Além dos verbos que selecionam dois argumentos, o OI também pode completar o sentido de verbos que selecionam apenas um argumento interno, como exemplificado em (69) abaixo. Sendo um OI, esse constituinte também pode ser cliticizado: (69) A proposta agradou a você? A proposta lhe agradou? Todos os demais argumentos internos regidos por preposição, como os apresentados em (65), serão classificados como complemento oblíquo, exceto os que têm o papel temático de LOCAL, que serão classificados como complemento locativo. Os complementos locativos completam o sentido dos verbos de movimento (denominados também verbos locativos) – como exemplificado em (62) acima, ou funcionam como segundo argumento dos verbos do campo semântico de pôr ou de conduzir – cf. exemplo (63) acima. Os complementos locativos podem ser regidos pelas preposições a, para, em, de e por, como exemplificado abaixo: (70) Maria foi à feira. 105 (71) Júlia vai viajar para a Europa, na próxima semana. (72) Deposite o dinheiro nesta conta. (73) João quase não sai de casa. (74) Nós vamos passar pela Bélgica. Aqui novamente, nos apartamos da tradição gramatical, que classifica esses constituintes como adjunto adverbial de lugar. O critério usado tradicionalmente é de base semântica: todos os constituintes que expressam informação de tempo, modo, lugar, causa etc são classificados como adjunto adverbial. Porém, em nossa análise, prevalece o parâmetro da predicação, da seleção semântica do verbo. Os chamados verbos de movimento requerem um argumento que expressa lugar, assim: quem vai, vai a algum lugar; quem viaja, viaja para algum lugar; quem deposita, deposita algo em algum lugar; quem sai, sai de algum lugar; quem passa, passa por algum lugar; e assim por diante. A prevalência desse parâmetro da seleção semântica do verbo impõe a classificação desses constituintes como complementos verbais, e não como adjuntos adverbiais. Por um processo de abstração comum na língua, verbos tradicionalmente utilizados para indicar localizações espaciais podem ser empregados, num nível mais abstrato, em planos temporais ou conceituais, como exemplificado abaixo: (75) A Idade Média vai da queda do Império Romano do Ocidente, em 476, até a tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453. (76) O filme vem do Surrealismo e passeia por grandes nomes da história do cinema. Também nesses casos,trata-se de complementos locativos. 1.2.3. Supressão do argumento interno Muitas vezes, os argumentos verbais não vêm expressos na oração, ou porque já foram referidos anteriormente, como em: (77) Não posso consultar esse livro porque já devolvi pra biblioteca. Ou porque o processo verbal é referido em si mesmo, não sendo relevante explicitar o seu objeto, como em: 91 (78) João comeu bem. Maria pensa demais. 91 Isso será retomado na próxima seção. 106 1.2.4. Pronomes complemento O mecanismo sintático da pronominalização permite que os argumentos internos sejam expressos por pronomes pessoais, demonstrativos, possessivos e indefinidos que têm, ou um valor dêitico, 92 ou anafórico, ou catafórico. Um elemento gramatical anafórico é aquele que é correferente (isto é, refere-se ao mesmo ente do mundo real) de um constituinte já expresso anteriormente no discurso – cf. exemplificado em (79). Já o elemento catafórico é o que é correferente de um termo que ainda será enunciado no ato verbal – cf. exemplo (80): 93 (79) O João ofendeu a Maria. Eu confirmo isso. (80) Só lhe digo isto: desista dessa ideia. Os pronomes pessoais, que expressam as distinções relativas às pessoas do discurso, ainda exibem a propriedade da flexão de caso, isto é, assumem uma forma diferente, conforme a função sintática que desempenham na oração, como se pode ver no quadro abaixo, que toma por referência o elenco dos pronomes apresentados pelas gramáticas normativas: SUJEITO OD OI OBL ADVERBIAL eu me me mim comigo tu te te ti contigo ele o/a lhe si consigo nós nos nos nós conosco vós vos vos vós convosco eles os/as lhes si consigo A gramaticalização das expressões nominais você e a gente como pronomes da segunda pessoa e da primeira pessoa do plural, respectivamente, produziu significativas alterações na forma dos pronomes complementos, já que essas expressões não se flexionam em caso, como se pode ver no quadro abaixo, que representa melhor as formas pronominais de uso corrente no Brasil: SUJEITO OD OI OBL ADVERBIAL eu me me mim comigo 92 As partículas gramaticais dêiticas expressam distinções relativas ao local (aqui, lá etc), ao momento (agora, amanhã, depois etc), ou aos participantes do ato de fala (eu, você, este, aquele etc). 93 Cf. seção 4.2. do Capítulo 2. 107 você você, te e lhe você, te e lhe você você ele/ela o/a e ele/ela lhe e ele/ela ele/ela ele/ela a gente a gente a gente a gente a gente vocês vocês e lhes vocês e lhes vocês vocês eles/elas os/as e eles/elas lhes e eles/elas eles/elas eles/elas No português brasileiro contemporâneo, a flexão de caso só não foi afetada na primeira pessoa do singular. O uso do você levou a uma perda da flexão de caso em relação à 2ª pessoa, já que essa forma nominal não exibe tal propriedade – cf. exemplo (81). Entretanto, o você alterna com a forma complemento te, correlata do tu – cf. exemplo (82); o que contraria a tradição de que ao você deveriam corresponder as formas da 3ª pessoa: o/a, lhe e si e consigo. Já o desaparecimento quase completo do clítico acusativo (o/a) na linguagem coloquial, no Brasil, fez com que o lhe fosse empregado na função de OD (ou seja, com valor de acusativo) – cf. exemplo (83) –, além de ser empregado normalmente com o valor de dativo (OI) – cf. exemplo (84). 94 O mesmo vale para o si e o consigo, que só são empregados em algumas construções específicas, predominado o uso do você nessas funções – cf. exemplos (85) e (86). Na segunda pessoa do plural, o vocês substituiu completamente o vós (claramente um arcaísmo hoje no Brasil), com as mesmas implicações morfossintáticas – cf. frases apresentadas em (87). (81) Você me viu ontem no teatro, mas eu não vi você. Você me pediu, mas eu não disse a você o número do meu celular. (82) Você me viu ontem no teatro, mas eu não te vi. Você me pediu, mas eu não te disse o número do meu celular. (83) Você me viu ontem no teatro, mas eu não lhe vi. 95 (84) Você me pediu, mas eu não lhe disse o número do meu celular. (85) Você só pensa em si! Você só pensa em você! (86) Ela não quer sair consigo. 94 No Brasil, o lhe se refere normalmente à 2ª pessoa do discurso (o ouvinte), na linguagem falada. Porém, pode-se referir também a 3ª pessoa do discurso, na linguagem escrita, ou na linguagem falada, em um contexto favorável, como exemplificado abaixo: (1) Maria conversou longamente com a mãei, mas não lhei contou a verdade. 95 A forma padrão, nesse caso, seria: “Você me viu ontem no teatro, mas eu não a/o vi.” 108 Ela não quer sair com você. (87) Vocês me viram ontem no teatro, mas eu não vi vocês. Vocês me pediram, mas eu não disse a vocês o número do meu celular. Vocês me viram ontem no teatro, mas eu não lhes vi. 96 Vocês me pediram, mas eu não lhes disse o número do meu celular. Vocês só pensam em si! Vocês só pensam em vocês! Ela não quer sair com vocês. A perda do clítico acusativo fez também com que o ele/ela praticamente deixasse de se flexionar em caso no discurso informal, tanto no singular, quanto no plural, como se pode ver nas frases em (88), com exemplos apenas no singular. Além disso, o pronome complemento da 3ª pessoa (no singular ou no plural) é frequentemente suprimido, especialmente quando não se refere a entes inanimados – cf. exemplo (89). Nesses casos, postula-se a existência de uma categoria vazia (CV), que expressa a presença implícita daquele argumento interno. 97 (88) A Maria me viu ontem no teatro, mas eu não vi ela. A Maria me pediu, mas eu não disse pra ela o número do meu celular. Já combinei com a Maria e vou com ela pra festa. (89) Eu queria comprar esse livro/esses livros, mas não comprei ___CV. O a gente, por sua origem nominal, também é empregado, sem qualquer alteração em sua forma, em todas as funções sintáticas – cf. exemplo (90). Entretanto, é possível que a forma a gente, na função de sujeito, se combine com formas flexionadas do nós nas funções de complemento verbal ou adjunto adverbial – cf. exemplo (91). (90) A gente viu a Maria ontem no teatro, mas ela não vi a gente. A Maria pediu um favor pra gente. A Maria vai pra festa com a gente. (91) A gente viu a Maria ontem no teatro, mas ela não nos vi. 96 A forma padrão, nesse caso, seria: “Você me viu ontem no teatro, mas eu não as/os vi.” 97 O português de Portugal se distingue do português brasileiro, pelo uso regular do clítico acusativo de 3ª pessoa nesse contexto: (1) Eu queria comprar esse livro/esses livros, mas não o/os comprei. 109 A gente encontrou com a Maria e ela nos contou essa história. A gente já combinou com a Maria, e ela vai conosco. Portanto, a propriedade da flexão de caso, que o português conservou do latim apenas nos pronomes, encontra-se atualmente no Brasil em um amplo processo de variação, no sentido de sua simplificação. 1.2.5. Pronomes reflexivos/recíprocos e expletivos As línguas humanas dispõe de um elemento gramatical, o pronome reflexivo/expletivo, utilizado quando o AGENTE e o PACIENTE da ação verbal são o mesmo ente. Na 3ª pessoa, esse pronome (com a forma se) é distinto do complemento (o/a/os/as) – cf. exemplos (92) e (93). Na 1ª e na 2ª pessoa, o reflexivo/recíproco não tem uma forma específica – cf. exemplos (94) a (97). (92) O João já se cortou com essa faca. (93) O João e Maria se beijaram na festa. (94) Eu já me cortei com essa faca. (95) Nós nos beijamos com paixão. (96) Já te cortaste com essa faca. (97) Crescei e multiplicai-vos. Ao longo da história da língua, o pronome reflexivo pode perder seu valor referencial, tornando-se um pronome expletivo – cf. exemplos (98) e (99). Nesses casos, opronome passa a ser parte integrante do verbo, o que a tradição gramatical denomina verbo pronominal. Isso significa que, no léxico mental do falante, não existe um verbo apaixonar ou suicidar, que pode se combinar com um pronome reflexivo no processo de constituição da oração, como ocorre com os verbos cortar e ver, por exemplo. O falante aprende esses verbos como apaixonar-se e suicidar-se, tanto que, se falta o pronome – cf. exemplos (100) e (101) –, a frase soa agramatical para a maioria dos falantes brasileiros. 98 (98) Eu me apaixonei pela Maria. (99) O João não se suicidou, foi assassinado! (100) *Eu apaixonei pela Maria. (101) *O João não suicidou, foi assassinado! 98 Uma exceção são os falantes do chamado dialeto mineiro, que aceitam normalmente essas frases como gramaticais. 110 Entretanto, nem sempre é fácil distinguir quando o pronome tem valor referencial (ou seja, é reflexivo) ou não tem carga semântica (é expletivo), como se pode ver nos seguintes casos: (102) Maria se sentou na cabaceira da mesa. (103) Maria se penteava demoradamente. Nesses casos, vamos adotar aqui a seguinte posição. No caso dos verbos que expressam movimentos do corpo (como sentar-se, levantar-se, deitar-se etc), vamos classificar o pronome como expletivo, levando em conta que nesses casos frequentemente o pronome pode ser suprimido sem comprometer o sentido da frase – cf. exemplo (104). Já com verbos como pentear, que selecionam mais comumente um argumento interno – cf. exemplo (105) –, vamos classificar o pronome como reflexivo. (104) Maria sentou na cabaceira da mesa. (105) Maria penteou o filho com esmero. 2. Adjuntos Os adjuntos são constituintes que se agregam ao núcleo da oração, formado pelo predicador e seus argumentos, acrescentando informações de seguinte natureza: (i) sobre as circunstâncias em que se deu o evento referido; (ii) sobre a fonte da informação transmitida; (iii) um comentário geral sobre o que foi dito. As informações do tipo (i) são dadas por constituintes que são classificados como adjuntos adverbiais, já as informações dos tipos (ii) e (iii) são dadas por constituintes que classificaremos aqui como adjuntos adfrasais. Tomando como exemplo a frase (106), para além do verbo (colocou) e seus argumentos (um policial, um envelope e no bolso da vítima), temos o constituinte segundo a testemunha, que funciona como adjunto adfrasal, e os constituintes sorrateiramente e logo após o acidente, que funcionam como adjuntos adverbiais. (106) Segundo a testemunha, um policial colocou um envelope sorrateiramente no bolso da vítima, logo após o acidente. 111 Os adjuntos também podem ser usados em predicações nominais, como se pode ver na frase (107) abaixo, em que felizmente é o adjunto adfrasal e ontem e durante a reunião são os adjuntos adverbiais. (107) Felizmente, a Maria foi muito ponderada ontem, durante a reunião. Enquanto a informação dada por um argumento é requerida pelo predicador empregado na frase, a informação dada por um adjunto é de certa forma opcional, decorrendo do nível de detalhamento que o falante quer dar à informação transmitida pela frase. 2.1. Adjuntos adverbiais Como vimos, os adjuntos adverbiais expressam informações circunstanciais sobre o evento, processo físico ou orgânico, estado etc expresso na oração. Essas informações são classificadas tradicionalmente, pelo seu conteúdo, da seguinte maneira: Tempo (108) João voltará ao trabalho amanhã. Modo (109) Maria dormia profundamente. Intensidade (110) João come pouco. Lugar (111) As crianças brincavam atrás do galpão. Causa (112) Ele não lhe cumprimentou por timidez. Instrumento (113) Ela cortou o pão com a tesoura. Companhia (114) Maria foi ao cinema com o namorado. Condição (115) Luísa sairá de casa se for aprovada no concurso. Finalidade (116) Evitei esse assunto para que o João não ficasse constrangido. 112 Contudo, a gama de informações coberta pelos adjuntos adverbiais é demasiadamente ampla e diversificada, de modo que qualquer classificação de base semântica será sempre incompleta e imprecisa. Como se pode ver nos exemplos acima, os constituintes que desempenham a função de adjunto adverbial podem ser: (i) um advérbio – cf. exemplos (108) a (110); (ii) um Sintagma Adverbial – cf. exemplo (111); (iii) um Sintagma Preposicionado – cf. exemplos (112) a (114); (iv) uma oração – cf. exemplos (115) e (116). 2.2. Negação A rigor, a partícula de negação não não deveria integrar o elenco dos adjuntos adverbais, pois trata-se de uma partícula gramatical que tem um comportamento muito específico e diferenciado, assemelhando-se mais a um morfema flexional do verbo – uma espécie de prefixo. Esse caráter de afixo gramatical faz com que a sua colocação pré-verbal seja praticamente obrigatória, como se pode ver nos exemplos abaixo: (117) O João não fez o trabalho. (118) *Não o João fez o trabalho. (119) *O João fez não o trabalho. (120) O João fez o trabalho não. A gramaticalidade da frase (120) decorre do fenômeno da dupla negação, que ocorre na linguagem oral, no qual a partícula de negação é repetida no final da oração: (121) O João não fez o trabalho não. Assim, a frase (120) é uma redução da frase (121), ocorrendo o apagamento da partícula de negação na primeira posição: (122) O João não fez o trabalho não. Entretanto, a negação pode ser expressa de outras formas, como, por exemplo, por advérbios de tempo com um valor negativo: (123) Nunca mais eu vou falar com a Maria. (124) O João jamais faria isso. Nesses casos, a coocorrência com a partícula de negação é agramatical: (125) *Nunca mais eu não vou falar com a Maria. (126) *O João jamais não faria isso. Exceto, quando o adjunto adverbial de tempo vem após o verbo; (127) Eu não vou falar com a Maria nunca mais. 113 (128) O João não faria isso jamais. O mesmo acontece quando a negação é expressa por um quantificador (que a tradição gramatical denomina pronome indefinido) que ocupa a posição de argumento externo (sujeito) do verbo, como ninguém em (129). Ou seja, a coocorrência com a partícula de negação é agramatical – cf. exemplo (130). Porém, quando o quantificador que tem valor negativo está modificando o argumento interno do verbo, como ocorre no exemplo (131), a coocorrência não é agramatical. (129) Ninguém fez o trabalho. (130) *Ninguém não fez o trabalho. (131) Esse estudante não fez nenhum trabalho. 99 2.3. Adjuntos adfrasais Propomos aqui a categoria de adjunto adfrasal, para distinguir dos adjuntos adverbiais os constituintes que se situam normalmente à esquerda da oração, separando- se desta, muitas vezes, por uma pausa. Essa posição sintática especial seria ocupada por constituintes que expressam um juízo de valor sobre o que se diz no corpo da oração – cf. exemplo (132) – ou a fonte da informação contida na oração – cf. exemplo (133). (132) Infelizmente, a Maria não veio. (133) Segundo a matéria do jornal, o acidente ocorreu antes do início da cerimônia. Excepcionalmente, esses constituintes podem vir no meio ou no final da oração: (134) O ladrão, certamente, fugiu pela janela. (135) É caso de expulsão, segundo os estatutos da entidade. Por outro lado, os adjuntos adverbiais podem vir no início da frase, separados dos demais constituintes da oração por uma pausa: (136) Na semana passada, não houve aulas. (137) Por causa do trabalho, o João brigou com a mulher. Os pronomes pessoais que desempenham normalmente a função de objeto indireto podem ser empregados com o valor de adjunto adfrasal, como nas seguintes frases: (138) Não me venda essas ações tão cedo. 99 O purismo gramatical condena construções desse tipo, muito utilizada no português contemporâneo,recomendando a seguinte forma: (1) Esse estudante não fez trabalho algum. 114 (139) Me parece que a Maria anda cansada Essas frases podem ser parafraseadas da seguinte maneira: (140) Na minha opinião, você não deve vender essas ações tão cedo. (141) Pra mim, parece que a Maria anda cansada Assim, fica evidenciado o valor de adjunto adfrasal desses pronomes, o que levou alguns gramáticos a classificá-los como dativos de opinião ou dativos de interesse. 3. Aposto O aposto é um termo parentético que introduz uma explicação sobre qualquer constituinte da oração, o aposto pode ser constituído por um Sintagma Nominal – cf. exemplo (142) – ou por uma oração relativa explicativa – cf. exemplo (143): 100 (142) Aquele funcionário, o João, pode entregar essa encomenda. (143) Vou recorrer a Maria, que é especialista nesses assuntos. O aposto vem sempre destacado por pausas na linguagem oral, o que a escrita representa pelo emprego obrigatório da vírgula, ou de um sinal sucedâneo: travessões, parênteses, colchetes, ou mesmo os dois pontos como no exemplo abaixo: (144) Isso diz respeito a um dos cinco sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato. 4. Constituintes parassintáticos Algumas frases contêm constituintes que não integram a estrutura sintática da oração. Esses constituintes parassintáticos seriam o que tradicionalmente se denomina como vocativo e interjeição. 4.1. Vocativo O vocativo é constituinte através do qual se nomeia o interlocutor: (144) Oh, Deus, por que me abandonaste? 100 As orações relativas serão tratadas no Capítulo 6. 115 (145) Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu? 4.2. Interjeição As interjeições são elementos que expressam verbalmente uma exclamação – cf. exemplo (146) –, ou a expressão sublinguística de uma emoção em seu estado mais bruto – cf. exemplo (147) –, ou ainda uma partícula fática sublinguística – cf. exemplo (148). (146) Nossa! Como você está pálido! (147) Há-há! Te peguei. (148) Hum-hum, Claudia, senta aí. 116 Capítulo 5 Construções Sintáticas Especiais 1. Voz Passiva A língua oferece a possibilidade de o argumento externo (OD) ser alçado à posição de argumento externo, passando a desempenhar a função sintática de sujeito que exerce o papel temático de PACIENTE na ação verbal, na chamada voz passiva, como exemplificado em (2) abaixo, na frase que corresponde à frase (1), que está na voz ativa. Nesse caso, o sujeito da voz ativa figura na voz passiva regido pela preposição por, desempenhando a função sintática de agente da passiva. (1) João pintou este quadro ontem. (2) Este quadro foi pintado pelo João ontem. A voz passiva requer uma configuração especial na forma do verbo, denominada estrutura passiva, 101 na qual o verbo ser figura como verbo auxiliar, que se combina com a forma do particípio passado do verbo principal. O auxiliar ser concorda em pessoa e número com o sujeito (paciente, nesse caso), como ocorre com todos os verbos auxiliares nas locuções verbais. Além disso, a forma do particípio passado do verbo principal também deve concordar em gênero e número com o sujeito paciente, como exemplificado abaixo: (3) Todas as encomendas foram conferidas por mim. No plano discursivo-pragmático, a voz passiva é uma estratégia muito empregada quando a informação do AGENTE da ação verbal não é relevante, como na frase (4). Ao ouvir essa frase o ouvinte normalmente não se interroga sobre quem resgatou as vítimas do acidente. (4) Todas as vítimas do acidente já foram resgatadas. 101 Cf. seção 7.2. do Capítulo 2. 117 Essa possibilidade muito frequente de supressão do agente da passiva coloca em questão a natureza desse constituinte sintático. Seria ele um argumento ou um adjunto adverbial? A observação de uma língua como o latim, que exibia flexão de caso nos constituintes nominais, pode fornecer evidências empíricas valiosas para elucidar essa questão. Em latim, o constituinte que exercia o papel de agente da passiva portava normalmente as marcas flexionais do chamado caso ablativo, que correspondia ao adjunto adverbial. Quando o agente era um ser inanimado, usava-se o ablativo puro, sem preposição – cf. exemplos (5) e (6). Quando o agente da passiva era um ser animado, usa-se a preposição ab, antes de ablativos começados por vogal – cf. exemplo (7) –, ou a variante a, antes de ablativos antecedidos por consoante – cf. exemplo (8). (5) Auro conciliatur amor. (Ovídio, Ars Amatoria) ‘o amor é obtido pelo ouro’ [amor, nominativo; auro, ablativo (2ª declinação); conciliatur, verbo na passiva] (6) Avarus animus nullo satiatur lucro. (Sêneca) ‘o espírito avarento não é saciado por nenhum lucro’ [Abl.: nullo lucro (2ª declinação); Satiatur: verbo na passiva] (7) Ab amicis libenter moneamur. ‘Sejamos advertidos de boa vontade pelos amigos’ [mur é a terminação verbal de passiva] (8) Carthago a Romanis deleta est. NOM Prep. + ABL Passiva analítica (passado) ‘Cartago foi destruída pelos romanos’ A morfologia do agente da passiva no chamado latim clássico confirma o caráter de adjunto adverbial desse constituinte, já sugerida por sua opcionalidade. Essa definição reforça o caráter econômico do modelo de análise aqui sistematizado, que utiliza apenas quatro categorias analíticas básicas (predicador, argumento, adjunto e aposto), como primitivos teóricos, para analisar toda a estrutura sintática da oração. Mas antes, trataremos de outras estruturas sintáticas especiais relacionadas à voz passiva. Além da voz passiva morfologicamente marcada, há outras possibilidades na estrutura da língua para alçar o argumento interno à posição de argumento externo, como veremos a seguir. 118 2. Construções Ergativas Em algumas construções sintáticas, um verbo transitivo pode receber um sujeito paciente, sem que seja necessária a morfologia passiva, como exemplificado em (9) a (11) abaixo. Essas construções são muito frequentes na linguagem coloquial e popular e podem ser denominadas construções ergativas, porque nelas o argumento interno (com o papel temático de PACIENTE) de um verbo transitivo também é alçado à posição de sujeito. (9) As vidraças partiram. (10) O pneu do carro esvaziou. (11) A mandioca colhe no inverno. Reparem que, em seu uso normal, esses verbos selecionam um sujeito, que tem o papel temático de FONTE ou AGENTE – cf. exemplos (12) a (14) –, e os constituintes que nas frases acima ocupam a posição de sujeito desempenham normalmente a função de OD. (12) O impacto da explosão partiu as vidraças. (13) Alguém esvaziou o pneu do carro. (14) A gente colhe a mandioca no inverno. Quando o verbo vem acompanhado da partícula se em construções desse tipo, pode-se postular, aí sim, a existência de uma passiva pronominal, como se verá a seguir. 3. Passiva Pronominal Nas frases abaixo, não se pode definir o se como índice de indeterminação do sujeito: (15) Sete operários se feriram na explosão. (16) Os pistões se fundiram com o calor excessivo do motor Como vimos na subseção 1.1.4. do capítulo anterior, o se desempenha a função de sujeito quando é classificado como índice de indeterminação do sujeito. Entretanto, as frases (15) e (16) acima têm um sujeito sintático – sete operários, em (15) e os 119 pistões, em (16) – que exerce o papel temático de PACIENTE, porque sofre a ação do processo referido pelo verbo. Nem podemos dizer que se trata de um pronome reflexivo ou recíproco porque, nem os operários se feriram uns aos outros, nem os pistões se fundiram por si. O processo de ferir e fundir foi desencadeado por uma fonte externa que é referida nas frases em análise pelos constituintes na explosão,em (15); e com o calor excessivo do motor, em (16). Porém, conquanto exerçam o papel temático de FONTE, esses constituintes têm uma natureza adverbial. Com tal configuração estrutural, essas construções são análogas à voz passiva, pois têm um sujeito paciente e um constituinte adverbial que corresponde ao agente da passiva, só que nesse caso o constituinte, ao invés de exercer o papel temático de AGENTE, exerce o papel temático de FONTE. Consequentemente, só nos resta a opção de classificar o se, nessas frases, como partícula apassivadora. E essas frases podem ser classificadas, então, como passivas pronominais. Essa análise se confirma com a relação que podemos estabelecer entre as frases (15) e (16) acima com as frases (17) e (18) abaixo; estas seriam as correspondentes ativas daquelas. (17) A explosão feriu sete operários. (18) O calor excessivo do motor fundiu os pistões. Observe-se ainda que essas construções que estamos chamando de passivas pronominais só são possíveis quando o sujeito da voz ativa tem o papel temático de FONTE. Quando o sujeito da voz ativa tem o papel de AGENTE tal conversão para a passiva pronominal não é possível, como se pode ver com as seguintes frases: (19) Os soldados explodiram o paiol. *O paiol explodiu-se com os soldados. (20) O ourives funde metais preciosos. *Metais preciosos fundem-se no ourives. Portanto, conseguimos deslindar mais uma correlação entre o plano semântico da grade temática e plano sintático da configuração da oração. Quando o sujeito da voz ativa exerce o papel temático de AGENTE, a passiva é formada com a locução verbal morfologicamente marcada da estrutura verbal passiva (verbo ser + particípio passado do verbo principal), sendo classificada como passiva analítica. Quando o sujeito da voz ativa exerce o papel temático de FONTE, a passiva é formada com o recurso à partícula gramatical se, que atua nesse caso como partícula apassivadora, numa construção que classificaremos aqui como passiva pronominal. No caso da passiva analítica, o 120 AGENTE, quando vem expresso na frase, é expresso por constituinte introduzido pela preposição por, enquanto que, na passiva pronominal, a FONTE é expressa por um constituinte introduzido pela preposição com ou pela preposição em. A formação da passiva analítica e da passiva pronominal é exemplificada, respectivamente em (21) e (22) abaixo: (21) Os soldados feriram os manifestantes. Os manifestantes foram feridos pelos soldados. (22) A explosão feriu os manifestantes. Os manifestantes se feriram com a / na explosão. Reparem, enquanto a frase com sujeito AGENTE não aceita a construção da passiva pronominal – cf. (23) abaixo –, preservando o sentido original de (21), 102 a frase com sujeito FONTE aceita a passiva analítica – cf. (24) abaixo –, não obstante a passiva pronominal – cf. (22) acima –, seja mais natural nesses casos. (23) *Os manifestantes se feriram com os soldados. (24) Os manifestantes foram feridos pela explosão. 4. Sujeito Tópico As frases abaixo têm uma estrutura que revela uma das peculiaridades do português brasileiro: (25) O carro furou o pneu. (26) Salvador tem 365 igrejas. (27) Esses pincéis não pintam bem. O sujeito sintático dessas frases não corresponde ao papel temático que o verbo atribui normalmente ao seu argumento externo, tanto que podemos fazer as seguintes paráfrases: (28) Algo furou o pneu do carro. (29) Tem 365 igrejas em Salvador. (30) Não se pinta bem com esses pincéis. Nas paráfrases, podemos ver que o constituinte o carro, regido pela preposição de, desempenha a função de modificador do constituinte o pneu e que os constituintes 102 A frase (23) é gramatical com o sentido de que os manifestantes se feriram juntamente com os soldados, não com o sentido de que os soldados feriram os manifestantes. 121 Salvador e esses pincéis, regidos respectivamente pelas preposições em e com, desempenham a função de adjunto adverbial. Portanto, nas frases (25) a (27), esses constituintes são alçados à posição de sujeito, tanto que o verbo concorda com eles, como se pode ver claramente em (27), em que o verbo pintar está na 3ª pessoa do plural, concordam com o constituinte esses pincéis. Contudo, esse sujeito tem uma característica especial, aproximando-se da posição de tópico, uma posição que fica fora da estrutura nuclear da oração, no que se chama sua periferia esquerda. Assim, esses sujeitos, que ficam no limiar da estrutura da oração, serão classificados como sujeito tópico, por sua natureza híbrida entre sujeito e tópico. 122 Capítulo 6 O Período Composto 1. Processos de conexão de orações no período Podemos classificar os processos de conexão de orações no período em dois tipos fundamentais: o encaixamento sintático e o encadeamento lógico-semântico. No encaixamento sintático, uma oração se insere na estrutura sintática de outra oração. Podemos, então, distinguir os seguintes tipos de encaixamento sintático: (i) a oração é encaixada como um argumento do verbo da oração principal, ou como um predicativo do sujeito, ou como um aposto, ou mesmo como agente da passiva; (ii) a oração encaixada liga-se a um nome da oração principal, modificando-lhe o sentido, ou acrescentando uma informação à sua referência; (iii) a oração encaixada acrescenta uma informação circunstancial à predicação contida na oração principal. O encaixamento sintático corresponde, assim, ao que a tradição gramatical denomina subordinação. A subordinação refere-se à dependência de uma oração que funciona como termo de outra, donde essa se chama principal, e aquela, subordinada. Do mesmo modo, a divisão feita acima, em (i), (ii) e (iii), também corresponde, respectivamente, à tradicional divisão das orações subordinadas em substantivas, adjetivas e adverbiais. Nesse sentido a subordinação está relacionada a uma dependência estrutural e não semântica; ou seja, de forma, não de conteúdo. Já no encadeamento lógico-semântico, duas orações formalmente autônomas relacionam-se por um nexo lógico de causa, contradição, disjunção, etc. Nesse sentido, o encadeamento lógico-semântico corresponderia ao que a tradição gramatical 123 denomina coordenação: orações estruturalmente independentes que são reunidas em uma relação de sentido. 1.1. O encadeamento lógico-semântico Nas chamadas orações coordenadas o nexo lógico-semântico que une as orações é normalmente explicitado pela conjunção, como se pode ver a seguir. Oração Coordenada Aditiva [relação de conjunção] (1) João comprou os salgadinhos, e a Maria trouxe o vinho. Oração Coordenada Alternativa [relação de disjunção] (2) Fale agora, ou cale-se para sempre. Oração Coordenada Adversativa [relação de contradição] (3) Ele se acha o máximo, mas ninguém o leva a sério. Oração Coordenada explicativa [relação de causa] (4) Ele não faz muitas amizades, porque é muito arrogante. Oração Coordenada conclusiva [relação de consequência] (5) Ele é muito tímido, portanto seria incapaz de dizer uma coisa dessas. Porém, não ocorre uma relação biunívoca entre a conjunção e a relação lógica, com se pode ver abaixo: (6) Ele mirou o alvo e errou. [relação de contradição] Como foi dito acima, o processo de encadeamento lógico-semântico une orações estruturalmente independentes, ao passo que, no encaixamento sintático, uma oração é inserida na estrutura de outra, sendo dependente dela. Com base nisso, a tradição gramatical denomina o primeiro processo de coordenação e segundo de subordinação. Mas, como já se viu em outros aspectos da estrutura linguística, a coordenação e a subordinação não constituem dois universos apartados, cujos limites são claramente delineados. Mais uma vez a ideia de um continuum se mostrauma representação mais adequada da realidade da língua, havendo uma zona de transição entre a coordenação e a subordinação, como veremos adiante. 124 1.2. O encaixamento sintático No processo de encaixamento sintático, tradicionalmente chamado de subordinação, uma oração é inserida na estrutura de outra, ora desempenhando a função de argumento do verbo da oração principal (ou ainda como um predicativo ou um aposto, ou mesmo o agente da passiva), ora como um adjunto de um nome da oração principal, ora como um adjunto adverbial ou adfrasal. Com base nessa distinção, a tradição gramatical divide as orações subordinadas em: substantivas, adjetivas e adverbiais. 1.2.1. As orações completivas (ditas subordinadas substantivas) As orações que são tradicionalmente classificadas como orações subordinadas substantivas são aquelas que são introduzidas por um complementizador, daí serem aqui classificadas como completivas. 103 O complementizador, que a tradição gramatical denomina conjunção integrante, é uma partícula gramatical, cuja função é a de introduzir uma oração na outra. O caráter gramatical da classe dos complementizadores evidencia-se com seu reduzido elenco e sua falta de valor referencial. Em português são complementizadores apenas as partículas que e se. 104 As orações completivas são, portanto, orações encaixadas por excelência. Em seu uso mais comum, essas orações funcionam como um complemento do verbo da oração principal. Em um tipo de construção especial podem funcionar como sujeito do verbo da oração principal. Além disso, é possível encaixar orações como complemento de um nome, na posição de predicativo, como aposto de um Sintagma Nominal, ou ainda como agente da passiva. Dessa forma, as orações completivas podem são classificadas, segundo a sua função, como: Subjetivas (7) É preciso que todos prestem muita atenção agora. [É preciso muita atenção agora.] (8) Consta que ele não fez a prova. (9) Foi acordado que os juros não serão pagos. 103 O nome completiva pode ser atribuído ainda ao fato de a oração encaixada completar a predicação da oração principal. 104 A análise do complementizador é retomada na seção 2 deste capítulo. 125 Objetivas Diretas (10) Todos querem que você volte. [Todos querem a sua volta.] (11) Eu não sei se a Maria já entregou o documento. Oblíquas (12) Não se esqueça de que você está doente. [Não se esqueça da sua doença] (13) Aconselho-te a que procures um médico. Completivas Nominais (14) Ela ressaltou a necessidade de que todos colaborem. [Ela ressaltou a necessidade da colaboração de todos.] Predicativas (15) Meu maior medo era que ele desconfiasse de alguma coisa. [Meu maior medo era uma possível desconfiança dele.] Apositivas (16) Só desejo uma coisa: que sejam felizes. [Só desejo uma coisa: a sua felicidade.] As glosas dos exemplos (7), (10), (12), (14), (15) e (16) servem para demonstrar que essas orações são denominadas tradicionalmente substantivas porque desempenham uma função sintática na oração principal que normalmente é desempenhada por um Sintagma Nominal, cujo núcleo é um nome (substantivo). As orações subjetivas (que desempenham a função de sujeito) só ocorrem: (i) em predicações nominais, do tipo: É bom que...; É importante que...; Não é verdade que..., etc.; (ii) com verbos inacusativos, como em: Parece que... ; Aconteceu que..., etc; ou (iii) em estruturas passivas: Foi decidido que... ; Foi ignorado que..., etc. Nesse último caso, podem ser incluídas as construções da chamada passiva sintética: (17) Sabe-se que ele não é uma pessoa de confiança. [É sabido que ele não é uma pessoa de confiança.] (18) Não se considerou que ele tentou socorrer a vítima. Em todos os casos, as orações subjetivas vêm após a oração principal. Nesse caso, vale o princípio de que os constituintes mais pesados (ou seja, mais extensos) são 126 deslocados para o final da oração. No caso das orações subjetivas, a aplicação desse princípio é categórica, pois a ordem SUJEITO – PREDICADO nesses casos é agramatical: (19) *Que todos prestem muita atenção é preciso agora. (20) *Que ele não fez a prova consta. (21) *Que os juros não serão pagos ficou acordado. As orações objetivas diretas normalmente completam o sentido de verbos discendi (dizer, perguntar, declarar, etc), volitivos (querer, desejar, exigir, etc), epistêmicos (saber, reconhece, imaginar, etc.), ou perceptivos (ver, perceber, ouvir, etc.). A tradição gramatical denomina orações subordinadas substantivas objetivas indiretas o que aqui se classifica como orações completivas oblíquas. A função de Objeto Indireto (OI), como definida aqui, não pode ser desempenhada por uma oração, na medida em que se trata de uma referência a um ser humano que é o destinatário de um processo verbal, como exemplificado em: (22) Ela me disse a verdade. (23) Maria entregou o formulário ao funcionário. As orações oblíquas são raras na linguagem cotidiana, exceto aquelas que completam o sentido de verbos como esquecer, gostar, etc. Nesses casos, ocorrem normalmente sem a preposição de, que é obrigatória quando o complemento oblíquo não é uma oração, e sim um Sintagma: (24) Não se esqueça que você está doente. (25) [Não se esqueça da sua doença.] [*Não se esqueça a sua doença.] (26) Ele gosta que você corte seu cabelo bem curto. [Ele gosta de um corte bem curto.] [*Ele gosta um corte bem curto.] Por intermédio do complementizador, uma oração plena (isto é, com uma forma verbal flexionada em tempo e modo) é encaixada em outra oração, dita principal. Mas esse encaixamento pode ser feito sem o complementizador. Nesse caso, a oração encaixada é dita reduzida e articula-se em torno de forma verbal que não se flexiona em tempo em modo (uma forma verbal no infinitivo, no gerúndio ou no particípio passado). Praticamente todas as orações completivas podem ser reduzidas, como se vê nos seguintes exemplos: 127 Oração Subjetiva Reduzida de Infinitivo (27) É preciso prestar muita atenção agora. Oração Objetiva Direta Reduzida de Infinitivo (28) Ela admitiu estar apaixonada por você. Oração Objetiva Direta Reduzida de Gerúndio (29) Eles viram você entrando no escritório. Oração Oblíqua Reduzida de Infinitivo (30) Não se esqueça de cumprir sua promessa. Oração Completiva Nominal Reduzida de Infinitivo (31) Ela ressaltou a necessidade de todos se empenharem. Oração Predicativa Reduzida de Infinitivo (32) Meu maior medo era ele desconfiar de alguma coisa. Oração Apositiva Reduzida de Infinitivo (33) Só desejamos uma coisa: sermos felizes. Quando a oração completiva oblíqua é reduzida, a preposição não é suprimida, cf. exemplo (30). As orações completivas também podem ser introduzidas por uma palavra interrogativa (quem, o que, quando, como, por que, onde, quanto). 105 Nesse caso, a oração pode desempenhar todas as funções sintáticas nominais, até a de objeto indireto, complemento locativo e agente da passiva, funções que não são desempenhadas, tanto pelas orações completivas introduzidas por um complementizador, quanto pelas orações completivas reduzidas. Vejamos os exemplos abaixo: Sujeito (34) Quem fez isso não está mais entre nós. (35) Por que ele fez isso é um mistério. Objeto Direto (36) Não sei como ele escapou. (37) Ela viu quando a peça se soltou. Objeto Indireto (38) Isso interessa a quem gosta de colecionar peças exóticas. (39) Eu dei o prêmio a quem o merecia. 105 As palavras interrogativas serão tratadas na seção 2 deste capítulo. 128 Complemento Oblíquo (40) Lembre-se de quando nós éramos duas crianças inocentes. (41) Eu não posso gostar de quem me trai assim. Complemento Locativo (42) Eu vou pra onde possa ser reconhecido.(43) Ele escapou de onde ninguém conseguiu escapar. Complemento Nominal (44) Só será feito o credenciamento de quem entregou todos os documentos. Predicativo (45) Isso é o que eu sempre quis. (46) O problema é quanto isso vai nos custar. Aposto (47) Eu só queria saber uma coisa: o que o teria levado a fazer isso. (48) Nunca esquecerei aquele momento, quando ele me acenou pela última vez. Agente da passiva (49) Os candidatos serão recepcionados por quem estiver no plantão na hora. (50) Agora ele é ajudado por quem antes desprezou. Essas orações introduzidas por palavras interrogativas constituem um tipo híbrido de oração, pois compartilham propriedades das orações completivas (subordinadas substantivas) e das orações relativas (subordinadas adjetivas). Por um lado, ocupam a posição de um argumento da oração principal, o que é uma propriedade das orações completivas, mas, por outro lado, são introduzidas por um elemento pronominal que desempenha uma função sintática na oração encaixada, o que é uma propriedade das orações relativas. Por conta dessa última característica, a linguística contemporânea denomina essas orações de orações relativas livres. As relativas livres distinguem-se das orações relativas propriamente ditas, porque essas últimas se ligam a um constituinte nominal da oração principal, como se verá a seguir. 129 1.2.2. As orações relativas (ditas subordinadas adjetivas) As orações relativas, que a tradição gramatical denomina orações subordinadas adjetivas, ligam-se a um nome dentro de um Sintagma Nominal como um modificador, ou funcionam como um aposto de um constituinte da oração principal, como se pode ver nas análises dos exemplos (51) e (52) abaixo: (51) O homem que acabou de chegar é um grande amigo do seu pai. SUJEITO V. Lig. PREDICATIVO O homem que acabou de chegar é um grande amigo do seu pai (52) O João, que é muito tímido, não agiria. SUJEITO APOSTO Part. de Neg. Predicador Verbal Adjunto Adverbial O João que é muito tímido não agiria dessa forma As orações que desempenham a função de modificador, como exemplificado em (51), são classificadas como orações relativas restritivas, e as que desempenham a função de aposto, como exemplificado em (52), são classificadas como orações relativas explicativas (ou apositivas). No primeiro caso, a oração relativa restritiva especifica a referência do SN. Como se pode ver no exemplo (51) e no exemplo (53) abaixo, em que a oração relativa restringe a referência no conjunto dos alunos àqueles que desejam participar da atividade: (53) Os alunos que desejam participar desta atividade deverão se inscrever na secretária da escola até amanhã. Já as orações relativas explicativas apenas acrescentam uma informação a um SN de referência já definida, como se pode ver em (52) e no exemplo (54) abaixo: (54) A Maria, que é muito emotiva, chora por qualquer bobagem. As orações explicativas são delimitadas na fala com pequenas pausas, o que não ocorre com as restritivas. Por conta disso, a convenção ortográfica determina que as orações explicativas devem vir sempre entre vírgulas, já as restritivas nunca vêm entre 130 vírgulas. Nesse caso, o uso ou não da vírgula altera o sentido do período na escrita, como se pode ver nos exemplos abaixo. Em (55), todos os competidores estavam exaustos e desistiram da prova naquele momento. Já em (56), só os competidores que estavam exaustos desistiram da prova, os demais prosseguiram. (55) Os competidores, que já estavam exaustos, desistiram da prova naquele momento. (56) Os competidores que já estavam exaustos desistiram da prova naquele momento. Ao tempo em que se ligam a um nome, denominado antecedente, os pronomes relativos também desempenham uma função sintática na oração que introduzem, como se pode ver nos exemplos abaixo: Sujeito A polícia identificou o funcionárioi quei ____i desviava as verbas do Ministério. Objeto Direto Ela já comprou o livroi quei o professor indicou _____i. Objeto Indireto Não identificamos a pessoai a quemi o espião entregou o envelope _____i. Oblíquo Ela falou de uma coisai de quei eu não me lembrava _____i. Locativo Está é a gavetai em quei eu coloquei o recibo ____i. Adjunto Adverbial Não encontro aquela gravatai com quei fui ao casamento da Maria _____i. Há, portanto, uma posição vazia na oração relativa que se liga ao antecedente através do pronome relativo, constituindo uma cadeia de correferencialização. 106 Na norma padrão do português, os pronomes relativos vêm acompanhados da preposição que rege a posição a que estão ligados na oração relativa, como se pode ver nos exemplos abaixo: (57) a. Havia condições a que nos opúnhamos. (opor-se a) 106 A coindexação é representada na linguagem técnica com a colocação da mesma letra subescrita ao final de cada elo da cadeia de correferencialização, como se faz com o i nos exemplos acima. 131 b. Havia condições com que não concordávamos. (concordar com). c. Havia condições de que desconfiávamos. (desconfiar de) d. Havia condições por que lutávamos. (lutar por) Na linguagem coloquial do Brasil, não se encontram tais construções. Na fala espontânea dos brasileiros, a preposição é suprimida, numa construção denominada oração relativa cortadora: (58) Aquele rapaz que você conversou na festa é meu amigo. Em outra construção que também caracteriza a fala informal dos brasileiros, ocorre o preenchimento da posição vazia com um pronome pessoal, numa construção denominada oração relativa resumptiva: (59) Aquele rapaz que você conversou com ele na festa é meu amigo. Nesse caso, diz-se que o pronome relativo está perdendo o seu caráter pronominal, assemelhando-se a um complementizador, que não desempenha qualquer função sintática na oração que introduz. Uma evidência disso é o fato de que, na fala espontânea brasileira, as relativas com antecedente praticamente só são introduzidas pelo conectivo que, o qual é desprovido de traços de pessoa, gênero e número e caso, como os demais pronomes relativos. Os pronomes relativos que portam tais traços são: o qual: traços de gênero e número (a qual; os quais; as quais). quem: traço de pessoa. cujo: traços de caso (genitivo), gênero e número (cuja, cujos, cujas). O traço de pessoa do relativo quem manifesta-se nas orações relativas preposicionadas, nas quais o pronome relativo deve concordar com o traço [+ ou – humano] do antecedente, como se pode ver nos exemplos abaixo: (60) O rapaz com quem você saiu ontem é meu amigo. * O rapaz com que você saiu ontem é meu amigo. (61) O computador em que gravei esse arquivo estava com vírus. * O computador em quem gravei esse arquivo estava com vírus. O pronome relativo cujo não faz mais parte da gramática natural dos brasileiros é o pronome, sendo adquirido pela ação da escola e empregado apenas em situações de formalidade. Por ser marcado morfologicamente com o valor do caso genitivo, o pronome relativo cujo só pode ser empregado quando está ligado a uma posição de 132 adjunto adnominal com valor de posse na oração relativa que introduz, como se pode ver na frase abaixo: (62) A aluna cujo pai está sendo investigado na CPI deixou de frequentar a escola. [o pai da aluna está sendo investigado na CPI] Na fala coloquial, os brasileiros usam normalmente as relativas cortadoras ou resumptivas nesses casos: (63) A aluna que pai está sendo investigado na CPI deixou de frequentar a escola. (64) A aluna que pai dela está sendo investigado na CPI deixou de frequentar a escola. Portanto, na gramática mais natural dos brasileiros as orações relativas só se ligam a um antecedente por meio de um conectivo que exibe atualmente muito poucas características de um pronome relativo propriamente dito, predominandoo uso o emprego do relativizador neutro que 107 nas orações relativas com antecedente. 1.2.3. As orações (subordinadas) adverbiais As orações adverbiais estão na fronteira entre o encaixamento sintático e encadeamento lógico semântico. Na frase (65) pode-se dizer que a oração adverbial desempenha a função de adjunto verbal de tempo na oração principal, configurando, portanto, um caso de encaixamento sintático. Porém, na frase (66), a relação entre as orações do período é de natureza lógico-semântica (relação de contradição). Essa mesma relação une um tipo de oração que a tradição gramatical classifica como coordenada, como exemplificado em (67); ou seja, tratando-a como uma oração autônoma em relação à outra oração do período. (65) João só chegou em casa quando já estava anoitecendo. [João só chegou em casa à noite.] (66) Embora estivesse doente, Maria não deixou de cumprir o prazo. (67) Maria estava doente, mas não deixou de cumprir o prazo. Dessa forma, pode-se dizer que as orações adverbiais estão na fornteira entre o encaixamento sintático e o encadeamento lógico semântico. Nesse sentido, deve-se ter em conta que, assim como ocorre com os advérbios, as orações adverbiais também 107 Diz-se que o que é um relativizador neutro porque não marca qualquer traço morfológico de gênero, número, pessoa ou caso. 133 constituem um conjunto heterogêneo, sendo necessário estabelecer uma taxonomia dos tipos de orações que são agrupadas sob o rótulo de orações (subordinadas) adverbiais. Há orações adverbiais que desempenham a função de adjuntos adfrasais, como exemplificado abaixo: (68) O João, como todos sabemos, é um funcionário muito responsável. (69) Consoante opinam alguns, o futebol é imprevisível. (70) O suspeito deve ser indiciado, conforme determina a lei. Essas orações, tradicionalmente classificadas como orações subordinadas adverbiais conformativas, constituem um caso claro de encaixamento sintático. Da mesma forma, há orações adverbiais que portam uma informação de tempo e de lugar, como exemplificado em (71) e (72), respectivamente, assemelhando-se aos adjuntos adverbiais; o que constitui também um caso de encaixamento sintático. Porém, muitas orações que são aparentemente temporais, seriam melhor classificadas como condicionais, configurando, menos um caso encaixamento sintático, do que um uma relação lógico-semântica, como se pode ver em (73), e sua glosa. (71) Ele terminou trabalho, quando já passavam das três da manhã! (72) Não há justiça, onde não há democracia! 108 (73) Quando eu ganhar na loteria, vou comprar este apartamento. [Se eu ganhar na loteria, vou comprar este apartamento.] Assim, configura-se, no universo das orações adverbiais, um continuum que vai do encaixamento sintático ao encadeamento lógico-semântico. No campo do encadeamento lógico semântico, encontramos as seguintes orações adverbiais: Oração Subordinada Adverbial Final Ele se sacrificou, para que os irmãos pudessem escapar. Oração Subordinada Adverbial Condicional Se o promotor insistisse um pouco mais, obteria um confissão do acusado. Oração Subordinada Adverbial Proporcional A vida torna-se mais difícil, à medida em que envelhecemos. Em alguns casos, inclusive, o nexo lógico-semântico que une uma oração adverbial à chamada oração principal encontra um paralelo perfeito com as orações coordenadas, como exemplificado a seguir: 108 A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) não contempla esse tipo de oração. 134 Oração Subordinada Adverbial Causal X Oração Coordenada Explicativa (74) Este candidato está desclassificado, já que não cumpriu o prazo. (75) Este candidato está desclassificado, pois não cumpriu o prazo. Oração Subordinada Adverbial Concessiva X Oração Coordenada Adversativa (76) Embora estivesse doente, Maria não deixou de cumprir o prazo. (77) Maria estava doente, mas não deixou de cumprir o prazo. Oração Subordinada Adverbial Consecutiva X Oração Coordenada Conclusiva (78) Estava tão escuro que não se via nada. (79) Estava muito escuro, logo não se via nada. Nesse plano, a distinção entre o encadeamento lógico-semântico (coordenação) e o encaixamento sintático (subordinação) é feito com base em aspectos formas, como, no caso das orações adverbiais concessivas e coordenadas adversativas. As primeiras são construídas com verbos no subjuntivo, o que implica uma dependência estrutural, já que essas orações não podem formar sozinhas um período – como exemplificado em (80) abaixo. Já as orações coordenadas adversativas, por serem construídas com formas verbais do indicativo, podem funcionar como orações absolutas, como exemplificado me (81) abaixo: (80) *Há claras evidências empíricas que seres sobrenaturais, como bruxas e duendes não existem. Embora ainda possamos encontrar muitas pessoas que nos dias de hoje ainda acreditam na existência dessas criaturas. (81) Há claras evidências empíricas que seres sobrenaturais, como bruxas e duendes não existem. Porém, ainda podemos encontrar muitas pessoas que nos dias de hoje ainda acreditam na existência dessas criaturas. 135 2. Os conectivos oracionais Tanto no caso da relação lógico-semântica, quanto no caso do encaixamento sintático, o encadeamento de orações no período pode ocorrer sem o recurso a um conectivo oracional, como exemplificado abaixo: (82) Está tudo bem, o pior já passou. (83) Vim, vi, vê nci. (84) Atingir o sucesso a qualquer preço é o lema da atualidade. (85) Ele disse estar apto para o serviço. Porém, nas situações normais de interação verbal, é mais frequente que as orações se combinem por meio de um conectivo oracional. O tipo de conectivo empregado está diretamente ligado às propriedades sintáticas e semânticas das estruturas que se formam no processo de conjunção de orações no período. Desse modo, podem ser definidos os seguintes tipos de conectivos oracionais: 1. Complementizadores (conjunções integrantes) Introduzem as orações completivas (subordinadas substantivas) (86) Maria disse que virá ao encontro. (87) Maria não sabe se virá ao encontro. (88) É necessário que o aluno se dedique à disciplina. 2. Conjunções Introduzem as orações coordenadas e subordinadas adverbiais (89) Maria disse que viria, mas não apareceu. (90) Embora tenha dito que vinha, Maria não apareceu. 3. Pronomes Relativos Introduzem as subordinadas adjetivas, estando, por isso, sempre ligados a um núcleo nominal. (91) O problema a que você se referiu está sendo resolvido. (92) A menina cujo pai é engenheiro é boa em matemática. (93) Foram contratados novos funcionários, os quais devem ser muito bem treinados. 4. Palavras Interrogativas (QU) Introduzem as subordinadas adverbiais e as completivas (denominadas, nesse caso, relativas livres). São conectivos multifuncionais, que desempenham, o 136 papel de conjunção, complementizador ou pronome relativo, como mostram os respectivos exemplos abaixo. (94) Quando Maria saiu, estava chovendo. (95) Não sei quem fez isso. (96) Está é a casa onde nasceu Castro Alves. Quando estiverem ligadas a um termo antecedente, como no exemplo (70) acima, as palavras interrogativas devem ser classificadas como pronomes relativos. 5. Preposições Introduzem as orações reduzidas. (97) Hoje em dia, para ser bem sucedido, o indivíduo deve se sujeitar à lógica do mercado. (98) A necessidade imperiosa de ser bem sucedido acaba gerando estados de ansiedade e depressão. As propriedades sintáticas e semânticas relacionadas a cada tipo conectivo são apresentadas no quadro abaixo: QUADRO COMPARATIVO DOS CONECTIVOS ORACIONAIS TIPO DE CONECTIVO PROPRIEDADES pede forma verbal flexionada tem função sintática na oração que introduz possuivalor semântico com encaixamento da oração que introduz Complementizador + - -/+ + Conjunção + - + - Pronome Relativo + + -/+ + Palavra Interrogativa + + + + Preposição - - -/+ +/- Os complementizadores, que não tem qualquer valor semântico 109 , servem apenas como conectivos oracionais, encaixando uma oração com uma forma verbal flexionada em tempo e modo em uma oração principal. As conjunções e as locuções conjuntivas também relacionam orações com formas verbais plenas, mas ao contrário 109 Note-se, entretanto, que o complementizador se seria uma forma marcada, associada à ideia de dúvida, incerteza. 137 dos complementizadores, têm valor semântico, expressando relações lógicas, tais como: contradição, consequência, proporcionalidade, etc. Os pronomes relativos também fazem a ligação entre duas orações plenas, mas, ao retomarem a referência de um nome anterior, ocupam uma posição sintática na oração que introduzem, diferentemente dos complementizadores e das conjunções, que não têm uma função sintática na oração que introduzem. O relativizador neutro que, que não tem valor semântico, nem traços morfológicos de gênero, número, pessoa e caso, situa-se na fronteira entre os pronomes relativos e complementizadores. As palavras interrogativas relacionam orações com formas verbais flexionadas em tempo e modo, têm valor semântico e desempenham uma função sintática na oração que introduzem, são conectivos multifuncionais que introduzem orações de natureza vária. Por fim, as preposições funcionam como conectivos apenas introduzindo orações reduzidas (com formas verbais do infinitivo e do gerúndio) e não desempenham função sintática na oração que introduzem. Dividem- se entre aquelas que não têm valor semântico (como o de) e as que têm (como o para, que indica finalidade). Os complementizadores, pronomes relativos e palavras interrogativas encaixam uma oração em outra, a oração principal. As conjunções estabelecem uma relação lógica entre duas orações independentes. E as preposições funcionam nos dois tipos de situação, tanto na relação lógico-semântica, quanto no encaixamento sintático. 138 Capítulo 7 Os Sintagmas