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<p>O Superego viver PRISCILLA ROT</p><p>CONCEITOS DA PSICANÁLISE O Superego PRISCILLA ROTH Editor da série Ivan Ward viver tt mente&cérebro Duetto Relume Dumará</p><p>Ideas in Psychoanalysis The Superego foi publicado no Reino Unido em 2001 por Icon Books Ltd., The Old Dairy, Brook Rd, Thriplow, Cambridge SG8 7RG Copyright do texto 2001 Priscilla Roth Conceitos da Psicanálise Superego é uma co-edição da Segmento-Duetto Editorial Ltda. com a Relume Dumará Editora Ediouro, Segmento-Duetto Editorial Ltda.: Rua Cunha Gago, 412, 3° andar, São Paulo, SP, CEP telefone (11) 3039-5633. Relume Dumará Editora: Rua Nova 345, Bonsucesso, Rio de Ja- neiro, CEP 21042-235. telefone (21) Copyright da edição brasileira 2005 Duetto Editorial Indicação editorial Alberto Schprejer (Relume Editora) Coordenação editorial da série brasileira Ana Claudia Ferrari e Ana Luisa Astiz (Duetto Editorial) Tradução Sergio Tellaroli Edição INTRODUÇÃO Carlos Mendes Rosa Revisão técnica Todos têm um superego, mas nem todos Paulo Schiller Revisão chamam assim. Alguns O chamam de "consciên- Silveira Cunha Capa cia" ou mesmo "consciência pesada"; outros lhe Foto de Richard de fundo Jeova da Capela Sistina) Diagramação Ana Maria Onofri dão nome de "moral". Como quer que ele se chame, porém, O fato é que todos temos um su- CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. perego. Ele é reconhecível sobretudo por aquela R754s Priscilla O Superego / Priscilla Roth : tradução Sergio Tellaroli. Rio de Janeiro Relume Dumará : Ediouro 2005 dentro da nossa cabeça (mas veremos que (Conceitos da psicanálise v.5) não se limita a isso) que não nos deixa fazer coi- Tradução de: Ideas in psychoanalysis : the superego ISBN 85-7316-431-X sas erradas (ilegais, imorais, grosseiras), mesmo 1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Klein, Melanie, 1882-1960. 3. Superego. 4. II. que ninguém fique sabendo. E que, lá de dentro, nos pune quando cedemos a alguma tentação ou CDD 154.22 CDU 159.923,2 fazemos O que não ter feito ou até, Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei n° às vezes, sem termos feito nada. 5</p><p>SUPEREGO INTRODUÇÃO Pode-se pensar no superego como nossa Para complicar ainda mais, às vezes O supere- "consciência", mas a idéia freudiana de superego go fala de forma bastante direta e franca dentro não corresponde exatamente à consciência, ainda de nós: "Vá trabalhar JÁ, você está enrolando faz que ambos tenham propriedades e características muito tempo!" Ou: "NÃO coma outro chocolate". Uma das grandes diferenças entre Ou ainda: "Se você deixar a louça suja na mesa, a idéia de "consciência", e sua ex- vai precisar lavar tudo quando voltar para casa. tensão psicanalítica chamada "superego" é que O Então. lave a louça antes de sair!" Outras vezes, conceito de superego em geral reconhece que é ele é mais punitivo: "Que ruindade a sua, que muito pequena a relação entre O que uma pessoa faita de educação tratar a sua irmã desse jeito. pensa conscientemente ser permissível e aquilo Você é MESMO ruim e mal-educado demais com que superego de fato lhe permite fazer. Ou, in- sua E pode também ser muito punitivo: vertendo a ordem das coisas: às vezes, sentimos "Você é absolutamente horrível, detestável. Não grande culpa ou temos a vaga sensação de sermos merece a amizade nem amor de ninguém. Só maus sem que saibamos ao certo que fizemos merece ser infeliz". Todas essas são maneiras que para nos sentirmos culpados ou maus. No aero- superego usa para nos dar ordens ou nos atacar porto, por exemplo, quando indagadas na alfân- de dentro de nós mesmos. dega, as pessoas muitas vezes angustia- Por outro lado, muitas vezes é bastante dolo- das, e O mesmo acontece quando um policial, roso ter uma voz assim dentro de nós, e O que fa- numa averiguação rotineira, pede que encostem zemos é dar um jeito de atribuí-la a outra pessoa: carro, ainda que nem sequer imaginem O que "Minha irmã me detesta porque sou um pouco teriam feito de ilegal. indelicado com ela. É supersensível, tremenda-</p><p>SUPEREGO INTRODUÇÃO mente fria e sempre me faz sentir mal". Ou: "Meu um conceito útil e importante. Com O propósi- chefe vive me acusando de chegar atrasado". Ou to de mostrar onde ele se encaixa na teoria psi- ainda: "Eu sei que essa gente me acha gorda e exponho, em primeiro lugar, os dois repugnante quando me comendo modelos propostos por Freud de como a mente Com muita superego nos comanda funciona. Em seguida, discuto a necessidade da ou nos proíbe de fazer coisas sem que sequer no- existência do superego (por que precisamos de temos. Só O que percebemos é, talvez, que algo um superego? Não estaríamos melhor sem ele?). inexplicável esteja se passando dentro de nós: Depois. desenvolvo ainda os seguintes tópicos, "Não sei por quê, mas estou sem vontade de ir a apenas reiacionados aqui: como soa a VOZ do su- essa festa". Ou: "Não sei... Nunca consigo relaxar perego e como O sentimos; como é tê-lo dentro de enquanto não termino de fazer toda a lição de nós dizendo O que fazer e O que não fazer e como casa". Ou ainda: "Estou superfeliz assim, do jei- ele se projeta para fora, de tal modo que críticas tinho que eu sou. Não tenho grandes e julgamentos pareçam vir de outras pessoas; ou Nesses momentos, superego está invisível, ou mesmo como voltamos contra os outros, fazen- inaudível - ou, como diriam os psicanalistas, do que ele os julgue e nos proteja, assim, do seu consciente. Não sabemos que ele está nos influen- rigor. E ainda pergunto: "Quais são os indícios de ciando, mas, na verdade, está exercendo um efei- um superego que atua inconscientemente?" to enorme sobre os nossos sentimentos, desejos e Concluo com uma explanação acerca da ori- comportamento. gem do superego os acontecimentos da infância Neste livro, explico que os psicanalistas que- que legam a cada um de nós uma instância inte- rem dizer com "superego" e por que se trata de rior crítica e julgadora e exploro algumas das 8 9</p><p>SUPEREGO LUGAR DO SUPEREGO NA TEORIA posições hoje defendidas por psicanalistas sobre aceitos, resultando daí O atrito entre estas duas essas origens. áreas da mente: O inconsciente, que demanda sa- de seus impulsos, e a porção consciente, O LUGAR DO SUPEREGO NA TEORIA racional, civilizada, que contém uma instância PSICANALÍTICA crítica que proíbe a satisfação daqueles mesmos O superego constitui uma parte da segunda e desejos. Não temos como observar os desejos in- última teoria de Freud sobre O funcionamento da conscientes de forma direta, mas podemos obser- mente. A primeira teoria foi chamada de "mode- var de que maneira eles forçam a passagem pela lo topográfico" e dividia a mente em duas áreas: instância crítica e se manifestam indiretamente uma área contendo em nosso comportamento: em "lapsos", piadas, todos os pensamentos e sentimentos que conhe- sonhos e, de um modo mais perturbador, em sin- cemos ou poderíamos conhecer com facilidade; e, tomas neuróticos. subjacente a essa (metaforicamente falando), um 0 modelo topográfico, em que existe um con- inconsciente bem maior, repleto de pulsões e im- flito entre inconsciente e O consciente (que pulsos de que não podemos ter um conhecimen- abrange também os pensamentos e desejos que to direto. Acreditava-se que essas pulsões e esses ainda não são conscientes, mas podem tornar-se impulsos fossem inatos e instintivos e buscassem conscientes tão logo nossa atenção se dirija para satisfação imediata na comida, na bebida ou no eles - uma área a que Freud deu O nome de "pré- sexo. Além disso, é frequente O conflito de tais consciente"), foi muito útil por chamar a atenção pulsões e impulsos com outros comportamen- e para estimular a exploração dessa vasta parte tos, adquiridos pelo aprendizado e socialmente da mente que exerce influência profunda sobre O 10 11</p><p>SUPEREGO LUGAR DO SUPEREGO NA TEORIA comportamento e sobre os pensamentos de cada bem e. estranhamente, se sentissem melhor an- um, mas em geral passa despercebida. tes. quando sofriam. Esse modelo topográfico, porém, apresentou Em segundo lugar, O modelo topográfico par- problemas de duas naturezas distintas. Em pri- do pressuposto de que as defesas de uma pes- meiro lugar, partia do princípio de que a instân- soa contra a emergência de desejos inconscientes cia crítica a porção da mente que decide do eram conscientes. Por definição, O que se opunha que podemos ter consciência - era parte da men- aos inconscientes era parte do sistema te consciente: de que era, portanto, racional e consciente/pré-consciente. Mas também aí logo oposta a exigências e desejos instintivos. Freud se evidenciou que muitas das defesas contra im- e seus seguidores. no entanto, logo começaram a pulsos inconscientes eram, na verdade, incons- perceber que os pacientes muitas vezes pareciam cientes, e que a área da mente que se podia des- também ter uma instância crítica inconsciente: não crever como inconsciente continha mais do que sabiam que estavam sendo criticados ou punidos meros impulsos biológicos e anseios infantis. Foi de seu próprio interior, mas sofriam de uma ma- em grande medida para dar conta desses proble- neira que indicava ser esse caso. De fato, Freud mas com a teoria que Freud desenvolveu pouco acreditava que muitos dos pacientes que recor- a pouco O segundo e último modelo da mente, a riam a ele sentiam uma necessidade inconsciente "teoria estrutural", que continua a considerar a de punição. Alguns deles, por exemplo, davam divisão consciente/inconsciente, mas não se limi- mostra de sentir profundo desconforto quando ta a ela. começavam a se recuperar dos sintomas dolo- No modelo estrutural, a mente compõe-se de rosos, como se se sentissem culpados por estar três partes: O id, ego e O superego. No id, Freud 12 13</p><p>SUPEREGO PARA QUE SERVE SUPEREGO, ELE So Nos FAZ SENTIR MAL? situou todos os instintos e pulsões com que nas- funcionamento do ego. E O superego é a terceira cemos: os impulsos agressivos e sexuais, assim parte desse sistema tripartite. Ele brota do ego, como a pulsão inata de buscar comida, água, ca- conforme a criança vai incorporando as regras lor e assim por diante. Essas necessidades bio- definidas pelos pais e pela sociedade, como ve- lógicas são sobretudo inconscientes e não levam remos adiante, e torna-se uma força poderosa na em conta a realidade. Conflitam freqüentemente mente do indivíduo. O poder do superego advém com as exigências que a sociedade nos faz: se fôs- da capacidade que ele tem de suscitar culpa e os semos constituídos apenas de id, teríamos difi- sentimentos ruins a ela relacionados: ele é capaz culdade de levar a vida em nosso mundo. de ditar 0 nosso comportamento e até os nossos A segunda parte da mente, O ego, desenvol- pensamentos. Contudo, se, por um lado, O su- ve-se a partir do id nos primeiros dias, semanas perego pode ajudar O indivíduo a se adaptar às ou meses depois do nascimento, à medida que leis e regras básicas da sociedade em que vive, a criança começa pouco a pouco a perceber O por outro. pode às vezes tornar-se a porção mais mundo exterior e adaptar-se a ele aprendendo, poderosa e mesmo a mais destrutiva da sua per- por exemplo, como chamar a atenção da mãe ou sonalidade. lembrar-se de que ao vê-la ela quase sempre terá consolo. Essa porção da mente chamada ego - PARA QUE SERVE O SUPEREGO, cada vez mais racional, organizadora, sintonizada SE ELE SÓ NOS FAZ SENTIR MAL? com O mundo abriga a capacidade para O pen- Podemos abordar essa questão fazendo pri- samento racional, O planejamento e a lembrança. meiro algumas outras perguntas. O que possi- Com porém, O superego interfere no bilita O comportamento civilizado? Por que a 14 15</p><p>O SUPEREGO SERVE ELE So Nos FAZ SENTIR MAL? maior parte das pessoas se adapta às leis? Por revolucionários, que desejam modificar a or- que algumas infringem as leis? E por que a maio- dem social - não invalida a premissa. Pelo con- ria não as infringe, mesmo que pareça vantajoso trano. sugere O que a psicanálise já demonstrou fazê-lo e tenhamos certeza de que não seremos vezes: que O desejo de ordem se desen- apanhados? volve conjuntamente e em permanente conflito Na tentativa de responder essas perguntas, com outros desejos, mais destrutivos e também muitos recorreriam à noção de consciência, mais criativos. conflito é parte da nossa na- como já mencionei - ficaríamos, digamos, com conflito entre O desejo de preservar e a consciência pesada se infringíssemos a lei. O manter, por um lado, e de destruir e romper, que Freud compreendeu é que a consciência não por outro; O conflito entre O desejo de permane- é apenas um código moral racional: a consciên- cer O mesmo e O de mudar e crescer; O conflito cia. disse ele, guarda relação profunda com O entre os mais preciosos impulsos amorosos e os sentimento de culpa. O respeito pelas relações de grande poder de destruição. A estrutura men- sociais, pela lei e pela ordem, não é simples- tal que controla e modera esses conflitos é O que mente imposto pela sociedade em que vivemos, os psicanalistas chamam de superego. mas deriva de uma necessidade que começa a O reconhecimento de que a consciência tem tomar forma na primeira infância: a necessidade relação profunda com O sentimento de culpa foi de obedecer à ordem social em que vivemos, de importante. "Culpa", nesse contexto, não se re- honrá-la e mantê-la. O fato de muitas pessoas fere à culpa perante a lei, como quando se diz não corresponderem a essa descrição os crimi- que alguém foi "declarado culpado" de um cri- nosos, por exemplo, ou, de modo bem diferente, me. Trata-se, antes, de um sentido pessoal de cul- 16</p><p>SUPEREGO PARA QUE SERVE SUPEREGO, ELE So Nos FAZ MAL? pa, de sentir-se culpado. E, como bem sabemos, Pode, então, levar uma pessoa a buscar sentir-se culpado não é O mesmo que ser culpa- punição severa para si mesma ou a se voltar com do aos olhos dos outros. Uma pessoa pode ser extraordinária ferocidade contra aqueles que acu- considerada culpada de um crime e não se sentir Em sua manifestação mais extremada, a culpa culpada. Ou pode sentir-se culpada sem que seja, é capaz de levar ao suicídio. de fato, culpada de coisa alguma. Nesse último possamos agora começar a responder caso, indivíduo pode não ter a menor idéia de perguntas feitas no início deste segmento. De por que se sente tão culpado, já que suas razões modo geral. as pessoas se comportam de maneira para se sentir assim podem estar fora do alcan- civilizada, não infringem a lei e preservam a or- ce da mente consciente. Sentir-se culpado é, no dem social porque se sentiriam culpadas se agis- mínimo, uma sensação bastante desagradável. Às sem de outra forma. vezes, é pior do que isso, quando uma voz den- Freud sustentava que a civilização (ou seja, tro de nós nos critica e castiga até nos invadir os seu entender, a organização sociocultural) pensamentos, de tal forma que um sentimento de desenvolveu-se e foi capaz de se manter porque, culpa parece apoderar-se por completo da nossa na primeira infância, os seres humanos passam vida. Nessas ocasiões, somos obrigados a fazer por experiências que constituem em cada indi- alguma coisa para mitigar esses sentimentos tão víduo uma propensão à culpa quando desobede- dolorosos ou nos livrarmos deles: ou tentamos cem às regras - uma instância crítica, a que ele melhorar as coisas ou começamos a culpar outra deu nome de superego. Abordarei mais adiante pessoa. No pior dos casos, a culpa, quando extre- como isso ocorre. No momento, importa saber mada e desprovida de remorso, é literalmente in- que a criança pequena interioriza muito cedo as 18 19</p><p>SUPEREGO PARA SERVE ELE So Nos FAZ MAL? proibições dos pais e se identifica com elas. O acima de tudo, a vida é mais segu- superego é como se fosse a voz dos pais dentro ra numa sociedade civilizada. Todavia, em troca dela, ora louvando-a por "bom" comportamen- dessa segurança, impõem-se sérias restrições às to, ora com mais - repreendendo- tendências humanas inatas. O resultado disso é a ou até punindo-a com rigor por aquilo que uma conduta mais moral do que em outras for- ele, superego, considera mau comportamento. mas. mais primitivas. de ordem social. Contudo, Essa voz da autoridade, que um dia pertenceu 3 agressividade reprimida pela civilização é ca- aos pais, torna-se parte do eu, fazendo frente de volta para eu sob a forma de uma ao restante desse eu (ao "ego") e impondo-lhe several consciência que experimentamos exigências. como culpa. culpa portanto, parte da natu- Segundo Freud, é O estabelecimento dessa da experiência humanas. Esse é proces- instância crítica interna no desenvolvimento de que Freud atribuiu à estrutura mental a que cada indivíduo que torna possível a civilização. chamou superego. Ele é guardião necessário da A capacidade de conviver em unidades sociais mantenedor da ordem. E é tam- complexas cidades, nações re- o preço que pagamos pela civilização. Um quer que, como indivíduos, reprimamos muitos superego forte é, afirma Freud, dos nossos poderosos impulsos instintivos. Te- mos de nos privar da satisfação sexual imedia- mais importante problema no desenvolvimento da ta e da agressividade desenfreada, porque não civilização [...] preço que pagamos por nosso avan- poria em risco a estrutura social em que na civilização é a perda de felicidade pela intensi- vivemos. Muitas são as recompensas da vida ficação do sentimento de culpa. 20 21</p><p>0 SUPEREGO ONDE ENCONTRAR SUPEREGO É importante notar que a ordem social deli- uma internalização, bem precoce, das caracte- neada por Freud, com a moralidade subjacente dos pais. Analistas posteriores a Freud, a ela, alicerça-se no medo. Embora Freud en- sobretudo Melanie investigaram a fun- fatize com O fato de os pais serem do de que maneira ocorrem essas interioriza- não apenas temidos, mas também objeto de ções e identificações, como elas interagem en- amor a consciência moral resultante tre si e com os próprios impulsos inconscientes do superego que ele descreve fundamenta-se no bem como com suas fantasias em medo, mais do que no amor. Da mesma forma relação aos pais. que a criança temia a dura reprimenda do pai, O adulto teme a severa reprovação proveniente ONDE ENCONTRAR O SUPEREGO do superego. Dentro de você e inteiramente consciente Boa parte das pessoas, no entanto, acredita 0 lugar mais óbvio para se procurar O supere- que, embora muitas vezes sejamos "bons" ape- e começar a estudar como ele funciona é den- nas porque temos medo - medo do sentimento tro da própria mente. gente logo pensará de culpa -, outras vezes somos "bons" porque na voz do seu superego como aquela percebida fazemos uso de impulsos amorosos, generosos nos pensamentos. Um exemplo: "Se você não ou afetivos. Além das pulsões agressivas, os se- se levantar e oferecer lugar para aquela mu- res humanos costumam também tender para her, vai se sentir muito mal". Outro: "Você pode comportamento apropriado. E essa tendência embolsar aquela nota de 50 que encontrou no deriva dos mesmos processos que constituíram chão da loja, mas vai se sentir mal se fizer isso". O superego punitivo: trata-se, aí também, de Ou: "Muito bem, você embolsou a nota de 50 e 22 23</p><p>O SUPEREGO ONDE ENCONTRAR SUPEREGO ninguém percebeu, mas, na verdade, deveria se terapia, uma garotinha disse que sabia envergonhar: que raio de criatura é você?" Ou feio pensar no que havia por baixo ainda: "Você acaba de dizer uma coisa desagra- preso à cintura de Cristo quando ela dável demais mulher. Como é que pôde Tentava loucamente desviar aquele fazer uma coisa dessas?" Todos esses exemplos mas sem resultado. O sentimento exprimem tentações e faltas muito comuns, pelas de culpa a atormentava e ela achava que me- quais a maioria se pune habitualmente por conta Um modo de explicar O que própria. Quase todos admitem que O sentimento se passava na mente da menina seria dizer que de culpa é isto: O modo como nos punimos por ela um superego severo e cruel, capaz de termos feito algo que achamos que não devíamos puni-la não apenas pelo que ela fazia, mas tam- ter feito. Nesse nível, O superego funciona de bem pelo que pensava. Do ponto de vista des- uma maneira lógica e, portanto, facilmente com- autoridade interior, os pensamentos são tão preensível: sabemos em que erramos e sabemos quanto as ações. É claro que, no que nos sentimos culpados e por quê. caso da garotinha, a terapia servia para entender Algumas pessoas, porém, sofrem muito mais coisa desse superego: onde ela O adqui- com a "consciência pesada", O que às vezes pare- rira e por que era tão punitivo. ce ilógico. Essas pessoas sentem-se tão mal, tão Não faz muito tempo, um conhecido político culpadas ante a possibilidade de agir, ou mesmo contou que, quando pequeno, costumava ter de de pensar, que ou restringem seriamente O com- permissão ao seu professor para ser "ba- portamento ou sofrem de uma culpa invasiva e gunceiro". Lembrou-se de que perguntava: "Pos- debilitante demais. SO fazer bagunça agora, senhor?" O que se tem 24 25</p><p>SUPEREGO ONDE ENCONTRAR o SUPEREGO aí é a imagem de uma criança com medo de ser a pessoa recebeu na infância um exemplo bastante uma criança comum, com medo de que O seu su- esclarecedor do processo de constituição do supere- perego a puna com rigor se ela "se soltar". Esse go: a criança internaliza os pais, vistos pela lente da político também tinha um superego severo. agressividade inconsciente da própria criança em É bastante doloroso saber de crianças que se pu- relação a eles. Assim, O superego caracteriza-se por nem mentalmente. Ficamos imaginando de onde uma dupla agressividade: os aspectos agressivos e vem essa VOZ cruel. Poderíamos pensar que se trata dos pais ampliados pela agressividade de crianças cujos pais, demasiado rigorosos, devem unconsciente da criança. ter-lhes dito várias vezes que eram más. Nem sem- pre, porém, é esse O caso: a severidade do supere- Dentro de você, mas não muito consciente go da criança parece não corresponder de forma É interessante saber que a maior parte do su- alguma ao rigor com que ela foi tratada. É como perego é inconsciente. Isso significa que somos se O superego se constituísse apenas dos aspectos motivados por sentimentos - de que não nos da- mais inflexíveis dos pais, ignorando os cuidados e O mos conta - sobre as coisas que fazemos e pensa- amor deles. (Todo pai ou mãe há de se lembrar das ou mesmo, por vezes, acerca de coisas que ocasiões em que os filhos parecem recordar os nem sequer percebemos pensar. Isso soa estra- momentos em que um ou outro ficou muito bravo nho. talvez até impossível, mas os psicanalistas ou gritou com eles, ou ainda os proibiu de ver te- vivem encontrando provas de que as pessoas se levisão, embora não tivessem feito nada de errado.) sentem culpadas sem saber que a culpa provém Os psicanalistas consideram essa discrepância entre de coisas das quais elas nem se deram conta de a severidade do superego e O tratamento real que ter feito ou pensado. 26 27</p><p>SUPEREGO ONDE ENCONTRAR SUPEREGO Vejamos um exemplo disso. Uma mulher de- mento razoável. Depois, na adolescência, O pai cidiu consultar um psicanalista porque algo tinha e mãe nunca mais se casou ficou vi- começado a preocupá-la. Ela era casada com um para resto da vida. No processo de análise, homem a quem amava muito, mas com quem não a paciente tomou consciência gradual dos sen- gostava de ter relações sexuais. Até onde sabia, não confusos e turbulentos que nutria em existia um motivo para esse desprazer. Ainda assim, aos pais: O amor pela mãe, seguido do descobrira que não gostava de ter relações com ele; da inveja e do ciúme; O desejo de aliás, até se sentia um pouco deprimida após O ato menina de ser melhor do que ela, de agradar ao sexual. No plano consciente, achava que não fizera mais do que a mãe O fazia; ódio à mãe pelo nada de errado e não se sentia culpada. No entanto, fato de ela não ter conseguido de algum modo sentia que as coisas não eram como deveriam ser e manter pai vivo; a admiração pela coragem que tinha enorme inibição em ter prazer. Esperava da mãe misturada a uma espécie de sentimento que a psicanálise a ajudasse a resolver O problema. ter atingido a maturidade sexual Na análise, a mulher começou pouco a pouco num momento em que a mãe não tinha parceiro; a formar um quadro de algumas das forças pre- a culpa terrivel. ainda que inconsciente, decor- sentes na sua situação. Quando bem pequena, rente do amor real pela mãe, por ter, como disse amava muito a mãe, mas, a partir do nascimento "invertido os papéis: agora só eu tenho um da irmã mais nova, voltara-se contra a mãe e se marido". Essa culpa inconsciente pelo sentimen- tornara "a garotinha do papai". Lembrava-se de to também inconsciente de vitória sobre a mãe a ter sido com a mãe por muitos anos, mas impedia de exercer uma sexualidade plena com superou essa fase e teve com ela um relaciona- marido, até que tanto culpa como sentimento 28 29</p><p>SUPEREGO ONDO 0 SUPEREGO de vitória foram desvelados e compreendidos no trabalho. que, embora achasse estimulante e in- processo de análise. desempenhava com entusiasmo cada Como ocorreu nesse caso, sentimentos depressi- menor. A história dela continha uma vos brandos ou graves costumam ser sinal de cul- tragédia familiar: a irmã mais nova sofrera um pa inconsciente. A própria depressão pode assumir acidente quando ambas eram adolescentes e na- diversas formas: letargia, cansaço, sonolência, sen- davam nas férias. Em decorrência disso, a irmã timento vago de infelicidade, ausência de prazer era portadora de uma invalidez permanente. A ou de entusiasmo. Em outras palavras, se O supe- paciente estava consciente de que se sentia tris- rego pode atacar fazendo-nos sentir culpados, pode desanimada e até oprimida pela deficiência da também atacar de formas muito mais sub-reptícias, mesmo não tendo responsabilidade pelo fazendo-nos sentir deprimidos ou simplesmente que acontecera. Mas não se deu conta de quanto "inferiores". É capaz de drenar todo O prazer, dei- sentia culpada até que um sonho a fez recordar xando-nos com a sensação de que a vida não tem ocorrido quando era bem pequena, sentido. Mesmo que não nos sintamos culpados no por volta dos 3 anos de idade. Lembrou-se de es- plano consciente, talvez sejamos punidos por algo tar sentada à mesa de jantar com pai e O irmão de que temos uma culpa inconsciente. mais velho, enquanto a mãe dava de comer à irmã De que podemos sentir culpa no plano do in- menor - na época, bebê - e a punha para dormir. consciente? Vejamos um pequeno exemplo disso, E lembrou-se do desgosto de não haver comida tomado de outra paciente em análise. Uma jovem suficiente para ela própria e de que odiava a recorreu à análise porque sentia dificuldade de Num acesso de raiva, começou a chorar e a recla- manter relacionamentos sérios e de ter prazer no mar. até que a mandaram sair da mesa. 30 31</p><p>SUPEREGO ONCE A julgar pela descrição daquilo de que se lem- thenne. de forma súbita e cruel, após 30 anos de brava, havia, na verdade, comida mais que sufi- casamento. Os amigos e a família ficaram cho- ciente na mesa. Ficou claro, então, que ela sentia cados e perplexos com que lhes pareceu um falta mesmo da mãe. A imagem do bebê sendo comportamento frio e repentino, sem explicação. amamentado pela mãe a enchera de sentimentos De ele literalmente erigiu uma parede no de dor e de privação, bem como de ciúme e ódio quarto do casal, a fim de separar sua parte da do bebê que recebia tudo que ela própria queria. Depois, vendo que a medida não fora sufi- O acidente trágico sofrido pela pareceu a para tirar a mulher da frente dele, Dickens realização dos desejos muito comuns de vingan- insistiu que ela deixasse a casa. Com um ódio im- ça da paciente. A paciente era incapaz de associar a tentou tirar-lhe as crianças. Na residên- lembrança da hostilidade para com a irmã pequena, do casal, ficaram escritor e os filhos, menos quando criança, e a tristeza por sua deficiência, por- e mais a irmã da ex-mulher, Georgina, que, se fizesse, sentiria uma culpa para cuidar dele. Logo após a separação, Dickens Contudo, ela não fez as correlações. A culpa mostrava ódio por Catherine e "um sentimen- permaneceu inconsciente, e a paciente se punia to brutal de por qualquer um que ele pela agressividade infantil negando-se qualquer achasse estar "do lado dela". Sentia-se cheio de alegria ou satisfação na vida. si e plenamente justificado em seus atos. Estava Visto por esse prisma, um episódio na vida de convencido de que tinha razão e insistia em que Charles Dickens, famoso romancista do século amigos, perplexos, concordassem com ele. XIX, talvez seja um exemplo de culpa não ad- Por algum tempo, escritor sentiu-se aliviado mitida. Em 1858, Dickens deixou a mulher, Ca- com as mudanças que fizera em sua vida Pouco 32</p><p>SUPEREGO ONCE a pouco, porém, seu comportamento tornou-se Por todo outono inverno [...] na Inglaterra, na fonte de preocupação dos amigos e também dos e na Irlanda, ele continuou "assassinando seus médicos. Dickens deu início a um "turbi- regularidade que se tornou um lhão" de atividades, com longas excursões pelas Ilhas Britânicas, nas quais se apresentava em te- Ficou muito doente. Amigos contaram que ele atros, fazendo representações das suas obras. A parecia escolha das obras variou com passar das sema- nas, mas um capítulo foi sempre mantido: lia em envelhecido e esgotado, com rugas profun- todas as apresentações "A Morte de Nancy", do nos do rosto e em torno dos olhos; [havia] can- romance Oliver Twist. Nessa passagem, Bill Sikes, saço em seu olhar e um geral de fadiga e criminoso abominável, assassina com perversi- dade sua boa, inocente e amável companheira, Fred Kaplan, recente biógrafo do romancista, Nancy. Dickens representava ambas as persona- escreve gens a mulher inocente, atacada com brutalida- de, e O agressor feroz. Conforme as semanas e os Quando [Dickens] representava Sikes assassinando meses se passaram, as apresentações adquiriram Nancy, criava no palco a ilusão de que ele era Sikes, de um caráter cada vez mais frenético. Dickens con- sua vontade e seu coração estavam empenhados tou a amigos que tinha dificuldade em separar-se naquele crime. E estavam. Matando-a repetidas do texto e que, depois de cada ensaio, ele cami- ele se expressava com deslocada contra as nhava pelas ruas com "a vaga sensação de estar mulheres da sua vida: a mãe e a esposa H sendo to assassinar Nancy, cometia um crime de 34</p><p>SUPEREGO RIGOR EXTREMO DO SUPEREGO INTERNO [...] que era possível apenas na ficção. Sua identi- portanto, que O que perseguia O escritor ficação com Sikes era tão poderosa que nem mesmo a quando ele deixava O teatro era O seu superego. morte de Sikes era capaz de da prisão emo- cional dessa o RIGOR EXTREMO DO SUPEREGO INTERNO Depois das apresentações, prossegue Kaplan: Uma das áreas mais importantes a examinar na investigação de como superego trabalha é a Um criminoso desprezível ainda vagava dentro dele. relativa rigidez ou brandura do superego de al- Terminada a leitura, quando ele saía do teatro, era em Quem é saudável tem um quase como se esperasse ser preso na Espiava superego que, em geral, O ajuda a se sentir bem por sobre os ombros para ver quem seguia. consigo mesmo, culpando-o apenas quando se comportar mal. Um superego saudável é como Ao lermos essa descrição aflitiva, perturbado- um pai ou uma mãe compreensivos mas firmes: ra, é difícil evitar a conclusão de que havia na tem suas regras, mas sabe ser tolerante em even- representação daquela cena ficcional muito mais tuais transgressões; pode-se argumentar com ele do que a história de Bill Sikes e Nancy. Somos assim, aplacá-lo. Se me comporto mal, mas quase forçados a achar que toda noite se ence- reconheço que me comportei mal e procuro re- nava no palco outro assassinato; que, incapaz de parar O que fiz, em geral meu superego me dará enfrentar a culpa e a vergonha pelo tratamento algum crédito por isso e me perdoará. A repara- dispensado à esposa, Dickens tinha de encená- ção a tentativa de corrigir erro é correlata à lo e reencená-lo compulsivamente. Sou levada a noção religiosa e espiritual de redenção. Implica 36 37</p><p>SUPEREGO sempre reconhecimento da culpa e desejo de o SUPEREGO PROJETADO reparar erro. EM OUTRA PESSOA Um indivíduo perseguido por um superego As vezes. quando superego é violento demais de um rigor excessivo pode ser retratado como - quando a culpa é insuportável -, projetamos O inconscientemente vergado sob uma montanha para fora, em outra pessoa. Isso signi- instável de culpa. Reconhecer sua magnitude ou fica que deslocamos a voz crítica para O outro e tentar reduzir O seu peso é arriscar-se a que a crítica parte dele. A pessoa que uma arrasadora avalanche de vergonha. Pessoas achamos que nos critica talvez não esteja fazen- assim desafortunadas, incapazes de qualquer ini- do critica de espécie alguma. Um olhar diferente, ciativa que início ao processo de reparação, es- um comentário de passagem ou um telefonema tão fadadas à reprovação e ao ataque incessantes não respondido parecem às vezes indícios de re- de dentro delas mesmas. provação ou censura. Pode dar uma sensação ter- Quem tem um superego tão cruel geralmente imaginar que alguém nos persegue ou criti- precisa se livrar dele de um modo ou de outro, mas não tão dolorosa quanto odiarmos a nós porque se não O fizer corre um grande risco de mesmos uma situação que não dá trégua. Em causar mal a si próprio ou aos outros. Nos casos certas ocasiões, as pessoas podem se tornar bas- extremos, os relacionamentos sofrem prejuízos e tante paranóicas a fim de se defender da própria uma depressão aguda causa dificuldades no tra- culpa inconsciente. balho. Nos casos mais graves, O suicídio ou mes- Vejamos este exemplo: Helene Deutsch escre- mo O assassinato parecem ser único meio de ve sobre uma paciente que não conseguiu pagar calar a impiedosa ofensiva interna. sessões de análise por algum tempo. 38</p><p>SUPEREGO SUPEREGO PROJETADO EM OUTRA PESSOA de mostrar-se agradecida pela compreensão da identificado como perseguidor, e ele é quem analista, a paciente tornou-se bastante agressi- devena se sentir culpado. va. Pôs-se a vasculhar os dois anos anteriores de A fim de escapar da culpa inconsciente e insu- análise, "lembrando-se" de descuidos da analis- portável, algumas pessoas tentam provocar a cen- ta, de momentos em que a analista a teria enten- sura de outros. Freud escreveu sobre aqueles que dido mal ou destratado. A dra. Deutsch descre- caracterizou de "criminosos em ve isso como de um sentimento de culpa", pessoas ameaçadas por um sentimento de maldade que não podem uma torrente de recordações envolvendo incidentes entender nem suportar - gente cujos sentimen- menores ocorridos na análise, os quais ela distorcia tos de culpa são tão poderosos que só podem ser conforme the convinha. [...] Sustentava, por exem- aliviados pela prática efetiva de uma plo, que a análise e futuro dela mesma haviam sido Existem duas razões para isso. Em primeiro lu- arruinados por um telefonema que abreviara uma praticar uma maldade faz sentimento de das sessões em poucos minutos [e insistia em afirmar parecer racional: crime, por pior que seja, que] eu fizera aquilo por ter profunda antipatia por é circunscrito e situado no mundo real, sendo. ela. Ao jogar a culpa em mim, ela pôde se livrar da portanto, "administrável". Em segundo lugar. a culpa e, portanto, também da depressão. punição que se segue à má ação é capaz de aliviar temporariamente parte do sentimento de Esse exemplo mostra uma das maneiras de se Isso acontece porque a punição de uma autorida- esquivar de sentimentos de culpa, acusando ou- de externa pode ser menos devastadora do tros de perseguição e crítica. Desse modo, ou- punição imposta por um superego muito 40</p><p>SUPEREGO CONCEITO PSICANALITICO E SUPREEGO O SUPEREGO DENTRO DE NÓS, MAS servir para nada, de inútil, de não passar de um DIRIGIDO A OUTRA PESSOA digno de pena. Essa pode ter vindo do Este é um modo comum de lidar com um su- seu pai, mas agora se encontra dentro dele, sem- perego rigoroso: em vez de permitir que ele nos ameaçando com críticas ferrenhas e des- persiga, nós O voltamos contra outras pessoas e prezo. O que ele faz com essa situação as perseguimos. James Thurber escreveu certa Livra-se da voz voltada contra si e a redireciona vez uma história sobre um pai cujo filho tinha para filho. O filho torna-se, então, objeto de medo de outras crianças. O pai obriga filho a desprezo, deixando-o livre da crítica. enfrentar os valentões, insiste que menino lute Todos nós conhecemos pessoas assim, que contra eles. O garotinho tenta fazer que pai parecem mandonas, censoras ou autoritárias. quer, mas, diante dos valentões, sente muito Conseguem que nos sintamos diminuídos, de- medo e foge. A reação do pai é gritar com o filho, sastrados ou estúpidos. Da próxima vez que intimidá-lo exatamente como fizeram as topar com uma pessoa dessas, lembre-se crianças: "Seu chorão medroso! Seu covardezi- de que muito provavelmente ela estará transfe- nho inútil!" rindo para você os maus sentimentos dela mes- Podemos entender essa história como a da luta para livrar-se deles. perdida do pai contra próprio superego intimi- dador. É de imaginar que esse pai tenha passado o CONCEITO PSICANALÍTICO DE por alguma situação em que se viu denegrido e SUPEREGO diminuído por um lado bastante cruel e assusta- Como se forma superego dentro dor dele mesmo, que O acusa de covarde, de não Como adcuirimos a noção de do 42</p><p>O SUPEREGO O PSICANALITICO DE SUPEREGO ser civilizado? Por que obedecemos à lei, tratamos pequenos demais para questioná-los são os outros com correção ou respeitamos os direi- durante a infância e se estabelecem tos alheios? Paramos no sinal vermelho no meio uma autoridade dentro de nós nosso da noite, quando, se tivéssemos seguido adiante, ninguém ficaria sabendo. Não tocamos no que é Desse modo, os pais, suas opiniões e quali- dos outros, mesmo que não sejamos apanhados dades e, mais tarde, as opiniões e as qualida- se roubarmos alguma coisa. Consideramos justo des das pessoas que são próximas ou admira- que os menos afortunados recebam ajuda e pro- mos tornam-se uma parte de nós teção dos mais afortunados na sociedade. Nem personalidade de todos é bastante sempre é assim, claro, mas, de modo geral, é pelas pessoas importantes com quem que ocorre. Cada um de nós carrega um policial ao longo da vida, sobretudo nos moralizante, balizador e inibidor. Mas como isso anos de vida. O superego é exem- acontece? Como é que um bebê completamente plo primordial de como essas identificações egoísta se transforma em um adulto civilizado? afetam profundamente a personalidade: é facil Como adquirimos um superego? diferenciar uma pessoa com um superego duto A resposta simples dada por Freud é que deve- e muito rigoroso de outra mais mos a consciência à experiência com a autorida- indulgente consigo mesma. Não se trata de, juízo, as críticas e as punições dos pais, em julgamento de valor: uma personalidade especial, acreditava Freud, do pai. Os juízos (ou, necessariamente melhor do que outra; cada na verdade, todo um modo de pensar certo e qual pode ter pontos fortes errado) provenientes dos pais e aceitos quando são personalidades 44</p><p>O INTROJEÇÃO E IDENTIFICAÇÃO: SUPEREGO SE FORMA Apresento a seguir a base teórica do conceito chegando por vezes ao ódio, é a característica psicanalítico de superego. Claro, será necessário distintiva primária da depressão. Abraham no- recorrer a conceitos e idéias de alguma complexi- tou que as pessoas muito deprimidas se pareciam dade e às vezes difíceis de entender. com quem estava de luto, mas não fica- va claro quem ou que elas haviam perdido ou INTROJEÇÃO E IDENTIFICAÇÃO: morrera. Além disso, parecia uma espécie de luto COMO O SUPEREGO SE FORMA de controle: longo e excessivo, bem como Demorou muito tempo para a psicanálise en- Essa teoria a de tender como se desenvolve superego de cada que a depressão equivaleria a um luto descontro- um, mas começou pelas tentativas de Freud e de - manteve-se como teoria psicanalítica bá- outro pioneiro da psicanálise, Karl Abraham, de da depressão. Seu aprimoramento nos anos entender e tratar pacientes que sofriam do que seguintes levou à compreensão não apenas da de- então se chamava melancolia (estado que hoje doença, mas também do conceito denominamos depressão). Eles notaram que os 03 existência de um superego dentro de cada um, pacientes que sofrem de "melancolia" criticam- bem como da relação das funções desse superego se sem cessar - acusam-se de não valer nada, de com os distúrbios depressivos. maldade, de indelicadeza, de não se importa- Abraham explorou a comparação entre a tris- rem com ninguém além deles mesmos, de uma teza do luto e a depressão a fim de explicar a úl- incapacidade de fazer bem que quer que seja, tima. Afirmou que, embora tanto O lute como de decepcionar os entes queridos (pais, amigos, a depressão sejam a resposta a uma perda, na cônjuges) e assim por diante. Essa autocrítica, depressão existiria também uma hostilidade in- 46</p><p>SUPEREGO INTROJEÇÃO E IDENTIFICAÇÃO: COMO SUPEREGO SE FORMA consciente. Em outras palavras, a diferença entre morte, decepção ou traição - de um objeto ama- a depressão e O processo normal do luto é que do (ou seja, uma pessoa, coisa ou instituição que na primeira existe também muita raiva. Abraham tenha sido objeto de sentimentos E sugeriu ainda ser mais provável um indivíduo Freud concorda com Abraham quanto à exis- ir além do luto (normal) e entrar em depressão tência de hostilidade no deprimido. Faz, porém, (anormal) quando sua reação à perda de alguém outra importante distinção: se O luto sempre se que ama se apresentar fortemente carregada de refere a um objeto percebido conscientemente e raiva ou mesmo de ódio. Foi uma descoberta bri- perdido de fato, a melancolia, embora possa ter lhante, baseada em uma observação clínica agu- um objeto semelhante, é sentida com mais fre- çada: O deprimido não está apenas infeliz, mas em relação a uma perda que só se pode também furioso. localizar no inconsciente. Em 1916, Freud deu continuidade ao estu- Freud detalhou as características compartilha- do da depressão e ampliou em grande medida das pelos que lamentam a morte ou O distancia- num importante ensaio teórico que estabeleceu mento de alguém e pelas pessoas em depressão O modelo para a compreensão dos processos da profunda evidente, nas quais, contudo, não exis- "introjeção" e da "identificação", abrindo cami- te indício óbvio de perda. Tais características CO- nho, assim, para O entendimento da formação muns são conhecidas de todos e compreendem do superego. Nesse texto, "Luto e um desalento doloroso, uma falta de interesse Freud acolhe sem restrições a de Abraham. pelo mundo exterior, uma redução das ativida- Enfatiza também a relação entre luto e depres- des e perda da capacidade de afeto pelas pessoas são e considera os dois uma à perda por ao redor. Mas, além disso tudo, diz Freud, os de- 48</p><p>O SUPEREGO INTROJEÇÃO E IDENTIFICAÇÃO: SUPEREGO SE FORMA primidos exibem certos traços que os enlutados Contudo, no luto puro e simples, esse proces- não apresentam: uma enorme perda da auto-es- SO penoso e infeliz segue um curso progressivo: tima, auto-acusação e mesmo uma necessidade aos poucos, interesse, os pensamentos e os ilusória de punição. Freud elaborou uma teoria sentimentos afastam-se e separam-se da pessoa para explicar todas essas características clínicas. perdida; o afastamento ocorre pouco a pouco, (Esses sentimentos, é claro, são sentidos em cer- até que, ao final, enlutado fica livre para pros- tos momentos por muitos dos que atravessam seguir a sua vida - para amar outra pessoa ou um período de luto. Quando, porém, tornam-se adquirir novos interesses. intratáveis e se prolongam por muito tempo, os Na depressão ocorre uma diferença. Para que psicanalistas e outros profissionais acreditam que a perda da pessoa amada resulte em depressão. processo do luto foi agravado pela depressão.) relacionamento com esse ente querido precisa O que Freud disse foi que, tanto no luto como ter sido, em essência, um relacionamento narci- na depressão, verifica-se a perda real ou fan- sista isto objeto amado era percebido de tasiosa - de um objeto amado. No luto normal, fato como pertencente ao deprimido, como par- segue-se um processo bastante lento e penoso, te ou extensão do seu eu. Assim. a sensação de em que todo interesse e toda a energia até en- empobrecimento é experimentada no eu em si: tão canalizados para aquele objeto são vagarosa "Eu (sem a pessoa amada) não sou nada, nada e dolorosamente retirados dele. num processo me conforta, nada em mim tem Se para de separação. Trata-se sempre de um processo enlutado comum mundo perdeu bastante penoso, como pode confirmar qual- para deprimido também O eu perdeu a capaci- quer um que já tenha perdido um ente querido. dade de sentir qualquer interesse. Samuel Taylor 50 51</p><p>INTROJEÇÃO E IDENTIFICAÇÃO: COMO SUPEREGO FORMA Coleridge descreve essa experiência com grande A luz verde a demorar-se no oeste; beleza em seu poema Dejection: An Ode Não posso esperar arrancar de formas exteriores to: Uma Ode]: A paixão e a vida que brotam de dentro.*13 E no entanto contemplo com que olhar vazio! Na depressão, ademais, não se trata apenas E aquelas nuvens finas lá em cima, em flocos e fai- de um eu que se torna incapaz de sentir inte- resse pelo mundo ou amor por quem quer que xas, Que emprestam seu movimento às estrelas: seja, como Coleridge descreve: na verdade. Aquelas estrelas que deslizam por trás delas ou em eu torna-se objeto de ódio, crítica e aviltamento meio a elas, desmedidos. Em tal estado, as pessoas se sen- Ora reluzentes, ora ofuscadas, mas sempre visíveis; tem como se não valor algum, ainda Além, a lua crescente, tão fixa como se crescesse que, paradoxalmente, se verifique também uma Em seu lago azul sem nuvens ou estrelas; aura de importância e engrandecimento nas Vejo tudo isso com tamanha limpidez, queixas que fazem de si mesmas. Dizem, por Vejo, não sinto, como tudo é belo! exemplo: "Sou a pessoa mais inútil do Ou: "Claro que ninguém gosta de mim. Falta-me vivacidade; seria amigo de alguém tão repulsivo?" Ou ainda: E como poderia ela ajudar-me "É óbvio que eu nunca consegui me manter num A livrar meu peito do peso sufocante? emprego. Acho que sou preguiçoso e autocrítico Esforço vão seria, * Esta é uma tradução literal para melhor compreensão do Ainda que eu para sempre contemplasse poema original de Coleridge na nota 13. (N. do 53 52</p><p>INTROJEÇÃO E IDENTIFICAÇÃO: SUPEREGO SE FORMA SUPEREGO demais". E assim por diante. O que Freud notou clusive passado. Embaraçosa e indesejável, a em todas essas queixas que deprimido faz de raiva é negada porque é impossível admiti-la. si mesmo é que, na realidade, elas parecem di- quanto mais exprimi-la num momento em que zer respeito ou dirigir-se ao objeto perdido ou, O luto e a tristeza são as únicas emoções aceitá- pelo menos, parte do eu agora identifi- veis. Em vez disso, O objeto perdido é introje- cada com esse objeto. "A sombra do objeto caiu tado: é absorvido pelo eu, identificado com ele sobre ego", disse Freud para descrever O que e transformado em parte é re- parece acontecer. 14 preendido, atacado e criticado (por ter partido, Isso tudo pode parecer complicado e morrido, decepcionado) por outra porção do eu cil de entender. Vale lembrar, porém, que uma não identificada com objeto. Assim, ataca-se diferença entre os enlutados e os deprimidos é uma parte do eu como se fosse objeto. C que que estes últimos sentem mais raiva dos entes aparenta ser uma parte do eu atacando amados que perderam. Mas não se trata de uma como se tivesse irrompido uma acirrada guerra raiva comum, resquício de um ressentimento civil emocional, é, na verdade, algo bem dife- doméstico cotidiano ou de alguma decepção. rente. Há, de fato, uma guerra em curso, mas Se alguém acredita, literalmente, que a pessoa ela não pode ser reconhecida, porque é travada amada de fato lhe pertence e, portanto, não tem entre eu e um objeto que é amado de forma vida independente, a morte dessa pessoa pode ambivalente. Admitir a guerra implicaria abrir lhe parecer um ato terrivel de uma mão do objeto amado, concedendo-lhe, per as- traição de tudo aquilo que tornava valioso O sim dizer, sua liberdade. A sensação de perda relacionamento com ela. Tudo está perdido, in- que isso acarretaria é insuportável: 55 54</p><p>SUPEREGO INTROJEÇÃO E Dessa forma, a perda do objeto se transformou em porque tirara férias mais longas que de perda do ego, e 0 conflito entre 0 ego e a pessoa ama- Ao solicitar as férias, sentira-se no que da, numa cisão entre a atividade crítica do ego e estava fazendo; durante as férias, ocor- ego alterado pela identificação. rera-lhe que aquilo era uma irresponsabilida- de, que era negligência afastar-se do escritório E qual é O propósito disso? O propósito é refu- por tanto tempo e era muito provável que, na tar sentimentos reais pela perda do outro: desse sua ausência, tudo desse errado. "Como posso modo, O objeto não está perdido, não é alvo de ter sido estúpido a ponto de planejar férias tão luto nem se abre mão dele - na verdade, instala- longas?" - perguntou. Era O que sempre se dentro do eu e ali permanece, para ser tortura- disse: comportava-se com responsabilidade por do, punido e controlado. um tempo e, depois, punha tudo a perder com Um exemplo nos ajudará. Em seu primeiro uma atitude irrefletida. Era óbvio que os outros ano de análise, um paciente meu encarou com sócios da firma estariam furiosos com ele, por- total a chegada das férias de verão. que decisões importantes deviam ter Ficou contente por não ter de fazer a viagem de das na sua ausência e ele não estava para par- carro durante seis semanas e pela oportunidade ticipar. De novo, perguntou-se: como podia ter de dedicar mais tempo a si e sua família. Com sido tão estúpido, ficando longe por tanto tem- certeza, não se importava com a minha ausên- po? Naquela manhã, logo em seguida à sessão cia. Terminadas as ele voltou para a pri- de análise, retornaria ao escritório pela primeira meira sessão num estado cheio de an- vez depois das férias e não tinha idéia de como siedade. Tinha de perderia O cargo, encarar os colegas. 56</p><p>SUPEREGO INTROJEÇÃO E IDENTIFICAÇÃO: Claro que esse paciente estava cheio de senti- rante as férias. No plano consciente. ele não se mentos de autoperseguição. Um lado bastante crí- importou com O fato de que eu me ausentaria e tico dele repreendia e punia O outro, porque esse, me tratou muito bem. Ou seja, não sentiu nenhu- entre outras coisas, era estúpido, irresponsável e ma perda consciente. E, a fim de proteger a folgado (tirando férias mais longas). No entanto, dois da sua raiva de mim, não exerceu essa raiva à medida que debatemos a situação e mais fatos comigo: ao contrário, uma parte dele identificou- vieram à tona (como, por exemplo, que ele havia se comigo, mas com um "eu" que ele achava ir- tirado apenas dois dias a mais de férias do que responsável, negligente e Por fim, pôs-se costume e que combinara essas férias com diver- a punir essa parte dele identificada comigo com sas pessoas no trabalho, antes de sair), tornou-se uma crueldade sem escrúpulos. evidente na sessão que toda aquela crítica a que O que espero ter mostrado com esse exemplo ele se submetia com tanto tormento era dirigida é a internalização de um conflito que na verda- muito mais à analista. Alguém havia sido irres- de é de um relacionamento em vez de ser um ponsável e negligente. Alguém deveria perder O conflito entre mim e ele, é vivenciado como um emprego. Alguém tinha deixado pessoas em apu- conflito entre ele (que critica) e ele (que é criti- ros, sem a ajuda que elas necessitavam nas férias cado). Ao formular essa teoria da internalização e de verão. Alguém estava sendo condescendente identificação de figuras externas, Freud criou um demais e se divertia enquanto outros tinham de modelo de internalização das figuras parentais se virar sem ajuda alguma. que se transformam no superego. A teoria Como vemos, O paciente se de toda e em certas pessoas, a perda não é sentida como qualquer ameaça de perda dependência du- perda, mas como mudança no eu. Aspectos do 58</p><p>O SUPEREGO E IDENTIFICAÇÃO: COMO SUPEREGO SE FORMA objeto perdido são internalizados e identificados Essa parece ser uma história bem comum, não com: "Não perdi você; tornei-me você". muito complicada, e poderíamos perguntar se Vejamos outro exemplo, importante porque ela não é apenas sobre um menino que parte desse processo ocorre numa criança peque- com pai que é um comportamento na. Uma jovem família viajava de trem pai, mãe Se, contudo, formos um pouco além na e dois meninos, de 4 e 2 anos de idade. A mãe veremos que Thomas não está apenas dizendo a havia levado lápis e papel para distrair as crianças, James que pai lhe dissera. Em certa medi- mas a viagem era longa e os meninos começaram da, Thomas transformou-se no pai. Ele não disse a se cansar e se aborrecer com confinamento. (ainda que tivesse idade suficiente para esta for- Thomas, mais velho, primeiro se pôs a andar mulação mais complicada): "Papai disse que isto pelo corredor do vagão e depois a correr; passados aqui não é um parquinho". De certo modo. alguns minutos, pai, um pouco irritado, segu- gritar com irmão travesso, ele está sendo rou-o pelos braços e disse: "Isto aqui não é um Tem-se aí uma "identificação" - nesse caso, uma parquinho, Thomas". Parecendo sujeitar-se, me- identificação com um aspecto autoritário parti- nino tornou a se sentar. Minutos depois, caçula, cular do pai. Os psicanalistas poderiam também James, levantou-se de repente, ficou em pé no as- chamar isso de "introjeção". O menino assimilou sento para olhar pela janela e, em seguida, subiu pai dentro de si e uma parte dele identificou-se na mesa entre uma e outra fileira de assentos. "Isto com pai. aqui não é um parquinho, James! Isto aqui não é Thomas, é claro, tem apenas 4 anos. Imagina- um parquinho!" gritou Thomas. transformando- mos (e esperamos) que ele continue por mais al- se agora na severa da autoridade. guns anos correndo pelos corredores de um trem 60</p><p>SUPEREGO e fazendo coisas que levarão pai a em relação a ela quanto ela própria se sente em lo. Mas, pouco a pouco. pai, à medida que lhe relação a eles. Assim, o e/ou a mãe que ela disser O que é e que não é permitido, será cada introjeta são introjetados como ela os imagina vez mais introjetado, e a que diz "isto aqui não - e em geral mais irados, mais duros e mais se- é um parquinho" partirá de dentro do próprio veros do que de fato são. Thomas e será dirigida àquela outra sua parte Retomando exemplo anterior, pai pode ter cujo impulso é comportar-se mal. Seu superego sido um pouco ranzinza com Thomas ao proi- estará constituído. bi-lo de correr pelo corredor do trem. Mas, ao Essa, como afirmei antes, é a resposta sim- gritar com irmão James, Thomas demonstrou ples. A criança introjeta a dos pais, que se bem mais do que um simples mau humor: ele torna sua autoridade interna, seu superego. O estava furioso e foi arrogante e assustador. Tra- processo, porém, é muito mais complicado do tou James com arrogância e bem maiores que isso, uma vez que a imagem que a crian- do que as do pai contra Esse um quadro ça faz dos pais, das suas ordens e proibições, é bastante conhecido: meninas pequenas batem na profundamente afetada pelos sentimentos dela sua boneca com força muito maior do que jamais própria. Uma criança ciumenta e irada costu- apanharam; os meninos que quase sempre foram ma achar os pais também irados e bravos. Por tratados com delicadeza pelos voltam-se com sentir-se horrorosa dentro de si mesma, ela vê desprezo contra os irmãos mais mundo todo - e sobretudo os pais como igual- Trata-se aí de um reflexo dos complicados mente horrorosos. Ela projeta seus sentimentos processos de projeção e introjeção que se desen- ruins nos pais, imagina-os sentindo-se tão mal rolam ao longo da infância, desde o princípio 62 63</p><p>O da vida. A criança atribui seus sentimentos, seu SUPEREGO, O HERDEIRO amor e seu ódio às pessoas importantes na sua DO COMPLEXO DE ÉDIPO vida. Quando está bem consigo mesma e sente Freud acreditava que superego constitui-se carinho pelos pais, imagina-os - se as demais por volta da idade de Thomas - entre os 3 e os 5 coisas estiverem equiparadas carinhosos para anos e vinculava essa constituição à riqueza e com ela também. Imaginando os pais como figu- à complexidade dos relacionamentos emocionais ras externas amorosas no mundo real, a criança existentes nas famílias, bem como ao aconteci- terá dentro dela uma imagem igualmente amo- mento central no desenvolvimento emocional de rosa deles e se identificará com essa imagem de toda criança: complexo de Édipo. Para enten- pais amorosos, reforçando a sua imagem amorosa der complexo de e como sua resolução de si mesma. O contrário também é verdadeiro: conduz à formação do superego. precisamos en- uma criança que se sente cheia de ódio, ciúme e tender um pouco a teoria freudiana da sexualida- ressentimento imagina que os pais a odeiam. Em- de infantil. bora não saibamos O que ocorria no interior de Em seu "Três Ensaios sobre a Teoria da Se- Thomas, podemos supor que ele se sentiu traído xualidade" (publicado em 1905, mas revisto pelo pai amado e estava também furioso com ele, nas edições Freud em razão do mau humor demonstrado. Sua ima- aos leitores uma idéia chocante na época: se- gem do pai ganhou assim O mesmo tom da sua xualidade humana não começa de repente na raiva, e foi com esse pai raivose que Thomas se puberdade e sim nos primeiros identificou: estava "sendo" esse pai quando gri- tos, físicos e emocionais, da vida Ao tou com James. fazê-lo, Freud aprofundou e ampliou a visão 64 65</p><p>SUPEREGO, DE SUPEREGO que se tinha da sexualidade, incluindo nela as idéia perturbadora ou mesmo repugnante ou primeiríssimas sensações corpóreas e os rela- seja, um bebê ao sugar seio da mãe experi- cionamentos amorosos primordiais tanto do menta um tipo de prazer que se pode denomi- bebê quanto da criança pequena. Ele sabia que nar, de um modo bem geral, "sexual". isto é. suas idéias seriam perturbadoras para os lei- associado a áreas específicas, mutáveis, tores, e assim foi. Freud notou, por exemplo, veis do seu corpo. Se, contudo, entendermos que bebê, ao mamar no seio da mãe, não o que esse prazer é sexual apenas de um modo faz apenas para alimentar-se, mas também por infantil, talvez se torne mais fácil aceitar que prazer, um prazer ligado à boca. A boca que ele contém as primeiras sementes daquilo que suga, morde e prende mamilo da mãe é um um dia será a sexualidade adulta. órgão de prazer Freud a descreveu como a Pois bem, durante essa "fase oral", primeira "zona erógena". do desenvolvimento, a boca da criança é bas= Enquanto bebê suga e lambe ou, depois, tante sensível e excitável, e o bebê logo começa belisca e morde, ele mantém relação com a a associar prazer que sente ao sugar à mãe, a qual, por sua vez, tem reações próprias que o amamenta. Mais tarde, pensava Freud. às ações dele. Prazer, dor, excitação e satisfa- por volta da época em que se passa a ensinar a ção não é difícil compreender por que Freud criança a usar vaso sanitário, sua sensibilida- julgou que essas atividades eram sexuais em de especial é transferida para reto, o a essência, embora, é claro, não genitais nem bexiga e a uretra. Muito de seu relacionamento sexuais à maneira adulta. Tampouco é difícil com a mãe, bastante intenso, girará em torno compreender por que as pessoas acharam essa de a criança urinar e defecar ou onde e 66</p><p>SUPEREGO SUPEREGO, DO DE quando, e como ambos se sentem em relação vezes viu a cabeça do pai na mesma altura que a isso tudo. a da mãe na cama -, mas, diferentemente do No entanto, em certa etapa da vida da crian- que ocorre com pai, seus pés só chegam a um ça Freud situou-a perto dos 3 ou 4 anos -, ponto logo abaixo da cintura dela. A excita- ela passa a ter sensações nos seus órgãos geni- ção insinuante do menino, porém, indica tais. Essa é a idade em que meninos e meninas inconscientemente, ele quis dizer outra começam a tocar e explorar a própria genitália, fingia que era muito maior, ou seja, em geral provocando constrangimento e vergo- que tinha genitais grandes e potentes nha nos pais. E como pai e mãe são os objetos do pai, que significa que ele poderia das suas emoções mais intensas, ambos - pai e mente ocupar lugar do pai ao lado da mãe tornam-se também objetos dos desejos cama de casal. sexuais da criança. Daí a crise edipiana. O menino quer tomar Um exemplo: um garoto de 5 anos sobe na lugar do pai junto à mãe (assim como, inversa- cama e se deita ao lado da mãe, com a cabeça na mente, a menina quer tomar lugar da mesma altura que a dela. Em seguida, fazendo outro lado, ele ama pai e na verdade não um gesto na direção de uma região não espe- livrar-se dele. Tem orgulho de pai ser cificada sob a coberta, abaixo do peito, ele diz e forte e sente-se mal, mas também à mãe: "Vamos fingir que eu sou muito maior quando começa a ser capaz de fazer as coisas me- lá para baixo". É claro que, conscientemente, lhor do que ele. Ao mesmo tempo, tem medo do menino está se referindo à sua altura; ele ali- que pai lhe faria se tentasse de fato nhou sua cabeça com a da mãe como tantas lugar dele... 68</p><p>SUPEREGO, HEROEIRO DO COMPLEXO DE O SUPEREGO O mesmo garoto às vezes repete xingamentos e, ao se dar conta do que fizera, arrancou os que ouviu pai dizer. "Seu desgraçado!" grita próprios olhos. para outra criança ou mesmo para um adulto de- O complexo de Édipo é a crise que ocorre sagradável. É evidente que poder xingar lhe pa- na vida de toda criança pequena quando ela CO- rece másculo, coisa de adulto. O pai, no entanto, meça a perceber que não pode nem jamais será não gosta que garoto diga tais coisas e O capaz de possuir por completo genitor de sexo be terminantemente de "Mas você diz", oposto ao seu isto é, quando meninos peque- queixa-se o menino. "E você, se quiser, vai poder nos têm de encarar fato de que não poderão dizer também, quando for mais velho", explica casar-se com a mãe ou quando as meninas pre- pai. "Os adultos podem fazer coisas que as crian- cisam enfrentar O fato de que jamais se casarão ças não podem." com pai. O desejo do menino de possuir a O que vemos nesse exemplo é que muitos mãe, por exemplo, O coloca em conflito com o sentimentos permeiam a relação dessas três pai. Ele quer tirar a mãe do pai, mas tem medo pessoas: mãe e pai comuns e seu filho também de que este fique bravo com ele e puna ou comum. Entre esses sentimentos estão amor, até castre por causa do desejo e da rivalida- admiração e desejo, bem como ciúme e rivali- de. Faz uma associação entre a óbvia reprovação dade. Freud reconheceu que essa configuração do pai à sua excitação sexual e os próprios sen- de sentimentos era não apenas normal, mas timentos secretos de ciúme e competitividade também onipresente. E deu a ela O nome de para com pai. "complexo de Édipo", inspirado no herói de É claro que, ao descrever esse complexo, Sófocles que matou pai. casou-se com a mãe precisamos empregar palavras que criança al- 70</p><p>SUPEREGO guma seria capaz de utilizar ao protagonizar relação de cada criança com seu superego vão conflito. Nenhuma criança pequena poderia depender de como ela lidou com suas comple- traduzir em palavras o seu complexo de Édi- xas e intensas ligações emocionais com os pais po. Não obstante, os conflitos edipianos geram ao longo da primeira infância, e em especial de sentimentos poderosos em toda criança, tão in- como ela lida com os acontecimentos críticos tensos que precisam ser reprimidos. A fim de do período edipiano. reprimi-los, ela renuncia ao genitor desejado como objeto de todo seu amor, mas, para fa- PROGRESSOS PSICANALÍTICOS zer isso, tem de fazer outra coisa também. Os RECENTES impulsos edipianos geradores de conflito são Embora todos os psicanalistas concordem por fim enfrentados mediante a internalização quanto à importância crucial do complexo de das restrições e proibições dos pais. Édipo no desenvolvimento psicológico, Essas restrições internalizadas impedem até como quanto ao papel significativo que ele de- mesmo a mera consideração dos impulsos edi- sempenha na formação do superego, alguns pianos, que são reprimidos permanentemente. acreditam que tanto um como outro se consti- Desse modo, superego - pois é nele que as tuem bem antes do que Freud supôs. Sobretude restrições e proibições se transformam - torna- Melanie Klein, cuja obra se desenvolveu dos es- se herdeiro do complexo de Édipo". A partir tudos de Freud e os ampliou, encontrou indícios desse momento, a criança carregará dentro de si de formas precoces do superego e do uma voz crítica própria, sua instância censora, de Édipo nas crianças pequenas que seu superego. As propriedades particulares da terminando por acreditar que experiências asso- 72</p><p>O SUPEREGO ciadas a manifestações primitivas de ambos ocor- como os primórdios do superego infantil. Ela no- rem desde muito cedo na vida do bebê. tou que, tão logo O bebê começa a perceber que Seu trabalho levou-a a concluir que os bebês pai e a mãe, alvo do seu amor, são os mesmos têm sentimentos fortes desde cedo e quase sem- pai e mãe que às vezes odeia - porque frustram, pre se sentem muito aflitos com as inevitáveis porque ficam juntos sem ele, porque abando- fantasias iradas, agressivas, que por vezes têm nam -, ele passa também a sentir tristeza e culpa sobre os pais. Um bebê que se sinta furioso por pelos ataques que desfere contra os dois. Klein ter ficado sozinho enquanto os pais conversam, chamou esse estado mental do - e. poste- riem ou trocam afagos pode imaginar que seus riormente, do adulto - de berros potentes estão de fato perpetrando uma para ela relacionada com O trabalho de superação violência contra os pais - os berros, afinal, são a do complexo de Édipo e com O estabelecimento única arma de que ele dispõe. Poderá, então, sen- de um superego saudável e útil. tir-se angustiado por acreditar que atacou de fato os pais, por imaginá-los feridos e mesmo dispos- CONCLUSÃO tos a um contra-ataque. Mais tarde, quando sua O superego é parte inevitável e necessária da noção de si mesmo e amor pelos pais se tornar experiência humana: todos nós vivemos com esse mais forte, a criança sentirá as primeiras mani- nosso juiz interno. Ele pode ser cruel e persecu- festações de culpa e tristeza pelos ataques irados tório, mas pode também ser bondoso e clemente. que inevitavelmente terá feito aos pais. Podemos senti-lo dentro de nós, projetá-lo em Melanie Klein entendeu esses sentimentos outras pessoas ou ainda voltá-lo contra elas para de angústia persecutória e, mais tarde, de culpa julgá-las com rigor, em vez de a nós mesmos. A 74 75</p><p>SUPEREGO relação de cada indivíduo com superego desen- NOTAS volve-se a partir dos seus relacionamentos - reais 1. Freud, S., The Ego and the Id (1923), in Standard Edition of the ou fantasiosos - com os pais e com outras figu- Complete Psychological Works of Sigmund Freud ES]. vol. XIX, trad. de James Strachey. Londres: Hogarth Press, 1953- ras importantes em sua vida, sendo, portanto, 1973, pp. 1-66 Ego Id (1923), in Edição Standard Brasileira um reflexo desses relacionamentos. E a relação das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (doravante, ES), vol. XIX, ed., Rio de Janeiro: Imago, 1986]. de cada indivíduo com superego terá também 2. Freud, S., "Civilisation and its Discontents" (1930), in ES, um efeito sobre os novos relacionamentos que ele vol. XXI, pp. 61, 71 ["O Mal-Estar na Civilização", in ES, vol. XXI]. criar ao longo da vida, assim como sobre os seus 3. Freud, S., "Humour" (1927), in ES, vol. XXI ["O Humor", in sentimentos acerca de si mesmo e a sua auto- ES, vol. Veja também Freud, S., "Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy", in ES, vol. X ["Análise de uma Fobia em imagem. um Menino de Cinco Anos", in ES, vol. X]. 4. Klein acredita que fantasias inconscientes conformam e organizam todo o nosso Ela diferencia phantasy, com "ph", de fantasy, com que de- nota um devaneio consciente. De acordo com a teoria niana, "as fantasias compõem a vida da mente São fantasias primitivas e, em alguns casos, permanentes que o ego tem a respeito de si mesmo e da sua relação com seus objetos internos, transformando-se elas próprias na base da estrutura da personalidade". R., On Bearing Unbearable States of Mind, introdução Roth (ed.), Londres: Routledge, 1999, pp. 2-3 Estados Mentais Insuportáveis, Rio de Janeiro: Veja Klein, M., The Psychoanalysis of Children (1932). dres: Karnac Books, 1998 [A Psicanálise de Rio de Janeiro: Imago, 1997]; Contributions to Psychoanalysis 1921- 1945, Londres: Hogarth Press, 1965 à São Paulo: Mestre Jou, 1981]. 76</p><p>SUPEREGO 5. Kaplan, F., Dickens, John Curtis (org.), Londres: Hodder and "perda do objeto" pode referir-se à morte da pessoa amada, mas Stoughton, 1988, p. 534. pode também indicar a sensação de se ter perdido o sentimento 6. Yates, E., extraído de carta citada em Kaplan, F., op. cit., p. amoroso pelo objeto, isto é, o fato de o objeto ter perdido sua 534. posição particular em nossa mente. 7. Kaplan, F., op. cit., p. 538. 13. Coleridge, S. T., "Dejection: An Ode", in Kermode, Hollander, J. (orgs.), The Oxford Anthology of English Litera- 8. Ib., p. 538. ture, Nova York: Oxford University Press, vol. 1973, pp. 9. Deutsch, H., Neuroses and Character Types, Clinical Psychoa- 276-277. {"And still I gaze - and with how blank an eye! / And nalytic Studies, Nova York: International Universities Press, those thin clouds above, in flakes and bars, / That give away 1965, p. 205. their motion to the stars: / Those stars, that glide behind them 10. Freud, S., "Some Character Types Met with in Psychoanalytic or between, / Now sparkling, now bedimmed, but always seen; Work, part III: Criminals from a Sense of Guilt", in SE, vol. / Yon crescent Moon, as fixed as if it grew / In its own cloudless, XIV, pp. 332-333 ["Alguns Tipos de Caráter Encontrados no starless lake of blue; / I see them all excellently fair, / I see, Trabalho parte III: Criminosos em not feel, how beautiful they are! / My genial spirits fail; / And de um Sentimento de Culpa", in ES, vol. XIV] what can these avail / To lift the smothering weight from off my breast? / It were a vain endeavour, / Though I should gaze forever 11. Abraham, K., "Notes on the Psychoanalytic Investigation and / On that green light that lingers in the west; / I may not hope Treatment of Manic-Depressive Insanity" (1912), in Selected from outward forms to win / The passion and the life, whose Papers of Karl Abraham, Londres: Karnac Books, 1988. Veja fountains are também Freud, S., "Mourning and Melancholy" (1917), in SE, vol. XIV, pp. 237-258 e melancolia", in ES, vol. 14. Freud, S., "Mourning and Melancholy", op. cit., p. 249. XIV]. 15. Muitas das teorias posteriores de Freud provêm diretamente 12. Um "objeto" é alguém ou alguma coisa que nos inspira senti- dessa idéia de um processo de internalização ("identificação" mentos intensos. Em geral trata-se de uma pessoa: mãe, marido ou Em 1921, Freud usou a idéia de "identifica- ou melhor amigo são todos "objetos", no sentido de que os ção" como base para a revisão da sua teoria dos grupos nossos sentimentos em relação a eles costumam ditar como nos ciais. A solidariedade em grupos, a "cola" que mantém juntas sentimos a respeito de nós mesmos. Por vezes, uma instituição as pessoas, é uma identificação da qual compartilham. pode se tornar um desses "objetos" para uma pessoa (o país em introjetam a mesma pessoa (ou idéia) como parte central de 5. que vive, digamos, ou time de futebol para qual torce). As- próprios (o ego de cada um). Os cristãos, por exemplo, nem-se em sua crença primordial em Cristo, que cada um deles sim, eu poderia, por exemplo, me sentir muito mal ao ver meu time perder um jogo importante. Outras vezes, uma idéia pode "carrega" no coração (veja Hinshelwood, R. D., Clinical tornar-se uma espécie de objeto, de modo que alguém que a Londres: Free Association Books, 1994, p. 20). ataque seja percebido como um inimigo perigoso. A expressão 16. Freud, S., "Mourning and Melancholy", op. cit., p. 249. 78 79</p>

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