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<p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>PERELMAN E A NOVA RETÓRICA</p><p>Fundador da Retórica moderna, Chaïm Perelman, grande pensador que se dedicou com profundidade</p><p>tanto ao Direito quanto à Justiça, nasceu em Varsóvia. Em 1925, emigrou para a Bélgica, onde</p><p>construiu toda a sua carreira. Lecionou Lógica, Moral e Filosofia na Universidade de Bruxelas até 1978.</p><p>Morre em 22 de Janeiro de 1984 em Uccle, perto de Bruxelas.</p><p>Sua obra representa uma reabilitação magistral de Retórica e da Argumentação que, desde o anátema</p><p>lançado sobre elas por Platão, viram-se rejeitadas do campo da reflexão filosófica. Longe de limitar a</p><p>Argumentação ao plano discursivo, Perelman conseguiu mostrar que a Filosofia, o Direito ou a História,</p><p>para citar somente estas disciplinas, atuavam cada uma de sua maneira, argumentando. É, assim, uma</p><p>verdadeira antropologia que une a nova Retórica. Tudo começou com a rejeição do Positivismo Lógico, e</p><p>principalmente, do seu precursor, Frege. Este último também tinha a preocupação de tornar a linguagem</p><p>natural mais pura para assentá-la sobre a linguagem científica. Nos países de língua inglesa, tanto Frege</p><p>quanto o Positivismo tiveram uma forte influência antes de serem marginalizados, enquanto na França</p><p>não se sabe ainda o que as palavras “Positivismo Lógico” querem realmente encobrir. Isto explica em</p><p>grande parte a fama tardia de Perelman na França, ao passo que nos países de língua inglesa ela se</p><p>impôs muito cedo. Hoje, as idéias do Positivismo são mais conhecidas por nós, e, com a sua crítica, a</p><p>Filosofia francesa encontrou em Perelman uma antecipação de seu próprio desenvolvimento.</p><p>Mas o que diz na verdade o Positivismo lógico? Em geral, duas coisas. Por um lado, o modelo da</p><p>atividade linguística e o do raciocínio são fornecidos pela ciência físico-matemática. O rigor, o caráter</p><p>unívoco, a necessidade do raciocínio demonstrativo são as características essenciais e úteis, em que as</p><p>outras ciências, e a Filosofia em particular, deveriam inspirar-se. A demonstração e o raciocínio</p><p>hipotético-dedutivo são os pilares do raciocínio e da lógica. Sem eles, não haveria lógica ou raciocínio</p><p>que se sustentasse. Por outro lado, e isto decorre do que acaba de ser dito, os juízos de valor não</p><p>decorrentes da lógica - dos juízos ditos da verdade - mergulham, de forma inevitável, tanto o homem de</p><p>ação quanto o filósofo preocupado com a justiça, no irracional. O Direito e a Justiça estariam</p><p>condenados a se separar da razão porque os valores não se decidem nem de forma lógica, nem</p><p>tampouco de forma experimental. São estes dois axiomas do Positivismo que Perelman tornou</p><p>inexistentes, em proveito de uma concepção da razão preocupada em estabelecer o plano discursivo</p><p>não-matemático no âmbito de seus direitos e a razão prática na sua coerência.</p><p>O que se deve entender por visão da Retórica? Em primeiro lugar, os usos principais da linguagem</p><p>obedecem, em geral, a modos de funcionamento opostos, em vários pontos, aos que regulam a</p><p>Matemática. Ao contrário de Frege, que queria generalizar sobre a linguagem natural a partir de uma</p><p>linguagem tão artificial quanto a matemática - “vocês sabem falar a álgebra” -, Perelman tenta mostrar</p><p>que a linguagem lógico-matemática é uma construção do espírito que pressupõe a linguagem natural. É</p><p>pretensão excessiva querer expurgar esta última do que a constitui, a saber, a ambigüidade dos termos,</p><p>o equívoco das palavras, a pluralidade dos sentidos e das leituras interpretativas. Como é que se pode</p><p>realizar o uso cotidiano da linguagem se esta é tão imperfeita? Não estaria ela, desde então, imprópria</p><p>para a comunicação e a expressão? A resposta é simples: a linguagem natural é perfeitamente adaptada</p><p>às suas funções, apesar de suas imprevisões estruturais. De fato, um discurso é sempre proferido em um</p><p>contexto que fornece a informação necessária aos interlocutores, para dar um sentido ao que eles estão</p><p>escutando - se possível um único sentido - e, se não o for, a informação contextual permitirá, pelo</p><p>1</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>menos, a eliminação de falsas interpretações. Em Matemática, pelo contrário, não podemos nos apoiar</p><p>em dados desta natureza, como a informação contextual, que são muitos subjetivos. Um raciocínio</p><p>matemático deve ser válido independentemente das pessoas às quais seria suscetível de se endereçar.</p><p>Aqui, não podemos nos permitir supor uma ou outra contribuição contextual, e o aspecto unívoco do</p><p>discurso tem de ser muito bem desenvolvido, mediante uma construção que faça uso de símbolos bem</p><p>definidos a priori e de regras claras e distintas de formação e de transição para toda (nova) expressão</p><p>possível. Mas a linguagem natural permite a si própria a economia de tal esforço, já que as suas</p><p>expressões, suscetíveis de receber sentidos e funções lingüísticas múltiplas, são finalmente dotadas de</p><p>um significado preciso graças ao caráter implícito do contexto, compartilhado pelo enunciador e pelo</p><p>auditório, e que serve para que um se faça entender pelo outro.</p><p>Desta forma, não é necessário - e quem o faz ? - alinhar todas as suas premissas, nem mesmo explicitar</p><p>toda a informação quando nos comunicamos com outrem. Este conhecimento constitui um estoque</p><p>quase infinito, inominado, de proposições que se identificam, na verdade, com o que chamamos de</p><p>Cultura: do jornal cotidiano ao livro de erudição, pode ser encontrado um vasto acervo de valores, de</p><p>lugares comuns, de pressupostos que alargam o campo do implícito mediante o qual o explícito adquire</p><p>precisão e um rigor que, no caso da Matemática, como linguagem excluída do contexto, tem de se impor</p><p>a priori quando os constrói. Note-se que o modelo matemático, em matéria de linguagem, tem por</p><p>conseqüência tirar a linguagem natural do contexto. Assim, ela atuaria no vazio, e não seria</p><p>compreensível que sequer os positivistas pudessem ter imaginado que ela de alguma forma pudesse ter</p><p>funcionado. As frases adquiridas fora de qualquer contexto, autônomas como proposições matemáticas,</p><p>só podem gerar equívocos e serem inferiores, do ponto de vista do status funcional, às que são</p><p>encontradas nas ciências e nas linguagens formais. Perelman realiza, neste sentido, uma verdadeira</p><p>reviravolta. Todo discurso tem um contexto, e, por conseguinte, um auditório para o qual ele é</p><p>produzido. A relação que se estabelece entre o auditório e o enunciador é propriamente dita, retórica, já</p><p>que a adaptação ao auditório é uma condição para a persuasão.</p><p>Suscitar o entendimento e a adesão encontra-se, necessariamente, na base de toda explicação da</p><p>linguagem real, da forma como ela é praticada diariamente. O discurso científico é, na verdade, uma</p><p>simples modalidade, e não um modelo do racionalismo argumentativo, ou seja, do âmbito discursivo. Na</p><p>ciência, também existe um auditório - o auditório universal -, e a razão aqui empregada não deve ser</p><p>concebida como sempre foi, a saber, como se se entregasse a um monólogo consigo mesmo. O</p><p>entendimento divino, tornado científico, não precisa de auditório. Mas será esta uma forma razoável de</p><p>considerar a atividade científica?</p><p>Sabemos, hoje, que toda obra científica se endereça a uma comunidade à qual se esforça por convencer</p><p>recorrendo, notadamente, a critérios de exposição, como a simplicidade ou o rigor formal da teoria. O</p><p>auditório é a realidade da razão humana, que sempre postula um outro ao qual ela se dirige, este outro</p><p>podendo ser um interlocutor ideal, tão universal quanto um auditor preciso, particular, cujos interesses e</p><p>pressupostos exclusivos são levados em consideração.</p><p>Foi dito que o Racionalismo e a linguagem formam um par. Pois não existe uso da linguagem que não</p><p>seja baseado no esforço de convencer a pessoa a quem se está endereçando. Este Racionalismo provém</p><p>da argumentação e Perelman prefere falar em “razoável” para deixar ao “racional” o campo da</p><p>argumentação constringente. O racional e o razoável constituem o domínio da razão da maneira como se</p><p>tomar parte e influenciar o processo político. [...] Porém como deve ser assegurado</p><p>este valor equitativo destas liberdades?</p><p>As liberdades, protegidas pelo princípio de participação, perdem muito do seu valor, onde quer que</p><p>aqueles, que têm maiores meios privados, forem permitidos de usar suas vantagens, para controlar o</p><p>transcurso do debate público, pois, eventualmente essas vantagens permitirão, àqueles melhor situados,</p><p>exercer uma influência mais larga sobre o desenvolvimento da legislação. No tempo devido, tendem a</p><p>adquirir um peso preponderante, resolvendo questões sociais, pelo menos em relação àquelas questões</p><p>sobre as quais normalmente concordam, isto é, em relação àquelas coisas que apoiam suas</p><p>circunstâncias favoráveis.</p><p>Passos compensadores devem, então, ser dados, para preservar o valor equitativo das liberdades</p><p>políticas iguais para todos. Pode ser usada uma variedade de instrumentos. Por exemplo, numa</p><p>sociedade permitindo a propriedade privada dos meios de produção, a propriedade e a riqueza devem</p><p>ser mantidas, amplamente distribuídas e os meios de governo dispostos numa base regular de modo a</p><p>encorajar a livre discussão pública. Além disso, os partidos políticos têm de ser independentes diante</p><p>dos interesses económicos privados, concedendo-lhes rendimentos de impostos para desempenhar o</p><p>seu papel no esquema constitucional. [...] O que é necessário é que os partidos políticos sejam</p><p>autónomos diante de demandas privadas, isto é, demandas não expressas no fórum público e</p><p>defendidas abertamente com referência a uma concepção do bem comum. [...]</p><p>A interpretação kantiana da justiça como equidade</p><p>17</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>[...] Considerarei o conteúdo do princípio da liberdade igual e do significado da prioridade de direitos</p><p>que define. Parece apropriado, neste ponto, notar que há uma interpretação kantina da concepção de</p><p>justiça, da qual este princípio deriva. Essa interpretação se baseia na noção de Kant sobre a autonomia.</p><p>É um erro, creio, enfatizar o lugar da generalidade e universalidade na ética de Kant. [...] É impossível</p><p>construir uma teoria moral em bases tão frágeis e, portanto, limitar a discussão da doutrina de Kant</p><p>àquelas noções significa reduzi-la à trivialidade. A real força do seu ponto de vista jaz noutra parte.</p><p>Pelo menos, ele começa com a ideia de que os princípios morais são o objeto da escolha racional.</p><p>Definem a lei moral que os homens podem racionalmente querer para governar sua conduta numa</p><p>comunidade ética. A filosofia moral torna-se o estudo da concepção e resultado de uma decisão</p><p>racional adequadamente definida. Esta ideia tem consequências imediatas, pois enquanto pensarmos</p><p>os princípios morais como legislação em favor de um reino de fins, é claro que tais princípios devam não</p><p>apenas ser aceitáveis a todos, quanto ser também públicos. Finalmente, Kant supõe que esta legislação</p><p>moral deva ser convencionada sob condições que caracterizem os homens como entes racionais, livres e</p><p>iguais. A descrição da posição original é uma tentativa de interpretar esta concepção. Não desejo</p><p>discutir aqui em favor de tal interpretação à base do texto de Kant. Certamente, alguns quererão lê-lo</p><p>de maneira diferente. Talvez as observações a seguir sejam melhor tomadas como sugestões para</p><p>relacionar a justiça, como equidade, ao alto nível da tradição contratualista em Kant e Rousseau.</p><p>Kant sustentava, creio, que uma pessoa estivesse agindo autonomamente quando os princípios da sua</p><p>ação fossem escolhidos por ela como a mais adequada expressão possível da sua natureza como um</p><p>ente racional, livre e igual. Os princípios, sobre os quais age, não são adotados por causa da sua posição</p><p>social ou dons naturais, ou em vista da particular espécie de sociedade na qual vive ou as coisas</p><p>específicas às quais deseja. Agir à base de tais princípios significa agir heteronomamente. Então o véu</p><p>de ignorância priva as pessoas, na posição original, do conhecimento que as capacitaria a escolher</p><p>princípios heterônomos. As partes atingem o ponto de escolha em geral como pessoas racionais, livres e</p><p>iguais, só sabendo que aquelas circunstâncias fazem com que dêem alento à necessidade de princípios</p><p>de justiça.</p><p>Então, entendido adequadamente, o desejo de justamente agir deriva em parte do desejo de expressar,</p><p>mais plenamente, o que somos ou podemos ser, a saber, entes racionais, livres e iguais, com a liberdade</p><p>de escolha. É por esse motivo, creio, que Kant fala do fracasso de agir, enquanto lei moral, como dando</p><p>margem à vergonha e não a sentimentos de culpa, e isto é cabível, desde que, para ele, agir</p><p>injustamente significa agir de um modo que falhe em expressar nossa natureza como um ente racional,</p><p>livre e igual. Portanto, tais ações atingem nosso auto-respeito, nosso senso de nossa dignidade e a</p><p>experiência de tal perda é a vergonha. Agimos como se pertencêssemos a uma ordem inferior, como se</p><p>fôssemos uma criatura cujos primeiros princípios fossem decididos por contingências naturais. Aqueles</p><p>que imaginam a doutrina moral de Kant como uma de lei e culpa, caem gravemente em equívoco. O</p><p>principal objetivo de Kant é aprofundar e justificar a ideia de Rousseau que a liberdade está agindo de</p><p>acordo com uma lei que concedemos a nós próprios e isto não conduz a unia moralidade de</p><p>mandamento austero e sim a uma ética de respeito mútuo e auto-estima.</p><p>Os fundamentos institucionais da justiça distributiva</p><p>O principal problema da justiça distributiva é a escolha de um sistema social. Os princípios da justiça</p><p>aplicam-se à estrutura básica e regulam como suas maiores instituições são combinadas num esquema.</p><p>Então, como vimos, a ideia da justiça como equidade tem de usar a noção de pura justiça processual,</p><p>para lidar com as contingências das situações particulares. O sistema social tem de ser esboçado de</p><p>maneira que a resultante distribuição seja justa, por mais que as situações se alterem. Para consegui-lo,</p><p>é necessário situar o processo social e económico dentro dos limites de adequadas instituições políticas</p><p>e legais. Sem um adequado esquema desses fundamentos institucionais, não será justo o resultado do</p><p>processo distributivo [...]</p><p>Primeiro que tudo, presumo que a estrutura básica seja regulada por uma constituição justa, que</p><p>assegure as liberdades da igual cidadania. [...] As liberdades de consciência e de pensamentos são</p><p>consideradas pressupostos e mantido o justo valor da liberdade política. O processo político é</p><p>18</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>conduzido, na medida em que as circunstâncias permitam, enquanto um justo procedimento de escolha</p><p>entre governos e para aplicar legislação justa. Também presumo que haja justa (enquanto oposta à</p><p>formal) igualdade de oportunidade. Isto significa que, além de manter os tipos usuais de capital social</p><p>avançado, o governo busca assegurar oportunidades iguais de educação e cultura, para pessoas</p><p>similarmente dotadas e motivadas, seja subsidiando escolas privadas ou estabelecendo um sistema de</p><p>escola pública. Também aplica e subscreve a igualdade de oportunidade nas atividades económicas e na</p><p>livre escolha de ocupação. Isso é conseguido policiando a conduta das firmas e das associações privadas</p><p>e evitando o estabelecimento de restrições e barreiras monopolísticas às posições mais desejáveis.</p><p>Finalmente, o governo garante um mínimo social, seja por dotações familiares e pagamentos especiais</p><p>por doença e emprego, seja mais sistematicamente através de recursos tais como um suplemento de</p><p>renda (um chamado imposto de renda negativo).</p><p>EXTRAÍDO DO LIVRO : “CONTRATO SOCIAL ONTEM E HOJE”, KRISCHIKE, PAULO J., (ORG.), CORTEZ,</p><p>1993</p><p>19</p><p>deseja conceber atualmente. Por que fazer referência ao razoável quando se trata de Racionalismo</p><p>argumentativo não-demonstrativo? Pura e simplesmente porque a conclusão, nada tendo de</p><p>constringente ou de necessário na lógica argumentativa, só se impõe como tal diante de valores, de</p><p>lugares comuns para os protagonistas, os quais são levados a adotá-la com base nestes pressupostos. A</p><p>conclusão de uma argumentação não-formal resulta de uma escolha que sempre pode ser discutida e</p><p>contestada, que pode impor-se definitivamente porque, no âmbito da sociedade e dada a herança</p><p>compartilhada entre o enunciador e o auditório, é razoável uma conclusão em vez de outra. Seria</p><p>racional se pudéssemos concluir “somente” isto em vez daquilo. Mas, todos sabemos, pelas discussões</p><p>às quais nos entregamos todos os dias no nosso trabalho ou alhures, que as conclusões que queremos</p><p>ver adotadas nada têm de inevitável, e que elas podem gerar convicção baseando-se, unicamente, em</p><p>seu caráter razoável. É claro que um tal caráter defende certos valores no tempo, mas quem poderia</p><p>ainda pretender que a razão, através de todos os seus usos, seja imutável, e que a História ou a</p><p>sociedade não existam?</p><p>2</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>Uma lógica da argumentação é decididamente uma lógica dos valores, uma lógica do razoável, do</p><p>preferível, e não uma lógica do tipo matemático ou, como é dito geralmente, da necessidade</p><p>constringente. Esta última força a unanimidade, e seria visto como louco aquele que se recusasse a</p><p>admitir que dois mais dois perfazem quatro. Mas a maior parte dos usos da linguagem não reúne esta</p><p>unanimidade, especialmente em matéria de moral e de política, ainda que seja corrente aqui ou ali</p><p>internar os que se recusam a aceitar a universalização forçada das máximas do poder. Com efeito, uma</p><p>argumentação, pelo fato de não ser constringente, autoriza várias conclusões, várias escolhas, uma</p><p>recusa de valores, que proporciona, assim, um debate interminável, a não ser que se faça uso da força.</p><p>Uma Ética é justa pelo fato de admitir que os valores não são conclusões evidentes às quais todo o</p><p>mundo deve submeter-se. Uma Ética deve apoiar-se na realidade argumentativa, desestabilizada pelo</p><p>jogo de valores, só podendo resultar do pluralismo destes. Em matéria de Ética, pode-se sempre discutir</p><p>se é uma escolha ética dois e dois serem quatro, e é uma felicidade não aderir uma tal escolha.</p><p>Compreende-se bem, desde então, o uso retórico que pode ser feito da negação da retórica: não aderir a</p><p>tal ou qual conclusão, a tal ou qual escolha de valores, equivaleria a proceder como aquele que nega que</p><p>dois e dois somem quatro. Um ignorante se reeduca, um louco se cuida, um idiota se afasta. E sabemos</p><p>que tudo isto leva ao totalitarismo.</p><p>Ao contrário do que foi dito, a teoria de Perelman não é, portanto, sinônimo de relativismo, que a</p><p>Retórica sempre foi acusada de defender, tendo sido Platão o primeiro acusador. Existe, claramente, um</p><p>apelo ao implícito cultural que assegura à argumentação não-racional o seu caráter razoável.</p><p>Perelman reabilitou o valor filosófico da Retórica, daí a posição única e fundamental que ele ocupa</p><p>na história do pensamento filosófico. Para Platão - sabe-se - o retórico age seduzido pela linguagem e a</p><p>manipula de tal forma que possa sempre fazê-la dizer o que melhor convêm nas diversas circunstâncias.</p><p>Ele não tem uma doutrina, mas podem defender todas elas, ao contrário da linguagem científica,</p><p>matemática, que autoriza unicamente idéias claras e distintas, de evidências, como dirá mais tarde</p><p>Descartes. Louca e nunca realizada a pretensão de querer calcar a linguagem filosófica sobre evidências</p><p>incontestáveis, oferecidas pelos discursos que garantem um fundamento indestrutível. O discurso</p><p>filosófico não tem outro recurso senão aquele do senso comum, que ele irá criticar, sistematizar, alterar.</p><p>Neste sentido, ele é sempre submetido à discussão e ao debate contraditório, e sabemos que, em</p><p>matéria de Filosofia, o fato é comum, já que nenhum sistema filosófico escapou à sua obsolescência. O</p><p>que fazer da ambigüidade do mundo real, da ambigüidade que nos oferece o senso comum, senão</p><p>tutelá-la, ao invés de pretender poder vencê-la pela formalização sistemática? A reabilitação do retórico</p><p>no seio de uma Nova Retórica consiste em finalmente conscientizar-se de que a argumentação filosófica</p><p>não tem nem o rigor das ciências formais, nem os recursos experimentais das ciências empíricas, e que</p><p>ela trabalha a partir da linguagem natural, repleta de noções confusas, submetidas perpetuamente ao</p><p>jogo social do debate contraditório, de onde não saberíamos evadir-nos pelo simples recurso à</p><p>experiência, nem pelo toque da varinha mágica da formalização que exclui as alternativas para as</p><p>questões tratadas. Há que permanecer com estas questões e oferecer os meios de discuti-las como tais.</p><p>Perelman nos deu uma tipologia de esquemas argumentativos sobre os quais não há mais meios de se</p><p>estender: generalizando, trata-se de afastar ou de reaproximar, a cada vez que se argumenta, noções</p><p>que unimos, para fazer surgir um valor-referência que rejeitamos, ou ao contrário, que queremos ver</p><p>adotado. A analogia e a metáfora ilustram bem este mecanismo em que achamos duas noções unidas</p><p>para sugerir uma conclusão. Tudo isto é suficientemente conhecido para que não seja necessário que se</p><p>continue a insistir. Mas isto é somente um deslocamento condicionado do que se deve entender por</p><p>retórica. Pois os efeitos de estilo, as figuras do discurso, são ligados por uma possibilidade de sugestão</p><p>que ultrapassa a literatura e o que está incluído. Tal possibilidade acha o seu fundamento na relação com</p><p>o auditório, que se alimenta do histórico da cultura e do implícito contextual, cuja multiplicidade de</p><p>formas enquadra a filosofia, a moral, o discurso literário, e finalmente, o direito.</p><p>Assim como a matemática forneceu o modelo e a metodologia do racionalismo clássico, também o</p><p>direito fornece não o modelo único, mas uma metodologia complementar para aquele que reserva um</p><p>lugar importante para a argumentação. O direito se caracteriza, com efeito, também pelo ideal de um</p><p>pensamento sistemático - fala-se em diversos sistemas jurídicos - que define uma ordem que deve guiar</p><p>a ação, mas uma ordem aberta, flexível, capaz de se adaptar às circunstâncias e à procura de uma</p><p>decisão fundada na eqüidade. O Juiz, pelo fato de que deve adotar uma decisão razoável e juridicamente</p><p>motivada, é levado na maioria das vezes a exercer a sua liberdade de decisão ao escolher entre</p><p>argumentos que favorecem um ou outro valor. Ele é levado, para motivar sua decisão, a interpretar</p><p>textos legais, a estender ou a restringir o seu alcance, a preferir uma regra ou precedente a outro, a</p><p>3</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>justificar a sua decisão por todo tipo de argumentos para torná-la aceitável. Seu raciocínio não será</p><p>impessoal, mas deverá levar em consideração as pretensões das partes, a opinião pública esclarecida, e,</p><p>acima de tudo, os tribunais superiores. O seu campo é livre, mas não arbitrário, pois deve ser razoável; a</p><p>sua liberdade se move em uma área que ele deve respeitar. Perelman mostrou, em sua Lógica Jurídica -</p><p>Nova Retórica, como o juiz usa o seu poder discricionário para conciliar o respeito ao direito e a procura</p><p>de uma solução justa.</p><p>O que caracteriza o direito, ao contrário das outras áreas em que se exerce a argumentação, é que ele</p><p>deve chegar a uma decisão que terá força de coisa julgada. Com efeito, sendo um dos objetivos do</p><p>direito o estabelecimento da paz social, os conflitos não devem perpetuar-se: o fator tempo tem um</p><p>papel considerável, se quisermos evitar a acusação de obstruir a Justiça. O direito desenvolveu</p><p>procedimentos seculares que facilitam a solução dos conflitos, tais como a delimitação de competências,</p><p>a organização dos debates judiciários, o recurso a presunções de todo gênero, a distribuição</p><p>do ônus da</p><p>prova. Quando a controvérsia é de natureza teórica, como nas ciências humanas e filosóficas, não há</p><p>última instância que possa impor, de uma vez por todas, o encerramento do debate e uma solução</p><p>definitiva. Portanto, na medida em que os próprios argumentos teóricos são ligados à tomada de</p><p>decisões, eles podem atingir decisões provisórias que serão questionadas ulteriormente, se surgirem</p><p>razões suficientes para se mudar de atitude.</p><p>Ao fazer argumentação - o instrumento por excelência do pensamento criador -, e não dedução formal</p><p>consegue-se entender o caráter localizado, existencial e cultural do procedimento filosófico. Ao contrário</p><p>da tradição clássica segundo a qual o filósofo procura verdades impessoais e atemporais, sua ambição,</p><p>no entender de Perelman, se concentrará em apresentar uma visão do homem, de suas relações com a</p><p>sociedade e o universo, que seja razoável, aceitável para o auditório universal que ele tenta convencer.</p><p>Mas não sendo as suas concepções jamais constringentes, não constituindo um sistema de verdades</p><p>absolutas, ele só lhes pode propor a adesão. Daí a necessidade do diálogo para o progresso do</p><p>pensamento filosófico. Esta necessidade toma o seu ponto de partida no senso comum e nos problemas</p><p>impostos pelo recurso à linguagem natural. Enquanto os filósofos racionalistas, como Descartes, Spinoza</p><p>ou Leibniz afastavam esta linguagem imperfeita e as asserções do senso comum, concebidas como</p><p>superficiais e incoerentes, Perelman, ao mesmo tempo em que admitia a busca da clareza e da coerência</p><p>pelo filósofo, constata que este é levado pelas suas exigências a realizar uma escolha ao mesmo tempo</p><p>dentre usos múltiplos das noções confusas e das teses do senso comum, para elaborar uma filosofia</p><p>razoável. As suas diversas análises da noção de Justiça ilustram o seu método. A partir desta noção, ele</p><p>retira em primeiro lugar uma concepção da justiça formal segundo a qual os seres que se encontram em</p><p>situações essencialmente similares devem ser tratados da mesma maneira. A partir deste princípio,</p><p>sobre o qual existe uma forte concordância, ele mostra as divergências ligadas à interpretação do que</p><p>seja essencialmente similar, e mostra que, para aqueles que se encontram em situações diferentes, o</p><p>tratamento justo depende da concepção que for feita do interesse geral, o que gera, novamente, a</p><p>possibilidade de concepções divergentes.</p><p>(1) Verbete do Husman, Denis (org.).Dictionnaire des Philosophes, Paris: PUF. Traduzido por Felix de</p><p>Faria e revisado por Paulo Eduardo Coelho da Rocha e Ricardo R. Almeida.</p><p>O QUE É JUSTIÇA?</p><p>Chaïm Perelman, ao iniciar sua análise sobre o que seja "justiça", ainda assim preso a um resquício do</p><p>modo de pensar lógico-formal, alerta ao leitor menos avisado, que não busca o mesmo atingir uma</p><p>definição completa e definitiva de justiça, expressão por demais prestigiosa e emotiva. O jusfilósofo</p><p>belga, no particular, já demonstra a evidente dificuldade que existe em se aferir, de uma maneira</p><p>universal, uma noção abstrata, entendida sob uma perspectiva silogística axiomática (ou seja, de</p><p>reconhecimento geral e logicamente irrefutável), acerca de um "valor", tal qual é a justiça.</p><p>É impossível se desvendar uma definição única de tal vocábulo, extremamente polissêmico, e que, a</p><p>depender das palavras utilizadas em sua definição, pode soar, na verdade, extremamente injusto ou não,</p><p>a depender da própria íntima convicção de cada pessoa. A ressonância emotiva da "Justiça" (grafada</p><p>com inicial maiúscula, por indicação do próprio Perelman) já nos revela o profundo respeito, e porque</p><p>não se dizer temor, que Perelman tem, quando se vê diante de supostos conceitos objetivos de "Justiça".</p><p>4</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>Segundo o mestre de Bruxelas, é errôneo se fundamentar em deduções sólidas inferíveis de definições</p><p>arbitrárias e imparciais. Assevera Perelman, que:</p><p>"(...) Se os lógicos admitem a natureza arbitrária das definições, é porque elas não constituem, para</p><p>eles, senão uma operação que permite substituir um grupo de símbolos conhecidos por um símbolo</p><p>novo, mais curto e de manejo mais fácil do que o grupo de signos que o define (...)”.</p><p>Perelman aduz que o raciocínio lógico-arbitrário pode nos levar ao que o próprio denomina de</p><p>"definição dupla", ou seja, uma noção com dois sentidos distintos, e sem comprovação de que tais se</p><p>coincidam. Todas as vezes que se visa definir uma noção, que não represente um signo novo, mas que já</p><p>preexista na linguagem, com toda uma carga particularmente emotiva, não se trata de uma ação</p><p>arbitrária ou indiferente, pelo contrário, é puro ato de vontade, carregado de desejos e paixões</p><p>singulares, portanto, dialético.</p><p>É pela carga de emotividade aplicada na busca em torno de um consenso sobre dada definição de um</p><p>conceito, que se distinguem a filosofia da ciência. Daí porque os conceitos científicos, com fuste em</p><p>métodos experimentais ou analíticos, o que não ocorre na seara filosófica, intrinsecamente valorativa,</p><p>são menos perenes, porque circunstanciados, e deixam de ser aplicados, se não mais servirem ou</p><p>conseguirem ser provados. No particular, a explicação dada por Perelman nos aparenta contraditória, já</p><p>que, com base nessa colocação, os conceitos filosóficos também teriam pouca densidade temporal,</p><p>porque imiscuídos por idéias valorativas, logo humanas, portanto mutáveis; e aí, ao invés de se afastar,</p><p>se aproximariam dos conceitos puramente científicos.</p><p>Perelman, palmilhando essas idéias, acaba por delimitar o objeto da filosofia, como sendo justamente o</p><p>estudo dessas noções extremamente valorativas, por assim dizer "prestigiosas", e que nos levam à uma</p><p>situação irracional, ou ao menos, confusa. Na luta pela descoberta de tais definições é que se acaba por</p><p>discutir o verdadeiro sentido das próprias palavras, e nestes embates não-consensuais, o que acaba por</p><p>preponderar é a proliferação de noções confusas, tão típicas da filosofia.</p><p>Perelman propõe, então, como mera sugestão para se solucionar tal problema, a tentativa de diminuição</p><p>do papel afetivo agregado aos conceitos filosóficos. Entretanto, Perelman adverte que não se trata de</p><p>transformar a filosofia numa ciência, porém, sim, apenas torná-la mais lógica. Perelman admite que a</p><p>justiça seja a principal virtude, e dela todos as outras emanam, posto que açambarcariam toda a</p><p>moralidade. Contudo, Perelman, citando outros autores, como Dupreél e Proudhon, reafirma que a</p><p>justiça é uma noção eminentemente particular, se bastando para tanto uma abordagem histórica das</p><p>diversas concepções de teorias da justiça, seja ela a felicidade (Platão), a verdade (Aristóteles), a razão</p><p>divina - a fé em Deus (Tomás de Aquino), a liberdade ou autonomia da vontade humana (Kant), o ato de</p><p>poder vital (Nietzsche) ou a felicidade conforme a lei (Kelsen). .</p><p>Ainda que todas estas noções, entre si contraditórias, tratem da noção suprema de "justiça", tais são</p><p>válidas para aqueles que as comungam, e, aqui, Perelman salienta que a noção de "justiça" é</p><p>convencional, e cada grupo a defenderá, como concepção própria de pensar; logo, a mais correta,</p><p>adequada e razoável. Quando Perelman fala em "convenção", seu raciocínio se aproxima daquele outro</p><p>aristotélico, pelo qual a justiça se faz através dos hábitos, costumes e da própria experiência.</p><p>DISTRIBUIÇÃO DA JUSTIÇA CONCRETA</p><p>Perelman elenca seis concepções concretas da noção de "justiça", num rol meramente exemplificativo, a</p><p>fim de demonstrar, através de fortes argumentos, ser pouco provável se conseguir a extração definitiva e</p><p>universal do que seja "justiça".</p><p>São eles:</p><p>1. Igualdade absoluta (a cada qual a mesma coisa).</p><p>Segundo esta concepção, todas as pessoas hão de ser tratadas da mesma forma, sem levar em conta as</p><p>diferenças que as distinguem. Logo, tratar-se-ia, do mesmo jeito, independentemente das condições ou</p><p>situações fáticas particulares, um velho e um jovem; um rico e um pobre. Perelman critica tal concepção,</p><p>e, de forma irônica, salienta que, sob tal prisma, o único</p><p>ser perfeitamente justo seria a morte,</p><p>inexorável e universal. Realmente, é absolutamente injusto, ainda que seja sedutor e "populista", tal</p><p>5</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>critério; tendo em conta que, a depender do caso concreto, mister se faz conferir certos privilégios, para</p><p>sopesar algumas desvantagens, de acordo com os usos e costumes.</p><p>2. Igualdade distributiva (a cada qual segundo seus méritos).</p><p>Neste viés, tal concepção prevê um tratamento proporcional a uma qualidade intrínseca, qual seja, ao</p><p>mérito da pessoa. Nota-se nitidamente nesta concepção a retomada, ainda que indireta, do pensamento</p><p>aristotélico, arrimado numa "meritocracia", na qual, como critério material de distribuição de justiça, se</p><p>valoriza o mérito do ser humano. O que vale é o esforço, a causa da ação, e não o seu simples resultado.</p><p>Todas essas concepções, aqui expostas, se referem à critérios de distribuição de justiça, e como tal,</p><p>amplamente relativos, sob o aspecto material, posto que, numa visão perelmaniana, não há como se</p><p>eleger um "melhor" critério. Contudo, como já salientado alhures, sob o aspecto formal, Perelman é um</p><p>neo positivista, no particular se afastando por completo do ideário aristotélico, assumindo, como se verá</p><p>adiante, ser a justiça o que a lei disser, recusando qualquer objetividade ao conceito de valor.</p><p>3. Igualdade comutativa (a cada qual segundo suas obras).</p><p>Este critério de distribuição, segundo Perelman, propugna, assim como o critério do mérito, por um</p><p>tratamento geométrico, contudo, ao contrário da "meritocracia", este aqui só considera os resultados da</p><p>ação, deixando, assim, de ser moral. O critério do mérito leva em conta a intenção da ação, os sacrifícios</p><p>ou esforços realizados, e neste ponto, é mais justo que o ora em análise, segundo as obras.</p><p>O critério dos resultados da ação, ao dar primazia à elementos ligados ao cálculo, peso ou medida, nos</p><p>remete ao pensamento de Ronald Dworkin, que dá vazão à um justo receio ao que chama de "ceticismo</p><p>interior". De igual maneira, o critério dos resultados foi amplamente utilizado no auge da Reforma</p><p>Protestante, na Idade Média, no qual o fiel era salvo pela sua fé ou pelas suas obras, frise-se, com a</p><p>institucionalização do "dízimo" doado à Igreja e a tese, de fundo calvinista, de que quanto mais se</p><p>trabalhasse e acumulasse riquezas, mais fácil seria o próprio acesso ao paraíso celestial. [16]</p><p>Para Perelman, segundo esse critério dos resultados, poder-se-ia justificar o pagamento do salário dos</p><p>operários, por hora ou peça.; bem como os exames e concursos de seleção de candidatos. Hannah</p><p>Arendt refuta tal critério, embora admita que a sociedade atual é altamente tecnicista.</p><p>4. Igualdade de caridade (a cada qual segundo suas necessidades).</p><p>Este critério visa abrandar os sofrimentos decorrentes da impossibilidade em que o homem se encontra</p><p>de satisfazer suas necessidades essenciais. Seria uma concepção de caridade, para Perelman, que para</p><p>não se tornar inviável, haveria de se nortear por regras formais. Como exemplo de aplicação deste</p><p>critério, Perelman aponta a legislação social e trabalhista que surgiu logo após o auge da Revolução</p><p>Industrial do século XIX e do apogeu do liberalismo econômico.</p><p>Válido, ainda que de relance, analisarmos a teoria da justiça de John Rawls, que, sob nítida influência</p><p>kantiana, analisa a justiça como equidade, através da noção (por ele mesmo mais tarde reformulada,</p><p>visando mitigar as invariáveis críticas feitas à sua teoria da "posição original" do pacto social), de</p><p>"overllaping consensus" (numa livre tradução, "superposição consensual").</p><p>Observa-se em Rawls a busca de uma síntese da noção aristotélica de justiça, centrada na igualdade, e a</p><p>noção kantiana, mirada na busca da autonomia (liberdade). Segundo Rawls, a escolha das pessoas, seja</p><p>por um modelo neo-liberal, seja por um modelo social-democrata, passaria, para ganhar foros de</p><p>universalidade, pelo crivo de uma justificação pública, que é exatamente aquela noção da superposição</p><p>consensual, acima citada.</p><p>Em Rawls, a prioridade justa é o bem, vale dizer, a equidade ("farines") e não o útil, como apregoavam</p><p>os utilitaristas econômicos, de Jeremias Bentham e Stuart Mill; assim como o pragmatismo jurídico de</p><p>Holmes e Frank. Para que tal sociedade justa se torne exeqüível, mister se faz que a mesma esteja bem</p><p>ordenada, do ponto de vista jurídico e político. Rawls despreza aquele aforismo de que "a decisão é boa,</p><p>na medida em que é útil para a maioria da sociedade."</p><p>Portanto, tal critério da caridade, como denominou Perelman, foi bendito pelos social-democratas [22],</p><p>que criticando Rawls e os demais adeptos do neo liberalismo, bradam por um "Welfare State" (Estado do</p><p>Bem-Estar Social), com um projeto de Estado intervencionista e garantidor dos direitos sociais.</p><p>5. Igualdade aristocrática (a cada qual segundo sua posição).</p><p>6</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>É um critério aristocrático de distribuição formal de justiça, aduz Perelman, consistindo em tratar as</p><p>pessoas de acordo com a categoria a que pertençam. Se traduz num critério anti-universalista, e</p><p>altamente discriminatório, se dando como exemplos clássicos as diferenças de tratamento dispensadas à</p><p>brancos e negros, nacionais e estrangeiros, livres e escravos, e assim por diante. Tal critério tem por</p><p>caráter a natureza social e o cunho hereditário das pessoas, independendo, destarte, da vontade do</p><p>indivíduo, sendo ardorosamente defendida pelos detentores do poder e pelas maiorias intolerantes.</p><p>I 6. Igualdade formal (a cada qual segundo o que a lei lhe atribui).</p><p>Tal critério nos remete àquela velha parêmia romana de "suum cuique tribuere", vale dizer, dar a cada</p><p>um o que é seu. Segundo Perelman, ser justo é atribuir a cada qual o que lhe cabe, que, em sentido</p><p>jurídico, é aquilo que a lei lhe atribui. Ser justo é aplicar as leis do país; daí decorrendo que, a depender</p><p>de cada legislação, existirá um critério particular de distribuição de justiça. Perelman afirma,</p><p>categoricamente, que a injustiça apenas florescerá na distorção da aplicação das regras jurídicas de cada</p><p>sistema.</p><p>Dupreél, citado por Perelman, concebe este critério como de "justiça estática", posto que almeja a</p><p>mantença do status quo, de índole conservadora, servível como fator de fixidez. Considera, assim, os</p><p>outros cinco critérios, acima explicitados, como de "justiça dinâmica", progressista e concebível como</p><p>fator de transformação.</p><p>Este critério, apesar de nominalmente "formal", implica uma fórmula material de distribuição da justiça,</p><p>a se confundir com a própria idéia de "justiça formal", fundada num viés absolutamente legalista, ou,</p><p>melhor dizendo, positivista jurídico.Tal critério, em suma, há de preponderar sobre as demais fórmulas</p><p>de distribuição material de justiça. Entretanto, Perelman alerta que todos esses critérios não são</p><p>auto-excludentes, mas sim complementares. Assim, o professor de Bruxelas não invalida os outros cinco</p><p>critérios, que, segundo o mesmo, seriam coexistentes.</p><p>Perelman, entretanto, no exato instante em que afirma a coexistência dos critérios, mostra a</p><p>possibilidade de ocorrência de contraposição entre os mesmos, em dada situação concreta. In casu, ele</p><p>aponta três possíveis atitudes a serem tomadas:</p><p>a)declarar que tais critérios não possuem qualquer vínculo conceitual, se buscando, assim, a distinção</p><p>dos seus diferentes sentidos;</p><p>b) ou não adotar nenhum dos critérios, ou escolher, dentre as seis concepções, apenas e tão só uma</p><p>delas; e,</p><p>c)pesquisar o que há de comum entre as diferentes concepções de justiça, mesclando-as.</p><p>Perelman aponta a terceira opção como a melhor de todas, posto que nem a primeira atitude, nem a</p><p>Segunda são sustentáveis. A primeira porque se negaria a evidente existência dos demais critérios, que</p><p>são reais e concretos. A Segunda por ser absolutamente inadmissível considerar apenas uma das formas</p><p>de "justiça concreta" como a única realmente justa.</p><p>III - A NOÇÃO</p><p>DE JUSTIÇA FORMAL (AS CATEGORIAS ESSENCIAIS).</p><p>De acordo com Perelman, dentre os pontos convergentes e os divergentes das diversas concepções de</p><p>justiça, é necessário se talhar uma fórmula de justiça que surja de um acordo unânime. A noção de</p><p>justiça consiste, por certo, na aplicação da idéia de igualdade, porém como um elemento indeterminado,</p><p>ou seja, que possibilite o levantamento e discussão de suas divergências.</p><p>De tal elemento variável, numa pluralidade de determinações, é que advirão as mais opostas fórmulas</p><p>de justiça, até que se chegue à um ideal de limite, sendo justiça a igualdade, não absoluta, mas a parcial,</p><p>como algo possível de execução prática. Ser justo, persiste Perelman, é tratar a todos de forma igual,</p><p>contudo tendo em mente a idéia de "limite", em contraposição às possibilidades de realização de tais</p><p>critérios de distribuição do que seja justo.</p><p>É a noção de "categorias essenciais" de Perelman, pela qual a justiça implica o tratamento igual dos</p><p>seres que são iguais em dadas circunstâncias. Só é realizável a justiça desde que haja identidade comum</p><p>entre os indivíduos à que a mesma é aplicada. Citando Tisset, Perelman exemplifica: não há justiça nas</p><p>relações entre homens e vegetais. Tal conceito perelmaniano já serve para aplacar a ira dos defensores</p><p>de cada tipo de critério de distribuição de justiça, contudo se percebe que um novo problema surge,</p><p>7</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>consistente em se saber como deverá ser o tratamento entre os membros de uma mesma categoria</p><p>essencial.</p><p>Perelman argumenta que, tomando como vetor variável ("elemento indeterminado") cada fórmula</p><p>concreta de justiça, será neste campo de ação que o desacordo se instalará. Vale dizer: dentro das</p><p>diversas categorias essenciais, haverá de existir um tratamento igual entre as pessoas que sejam iguais</p><p>em certo ponto de vista. Em síntese, Perelman traça uma definição de justiça formal (abstrata), como</p><p>"(...) um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser</p><p>tratados da mesma forma (...)" [25]</p><p>Tal definição é formal, justamente porque não se esquadrinha as categorias que são reputadas essenciais</p><p>para a aplicação da justiça; se permitindo, assim, se surjam e sejam discutidas as divergências no exato</p><p>instante de estabelecimento de tais categorias, no plano, logo, da justiça concreta. A partir daí, Perelman</p><p>retorna à análise dos seis critérios concretos de administração da justiça, e a cada um deles, através de</p><p>argumentos convincentes, o mesmo aplica a fórmula de justiça formal. Quanto ao primeiro critério, o de</p><p>"dar a cada qual a mesma coisa", se percebe que, diferentemente do que se imagine, o mesmo não</p><p>traduz um "humanitarismo igualitário"; posto que, sendo possível se restringir a aplicação deste</p><p>princípio à uma categoria essencial, tal categoria, se for mais qualificada que as demais, a exemplo dos</p><p>empresários e dos parlamentares, poderá se valer de tal discurso para se considerar superior às demais</p><p>classes.</p><p>Logo, surge daí uma nova fórmula para tal critério, que, de um modo geral, reflete a própria noção de</p><p>"justiça formal", qual seja: "a cada membro da mesma categoria essencial, a mesma coisa."</p><p>Quanto ao segundo critério, "a cada qual segundo seus méritos", Perelman observa ser premente que se</p><p>possua o mérito ou o demérito, contudo num mesmo grau ou intensidade, o que possibilita, assim,</p><p>recompensar ou punir, dentro de sistemas equivalentes, e de uma adequada representação dos fatos</p><p>subsumidos à apreciação do aplicador da norma.</p><p>De relação ao terceiro critério, "a cada qual segundo suas obras", o belga admite que as obras ou</p><p>conhecimentos terão de ser considerados equivalentes aos olhos do aplicador da justiça, se</p><p>considerando, pura e simplesmente, o resultado do trabalho ou a qualidade intrínseca da obra, sem se</p><p>ater ao esforço ou tempo dispendido pelo agente.</p><p>A partir desta noção, Perelman justifica a necessidade da existência do dinheiro, para comparar o valor</p><p>de obras; e de um programa (um esquema de regras procedimentais), para se comparar candidatos num</p><p>concurso público, por exemplo.</p><p>Quanto ao quarto critério, "a cada qual segundo suas necessidades", o mestre de Bruxelas propõe que</p><p>se busque a determinação das necessidades essenciais dos seres humanos, consideradas estas, a partir</p><p>de uma pesquisa psicológica de prioridades, dentro de uma grade hierárquica, chamada de "mínimo</p><p>vital", que levará em conta as exigências do organismo em geral, contudo não as necessidades mais</p><p>refinadas e particulares. Desta concepção, Perelman sugere o que ele próprio alcunha de noção de</p><p>"justiça social", que é distinta da "caridade", que apenas leva em conta os seres enquanto indivíduos,</p><p>com caracteres particulares.</p><p>No que tange ao quinto critério, "a cada qual segundo sua posição", Perelman explicita que se deve ter</p><p>em conta a repartição habitual, mas nem sempre necessária, dos seres em classes hierarquizadas. Nesse</p><p>toar, há de se tratar as classes hierarquicamente superiores de forma distinta das mais inferiores, lhes</p><p>conferindo tantos direitos, quantos deveres; contudo, de forma igual, entre cada membro de uma</p><p>mesma classe, pena de se criar o que ele denomina de uma "república de amigos".</p><p>Quanto ao sexto e último critério, "a cada qual segundo o que a lei lhe atribui", tal difere de todos os</p><p>outros anteriormente mencionados, posto que, por esta concepção, o aplicador da justiça não possui</p><p>livre escolha para ditar esta ou aquela fórmula de justiça concreta. Ao aplicador é imposto o critério</p><p>estabelecido pela regra, que, no particular, é a jurídica, e não a moral. Por tal critério, não importa a</p><p>escolha moral, advinda da livre adesão da consciência do magistrado. O que vale é a ordem jurídica</p><p>estabelecida, que determina as categorias, cuja aplicação competirá ao julgador.</p><p>IV - CONCLUSÕES</p><p>8</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>Perelman, já em suas derradeiras conclusões acerca de sua concepção de "justiça formal", perquire em</p><p>que medida o juiz, em face da lei, poderá fazer valer sua concepção particular de justiça.</p><p>A tal pergunta, o mesmo responde que, a depender da consciência do magistrado, seu nível de isenção</p><p>será maior ou menor; ainda que, Perelman ressalte, jamais existirá um juiz absolutamente isento, sob o</p><p>aspecto de detenção de uma íntima concepção de justiça, até mesmo em razão de sua humana</p><p>condição.</p><p>De outra quadra, se torna óbvio admitir que as leis são elaboradas, segundo uma concepção de justiça</p><p>dos detentores do poder, não coincidente com a da maioria da população.</p><p>Em casos que tais, compete à jurisprudência reduzir, ou mesmo aplacar estas discrepâncias, até em</p><p>função do já tão conhecido descompasso entre a edição da lei e a constatação das evoluções morais da</p><p>sociedade pelo Parlamento.</p><p>Perelman, adotando postura pós-positivista, no esteio de Kelsen, peremptoriamente afirma que não</p><p>pode haver um direito injusto, já que só se pode conceber e respeitar uma única e universal concepção</p><p>justa, a da lei, pena de se tornar impossível a aplicação da própria justiça. A cada situação, portanto, se</p><p>deve aplicar uma fórmula de justiça concreta, que descreva uma coerência mínima nas ações que</p><p>vinculam as leis e os legisladores, nos remetendo àquele brocardo latino "pacta sunt servanda" os</p><p>acordos devem ser respeitados), pelo qual uma vez pactuado, deve ser cumprido.</p><p>De qualquer sorte, a aplicação da justiça formal exige a prévia delimitação das categorias consideradas</p><p>essenciais, dentro de uma certa escala de valores, que são mutáveis no tempo e no espaço. De fato, se a</p><p>noção de justiça é confusa, isto se dá porque toda definição de justiça concreta se interconecta com uma</p><p>visão subjetiva, parcial, carregada de forte coloração emotiva, do próprio universo.</p><p>Apenas por meio de uma definição de justiça formal, que é clara e racional, será possível se neutralizar</p><p>esses juízos de valor, e tal modo que haja um unânime acordo quanto à sua aplicação.</p><p>9</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>A JUSTIÇA COMO EQUIDADE EM JOHN RAWLS</p><p>John Rawls, o mais conhecido e celebrado filósofo político norte-americano, falecido aos 81 anos, em</p><p>2002, é tido como o principal teórico da democracia liberal dos dias de hoje. O seu grande tratado</p><p>jurídico político A Teoria da Justiça, de 1971, o alinhou entre os grandes pensadores sociais do século 20.</p><p>Um legítimo sucessor de uma linhagem ideológica que se origina em Locke. Os temas que hoje</p><p>provocam polêmica, tal como o sistema de cotas para os negros nas universidades e nos cargos públicos,</p><p>deriva diretamente da concepção de sociedade justa estabelecida por Rawls. Rawls é também sem</p><p>dúvida um herdeiro legítimo do pensamento contratualista.</p><p>I - TEORIA DA JUSTIÇA</p><p>Certa vez, Hegel escreveu que a Filosofia - tal como a coruja que só alça o vôo depois do entardecer -</p><p>somente elabora uma teoria após as coisas terem ocorrido. Foi bem esse o caso da contribuição de John</p><p>Rawls, surgida em livro em 1971, A Theory of Justice, a Teoria da Justiça, resultante direto do sucesso da</p><p>campanha pelos Direitos Civis. Herdeiro da melhor tradição liberal, que principia com Locke, passando</p><p>por Rousseau, Kant e Stuart Mills, Rawls debruçou-se sobre um dos mais espinhosos dilemas da</p><p>sociedade democrática: como conciliar direitos iguais numa sociedade desigual, como harmonizar as</p><p>ambições materiais dos mais talentosos e destros com os anseios dos menos favorecidos em melhorar</p><p>sua vida e sua posição na sociedade? Tratou-se de um alentado esforço intelectual para conciliar a</p><p>Meritocracia com a idéia da Igualdade.</p><p>A resposta que Rawls encontrou para resolver essas antinomias e posições conflitantes fez história. Nem</p><p>a social-democracia européia, velha de mais de século e meio, adotando sempre um política social</p><p>pragmática, havia encontrado uma solução teórica-jurídica para tal desafio. Habermas, o maior filosofo</p><p>alemão do pós-guerra, considerou-o, o livro de Rawls, um marco na história do pensamento, um turning</p><p>point na teoria social moderna, abrindo caminho para a aceitação dos direitos das minorias e para a</p><p>política da Affirmative Action , a ação positiva. Política de compensação social adotada em muitos</p><p>estados dos Estados Unidos desde então, que visa ampliar e facilitar as possibilidades de ascensão aos</p><p>empregos públicos e aos assentos universitários por parte daquelas minorias étnicas que deles tinham</p><p>sido até então rejeitadas ou excluídas. Cumpre-se dessa forma a sua meta de maximize the welfare of</p><p>society's worse-off member, de fazer com que a sociedade do Bem-estar fosse maximizada em função</p><p>dos que estão na pior situação, garantindo que a extensão dos direitos de cada um fosse o mais</p><p>amplamente estendido, desde que compatível com a liberdade do outro. Se foi o projeto da Grande</p><p>Sociedade quem impulsionou a teoria de Rawls, suas proposições, difundindo-se universalmente,</p><p>terminaram por lançar as bases dos fundamentos ético-jurídicos do moderno Estado de bem-estar</p><p>Social, vinte ou trinta anos depois ele ter sido implementado.</p><p>A sociedade justa</p><p>De certo modo Rawls retoma, no quadro do liberalismo social de hoje, a discussão ocorrida nos tempos</p><p>da Grécia Antiga, no século 5 a.C., registrada na "República" , de Platão. Ocasião em que, por primeiro,</p><p>debateu-se quais seriam os fundamentos de uma sociedade justa. Para o filósofo americano os seus dois</p><p>10</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>pressupostos são: 1) igualdade de oportunidade aberta a todos em condições de plena eqüidade e: 2) os</p><p>benefícios nela auferidos devem ser repassados preferencialmente aos membros menos privilegiados da</p><p>sociedade, os worst off, satisfazendo as expectativas deles, porque justiça social é, antes de tudo,</p><p>amparar os desvalidos. Para conseguir-se isso é preciso, todavia, que uma dupla operação ocorra. Os</p><p>better off, os talentosos, os melhor dotados (por nascimento, herança ou dom), devem aceitar com</p><p>benevolência em ver diminuir sua participação material (em bens, salários, lucros e status social),</p><p>minimizadas em favor do outros, dos desassistidos. Esses, por sua vez, podem assim ampliar seus</p><p>horizontes e suas esperanças em dias melhores, maximizando suas expectativas.</p><p>Para que isso seja realizável numa moderna democracia de modelo representativo é pertinente</p><p>concordar inclusive que os representantes dos menos favorecidos (partidos populares, lideranças</p><p>sindicais, minorias étnicas, certos grupos religiosos, e demais excluídos, etc..), sejam contemplados no</p><p>jogo político com a ampliação da sua deputação, mesmo que em detrimento momentâneo da</p><p>representação da maioria. Rawls aqui introduz o principio ético do altruísmo a ser exigido ou cobrado</p><p>dos mais talentosos e aquinhoados - a abdicação consciente de certos privilégios e vantagens materiais</p><p>legítimas em favor dos socialmente menos favorecidos.</p><p>Há nisso uma clara evocação, de origem calvinista, à limitação dos “direitos do talento", sem a qual ele</p><p>considera difícil senão impossível por em pratica a equidade. Especialmente quando ele lembra que uma</p><p>sociedade materialmente rica não significa necessariamente que ela é justa. Organizações sociais</p><p>modestas lembrou ele, podem apresentar um padrão de justiça bem maior do que encontra-se nas</p><p>opulentas. Exemplo igual dessa “secularização do calvinismo" visando o apelo à concórdia social, é a</p><p>abundância no texto de Rawls de expressões como, além do citado altruísmo, "benevolência",</p><p>“imparcialidade", "desinteresse mútuo", "desejos benevolentes", "situação eqüitativa", " bondade", "</p><p>objeção de consciência", etc...</p><p>Worst off - Os socialmente desfavorecidos - Devem ter suas esperanças de ascensão e boa colocação</p><p>social maximizadas, objetivo atingido por meio de legislação especial corretiva, reparadora das injustiças</p><p>passadas.</p><p>Better off - Os mais favorecidos - Devem ter suas expectativas materiais minimizadas, sendo</p><p>convencidos através do apelo altruístico de que o talento está a serviço do coletivo, preferencialmente</p><p>voltado ao atendimento dos menos favorecidos.</p><p>II - PRINCÍPIOS DE JOHN RAWLS</p><p>Primeiro princípio - Cada pessoa tem de ter um igual direito ao mais extensivo Msirma total de</p><p>básicas liberdades iguais, compatíveis com um similar sistema de liberdade para todos.</p><p>Segundo princípio - As desigualdades sociais e econômicas têm de ser ajustadas de maneira que sejam</p><p>tanto:</p><p>a) para o maior benefício dos menos privilegiados, consistente com o princípio justo de poupança e,</p><p>b) ligadas a cargos e posições abertos a todos, sob condições da equitativa igualdade de</p><p>oportunidade.</p><p>III - LEITURA COMPLEMENTAR: TRECHOS DO LIVRO “A TEORIA DA JUSTIÇA” DE JOHN RAWLS</p><p>A justiça como equidade</p><p>|...] Começarei descrevendo o papel da justiça na cooperação social e uma breve síntese do sujeito</p><p>fundamental da justiça: a estrutura básica da sociedade. Em seguida, apresentarei a ideia principal da</p><p>justiça como equidade, uma teoria de justiça que generalize e eleve o nível de abstração do conceito</p><p>tradicional de contrato social. O pacto da sociedade é substituído por um certo constrangimento</p><p>11</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>processual sobre os desenvolvimentos que devem levar a um acordo inicial sobre princípios de justiça.</p><p>Iremos considerar também, com o intuito de esclarecer e tornar possíveis comparações, os conceitos</p><p>utilitários clássicos de justiça e os intuitivos, considerando algumas das diferenças existentes entre estes</p><p>pontos de vista e a justiça como bem. A linha mestra é a produção de uma teoria da justiça que seja uma</p><p>alternativa viável a estas doutrinas, que tem dominado por muito tempo nossas tradições filosóficas [...]</p><p>O papel da justiça</p><p>Vamos considerar, para fixar as ideias, que uma sociedade é, de alguma forma, uma associação</p><p>auto-suficiente de indivíduos que em suas inter-relações reconhecem a certas regras de conduta o</p><p>papel.de amálgama, e que agem, na maior parte das</p><p>vezes, em conformidade com elas. Iremos mais</p><p>longe e suporemos que estas regras determinem um sistema de cooperação com função de desenvolver</p><p>o que for desejável para os que dela fazem parte. Logo, embora uma sociedade seja uma reunião de</p><p>cooperações com o intuito de se obter vantagens mútuas, esta será marcada por conflitos e por</p><p>interesses individualizados. Existe uma identidade de interesses a partir do momento em que a</p><p>cooperação social torna possível uma vida melhor para todos, melhor do que a que cada um levaria se</p><p>tivesse que viver exclusivamente de seus próprios esforços. O conflito de interesses surge quando as</p><p>pessoas deixam de ser indiferentes à maneira pela qual o aumento de produtividade resultante de sua</p><p>colaboração vier a ser distribuído, pois, para se atingir seus próprios objetivos, cada um dará preferência</p><p>a partes maiores da partilha. Um conjunto de princípios é necessário para que haja uma opção entre os</p><p>vários ajustes sociais o que, por sua vez, determinará a divisão das vantagens e assegurará um acordo</p><p>para uma partilha correta. Estes princípios são os princípios de justiça social; eles proverão a</p><p>determinação de direitos e deveres das instituições básicas da sociedade e definem a distribuição</p><p>apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social. [...]</p><p>Entre indivíduos com objetivos e propósitos diferentes, o compartilhar do conceito de justiça estabelece</p><p>os títulos de convivência pública; o desejo geral de justiça limita a perseguição de outros fins.</p><p>Poder-se-ia pensar no conceito público de justiça, como sendo a carta fundamental de uma sociedade</p><p>humana em boa ordem. As sociedades atuais, é claro, raramente estão em boa ordem neste sentido,</p><p>sendo que o justo e o injusto estão em geral em discussão.</p><p>O sujeito da justiça</p><p>Uma vasta categoria de atos e coisas é qualificada de justa ou injusta: [...] Nosso tema, no entanto, é o</p><p>da justiça social. Para nós, o principal tema da justiça é a estrutura básica da sociedade ou, mais</p><p>exatamente, a maneira pela qual as principais instituições sociais distribuem os direitos e deveres</p><p>fundamentais e determinam a partilha dos benefícios da cooperação social. Por instituições principais,</p><p>entendo a constituição política, e os principais entendimentos económicos e sociais. [...]</p><p>A estrutura básica é o tema principal da justiça, pois seus efeitos são profundos e estão presentes desde</p><p>o início. A noção intuitiva aqui é que esta estrutura contém várias posições sociais e que homens</p><p>nascidos em posições diferentes terão diferentes expectativas de vida, considerando-se tanto o sistema</p><p>político, como as circunstâncias económicas e sociais. De certa forma, as instituições da sociedade</p><p>favorecem certos pontos de partida mais do que outros. Estas desigualdades são marcadas de forma</p><p>especialmente profunda. Estas últimas são não somente difundidas, mas também afetam as</p><p>oportunidades iniciais de cada homem em sua vida; ainda que não seja possível justificá-las, através de</p><p>um apelo às noções de mérito ou merecimento. São estas desigualdades, presumivelmente inevitáveis</p><p>dentro da estrutura de qualquer sociedade, às quais os princípios de justiça social devem, em primeira</p><p>instância, se aplicar. Estes princípios, então, regulam a escolha de uma constituição política e os</p><p>elementos principais do sistema económico e social. A justiça de uma estrutura social dependerá</p><p>essencialmente da forma pela qual os direitos e deveres fundamentais forem designados, assim como da</p><p>forma pela qual as oportunidades económicas e as condições sociais forem atribuídas através dos vários</p><p>setores da sociedade. [...]</p><p>A principal ideia da teoria da justiça</p><p>12</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>Meu objetivo é apresentar um conceito de justiça que generalize e leve a um nível mais alto de</p><p>abstração a difundida teoria do contrato social, tal como se encontra formulado por Locke, Rousseau e</p><p>Kant. Para chegarmos a tanto, não devemos considerar o contrato original como um contrato para entrar</p><p>numa sociedade particular, ou para iniciar uma forma particular de governo. Melhor seria que a ideia</p><p>principal fosse que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do acordo</p><p>original. Estes princípios são os que pessoas livres e racionais, reunidas pelos mesmos interesses,</p><p>adotariam inicialmente quando todos estivessem numa posição de igualdade, para definir os termos</p><p>fundamentais da associação que estariam fazendo. Estes princípios irão regular todos os futuros</p><p>entendimentos; iriam especificar os géneros de cooperação social que poderiam vir a ser incluídos no</p><p>governo, assim como determinariam as formas de governo. A esta maneira de ver os princípios de</p><p>justiça chamaremos de justiça como equidade.</p><p>Deste modo, vamos imaginar que os que se engajaram na cooperação social chegaram, através de uma</p><p>ação conjunta, a escolher os princípios que determinam os direitos e deveres, e estabelecem a divisão</p><p>dos benefícios sociais. Os homens deverão decidir, antecipadamente, como irão resolver seus</p><p>contenciosos e como deverá ser a carta fundamental de sua sociedade. [...]</p><p>A escolha que um homem racional faria nesta situação hipotética de liberdade igual para todos, seria</p><p>determinante dos princípios de justiça, partindo-se do princípio de que hoje o problema de escolha já foi</p><p>resolvido.</p><p>[...] Entre os traços essenciais desta situação, encontramos o fato de que ninguém conhece sua posição</p><p>na sociedade, nem a posição de sua classe, e nem mesmo seu status social ou a parte que lhe caberá</p><p>dentro da distribuição do conjunto de bens e das capacidades naturais, ou de sua inteligência, força ou</p><p>semelhante. Assume-se também que as partes não conhecem seus diferentes conceitos de bem, ou suas</p><p>propensões psicológicas particulares. Os princípios de justiça são, desta forma, estabelecidos em total</p><p>ignorância da posição específica de cada um. Isto garantirá que não se possa tirar vantagens ou sofrer</p><p>desvantagens durante o processo de escolha dos princípios através de decorrências de chances naturais,</p><p>ou da contingência de circunstâncias sociais. A partir do momento em que todos se posicionam da</p><p>mesma forma, ninguém seria capaz de fazer uma escolha que favoreça sua própria posição particular, e</p><p>os princípios de justiça seriam o resultado de um acordo ou barganha equitativa. Estabelecidas as</p><p>circunstâncias da posição original, há uma simetria entre as relações de um para outro, esta posição</p><p>inicial é boa entre indivíduos morais, isto é, agindo como seres racionais com seus próprios fins e,</p><p>supõe-se, com a capacidade de atuar dentro de um sentido de justiça. Poder-se-ia dizer que a posição</p><p>original é um status quo apropriado, e que então, desta forma, os acordos a que se chegam, nesta</p><p>situação, são equitativos. Isto mostra como o nome, Justiça como equidade, é adequado, isto levando à</p><p>ideia que os princípios de justiça são estabelecidos numa situação inicial que é equitativa. [...]</p><p>Já uma sociedade que satisfaça os princípios da "justiça como equidade" tenderá a aproximar-se ao</p><p>máximo de um esquema voluntário, para que se possa chegar aos princípios equitativos, aos quais</p><p>pessoas livres e iguais consentiriam em submeter-se. Neste sentido, seus membros seriam autónomos e</p><p>as obrigações seriam, reconhecidamente, auto-impostas.</p><p>Uma característica da justiça como equidade é considerar as partes iniciais como encontrando-se numa</p><p>situação racional e de desinteresse mútuo. Isto não significa que as partes sejam egoístas, isto é, que</p><p>somente se juntem pessoas com um certo tipo de interesse, com um certo nível de riqueza, prestígio e</p><p>posição. No entanto, não consideramos como capazes de interessar-se pelos interesses de outros.</p><p>Presumir-se-ia que até mesmo os objetivos espirituais poderão opor-se, de forma que os objetivos das</p><p>diferentes religiões possam entrar em choque. Ainda mais, o conceito de racionalidade deve ser</p><p>interpretado, tanto quanto possível, num sentido estrito e que é padrão na teoria económica, para se</p><p>considerar os</p><p>significados mais efetivos para dados fins. Deverei modificar este conceito, estendendo-o</p><p>posteriormente, porém deveremos tentar evitar entrar em qualquer controvérsia com elementos éticos.</p><p>A situação inicial deverá ser caracterizada por estipulações, que são largamente aceitas. [...]</p><p>A posição original e justificativa</p><p>13</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>Tenho dito que a posição original é um status quo inicial apropriado, que garanta que o acordo, nele</p><p>encontrado, seja equitativo. Esse fato leva o nome de "justiça como equidade". Fica claro, então, que</p><p>acho que um conceito de justiça é mais razoável do que outros, ou pelo menos mais justificável, caso</p><p>pessoas racionais na situação inicial escolhessem princípios e não outros meios para fazerem o papel de</p><p>justiça. Os conceitos de justiça deverão ser hierarquizados segundo suas respectivas aceitações pelas</p><p>pessoas colocadas em tais circunstâncias. Compreendida desta forma, a questão da justificativa se</p><p>estabelece pelo equacionamento de um problema decisório; temos que procurar descobrir quais os</p><p>princípios que seriam adotados de forma racional, dada uma situação contratual. Isto liga a teoria da</p><p>justiça à teoria da escolha racional.</p><p>...Um comentário final. Gostaríamos de dizer que certos princípios de justiça se justificam, porque</p><p>seriam aceitos numa situação inicial de igualdade. Enfatizei o fato de que tal posição inicial é totalmente</p><p>hipotética. Seria natural perguntar porque deveríamos ter algum interesse por esses princípios,</p><p>moralmente ou de qualquer outra forma, já que tal acordo jamais ocorreu. A resposta é que as</p><p>condições, encontradas na descrição da posição inicial, são as que aceitamos de fato. Ou, caso isto não</p><p>seja verdade, sejamos então persuadidos de assim fazê-lo pela reflexão filosófica. Cada aspecto da</p><p>situação contratual pode receber bases mais sólidas. Deste modo, o que faremos será juntar, num único</p><p>conceito, um certo número de condições sobre princípios que reconhecemos como razoáveis, após a</p><p>devida consideração. Tais restrições expressam o que consideraremos como limites dos termos</p><p>equitativos da cooperação social. Consequentemente, uma forma de ver a ideia de posição inicial, é</p><p>vê-la como um legado expositivo que agregue os significados destas condições e que nos ajude a extrair</p><p>consequências. Por outro lado, esta concepção também é uma noção intuitiva que sugere sua própria</p><p>colaboração, de tal forma que somos levados a esboçar definições mais claras do ponto de vista de</p><p>partida, a partir do qual poderemos interpretar, da melhor maneira, as relações morais. Necessitamos</p><p>de um conceito que nos permita antever nossos objetivos à distância: a noção intuitiva da posição inicial</p><p>deverá fazê-lo para nós. [...]</p><p>Dois princípios de justiça</p><p>|...] Exporei agora, provisoriamente, os dois princípios de justiça que, creio eu, podem ser escolhidos na</p><p>posição inicial. [...]</p><p>O primeiro dos dois princípios poderia ser formulado como segue: primeiro — cada pessoa deve ter a</p><p>mais ampla liberdade, sendo que esta última deve ser igual à dos outros e a mais extensa possível, na</p><p>medida em que seja compatível com uma liberdade similar de outros indivíduos. Segundo — as</p><p>desigualdades económicas e sociais devem ser combinadas de forma a que ambas (a) correspondam b</p><p>expectativa de que trarão vantagens para todos, e (b) que sejam ligadas a posições e a órgãos abertos a</p><p>todos. [...]</p><p>Num comentário geral, estes princípios se aplicam, principalmente, a estrutura básica da sociedade,</p><p>como já disse. Eles deverão governar a atribuição de direitos e deveres, assim como regular a</p><p>distribuição dos benefícios sócio-econômicos. Tal como está sugerido na formulação dos princípios,</p><p>estes últimos pressupõem que a estrutura social pode ser dividida em, aproximadamente, duas partes; o</p><p>primeiro princípio se aplicando à primeira parte e o segundo princípio à segunda parte. Eles fazem uma</p><p>distinção entre os dois aspectos do sistema social que definam e garantam a igualdade das liberdades</p><p>entre os cidadãos e os que especifiquem e estabeleçam desigualdades económicas e sociais. As</p><p>liberdades básicas do cidadão são, de forma geral, a liberdade política (o direito de voto e a elegibilidade</p><p>para cargos públicos) associada à liberdade de expressão e de reunião; a liberdade de consciência e de</p><p>pensar; a liberdade pessoal associada ao direito A propriedade; e a liberdade de não ser preso</p><p>arbitrariamente e de não ser retido fora das situações definidas pela lei. Estas liberdades são todas</p><p>necessárias, para que se possa atingir o princípio primeiro, pois todos os cidadãos de uma sociedade</p><p>justa devem ter os mesmos direitos básicos.</p><p>O segundo princípio, numa primeira aproximação, se aplica à distribuição de renda e de bens,</p><p>aplicando-se também aos propósitos de organizações que se utilizam de diferenças na autoridade e na</p><p>responsabilidade ou na corrente de comando. Quanto à distribuição de bens e renda, ela não deve ser</p><p>14</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>necessariamente igualitária, deverá sempre ser de forma a dar a maior vantagem possível para todos,</p><p>sendo que, ao mesmo tempo, as posições das autoridades e dos órgãos de comando devem ser</p><p>acessíveis a todos. Pode-se aplicar o segundo princípio, mantendo-se as posições abertas e, então,</p><p>sujeitas a esse tipo de pressão, organizando-se as desigualdades sócio-econômicas para que sejam</p><p>obtidas vantagens para todos.</p><p>Tais princípios devem ser organizados dentro de uma ordem serial, com o primeiro princípio</p><p>antecedendo o segundo. Esta ordem significa que, partindo-se das instituições de liberdade igualitária</p><p>para a exigida pelo primeiro princípio, não poderão ser justificadas ou compensadas, através de maiores</p><p>vantagens económicas ou sociais. A distribuição de bens e renda, e as hierarquias e autoridade, devem</p><p>ser consistentes tanto com as liberdades de cidadania igual quanto à igualdade de oportunidade.</p><p>Todos os valores sociais — liberdade, oportunidade, renda, bens e,as bases do respeito próprio —</p><p>deveriam ser distribuídos igualmente, a menos que uma distribuição desigual de um destes valores, ou</p><p>de todos, viesse a trazer vantagens para alguns. A injustiça, então, é apenas a desigualdade que não traz</p><p>benefícios para todos. É óbvio que esta concepção é exatamente vaga e requer interpretações...</p><p>Numa primeira fase, suponhamos que a estrutura básica da sociedade distribua certos bens primários,</p><p>isto é, coisas que todo homem racional deseje teoricamente. Estes bens, normalmente, deverão ter um</p><p>uso qualquer dentro dos planos de vida do indivíduo racional. Simplificando, suponhamos que os</p><p>principais bens primários à disposição da sociedade sejam direitos e liberdades, poder e oportunidades,</p><p>renda e bens. [...]</p><p>Estes são os bens primários sociais. Outros bens primários tais como saúde e vitalidade, inteligência e</p><p>imaginação são bens naturais; embora a posse de tais bens seja influenciada pela estrutura básica, não</p><p>estará, no entanto, sob seu controle direto. Imaginemos, então, um arranjo inicial hipotético no qual</p><p>todos os bens primários sociais são distribuídos igualmente; todos têm os mesmos direitos e deveres,</p><p>sendo renda e bens divididos de forma imparcial. Tal situação propiciará um nível para se julgar as</p><p>melhorias. Se certas desigualdades de bens e de poder organizacional oferecessem a todos melhores</p><p>condições do que as oferecidas por esta situação hipotética, então estariam de acordo com a concepção</p><p>geral.</p><p>É possível, então, pelo menos teoricamente, que, abrindo-se mão de certas liberdades fundamentais, os</p><p>homens sejam suficientemente compensados por ganhos sócio-econômicos resultantes de tal atitude. A</p><p>concepção geral de justiça não impõe restrições permitindo qualquer tipo de desigualdade; a concepção</p><p>geral de justiça requer apenas que a posição de todos seja melhorada. Não precisamos supor qualquer</p><p>situacão drástica, como o consentimento a uma condição escravocrata. Imaginemos que, ao invés</p><p>disto,</p><p>os homens antecedessem certos direitos políticos quando os retornos económicos forem significantes e</p><p>sua capacidade de influenciar o curso da política, através do exercício de seus deveres, fosse marginal</p><p>em qualquer caso. É este tipo de troca que os dois princípios estabelecidos excluem; sendo os princípios</p><p>ordenados de forma serial, eles não permitem uma troca das liberdades básicas pelos ganhos</p><p>económicos e sociais. O ordenamento serial dos princípios expressa uma preferência básica por bens</p><p>sociais primários. Quando esta preferência é racional, é igualmente a escolha destes princípios nesta</p><p>ordem.</p><p>A igualdade democrática e o princípio da diferença</p><p>A interpretação democrática, [...] obtém-se combinando o princípio da equitativa igualdade de</p><p>oportunidades com o princípio da diferença [...]</p><p>Dando por estabelecido o quadro das instituições requeridas pela liberdade igual e a equitativa</p><p>igualdade de oportunidades, são justas as expectativas mais elevadas de quem estiver melhor situado</p><p>se, e só se, funcionarem como parte de um esquema que melhore as expectativas dos membros menos</p><p>favorecidos da sociedade. A ideia intuitiva é que a ordem social não há de estabelecer e assegurar as</p><p>15</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>perspectivas mais atraentes dos melhor situados, exceto se, a fazê-lo, seja em benefício dos menos</p><p>afortunados. [...]</p><p>Para ilustrar o princípio da diferença, considere-se a distribuição da renda entre as classes sociais.</p><p>Suponhamos que os diversos grupos se correlacionem com tipos representativos, cujas expectativas nos</p><p>permitirão julgar a distribuição. Assim, por exemplo, alguém que, numa democracia com propriedade</p><p>privada, comece como membro da classe empresarial, terá melhores perspectivas que quem principie na</p><p>classe de trabalhadores não-qualificados. Parece provável que isto seria verdadeiro inclusive quando se</p><p>eliminassem as injustiças sociais que existem agora. Que é, então, o que pode justificar esse tipo de</p><p>desigualdade inicial nas perspectivas da vida? Conforme o princípio da diferença, só é justificável se a</p><p>diferença de expectativas agir em benefício do tipo representativo pior colocado, neste caso o</p><p>representante dos trabalhadores não-qualificados. [...] Por pressuposto, dada a condição adicional no</p><p>segundo princípio em relação ao acesso aos postos e dado o princípio da liberdade em geral, as maiores</p><p>expectativas, permitidas aos empresários, estimula-os a fazer coisas que aumentarão as expectativas da</p><p>classe trabalhadora. Suas melhores perspectivas atuam como incentivos, que tornarão mais eficaz o</p><p>processo económico, mais rápida a introdução de inovações etc. Não vou considerar em que proporção</p><p>isso esteja certo. O que me interessa é que são argumentos deste tipo os que devem ser apresentados</p><p>se estas desigualdades tiverem de satisfazer o princípio da diferença. [...]</p><p>A tendência à igualdade</p><p>O princípio da diferença representa, com efeito, um acordo no sentido de considerar a distribuição dos</p><p>talentos naturais, em certos aspectos, enquanto um acervo comum, e de participar nos maiores</p><p>benefícios económicos e sociais que fizerem possíveis os benefícios dessa distribuição. Aqueles que</p><p>forem beneficiados pela natureza, quem quer que fosse, podem obter proveito da sua boa sorte apenas</p><p>na medida em que melhorarem a situação dos menos favorecidos. Os beneficiados pela natureza não</p><p>poderão obter lucros pelo mero fato de serem melhor dotados e sim apenas para cobrir os custos do</p><p>seu treinamento e educação e para usarem seus dotes de modo que também nidades, bem como</p><p>rendas e riquezas. [...] Parece evidente que, em geral, estas coisas correspondam à descrição de bens</p><p>básicos. Diante da sua conexão com as estruturas básicas, as liberdades e as oportunidades são</p><p>definidas pelas regras das principais instituições, e a distribuição da renda e da riqueza está regulada</p><p>por elas. [...]</p><p>As circunstâncias da justiça</p><p>As circunstâncias da justiça podem ser descritas como as condições normais, sob as quais a cooperação</p><p>humana é tanto possível quanto necessária, pois, como notei no início, embora uma sociedade seja um</p><p>empreendimento cooperativo de vantagem mútua, está tipicamente marcada por um conflito bem como</p><p>por uma identidade de interesses. [...]</p><p>Quando se supõe que as partes são diversamente desinteressadas e não estão querendo ter os seus</p><p>interesses sacrificados aos outros, a intenção é expressar as condutas e motivos humanos em casos</p><p>onde emergem questões de justiça. Os ideais espirtuais de santos e heróis podem ser</p><p>irreconciliavelmente opostos como quaisquer outros interesses. São os mais trágicos de todos os</p><p>conflitos em busca de tais ideais, pois a justiça é a virtude das práticas onde haja interesses competitivos</p><p>e onde as pessoas se sintam intituladas a pressionarem reciprocamente em favor dos seus direitos.</p><p>Numa sociedade de santos concordando num ideal comum, se tal comunidade pudesse existir, não</p><p>ocorreriam disputas sobre a justiça. Cada qual trabalharia sem egoísmo por um objetivo enquanto</p><p>determinado por sua religião comum e a referência a este objetivo (pressupondo-o claramente definido)</p><p>resolveria qualquer questão de Direito. Porém uma sociedade humana se caracteriza pelas</p><p>circunstâncias da justiça. O relato de tais condições não implica teoria especial da motivação humana.</p><p>Pelo contrário, seu objetivo é incluir, na descrição da posição original, as relações dos indivíduos entre si,</p><p>que estabeleçam o estágio para as questões de justiça. [...]</p><p>A ideia da posição original consiste em estabelecer um procedimento equitativo, de modo que sejam</p><p>justos quaisquer que venham a ser os princípios acordados. O objetivo é usar a noção de pura justiça</p><p>16</p><p>UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU</p><p>APOSTILA SOCIOLOGIA JURÍDICA 4 – PROF. IRINEU BAGNARIOLLI JUNIOR</p><p>processual como uma base da teoria. De algum modo precisamos anular os efeitos das contingências</p><p>específicas, que embaraçam os seres humanos e os tentam a explorar circunstâncias sociais e naturais</p><p>em vantagem própria. Então, a fim de fazê-lo, presumo que as partes se situam atrás de um véu de</p><p>ignorância. Não sabem como as várias alternativas afetarão seu caso particular e são obrigados a avaliar</p><p>os princípios tão-só à base de considerações gerais. [...]</p><p>Justiça política e constituição</p><p>[...] O princípio da liberdade igual, quando aplicado ao procedimento político definido pela Constituição,</p><p>será por mim referido como o princípio de (igual) participação. Requer que todos os cidadãos devam ter</p><p>um igual direito de tomar parte e de determinar o resultado do processo constitucional que estabeleça</p><p>as leis às quais tenham de cumprir. [...]</p><p>Para a fase presente, presumo que uma democracia constitucional possa ser ajustada de modo a</p><p>satisfazer o princípio da participação.</p><p>Todos os adultos sadios, com certas exceções geralmente reconhecidas, têm o direito de tomar parte</p><p>em questões políticas e o preceito, um eleitor = um voto, é honrado tanto quanto possível. As eleições</p><p>são equitativas e livres e regularmente efetuadas. [...]</p><p>Há firmes proteções constitucionais para certas liberdades, especialmente a liberdade de palavra e</p><p>reunião e a liberdade de formar associações políticas.</p><p>O processo de participação também sustenta que todos os cidadãos devam ter um acesso igual, pelo</p><p>menos no sentido formal, ao cargo público. Cada um é elegível a entrar em partidos políticos, concorrer</p><p>a posições eletivas e ocupar lugares de mando. Com efeito, pode haver qualificações de idade,</p><p>residência e assim por diante, mas estas têm de estar razoavelmente relacionadas às tarefas do cargo;</p><p>talvez restrições sejam do interesse comum e não discriminem injustamente entre pessoas ou grupos,</p><p>no sentido que recaiam desigualmente em cada um, no transcurso normal da vida. [...]</p><p>Voltando agora ao valor da liberdade política, a Constituição precisa agir para assegurar o valor dos</p><p>direitos iguais de participação, para todos os membros da sociedade. Deve subscrever uma equitativa</p><p>oportunidade para</p>