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<p>Alteridade, fronteira e tradução na experiência de trânsfuga de classe de Annie Ernaux</p><p>Thayná Facó</p><p>Resumo: O ensaio proposto tem como ponto de partida o livro "O lugar" (1983) da escritora</p><p>francesa Annie Ernaux, no qual a autora entrelaça o pessoal e o coletivo, contextualizando a</p><p>vida de seu pai dentro das mudanças socioeconômicas que aconteceram na França no século</p><p>XX. Com a morte abrupta do pai, ela se debruça sobre memórias da infância e da</p><p>adolescência para examinar a distância emocional e cultural que se deu entre os dois,</p><p>conforme ela ascendia socialmente pela educação. O trabalho dialoga com ideias trabalhadas</p><p>na Semiótica da Cultura por Iuri Lotman, como semiosfera, alteridade e fronteira, e os</p><p>conceitos de trânsfuga de classe e habitus cunhados pelo sociólogo Pierre Bourdieu, a fim de</p><p>melhor compreender como o projeto de Ernaux se posiciona contra o esquecimento, operando</p><p>pela memória individual e coletiva.</p><p>Palavras-chave: Annie Ernaux; trânsfuga de classe; tradução; alteridade; fronteira</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Uma imagem: em uma escola em Lyon, ela aguardava para realizar uma prova</p><p>didática que lhe concederia o certificado de aptidão ao cargo de professora do ensino médio.</p><p>Deveria analisar algumas linhas de um romance de Balzac. Na sala da direção, ouviu críticas,</p><p>elogios e conselhos dos inspetores, sem saber se aquilo significava uma reprovação. Num</p><p>passe rápido, todos se levantaram: o veredito: "Meus parabéns, minha senhora". Na mesma</p><p>noite, "sentindo raiva e uma espécie de vergonha", escreveu uma carta aos pais contando da</p><p>aprovação. Agora seria professora.</p><p>Pulo temporal, outra cena: era domingo, começo de tarde, exatos dois meses após a</p><p>conquista da certificação. Sua mãe aparece no alto da escada. Estavam na casa em Y., onde os</p><p>cômodos eram divididos com o café-mercearia da família. Já não morava mais na região,</p><p>tinha ido ajudar a mãe nos cuidados com ele. Enxugou os olhos com o guardanapo e disse em</p><p>tom neutro: "Acabou". Depois disso, o que vê são os olhos de seu pai, estão fixos, deve ter</p><p>pedido para que os fechassem. Um homem de 67 anos, dono de um pequeno negócio,</p><p>ex-operário, tinha planos de se aposentar no ano seguinte.</p><p>Cenas banais como estas compõem a grande massa da vida. Ocorridas em meio a uma</p><p>família modesta, em uma pequena cidade do interior da França, no início dos anos 1970,</p><p>quando os meios de comunicação não eram ainda tão acessíveis, como não caírem no</p><p>esquecimento? Como sobreviverem ao tempo? O que nos dizem essas cenas, para além do</p><p>cotidiano comum? O que essas imagens evocam quando colocadas em relação? As duas</p><p>cenas marcam a início da narrativa de O lugar (1983), livro no qual a escritora francesa</p><p>Annie Ernaux captura um retrato sincero da vida de seu pai, um homem de origem</p><p>camponesa que, depois de trabalhar como operário por anos, se tornou dono de um</p><p>café-mercearia em Yvetot, uma comuna da região da Normandia. Mais do que uma biografia</p><p>do pai e de sua própria história — o que já seria disruptivo o suficiente visto que o exercício</p><p>autobiográfico foi, por muito tempo, "um privilégio reservado aos membros das classes</p><p>dominantes" (Lejeune, 2008, p. 113) — Ernaux entrelaça o pessoal e o coletivo,</p><p>contextualizando a trajetória do pai dentro das mudanças socioeconômicas que aconteceram</p><p>na França no século XX. Com um olhar crítico para as estruturas de classe, suas dinâmicas e</p><p>complexidades, ela se debruça ainda sobre o sentimento de culpa e traição que sente pela</p><p>distância emocional e cultural que se deu entre os dois, conforme ela ascendia socialmente</p><p>pela educação.</p><p>O lugar é um importante livro na trajetória literária de Ernaux, pois é com a escrita</p><p>desta obra, depois de lançados três romances ficcionais — ainda que sempre partindo de</p><p>experiências pessoais —, que ela inaugura o estilo que vai acompanhá-la ao longo de todos os</p><p>seus escritos a partir de então. Ao relatar suas experiências subjetivas, íntimas e familiares, de</p><p>maneira indissociável ao contexto social e histórico em que estão inseridas, cria o termo</p><p>"autossociobiografia" para caracterizar sua obra. O termo situa o gênero autobiográfico no</p><p>campo da sociologia, transitando entre a subjetividade do sujeito e a experiência comum do</p><p>coletivo. A decisão surge quando, com a morte abrupta do pai em 1967 e a necessidade de</p><p>contar sua história, percebe que "escrever o romance é impossível", sendo necessário adotar</p><p>uma escrita plana, neutra, como a que usava nas cartas que endereçava aos pais para contar as</p><p>novidades (Ernaux, 1983). No discurso proferido quando recebeu o Prêmio Nobel de</p><p>Literatura em 2022, Ernaux afirma que, no processo de escrita,</p><p>Nenhuma escolha de escrita é óbvia. Mas, aqueles que, como</p><p>imigrantes, não falam mais a língua dos pais, e aqueles que, como</p><p>trânsfugas de classe social, não compartilham mais a mesma</p><p>língua, pensam sobre si e se expressam com outras palavras, todos</p><p>deparam com obstáculos a mais. Um dilema. Eles de fato sentem a</p><p>dificuldade, quiçá impossibilidade, de usar a língua adquirida,</p><p>dominante, que aprenderam e admiram em obras literárias, para</p><p>escrever o que tem relação com seu mundo de origem, seu primeiro</p><p>mundo, feito de sensações, palavras que descrevem o cotidiano, o</p><p>trabalho, o lugar ocupado na sociedade (Ernaux, 2023, p. 15-16, grifo</p><p>próprio)</p><p>Para Iuri Lotman, um dos principais representantes da Escola de Tártu-Moscou</p><p>(ETM), a língua é o sistema modelizante primário, porque ela molda nossa percepção inicial</p><p>da realidade, "é a partir dela que se dá a culturalização do mundo". Além da língua, porém, os</p><p>pesquisadores da ETM entendem a cultura como linguagem, ou seja, as inúmeras formas de</p><p>expressão — gestuais, visuais, sonoras — compõem o conglomerado sígnico de uma</p><p>determinada cultura (Lotman apud Velho, 2009). Analisando os principais conceitos da</p><p>Semiótica da Cultura, a pesquisadora Ana Paula Machado Velho (2009) pontua que a cultura</p><p>é um mecanismo organizado, complexo, em constante estado de movimento, e os diferentes</p><p>sistemas de signos que a compõem estão imersos no que Lotman nomeia semiosfera, um</p><p>espaço semiótico no qual acontecem processos comunicativos e constantes trocas entre</p><p>diferentes sistemas culturais, o que possibilita a criação de novos textos (Lotman apud Velho,</p><p>2009). No entanto, a semiosfera não é homogênea: os sistemas culturais mais estruturados</p><p>estão presentes no núcleo, enquanto as periferias se mostram mais propensas ao surgimento</p><p>de novos textos, dada sua proximidade com as zonas de fronteira, que tem uma</p><p>estruturalidade mais frágil. (Lotman, 1996).</p><p>Os conceitos da Semiótica da Cultura podem ser um rico caminho para refletir sobre o</p><p>lugar limítrofe que Annie Ernaux ocupa na narrativa de O lugar. Podemos entender que, a</p><p>partir do seu deslocamento social de uma classe dominada para uma classe dominante,</p><p>experiência sempre contaminada pela culpa e pela inadequação, pertencendo e não</p><p>pertencendo a ambas, Ernaux também se encontra em zona fronteiriça dessa semiosfera da</p><p>qual faz parte, sendo esse ponto de encontro e diálogo entre as culturas, ou ainda, uma</p><p>tradutora entre elas. Esse ensaio se propõe, portanto, a analisar algumas imagens e fotografias</p><p>presentes na obra (considero aqui a tradução de Marília Garcia publicada em 2021 pela</p><p>editora Fósforo no Brasil) em diálogo com as ideias de semiosfera, alteridade e fronteira</p><p>como trabalhados por Iuri Lotman, e os conceitos de trânsfuga de classe e habitus cunhados</p><p>pelo sociólogo Pierre Bourdieu, a fim de melhor compreender como o projeto de Ernaux se</p><p>posiciona contra o esquecimento, operando pela memória individual e coletiva.</p><p>TRAIR A CLASSE, TRADUZIR A CULTURA</p><p>Em A escrita como faca (2003), entrevista concedida ao escritor Fréderic-Yves</p><p>Jeannet, e Retorno a Yvetot (2012), conferência realizada na cidade da infância, ambas</p><p>traduzidas e publicadas em 2023 no Brasil pela editora Fósforo, Annie Ernaux deixa claros</p><p>dois pontos pertinentes para a discussão aqui proposta: primeiro, que a reativação da memória</p><p>da morte do pai</p><p>e a escrita de O lugar a fizeram tomar consciência de sua "transformação</p><p>pela cultura e pelo mundo burguês"; segundo, que o conhecimento da obra do sociólogo</p><p>Pierre Bourdieu lhe proporcionou as ferramentas teóricas para desenvolver o que viria a ser</p><p>seu projeto literário (Ernaux, 2023).</p><p>No dicionário, a definição do termo trânsfuga traz a negativa conotação de "traidor",</p><p>"desertor", "indivíduo que muda de crença", "aquele que renega seus princípios, que descuida</p><p>de seus deveres". Bourdieu recorre ao conceito de trânsfuga de classe para falar do indivíduo</p><p>que abandona sua classe social de origem e ascende à classe dominante, experiência</p><p>contaminada pela culpa, pela negação de características de sua origem, pelo sentimento de</p><p>não-pertencimento ao novo lugar ocupado. "A decolagem sempre supõe uma ruptura, cuja</p><p>negação dos antigos companheiros de infortúnio representa apenas um aspecto. Exige-se que</p><p>o trânsfuga vire a mesa dos valores, proceda a uma conversão de toda a sua atitude”</p><p>(Bourdieu, 2011, p. 316). Para Pontes, a condição de trânsfuga de Ernaux parece ser um dos</p><p>fatores que influenciam sua escrita autobiográfica "transpessoal", ou seja, repleta de outras</p><p>vozes fora de si mesma. Isso acontece pois "apesar de ser uma intelectual, essa posição foi</p><p>conquistada através de um processo de deslocamento social, e não como um direito de sua</p><p>classe de origem, distante, social e geograficamente, do mundo burguês intelectualizado"</p><p>(Pontes, 2018, p. 66).</p><p>Podemos entender que a condição de trânsfuga de Ernaux parece estar indissociada do</p><p>sentimento de traição de sua classe social de origem, preocupação que passa pela própria</p><p>escrita, já que a literatura exige certo capital cultural. Em O lugar, vemos como esse</p><p>movimento acontece em via de mão dupla, visto que a autora se localiza nesse lugar de</p><p>passagem entre as duas classes, tanto na rejeição dos costumes e da língua do seu lugar de</p><p>origem ("Nossas brigas na mesa começavam sem motivo. Eu sempre achava que tinha razão</p><p>porque ele não sabia discutir. Eu fazia comentários sobre a maneira como ele comia ou</p><p>falava" (Ernaux, 1983, p. 48) quanto na preocupação em não trair duas vezes o mundo do</p><p>qual veio, escrevendo sobre ele na "língua do inimigo"1 ("Nada de memória poética, nem de</p><p>ironia grandiloquente. Percebo que começa a vir com naturalidade uma escrita neutra, a</p><p>mesma escrita que eu usava em outros tempos nas cartas que enviava aos meus pais contando</p><p>as novidades" (Ernaux, 1983, p. 14). Em busca de se reencontrar com a herança deixada de</p><p>lado nesse processo de entrada no mundo burguês, assumindo seu lugar na fronteira, Ernaux</p><p>se debruça, então, na construção do universo sígnico que compunha a realidade vivida pelo</p><p>pai: "Vou recolher as falas, os gestos, os gostos do meu pai, os fatos mais marcantes de sua</p><p>vida, todos os indícios objetivos de uma existência que também compartilhei" (Ernaux, 1983,</p><p>p. 14). Assim, passa a narrar sua história e seus costumes: da infância trabalhando na fazenda</p><p>com os pais, o serviço no exército, a entrada na fábrica, a conquista do café-mercearia com a</p><p>esposa. Os hábitos alimentares, as roupas, as músicas que escutava, os objetos que tinha em</p><p>casa, as expressões que usava. Os comportamentos em determinadas ocasiões, as crenças, as</p><p>opiniões. Essa forma de viver, pensar e se comportar está diretamente associada ao meio</p><p>social do qual faz parte, compondo o habitus, conceito de Bourdieu que "funciona como uma</p><p>materialização da memória coletiva, sendo um dos elementos da reprodução das relações de</p><p>dominação" (Bourdieu apud Pontes, 2018):</p><p>Destarte, os habitus compreendem as formas de perceber o mundo,</p><p>agir, julgar, se comportar, falar, se vestir, se alimentar etc., podendo</p><p>ser reconhecidos como distintos, quando esses sistemas atestam um</p><p>conjunto de capitais legitimados, ou, se não há essa legitimidade,</p><p>vulgares. Relacionadas a essa noção, temos as diferentes formas de</p><p>capitais teorizadas por Bourdieu, cujo acúmulo funciona como signos</p><p>de distinção ou vulgaridade, determinando a diferenciação entre as</p><p>classes. (Pontes, 2018, p. 68)</p><p>Os códigos culturais que formam esse habitus, traduzidos por Ernaux nessa narrativa</p><p>autobiográfica, me parecem dialogar estreitamente com a noção e a dinâmica da cultura para</p><p>Lotman. Segundo Velho, a cultura na visão da ETM é um</p><p>conjunto de informações que os grupos sociais acumulam e</p><p>transmitem por meio de diferentes manifestações do processo da vida,</p><p>como a religião, a arte, o direito (leis), formando um tecido, um</p><p>'continuum semiótico' sobre o qual se estrutura o mecanismo das</p><p>relações cotidianas. (Velho, 2009, p. 250)</p><p>1 Termo cunhado pelo escritor e ativista Jean Genet, e mencionado por Ernaux em Retorno a Yvetot</p><p>(2012), para se referir aos códigos de linguagem utilizados pela classe dominante.</p><p>Essa operação acaba funcionando como uma marca de distinção entre os grupos</p><p>sociais, visto que, segundo Lotman, "a cultura não se contrapõe ao caos mas a um sistema de</p><p>signos oposto" (Ferreira, 1994, p. 119). Reitera, assim, as relações de poder entre classe</p><p>dominante e classe dominada, já que são sempre os integrantes do núcleo da semiosfera que</p><p>definem quem é o Outro, sempre periférico, marginal, bárbaro. Para o pai de Ernaux, era</p><p>imprescindível o cuidado com a linguagem e com o comportamento, para que pudesse, assim,</p><p>disfarçar a própria condição social:</p><p>Diante de pessoas que considerava importantes mostrava um</p><p>embaraço tímido, nunca fazendo quaisquer perguntas. Em suma,</p><p>comportando-se com inteligência. Esta consistia em perceber a nossa</p><p>inferioridade e em recusá-la escondendo-a o melhor possível.</p><p>(Ernaux, 1983, p. 47)</p><p>É possível ver como esse sistema de "proibições e prescrições" opera em sua dinâmica</p><p>social na comparação entre duas fotografias descritas por Ernaux no texto. Na primeira, o pai</p><p>veste uma camisa branca com mangas arregaçadas, uma calça de flanela, tem os ombros</p><p>caídos, uma barriga proeminente e os braços arredondados. Sua expressão revela ter sido</p><p>pego de surpresa pelo clique. "[...] outros sinais, mais discretos, da condição social, os braços</p><p>afastados do corpo, o banheiro e a lavanderia ao fundo, cenário que um olhar</p><p>pequeno-burguês teria evitado para uma foto" (Ernaux, 1983, p. 28). Na segunda foto, feita</p><p>quase dez anos após a primeira, está com a cabeça erguida, vestindo um conjunto: calça,</p><p>jaqueta, camisa e gravata:</p><p>Foto tirada em um domingo, pois durante a semana ele usava o</p><p>macacão azul-escuro. Seja como for, as fotos eram sempre tiradas aos</p><p>domingos, tínhamos mais tempo e todos se vestiam melhor. Estou ao</p><p>lado dele, com um vestido de babado, os dois braços esticados no</p><p>guidom da minha primeira bicicleta, um pé no chão. Uma das mãos</p><p>dele está solta e a outra na cintura. Ao fundo, a porta do café aberta,</p><p>as flores no parapeito da janela e, debaixo dela, a placa de licença</p><p>para vender bebida alcoólica. Gostávamos de tirar fotos com os</p><p>pertences que nos enchiam de orgulho: o café, a bicicleta, mais</p><p>tarde o Citroën 4CV, no qual ele apoia a mão, levantando um pouco,</p><p>com esse gesto, o casaco. Em nenhuma foto ele aparece sorrindo.</p><p>(Ernaux, 1983, p. 33, grifo próprio)</p><p>Percebe-se que nas fotos era importante ter o máximo de controle sobre como aquela</p><p>imagem de si se fixaria: pelas roupas, pela postura, pelo cenário, pelos pertences que davam</p><p>orgulho: signos de uma condição social que o afastaria de seu lugar de origem. A fotografia</p><p>serviria então como uma espécie de prova da realidade, da imagem social ali construída.</p><p>Barthes pontua que tudo muda a partir do momento que se é confrontado pela objetiva:</p><p>"ponho-me a 'posar', fabrico-me instantaneamente em outro corpo" (Barthes, 1980, p. 20).</p><p>Essa experiência, porém, é dissociativa. Na fotografia, nos vemos sempre como a um Outro,</p><p>o Eu nunca coincide com a imagem fixada. É antes de tudo, fantasma.</p><p>Figura 1: Pai de Annie Ernaux, 1959</p><p>ESCRITA DA MEMÓRIA, TRADUÇÃO DA TRADIÇÃO</p><p>A memória é matéria prima importante na construção do projeto literário de Annie</p><p>Ernaux. A</p><p>partir do processo de rememoração, como proposto por Benjamin, Ernaux olha</p><p>para as imagens do passado e consegue reanimá-las, atualizá-las em tempo-de-agora,</p><p>escovando a História a contrapelo e propondo uma reconfiguração (Benjamin, 1940).</p><p>Lotman afirma que a cultura se dirige contra o esquecimento, sendo este um</p><p>mecanismo muitas vezes explorado por instituições hegemônicas para excluir da memória</p><p>coletiva o que lhes convém. Da mesma forma, o esquecimento também pode funcionar como</p><p>um mecanismo de memória, como explica a pesquisadora Jerusa Pires Ferreira:</p><p>Todo texto contribui tanto para a memória quanto para o</p><p>esquecimento, que poderá realizar-se de formas diferentes. Ao notar</p><p>que se excluem da cultura, em seu próprio âmbito, determinados</p><p>textos, verifica-se que a história desta destruição, de sua retirada da</p><p>reserva de memória coletiva, se move paralelamente à criação de</p><p>novos textos culturais. E é interessante observar esta dinâmica</p><p>recriadora. (Ferreira, 1994, p. 118)</p><p>Porém, afirma também que existe uma considerável diferença entre o esquecimento</p><p>como mecanismo de memória e enquanto ferramenta para destruição da memória, sendo esse</p><p>"esquecimento obrigatório" uma das principais lutas sociais na esfera da cultura. (Ferreira,</p><p>1994). A literatura de Ernaux, partindo do ponto de vista dos "vencidos", recusa uma</p><p>perspectiva hegemônica da história e reforça a importância da manutenção da memória</p><p>coletiva de classes marginalizadas. Por ocupar uma zona de fronteira na semiosfera, como</p><p>entendido aqui a partir da perspectiva de Lotman na Semiótica da Cultura, encontrando-se em</p><p>um lugar de passagem entre sua cultura de origem e sua cultura adquirida, operando em dois</p><p>sistemas sígnicos diferentes, Ernaux parece compreender sua posição de tradutora para</p><p>processar as informações, reelabora-las e reconforma-las em novos textos, no que</p><p>Lotman chama esse processo de tradução da tradição, descrevendo</p><p>que as linguagens, os textos que já possuem sentido para um grupo</p><p>social, que fazem parte da memória deste grupo, vão sofrendo</p><p>processos de reorganização a partir de encontros dialógicos com</p><p>outros grupos. Traduzir esses dados, estes estímulos para linguagens</p><p>que estão enraizadas em seu próprio ambiente, em sua tradição,</p><p>conformando novos signos, novas linguagens e novos textos. (Velho,</p><p>2009, p. 254, grifo próprio)</p><p>Isso se dá porque é nas fronteiras que acontecem os encontros dialógicos: um</p><p>indivíduo (ou sistema) enxerga o outro a partir de sua própria experiência, compartilham e</p><p>experimentam a partir do que cada um tem de comum e de diferente, permitindo com que se</p><p>contaminem, se hibridizem e ganhem novos sentidos. Ernaux precisa que é na escolha por</p><p>escrita que "eu assumo e ultrapasso a dilaceração cultural: a de ser uma 'migrante do interior'</p><p>da sociedade francesa. Levo para a literatura algo de duro, pesado, até violento, ligado às</p><p>condições de vida, à língua do mundo" (Ernaux, 2023, p. 46). E ainda, que "a escrita é aquilo</p><p>que, no meu caso, na minha condição de trânsfuga, consigo fazer de melhor como ato</p><p>político" (Ernaux, 2023, p. 66).</p><p>REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS</p><p>BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castanõn</p><p>Guimarães. 8ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2022.</p><p>BOURDIEU, Pierre. A distinção. Porto Alegre: Zouk, 2011.</p><p>ERNAUX, Annie. O lugar (1983). Tradução de Marília Garcia. São Paulo: Editora Fósforo,</p><p>2021.</p><p>________. A escrita como faca e outros textos. São Paulo: Editora Fósforo, 2023.</p><p>FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura é memória. Revista USP, São Paulo, n. 24, p.114-120,</p><p>1994. Disponível em https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/27032/28806</p><p>LOTMAN, I. M. La semiosfera I: semiótica de la cultura y del texto. Tradução de Desiderio</p><p>Navarro. Valência: Frónesis Cátedra, 1996.</p><p>PONTES, Isadora de Araújo. Annie Ernaux, uma escritora trânsfuga de classe. Revista</p><p>Magma. Disponível em https://doi.org/10.11606/issn.2448-1769.mag.2018.154405</p><p>VELHO. Ana Paula Machado. A semiótica da cultura: apontamentos para uma metodologia</p><p>de análise da comunicação. Rev. Estud. Comun., Curitiba, v. 10, n. 23, p. 249-257. 2009.</p><p>https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/27032/28806</p><p>https://doi.org/10.11606/issn.2448-1769.mag.2018.154405</p>

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