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<p>A transição para o medievo e o</p><p>conceito de Antiguidade Tardia</p><p>Infográfico</p><p>A constituição de uma religião leva tempo. Sua institucionalização um leva tempo mais longo, pois</p><p>é um processo em que é necessário criar e adequar ritos, dogmas, processos hierárquicos, ideais</p><p>comportamentais, etc. O Cristianismo, uma religião de livro, surgida a partir de um líder carismático</p><p>(Jesus) e divulgada tanto no oriente quanto no ocidente, onde se destaca especialmente a figura</p><p>também carismática de Paulo, levou séculos para seu processo de formação e vem sendo revisto</p><p>continuamente. Desmembrado do Judaísmo, o Cristianismo seguiu seu próprio rumo, tornando-se</p><p>uma religião (crença) muito influente no mundo, apesar de seus diversos seguimentos.</p><p>Confira neste Infográfico como se organizou inicialmente a Igreja Cristã e como se deu o</p><p>processo de institucionalização e universalização do Cristianismo.</p><p>Aponte a câmera para o</p><p>código e acesse o link do</p><p>conteúdo ou clique no</p><p>código para acessar.</p><p>https://statics-marketplace.plataforma.grupoa.education/sagah/03ed27c9-b07b-4b75-90a9-1885523105f0/8d19daa1-a95f-4f21-8f29-5c2adffa0407.png</p><p>Conteúdo do livro</p><p>Um conjunto de fatores políticos, sociais, administrativos, econômicos, fiscais e</p><p>militares contribuíram para o fim do Império Romano no Ocidente. As questões religiosas também</p><p>tiveram influência para o fim do Império, que teve o início de sua “queda” a partir da limitação da</p><p>sua expansão e das dificuldades para mantê-lo unido, seguro e estável.</p><p>No capítulo A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia, da obra História Antiga,</p><p>você vai conhecer detalhes sobre a queda do Império Romano e como se deram as relações entre o</p><p>poder imperial e os cristãos ao longo do tempo. Vai reconhecer a importância das migrações e</p><p>invasões dos povos "bárbaros" e suas consequências. Por fim, vai descobrir como uma nova</p><p>classificação dos períodos históricos pode auxiliar a quebrar preconceitos e reavaliar interpretações</p><p>sobre a fase que intermediará a Antiguidade Clássica e a Idade Média.</p><p>Boa leitura.</p><p>HISTÓRIA ANTIGA</p><p>Ana Cristina Zecchinelli Alves</p><p>A transição para</p><p>o medievo e o conceito</p><p>de Antiguidade Tardia</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Discutir os aspectos políticos da crise no Império Romano.</p><p> Analisar a fragmentação do Império Romano e a presença do</p><p>cristianismo.</p><p> Apontar as características do conceito de Antiguidade Tardia e as suas</p><p>implicações políticas.</p><p>Introdução</p><p>Neste capítulo, você vai conhecer os fatores de ordem econômica, so-</p><p>cial, religiosa, militar e política que provocaram as crises sucessivas que</p><p>levaram à divisão do Império Romano. Tal divisão deu origem ao Império</p><p>Romano do Ocidente, com sede em Roma, e ao Império Romano do</p><p>Oriente, com sede em Constantinopla. Posteriormente, ocorreu o fim</p><p>do Império Romano Ocidental.</p><p>Também tiveram grande impacto nesse processo de divisão os povos</p><p>germânicos e “bárbaros”, com suas contínuas pressões, migrações e inva-</p><p>sões ao território romano. Por sua vez, o cristianismo exerceu influência</p><p>por meio do seu poderio crescente, provocando ações e reações tanto</p><p>de pagãos quanto de governantes.</p><p>Ao longo do capítulo, você ainda vai ver um novo recorte cronológico</p><p>que vem sendo discutido por historiadores e pesquisadores de diver-</p><p>sas áreas afins: a Antiguidade Tardia. Embora não totalmente definido</p><p>quanto à sua abrangência temporal, tal período situa-se, em geral, entre</p><p>os séculos II–IV e VIII d.C.</p><p>Crises no Império Romano</p><p>Para você compreender os aspectos políticos que levaram ao esfacelamento do</p><p>Império Romano, é necessário retornar à constituição do Império. O período</p><p>imperial tem início com a coroação de Augusto, em 27 a.C., e termina com a</p><p>deposição de Rômulo Augusto, imperador romano do Ocidente, em 476 d.C.</p><p>Após a morte de César, ocorre o segundo triunvirato, ao qual se segue a</p><p>guerra civil. Com a deposição e o exílio de Lépido e a vitória de Otávio sobre</p><p>Marco Antônio (31 a.C.), a República Romana tem seus dias contados. Otávio</p><p>se torna o primeiro entre seus pares (princips senatus) e passa a presidir</p><p>encontros senatoriais. Ele também ocupa a posição de pontífice máximo,</p><p>mantém o imperium consular, que lhe dá autoridade administrativa, e detém</p><p>o controle das legiões romanas e o poder tribuciano (tribunicia potestas),</p><p>que o torna inviolável e lhe dá o direito de veto sobre a proposta de qualquer</p><p>magistrado em assembleia realizada em Roma. O Senado lhe dá o título de</p><p>Augustus em 27 a.C. (LE ROUX, 2009; GIBBON, 2005).</p><p>Essa acumulação de poderes ainda não tinha ocorrido na Roma republicana.</p><p>Como imperador, inicialmente, Otávio Augusto procura manter a aparên-</p><p>cia de uma república, porém vai retirando aos poucos o poder do Senado e</p><p>concentrando-o em suas mãos. Ao fim de seu reinado, depois de reunir muitos</p><p>poderes, ele impõe ao Império o mos maiorum (código de conduta moral e</p><p>ética dos antepassados que conformava o ideal romano) (LE ROUX, 2009).</p><p>Nas províncias dos povos dominados, os privilégios da aristocracia e</p><p>da nobreza (salvo exceções) são mantidos, e é levado a cabo um projeto de</p><p>romanização desses povos. Posteriormente, é distribuída a cidadania romana</p><p>a boa parte deles, um processo de longa duração que ultrapassa o reinado de</p><p>Augusto. Além disso, divulga-se pelo Império ideias relacionadas à noção de</p><p>romanidade (OLIVEIRA, 2015). Nesse contexto, utiliza-se o exército como</p><p>garantidor de fronteira e debelador de rebeliões internas (LE ROUX, 2009).</p><p>Também se assentam veteranos das tropas romanas em terras fronteiriças</p><p>chamadas “limes”, atendendo dessa forma a duas necessidades: agradar e</p><p>compensar soldados (os soldados romanos serviam teoricamente por 25 anos)</p><p>e manter as terras dos limes protegidas (GIBBON, 2005; MOMMSEN, 1962).</p><p>Com Augusto, inicia-se o período de grande prosperidade conhecido como</p><p>pax romana (paz romana), que dura até aproximadamente 180 d.C., quando</p><p>o Império Romano encontra o seu limite e transforma o Mediterrâneo defi-</p><p>nitivamente em mare nostrum (nosso mar) (GIBBON, 2005). Por sua vez, o</p><p>povo é controlado por uma política denominada panem et circenses (pão e</p><p>circo) (COMBY, 2001): distribuía-se pão e, em algumas ocasiões, dinheiro</p><p>A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia2</p><p>ao povo de Roma, a quem também se oferecia diversão pública no Coliseu</p><p>ou nos circos (lutas de gladiadores, jogos e competições, representações e</p><p>outros espetáculos, além de, em alguns períodos, a morte e a martirização</p><p>dos cristãos).</p><p>O Império Romano durou quase 500 anos no Ocidente. Nesse período,</p><p>desenvolveram-se diversos processos paralelos em diferentes campos sociais.</p><p>Como você sabe, um império de tais dimensões e com tal duração sempre</p><p>apresenta variações em suas condições econômicas, sociais, culturais e políti-</p><p>cas. Assim, mesmo com a romanização iniciada por Augusto e continuada por</p><p>seus sucessores, as culturas dos diferentes povos que compunham o Império</p><p>permaneceram existindo, ainda que de forma subjacente.</p><p>Em dado momento, o crescimento do Império chega ao seu limite. Nesse</p><p>sentido, os próprios romanos reconhecem a abrangência do seu território e</p><p>a dificuldade de continuar a garantir a segurança das terras já incluídas no</p><p>Império. A administração e o controle de tão vasta e diversa população eram</p><p>complexos. Além disso, a capacidade real de gerenciamento da defesa contra</p><p>ataques externos e rebeliões internas era defasada. Portanto, parte do próprio</p><p>governo romano a decisão de não mais expandir o Império.</p><p>Com o cessar da expansão, ocorre a extensão da cidadania romana aos povos</p><p>conquistados, a consequente proibição de fazê-los escravos e a liberação dos</p><p>escravos já existentes que pertenciam a esses povos (agora cidadãos). Surgem</p><p>também escravos libertados devido às conversões de senhores cristãos. Isso</p><p>tudo gera um sério problema para o sistema produtor romano, cuja base era</p><p>principalmente escravista. Logo, no</p><p>final do século II, em conjunto, esses</p><p>elementos começam a fazer ruir o sistema produtivo, trazendo consequências</p><p>sérias a longo prazo para o Império.</p><p>Após o fim da dinastia dos Severos, em 235 d.C., Roma enfrenta um</p><p>período denominado “anarquia militar”, que vai de 235 a 284 d.C. Nesse</p><p>período, os generais disputam o poder e Roma chega a ter, nos anos de 268</p><p>a 269 d.C., mais de 15 imperadores. Somente com Diocleciano o Império</p><p>volta a ter um equilíbrio e chances de se recuperar. Porém, 50 anos de anar-</p><p>quia militar deixaram Roma fragilizada internamente e exposta às invasões.</p><p>O corpo de exército fica desorientado e indisciplinado (LE ROUX, 2009).</p><p>Do final do século II ao século V d.C., não se pode falar de crise contínua,</p><p>pois as situações de crise se apresentam, mas elas vêm e vão, produzindo altos</p><p>e baixos nas instituições romanas até o final do Império.</p><p>Em conjunto, no período, vê-se, no âmbito social, o rompimento da antiga</p><p>rede de alianças sociopolíticas entre o poder central e o municipal. O colonato</p><p>ganha força na sociedade, transformando relações sociais entre colonos e</p><p>3A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia</p><p>patronos. Além disso, desenvolve-se o regionalismo e a mobilidade social</p><p>é reduzida. Há um processo de desromanização e barbarização dentro do</p><p>território do Império. A sociedade se torna bipolarizada; de um lado, estão os</p><p>honestiores, de outro, os humiliores: “A tradução literal de honestus (honor</p><p>— honra/respeito) corresponde àquele que é ‘honrado’, ‘virtuoso’, ‘nobre’ e</p><p>humilis, ‘o que está no chão’ (humus), ‘o de baixa condição’, ou ‘o comum’, ‘o</p><p>modesto’” (FEITOSA, 2003, p. 197 apud COMBY, 2001).</p><p>Na economia, ocorre o aumento da fiscalização. O declínio do comércio,</p><p>associado ao esgotamento das minas, resulta num desequilíbrio da balança</p><p>comercial. Há desvalorização monetária e inflação, bem como desemprego.</p><p>As terras dos limes são gradualmente abandonadas. Ocorre uma redução</p><p>demográfica (livres e escravos), o que gera dificuldades de obtenção de mão de</p><p>obra, em especial a escrava, levando ao aproveitamento de bárbaros e ao desen-</p><p>volvimento do colonato. Dá-se a formação de latifúndios e o desenvolvimento</p><p>da economia natural, com o abandono gradativo das cidades e a ruralização.</p><p>No que tange ao aspecto religioso, a cristianização do Império se pro-</p><p>cessou nos primeiros dois séculos da Era Cristã. Ela sofreu resistências e</p><p>perseguições maiores ou menores ao longo do período, fortalecendo-se, no</p><p>entanto. Os romanos eram politeístas e associavam ao seu panteão os deuses</p><p>de outros povos, a quem chegavam a prestar sacrifícios antes das guerras a</p><p>fim de que o resultado fosse benéfico para o seu próprio povo. Os romanos</p><p>criaram antipatia pelos judeus (Jerusalém foi arrasada novamente em 70 d.C.</p><p>e o seu segundo templo, destruído pelos romanos, ocorrendo então a diás-</p><p>pora judaica) e pelos judeus-cristãos (antes de o cristianismo se firmar como</p><p>religião independente, os cristãos eram considerados uma seita entre outras</p><p>seitas judaicas). Os primeiros eram considerados rebeldes, e os segundos,</p><p>vistos como continuação dos primeiros (JOSEFO, 2004). Os cristãos foram</p><p>encarados por um tempo como maus cidadãos e uma ameaça ao Império por</p><p>recusarem os sacrifícios aos deuses romanos e o reconhecimento do imperador</p><p>como um deus (COMBY, 2001).</p><p>Os cristãos sofreram várias perseguições, sendo a de Diocleciano a mais feroz.</p><p>Somente quando Constantino lançou o Édito de Milão, um édito de tolerância, em</p><p>313 d.C., é que os cristãos e os fiéis de outros credos puderam cultuar livremente.</p><p>Constantino, assim, ajudou muito os cristãos, mas a sua posição política impôs</p><p>limitações às suas ações. Em 380 d.C., Teodósio lança o Édito de Tessalônica,</p><p>transformando o cristianismo em religião oficial do Império (PAPA, 2016), o</p><p>que resulta em grandes conflitos entre cristãos e pagãos.</p><p>No campo político e administrativo, alguns elementos contribuíram</p><p>para as diversas crises que o Império sofreu. O “absolutismo” de que são</p><p>A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia4</p><p>acusados os imperadores é um dos fatores mais mencionados. A concen-</p><p>tração de poder— administrativo-burocrático, militar, legislativo — nas</p><p>mãos dos imperadores e a concomitante redução de poder do Senado levam</p><p>à desintegração do antigo sistema administrativo, baseado em curiales, que é</p><p>absorvido pela administração imperial. Paralelamente a isso, ampliam-se os</p><p>gastos públicos com controle interno e defesa externa, na tentativa de evitar</p><p>a perda de territórios dos quais Roma precisa para a sua grandeza e para o</p><p>fornecimento de alimentos, insumos, tributos e soldados. Também há um alto</p><p>custo para manter os exércitos nos limes e evitar invasões bárbaras.</p><p>Na área jurídica, a legislação adquire um caráter cada vez mais prescritivo</p><p>e não mais promocional como outrora. Há coerção jurídica, dirigismo estatal</p><p>na economia e fiscalismo, todos esses elementos submetidos a um rígido</p><p>controle hierárquico. Por outro lado, apresentam-se quadros de transgressão</p><p>às regras oficiais: evasão de impostos, fuga ao recrutamento e patronato, além</p><p>de deserção. A isso, somam-se intrigas palacianas e revoltas locais. Algumas</p><p>cidades se tornam importantes centros administrativos, políticos e econômicos</p><p>durante o período: Aquileia, Constantinopla, Milão, Sirmio e Trevis. Por fim,</p><p>em 395, com a morte de Teodósio I, o Império se divide em Império Romano</p><p>Ocidental e Império Romano Oriental.</p><p>Diversos fatores externos também tiveram sua parte no desenrolar da</p><p>situação imperial: ampliação do número de povos com tratados de foedus,</p><p>aumento demográfico entre os povos bárbaros, romanização dos bárbaros,</p><p>contratação de bárbaros como mão de obra para a agricultura ou recrutamento</p><p>para o exército. Nos últimos dois séculos do Império Romano, boa parte do</p><p>exército era composto por elementos bárbaros. Complementando o quadro,</p><p>não se pode esquecer da cristianização desses povos.</p><p>O termo foedus significa “federado”. Inicialmente, durante o período da República</p><p>Romana, tal termo era utilizado para designar uma tribo à qual não era dado o foro</p><p>de colônia nem a cidadania romana, mas que tinha a obrigação de fornecer, quando</p><p>solicitado, um contingente de soldados a Roma. Mais tarde, a Lei Júlia outorgou cida-</p><p>dania romana aos povos federados. No período da desintegração do Império Romano,</p><p>o termo “federado” passou a ser utilizado também para designar povos bárbaros que</p><p>os romanos subsidiavam, como os drancos, os alanos e os vândalos (FOEDUS, 2016).</p><p>5A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia</p><p>Pode-se afirmar comparativamente que durante o Baixo Império houve</p><p>descontinuidades e rupturas, mas no mesmo período ocorreram diversas</p><p>continuidades e inovações, que resultaram em transformações políticas, eco-</p><p>nômicas e sociais. Para Anderson (1991), a dissolução do modo de produção</p><p>escravista dominante no século II para o modo de produção feudal ocorreu</p><p>gradualmente. De acordo com o autor, a superação do escravismo antigo pro-</p><p>duziu uma alteração radical na infraestrutura econômica e, por consequência,</p><p>na superestrutura política.</p><p>Entre as contradições que deram origem ao problema, está a redução no</p><p>número de escravos necessários à manutenção do sistema produtivo imperial,</p><p>que privou o Império de recursos vitais dos quais necessitava para manter</p><p>a sua estabilidade. Paralelamente a isso, existia uma limitação relativa aos</p><p>avanços tecnológicos e à estagnação de forças produtivas. Resumindo: menos</p><p>escravos, menor produtividade. Para Anderson (1991), contudo, deve ser dada</p><p>ênfase à limitação tecnológica.</p><p>Você deve considerar que autores marxistas gostam de ler esse período</p><p>como resultante de uma luta de classes entre as forças dominantes e as classes</p><p>exploradas (livres e escravos), o que parece uma visão parcial do problema.</p><p>Voltaire, em seu Ensaio sobre costumes, de 1756, aponta para os conflitos</p><p>religiosos entre o paganismo e o cristianismo e para as</p><p>disputas entre as próprias</p><p>facções cristãs. Tais atritos, agregados à debilidade imperial, à fraqueza moral</p><p>e à suplantação de agricultores e soldados por monges, são fatores importante</p><p>a serem levados em conta (VOLTAIRE, 1756). Para Gibbon (2005), o Império</p><p>Romano rui por problemas de ordem interna, como a perda de virtude repu-</p><p>blicana, o domínio do irracional sobre o racional e o cristianismo, que o autor</p><p>considera causador da degeneração e da queda do mundo clássico. Para ele,</p><p>triunfam a religião e a barbárie.</p><p>Finley (1991) menciona a escassez do potencial humano em conjugação</p><p>com as invasões bárbaras como um fator a ser levado em conta. Para o autor,</p><p>ocorria um círculo vicioso no qual não se poderiam aumentar os números</p><p>do exército, pois a terra a ser trabalhada não poderia ser privada de mão de</p><p>obra. Assim, ocorria o agravamento da situação da terra pelo aumento exces-</p><p>sivo dos impostos, que deveriam suprir necessidades de militares devidas ao</p><p>crescimento da pressão germânica, que, por sua vez, demandava o aumento</p><p>do contingente militar. Ferrill (1989) considera a importância dos generais e</p><p>suas legiões. Segundo o autor, eles estavam preocupados com acontecimentos</p><p>políticos e intrigas palacianas, permitindo a fragilidade disciplinar, com perda</p><p>de poder e moral do exército romano, que ficava sem condições de ser eficaz</p><p>no enfrentamento dos bárbaros.</p><p>A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia6</p><p>Círculo vicioso</p><p>A difi culdade de encontrar e repor escravos para dar conta da produção neces-</p><p>sária à manutenção do Império foi uma de muitas situações que levaram ao</p><p>declínio da Roma Imperial. Outros fatores devem ser considerados no longo</p><p>prazo que vai do século III ao V a.C. As questões elencadas a seguir são ele-</p><p>mentos processuais que se intensifi cam em determinados períodos, reduzindo</p><p>o grau de sua importância em outros. Porém, todas em conjunto fazem parte</p><p>do processo de declínio e queda do Império Romano Ocidental. São elas:</p><p> a crise no sistema escravista, advinda da falta de reposição da mão de</p><p>obra escrava;</p><p> a falta de mão de obra, que leva à redução da capacidade de produção;</p><p> a redução da produção, que leva à carestia dos alimentos, à inflação, à</p><p>fome, a doenças e rebeliões;</p><p> a redução do movimento comercial, com crise financeira e crise fiscal</p><p>(menor arrecadação e aumento do valor dos impostos);</p><p> a instabilidade política e as crises no exército.</p><p>Você já sabe que a extensão do Império envolvia a necessidade de manter</p><p>as fronteiras em segurança. Isso custava dinheiro, que vinha da arrecadação</p><p>do fisco. Contudo, não tendo arrecadado o necessário, dados os problemas</p><p>de produção, comércio e economia como um todo, o Império não dispunha</p><p>de condições para a manutenção dos militares e dos equipamentos e insumos</p><p>necessários para garantir as fronteiras contra o elemento externo, formando</p><p>um círculo vicioso, do qual era difícil escapar.</p><p>Por outro lado, como você também já viu, Roma conheceu um período cha-</p><p>mado pelos historiadores de “anarquia militar”, no qual os generais buscavam</p><p>o poder político e deixavam as tropas mal cuidadas, mal treinadas e indiscipli-</p><p>nadas. Isso certamente contribuiu bastante para a queda do Império. A disputa</p><p>pelo poder em Roma também foi acirrada em razão da não obrigatoriedade</p><p>da hereditariedade para assumir o posto de imperador. Os imperadores eram</p><p>escolhidos, indicados ou aclamados, algumas vezes, usurpadores.</p><p>A corrupção vivenciada em Roma é apontada como outro dos elementos</p><p>de sua queda. Ela se dá em diversos níveis: financeiro, político e, para alguns,</p><p>religioso, na medida em que a impiedade era considerada um desvio, uma</p><p>ofensa aos deuses, passível de despertar a sua ira. Aos elementos citados se</p><p>somam a perda, o esquecimento ou o relaxamento de valores éticos e morais</p><p>do mos maiorum.</p><p>7A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia</p><p>Todos os fatores elencados — crise no sistema escravista, crise econômica,</p><p>crise na liderança do exército, instabilidade política e crise moral — deram</p><p>espaço para que ocorressem as invasões germânicas. Mais do que isso, deram</p><p>condições aos povos bárbaros e germânicos de enfrentar os romanos e ganhar</p><p>em algumas frentes.</p><p>Os povos germânicos</p><p>São chamados generalizadamente de “povos germânicos” um conjunto de</p><p>povos “bárbaros”, termo herdado dos gregos que fazia referência inicialmente</p><p>àqueles que não partilhavam a língua, os costumes e a civilização grega.</p><p>Apropriado pelos romanos, tal termo passou a designar povos (estabelecidos</p><p>ou nômades e seminômades) que viviam fora das fronteiras do Império, na</p><p>Ásia, na África ou no Norte Europeu. Numa situação de oposição nós-eles, os</p><p>“bárbaros” eram ou outros, estrangeiros, não assimilados, não “civilizados”,</p><p>considerando-se a óptica dos romanos (GUERRA, 1991).</p><p>Há diversas classificações e listas da composição dos povos germânicos, realizadas</p><p>por escritores da Antiguidade e ao longo da história. Contudo, ainda há escassez de</p><p>informações sobre esses povos. Nesse sentido, aguarda-se o desenvolvimento de mais</p><p>pesquisas nos campos da arqueologia, da epigrafia, da hagiografia, da linguística, da</p><p>literatura, da paleografia, da toponímia e da iconografia, entre outros, para a obtenção</p><p>de novos dados sobre esses povos e suas culturas.</p><p>Além dos germânicos, outros povos bárbaros interferiram no mundo euro-</p><p>peu — não apenas no período da decadência do Império Romano, mas durante</p><p>a Antiguidade Tardia e a Idade Média. Tratando-se diretamente dos povos</p><p>germânicos que mais afetaram o Império Romano, é possível citar: celtas/galos,</p><p>que vivam no norte e no Centro Europeu, e germanos (vândalos, borgúndios,</p><p>godos, teutões, nórdicos, francos, alamanos, lombardos, istaeones, suevos,</p><p>sálios, turíngios, hérulos, etc.). As migrações/invasões germânicas, em sua</p><p>maioria, ocorreram entre o final do século II e o século V d.C. e se deram de</p><p>A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia8</p><p>forma gradual, a partir das áreas dos antigos limes. Elas foram resultado de</p><p>uma série de fatores:</p><p> variações climáticas, como o resfriamento do clima no norte, que reduziu</p><p>as terras passíveis de agricultura, forçando a migração;</p><p> o crescimento populacional;</p><p> a pressão de outros povos, como os hunos.</p><p>Esses povos que estavam entre Roma e outros povos provenientes da Ásia,</p><p>como a federação dos hunos, foram migrando para dentro das fronteiras do</p><p>Império ao longo dos séculos. Aos poucos, foi ocorrendo uma integração entre</p><p>os povos bárbaros e o mundo romano. Tais povos começaram a fazer parte do</p><p>exército e da administração. Contudo, eram povos com costumes diferenciados,</p><p>incluindo seus aspectos políticos, sendo o caráter militar um dos mais típicos</p><p>diferenciais dos germânicos. Eles tinham técnicas avançadas de fabricação de</p><p>armas e também eram bons estrategistas. Dividiam-se em tribos comandadas</p><p>por um chefe com seu séquito de jovens guerreiros juramentados. Veja o que</p><p>afirma Guerra (1991, p. 18–19):</p><p>O mando estava nas mãos dos chefes hereditários ou dos ricos que se achavam</p><p>à cabeça de um importante comitatus. Criava-se assim um setor de pessoas</p><p>dependentes e um grupo de homens livres para o serviço das armas na guerra</p><p>e nas expedições de butim. O enriquecimento dos chefes favoreceu sua trans-</p><p>formação em proprietários. Deste setor, surgiu o grupo dirigente da formação</p><p>política, seja em uma espécie de principado ou em forma de monarquia. Foi</p><p>dessa nobreza que saíram os chefes do exército da época tardia.</p><p>No aspecto econômico, os povos germânicos eram agricultores com técnicas</p><p>próprias, mas a economia variava conforme o grupo, agregando ou não pecuária,</p><p>caça e pesca. Para cultivar as terras, eles utilizavam a mão de obra resultante de</p><p>antigas guerras, composta por escravos e semilivres. O artesanato era modesto,</p><p>mas a ourivesaria, assim como o fabrico de armas, era apurada. As formas</p><p>religiosas ainda estão sendo estudadas, sabendo-se que entre os galos havia a</p><p>organização</p><p>druídica. Acredita-se que antes do cristianismo eles se relacionavam</p><p>com os deuses diretamente na natureza, sem construções de templos. A sua</p><p>característica mais marcante, no entanto, é o espírito guerreiro, comentado por</p><p>autores da Antiguidade como Júlio César, Plínio e Amiano Marcelino. Contudo,</p><p>você deve lembrar-se de fazer a crítica histórica aos documentos.</p><p>9A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia</p><p>A fragmentação do Império Romano</p><p>e a força crescente do cristianismo</p><p>Depois de aproximadamente um século de crise política, em 285 d.C. Diocle-</p><p>ciano se torna imperador. Ele tenta reorganizar o Império, criando posterior-</p><p>mente a tetrarquia, dividindo Roma em quatro zonas ou distritos administrados</p><p>por coimperadores, Ilíria, Itália, Gália e Nicomeia, de onde governa o império</p><p>cada vez mais por meio de éditos. Com Diocleciano, inicia-se o período do</p><p>dominato (senhor), título que ele preferiu ao de princips. Diocleciano era um</p><p>imperador controlador, que sabia dos riscos de traição por seus coimperadores;</p><p>para garantir-se, levou para a sua corte em Nicomeia os fi lhos desses coimpe-</p><p>radores, que educava em literatura, fi losofi a e artes de guerra.</p><p>Os éditos de Diocleciano dirigiam-se principalmente a questões como mo-</p><p>ralização dos costumes e exigência de culto e sacrifícios aos deuses romanos,</p><p>a quem ele atribuía o poder e a glória de Roma, assim como a sua sorte. Por</p><p>outro lado, Diocleciano considerava os cristãos responsáveis pelos problemas</p><p>de Roma, visto que não prestavam culto aos deuses romanos. Tal atitude, a</p><p>recusa do sacrifício, os colocava em uma posição entre a falha religiosa e</p><p>a traição ao Império, afrontando não somente o poder constituído como o</p><p>dever de piedade para com os deuses que o mantém. Não se pode deixar de</p><p>questionar o envolvimento do “clero” pagão com o imperador nessa questão,</p><p>já que fiéis significam renda e poder para os templos.</p><p>As tensões por questões religiosas aumentaram no governo de Diocleciano,</p><p>pois a Igreja Cristã havia crescido em número de adeptos e enriquecido. O seu</p><p>ideal de fé já era considerado por camadas senhoriais, aristocráticas e militares.</p><p>Os cristãos pareciam a Diocleciano uma ameaça real ao poder imperial e a</p><p>Roma. Por isso, o imperador decretou um édito que permitia caçar e matar</p><p>os cristãos — considerados por Diocleciano como inimigos internos —,</p><p>destruir suas igrejas e textos sagrados e tomar os espaços por elas ocupados,</p><p>bem como dispor dos bens dos cristãos. Esse período ficou conhecido pelos</p><p>cristãos como a “grande perseguição”. Foi um período sangrento que somente</p><p>após a morte de Diocleciano e a reunificação do Império por Constantino pôde</p><p>ser sanado por meio do Édito de Milão (313 d.C.), que concedeu a tolerância</p><p>religiosa no Império Romano.</p><p>Os tetrarcas procederam de formas diferentes quanto à perseguição cristã.</p><p>As situações regionais também incidem sobre o resultado, intensificando-se,</p><p>por exemplo, no tetrarcado mais oriental. A fome em 311 d.C. leva à culpabi-</p><p>lização e à perseguição intensiva dos cristãos, vistos como os provocadores da</p><p>situação por desagradarem os deuses romanos, não sacrificando a eles. Porém,</p><p>A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia10</p><p>não há como saber em detalhes como esses comportamentos se davam em</p><p>todo o Império, visto que as aplicações do Édito são diferenciadas em graus</p><p>conforme a região.</p><p>De qualquer forma, apesar das perseguições ocorridas ao longo do tempo,</p><p>culminando na grande perseguição de Diocleciano, os cristãos não apenas</p><p>sobreviveram como fizeram de sua Igreja um império. Eles transformaram</p><p>o que seria adversidade em uma instituição poderosa que dominou o cenário</p><p>histórico ocidental e parte do Oriente, sendo até hoje um poder a ser conside-</p><p>rado, mesmo por não cristãos. Os cristãos transformaram as suas tragédias em</p><p>grandes histórias de martírio pela fé que serviram de inspiração para outros</p><p>homens. Jesus, que poderia ter sido apenas mais um judeu entre criminosos</p><p>crucificados, ou mais um messias entre outros tantos que a história dos ju-</p><p>deus conhece, foi transformado em símbolo de poder salvador, um messias</p><p>compassivo. Opostamente ao intento inicial de Diocleciano, a perseguição</p><p>serviu para reanimar a fé, fortificar o movimento cristão e glorificar mártires.</p><p>Depois da tomada de poder por Constantino, ocorre a sua vitória sobre</p><p>Maxêncio, considerada uma vitória do deus cristão (que inspirou Constantino</p><p>a colocar símbolos nos escudos de seus homens antes da batalha) contra os</p><p>deuses pagãos a quem Maxêncio cultuava. No entanto, mesmo com a vitória</p><p>que unifica o Império nas mãos de um só governante, Constantino sabe que</p><p>a questão religiosa é terreno perigoso. Mas a sua tendência é pela tolerância,</p><p>o que o faz publicar o Édito de Milão (313 a.C.) proclamando a neutralidade</p><p>do Império Romano em relação aos credos religiosos e dando fim às perse-</p><p>guições. Como aponta Papa (2006, documento on-line), “Na primeira década</p><p>do século IV, após vários períodos de interdição ao cristianismo no Império</p><p>Romano, os cristãos, assim como outros grupos, tiveram a sua crença colocada</p><p>na legalidade sob o ponto de vista da legislação do Império”.</p><p>Historiadores discutem se a posterior conversão de Constantino ao cris-</p><p>tianismo se deu por fé real ou por conveniência política. De qualquer modo,</p><p>esse imperador em muito auxiliou o desenvolvimento do cristianismo e da</p><p>Igreja, inclusive subsidiando/patrocinando o Concílio de Niceia, em 325 d.C.</p><p>O fato é que depois disso o cristianismo cresceu em poder e influência, até se</p><p>tornar — pelo Édito de Tessalônica, de 384 d.C., decretado por Teodósio — a</p><p>religião oficial do Império Romano. Para Guida Neto (2011), a solidificação</p><p>do cristianismo a partir do século IV e a sua nova condição de religião oficial</p><p>do Império Romano influenciaram toda a sociedade imperial.</p><p>No final do século IV, com o grande apoio que recebeu de imperadores e</p><p>de seus devotos abastados, o cristianismo já possuía mosteiros nas cercanias</p><p>de algumas cidades e também conventos. A Igreja detinha poder espiritual e</p><p>11A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia</p><p>temporal, além de muitos bens e riquezas; a sua influência se estendia muito</p><p>além de Roma. Guida Neto (2011, documento on-line) aponta para a adap-</p><p>tação do cristianismo ao pensamento filosófico clássico: “Esse trabalho foi</p><p>realizado com maestria pelos autores da Filosofia Patrística. Estes filósofos</p><p>foram leigos, sacerdotes ou bispos da antiguidade cristã e são conhecidos como</p><p>Padres da Igreja”. O autor também aponta para o fato de que no século IV</p><p>d.C., quando o cristianismo se consolidou, ele já tinha passado por uma série</p><p>de transformações em seus quase quatro séculos de existência; no percurso,</p><p>passou de “[...] instrumento de contestação da ordem vigente” a instrutor da</p><p>ordem. Com a sua filosofia já desenvolvida e tendo realizado a sistematização</p><p>de suas crenças, essa religião submeteu a elite intelectual aos seus dogmas e</p><p>dominou a elite política e militar (GUIDA NETO, 2011, documento on-line).</p><p>Como você viu, diversos fatores levaram à queda do Império Romano,</p><p>primeiro com a sua divisão, após a morte de Teodósio, depois com o esface-</p><p>lamento da parte ocidental do Império. As invasões e os saques, mais do que</p><p>as migrações, foram em muito responsáveis pela internalização dos romanos</p><p>no campo. Tal internalização implicou uma ruralização que, juntamente com</p><p>o cristianismo, as conversões dos povos bárbaros e a permanência dos bispos</p><p>cristãos nas cidades, formou o que se convencionou chamar “Alta Idade Mé-</p><p>dia”. O período de transição entre a Idade Antiga e a Idade Média, que vai</p><p>aproximadamente do século V ao século VIII, é chamado modernamente de</p><p>Antiguidade Tardia.</p><p>O certo é que a Igreja cresceu em poder, se tornou guardiã dos recursos</p><p>relativos à erudição, conservou nas bibliotecas de seus mosteiros as obras</p><p>antigas, desenvolveu conhecimento e moldou o homem medieval por meio de</p><p>seus dogmas. Os homens</p><p>da Igreja, com o tempo, passaram a ser os maiores</p><p>detentores da arte de escrever, tornando-se assessores e escribas dos poderes</p><p>terrenos, ao mesmo tempo em que se faziam diretores e guardiões da mora-</p><p>lidade, da espiritualidade e, com isso, das consciências.</p><p>Antiguidade Tardia e suas implicações políticas</p><p>Até a última década do século passado, as divisões cronológicas da história</p><p>utilizadas pela historiografi a eram quatro: Idade Antiga, Idade Média, Idade</p><p>Moderna e Idade Contemporânea, podendo receber subdivisões. Dessa forma,</p><p>datava-se o fi m da Antiguidade pela queda do último imperador romano do</p><p>Ocidente, em 476 d.C. Como você pode notar, essa é uma divisão muito oci-</p><p>dentalizada e eurocentrista, já que desconsidera o resto do mundo, a história</p><p>A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia12</p><p>de outros povos, inclusive a continuidade do Império Romano do Oriente,</p><p>cuja capital era Constantinopla. Curiosamente, a divisão cronológica que</p><p>marcava a passagem da Idade Média à Idade Moderna era baseada na data</p><p>da tomada de Constantinopla pelos otomanos, ou seja, 1453. Assim, a Roma</p><p>dividida tornava-se marco divisório de dois períodos históricos separados</p><p>por quase mil anos.</p><p>Desde a escola de Annales vêm sendo levantadas questões relativas aos</p><p>recortes temporais e às periodicidades da história. Na última década do século</p><p>XX, começa a surgir uma nova divisão, que considera o período que vai do</p><p>século IV (ou V) ao VIII d.C. como Antiguidade Tardia. Assim, revisam-se</p><p>antigos conceitos e preconceitos quanto à Idade Média, que era chamada</p><p>de “Idades das Trevas” — em oposição à Antiguidade Clássica — pelos</p><p>neoclassicistas do Renascimento e pelos iluministas. Hoje, a Antiguidade</p><p>Tardia é encarada como um momento histórico de ajuste, e não como uma</p><p>ruptura. Assim, é necessário levar em conta “[...] as inovações, as mutações</p><p>e a criatividade do mundo romano durante a Antiguidade Tardia, as novas</p><p>estruturas mentais, sociais, religiosas” (SILVA, 2008, documento on-line).</p><p>Silva (2008) defende o uso do termo “adaptação” em detrimento de “barba-</p><p>rização” ou “decadência” no que tange ao uso do latim na Alta Idade Média.</p><p>Além disso, ele acredita que a expressão “Alta Idade Média” é mais adequada</p><p>do que “Antiguidade Tardia” à plasticidade das sociedades romano-bárbaras</p><p>que emergem a partir dos séculos V e VI. Nesse sentido, é possível observar</p><p>os séculos iniciais da Idade média “como um lócus de reinvenção da herança</p><p>clássica, um espaço da construção de fenômenos específicos e originais, por</p><p>exemplo, no domínio literário, o latim ‘altomedieval’, no domínio da história</p><p>política, a Realeza Cristã, e, no domínio da economia rural, o ‘Grande Domí-</p><p>nio’” (SILVA, 2008, documento on-line). Essa é a defesa de um ponto de vista</p><p>válido que abrange fatos referentes a dois dos séculos incluídos no período</p><p>da Antiguidade Tardia, mas que até o momento também não foi incorporado</p><p>à divisão historiográfica.</p><p>Referindo-se às perspectivas abertas na historiografia a partir do reconhe-</p><p>cimento do período da Antiguidade Tardia, Silva (2009, documento on-line,</p><p>grifo nosso) afirma:</p><p>Uma das novidades desta nova perspectiva e ponto fundamental para sua</p><p>consolidação como novo paradigma é a ascensão de um novo recorte crono-</p><p>lógico: a Antiguidade Tardia. Esta mudança na historiografia ainda não se</p><p>traduziu na nossa consciência histórica mais ampla, digamos, na memória</p><p>histórica do cidadão ocidental médio (quiçá na do brasileiro), mas teve, porém,</p><p>grande impacto nos especialistas.</p><p>13A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia</p><p>Essa é uma afirmativa bem realista. Levará tempo ainda para que a academia</p><p>e principalmente os livros didáticos se adequem às novas conformações crono-</p><p>lógicas, bem como para que os questionamentos e os conhecimentos produzidos</p><p>a partir desse novo paradigma sejam compartilhados amplamente. Como você</p><p>viu, Silva (2008) tem um ponto de vista diferente sobre o assunto, da mesma</p><p>forma que muitos outros pesquisadores. Assim, ainda levará tempo antes que</p><p>se chegue a um consenso aceito e internalizado pela maioria dos estudiosos.</p><p>O fato é que a mudança na cronologia não é uma mera modificação de</p><p>nomenclatura; ela implica um novo modo de pensar a história do período tardio</p><p>e de refletir sobre os acontecimentos dos períodos imediatamente anterior e</p><p>posterior a ele. O Império Romano não acabou em um dia como Hiroshima e</p><p>Nagasaki. Ele levou séculos nesse processo. Da mesma forma, a Idade Média</p><p>não começou no dia seguinte à deposição de Rômulo Augusto.</p><p>Nesse sentido, você deve levar em conta que todas essas divisões cronoló-</p><p>gicas são posteriores aos eventos, acordadas entre estudiosos e pesquisadores</p><p>de forma a permitir uma localização cronológica dos fatos e dos elementos</p><p>mais marcantes de cada período. O primeiro período, a Antiguidade Clássica,</p><p>permaneceu vivo no povo romano e, em parte, nos povos romanizados, bem</p><p>como na língua latina, em uma série de costumes e em elementos culturais que</p><p>estiveram presentes, pois estavam internalizados no ser e no fazer do povo do</p><p>Império Romano. A língua latina continuou a ser utilizada na administração</p><p>e no direito (por romanos, germânicos e padres). Nesse contexto, não se pode</p><p>deixar de lado a Igreja — uma instituição que tinha força e poder em Roma.</p><p>Afinal, as missas eram em latim, assim como os documentos episcopais e,</p><p>posteriormente, as bulas papais.</p><p>As estruturas mentais dos próprios historiadores e escritores senatoriais ou cristãos</p><p>estavam impregnadas de todo um código, uma forma de construção cognitiva e</p><p>linguística romana. Se você quiser um pequeno exemplo de como hábitos corporais</p><p>— aos quais também podem se associar estruturas mentais — presentes em cada</p><p>cultura, mal percebidos de tão naturalizados, são difíceis de esquecer ou trocar, pode</p><p>apreciar o texto de Marcel Mauss sobre as técnicas do corpo. Entre muitas observações,</p><p>Mauss (2003) chama a atenção para a questão do uso das pás durante a guerra. Ingleses</p><p>e franceses necessitavam de pás diferentes pois não conseguiam trabalhar com a pá</p><p>do outro (pense aqui no mundo antigo e em seus modos de fazer). Veja o que afirma</p><p>Mauss (2003, p. 403):</p><p>A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia14</p><p>Os escritores cristãos e senatoriais do período de transição da Antiguidade</p><p>à Idade Média hoje passam por um exame crítico quanto às suas colocações</p><p>sobre a queda de Roma. Fica-se com o velho questionamento sobre o direcio-</p><p>namento e a intencionalidade do texto: para quem se fala, por que se fala, com</p><p>que intenção? Quem pagou pelo texto? Se Salústio eleva Jugurta a um grande</p><p>guerreiro e outros o fazem com relação a Aníbal, você deve se perguntar, sem</p><p>desmerecer o real valor que tais guerreiros e estrategistas possam ter tido, que</p><p>poder de propaganda teriam as suas existências para Roma e para os inimigos</p><p>de Roma se eles fossem guerreiros e inimigos comuns e medíocres.</p><p>Da mesma forma, a vitória do cristianismo sobre o paganismo, do deus</p><p>cristão sobre os deuses pagãos, será contada de forma épica, valorizando o</p><p>poder de um e desmerecendo o poder de outros. A Igreja fará novos reis, os</p><p>ungirá, terá poder sobre eles. Mais do que isso, ela dominará as consciências</p><p>e, por meio delas, as pessoas, em todos os níveis. A estrutura burocrática</p><p>romana estará presente na Igreja e por ela se fará presente nas sociedades na</p><p>Antiguidade Tardia e nas Idades Média e Moderna.</p><p>Ao longo da queda do Império Romano, o poder político se fracionou e</p><p>a economia passou por um processo de retração. Os germânicos, os povos</p><p>bárbaros e os territórios fracionados do Antigo Império formaram reinos,</p><p>principados e outras unidades político-administrativas. As culturas bárbaras</p><p>encontraram-se com a cultura romana e se comunicaram em maior ou menor</p><p>grau, conforme o caso, o que já vinha ocorrendo ao longo do tempo, já que</p><p>o processo levou séculos. Muitas das estruturas políticas na formação dos</p><p>reinos foram aproveitadas das estruturas</p><p>romanas. Finalmente, mas não menos</p><p>importante, quando a Alta Idade Média estava no seu auge, os reis ungidos</p><p>pela Igreja se tornaram não deuses (status adquirido pelos imperadores), mas</p><p>essa especificidade é o caráter de todas as técnicas. Um exemplo:</p><p>durante a guerra pude fazer numerosas observações sobre essa espe-</p><p>cificidade das técnicas. Como a de cavar. As tropas inglesas com as</p><p>quais eu estava não sabiam servir-se de pás francesas, o que obrigava a</p><p>substituir 8 mil pás por divisão quando rendíamos uma divisão francesa,</p><p>e vice-versa. Eis aí, de forma evidente, como uma habilidade manual só</p><p>se aprende lentamente. Toda técnica propriamente dita tem sua forma.</p><p>Ora, se uma coisa simples como utilizar uma pá para cavar trincheiras se torna tão</p><p>difícil, imagine o tempo que foi necessário às diversas populações que viveram em</p><p>diferentes períodos históricos para mudarem os seus hábitos mais internalizados.</p><p>15A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia</p><p>sacralizados instrumentos do deus cristão, colocados em suas posições régias</p><p>para governar o mundo em nome dele.</p><p>Como você viu, a inserção de uma nova divisão cronológica é um incentivo</p><p>a novas reflexões sobre o período que se denomina “Antiguidade Tardia”, que</p><p>ainda não está completamente determinado quanto à sua duração. Contudo,</p><p>apesar das variações, tal período representa a possibilidade de um novo olhar</p><p>sobre essa época de transição, com suas mudanças, continuidades e rupturas,</p><p>reestruturações e inovações.</p><p>ANDERSON, P. Passagens da antiguidade ao feudalismo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense,1991.</p><p>COMBY, J. Para ler a história da igreja. São Paulo: Edições Loyola, 2001. t.1.</p><p>FEITOSA. L. M. G. C. Condicionantes das posições sociais em Romanas: uma leitura</p><p>a partir de Pompeia. PHOINIX, v. 9, n. 1, 2003. Disponível em: http://phoinix.historia.</p><p>ufrj.br/media/uploads/artigos/11_-_Condicionantes_das_posicoes_sociais_roma-</p><p>nas_-_Lourdes_Feitosa.pdf. Acesso em; 30 jul. 2019.</p><p>FERRILL, A. A queda do império romano: a explicação militar. Rio de Janeiro: Jorge</p><p>Zahar, 1989.</p><p>FINLEY, M. A força de trabalho e a queda de Roma. Porto Alegre: Graal, 1991.</p><p>FOEDUS. In: CONHECIMENTO geral. [S. l.:s. n.], 2016. Disponível em: https://www.co-</p><p>nhecimentogeral.inf.br/foedus/. Acesso em; 30 jul. 2019.</p><p>GIBBON, E. História do declínio e queda do império romano. São Paulo: Cia das Letras, 2005.</p><p>GUIDA NETO, J. A cristianização do império romano e o direito. Thesis, v. 7, n. 16, 2011.</p><p>Disponível em: http://www.cantareira.br/thesis2/ed_16/1_guida.pdf. Acesso em; 30</p><p>jul. 2019.</p><p>GUERRA, M. S. Os povos bárbaros. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991.</p><p>JOSEFO, F. História dos hebreus de Abraão à queda de Jerusalém. 8. Ed. Rio de Janeiro:</p><p>Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2004.</p><p>LE ROUX, P. Império romano. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.</p><p>MAUSS, M. Noção de técnica do corpo: sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac &</p><p>Naif, 2003.</p><p>MOMMSEN, T. História de Roma. Rio de Janeiro: Delta, 1962.</p><p>A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia16</p><p>OLIVEIRA, F. Consequências da expansão romana. In: BRANDÃO, J. L.; OLIVEIRA, F. (co-</p><p>ord). História de Roma antiga volume I: das origens à morte de César. Coimbra: Coimbra</p><p>University Press, 2015.</p><p>PAPA, H. A. Relações de poder entre bispo e imperador: uma proposta interpretativa</p><p>acerca da oficialização do Cristianismo a partir de Gregório de Nissa e Teodósio I (século</p><p>IV). História, v. 35, out. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar</p><p>ttext&pid=S0101-90742016000100311. Acesso em: 30 jul. 2019.</p><p>SILVA, M. C. Entre “antiguidade tardia” e “alta idade média”. Diálogos, v. 12, n. 2/3, 2008.</p><p>Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Dialogos/article/view/38149.</p><p>Acesso em: 30 jul. 2019.</p><p>SILVA, U. G. Antiguidade tardia como forma da história. Anos 90, v. 16, n. 30, dez. 2009.</p><p>Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/18927. Acesso em: 30 jul. 2019.</p><p>VOLTAIRE. Essay sur l'histoire générale et sur les moeurs et l'esprit des nations depuis charle-</p><p>magne jusqu'à nous jours. Paris: [S. n.], 1756. Disponível em: http://www.dominiopublico.</p><p>gov.br. Acesso em: 30 jul. 2019.</p><p>17A transição para o medievo e o conceito de Antiguidade Tardia</p><p>Dica do professor</p><p>A visualização de mapas auxilia os alunos a identificarem as geografias dos locais históricos e a</p><p>sequenciação temporal e o acompanhamento das mudanças geoterritoriais. Por meio de mapas, é</p><p>possível mensurar visualmente as modificações ocorridas no espaço, durante os tempos em seus</p><p>aspectos políticos, econômicos e culturais.</p><p>Veja na Dica do Professor, por meio de mapas, movimentos de expansão, redução territorial</p><p>e movimento dos povos "bárbaros" tanto dentro quanto fora das fronteiras do Império Romano.</p><p>Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.</p><p>https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/cee29914fad5b594d8f5918df1e801fd/1641f62a8d5085fa9eedac5e41b7ba02</p>