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<p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)</p><p>INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA: domínios e fronteiras, vol. 2</p><p>Fernanda Mussalim e Anna Christina Bentes (Orgs.)</p><p>Capa: aeroestúdio</p><p>Preparação de originais: Nair Hitomi Kayo</p><p>Revisão: Agnaldo Alves, Solange Martins</p><p>Composição: Linea Editora Ltda.</p><p>Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales</p><p>Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização</p><p>expressa dos autores e do editor.</p><p>© 2000 by Organizadoras</p><p>Direitos para esta edição</p><p>CORTEZ EDITORA</p><p>Rua Monte Alegre, 1074 – Perdizes</p><p>05009-000 – São Paulo – SP</p><p>Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290</p><p>E-mail: cortez@cortezeditora.com.br</p><p>www.cortezeditora.com.br</p><p>Publicado no Brasil – 2021</p><p>Para Sírio e Inge</p><p>Que nos mostraram</p><p>Os encantos da linguagem.</p><p>(As Organizadoras)</p><p>O homem sentiu sempre — e os poetas frequentemente cantaram — o poder</p><p>fundador da linguagem, que instaura uma sociedade imaginária, anima as coisas</p><p>inertes, faz ver o que ainda não existe, traz de volta o que desapareceu.</p><p>Émile Benveniste</p><p>SUMÁRIO</p><p>APRESENTAÇÃO À 8ª EDIÇÃO</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Sírio Possenti</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Fernanda Mussalim</p><p>Anna Christina Bentes</p><p>1. SEMÂNTICA</p><p>Roberta Pires de Oliveira</p><p>2. PRAGMÁTICA</p><p>Joana Plaza Pinto</p><p>3. ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO</p><p>Ângela Paiva Dionísio</p><p>4. ANÁLISE DO DISCURSO</p><p>Fernanda Mussalim</p><p>5. NEUROLINGUÍSTICA</p><p>Edwiges Maria Morato</p><p>6. PSICOLINGUÍSTICA</p><p>Ari Pedro Balieiro Jr.</p><p>7. AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM</p><p>Ester Mirian Scarpa</p><p>8. LÍNGUA E ENSINO: políticas de fechamento</p><p>Marina Célia Mendonça</p><p>SOBRE OS AUTORES</p><p>APRESENTAÇÃO À 8ª EDIÇÃO</p><p>A obra Introdução à Linguística: domínios e fronteiras (vols. 1 e 2) foi lançada</p><p>no II Congresso Internacional da Associação Brasileira de Linguística (Abralin),</p><p>que aconteceu em Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará (UFC), em</p><p>março de 2001.</p><p>Com a participação de linguistas brasileiros de várias instituições do país, os</p><p>dois volumes foram organizados de forma a dar acesso aos principais objetos de</p><p>estudo e às principais teorizações das diferentes áreas da Linguística, em uma</p><p>linguagem focada no público de graduação, mas sem abrir mão do necessário</p><p>rigor acadêmico na apresentação de cada uma das áreas que constituem esse</p><p>campo do conhecimento.</p><p>O trabalho coletivo e engajado dos vários autores dessa obra resultou na sua</p><p>consolidação como uma referência no Brasil: um material imprescindível para a</p><p>formação dos profissionais da área de Letras e Linguística e também um guia de</p><p>conhecimento básico do campo dos estudos da linguagem, que figura na</p><p>bibliografia obrigatória de vários programas de pós-graduação no país.</p><p>Para nós, organizadoras da obra Introdução à Linguística: domínios e fronteiras,</p><p>isso tudo é, ao mesmo tempo, uma grande alegria, mas também uma grande</p><p>responsabilidade.</p><p>A atualização da obra no ano de seu aniversário de dez anos foi a maneira que</p><p>encontramos para celebrar o seu sucesso e, ao mesmo tempo, continuar a</p><p>fornecer um material de formação adequada e de qualidade no campo dos</p><p>estudos linguísticos.</p><p>Essa atualização foi feita de maneira diversificada e contemplou reformulações</p><p>pontuais e/ou reformulações mais gerais de grande parte dos artigos. Houve</p><p>desde a aplicação do acordo ortográfico e correções dos originais, até</p><p>atualizações de bibliografia, exemplos e dados, além da inserção de novos</p><p>conceitos e/ou reformulações teóricas. Foram feitas também atualizações das</p><p>informações sobre os autores e uma mudança no layout da capa, conservando-se,</p><p>no entanto, as cores e o espírito das capas originais.</p><p>Os dez anos de sucesso editorial e de reconhecimento do mérito acadêmico dessa</p><p>obra devem-se a muitos: autores, editores, colegas e leitores. A eles, o nosso</p><p>mais sincero agradecimento e a reiteração de nosso compromisso com o</p><p>fortalecimento das práticas de reflexão sobre a linguagem a partir de uma</p><p>perspectiva linguística.</p><p>Assim, gostaríamos de agradecer, mais uma vez, a todos os autores que se</p><p>dispuseram a colaborar, há dez anos, com esse projeto e que também se</p><p>dispuseram a colaborar com esta atualização da obra.</p><p>Gostaríamos de agradecer à Cortez Editora, por ter acolhido esta obra para</p><p>publicação e por ter sido incansável na sua divulgação e distribuição.</p><p>Agradecemos também aos nossos colegas da Linguística e aos estudiosos da</p><p>linguagem em geral, que consideram que esta obra deve ser lida por seus alunos</p><p>de graduação e/ou de pós-graduação em Letras e Linguística e/ou em outras</p><p>áreas do conhecimento.</p><p>E, por fim, gostaríamos de agradecer aos nossos leitores de todo o país, por</p><p>terem escolhido nossa obra como um dos inúmeros companheiros de jornada no</p><p>curso de sua formação profissional.</p><p>Sabemos que os tempos de hoje exigem muito mais de todos nós, profissionais</p><p>das Letras e da Linguística. Por sua abrangência e objetividade, acreditamos que</p><p>esta obra continua a constituir-se em um significativo apoio para a obtenção de</p><p>uma boa formação profissional e humana no campo dos estudos da linguagem, já</p><p>que a questão linguística é, atualmente, uma das mais importantes agendas da</p><p>educação e da ciência brasileiras.</p><p>Fernanda Mussalim</p><p>Anna Christina Bentes</p><p>Organizadoras</p><p>Dezembro de 2011</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Prefaciar um livro como este que o leitor tem em mãos não é uma tarefa que se</p><p>cumpra facilmente. Por duas razões, principalmente. Em primeiro lugar, não é</p><p>obra de autor, ou seja, sendo uma coletânea, não se trata de um livro que possa</p><p>ser atribuído a uma pessoa, caso em que os prefácios dedicam parte de seu</p><p>espaço para celebrar o autor, não necessariamente para comentar o livro. Em</p><p>segundo, porque se trata de uma obra contendo textos sobre Linguística,</p><p>destinada de certa forma à sua divulgação, ou, dito de outra maneira, destinada a</p><p>propiciar uma introdução não trivial a um campo de saber já veterano, mas para</p><p>muitos completamente desconhecido.</p><p>O livro trata de temas bastante conhecidos nos meios mais ou menos</p><p>especializados, mas nada — eu disse “nada”, não disse “pouco” — conhecidos</p><p>nos meios que não se dedicam especificamente a essas questões, por mais que</p><p>elas lhes sejam afetas. Este poderia bem ser o caso dos críticos literários,</p><p>antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos, e mesmo psicanalistas.</p><p>Os estudantes que chegam à universidade repetem e confirmam a situação: eles</p><p>não têm a menor familiaridade com as questões mais banais às quais se dedica a</p><p>Linguística, a despeito de longa experiência escolar com manifestações variadas</p><p>e relevantes de linguagem, e também de alguma experiência, frequentemente</p><p>dolorosa e quase sempre inútil, com gramáticas (sempre e só as normativas).</p><p>Este é um fato curioso, sobre o qual se deveria meditar. Todos conhecem, mesmo</p><p>os que se devotam apenas ao campo das humanidades, e mesmo às letras,</p><p>alguma coisa sobre relatividade, big bang e universo em expansão, DNA e</p><p>clonagem. No mínimo. Às vezes, equivocadamente, é verdade, a ponto de</p><p>confundirem a relatividade de Einstein com o relativismo de suas convicções...</p><p>De qualquer forma, nos campos da Física e da Biologia, faz tempo que a escola e</p><p>a imprensa diária ultrapassaram Newton e Mendel. Mas nunca — se houver pelo</p><p>menos um caso, me avisem — ultrapassaram, nem escola, nem imprensa, nem</p><p>mesmo o ensaísmo dos finais de semana, muito menos as colunas que agora</p><p>assolam a mídia, os limiares das gramáticas normativas (a única exceção são as</p><p>menções cansativas a um texto de Jakobson sobre as funções da linguagem)</p><p>quando a questão são as línguas. Ouvir o comentário de um intelectual ou de um</p><p>jogador de futebol sobre a questão é exatamente a mesma coisa.</p><p>Ora, tais gramáticas estão para a Linguística mais ou menos como Galileu está</p><p>para a Física Moderna, isso se considerarmos de maneira otimista e generosa</p><p>apenas os tópicos nos quais discutem a organização interna da língua e sua</p><p>eventual relação com o mundo, que é o caso da herança filosófica das</p><p>gramáticas. Quanto ao mais, a atitude é meramente normativa, pré-baconiana</p><p>nos melhores casos, e manual de etiqueta — ruim —</p><p>porque ele tem certas propriedades que</p><p>só os humanos têm. A essas propriedades, que definem o conteúdo semântico de</p><p>um termo, a Semântica Formal dá o nome de intensão. A intensão permite</p><p>alcançarmos uma classe de objetos em todos os mundos possíveis. O conjunto</p><p>dos homens no nosso mundo é a sua extensão nesse mundo. Você certamente</p><p>percebeu que há um paralelo com os conceitos de sentido e referência que</p><p>definimos no início deste capítulo, não?</p><p>No caso de homem, sua extensão são os vários humanos no mundo, as entidades</p><p>extralinguísticas. E qual seria a sua intensão? Suas propriedades essenciais.</p><p>Além da delicada questão filosófica que aí se esmiúça — afinal, existem mesmo</p><p>propriedades essenciais? —, essa abordagem enfrenta o difícil problema de</p><p>determinar com certo grau de segurança quais são as propriedades necessárias e</p><p>suficientes para que algo pertença a uma certa categoria. Pergunte-se: o que faz</p><p>uma pessoa ser parte da categoria HUMANO? O fato de compartilhar com todos</p><p>os outros seres humanos certas propriedades e, ao mesmo tempo, de se</p><p>distinguir, por meio dessas propriedades, de todos os demais seres. Eis a resposta</p><p>da Semântica Formal clássica. Pare um instante de ler e pense: mas que</p><p>propriedades são essas? A questão não é trivial e tem recebido as mais diferentes</p><p>respostas ao longo dos séculos. Já se afirmou que a categoria HUMANO se</p><p>define pela presença de duas propriedades, “ser bípede” e “ser implume”:</p><p>pertencer à classe dos humanos é ter dois pés e não ter penas. De fato, essas</p><p>propriedades permitem distinguir um homem de um cachorro e de um pato. No</p><p>entanto, é muito fácil achar exemplos de seres humanos que, ao menos</p><p>aparentemente, não preenchem essas condições. Basta imaginar um perneta;</p><p>alguém com uma única perna continua a ser humano ou não? E se, por uma</p><p>mutação genética qualquer, um ser humano nascesse com algumas plumas, ele</p><p>deixaria de ser um humano? Já deu para você ter uma ideia do problema, não?</p><p>Sem dúvida alguma foi Ludwig Wittgenstein, em Investigações filosóficas,</p><p>quem problematizou com maior maestria o problema das categorias.¹ Ele se</p><p>perguntou sobre quais seriam as propriedades definidoras da categoria jogo,</p><p>levando em consideração os vários usos que essa palavra pode ter. Tente se</p><p>lembrar de tudo o que você chama de jogo: amarelinha, palavra cruzada, vôlei,</p><p>damas, solitário, futebol. E agora veja se você consegue descobrir uma única</p><p>propriedade que seja comum a todas as atividades que denominamos jogo, isto é,</p><p>uma propriedade necessária porque presente em todos os exemplos de jogo. Se</p><p>você disser “divertimento”, eu retruco com roleta-russa. Se você falar em</p><p>“competição”, eu lembro os jogos de amarelinha e os solitários. Imaginemos, no</p><p>entanto, que você me convença de que a propriedade comum a todos os</p><p>exemplos de jogo seja divertimento. Mas divertimento é uma propriedade tão</p><p>genérica que é insuficiente para separar a classe dos jogos de outras classes,</p><p>como a das diversões. Não conseguimos distinguir jogo de divertimento se</p><p>divertimento é o traço, já que há coisas divertidas que não são jogos: ir ao</p><p>cinema é divertido e não é um jogo. Parece que se houver uma propriedade</p><p>comum a todos os usos de uma palavra, uma propriedade necessária, ela não será</p><p>suficiente para delimitar a classe. Com base nessa constatação, Wittgenstein</p><p>propôs que as categorias se organizam por relações de semelhanças de família.</p><p>Os usos de uma mesma palavra se assemelham da mesma forma que os</p><p>membros de uma família. Não é necessário que os membros compartilhem a</p><p>mesma propriedade para pertencerem todos à mesma família, nem mesmo o</p><p>sobrenome.</p><p>A Semântica Cognitiva baseia-se nessa linha de pensamento para negar a</p><p>abordagem clássica da categoria. Ela se ancora fortemente em evidências</p><p>psicológicas para assegurar a posição de que não categorizamos por meio do</p><p>estabelecimento de propriedades necessárias e suficientes. O trabalho de Berlin</p><p>& Kay (1969) sobre as cores em diferentes línguas, assim como as pesquisas de</p><p>Eleanor Rosch (apud Lakoff, 1987) apontam para fatos que contradizem as</p><p>predições da categorização por propriedades necessárias e suficientes. Vejamos</p><p>um exemplo. Se peço para você me dar um exemplo de pássaro, você com</p><p>certeza não vai dizer pinguim, a menos que você seja um semanticista. Por que</p><p>não? Por que as pessoas tendem a responder perguntas sobre categorias com</p><p>certos elementos e não com outros? Os experimentos de Rosch trouxeram uma</p><p>resposta a essas questões. A abordagem formal clássica não pode dar uma</p><p>explicação para esse fato, porque para ela as categorias se organizam por</p><p>propriedades necessárias e suficientes, e, se é assim, então todos os membros de</p><p>uma categoria devem ter o mesmo valor. Isso significa que as pessoas deveriam</p><p>responder aleatoriamente, ora pardal, ora pinguim, ora galinha ao meu pedido de</p><p>exemplo de pássaro. Mas não é isso o que elas fazem; elas respondem</p><p>preferencialmente uma subespécie de pássaro. No Brasil, provavelmente</p><p>diríamos pardal e muito raramente pinguim.²</p><p>Baseado nesses resultados, formulou-se a hipótese de que os conceitos se</p><p>estruturam por protótipos. Em outros termos, quando classificamos não</p><p>recorremos ao estabelecimento de condições necessárias e suficientes, mas nos</p><p>escoramos em casos que são exemplares, que são os mais reveladores da</p><p>categoria, na nossa experiência imediata. É por isso que no Brasil, acredito, a</p><p>resposta seria pardal ao pedido de exemplificação de pássaro: convivemos com</p><p>pardais. Além disso, pardal tem propriedades que são salientes nos pássaros, e</p><p>que pinguins não têm: ele voa como os pássaros em geral. As categorias se</p><p>estruturam, pois, por meio de um caso mais prototípico que se relaciona via</p><p>semelhanças com os outros membros menos centrais. Pardal é o membro central</p><p>da categoria PÁSSARO, ao passo que pinguim ocupa posição periférica.</p><p>Mas como é que a criança aprende essas categorias? Ela aprende primeiramente</p><p>as categorias de nível médio, porque é com objetos desse tipo de categoria que</p><p>temos contato físico direto. Mais uma vez com base em experimentos da</p><p>Psicologia, a Semântica Cognitiva afirma que aprendemos categorias de nível</p><p>básico diretamente, porque elas não indicam nem as categorias mais abstratas,</p><p>nem as categorias mais específicas. Aprendemos primeiro e diretamente</p><p>categorias como cachorro e mesa e só posteriormente, pelo processo de</p><p>metonímia, as categorias genéricas animal e móveis e as particulares como boxer</p><p>e mesa de cabeceira. Da mesma forma que a metáfora é o processo para estender</p><p>os esquemas imagéticos, a metonímia é o processo para estender as categorias.</p><p>Também aqui metonímia não se refere à figura de linguagem que aprendemos</p><p>nos manuais de retórica ou nas gramáticas tradicionais. Trata-se antes de um</p><p>processo cognitivo que permite criar relações de hierarquias entre conceitos. A</p><p>sentença (37) é um exemplo de metonímia:</p><p>(37) O governo decretou o fim do seguro-desemprego.</p><p>É, pois, por meio dos processos cognitivos da metáfora e da metonímia que</p><p>estendemos nossos esquemas e categorias para além das nossas experiências</p><p>físicas imediatas na direção da abstração.</p><p>Intervalo VIII</p><p>Procure mostrar que a propriedade “voar” não é nem necessária nem suficiente</p><p>para que algo pertença à categoria AVE.</p><p>Procure descrever, a partir do conceito de protótipo, a categoria MÃE.</p><p>Explique por que a sentença a seguir é uma metonímia:</p><p>(1) A Maria saiu com o seu animal de estimação.</p><p>Vamos agora nos contentar em apresentar em suas linhas gerais a abordagem</p><p>cognitiva para as pressuposições. Sobre esse assunto, a grande contribuição tem</p><p>sido de Gilles Fauconnier (1985).²¹ Esse autor parte da hipótese de que na</p><p>interpretação formamos espaços mentais, estruturas conceituais que descrevem</p><p>como os falantes atribuem e manipulam a referência, dentre elas as descrições</p><p>definidas. Em conformidade com os postulados da Semântica Cognitiva, o</p><p>significado não está na linguagem; antes, a linguagem é como um método, uma</p><p>receita, que permite a identificação de uma estrutura cognitiva subjacente. Para</p><p>dar conta da referência,</p><p>Fauconnier propõe que durante a interpretação</p><p>construímos domínios ou espaços mentais nos quais ela ocorre. Suponha a</p><p>sentença:</p><p>(38) Júlio César conquistou o Egito.</p><p>Na interpretação de (38) criamos um espaço mental em que Júlio César se refere</p><p>ao personagem histórico na nossa mente e não no mundo. O que ocorre se</p><p>repentinamente passamos a falar do personagem de Shakespeare, como na</p><p>sentença (39)?</p><p>(39) Na peça de Shakespeare, Júlio César conquistou o Egito.</p><p>Nesse caso, diz Fauconnier, abrimos um novo espaço mental, em que Júlio César</p><p>não se refere ao personagem histórico, mas ao ficcional, mas mantemos relações</p><p>entre eles.</p><p>É a partir desse arsenal teórico que Fauconnier propõe uma análise distinta das</p><p>pressuposições, já que elas nem garantem a referência a entidades no mundo,</p><p>nem são procedimentos argumentativos; são antes entidades mentais/cognitivas.</p><p>Sem entrar nos detalhes, retornemos à sentença sobre Maria ter parado de fumar,</p><p>a sentença (16). Dissemos, então, que a sentença veiculava a pressuposição de</p><p>que Maria fumou um dia. Mostramos que a sentença negativa pode ser descrita</p><p>como comportando uma ambiguidade: ou negamos a pressuposição, Maria não</p><p>fumava antes, ou negamos o predicado, Maria não parou de fumar. Na</p><p>Semântica Cognitiva, a pressuposição é descrita como significados que se</p><p>transferem de um espaço mental para outro. No caso da sentença (16),</p><p>estaríamos diante de dois espaços mentais: um em que está a informação de que</p><p>Maria já fumou; outro que diz que ela parou de fumar. Quando interpretamos,</p><p>acionamos os dois espaços mentais. No caso de negarmos o primeiro espaço</p><p>mental, isto é, Maria nunca fumou, essa informação não é transportada para o</p><p>segundo espaço mental. Já, se Maria fumou um dia, então a pressuposição é</p><p>carregada para o segundo espaço mental, e a negação incide sobre o fato de ela</p><p>ter parado de fumar.</p><p>O mesmo raciocínio se aplica ao caso do rei da França. Formamos, na</p><p>interpretação, dois espaços mentais: um em que há um e apenas um rei da</p><p>França, independentemente de haver de fato um rei da França, isto é,</p><p>independentemente da relação de referência. Essa sentença, que se originou no</p><p>espaço mental A, ou permanece nesse espaço mental (se, por exemplo, negamos</p><p>que há um único rei da França), ou se move até o espaço mental B (em que se</p><p>afirma que o único rei da França é careca) e se torna uma pressuposição de B —</p><p>nesse caso, a negação só poderá atingir a afirmação de que ele é careca.</p><p>5. UMA RÁPIDA CONCLUSÃO</p><p>Na introdução dissemos que nossa intenção era apresentar um instrumental que</p><p>já faz parte do campo da Semântica, independentemente do modelo adotado, e</p><p>que permite mostrarmos como o “mesmo” fenômeno ganha diferentes</p><p>descrições. Esse é o caso dos problemas levantados com relação à referência, à</p><p>pressuposição, às definições definidas, à categorização. Ao apresentarmos como</p><p>esses problemas são descritos de modos diferentes, queríamos mostrar as linhas</p><p>mestres dos modelos semânticos atuais: o modelo formal, o modelo enunciativo</p><p>e o modelo cognitivo. Se conseguimos apresentar esse quadro minimamente,</p><p>acreditamos que você, leitor, tem condições de seguir em frente, de aprofundar</p><p>(veja aí uma metáfora para a Semântica Cognitiva) seus estudos. É por isso que</p><p>apresentamos, ao longo deste capítulo, várias referências bibliográficas que</p><p>permitem iniciar um estudo menos superficial a respeito de cada um dos</p><p>modelos apresentados. Contamos ainda ter mostrado que, na Linguística</p><p>contemporânea, não há nem uma resposta única para o problema do significado,</p><p>nem uma metodologia única para descrevê-lo. Essa pluralidade de modelos</p><p>transparece também no fato de que, muitas vezes, aquilo que é problema para</p><p>um modelo não o é para outro. É esse o caso da categorização, que interessa à</p><p>Semântica Formal e à Semântica Cognitiva, mas que é secundário na Semântica</p><p>da Enunciação.</p><p>Finalmente, se não for esperar demais, esperamos ter deixado o leitor com a</p><p>“pulga atrás da orelha”, com uma certa certeza de que qualquer descrição</p><p>semântica está necessariamente engajada numa visão da linguagem, o que</p><p>implica uma explicação para a relação entre linguagem e mundo, linguagem e</p><p>conhecimento. Adotar a abordagem da Semântica Formal não é apenas utilizar o</p><p>instrumental lógico para descrever a linguagem — o que em si poderia ser feito</p><p>por quaisquer das abordagens aqui propostas —, mas assumir que a linguagem</p><p>natural se estrutura logicamente e que o significado é uma relação entre o</p><p>linguístico e o não linguístico. Esses são pontos de discussão. É verdade que a</p><p>linguagem tem uma estrutura, mas que ela seja lógica... Se adotamos o ponto de</p><p>vista da Semântica da Enunciação ou da Semântica Cognitiva, jogamos fora a</p><p>ideia de que a verdade tem algo a ver com o significado, de que o</p><p>extralinguístico tem um papel na fundamentação do significado. Esse também é</p><p>um postulado polêmico. Na Semântica da Enunciação, o significado é descrito</p><p>nas relações de dialogia, de argumentatividade. Ele não serve, pois, para apontar</p><p>algo no mundo exterior, mas para convencer, para seduzir o outro. Enredado na</p><p>linguagem, não há como transcendê-la. No modelo da Semântica Cognitiva</p><p>também abandonamos a ideia de verdade como dando suporte ao significado,</p><p>porque ele está no corpo que vive, que se move, que está em várias relações com</p><p>o meio e não na correspondência entre palavras e coisas.</p><p>Que a heterogeneidade pode tornar as coisas mais complicadas para aqueles que</p><p>querem fazer semântica é certo, mas ela pode também ajudar a ver que talvez a</p><p>linguagem seja de fato um objeto muito complexo. Tão complexo que somente</p><p>deixando coexistir diferentes abordagens, somente espiando a linguagem por</p><p>diferentes buracos de fechadura, poderemos um dia chegar a compreendê-la</p><p>melhor.</p><p>Respostas</p><p>Intervalo I: A referência de a capital da França e Paris é Paris, o objeto no</p><p>mundo. Atente para a distinção entre linguagem e objeto. A referência de Paris é</p><p>a capital da França, uma sentença, é o verdadeiro, porque no nosso mundo</p><p>Paris é a capital da França. Eis alguns exemplos de sentido para descrever o</p><p>Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, a capital do Império, a cidade do Cristo</p><p>Redentor.</p><p>Intervalo II: 1) Há várias possibilidades de recortar a primeira sentença: ser</p><p>casado com (predicado de dois lugares), ser casado com Maria (predicado de</p><p>um lugar), João ser casado com (predicado de um lugar). A segunda sentença é</p><p>um exemplo de predicado de um lugar: ser brasileira. Cuidado aqui, porque não</p><p>é possível recortar a sentença como ___ é ___, pois brasileira não é um nome</p><p>próprio, não tem sentido completo, nem referência, e o verbo ser não está</p><p>estabelecendo uma identidade, mas pertença a um conjunto. A última sentença</p><p>pode ser recortada de três formas: Oscar é jogador de, ser jogador de, ser</p><p>jogador de basquete.</p><p>2) Em Todo homem é casado com alguma mulher, para todo elemento do</p><p>conjunto dos homens corresponde um elemento do conjunto das mulheres. Nesse</p><p>caso, o universal tem escopo sobre o existencial. Já em Um homem é casado</p><p>com todas as mulheres, afirmamos que há um único homem que é casado com</p><p>todos os elementos do conjunto mulheres. Nesse caso, o existencial tem escopo</p><p>sobre o universal. Finalmente, na última sentença temos um caso de</p><p>ambiguidade, porque temos dois operadores não e de novo: mais uma vez Maria</p><p>não está grávida — ou seja, ela nunca esteve grávida antes, e dessa vez, de novo,</p><p>ele não conseguiu engravidar — ou Maria já esteve grávida, mas não está</p><p>grávida dessa vez.</p><p>Intervalo III: A sentença João não escreveu sua tese para agradar a mãe tem</p><p>duas interpretações por causa do escopo da negação — isto é sua amplitude:</p><p>(1) João não escreveu sua tese e o motivo de ele não ter escrito é a sua mãe.</p><p>O operador de negação tem escopo sobre o evento denotado pelo verbo.</p><p>(2) João escreveu sua tese mas o motivo não foi a sua mãe.</p><p>A negação tem escopo sobre o motivo.</p><p>Há pressuposição factiva na sentença João lamenta a morte do pai, porque para</p><p>ser verdadeira ou para ser falsa é preciso que seja verdade que o pai de João</p><p>tenha morrido. Veja que</p><p>se negamos a sentença João não lamenta a morte do pai</p><p>continua a ser verdadeiro que o pai morreu. Essa é a pressuposição factiva</p><p>quando a sentença pressupõe que houve um evento.</p><p>Intervalo IV: Segundo a Semântica da Enunciação, a sentença pode comportar</p><p>uma negação polêmica — Meu livro não foi reeditado, porque não tenho livro —</p><p>ou uma negação metalinguística — Não é verdade que meu livro foi reeditado. A</p><p>sentença exibe a seguinte estrutura:</p><p>E1: Eu tenho um livro.</p><p>E2: Este livro foi reeditado.</p><p>O enunciador E3 pode ou negar E1 ou negar E2.</p><p>A Semântica Formal descreveria esta sentença como ambígua. Num caso, a</p><p>negação teria escopo sobre a pressuposição de que eu escrevi um livro; no outro,</p><p>ela incidiria sobre a afirmação de que ele foi reeditado. Fala-se aqui de duas</p><p>formas lógicas distintas.</p><p>Intervalo V: A primeira sentença é um caso de masSN, porque há presença de</p><p>um enunciador que nega a fala João está cansado, e outro que repara a</p><p>descrição dessa fala: João está deprimido. Na segunda temos um masPA, porque</p><p>a primeira sentença, João foi ao cabeleireiro, nos leva a imaginar que ele cortou</p><p>o cabelo, precisamente a conclusão que é negada na segunda parte da sentença.</p><p>A sentença João não saiu pode comportar diferentes tipos de negação,</p><p>dependendo do encadeamento discursivo em que ela aparece. A negação pode</p><p>ser descritiva ou metalinguística. Se você acabou de me dizer que João saiu e eu</p><p>replico com a sentença em questão, temos uma negação metalinguística. O</p><p>mesmo vale para a negação em O céu não está azul que, dependendo do</p><p>encadeamento linguístico, pode ser descritiva ou metalinguística.</p><p>Intervalo VI: Em termos argumentativos, (1) e (2) são bastante diferentes. A</p><p>contribuição de sentido proporcionada pelo até está no fato de que ele</p><p>pressupõe uma escala de valores, em que o presidente do Brasil está no topo. De</p><p>modo que a sua presença é um argumento para a conclusão de que a festa foi</p><p>um sucesso.</p><p>Na sentença (1) seguinte, argumenta-se em favor da tese de que João dormiu; ao</p><p>passo que na sentença (2) a escala argumentativa vai na direção do argumento de</p><p>que João não dormiu.</p><p>Intervalo VII: As sentenças manifestam a presença de uma metáfora conceitual:</p><p>TEMPO É DINHEIRO, tanto que podemos gastá-lo, economizá-lo, empregá-lo</p><p>mal, investir nele...</p><p>Há muitos exemplos que confirmam a metáfora conceitual ARGUMENTAÇÃO</p><p>É UMA GUERRA. Eis alguns: Vou defender minha tese hoje; Use todas as suas</p><p>armas contra os argumentos dele; Ele atacou meu ponto de vista.</p><p>Intervalo VIII: Há aves que não voam, portanto, voar não é uma propriedade</p><p>essencial das aves, por exemplo, os pinguins e as galinhas. Há outras coisas que</p><p>voam e não são aves, por exemplo, os insetos e os aviões. De onde se conclui</p><p>que essa propriedade não é suficiente para caracterizar a categoria AVE.</p><p>A categoria MÃE se organiza ao redor da ideia de progenitora e de ser aquela</p><p>que cuida da criança, a provedora. As mães não biológicas são provedoras.</p><p>Há metonímia porque animal de estimação é uma categoria superordenada com</p><p>relação à categoria de nível básico; não sabemos se é cachorro ou gato ou</p><p>qualquer outro animal o animal de estimação da Maria.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BORGES, J. B. Adjetivos. Predicados extensionais e predicados intensionais.</p><p>Campinas: Editora da Unicamp, 1991.</p><p>BARWISE, J.; COOPER, R. Generalized quantifiers and natural language.</p><p>Linguistics and Philosophy, v. 4, p. 159-219, 1981.</p><p>CHIERCHIA, G. Semântica. Campinas/Londrina: Editora da Unicamp/UEL,</p><p>2003.</p><p>DUCROT, O. Princípios de semântica linguística (dizer e não dizer). São Paulo:</p><p>Cultrix, 1979.</p><p>______. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.</p><p>FAUCONNIER, G. Mental spaces. Cambridge: MIT Press, 1985.</p><p>FREGE, G. Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo: Cultrix, 1978.</p><p>GUIMARÃES, E. Texto e argumentação: um estudo das conjunções do</p><p>português. Campinas: Pontes, 1991.</p><p>HAACK, S. Philosophy of logics. Cambridge: Cambridge University Press,</p><p>1978.</p><p>HEIM, I. The semantics of definite and indefinite NP’s. Ph.D. dissertation.</p><p>University of Massachusetts, 1982.</p><p>ILARI, R. Estruturalismo e semântica. In: MARI, H.; DOMINGUES, I.; PINTO,</p><p>J. (Orgs.). Estruturalismo: memória e repercussões. Rio de Janeiro: Diadorim,</p><p>1995.</p><p>______. Pela primeira vez, e suas complicações sintático-semânticas.</p><p>D.E.L.T.A., v. 14, n. especial, p. 133-153, 1998.</p><p>ILARI, R.; GERALDI, J. W. Semântica. São Paulo: Ática, 1985.</p><p>KEMPSON, R. Teoria semântica. São Paulo: Zahar, 1980.</p><p>KOCH, I. Argumentação e linguagem. Cortez: São Paulo, 1984.</p><p>LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: The Chicago</p><p>University Press, 1980.</p><p>______. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado de Letras, 2002.</p><p>LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things. What categories reveal about</p><p>the mind. Chicago: The Chicago University Press, 1987.</p><p>LIMA, P. L. C. O substantivo cabeça relacionado à razão/emoção no sistema</p><p>conceitual do inglês e do português. In: Encontro do CELSUL, II, 1997,</p><p>Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 1997, p. 723-733.</p><p>LYONS, J. Semântica I. Lisboa: Presença, 1977.</p><p>NEGRÃO, E. V. Tem uma história que eu quero contar que começa assim:</p><p>peculiaridades de uma construção existencial. Cadernos de Estudos Linguísticos,</p><p>n. 22, p. 81-90, 1992.</p><p>OGDEN, C. K.; RICHARDS, I. A. O significado de significado. Um estudo da</p><p>influência da linguagem sobre o pensamento e sobre a ciência do simbolismo.</p><p>Rio de Janeiro: Zahar, 1976.</p><p>PAPADIMITRIOU, C. H.; DOXIADIS, A.; PAPADATOS, A. Logicomix. São</p><p>Paulo: Martins Fontes, 2010.</p><p>PIRES DE OLIVEIRA, R. Uma história de delimitações teóricas: trinta anos de</p><p>Semântica no Brasil. D.E.L.T.A., v. 15. n. especial, p. 291-322, 1999.</p><p>PONTES, E. A metáfora. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.</p><p>PUTNAM, H. The meaning of meaning. In: Language, mind and knowledge.</p><p>Cambridge: Cambridge University Press, 1975.</p><p>RUSSELL, B. On denoting. 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Há</p><p>muitos estudos sobre fenômenos do português brasileiro que adotam a</p><p>perspectiva formal. Ver, entre outros, Ilari (1998), Negrão (1992), Borges (1991).</p><p>6. Indicações de respostas aparecem no final deste capítulo.</p><p>7. A visão mais aceita hoje em dia sobre quantificação foi proposta por Barwise</p><p>e Cooper (1981).</p><p>8. Veja um retrato de Luís XVI em</p><p>http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/RFLuis16.html</p><p>9. A descrição definida ganhou uma nova análise após o doutoramento de Heim</p><p>(1982). Nessa abordagem, a descrição definida carrega uma pressuposição de</p><p>familiaridade.</p><p>10. Uma biografia divertida do Bertrand Russell e que faz uma revisão da sua</p><p>importância para a lógica, a linguagem e a matemática é um quadrinho recém-</p><p>publicado: Logicomix. Ver Papadimitriou, Doxiadis e Papadatos (2010).</p><p>11. Ver o capítulo “Análise do Discurso”, neste volume.</p><p>12. Há as teorias de coerência, ver Haack (1978).</p><p>13. Para uma introdução à Semântica da Enunciação, ver Ducrot (1979, 1987). A</p><p>Semântica da Enunciação tem contribuído para a descrição de vários fenômenos</p><p>semânticos do português brasileiro. Ver, entre outras análises, Vogt (1977), Koch</p><p>(1984), Guimarães (1991).</p><p>14. Para uma descrição desse operador argumentativo, ver Guimarães (1991).</p><p>15. Esse marco da Semântica Cognitiva foi traduzido para o português como</p><p>Metáforas da vida cotidiana (Lakoff e Johnson,</p><p>2002). Para uma apresentação da</p><p>Semântica Cognitiva, ver Lakoff (1987). No Brasil, ver os trabalhos de Pontes</p><p>(1990) e Lima (1997), entre outros.</p><p>16. Ver o capítulo “Sintaxe”, no volume 1 desta obra. O fato de que a Semântica</p><p>Cognitiva está em franca oposição ao gerativismo impõe, como o leitor</p><p>perceberá adiante, a discussão sobre aquisição da linguagem. Sobre este último</p><p>tema, ver o capítulo “Aquisição da Linguagem”, neste volume.</p><p>17. Na Semântica Cognitiva, os conceitos e esquemas são sempre apresentados</p><p>em caixa-alta.</p><p>18. O trabalho de Sweetser (1991) sobre os modais em inglês é talvez uma das</p><p>mais brilhantes peças da Semântica Cognitiva. Nesse trabalho ela mostra, por</p><p>evidências etimológicas, e também pelos diferentes usos dos modais, que sua</p><p>compreensão se sustenta num esquema da FORÇA.</p><p>19. Ludwig Wittgenstein foi um dos grandes filósofos da linguagem do século</p><p>XX. Há muita controvérsia em torno desse autor, em parte porque ele</p><p>aparentemente alterou radicalmente sua maneira de entender a linguagem. No</p><p>Tractatus Logico-Philosophicus (1921), a linguagem refletia a ordem do mundo;</p><p>nas Investigações Filosóficas (1953), a linguagem é ação no mundo.</p><p>20. Sobre a categorização, ver Taylor (1989).</p><p>21. Para uma descrição detalhada, ver Fauconnier (1985).</p><p>2</p><p>PRAGMÁTICA</p><p>Joana Plaza Pinto</p><p>1. LINHAS GERAIS</p><p>De que tratam os estudos linguísticos que se classificam como “pragmáticos”, ou</p><p>pertencentes à área da Pragmática? Essa é uma pergunta que pode gerar</p><p>respostas tão variadas quanto o número de pessoas que se dispuserem a</p><p>respondê-la. Um número muito grande de trabalhos, com temas e objetivos os</p><p>mais diversos, circula nos periódicos e outras publicações declaradamente</p><p>inseridos no domínio da Pragmática. Pode-se, no entanto, a partir de um grupo</p><p>mais ou menos coeso desses estudos, procurar delimitar a Pragmática, admitindo</p><p>a diversidade. Vamos assim tentar compreender um pouco da história da</p><p>constituição dessa área tão heterogênea, procurando ao mesmo tempo evidenciar</p><p>o que, em meio a diferentes perspectivas, torna possível reconhecer certos tipos</p><p>de estudos linguísticos como pragmáticos.</p><p>Mesmo que se admita a variedade presente na Pragmática, também se deve</p><p>admitir que as autoras e autores desse domínio compartilham certos</p><p>pressupostos. Haberland e Mey (1977), editores do Journal of Pragmatics, na</p><p>primeira edição desse periódico, afirmam que a Pragmática analisa, de um lado,</p><p>o uso concreto da linguagem, com vistas em seus usuários e usuárias, na prática</p><p>linguística; e, de outro lado, estuda as condições que governam essa prática.</p><p>Assim, em primeiro lugar, a Pragmática pode ser apontada como o estudo do uso</p><p>linguístico. As pessoas que a estudam esperam explicar antes a linguagem do</p><p>que a língua. Essa afirmação é decorrente da dicotomia clássica saussureana</p><p>língua/fala: Saussure (1991) defende que a língua, que seria o objeto de estudo</p><p>da Linguística por excelência, é a linguagem menos a fala,¹ enquanto a</p><p>Pragmática se inicia justamente defendendo a não centralidade da língua em</p><p>relação à fala. Em outras palavras, a Pragmática aposta nos estudos da</p><p>linguagem, levando em conta também a fala, e nunca nos estudos da língua</p><p>isolada de sua produção social. Dessa forma, os estudos pragmáticos pretendem</p><p>definir o que é linguagem e analisá-la trazendo para a definição os conceitos de</p><p>sociedade e de comunicação descartados pela Linguística saussureana na</p><p>subtração da fala, ou seja, na subtração das pessoas que falam.</p><p>Um segundo ponto acordado entre os estudiosos e estudiosas dessa área é que os</p><p>fenômenos linguísticos não são puramente convencionais, mas sim compostos</p><p>também por elementos criativos, inovadores, que se alteram e interagem durante</p><p>o processo de uso da linguagem. Numa pequena fita cassete, com uma gravação</p><p>curta de alguém conversando com um linguista, vamos escutar trechos do tipo:</p><p>(1)</p><p>Entrevistadora: Então ela largou o namorado?</p><p>Entrevistada: Eu vi ela largar... largou sim... largou a ele...</p><p>Entrevistadora: A ele?</p><p>Entrevistada: É, a ele, sim; a ele... largou a ele aquela vida infeliz que eles</p><p>tinham juntos... largou a ele.</p><p>Repare que a entrevistadora tem um impasse de interpretação da fala da</p><p>entrevistada porque esta última cria uma estrutura “alterada”, um objeto indireto</p><p>inesperado, no entanto de extrema importância para o entendimento, não só do</p><p>que a entrevistada queria dizer, mas principalmente das possibilidades</p><p>expressivas de inovações linguísticas. O que vemos aqui não é poesia, ou</p><p>variação linguística. Ainda que poesia e variação expressem esse mesmo tipo de</p><p>situações criativas, esse diálogo (1) é a prova de que não é produtivo descrever a</p><p>linguagem como um sistema delimitável, mas sim que esta deve ser trabalhada a</p><p>partir da possibilidade de se juntar grupos de indícios sobre seu funcionamento,</p><p>tendo como limite possível um recorte convencional, não justificado por</p><p>qualquer fator inerente à linguagem. Quando a análise linguística é feita em</p><p>outros moldes, trechos como de (1) são descartados como erros de uso do</p><p>sistema, ou, na melhor das hipóteses, exceção — “licença poética”.</p><p>A variedade de materiais que são analisados nas publicações aceitas pelo Journal</p><p>of Pragmatics nos ajuda a perceber que linguistas estão se dedicando às situações</p><p>de “exceção”, fundamentais na compreensão da linguagem em uso: diálogos</p><p>colhidos entre falantes de uma comunidade, literatura, poesia, humor, e podemos</p><p>ler mesmo trabalhos analisando material linguístico visual, como cartuns e</p><p>propagandas.</p><p>Explicar a linguagem em uso e não descartar nenhum elemento não</p><p>convencional: esses dois pontos comuns aos estudos pragmáticos formam uma</p><p>linha derivada da história da preocupação com o uso linguístico. No final do</p><p>século XIX, a Filosofia iniciou um redirecionamento na forma de responder a</p><p>suas perguntas. Desde Kant,² os estudos filosóficos passaram a ser entendidos</p><p>como um conjunto de critérios para avaliar a maneira pela qual a mente é capaz</p><p>de construir representações. Mais tarde, então, no final do século XIX, os</p><p>estudos filosóficos cunharam sua variante da filosofia kantiana, defendendo</p><p>principalmente que representação é antes linguística do que mental, e que se</p><p>deve refletir antes em filosofia da linguagem que em crítica transcendental.³</p><p>Assim, objetivos filosóficos de discutir e descrever nossa representação do</p><p>mundo respaldaram um movimento em direção às usuárias e usuários da</p><p>linguagem, acarretando uma tendência análoga no âmbito da Linguística. A</p><p>Pragmática é fruto desse movimento em direção aos problemas relativos ao uso</p><p>da linguagem, por isso, ao estudarmos a constituição dessa área, devemos</p><p>acompanhar também um pouco da história dos grupos filosóficos que a</p><p>influenciaram. Como bem afirma Françoise Armengaud (2006, p. 9), a</p><p>Pragmática é “uma das mais vivas no cruzamento das pesquisas em filosofia e</p><p>em linguística, atualmente indissociáveis”.</p><p>2. OBJETOS E MÉTODOS DA PRAGMÁTICA</p><p>Como a Pragmática é uma área genericamente definida por pesquisar sobre o uso</p><p>linguístico, os temas escolhidos para análise são amplos e variados. Em</p><p>publicações da Pragmática podemos ler estudos teóricos sobre a relação entre</p><p>signos e falantes, como é o caso do estudo de Mey (1985), que procura debater o</p><p>lugar da linguagem na sociedade, de uma perspectiva marxista, discutindo o</p><p>conceito de manipulação linguística. Também encontramos levantamento de</p><p>aspectos de diálogos entre falantes de uma mesma comunidade ou comunidades</p><p>diferentes (Verschueren e Bertuccelli-Papi, 1987). Observe o diálogo a seguir:</p><p>(2)</p><p>A: Você viu meu rato por aí?</p><p>B [apontando um rádio ao seu lado]: Está aqui o rádio.</p><p>A: Não, é o rato mesmo. Meu rato de borracha.</p><p>B compreende a palavra rato, mas considera 1º) a improbabilidade de alguém</p><p>estar procurando seu próprio rato (!); 2º) a proximidade concreta [ao seu lado] de</p><p>um objeto e fonológica da palavra que se refere a esse objeto. Assim, uma</p><p>análise pragmática desse diálogo deve considerar tantos aspectos da estrutura da</p><p>própria língua quanto aspectos relacionados ao usuário ou à usuária</p><p>(a situação</p><p>que ele/ela vivencia).</p><p>Um outro tipo de tema comumente levantado pelos estudos pragmáticos são os</p><p>funcionamentos e efeitos de atos de fala. Atos de fala é um conceito proposto</p><p>pelo filósofo inglês J. L. Austin para debater a realidade de ação da fala, ou seja,</p><p>a relação entre o que se diz e o que se faz — ou, mais acuradamente, o fato de</p><p>que se diz fazendo, ou se faz dizendo. Discutiremos melhor esse conceito na</p><p>seção 2.2. Por enquanto, vale ressaltar que alguns estudos, cada qual com seu</p><p>critério, procuram, por exemplo, classificar os atos de fala de acordo com seus</p><p>efeitos. É o caso de Benveniste (1991), que pretende classificar os atos de fala.</p><p>De um lado teríamos aqueles atos que seriam compostos por um verbo</p><p>declarativo jussivo na primeira pessoa do presente mais uma afirmação, como:</p><p>(3) Eu ordeno que você saia.</p><p>Ainda que ele não explique detalhadamente o que seriam esses tipos de verbos,</p><p>na lista dos “declarativos-jussivos”, Benveniste inclui ordenar, comandar,</p><p>decretar, o que nos leva a perceber esses verbos como estabelecendo uma relação</p><p>entre “declaração de uma ação” e “jus à posição de autoridade para tal ação”.</p><p>Assim, ordenar não só explicita, “declara” a ação feita por quem fala, como este</p><p>deve estar apto a fazê-lo. No caso do exemplo (3), “ordenar” é o verbo</p><p>declarativo-jussivo, e “você saia”, a afirmação. De outro lado, Benveniste</p><p>propõe outro conjunto de atos de fala, atos estes que seriam compostos por um</p><p>verbo com complemento direto mais um termo predicativo, tal qual:</p><p>(4) Proclamo-o eleito vereador.</p><p>Essa classificação proposta por Benveniste não é a única e mesmo pode ser</p><p>firmemente contestada (cf. Ottoni, 1998).</p><p>O mais importante é se perceber que, ao selecionar, entre tantos fenômenos de</p><p>linguagem em uso, quais devem ou não ser estudados, e a quais perguntas devem</p><p>ser submetidos tais fenômenos, os autores e autoras da Pragmática acabam por</p><p>fazer aparecer suas diferenças. A influência de grupos filosóficos nessas seleções</p><p>de objetos e métodos é patente e será usada aqui para delimitar os diferentes</p><p>grupos de estudos pragmáticos.</p><p>São três os grupos principais de estudos. O pragmatismo norte-americano,</p><p>influenciado pelos estudos semiológicos de William James; os estudos de atos de</p><p>fala, sob o crédito dos trabalhos do inglês J. L. Austin; e os estudos pragmáticos</p><p>interdisciplinares, com preocupação firmada nas relações sociais, de classe, de</p><p>gênero, raciais e entre culturas, presentes na atividade linguística. Este último</p><p>grupo é especialmente diverso⁴ e, sem dúvida, é o que mais tem se desenvolvido</p><p>nos últimos anos.</p><p>Vale a pena observar que, entre os autores e autoras que são referência para a</p><p>Pragmática, também estão os franceses Oswald Ducrot e Émile Benveniste, e o</p><p>britânico H. P. Grice. Até o final da década de 1980, muitos trabalhos cuja</p><p>orientação teórica está fundamentada nesses autores incluíam-se na área da</p><p>Pragmática. Entretanto, a evolução de seus trabalhos conferiram-lhes campos de</p><p>estudos e métodos hoje separados dos pragmáticos. A Semântica Argumentativa</p><p>e a Análise da Conversação são duas áreas de estudo outrora participantes do</p><p>movimento que integrou componentes pragmáticos aos estudos linguísticos.</p><p>Neste momento histórico da Linguística, são mais enriquecedoras quando</p><p>estudadas como áreas diferentes. Mas não estranhem a leitora e o leitor se</p><p>encontrarem, ainda hoje, os nomes desses autores associados de alguma forma à</p><p>Pragmática.⁵</p><p>2.1. Pragmatismo norte-americano</p><p>Foi o filósofo norte-americano Charles S. Peirce o primeiro autor a utilizar a</p><p>palavra pragmatics, no seu artigo How to make our ideas clear, de 1878. Peirce</p><p>exerceu influência sobre vários filósofos e assim foram divulgadas suas ideias</p><p>sobre a tríade pragmática. Essa tríade representa a relação entre signo, objeto e</p><p>interpretante. O que Peirce procurou destacar ao postular essa tríade foi a</p><p>necessidade de se teorizar a linguagem levando-se em conta o que sempre foi</p><p>lembrado na Linguística, ou seja, o sinal, mas também aquilo a que este sinal</p><p>remete e, principalmente, a quem ele significa. Num dos trechos de sua obra,</p><p>Peirce explica:</p><p>[Os que se dedicavam ao estudo] da referência geral dos símbolos aos seus</p><p>objetos ver-se-iam obrigados a realizar também pesquisas das referências em</p><p>relação aos seus interpretantes, assim como de outras características dos</p><p>símbolos e não só dos símbolos, mas de todas as espécies de sinais. Por isso,</p><p>atualmente, o homem que pesquisa a referência dos símbolos em relação aos</p><p>seus objetos será forçado a fazer estudos originais em todos os ramos da teoria</p><p>geral dos sinais.</p><p>É bom ressaltar que a ideia da tríade pragmática e toda a teoria que a acompanha</p><p>são complexas. Peirce fez um trabalho prolongado, procurando explicar</p><p>exaustivamente os componentes de sua teoria do signo, definindo e subdividindo</p><p>cada um dos itens para explorar ao máximo sua capacidade explicativa e seu</p><p>alcance teórico — só os sinais ele subdividiu em dez classes principais!</p><p>Devemos aqui nos deter na repercussão de seu trabalho, na sua proposta</p><p>principal de expor todos os aspectos da relação símbolo-objeto-interpretante. Os</p><p>dois principais seguidores de Peirce, e que passaram adiante interpretações da</p><p>obra deste autor, foram William James e Charles W. Morris.</p><p>Ao travar contato com o círculo de filósofos de Viena, Morris sabe da proposta</p><p>de Rudolf Carnap de dividir as investigações sobre linguagem em três campos: a</p><p>Sintaxe, que trataria da relação lógica entre as expressões; a Semântica, que</p><p>trataria da relação entre expressões e seus significados; e a Pragmática, que</p><p>estaria responsável por tratar da relação entre expressões e seus locutores e</p><p>locutoras. Repare que essa partição ternária lembra muito os três pontos cruciais</p><p>da significação para Peirce: o signo propriamente, em Carnap destacado pela</p><p>ideia de que uma área, a Sintaxe, poderia tratá-lo; o significado, ou a que remete</p><p>o signo, tratado na Semântica; e a pessoa que interpreta o signo, tratado, de</p><p>acordo com Carnap, pela Pragmática. Essa proximidade entre os dois raciocínios</p><p>entusiasma Morris. Em 1938, Morris atesta, com Foundations of the theory of</p><p>signs,⁷ a doutrina pragmática de Peirce, e defende a interdependência,</p><p>combatendo a hierarquização dos três campos. Assim, Morris mostra-se</p><p>fortemente influenciado pelo grupo de empiricistas de Viena, mas, ao mesmo</p><p>tempo, busca minimizar a força da separação entre os três campos de estudo, o</p><p>que, consequentemente, afastaria, na prática da pesquisa linguística, os três</p><p>elementos da tríade pragmática. Entretanto, ainda que esse gesto de Morris seja</p><p>bastante apropriado ao pensamento de Peirce, é forte a ascendência do</p><p>empirismo lógico em seu pensamento, fazendo com que sua obra se direcione</p><p>para outros caminhos, como, por exemplo, para fundamentar a doutrina da</p><p>ciência unitária defendida pelos empiricistas.</p><p>Seguindo outro caminho, o filósofo William James aproveitou de Peirce a ideia</p><p>de refletir no âmbito da filosofia sobre os sinais e seus significados. Ao escrever</p><p>o ensaio Philosophical conceptions and practical results, em 1898, vinte anos</p><p>depois de Peirce ter utilizado a palavra pragmatics, James cunha pragmatism e</p><p>inaugura o que ficou conhecido como Pragmatismo norte-americano. Mas as</p><p>ideias de James só vieram a causar impacto no século XX, sob a égide de novos</p><p>filósofos empenhados em definir a filosofia, e também a linguagem e o</p><p>conhecimento, como uma prática social. A definição mais popular de James é a</p><p>de verdade como “o que é melhor para nós acreditarmos”. Essa fórmula é</p><p>bastante polêmica. Desde Platão, que discutiu com certa constância a questão “A</p><p>que se pode chamar corretamente verdadeiro ou falso?”, a maior parte dos textos</p><p>filosóficos, especialmente influenciados pela lógica clássica, até então tinha</p><p>definido verdade como um conceito que está fora das pessoas, pois o que é</p><p>verdadeiro estaria sempre em conformidade com o mundo. Desse modo, a</p><p>verdade seria suscetível de ser encontrada e confirmada. Esse conceito de</p><p>verdade sempre foi extremamente importante</p><p>para a definição de significado,</p><p>pois a conceitualização deste último girava em torno da correspondência entre o</p><p>mundo e a palavra. William James, por meio de sua reflexão filosófica baseada</p><p>em componentes pragmáticos, valoriza a pessoa que fala como detentora do</p><p>próprio significado, já que a verdade, palavra-chave na compreensão da relação</p><p>entre mundo e linguagem, nada mais é que aquilo que todos e todas nós,</p><p>inseridos/as numa comunidade, queremos que ela seja. Repare como essa</p><p>posição de James desloca com grande força o tratamento do significado</p><p>linguístico, porque impele o debate acerca da verdade para o terreno do</p><p>imprevisível: as pessoas sociais. No momento em que ele relativiza a noção de</p><p>verdade, atinge em cheio todo o discurso sobre a possibilidade de conhecimento</p><p>de fato, pois duvida da própria ideia de confirmação no mundo deste</p><p>conhecimento.</p><p>É o norte-americano Willard V. Quine quem inicia um grande empenho em</p><p>prosseguir as ideias pragmatistas de James e Peirce. Quine, como Morris,</p><p>também estuda o empirismo lógico do Círculo de Viena, mas abandona de vez o</p><p>vocabulário logicista e reforça muitas das ideias de Peirce, reformulando-as no</p><p>que ele chamou de pragmatismo radical. Sua atitude contra a tradição lógica é</p><p>ousada. Com Quine, podemos aprender que muitos argumentos utilizados pela</p><p>Semântica lógica para sustentar a exclusão do usuário e da usuária na análise do</p><p>significado são questionáveis em sua própria condição de argumento válido.</p><p>Para entendermos o radicalismo da proposta pragmática de Quine, devemos nos</p><p>deter um pouco na questão da determinação da referência, e procurar perceber</p><p>como Quine levanta o problema de que determinar o objeto referido por uma</p><p>expressão é uma questão muito mais séria do que simplesmente encontrá-lo ou</p><p>não no mundo. Muitas dificuldades podem ser levantadas para se apontar um</p><p>objeto referido. Quine (1980), defendendo que a indeterminação da referência</p><p>permanece não importa com qual tipo de expressão referencial estejamos</p><p>trabalhando, apresenta a situação do uso de expressões demonstrativas. A</p><p>sentença</p><p>(5) Esta mesa está quebrada.</p><p>proferida numa situação similar à ostensão, não deixa de produzir perguntas: o</p><p>que está sendo referido para o predicado “está quebrada”: a quina da mesa? o pé</p><p>da mesa? as dobradiças? Se concordamos com Quine, essas perguntas não são</p><p>realmente problemas referenciais. É perfeitamente aceitável, do ponto de vista de</p><p>qualquer falante, que permaneça a indeterminação da parte da mesa que está</p><p>quebrada. A apreensão do objeto referido fica assim fragmentada, e não mais</p><p>transparente.</p><p>Com exemplos como este, Quine está defendendo a tese de que a referência é</p><p>impenetrável, no sentido de que não se pode determinar “com toda certeza” o</p><p>alcance da expressão referencial no mundo. É a famosa tese da inescrutabilidade</p><p>da referência, a base de sua visão holista. A inescrutabilidade da referência é a</p><p>prova cabal de que as discrepâncias entre significações só podem ser teorizadas a</p><p>partir da sua condição pragmática. Quine (1968) nos explica isso mostrando que</p><p>um linguista em pesquisa de campo, que ouve um nativo dizer “gavagai”</p><p>apontando para um coelho que passa, só pode interpretar pragmaticamente esse</p><p>ato. Nada garante que “gavagai” possa ser traduzido como “coelho” ou “parte de</p><p>coelho” ou “coelho andando”. Sua tradução só pode ser feita a partir da prática</p><p>linguística que o produziu.</p><p>Outros dois estudiosos do Pragmatismo norte-americano que se destacam são</p><p>Donald Davidson e Richard Rorty. Ambos admitem créditos por suas ideias aos</p><p>trabalhos dos filósofos James Dewey e L. Wittgenstein. Estes últimos autores</p><p>acrescentaram uma perspectiva historicista aos estudos pragmáticos norte-</p><p>americanos, defendendo que as investigações dos fundamentos da linguagem</p><p>podem ser consideradas uma prática social contemporânea. A Teoria da</p><p>coerência elaborada por Davidson (1986), e respaldada pelas críticas de Rorty</p><p>(1994) à tradição analítica⁸, delineia um arcabouço teórico para tratar a coerência</p><p>interna, e não a verdade, como o elemento que sustenta qualquer sistema</p><p>interpretativo. Sua defesa polemiza, portanto, em torno daquela noção clássica</p><p>de verdade que citamos anteriormente, e contrapõe-se à Teoria da</p><p>Correspondência, presente na definição clássica de significado. Essa última</p><p>sustenta que sentenças e coisas no mundo podem ser relacionadas a fim de</p><p>calcular valores de verdade dessa relação. Para Davidson, se há coerência, pouco</p><p>importa o valor de verdade dessa correspondência. Dessa forma, o que Davidson</p><p>quer mostrar é que as atitudes proposicionais de uma pessoa, sua fala, crenças e</p><p>intenções são verdadeiras porque existe um princípio legítimo que diz que</p><p>qualquer uma das atitudes proposicionais do/a falante é verdadeira se ela é</p><p>coerente com o conjunto de atitudes proposicionais desse/a mesmo/a falante.</p><p>Tomemos um exemplo:</p><p>(6)</p><p>A: Estou pensando em assistir ao carnaval em Olinda. Você, que é de lá, sabe se</p><p>tem muito barulho?</p><p>B: Não, tem polícia, é tudo bem organizado.</p><p>A: A polícia não deixa ter muito samba?</p><p>B: Não, a polícia não deixa as pessoas bagunçarem as ruas.</p><p>A: Não, não foi isso que eu quis dizer. Eu não estou falando de barulho como</p><p>bagunça, estou falando de barulho de batida de samba.</p><p>Esse trecho ilustra o que, entre linguistas, é conhecido como “mal-entendido”,</p><p>um momento no diálogo em que não há coincidência de interpretação entre</p><p>participantes. Muitos estudos têm procurado estabelecer padrões para a</p><p>“resolução” desses chamados mal-entendidos, justificando, por exemplo em (6),</p><p>que a expressão “barulho” é empregada com diferenças culturais suficientemente</p><p>marcantes para causar diferença também na interpretação preferencial de tal</p><p>expressão.</p><p>Um exemplo deste tipo de ideia de que mal-entendidos são erros e devem ser</p><p>resolvidos é um texto de M. Dascal (1986) chamado A relevância do mal-</p><p>entendido . Não se iludam pelo título. O texto de Dascal procura responder com</p><p>especial ênfase à questão sobre a relação entre entender e mal-entender. De</p><p>acordo com esse autor, o mal-entendido relaciona-se com o entender na medida</p><p>em que ambos estão ligados a camadas de um esquema conversacional que é</p><p>sempre utilizado pelos interlocutores e interlocutoras na atividade de linguagem.</p><p>Dascal pretende mostrar que o mal-entendido deve ser tratado como um</p><p>fenômeno importante no trabalho com a linguagem. Mas ele defende que, de</p><p>fato, esta relação entre entendimento/mal-entendido é importante na medida em</p><p>que revela o funcionamento do entendimento. Dessa maneira, como toda</p><p>dicotomia, esse par não passa de uma hierarquia camuflada, em que o mal-</p><p>entendido é um “mau funcionamento” do esquema de significação harmônico.</p><p>Como em toda hierarquia, um elemento se sobrepõe ao outro, e, sem dúvida,</p><p>neste caso, não é o mal-entendido o membro positivamente valorado do par. Seu</p><p>enfoque não é para integrar propriamente o mal-entendido ao esquema</p><p>interpretativo, mas sim criar um mecanismo que o evidencie e ao mesmo tempo</p><p>permita corrigi-lo. Podemos compreender que Dascal considere “um tanto</p><p>paradoxal” defender a importância do mal-entendido em sua análise: a relação</p><p>que o autor defende entre entender e mal-entender não pode efetivamente</p><p>integrar o segundo elemento ao esquema interpretativo; ao contrário, sua</p><p>importância “paradoxal” está em ser levado em conta para ser eliminado.</p><p>Esse texto de Dascal nos serve de exemplo da forma como têm sido tratados os</p><p>fatos linguísticos que resultam no mal-entendido: intempéries a serem corrigidas,</p><p>evitadas, impedidas. Quando um autor como Dascal defende que se deve corrigir</p><p>um mal-entendido, é porque ele pressupõe que a noção de entendimento deve ser</p><p>mantida intocada.</p><p>Mas uma análise linguística baseada nos debates de Davidson e Rorty acerca da</p><p>coerência de sistemas interpretativos ilumina outros ângulos da questão do mal-</p><p>entendido. Por que pensar em “mal-entendido” se existe apenas coerência</p><p>interna nos sistemas interpretativos? Duas pessoas de culturas diferentes podem</p><p>encontrar dificuldades em manter um diálogo produtivo,</p><p>sim. Mas também</p><p>pessoas de mesma cultura lidam com situações como a anterior, pois cada uma</p><p>encaminha suas interpretações de maneira singular. Teorizar dessa forma sobre</p><p>linguagem não tem nada a ver com pensar que cada qual diz o que quer e</p><p>entende quem puder. A ideia de coerência interna em sistemas linguísticos nos</p><p>diz, muito mais apropriadamente, que é inadequada a argumentação em torno de</p><p>“mal-entendido”, pois o processo que acarreta esse fenômeno desconcertante dos</p><p>diálogos cotidianos é parte coerente de uma interpretação, e não deve ser</p><p>encarado como “erro” ou “inadequação” de significado.</p><p>Dessa forma, podemos afirmar que a conversação humana é, para esse grupo de</p><p>estudos da Pragmática mais do que para qualquer outra, uma prática linguística.</p><p>Prática entendida como sempre social, e no sentido que colocou James, como</p><p>“aquilo que é melhor para nós”, no caso, falarmos, praticarmos como linguagem.</p><p>O Pragmatismo norte-americano oferece, então, bases filosóficas para uma</p><p>análise linguística que relacione a todo momento signo e falante, antes de</p><p>qualquer coisa, compondo ambos o que se chama de fenômeno linguístico.</p><p>2.2. Atos de fala</p><p>G. E. Moore assistiu a cursos proferidos por Wittgenstein e definiu o pensamento</p><p>desse autor como um desvio no desenvolvimento da tradição filosófica (Silva,</p><p>1980). O que ele chamou de “desvio” seria um encaminhamento das</p><p>preocupações dos estudiosos para a linguagem corrente. É Moore quem faz</p><p>repercutir entre os filósofos da Universidade de Oxford esse redirecionamento.</p><p>Autores como Gilbert Ryle, John Langshaw Austin e Peter Frederick Strawson</p><p>seguem as indicações de Moore e de Wittgenstein para examinar a linguagem</p><p>corrente como fonte de solução para os problemas filosóficos. É o movimento</p><p>que ficou conhecido como Filosofia Analítica ou Filosofia da Linguagem</p><p>Ordinária, e que tem como resultado principal para os estudos linguísticos os</p><p>Estudos de Atos de Fala.</p><p>Depois do impacto do ensaio de Ryle, Systematic misleading expressions, de</p><p>1932, foi aberto o espaço para se debater como as construções gramaticais</p><p>podem levar a confusões lógicas ineficientes entre filósofos e filósofas. Na</p><p>esteira dessa abertura, Austin foi quem melhor expôs o problema, discutindo a</p><p>materialidade e historicidade das palavras. Seus estudos procuraram refletir</p><p>sobre a possibilidade de uma teoria que explicasse questões, exclamações e</p><p>sentenças que expressam comandos, desejos e concessões. Os Estudos de Atos</p><p>de Fala, que tem por base conferências de Austin publicadas postumamente em</p><p>1962 sob o título How to do things with words (Austin, 1990), concebem a</p><p>linguagem como uma atividade construída pelos/as interlocutores/as, ou seja, é</p><p>impossível discutir linguagem sem considerar o ato de linguagem, o ato de estar</p><p>falando em si — a linguagem não é assim descrição do mundo, mas ação.</p><p>Uma das distinções mais importantes feitas por Austin nesta sua defesa dos atos</p><p>de fala é entre os enunciados performativos, como aqueles que realizam ações</p><p>porque são ditos, e os enunciados constativos, que realizam uma afirmação,</p><p>falam de algo. O exemplo abaixo:</p><p>(7) Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.</p><p>é um enunciado performativo pois, como os anteriormente citados (3) e (4),</p><p>“pratica” uma ação enquanto é enunciado. Somente proferindo “Eu te batizo” é</p><p>que o padre pode batizar alguém, e isso é o que caracteriza a performatividade.</p><p>Por outro lado, Austin propõe a existência de enunciados constativos, como os</p><p>representados pelo exemplo abaixo:</p><p>(8) A mosca caiu na sopa.</p><p>Neste caso (8), não haveria uma ação praticada, ao contrário, a ação [a mosca</p><p>cair na sopa] já ocorreu e provavelmente por isso há o enunciado. A análise dos</p><p>contrastes entre esses tipos de enunciados, o performativo e o constativo, levou</p><p>Austin a prosseguir no raciocínio e aventar a separação de níveis de ação</p><p>linguística através de enunciados. Ele propôs chamar atos locucionários aqueles</p><p>que dizem alguma coisa; atos ilocucionários, aqueles que refletem a posição do/a</p><p>locutor/a em relação ao que ele/a diz; e atos perlocucionários, aqueles que</p><p>produzem certos efeitos e consequências sobre os/as alocutários/as, sobre o/a</p><p>próprio/a locutor/a ou sobre outras pessoas. Esses três níveis atuam</p><p>simultaneamente no enunciado. Para entender melhor, vejamos uma rápida</p><p>análise:</p><p>(9) Eu vou estar em casa hoje.</p><p>Em (9), o ato locucionário seria o conjunto de sons que se organizam para</p><p>efetivar um significado referencial e predicativo, quer dizer, para efetivar uma</p><p>proposição que diz alguma coisa sobre “eu”. O ato ilocucionário é a força que o</p><p>enunciado produz, que pode ser de pergunta, de afirmação, de promessa etc., o</p><p>que, neste caso de (9), fica diluído entre uma promessa e uma afirmação,</p><p>dependendo do contexto em que é enunciado. O ato perlocucionário é o efeito</p><p>produzido na pessoa que ouve o enunciado: efeito de agrado, pois gostaria de</p><p>estar mais tempo em casa com quem enunciou (9); ou efeito de ameaça, pois vai</p><p>se sentir vigiada por aquela presença na casa, e assim por diante.</p><p>Uma constatação importante é que os atos de fala são muitas vezes de efeito</p><p>ambíguo, podendo expressar tanto uma promessa quanto uma ameaça, e assim</p><p>por diante. Para solucionar o dilema, falantes costumam se basear em indícios</p><p>explicitados no momento da fala, ou amplamente percebidos na relação entre as</p><p>pessoas que falam. Dessa forma, podemos dizer que os atos de um enunciado</p><p>ocorrem simultaneamente, são relativos ao contexto de fala e às pessoas que</p><p>falam, e são interpretáveis com uma amplitude muitas vezes difícil de ser</p><p>descrita nos limites de uma análise linguística.</p><p>Nos cursos que deram origem à obra How to do things with words, Austin</p><p>dedica-se principalmente aos verbos performativos, ligando as realidades tanto</p><p>verbal quanto não verbal. O grande furor causado inicialmente pela ideia de</p><p>performatividade tinha a ver com a impossibilidade, ditada pelo próprio Austin,</p><p>de manter a distinção verdadeiro/falso para esses tipos de enunciados. Em 1958,</p><p>num encontro de Royaumont, França, um filósofo questionou longamente</p><p>Austin, argumentando que um enunciado performativo poderia ser sim</p><p>verdadeiro ou falso no que se relaciona àquele que fala, ou no sentido do próprio</p><p>ato em si. Austin respondeu de forma insistente:</p><p>Pode-se dizer de um ato que ele é útil, que é conveniente, que ele é mesmo</p><p>sensato, não se pode dizer que ele seja true or false. Qualquer que seja ele, tudo</p><p>que posso dizer é que os enunciados desse tipo são muito mais numerosos e</p><p>variados do que se acreditava¹ .</p><p>Nesse famoso debate, para sustentar a impossibilidade de atribuição de valor de</p><p>verdade para os enunciados performativos, Austin trata de mostrar como muitos</p><p>enunciados com aparência de constativos são de fato performativos, como é o</p><p>caso de “Eu te digo para fechar a porta”. Esse seu argumento desvela uma outra</p><p>ousadia de Austin: ele próprio jamais sentiu inteira satisfação com a distinção</p><p>constativo-performativo, e questionou-a, chegando mesmo a atestar a</p><p>impossibilidade de sustentá-la. “Austin finalmente estabelece que o tal de</p><p>constativo nada mais era de fato senão um performativo mascarado”</p><p>(Rajagopalan, 1990, p. 237).</p><p>Mas os estudos austinianos firmaram-se na Linguística, de fato, pela via da</p><p>interpretação de John Searle, em Speech acts, de 1969 (Searle, 1981). O trabalho</p><p>de Searle empenhou-se no sentido de produzir um acabamento nas inúmeras</p><p>reviravoltas¹¹ que Austin efetiva em sua reflexão sobre a linguagem. Um</p><p>exemplo disso é a taxonomia para os atos de fala proposta por Searle, que</p><p>inclusive procurou deixar clara a distinção entre ato ilocucionário e verbo</p><p>ilocucionário. Searle defendeu que os atos de fala possuem um componente</p><p>básico: a proposição, o que orientaria, por meio de doze “dimensões de</p><p>variação”, a sua classificação. Austin, por seu lado, também havia arriscado</p><p>algumas tentativas taxonômicas, mas percebeu cedo uma certa falta de nitidez</p><p>para essa classificação¹².</p><p>Outros autores, como Jacques Derrida (1991), procuraram ler a obra de Austin</p><p>com consequências</p><p>bem mais radicais e problematizadoras que a organização</p><p>proposta por Searle. Para autores como Derrida, atos de fala não são uma</p><p>simples bipartição entre enunciados constativos e enunciados performativos, ou</p><p>um levantamento de níveis de ação linguística. Austin, para Derrida, expõe a</p><p>dimensão ética da linguagem, porque leva às últimas consequências a identidade</p><p>entre dizer e fazer e insiste na presença do ato na linguagem, e não aceita</p><p>separação entre descrição e ação. Não existe assim diferença entre “dizer” (9) e a</p><p>ação praticada em (9). Quando uma pessoa emite (9), ela pratica uma ação, e não</p><p>descreve algo — a saber, “o fato de que vai ficar em casa hoje”. O ato</p><p>locucionário, aquele que diz algo, é, portanto, uma abstração. Os diferentes</p><p>níveis não existem senão na proposta de separação. Derrida assim interpreta o</p><p>conceito de performatividade:</p><p>O performativo não tem o seu referente (mas aqui esta palavra não convém sem</p><p>dúvida, e constitui o interesse da descoberta) fora de si ou, em todo o caso, antes</p><p>de si e face a si. Produz ou transforma uma situação; opera¹³.</p><p>No Brasil, Rajagopalan (1990, 1992, 1996, 1999) tem seguido esta linha de</p><p>inquirição de Derrida desde o início da década de 1990 e oferecido resistência à</p><p>“leitura oficial” de Austin. A coletânea recém-lançada das traduções de diversos</p><p>de seus artigos (Rajagopalan, 2010) será sem dúvida mais um estímulo para</p><p>leituras austinianas críticas e pujantes em língua portuguesa.</p><p>Assim, os atos de fala são hoje fonte inesgotável de trabalhos na área da</p><p>Pragmática, mas também na Linguística em geral. Vale lembrar que se</p><p>vasculharmos outras áreas de estudos linguísticos também encontraremos</p><p>trabalhos que levam em conta os atos de fala em suas análises, especialmente</p><p>nos estudos do Direito e na Antropologia. Não se pode dizer propriamente que</p><p>todos esses trabalhos são seguidores das reflexões austinianas; mas o que de fato</p><p>ocorreu foi que a popularização dos trabalhos de Austin, por intermédio de</p><p>leitoras e leitores de Derrida e da divulgação feita por Searle, abriu espaço para a</p><p>preocupação com uma realidade linguística bastante incômoda: o fato de que</p><p>aquilo que dizemos tem efeito, altera o sentido e funcionamento linguísticos.</p><p>No início da década de 1970, até as famosas árvores gerativistas incorporaram os</p><p>atos de fala em seus galhos. Com o tempo, esse fenômeno se abrandou, mas a</p><p>leitora e o leitor vão encontrar em muitos trabalhos menções aos Estudos dos</p><p>Atos de Fala. Na Semântica, na Linguística Textual, na Análise Conversacional,</p><p>na Análise do Discurso e em muitos outros lugares, para criticar ou reverenciar,</p><p>para ser fiel a Austin ou para lhe fazer “consertos”, os Estudos de Atos de Fala</p><p>têm sido tanto instrumento para explicar efeitos da linguagem em uso, como a</p><p>relevância de uma promessa ou a eficácia de uma ordem, como no caso dos</p><p>trabalhos de Searle (1981), quanto tem sido fonte de reflexão não somente sobre</p><p>a prática do uso linguístico, mas principalmente sobre a teorização desta prática,</p><p>como no caso das reflexões de Rajagopalan (1990, 1992, 1996, 1999, 2010).</p><p>2.3. Estudos pragmáticos interdisciplinares</p><p>Genericamente definido aqui como estudos pragmáticos interdisciplinares, esse</p><p>grupo de pesquisas pragmáticas se caracteriza por ser um híbrido dos dois</p><p>grupos anteriores. Híbrido porque podemos encontrar neste grupo autoras e</p><p>autores que utilizam ambos os métodos descritos anteriormente, acrescentados</p><p>muitas vezes de renovadas leituras do Pragmatismo norte-americano ou dos</p><p>Estudos dos Atos de Fala. O que os torna diferentes dos demais é o crédito a</p><p>teorias filosóficas historicistas e culturalistas que estavam em situação de</p><p>ausência ou de pouca expressividade nos dois grupos anteriores. Haberland e</p><p>Mey (2002, p. 1680), no editorial de 25 anos do Journal of Pragmatics, chamam</p><p>a atenção para o fato de que esses estudos interdisciplinares renovam a atenção</p><p>ao que antes era considerado “extralinguístico”.</p><p>Desde quando os estudos marxistas promovidos em todos os campos das</p><p>chamadas ciências sociais tomaram conta da Europa,¹⁴ questões relativas ao</p><p>papel da linguagem nas relações sociais começaram a ser levantadas com a</p><p>seriedade e a sistematicidade necessárias para firmar um novo paradigma. O</p><p>pano de fundo dessas questões era especialmente a luta de classes. Isso quer</p><p>dizer que, de uma maneira geral, muitos autores e autoras se perguntavam o que</p><p>significaria a diferença de classe social para as práticas linguísticas entre</p><p>pessoas. Outras estudiosas e estudiosos, que não seguiram o ímpeto das</p><p>investigações marxistas, elaboraram perguntas sobre as perguntas que estavam</p><p>sendo feitas e inauguraram uma linha de inquirição para avaliar como estava</p><p>sendo tratado o problema das práticas linguísticas no âmbito da Filosofia, da</p><p>Linguística, da Etnologia e das ciências sociais em geral. O ponto comum é sem</p><p>dúvida o reconhecimento de que não é possível abordar questões relativas ao uso</p><p>linguístico sem antes reconhecer a inerente dimensão social da linguagem, já que</p><p>“a pesquisa em pragmática se vê inevitavelmente envolvida na política da</p><p>linguagem e na não menos importante política linguística” (Rajagopalan, 2010,</p><p>p. 40).</p><p>A reavaliação do conceito de cooperação é um exemplo de resultado dessa linha</p><p>de inquirição. De acordo com Grice, o introdutor desse conceito, para haver</p><p>comunicação seria preciso haver cooperação entre usuárias(os). Seria possível</p><p>inclusive levantar os princípios que regem o espírito cooperativo de</p><p>comunicação. Grice elaborou, em meados da década de 1960, um quadro de</p><p>implicaturas conversacionais, ou seja, de regras que deveriam estar presentes no</p><p>sucesso de todo e qualquer ato de linguagem.¹⁵ Jacob L. Mey (1987) é um</p><p>excelente exemplo de como, a partir da Pragmática, é possível questionar</p><p>severamente a cooperação comunicativa: ele discute como a noção de</p><p>cooperação sustenta a ideologia da “parceria social”, pois apresenta o uso da</p><p>linguagem como uma parceira igualitária e livre entre falantes. Em parceria com</p><p>Harmut Haberland, Mey (Haberland e Mey, 2002) sustenta que deixar a</p><p>condição humana de fora das análises impacta negativamente os estudos</p><p>pragmáticos.</p><p>Seguindo uma linha crítica como a de Mey, atuais pragmatistas apostam em</p><p>linguagem como trabalho social, realizado com todos os conflitos consequentes</p><p>das relações na sociedade. Ou seja, os conflitos das relações entre homens e</p><p>mulheres, entre professor/a e aluno/a, entre brancos/as e negros/as, ou entre</p><p>judeus/judias e antissemitas, podem ser identificados linguisticamente.</p><p>Acredito que você possa perceber facilmente essa linha argumentativa por meio</p><p>da análise deste mesmo texto que você está lendo. Algumas pessoas, ao lerem</p><p>um texto como este, sentem um certo desconforto com a presença constante do</p><p>feminino na caracterização genérica, como “estudiosas e estudiosos da</p><p>Pragmática”, o que significa a negação de que o masculino possa representar</p><p>tanto homens quanto mulheres. Outras pessoas talvez não se sintam</p><p>desconfortáveis, mas ao menos estranham essa insistência. Diante dessas reações</p><p>se pode perguntar: por que manter o feminino nas caracterizações? Não pode o</p><p>masculino ser o genérico? Muitos estudos pragmáticos respondem a essas</p><p>perguntas da seguinte forma: existem pesquisadoras pragmatistas, mulheres que</p><p>estudam e produzem materiais de qualidade nos estudos introdutórios da</p><p>Pragmática? Sim; só para citar: Françoise Armengaud (2006), Jenny Thomas</p><p>(1995), Marcella Bertuccelli-Papi (1993), Brigitte Schlieben-Lange (1987).</p><p>Referi-las pelo masculino é ser sexista, ou seja, é manter simbolicamente o</p><p>masculino como representante mais adequado do gênero humano. Em trabalho</p><p>baseado nas Propostas para evitar o sexismo na linguagem, publicado pelo</p><p>Instituto da Mulher da Espanha, lemos:</p><p>Quando se estabelecem as normas linguísticas de uma perspectiva sexista, se</p><p>prejudica diretamente as mulheres e indiretamente toda a sociedade.¹</p><p>Assim, pragmatistas dos estudos interdisciplinares, preocupados/as em debater</p><p>os conflitos sociais que são também linguísticos, devolvem as perguntas</p><p>com</p><p>outra: por que não tornar visíveis linguisticamente homens e mulheres? Como</p><p>aponta Caldas-Coulthard (2007, p. 235), “a linguagem ajuda a definir, depreciar</p><p>e excluir as mulheres linguisticamente”. O desconforto ou estranhamento</p><p>produzido por uma ação assertiva (a de se textualizar também o feminino nas</p><p>caracterizações de estudiosos e estudiosas) é prova de que conflitos entre</p><p>homens e mulheres podem ser identificados linguisticamente, se se considera a</p><p>linguagem como um trabalho social pleno de conflitos sociais.</p><p>Qualquer tentativa de descrição da linguagem que exclua aspectos sociais é</p><p>considerada inócua e ineficiente para a pesquisa pragmática. A linguagem não é,</p><p>portanto, meio neutro de transmitir ideias, mas sim constitutiva da realidade</p><p>social. Não sendo “a realidade social” um conceito abstrato, mas o conjunto de</p><p>atos repetidos dentro de um sistema regulador, a linguagem é sua parte presente</p><p>e legitimadora, e deve ser sempre tratada nesses termos.</p><p>Desde a Escola de Frankfurt, com os trabalhos de Jurgen Habermas (2000) sobre</p><p>a ação comunicativa às elaborações da desconstrução de Jacques Derrida (1991,</p><p>1998), as mais diversas formas de se pensar a linguagem como parte da realidade</p><p>social, e não seu espelho, estão sendo elaboradas. Essa diversidade, se não ajuda</p><p>a identificar temas e métodos pré-definidos da Pragmática, pelo menos tem</p><p>impedido a exclusão das mais variadas formas dos fenômenos da linguagem.</p><p>Roy Harris (1981), por exemplo, defende que somente levando-se em conta o</p><p>que é metodicamente excluído na Linguística tradicional podemos desmitificar</p><p>as nossas ideias sobre as regras de funcionamento da linguagem. Assim,</p><p>podemos perguntar: como usos inovadores e não dicionarizados de palavras ou</p><p>mesmo estruturas sintáticas da língua são tratados nas pesquisas? Ou: como a</p><p>incoerência de ações produzidas por atos de fala são relegadas ao plano do “mal-</p><p>entendido a ser corrigido”?</p><p>Essas exclusões, quando debatidas, podem dar conta de problemas que</p><p>atormentaram linguistas durante muito tempo. Uma garotinha que está na ponta</p><p>dos pés, com o mato alcançando seus joelhos, diz:</p><p>(10) Olhe, mãe, vai certinho até minhas dobras!¹⁷</p><p>o que ela quis dizer? A mãe sabe, ainda que ela nunca tenha ouvido esse uso de</p><p>“dobras”. E nós que lemos o exemplo também o compreendemos. Uma situação</p><p>como esta tem sido tomada pela Linguística tradicional como exemplo para a</p><p>distinção “necessária” entre conhecimento linguístico e conhecimento</p><p>pragmático, ou conhecimento contextual, conhecimento de mundo etc.,</p><p>resumidamente, a distinção entre conhecimento linguístico e conhecimento</p><p>extralinguístico. Assim, o problema não é levado a sério, pois reduz a questão a</p><p>decidir entre a falta de conhecimento linguístico, ou a falta de conhecimento</p><p>extralinguístico.</p><p>Para os estudos interdisciplinares atuais, a questão principal é “como a mãe sabe,</p><p>se esse uso não é devido?”. Ou, com um pouco mais de crítica, “como o uso é</p><p>indevido se a mãe sabe?”. Sendo o uso da linguagem lugar de conflito, ele situa</p><p>também negociações, modificações, recusas. Isso torna inevitáveis as inovações,</p><p>e mais inevitável ainda que para se falar em linguagem tenha-se que falar em</p><p>fenômenos até então considerados como não linguagem. Esses argumentos</p><p>enfrentam a constante crítica de não estarem de fato “fazendo Linguística”, mas</p><p>sociologia, antropologia, ou qualquer outra coisa do gênero. Afinal, em que</p><p>interessariam problemas que não legitimam a ideia de Linguística como ciência</p><p>delimitada, com objeto e método pré-definidos? Dizer que linguagem não é</p><p>puramente convencional implica assumir a impossibilidade de descrever o</p><p>fenômeno linguístico inteira e sistematicamente.</p><p>O contra-argumento principal a essa crítica é que a demarcação dos limites entre</p><p>linguagem e mundo, ou entre linguagem e sociedade é uma tarefa inglória e</p><p>reducionista. Em outras palavras, pensar que incluir aspectos sociais chamados</p><p>“extralinguísticos” em uma análise leva ao risco de não se “fazer Linguística”,</p><p>desvirtuando o campo sagrado do saber sobre a língua, é o mesmo que pensar</p><p>que aulas de educação sexual vão fazer as pessoas terem mais relações sexuais.</p><p>É um argumento frágil para não expor a própria frustração de não apreender o</p><p>objeto de estudo por inteiro, nos moldes do positivismo que abriu nosso século</p><p>XX e foi inspiração para a fundação da Linguística.</p><p>Defendendo essas posições, os estudos pragmáticos interdisciplinares seguem</p><p>procurando ampliar as possibilidades de objetos de estudo de linguistas,</p><p>retirando a criatividade do nível da mera estatística.</p><p>3. DIVULGAÇÃO E IMPACTO ATUAL DA PRAGMÁTICA</p><p>No final da década de 1970 e início da de 1980, a Pragmática começou a ser</p><p>levada a sério. Nessa época os estudos que vinham discutindo os componentes</p><p>pragmáticos da linguagem chamam a atenção e merecem várias publicações,</p><p>entre periódicos e livros inteiros.</p><p>Em 1977, inúmeros artigos autoproclamados pragmáticos são enviados para</p><p>edição no recém-criado Journal of Pragmatics, que abre o primeiro espaço de</p><p>prestígio para as pesquisas que se preocupavam com o uso linguístico. Em 1978,</p><p>Jef Verschueren publica a primeira bibliografia comentada sobre Pragmática.</p><p>Logo em seguida, em 1979, Richard Rorty publica o seu A filosofia e o espelho</p><p>da natureza, trazendo novamente para as rodas filosóficas as ideias de William</p><p>James. Dois anos depois, em 1981, inicia-se a edição do Language and</p><p>Communication, oferecendo aos leitores e leitoras discussões centradas na</p><p>prática linguística. Nesse mesmo ano, Roy Harris publica The language myth,</p><p>questionando a ausência sistemática, nos trabalhos linguísticos, de perguntas</p><p>sobre aspectos criativos da linguagem e questionando explicitamente o mito da</p><p>“língua como sistema”. No Brasil, Marcelo Dascal edita, em 1982, uma</p><p>coletânea de textos filosóficos clássicos para a consolidação da Pragmática. Já</p><p>pelos meados da década de 1980, outros trabalhos com perspectivas</p><p>completamente diferentes, como de Jacob L. Mey, de 1985, a de Françoise</p><p>Armengaud, de 1985, e o de Brigitte Schlieben-Lange, de 1987, se acrescentam</p><p>ao debate em torno da pergunta “qual o objeto da Pragmática?”.</p><p>O Journal of Pragmatics, que tinha periodicidade trimestral em seu lançamento</p><p>em 1977, dois anos depois (em 1979) já era bimestral e, dez anos depois, em</p><p>1999, passa a publicar números mensais. A virada para o século XXI é, portanto,</p><p>ainda mais promissora. Em 2007, um novo periódico internacional é</p><p>inaugurando, o Semantics and Pragmatics. No Brasil, além de capítulos em</p><p>livros introdutórios bem divulgados, a tradução do livro de Armengaud (2006)</p><p>lança mais uma obra para a difusão da Pragmática.</p><p>Está inflamada a área dos estudos pragmáticos. A atividade linguística ganha um</p><p>espaço cada vez mais frequente na Linguística. Trabalhos discutem a relação dos</p><p>signos com a prática da linguagem para evidenciar o processo inovador da</p><p>conversação humana. Para pragmatistas que se dedicam a levantar problemas</p><p>teóricos do estudo da linguagem, questões sobre o papel da linguagem na</p><p>formação do sujeito, sobre a noção de unicidade e identidade linguísticas, sobre</p><p>a imprevisibilidade e a criatividade como propriedades linguísticas, sobre a</p><p>própria condição do fazer teórico linguístico não podem mais ficar relegadas ao</p><p>plano das especulações.</p><p>Conforme apontei na seção anterior, a criatividade é uma constante na realização</p><p>da linguagem, de tal modo que leva a negociações, modificações, recusas, o que</p><p>entre sociolinguistas é conhecido como fenômenos de variação e mudança.¹⁸ Isso</p><p>leva à imprevisibilidade no sistema descrito: é impossível descrever e/ou prever</p><p>todas as estruturas e combinações existentes numa língua. É fundamental</p><p>perguntar-se como o signo mantém a sua unicidade, como continua sendo o</p><p>mesmo através de repetições tão diferentes, e como, ao mesmo tempo, continua</p><p>a ser intercambiável, como se sua unidade fosse fragmentada, fazendo, perdendo</p><p>e refazendo todo tempo o próprio limite. É definidor perguntar-se o que é</p><p>identidade linguística, e como ela se produz, tendo em vista que, ao</p><p>contrário do</p><p>que muitos/as linguistas pensam, a linguagem não reflete o lugar social de quem</p><p>fala, mas faz parte desse lugar social: “Identidade não preexiste à linguagem.</p><p>Falantes têm que marcar suas identidades assídua e repetidamente.” (Cameron,</p><p>1995, p. 17). A repetição é necessária para sustentar a identidade, precisamente</p><p>porque ela não existe fora dos atos de linguagem que a sustentam.</p><p>Temas como esses, e as posições teóricas e éticas que os acompanham, são</p><p>polêmicos porque estão sendo construídos para mostrar que o uso linguístico não</p><p>é, como queria Carnap, um dos componentes da linguagem, mas a única forma</p><p>produtiva de se pensar os fenômenos linguísticos. Dizer é fazer: a prática social</p><p>que chamamos linguagem é, para a Pragmática atual, indissociável de suas</p><p>consequências éticas, sociais, econômicas, culturais.</p><p>3.1. Emergências de questões políticas</p><p>Em disciplinas variadas, aspectos linguísticos são sistematicamente submetidos a</p><p>exame para valorizar sua condição de constituinte social. As variações sintáticas</p><p>e fonológicas são estudadas pela sua significação social para os/as falantes. O</p><p>bilinguismo é analisado como construtor e mantenedor das hierarquias sociais</p><p>em países colonizados. Os relatos de mulheres são interpretados no que</p><p>transmitem de suas autoimagens e das imagens que o universo masculino tem</p><p>delas. O ensino de línguas é analisado à luz dos processos coloniais e de</p><p>globalização.</p><p>Para pragmatistas que utilizam dados empíricos em seus trabalhos, questões</p><p>sobre racismo e sexismo, sobre conflitos socioeconômicos, sobre ética ou sobre</p><p>relações de poder não são mais consideradas como detalhes surgidos ao acaso</p><p>em pesquisas centradas na língua pela língua. Ao contrário, a Pragmática está</p><p>defendendo um quadro de pesquisa sobre, para e com os sujeitos sociais;¹ um</p><p>quadro metodológico que permita aos pesquisadores e pesquisadoras interagirem</p><p>integralmente com suas informantes e seus informantes, discutir com elas e eles</p><p>seus interesses e avaliar a repercussão de afirmações conclusivas do trabalho</p><p>teórico.</p><p>O diálogo tem sido muito profícuo também para encontrar um novo quadro</p><p>teórico para os estudos da linguagem. Uma leitura interdisciplinar do alcance dos</p><p>estudos de atos de fala nos leva aos trabalhos de linguistas envolvidos(as) em</p><p>explicitar fundamentos ideológicos de decisões teóricas e descritivas e de rever a</p><p>construção de conceitos na Linguística. Rajagopalan (2010) discute amplamente</p><p>a agenda ideológica das “leituras oficiais” de Austin e aponta, ironiza a</p><p>separação entre ensino e doutrinação política:</p><p>Como sabemos onde o ensino termina e a doutrinação assume o controle?</p><p>Qualquer tentativa de traçar uma linha de demarcação nítida entre essas duas</p><p>coisas exigiria que realmente tivéssemos uma distinção clara entre o que é</p><p>estritamente acadêmico e o que é, também, político-ideológico.²</p><p>Pennycook (2007, p. 112), em parceria com Sinfree Makoni e um grupo de</p><p>linguistas em diálogos Sul-Sul,²¹ trabalham para mapear os “efeitos de língua”,</p><p>efeitos de atos de fala sobre língua nas práticas de pesquisa e ensino mundo</p><p>afora, “as maneiras como as línguas se materializam através dos discursos”.</p><p>Esses tipos de abordagens, metodológicas e teóricas, impulsionam a emergência</p><p>de preocupações políticas e apontam o futuro da Pragmática como uma área</p><p>vigorosa para o debate ideológico da linguagem como ação, representação,</p><p>espaço.</p><p>3.2. Palavras finais</p><p>No estágio de desenvolvimento atual das razões filosóficas que a formaram, a</p><p>saber, do Pragmatismo norte-americano, dos Estudos de Atos de Fala e dos</p><p>atuais estudos interdisciplinares, esta polivalente área da Linguística não deixa</p><p>de acompanhar e aprofundar todas as implicações teóricas do fato de que as</p><p>manifestações e empregos da linguagem são paradoxalmente dependentes e</p><p>resistentes às usuárias e aos usuários. Nem centro nem periferia da linguagem,</p><p>“falante”, pela óptica da Pragmática, é tanto ator ou atriz da prática linguística</p><p>quanto participante e reprodutor/a das instabilidades do processo de vida social</p><p>que coordena essa ação.</p><p>Espero que o leitor e a leitora possam ter compreendido um pouco de como a</p><p>Pragmática se consolidou como a ciência do uso linguístico. O campo não se</p><p>esgota. Muitos ainda são os temas que podem ser abordados num estudo</p><p>pragmático: tanto fenômenos concretos, quanto a própria teorização do fazer</p><p>pragmático. No enfoque pragmático, o interesse por cada ponto a ser analisado é</p><p>sempre um ganho quando não se quer deixar de fora da linguagem quem a faz</p><p>existir: nós e nossas práticas sociais.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ARMENGAUD, Françoise. A pragmática. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo:</p><p>Parábola Editorial, 2006. (Col. Na ponta da língua, 8.)</p><p>AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Palavras e ações. Trad. Danilo Marcondes.</p><p>Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.</p><p>______. Performativo-constativo. Trad. Paulo Roberto Ottoni. In: OTTONI,</p><p>Paulo Roberto. Visão performativa da linguagem. Campinas: Editora da</p><p>Unicamp, 1998. p. 107-144. (Col. Viagens da Voz.)</p><p>BENVENISTE, Émile. A filosofia analítica e a linguagem. In: ______.</p><p>Problemas de linguística geral I. Trad. Maria da Glória Novak e Maria Luiza</p><p>Neri. Campinas: Pontes, 1991, p. 294-305.</p><p>BERTUCCELI-PAPI, Marcella. Che cos’è la pragmatica? Milano: Strumenti</p><p>Bompiani, 1993.</p><p>CALDAS-COULTHARD, Carmen Rosa. Caro colega: exclusão linguística e</p><p>invisibilidade. Discurso & Sociedad, v. 1, n. 2, p. 230-246, 2007. Disponível em:</p><p>.</p><p>Acesso em: 29 set. 2009.</p><p>CAMERON, Deborah. Verbal hygiene. London: Routledge, 1995.</p><p>______ et al. Ethics, advocacy and empowerment: issues of method in</p><p>researching language. Language and communication, v. 13, n. 2, p. 81-94, 1993.</p><p>DASCAL, Marcelo. A relevância do mal-entendido. Cadernos de Estudos</p><p>Linguísticos, Campinas, n. 11, p. 199-217, 1986.</p><p>______ (Org.). Fundamentos metodológicos da linguística. Pragmática.</p><p>Campinas: Ed. Unicamp, v. IV, 1982.</p><p>DAVIDSON, Donald. A coherence theory of truth and knowledge. In: LEPORE,</p><p>Ernest (Org.). Truth and interpretation. Oxford: Blackwell, 1986. p. 307-319.</p><p>DERRIDA, Jacques. Assinatura, acontecimento, contexto. In: ______. Margens</p><p>da filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Campinas:</p><p>Papirus, 1991. p. 349-373.</p><p>DERRIDA, Jacques. Carta a um amigo japonês. In: OTTONI, Paulo (Org.).</p><p>Tradução: a prática da diferença. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. p. 19-25.</p><p>DOSSE, François. História do estruturalismo. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo:</p><p>Ensaio, v. I e II, 1993.</p><p>HABERLAND, Hartmut; MEY, Jacob L. Editorial: linguistics and pragmatics.</p><p>Journal of Pragmatics, Amsterdam, v. 1, n. 1, p. 1-12, abr. 1977.</p><p>______. Linguistics and pragmatics, 25 years after. Journal of Pragmatics,</p><p>Amsterdam, v. 34, n. 12, p. 1671-1682, dez. 2002.</p><p>HABERMAS, Jurgen. Uma outra via para sair da filosofia do sujeito — razão</p><p>comunicativa vs. razão centrada no sujeito. In: ______. O discurso filosófico da</p><p>modernidade: doze conferências. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento.</p><p>São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 411-453.</p><p>HARRIS, R. The language myth. Oxford: Duckworth, 1981.</p><p>MEY, Jacob L. Poet and peasant: a pragmatic comedy in five acts. Journal of</p><p>Pragmatics, Amsterdam, n. 11, p. 281-297, 1987.</p><p>______. Whose language? A study in linguistic pragmatics. Amsterdam: John</p><p>Benjamins, 1985.</p><p>OGDEN, C. K.; RICHARDS, I. A. O significado do significado. Trad. Álvaro</p><p>Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.</p><p>OTTONI, Paulo Roberto. Visão performativa da linguagem. Campinas: Editora</p><p>da Unicamp, 1998. (Col. Viagens da Voz.)</p><p>PEIRCE, C. Prolegomena to an apology for pragmaticism. Monist, 1906.</p><p>PENNYCOOK, Alastair. The myth of English as an international language. In:</p><p>MAKONI, Sinfree; PENNYCOOK, Alastair (Ed.). Disinventing and</p><p>reconstituting languages. Clevedon: Multilingual Matters, 2007. p. 90-115.</p><p>PINTO, Joana Plaza. As armadilhas da referência e o mal-entendido: problemas</p><p>de alguns pressupostos teóricos. 1998. 113 p. Dissertação (Mestrado em</p><p>Linguística) — Instituto</p><p>nos piores. O melhor</p><p>testemunho desse atraso é o sucesso de pseudoprofessores nos meios de</p><p>comunicação, que nada mais fazem do que repetir materiais do nível das</p><p>apostilas dos cursinhos, com listas de “problemas” de uso do português falado</p><p>julgado à luz da língua escrita. Faça o leitor a suposição de que os programas e</p><p>as colunas sobre música, teatro e economia sejam do mesmo calibre, e o atraso</p><p>saltará aos olhos ainda mais claramente. Em resumo: Linguística é uma coisa de</p><p>que ninguém ouviu falar. Daí a relevância de um livro como este. Mas há mais</p><p>razões.</p><p>Outra observação sobre um certo atraso, outra justificativa para a publicação</p><p>deste livro: quem já ouviu falar de Linguística (isso se vê na imprensa e às vezes</p><p>em departamentos avançados) supõe que ela se resume à arbitrariedade do signo,</p><p>às relações paradigmáticas e sintagmáticas (quando a coisa é sofisticada,</p><p>menciona-se outra dupla saussuriana, sincronia e diacronia). Frequentemente, as</p><p>introduções à Linguística — disciplina obrigatória nos cursos de Letras — não</p><p>ultrapassam essa leitura mais ou menos festiva de Saussure, feita em algum</p><p>manual, ou em apostila, que ninguém é de ferro.</p><p>Assim, este livro se justifica plenamente, e por uma só razão, embora ela tenha</p><p>sentidos diferentes em diversos domínios sociais. O que justifica este livro é sua</p><p>capacidade de produzir uma certa ruptura. No caso dos intelectuais vizinhos, o</p><p>efeito poderia ser o da atualização mínima. Seria importante, por isso mesmo, no</p><p>entanto, que não buscassem no livro ferramentas para seu trabalho. Para isso, as</p><p>introduções aqui apresentadas não serviriam, pois se trata de introduções. Mas</p><p>ninguém espera que façam as categorias da Linguística aqui oferecidas em</p><p>embrião render em seus trabalhos. Poderiam instruir-se, apenas, mesmo que</p><p>fosse para conversas em recepções. Já está na hora de não se ouvirem mais</p><p>imprecações grosseiras sobre erros de português, avaliações de baixíssimo nível</p><p>sobre a pronúncia desta ou daquela região, preconceitos ridículos — se não</p><p>fossem socialmente excludentes — a respeito da linguagem corrente, quer se</p><p>trate de fala popular, quer se trate de línguas de menor prestígio, especialmente</p><p>quando isso se deve a peculiaridades estruturais (que não se diga mais, por</p><p>exemplo, que o chinês não tem sintaxe, só porque sua frase não se organiza</p><p>como a do francês). Até porque essas avaliações, feitas supostamente de algum</p><p>patamar elevado, depõem muito mais sobre a ignorância de quem as faz do que</p><p>sobre a suposta deficiência dos produtores dos fatos linguísticos comentados.</p><p>Um segundo nível de ruptura em que este livro pode atuar é em relação ao</p><p>estudante de Letras. É o que mais importa. De fato, nada é mais necessário do</p><p>que eliminar o suposto saber do aluno de colegial em relação aos fatos</p><p>linguísticos. Em primeiro lugar, a ruptura precisa realizar-se até mesmo em</p><p>relação ao que sejam fatos linguísticos. É mais ou menos sabido que os fatos não</p><p>se oferecem graciosamente ao estudioso, que cada teoria de certa forma decide</p><p>sobre eles — quais e como são, quais os mais e os menos relevantes etc.</p><p>Nesse domínio, duas questões são essenciais: que o estudante se torne capaz de</p><p>ver como fatos os casos de variação; em segundo lugar, que perceba que há</p><p>pesquisa possível em língua — ou melhor, que fazer pesquisa a propósito de</p><p>língua não equivale a consultar gramáticas e dicionários para verificar o que</p><p>neles consta e o que não consta neles.</p><p>Essas são apenas as primeiras rupturas. Talvez as mais necessárias. Mas, além</p><p>disso, cabe verificar minimamente o quanto são ricos e estão sendo cada vez</p><p>mais enriquecidos novos campos. Por exemplo: pode-se dizer com certeza que</p><p>um texto não é uma soma de frases, que propriedades como coesão e coerência</p><p>têm dimensões bastante objetivas, por um lado, mas relacionam-se com</p><p>domínios que se poderiam dizer interdisciplinares, por outro. Assim, mesmo sem</p><p>poder-se dizer que se atinge o patamar da “objetividade” nesse domínio, pode-se</p><p>dizer com certeza que a categoria decisiva já não é o (bom ou mau) gosto do</p><p>leitor.</p><p>O que se pode dizer do texto vale para outros tantos campos relativamente</p><p>recentes: as novidades relacionadas a questões postas pelo estudo do discurso,</p><p>pela Psicolinguística, pela Neurolinguística, pelos novos problemas (e novas</p><p>propostas de saídas) que a Linguística propõe ao professor e educador são</p><p>suficientemente desafiadoras.</p><p>O livro deixará claro a seu leitor o quanto a linguagem é um campo de</p><p>experiências riquíssimas, quer se trate de abordar os aspectos relativos ao que se</p><p>poderia chamar de seus problemas estruturais (Fonologia, Morfologia, Sintaxe),</p><p>quer se trate de tematizar suas relações com outros campos de saber. Ou com o</p><p>mundo, que só conhecemos, de fato, ou que tentamos conhecer, por meio da</p><p>linguagem — de alguma linguagem.</p><p>Sírio Possenti</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>A Linguística, nos dias de hoje, conta com uma vasta bibliografia de estudos no</p><p>campo, desde textos mais introdutórios até textos de grande especificidade e</p><p>aprofundamento. Os textos introdutórios já existentes são, sem dúvida alguma,</p><p>bastante esclarecedores. O que justificaria, então, a organização de uma obra</p><p>como esta, que se propõe a introduzir o leitor nos estudos da Linguística?</p><p>Nosso propósito na organização desta obra é o de preparar o terreno conceitual</p><p>para contatos posteriores com materiais que analisem o fenômeno da linguagem</p><p>com um maior grau de detalhe e aprofundamento, além de tornar acessível, para</p><p>leitores iniciantes ou não especializados em Linguística, as relevantes</p><p>abordagens sobre o fenômeno da linguagem. No intuito de realizarmos tal</p><p>propósito, concebemos os dois volumes de Introdução à Linguística: domínios e</p><p>fronteiras, buscando aliar os seguintes aspectos:</p><p>a) uma apresentação geral e gradual das principais áreas da Linguística no</p><p>Brasil;</p><p>b) uma amostra de como as diversas áreas abordam os fatos de linguagem;</p><p>c) uma linguagem acessível.</p><p>Com base nesses três aspectos, procuramos organizar os capítulos de forma a</p><p>conferir uma certa unidade à obra. Assim, de um modo geral, os capítulos estão</p><p>constituídos da seguinte maneira: (i) histórico da área; (ii) bases epistemológicas</p><p>da área; (iii) diferentes vertentes da área; (iv) análise de dados. No entanto, em</p><p>função da especificidade de cada área e do próprio estilo e visão de cada autor</p><p>com relação ao campo apresentado, os capítulos conferem um peso diferenciado</p><p>aos aspectos acima citados.</p><p>Com relação à ordem dos capítulos, não optamos pela apresentação das</p><p>disciplinas seguindo a perspectiva clássica, que perscruta o fenômeno da</p><p>linguagem partindo dos níveis mínimos de análise em direção aos níveis</p><p>superiores. Optamos por oferecer ao leitor a possibilidade de inicialmente</p><p>enxergar o fenômeno linguístico como um fenômeno sociocultural,</p><p>fundamentalmente heterogêneo e em constante processo de mudança.</p><p>Entendemos que, assim, podemos lhe promover uma entrada mais significativa</p><p>no terreno das necessárias e esclarecedoras orientações teóricas formais sobre a</p><p>linguagem humana.</p><p>Iniciamos o volume 1 desta obra com o capítulo de Sociolinguística (partes 1 e</p><p>2) porque essa área, na tentativa de compreender a questão da relação entre</p><p>linguagem e sociedade, postula o princípio da diversidade linguística. Além,</p><p>disso, a Sociolinguística inscreve-se na corrente das orientações teóricas</p><p>contextuais sobre o fenômeno linguístico, orientações teóricas estas que</p><p>consideram as comunidades linguísticas não somente sob o ângulo das regras de</p><p>linguagem, mas também sob o ângulo das relações de poder que se manifestam</p><p>na e pela linguagem.</p><p>O capítulo de Linguística Histórica é apresentado na sequência, enfocando os</p><p>processos de mudança das línguas no tempo. Essa sequência se justifica porque</p><p>mudança e variação linguística encontram-se estreitamente relacionadas: se há</p><p>mudança linguística é porque, em algum momento anterior, ocorreu o fenômeno</p><p>da variação. Sendo assim, esperamos que estes primeiros textos possam</p><p>esclarecer para o leitor dois dos mais importantes pressupostos da Linguística</p><p>moderna:</p><p>de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de</p><p>Campinas, Campinas, 1998.</p><p>PROMUJER. Hacia un curriculo no sexista. Puerto Rico: Universidad, 1992.</p><p>QUINE, W. V. Falando de objetos. In: RYLE, Gilbert et al. Ensaios. 2. ed. São</p><p>Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 117-131. (Col. Os Pensadores.)</p><p>______. Palabra y objeto. Barcelona: Labor, 1968.</p><p>RAJAGOPALAN, Kanavillil. Nova Pragmática. Fases e feições de um fazer. São</p><p>Paulo: Parábola Editorial, 2010.</p><p>RAJAGOPALAN, Kanavillil. Os caminhos da pragmática no Brasil. D.E.L.T.A.,</p><p>São Paulo, v.15, n. especial, p. 323-338, 1999.</p><p>______. O Austin do qual a Linguística não tomou conhecimento e a Linguística</p><p>com a qual Austin sonhou. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 30,</p><p>p. 105-116, 1996.</p><p>______. A irredutibilidade do ato ilocucionário como fator inibidor do êxito das</p><p>tentativas taxonômicas. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 8, n. 1, p. 91-133, 1992.</p><p>______. Dos dizeres diversos em torno do fazer. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 6, n.</p><p>2, p. 223-254, 1990.</p><p>RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Trad. Antônio Trânsito.</p><p>Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.</p><p>SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 16. ed. Trad. Antônio</p><p>Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1991.</p><p>SCHLIEBEN-LANGE, Brigitte. Pragmática linguística. Madrid: Gredos, 1987.</p><p>SEARLE, John R. Os actos de fala: um ensaio de filosofia da linguagem. Trad.</p><p>Carlos Vogt et al. Coimbra: Almedina, 1981.</p><p>SILVA, Oswaldo Porchat de Assis Pereira da (Ed.). Vida e obra: Ryle, Austin,</p><p>Quine, Strawson. In: RYLE, Gilbert et al. Ensaios. 2. ed. São Paulo: Abril</p><p>Cultural, 1980. (Col. Os Pensadores.)</p><p>THOMAS, Jenny. Meaning in interaction: an introduction to pragmatics.</p><p>London: Longman, 1995.</p><p>VERSCHUEREN, J. Pragmatics: an annotated bibliography. Amsterdam: John</p><p>Benjamins, 1978.</p><p>VERSCHUEREN, J.; BERTUCCELLI-PAPI, Marcella (Ed.). The pragmatic</p><p>perspective: selected papers from the 1985 International Pragmatics Conference.</p><p>Amsterdam: John Benjamins, 1987.</p><p>1. Note que a definição de linguagem inicialmente utilizada pela Pragmática é</p><p>bastante diversa de outras áreas da Linguística (cf. outros capítulos deste</p><p>volume). Essa noção inicial de linguagem como o somatório da língua mais a</p><p>fala é própria do estruturalismo, paradigma de estudos sociais iniciado por</p><p>Ferdinand de Saussure, e inicialmente divulgado por Roman Jakobson, na</p><p>Linguística, e Claude Lévi-Strauss, na Antropologia (Dosse, 1993).</p><p>2. Immanuel Kant foi um filósofo alemão que viveu entre 1724-1804. Exerceu</p><p>grande influência no pensamento ocidental, procurando caracterizar os limites, o</p><p>alcance e o valor da razão.</p><p>3. Para maiores detalhes, consultar Rorty (1994), especialmente a Introdução e o</p><p>Capítulo I.</p><p>4. Em versão anterior deste capítulo, identifiquei este grupo como “estudos da</p><p>comunicação”, mas percebo agora que a diversidade do grupo se articula não em</p><p>torno das preocupações com a comunicação e interação social como eu</p><p>imaginava outrora, e sim em função da interdisciplinaridade de suas abordagens.</p><p>Como observa Rajagopalan (1999, p. 332): “A grande variedade de assuntos</p><p>tratados é prova de que a Pragmática mantém vínculos com muitas outras</p><p>disciplinas, assim como muitas das demais subáreas dentro da Linguística”.</p><p>5. Para maiores detalhes, consultar os capítulos “Semântica” e “Análise da</p><p>Conversação”, neste volume.</p><p>6. Peirce (1906), citado em Ogden e Richards (1972, p. 280).</p><p>7. Citado em Schlieben-Lange (1987).</p><p>8. Tradição analítica é entendida aqui no sentido de Rorty (1994) como aquele</p><p>vocabulário filosófico que se inicia com os trabalhos do filósofo alemão Frege, e</p><p>que baseia toda a argumentação para a defesa de que significar é representar algo</p><p>que está fora da linguagem, seja fora porque está no mundo concreto, seja fora</p><p>porque está no “pensamento” ou “sentimento”, entendidos estes últimos como</p><p>conceitos abstratos, não ligados a nenhuma prática cotidiana de linguagem.</p><p>9. Uma análise detalhada desse texto de Dascal (1986) e uma discussão mais</p><p>aprofundada sobre as motivações em torno da manutenção de um modelo</p><p>harmônico de “entendimento” encontram-se em Pinto (1998).</p><p>10. Austin, 1998, p. 132.</p><p>11. Incluem-se aí os questionamentos de Austin sobre o valor veritativo dos atos</p><p>de fala, ou mesmo suas dúvidas sobre a distinção performativo-constativo.</p><p>12. Para um debate mais aprofundado sobre a questão da taxonomia para os atos</p><p>de fala, ver Rajagopalan (1992).</p><p>13. Derrida, 1991, p. 363.</p><p>14. Ver outros detalhes sobre os estudos marxistas da linguagem no capítulo</p><p>“Análise do Discurso”, neste volume.</p><p>15. Para maiores explicações, ver o capítulo “Análise da Conversação”, neste</p><p>volume.</p><p>16. PROMUJER, 1992, s.p.</p><p>17. O exemplo é de Harris (1981, p. 152) e a versão em inglês é a que se segue:</p><p>“Look, mummy, it comes right up to my hinges”.</p><p>18. Recomendo que o leitor busque saber mais sobre variação e mudança e</p><p>repare nas diferenças de enfoque entre a Pragmática e a Sociolinguística. Ver,</p><p>então, o capítulo “Sociolinguística” (partes I e II) no volume I desta obra.</p><p>19. Para maiores detalhes, consultar Cameron et al. (1993).</p><p>20. Rajagopalan, 2010, p. 139.</p><p>21. Diálogos Sul-Sul são aqueles ocorridos entre pessoas de países localizados</p><p>ao Sul no mapa tradicional do planeta. São diálogos acadêmicos, econômicos,</p><p>artísticos etc. O grupo liderado por Makoni e Pennycook (2007) inclui, entre</p><p>outras, a contribuição do linguista brasileiro Lynn Mario T. Menezes de Souza.</p><p>3</p><p>ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO</p><p>Ângela Paiva Dionísio</p><p>1. PARA INÍCIO DE CONVERSA...</p><p>Os estudos mais recentes na área da interação verbal definem a linguagem como</p><p>uma forma de ação conjunta (Clark, 1996; Marcuschi, 1998a), que emerge</p><p>quando falantes/escritores e ouvintes/leitores realizam ações individuais,</p><p>coordenadas entre si, fazendo com que tais ações se integrem, formem um</p><p>conjunto. Usar a linguagem consiste, portanto, em realizar ações individuais e</p><p>sociais. Estamos sempre fazendo algo com a linguagem. Conversar, por</p><p>exemplo, é uma atividade social que desempenhamos desde que começamos a</p><p>falar. No dia a dia, estamos conversando com alguém, convidando alguém para</p><p>conversar, puxando conversa com um outro. Na década de 1980, em nosso país,</p><p>foi lançado o primeiro livro nesta área com o título Análise da Conversação, de</p><p>autoria do professor Luiz Antônio Marcuschi. Segundo esse autor, “a</p><p>conversação é a primeira das formas de interação a que estamos expostos e</p><p>provavelmente a única da qual nunca abdicamos pela vida afora”.¹ Quando se</p><p>diz aqui “conversação” está se tratando de todas as formas de “interação verbal”</p><p>existentes em nossa sociedade, embora alguns estudiosos dessa área a concebam</p><p>como apenas as interações verbais face a face em que há “simetria de direitos e</p><p>espontaneidade na realização do evento”.² Ainda segundo esse autor,</p><p>é sugestivo, portanto, conceber a conversação como algo mais do que um</p><p>simples fenômeno de uso da linguagem em que ativa o código. Ela é o exercício</p><p>prático das potencialidades cognitivas do ser humano em suas relações</p><p>interpessoais, tornando-se assim um dos melhores testes para a organização e</p><p>funcionamento da cognição na complexa atividade da comunicação humana.</p><p>Neste contexto a língua é um dos tantos investimentos, mas não o único, o que</p><p>permite uma análise de múltiplos fenômenos em seu entrecruzamento.³</p><p>A Análise da Conversação (AC) consiste numa abordagem discursiva que teve</p><p>origem na década de 1960, ligada aos estudos sociológicos, ou, mais</p><p>especificamente, à Etnometodologia,⁴ com os trabalhos de Harold Garfinkel,</p><p>Harvey Sacks, Emanuel Schegloff e Gail Jefferson. Enquanto os sociólogos</p><p>reconhecem que a conversação nos diz algo sobre a vida social, ao procurarem</p><p>responder a questões do tipo “como nós conversamos?”, os linguistas da Análise</p><p>da Conversação perguntam “como a linguagem é estruturada para favorecer a</p><p>conversação?” e reconhecem que a conversação nos diz algo sobre a natureza da</p><p>língua como fonte para se fazer a vida social (Eggins e Slade, 1997).</p><p>Para a Etnometodologia, os analistas</p><p>devem ser sensíveis aos fenômenos</p><p>interacionais, observando detalhes e conexões estruturais existentes no processo</p><p>interativo. Motivados por esses princípios, os estudiosos da AC, nestas três</p><p>décadas de trabalho, procuram investigar os aspectos essenciais para a</p><p>organização do texto conversacional. Hilgert (1989) aponta três níveis de</p><p>enfoque da estrutura conversacional:⁵</p><p>a) macronível: estuda as fases conversacionais, que são abertura, fechamento e</p><p>parte central, e o tema central e subtemas da conversação;</p><p>b) nível médio: investiga o turno conversacional, a tomada de turnos, a</p><p>sequência conversacional, os atos de fala e os marcadores conversacionais;</p><p>c) micronível: analisa os elementos internos do ato de fala, que constituem sua</p><p>estrutura sintática, lexical, fonológica e prosódia.⁷</p><p>Dentre as razões que justificam o estudo da conversação, podemos apontar: (i) é</p><p>a prática social mais comum do ser humano; (ii) desempenha um papel</p><p>privilegiado na construção de identidades sociais e relações interpessoais; (iii)</p><p>“exige uma enorme coordenação de ações que exorbitam em muito a simples</p><p>habilidade linguística dos falantes”,⁸ (iv) permite que se abordem questões</p><p>envolvendo “a sistematicidade da língua presente em seu uso e a construção das</p><p>teorias para enfrentar essas questões”.</p><p>Quando estamos conversando, estamos sempre abordando um ou mais de um</p><p>assunto, um ou mais de um tópico discursivo,¹ não importa se os temas são</p><p>sérios, fundamentais para a vida dos interlocutores, para o bem-estar do país, do</p><p>mundo ou se estamos “jogando conversa fora”. O importante é a existência de</p><p>algo e sobre o qual duas pessoas, pelo menos, estão conversando. O tópico</p><p>discursivo pode ser definido como uma atividade em que há uma certa</p><p>correspondência de objetivos entre os interlocutores (Fávero, 1992) e em que há</p><p>um movimento dinâmico da estrutura conversacional (Jubran et al., 1992),</p><p>fazendo com que o tópico seja um elemento fundamental na constituição do</p><p>texto oral. A organização tópica compreende duas propriedades básicas, que são</p><p>a centração e a organicidade. A primeira propriedade diz respeito ao conteúdo,</p><p>ou seja, diz respeito ao falar-se sobre alguma coisa, enquanto a segunda se refere</p><p>às relações de interdependência que são estabelecidas entre os tópicos de uma</p><p>conversação.</p><p>A conversa espontânea se constrói a cada intervenção dos interlocutores, ou seja,</p><p>a elaboração e a produção ocorrem, simultaneamente, no mesmo eixo temporal.</p><p>É uma atividade coprodutiva, que “nunca se pode prever com exatidão em que</p><p>sentido o parceiro vai orientar a sua intervenção”,¹¹ o que não significa que sua</p><p>organização seja caótica ou aleatória. As contribuições dos falantes devem</p><p>demonstrar, de alguma forma, uma relação com o curso da conversa, pois a</p><p>conversação é uma atividade semântica, ou seja, um processo de produção de</p><p>sentidos, altamente estruturado e funcionalmente motivado.</p><p>Durante uma conversação, recorremos frequentemente a enunciados do tipo</p><p>“isso me lembra”, “por falar em”, “agora”, “mudando de assunto”, “voltando ao</p><p>assunto” para sinalizar que estamos compartilhando cognitivamente da</p><p>interação. Ainda empregamos enunciados do tipo “desculpe interromper a</p><p>conversa de vocês, mas...” quando nos inserimos em interações de que não</p><p>somos participantes. Marcuschi (1998a) destaca que “uma conversação fluente é</p><p>aquela em que a passagem de um tópico a outro se dá com naturalidade, mas é</p><p>muito comum que a passagem de um tópico a outro seja marcada”.¹² A</p><p>determinação e a extensão de um tópico discursivo depende da anuência mútua</p><p>dos interlocutores. A estrutura tópica serve, portanto, como “fio condutor de</p><p>organização discursiva”, constituindo um traço fundamental para “definir os</p><p>processos de entrosamento e colaboração entre os falantes na determinação dos</p><p>núcleos comuns” e para “demonstrar a forma dinâmica pela qual a conversação</p><p>se estrutura”.¹³ Há uma linearidade na construção do tópico discursivo, que</p><p>garante a organicidade da interação, pois “o conjunto de relevâncias em foco em</p><p>dado momento vai, paulatinamente, cedendo lugar a outros conjuntos de</p><p>relevâncias, ligadas a aspectos antes marginais do tópico em desenvolvimento ou</p><p>a novos conjuntos de mencionáveis que vão sendo introduzidos a partir dos já</p><p>existentes”.¹⁴ Observando os segmentos (1) e (2) a seguir, conclui-se que há</p><p>conversações em cada um deles e que há um tópico sobre o qual se constrói a</p><p>interação. No segmento (1), dois interlocutores (Dora e Josué) discutem sobre</p><p>uma viagem a ser realizada (tópico discursivo) e no segmento (2), os três</p><p>interlocutores [duas mulheres (M33 e M34) e um homem (H28)] discutem sobre</p><p>o comportamento feminista-machista de M34 (tópico discursivo).</p><p>No que diz respeito às condições de produção, é clara a distinção entre as</p><p>interações. Em (1), fragmento do roteiro do filme Central do Brasil (1998), os</p><p>interlocutores seguem um planejamento discursivo previamente elaborado, assim</p><p>como acontece nas novelas, nas peças de teatro, por exemplo. Esse tipo de</p><p>interação simboliza a conversação artificial. Já em (2), fragmento de uma</p><p>conversa informal entre pessoas conhecidas, é possível perceber que a interação</p><p>se dá de forma natural e informal, tendo em vista que é relativamente não</p><p>planejada, ou seja, a construção da interação vai sendo “planejada e replanejada</p><p>a cada novo ‘lance’ do jogo da linguagem”.¹⁵ O planejamento ocorre no</p><p>momento da interação, ou seja, a conversação é localmente planejada. Os</p><p>interlocutores constroem conjuntamente a interação, caracterizando a</p><p>conversação como uma atividade coprodutiva, tendo em vista que eles estão</p><p>empenhados na produção do texto falado. É claro que em Central do Brasil os</p><p>personagens também estão envolvidos na construção de sentido da interação,</p><p>porém se trata de uma simulação das interações reais, naturais, entre os</p><p>indivíduos na sociedade em que estão inseridos. O objeto de estudo da AC é</p><p>justamente a conversação natural, ou seja, aquelas que são produzidas em</p><p>situações naturais.</p><p>É importante destacar que a conversação natural apresenta variedades no grau de</p><p>formalidade. Estabelecendo uma gradação do informal para o formal, podemos</p><p>observar que há conversações mais informais, como as conversas espontâneas,</p><p>por exemplo, ao lado de outras bem mais formais, como as conferências</p><p>acadêmicas. Ao abordar as diferenças entre fala e escrita, Marcuschi (1995)</p><p>assegura que essas diferenças se dão dentro do “continuum tipológico das</p><p>práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois pólos</p><p>opostos”,¹ pois as estratégias de formulação textual que determinam o contínuo</p><p>apresentam variações estruturais, léxicas e sintáticas, entre outras, que são</p><p>responsáveis pelas semelhanças e diferenças entre fala e escrita.</p><p>2. DADOS ORAIS: COMO TRATÁ-LOS?</p><p>Antes de prosseguirmos com a apresentação e análise de segmentos de textos</p><p>conversacionais, faz-se necessário comentarmos sobre o sistema de transcrição</p><p>empregado nas transcrições dos dados orais. Como o corpus da AC deve ser</p><p>constituído por conversações produzidas em situações naturais, é necessário que</p><p>tais conversações sejam gravadas ou filmadas, para que o analista, após a sua</p><p>transcrição e observação, possa comprovar suas análises. Essa transcrição deve</p><p>ser a mais fiel possível, pois “a análise tem de se concentrar necessariamente na</p><p>produção dos interlocutores e nunca em interpretações e adaptações do</p><p>pesquisador. Nesse sentido, por exemplo, representaria um grave equívoco que o</p><p>pesquisador completasse, com base em sua interpretação, um enunciado</p><p>incompleto ou incompreensível da gravação ou da transcrição, e submetesse essa</p><p>versão à análise”.¹⁷</p><p>No livro Análise da conversação, mencionado anteriormente, é apresentado, no</p><p>capítulo 2, um sistema de transcrição para textos falados. Uma das observações</p><p>feitas por Marcuschi (1986) diz respeito ao fato de “não existir a melhor</p><p>transcrição”.¹⁸ De acordo com os objetivos da pesquisa, o analista faz a</p><p>transcrição assinalando o que é fundamental para suas análises. É necessário, no</p><p>entanto,</p><p>que a transcrição seja legível e sem sobrecarga de símbolos</p><p>complicados. No geral, as normas para transcrição têm seguido as orientações do</p><p>Projeto de Estudo Coordenado da Norma Urbana Linguística Culta (Projeto</p><p>NURC). Essas normas estão sintetizadas no Quadro 3.1.</p><p>Quadro 2.1</p><p>Normas para transcrição</p><p>Ocorrências Sinais</p><p>1. Indicação dos falantes os falantes devem ser indicados em linha, com letras ou alguma sigla convencional</p><p>2. Pausas ...</p><p>3. Ênfase MAIÚSCULAS</p><p>4. Alongamento de vogal : (pequeno) :: (médio) ::: (grande)</p><p>5. Silabação -</p><p>6. Interrogação ?</p><p>7. Segmentos incompreensíveis ou ininteligíveis ( ) (ininteligível)</p><p>8. Truncamento de palavras ou desvio sintático /</p><p>9. Comentário do transcritor (( ))</p><p>10. Citações “ ”</p><p>11. Superposição de vozes [</p><p>12. Simultaneidade de vozes [[</p><p>13. Ortografia</p><p>A AC analisa materiais empíricos, orais, contextuais, considerando também as</p><p>realizações entonacionais e o uso de gestos ocorridos durante o processamento</p><p>da conversação. Expressões faciais, entonações específicas, um sorriso, um olhar</p><p>ou um maneio de cabeça corroboram com a construção do sentido do enunciado</p><p>linguístico que está sendo proferido, ou, ainda, podem substituir um enunciado</p><p>linguístico no processo interacional face a face. As conversas espontâneas que</p><p>construímos cotidianamente estão repletas dessa mistura do verbal e do não</p><p>verbal. Steinberg (1988) sistematiza os recursos não verbais normalmente</p><p>empregados pelos falantes de uma dada língua numa conversa em:</p><p>a) paralinguagem: sons emitidos pelo aparelho fonador, mas que não fazem parte</p><p>do sistema sonoro da língua usada;</p><p>b) cinésica: movimentos do corpo como gestos, postura, expressão facial, olhar e</p><p>riso;</p><p>c) proxêmica: a distância mantida entre os interlocutores;</p><p>d) tacêsica: o uso de toques durante a interação;</p><p>e) silêncio: a ausência de construções linguísticas e de recursos da</p><p>paralinguagem.¹</p><p>Steinberg (1988) diz que a paralinguagem é “uma espécie de modificação do</p><p>aparelho fonador, ou mesmo a ausência de atividade desse aparelho, incluindo</p><p>nesse âmbito todos os sons e ruídos não linguísticos, tais como assobios, sons</p><p>onomatopaicos, altura exagerada”.² Quanto aos gestos, os audíveis estão no</p><p>campo da paralinguagem, enquanto os visuais podem ser analisados no âmbito</p><p>da cinésica. Para Steinberg, os atos paralinguísticos e cinésicos desempenham</p><p>funções variadas no curso da interação e de acordo com essas funções podem ser</p><p>classificados como lexicais (episódios não verbais com significado próprio,</p><p>como “Shhh” para indicar “fique quieto”); descritivos (“suplementam o</p><p>significado do diálogo através dos ouvidos e dos olhos”); reforçadores</p><p>(“reforçam ou enfatizam o ato verbal”); embelezadores (movimenta-se o corpo</p><p>todo para realçar a fala); e acidentais (aqueles que ocorrem por acaso, sem uma</p><p>função semântica). Dessa forma, a interação verbal se encontra estruturada em</p><p>uma estrutura tríplice — linguagem, paralinguagem e cinésica²¹ —, exigindo</p><p>dessa forma dos analistas da oralidade uma postura interdisciplinar, uma vez que</p><p>esses elementos estruturam a sociedade e são por ela estruturados.</p><p>Falamos, portanto, com a voz e com o corpo. Por isso, o sistema de transcrição</p><p>deve contemplar informações que assegurem o registro desses aspectos. Para</p><p>exemplificar o que estamos afirmando, vejamos alguns fragmentos de conversas</p><p>espontâneas, examinando a inter-relação entre atos linguísticos, paralinguísticos</p><p>e cinésicos e verificando algumas sequências em que esses atos coocorrem. Os</p><p>exemplos de (3) a (6) foram extraídos de Dionísio (1998) e nos mostram como</p><p>são construídas indicações de pessoas, de objetos, de paisagens presentes no</p><p>momento da interação:</p><p>3. COMO A CONVERSA SE ORGANIZA?</p><p>Desde pequenos estamos convivendo com uma regra básica da AC, pois os mais</p><p>velhos nos ensinam que devemos falar um de cada vez. Esperar a vez para falar</p><p>significa esperar a ocorrência de um lugar relevante para a transição (LRT), ou</p><p>seja, esperar por marcas como pausas, hesitações, entonações descendentes, uso</p><p>de marcadores etc., na fala do nosso interlocutor. Um falante pode entregar o</p><p>direito de fala a um outro por meio de sinais que deixem claro que ele terminou</p><p>de falar ou por meio de um convite ao outro para falar. Em outras palavras,</p><p>manda a regra que só após a conclusão de sua “fala” (de seu “turno”), o outro</p><p>interlocutor deve assumir a posição de falante. Mas basta pensarmos num grupo</p><p>de pelo menos três amigos, conversando entre si, durante um encontro</p><p>descontraído ou, ainda, nas salas de aula quando o professor faz uma pergunta à</p><p>turma e vários alunos respondem ao mesmo tempo, para percebermos que esta</p><p>regra não é seguida. Frequentemente, em sala de aula, estamos dizendo “vocês</p><p>falaram ao mesmo tempo e eu não entendi nada” ou “um de cada vez”. Por outro</p><p>lado, somos capazes de participarmos de uma interação com várias pessoas e nos</p><p>entendermos perfeitamente. A falta de organização nesse tipo de interação é</p><p>apenas aparente, pois a harmonia e a organização nas conversações são muito</p><p>relativas.</p><p>O primeiro trabalho sobre a organização de turnos conversacionais foi o de</p><p>Sacks, Schegloff e Jefferson (1974). Para eles, a noção de turno engloba dois</p><p>sentidos: (i) o de distribuição de turno, ou seja, qualquer locutor tem o direito de</p><p>tomar a palavra e (ii) o de unidade construcional, isto é, a fala elaborada no</p><p>momento em que um indivíduo toma a palavra e se torna um falante. Com base</p><p>nesses princípios, pode-se definir turno conversacional como cada intervenção</p><p>dos interlocutores formada pelo menos por uma unidade construcional.</p><p>Marcuschi (1986) concebe turno como “a produção de um falante enquanto ele</p><p>está com a palavra, incluindo a possibilidade de silêncio”, mas não considera</p><p>turno como “a produção do ouvinte durante a fala de alguém, embora isto tenha</p><p>repercussão sobre o que fala”.²² No exemplo (2), já apresentado, temos 22 turnos</p><p>conversacionais, distribuídos entre os três interlocutores. A interação é</p><p>constituída por meio de uma relação simétrica, ou seja, todos os falantes</p><p>possuem o mesmo direito de fala. Os turnos podem ser identificados de acordo</p><p>com os falantes no esquema a seguir:</p><p>Os turnos, quanto ao desenvolvimento do tópico na sequência conversacional,</p><p>podem ser nucleares e inseridos. Os nucleares contribuem substancialmente para</p><p>o desenvolvimento do tópico discursivo, pois exigem que as intervenções</p><p>subsequentes estejam relacionadas com o turno anterior. No exemplo (2), os</p><p>turnos 02, 03, 07, 08, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20 e 21 são nucleares porque</p><p>estão dando andamento ao tópico (comportamento feminista-machista de M34),</p><p>enquanto os turnos 04, 05, 06, 09, 10 e 16 são turnos inseridos por serem</p><p>produções marginais em relação ao desenvolvimento tópico da conversa, apesar</p><p>de colaborarem para esse desenvolvimento, exercendo sempre uma função</p><p>meramente interacional.</p><p>Dependendo do papel desempenhado por cada inserção no desenrolar da</p><p>conversa, os turnos inseridos podem ser classificados como turno de</p><p>esclarecimento, turno de avaliação, turno de concordância, turno de</p><p>discordância, entre outros. Observando os exemplos (2) e (7), podemos constatar</p><p>que os turnos inseridos também sofrem a influência do tipo de interação, pois no</p><p>exemplo (2), por se tratar de uma conversa espontânea, os interlocutores</p><p>procuram marcar suas posições não só por meio de concordâncias (turnos 04,</p><p>05), mas também de discordâncias (turnos 06, 16), por exemplo. Já no exemplo</p><p>(7) a seguir, por se tratar de uma entrevista, a postura da documentadora é</p><p>predominantemente de concordâncias, com apenas uma realização de</p><p>esclarecimento, com a função de testagem das informações dadas. A transcrição</p><p>a seguir comprova essa classificação:</p><p>Outro aspecto relevante na organização das conversas é o fato de ser constituída</p><p>pelas estratégias de gestão de turno que dizem respeito à troca de falantes,</p><p>através de passagem de turno e de assalto ao turno, e à sustentação da fala. No</p><p>primeiro caso, “a troca de falantes se processa segundo a presença (passagem)</p><p>ou ausência</p><p>(assalto) de pistas de LRT”.²³ Essa troca de turno pode ser requerida</p><p>pelo falante, quando este entrega o turno de forma explícita, ou ainda pode ser</p><p>consentida, isto é, quando a entrega é implícita. Já os assaltos ao turno</p><p>constituem uma espécie de violação de uma regra básica da conversa, que é falar</p><p>um de cada vez. Assim, os autores concebem essa questão da seguinte forma:</p><p>“no assalto, um dos interlocutores invade o turno do outro, sem que a sua</p><p>intervenção tenha sido solicitada ou consentida; em termos funcionais, verifica-</p><p>se que a transição de um turno a outro ocorre sem que haja pistas de LRT. O</p><p>assalto pode ocorrer com ou sem deixa”.²⁴ O tipo de assalto com deixa é aquele</p><p>que se dá durante hesitações, alongamentos, entonação descendente, pausas</p><p>realizadas pelo falante que possui o turno. O assalto sem deixa caracteriza-se por</p><p>intervenções bruscas, provocando sobreposição de vozes. Para Marcuschi</p><p>(1986), a ocorrência de sobreposições e de falas simultâneas pode provocar um</p><p>“colapso” na interação. Talvez seja esse conhecimento prévio sobre o</p><p>funcionamento da estrutura da interação que faz com que um dos interlocutores</p><p>em sobreposição desista do turno e deixe o outro assumi-lo, como se verifica no</p><p>exemplo (2), nas linhas 13 e 14:</p><p>Retomando do exemplo (2), no trecho das linhas 16 a 33, constatamos quatro</p><p>ocorrências de troca de falantes, decorrentes de assalto ao turno. Nas linhas 19 e</p><p>20, M33 assalta o turno de H28, durante uma pausa, e nas linhas 23 e 24 o</p><p>assalto se dá durante a realização provável de um sinal prosódico, o que</p><p>caracteriza em ambos os casos um assalto com deixa. Já nas demais ocorrências</p><p>de assalto ao turno (linhas 25 e 26, 29 e 30), as tomadas se dão de forma mais</p><p>brusca, tendo em vista que não há pistas de LRT, caracterizando o assalto sem</p><p>deixa.</p><p>Nos contextos de assalto com deixa, podem ser geradas as seguintes situações:</p><p>(i) o interlocutor assaltado abandona o turno e o interlocutor assaltante fica com</p><p>o turno, como em (7), quando a informante assaltou o turno da documentadora</p><p>durante um alongamento:</p><p>(ii) o interlocutor assaltado não abandona o turno e continua a comandar a</p><p>interação, como em (5), pois P01 em sobreposição ao turno de H05, durante uma</p><p>pausa, faz uma solicitação de esclarecimento, mas H05 se mantém no turno e</p><p>ignora a intervenção de sua interlocutora:</p><p>(iii) o interlocutor assaltado perde o turno, mas o recupera em seguida, como no</p><p>exemplo (2), já que H28 não permite que M33 se mantenha com o turno de que</p><p>ela tentou tomar posse:</p><p>A segunda estratégia de gestão de turnos — a sustentação da fala — é, na</p><p>realidade, uma tentativa empregada pelo falante para garantir a posse do turno,</p><p>assinalando à sua audiência o desejo de manter-se na conduta do diálogo. Para</p><p>isso, recorre aos marcadores conversacionais, aos alongamentos, às repetições e</p><p>à elevação da voz. Ainda no exemplo (2), podemos verificar que no turno 17,</p><p>linhas 21-23, H28 realiza quatro pausas e usa um marcador conversacional</p><p>(“veja bem”) para assegurar seu turno, enquanto no turno 20, linhas 28-29, por</p><p>exemplo, a falante M33 mantém seu direito de fala recorrendo a pausas e</p><p>alongamento de vogal (é:).</p><p>No caso das entrevistas formais, a exemplo das realizadas pelo NURC, apesar de</p><p>consistir num evento conversacional, que apresenta uma estrutura básica</p><p>pergunta e resposta, unidade mínima dialógica, semelhante à da conversa</p><p>espontânea, a elaboração do turno conversacional apresenta uma distinção nítida:</p><p>os turnos que correspondem às respostas tendem a ser longos e não sofrem</p><p>intervenção do interlocutor no sentido de tomar o turno. No exemplo (8), o turno</p><p>do documentador contém 20 palavras, enquanto o do informante tem 313.</p><p>Apesar das pausas, dos truncamentos, das hesitações, dos alongamentos, ou seja,</p><p>das várias deixas, o documentador não toma o turno, pois o seu papel era</p><p>meramente conduzir a interação, numa relação assimétrica.</p><p>Nem sempre, porém, é essa a estrutura da entrevista, pois, dependendo do</p><p>processo de interação instaurado entre os interlocutores, tal estrutura pode</p><p>consistir numa estratégia de perguntas e respostas, com turnos cujas dimensões</p><p>estejam mais próximas da conversa espontânea. No exemplo (9), que se encontra</p><p>a seguir, trecho de uma entrevista com uma empregada doméstica, percebe-se</p><p>que a entrevistada (S) limita-se a responder exatamente o que lhe é perguntado,</p><p>com frases curtas, sem demonstrar interesse em desenvolver mais</p><p>exaustivamente a pergunta que lhe foi endereçada. A exceção dessa postura se</p><p>encontra nas linhas de 08 a 14, quando a entrevistada procura esclarecer sobre o</p><p>tempo em que ela acompanha as crianças. No entanto, a postura assimétrica</p><p>permanece, pois o tópico discursivo é proposto pela entrevistadora (I), que</p><p>conduz a interação, sem permitir que haja um desvio do tema da entrevista.</p><p>4. COMO SE ORGANIZAM AS SEQUÊNCIAS NA CONVERSAÇÃO?</p><p>Pergunta (P) e resposta (R) compõem a unidade fundamental da organização</p><p>conversacional, ou par adjacente, na terminologia de Sacks, Schegloff e</p><p>Jefferson.²⁵ Mas este par adjacente pode ter “várias formas de realização; a P</p><p>pode ser na forma interrogativa direta, mais comum, ou na indireta”, e as</p><p>respostas também podem “ser na interrogativa”.² Urbano et al. (1993)</p><p>abordam essencialmente dois tipos de perguntas: perguntas fechadas (sim/não)</p><p>e perguntas abertas (sobre algo). O primeiro tipo caracteriza-se como um</p><p>enunciado, que conduz para uma resposta que, em princípio, se constitui de um</p><p>sim ou de um não. A repetição de verbo da pergunta, o uso de back-channel, o</p><p>uso de certos advérbios e o emprego do verbo topicalizado em negativas são</p><p>alguns recursos que substituem o sim/não nesse tipo de pergunta. As perguntas</p><p>fechadas têm carga semântica e as respostas consistem apenas numa</p><p>confirmação ou não do que foi questionado. O segundo tipo, as perguntas</p><p>abertas, contêm marcadores interrogativos e as respostas devem estar</p><p>compatíveis com a circunstância expressa no marcador. Esses autores lembram</p><p>ainda que, ao se realizar um conjunto de perguntas simbolizando um todo, a</p><p>tendência é a elaboração de respostas truncadas, de respostas à última pergunta</p><p>ou numa ordem preferencial do interlocutor. Apresentaremos um fragmento de</p><p>uma entrevista que tinha por objetivo verificar como homens e mulheres</p><p>caracterizam a própria fala e a fala do outro:</p><p>Analisando o exemplo (10), podemos observar que as perguntas abertas são</p><p>introduzidas pelos pronomes como, o que, que, por que, alguma e o advérbio de</p><p>tempo quando, que tendem a orientar o discurso informante quanto à</p><p>autodescrição da fala. Das quatro ocorrências de perguntas fechadas, verificamos</p><p>que as duas primeiras têm uma função meramente interacional, pois parecem</p><p>desnecessárias do ponto de vista informacional, já que as respostas dadas às</p><p>perguntas abertas que as antecedem são claras e objetivas. A hipótese da função</p><p>interacional justifica-se, por um lado, pelo término do turno do entrevistado,</p><p>demonstrando que não deseja prolongar sua resposta e, por outro lado, pela</p><p>insegurança da entrevistadora em conduzir a interação, ao parafrasear as</p><p>respostas do informante.</p><p>5. É BOM FALAR SOBRE MARCADORES CONVERSACIONAIS, NÃO É?</p><p>Observando as conversações apresentadas neste capítulo, podemos perceber a</p><p>ocorrência de alguns recursos que são traços característicos da fala, como em</p><p>(7), por exemplo, em que a informante finaliza seus turnos com o emprego de</p><p>“não é?”, “entendeu?”, procurando interagir com sua interlocutora. Esta, por sua</p><p>vez, participa da conversação empregando expressões não lexicalizadas</p><p>(“uhrum”) e expressões estereotipadas sinalizadoras de convergência (“é exato”,</p><p>“sim”, “certo”). Esses recursos são chamados de marcadores conversacionais</p><p>(MC).</p><p>Como o texto oral é planejado e verbalizado ao mesmo tempo, os interlocutores</p><p>podem empregar MCs em qualquer ponto da interação, desempenhando funções</p><p>conversacionais e sintáticas. Os falantes podem inserir MCs no início, no meio</p><p>ou no fim de turnos ou de unidades comunicativas (UC). São denominadas de</p><p>unidades</p><p>comunicativas as porções informacionais, ou seja, os enunciados</p><p>conversacionais, que coincidem ou não com turnos, orações ou atos de fala.</p><p>Segundo Marcuschi (1989), “tal como a frase na escrita, a UC no texto oral é um</p><p>ponto de referência dos mais diversos fenômenos linguísticos”.²⁷</p><p>No exemplo (2), o falante H28, no turno 17, emprega dois MCs: “veja bem” no</p><p>início da UC — “veja bem... você acha assim o machismo do homem...” — e “tá</p><p>entendendo?” no final do seu turno, que também coincide com o término da UC</p><p>— “você acha assim o machismo do homem... mas você tem que analisar assim</p><p>a mulher pode ser machista pelo lado dela tá entendendo?”.</p><p>Com funções conversacionais, os MCs são produzidos pelos falantes (aqueles</p><p>que servem para dar tempo à organização do pensamento, sustentar o turno,</p><p>monitorar o ouvinte, corrigir-se, reorganizar e reorientar o discurso) e pelos</p><p>ouvintes (aqueles que são produzidos durante o turno do falante e que servem</p><p>para orientar o falante e monitorá-lo quanto à recepção, por meio de sinais de</p><p>convergência, como “sim”, “claro”, “mhm”, “ah sim”; de indagação, como</p><p>“será?”, “mesmo?”, “o quê?”, “é?”; e de divergência, como “duvido”, “não”,</p><p>“peraí”, “calma”).</p><p>Os interlocutores podem recorrer a marcadores conversacionais linguísticos</p><p>(verbais e prosódicos) e paralinguísticos (não verbais). Os MCs verbais,</p><p>conjunto de partículas, palavras, sintagmas, expressões estereotipadas e orações</p><p>ou ainda expressões não lexicadas (“ahã”, “uhrum”, “ué”) “não contribuem</p><p>propriamente com informações novas para o desenvolvimento do tópico, mas</p><p>situam-no no contexto geral, particular ou pessoal da conversação”.²⁸ Os MCs</p><p>prosódicos (chamados também de suprassegmentais), apesar de sua natureza</p><p>linguística, são de caráter não verbal (os contornos entonacionais, as pausas, o</p><p>tom de voz, o ritmo, a velocidade, os alongamentos de vogais etc.). Dentre eles</p><p>se destacam as pausas e o tom de voz como sendo os mais importantes para as</p><p>análises das conversações. Já os MCs paralinguísticos ou não verbais</p><p>estabelecem, mantêm e regulam a interação, por meio de risos, olhares, gestos,</p><p>meneios de cabeça.</p><p>Quanto às formas em que se apresentam os MCs linguísticos, eles podem ser</p><p>divididos em quatro grupos:</p><p>(i) MCs simples: realizam-se com um só item lexical (“mas”, “éh”, “olha”,</p><p>“exatamente”, “agora”, “aí”, “então” etc.);</p><p>(ii) MCs compostos: realizam-se como sintagmas, geralmente estereotipados</p><p>(“sim mas”, “bom mas aí”, “e então”, “tudo bem mas” etc.);</p><p>(iii) MCs oracionais: realizam-se como pequenas orações (“eu acho que”, “não</p><p>mas sabe”, “sim mas me diga”, “então eu acho que”, “porque eu acho que” etc.);</p><p>(iv) MCs prosódicos: realizam-se como recursos prosódicos (entonação, pausa,</p><p>hesitação, tom de voz) e geralmente acompanhados por algum MC verbal.</p><p>6. COMO SE CONSTRÓI A COMPREENSÃO NO TEXTO FALADO?</p><p>De acordo com Marcuschi (1998b), “admite-se, hoje, que a compreensão, na</p><p>interação verbal face a face, resulta de um projeto conjunto de interlocutores em</p><p>atividades colaborativas e coordenadas de coprodução de sentido e não de uma</p><p>simples interpretação semântica de enunciados proferidos”.² É importante</p><p>salientar que colaboração não implica consenso ou concordância, mas apenas a</p><p>realização de ações coordenadas.³ Quando dois ou mais indivíduos participam</p><p>de uma conversação, eles estão coordenando conteúdos e ações, ou seja, os</p><p>interlocutores fazem um esforço mútuo para construir sentido, isto é, para</p><p>construir um texto coerente. O sucesso de uma interação face a face está,</p><p>portanto, atrelado ao processo interacional estabelecido entre os participantes,</p><p>uma vez que esses se envolvem e refletem esse envolvimento num esforço</p><p>coletivo, buscando a construção de sentidos. O exemplo (2) exemplifica</p><p>claramente a distinção entre colaboração e concordância. Os três interlocutores</p><p>realizam ações colaborativas durante toda a interação, ou seja, todos estão</p><p>engajados no processo interacional. No entanto, percebe-se que não há uma</p><p>concordância entre eles: se há um consenso entre M33 e H28, quanto ao fato de</p><p>considerarem M34 uma dominadora, uma feminista machista, não há consenso</p><p>entre eles (M33 e H28) e M34, que não concorda com as características que lhe</p><p>são atribuídas.</p><p>Marcuschi (1998b) alerta o analista de interações verbais face a face para o fato</p><p>de que “não lhe cabe apenas identificar e admitir que há compreensão. Ele deve</p><p>dar conta da seguinte questão: como é que os participantes de uma interação</p><p>resolvem suas estratégias e processos de compreensão de forma tão</p><p>competente?”.³¹ O próprio autor apresenta algumas atividades de compreensão</p><p>na interação verbal, a partir da análise de materiais do corpus do NURC-SP.</p><p>Dentre as atividades propostas, serão destacadas, neste artigo: a) a negociação;</p><p>b) a construção de um foco comum; c) a demonstração de (des)interesse e (não</p><p>)partilhamento; d) a existência e diversidade de expectativas e as marcas de</p><p>atenção.</p><p>6.1. Estratégia 1: negociação</p><p>A negociação é “aspecto central para a produção de sentido na interação verbal</p><p>enquanto projeto conjunto”.³² No exemplo (11), citado a seguir, nas linhas 121 a</p><p>128, a troca do fonema /p/ pelo /t/ provocou um estranhamento quanto ao nome</p><p>do veículo — uma Pampa —, já que havia sido entendido por M06 como</p><p>“tampa”. O riso (linhas 127 e 130) é resultado da inadequação terminológica,</p><p>pois o nome de um objeto (tampa), associado a um meio de transporte não</p><p>parece ser coerente para M06. M06 procura checar a sua compreensão do termo</p><p>e M22 colabora repetindo o nome do carro, enfatizando a sílaba que desfaz o</p><p>equívoco (PAMpa).</p><p>Marcuschi (1998b) ainda nos chama a atenção para o fato de que “nem tudo é</p><p>negociável. Por exemplo, não negociamos crenças nem convicções, o que tem</p><p>consequências por vezes relevantes na continuidade de um tópico e pode ditar</p><p>sua ‘morte’”.³³ O exemplo (12), fragmento de uma interação longa, na qual H05</p><p>apresentava as linhas divisórias do lote de terra da sua família, demonstra que a</p><p>atitude encontrada por H05 foi abortar o tópico, mediante a não compreensão de</p><p>P01 sobre as áreas limítrofes. H05 discorda severamente da conclusão (linhas</p><p>638-639) a que P01 havia chegado. P01 percebe que seu interlocutor ficou</p><p>ofendido e brinca com seu erro (linha 640). Tenta voltar à questão (linha 642),</p><p>mas H05 muda de tópico, encerrando o assunto (linha 643). P01 reconhece que</p><p>não há condições de consenso e aceita construir um novo tópico (linha 644).</p><p>6.2. Estratégia 2: construção de um foco comum</p><p>Uma outra atividade de compreensão na interação verbal diz respeito à</p><p>construção de um foco comum. Como argumenta Marcuschi, “numa interação</p><p>face a face, a base do sucesso das trocas é a presença de interesses comuns e</p><p>referentes partilhados, previamente existentes ou construídos no processo de</p><p>interação”.³⁴ Nos exemplos (7), (8), (9) e (10), que contêm trechos de entrevistas,</p><p>pode-se observar que, em (7) e (8), entrevistador e entrevistado entram em</p><p>sintonia na configuração de um foco comum, pois os tópicos sugeridos são</p><p>desenvolvidos pelos entrevistados com interesse e atenção. Já em (9) e (10),</p><p>percebe-se que os entrevistadores têm um esforço maior para conduzir as</p><p>interações, pois as respostas dos entrevistados, apesar de se manterem no tópico</p><p>focalizado, são mais sucintas e não revelam interesse em informar além do</p><p>mínimo solicitado nas perguntas.</p><p>A construção desta sintonia referencial³⁵ nem sempre é possível, exigindo de um</p><p>dos interlocutores um árduo trabalho. No exemplo (12), é possível observar o</p><p>esforço de ambos os interlocutores, buscando construírem o mapa das terras de</p><p>H05. Apesar de os interlocutores terem interesses comuns (a construção do mapa</p><p>das terras de H05) e de P01, durante a interação, demonstrar concordância ou</p><p>procurar checar suas dúvidas quanto às informações dadas por H05, não foram</p><p>construídos referentes partilhados no processo da interação, pois a pergunta</p><p>“então eu posso dizê que a linha é esse caminho? [não?” (linha 637) revela a</p><p>falta de sintonia referencial.</p><p>6.3. Estratégia 3: demonstração</p><p>de (des)interesse e (não-)partilhamento</p><p>A terceira atividade de compreensão apresentada por Marcuschi (1998b) é a</p><p>demonstração de (des)interesse e (não-)partilhamento. No exemplo (5), verifica-</p><p>se que o não-partilhamento das informações vai se desfazendo na medida em que</p><p>a interação progride. No exemplo (10), o informante afirma que se fiscaliza mais</p><p>ao falar quando está na companhia da documentadora. Em seguida, ela pergunta</p><p>o porquê dessa fiscalização e ao mesmo tempo propõe uma razão: serem</p><p>professoras de língua portuguesa. O argumento proposto é aceito imediatamente</p><p>por seu interlocutor (linha 22). Há entre os interlocutores interesses comuns e</p><p>conhecimento partilhado. Nem sempre os interlocutores possuem os mesmos</p><p>conhecimentos ou possuem os mesmos interesses sobre os tópicos. Para ilustrar</p><p>esta afirmação, será apresentado a seguir um trecho analisado por Marcuschi</p><p>(1998b), que exemplifica uma situação típica de desinteresse pelo tópico em</p><p>andamento.</p><p>³</p><p>Pode ser constatada, neste exemplo (13), a construção de uma relação de não</p><p>colaboração tópica. Os interlocutores discorrem em faixas diferentes (L1 na</p><p>faixa séria e L2 na faixa não séria). L2 toma no sentido literal a analogia que L1</p><p>propõe: “boy barato”-“rei do oeste” e provoca em L1 uma reação de desagrado</p><p>(linha 675, “não tem oeste aqui”). A resposta de L2 revela que ele estava</p><p>entendendo, apenas não tinha interesse no assunto. Marcuschi (1998b) salienta</p><p>que “trocas deste tipo são utilizadas intencionalmente para produzir humor ou</p><p>então construir piadas ou chistes, pois mostram interlocutores jogando em</p><p>campos diversos, sem sintonia cognitiva”.³⁷</p><p>6.4. Estratégia 4: existência e diversidade de expectativas</p><p>Um encontro entre pelo menos dois interlocutores gera expectativas muito</p><p>diversificadas, as quais estão intimamente relacionadas ao contexto, às</p><p>condições em que o encontro ocorre, ao conhecimento partilhado, às diferentes</p><p>perspectivas que os interlocutores possuem. Em situações interativas, os</p><p>interlocutores sempre têm expectativas prévias (às vezes, chegamos até a ensaiar</p><p>o que vamos dizer, como vamos dizer, simulamos a resposta do nosso</p><p>interlocutor; e quase sempre esses ensaios não servem para nada no momento</p><p>real da interação). Por ter expectativas prévias, o falante sempre procura</p><p>estratégias para fazer com que elas ocorram, bem como fica atento à reação do</p><p>seu interlocutor. A interação é, pois, um “jogo com regras dinamicamente</p><p>escolhidas, por isso é um jogo perigoso: nem sempre se escolhe a regra certa”.³⁸</p><p>Nos fragmentos de entrevistas dos exemplos (8) e (10), verificamos que, em (8),</p><p>documentador e informante parecem ter selecionado bem as regras do jogo, já</p><p>que a informante constrói o seu turno enumerando as partes da carne que ela</p><p>mais gosta de ter em casa, assinalando no turno aquela de que mais gosta. Já no</p><p>exemplo (10), o informante deixa transparecer um certo espanto com a pergunta</p><p>da documentadora, através do emprego de uma interjeição, seguida de uma</p><p>pausa e um riso nervoso (linha 02: “eita... ((ri demonstrando nervosismo )))”.</p><p>6.5. Estratégia 5: marcas de atenção</p><p>Durante a construção de uma conversação, são de importância fundamental os</p><p>sinais enviados pelos interlocutores, pois dependendo desta sinalização é</p><p>possível avaliar se está havendo uma boa sincronia ou uma má sincronia entre os</p><p>interlocutores. A boa sincronia revela maior atenção pelo tópico em andamento e</p><p>a má sincronia revela problemas no processo interacional, que vão desde a não</p><p>aceitação do tópico até a não compreensão do mesmo. O uso de marcadores</p><p>conversacionais, o uso de alguns traços prosódicos (entonação, mudança de</p><p>altura de som, alongamentos de vogais etc.), a realização de alguns gestos, de</p><p>expressões faciais e de risos são marcas que informam ao falante sobre a</p><p>compreensão do que está sendo dito e sobre o envolvimento dos seus</p><p>interlocutores na interação. Observando alguns exemplos analisados previamente</p><p>neste artigo, verificamos as marcas de sintonia entre os interlocutores, como o</p><p>uso de marcadores conversacionais, nos exemplos (5) e (7), de alongamentos nos</p><p>exemplos (10) e (12), e de gestos no exemplo (5). Apesar do caráter sucinto</p><p>dessas análises, é possível afirmar que muito do que se compreende numa</p><p>interação social resulta da relação construída entre os interlocutores e da</p><p>contextualização da própria interação. Não se quer com isso descartar a</p><p>importância da linguagem verbal, mas apenas salientar (i) que ao falarmos não</p><p>nos utilizamos apenas de uma diversidade de linguagens, mas colocamos em</p><p>conexão indivíduos, linguagens, cultura e sociedade e que (ii) gestos, expressões</p><p>faciais e tons de voz são, muitas vezes, mais informativos do que construções</p><p>linguísticas, visto que a “gramática é um veículo pobre para exprimir os sutis</p><p>padrões de emoção”.³</p><p>7. E PARA ENCERRAR A CONVERSA...</p><p>No Brasil, a Análise da Conversação consiste numa linha de pesquisa que vem</p><p>sendo praticada sistematicamente e conta com uma produção editorial que</p><p>abrange transcrições de materiais do corpus do Projeto de Estudo da Norma</p><p>Linguística Urbana Culta (NURC); análises de textos orais realizadas por</p><p>pesquisadores brasileiros sobre diversos temas da AC; gramáticas de consulta</p><p>referentes ao português falado, utilizando o corpus dos NURCs; além de</p><p>dissertações e teses apresentadas nos programas de pós-graduação das</p><p>universidades brasileiras. Após a bibliografia, o leitor poderá encontrar</p><p>enumeradas as publicações referentes às transcrições de textos orais do corpus</p><p>do NURC e aos volumes referentes à gramática do português falado. Uma outra</p><p>conversa que poderá ser iniciada a partir de agora será entre você leitor e as</p><p>referências bibliográficas que foram aqui apresentadas. Certamente, muitos</p><p>assuntos virão à tona!</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BRAIT, B. O processo interacional. In: PRETI, D. (Org.). Análise de textos</p><p>orais. São Paulo: FFLCH/USP, 1995. p. 189-214.</p><p>______. Imagens da norma culta, interação e constituição do texto oral. In:</p><p>PRETI, D. (Org.). O discurso oral culto. São Paulo: FFLCH/USP, 1997. p. 45-</p><p>62.</p><p>CASTILHO, A. T. (Org.). Português culto falado no Brasil. Campinas: Editora</p><p>da Unicamp, 1989.</p><p>CHAFE. W. Linguistic differences produced by differences between speaking</p><p>and writing. In: OLSON, D.; TORRANCE, N.; HILDYARD, A. (Eds.). Literacy</p><p>language and learning: the nature and consequences of reading and writing.</p><p>Cambridge: Cambridge University Press, 1985. p. 5-123.</p><p>CLARK, Herbert H. Using Language. Cambridge: Cambridge University Press.</p><p>1996.</p><p>______. A língua falada no ensino de português. São Paulo: Contexto, 1998.</p><p>DIONÍSIO, A. P. A interação em narrativas orais. Dissertação (Mestrado) —</p><p>UFPE, 1992.</p><p>______. A postura interacional do narrador. Trabalhos em linguística aplicada,</p><p>Campinas, n. 23, p. 11-28, 1994.</p><p>______. A narrativa conversacional em sala de aula. Anais do I Encontro</p><p>Nacional sobre Língua Falada e o Ensino. Maceió, UFAL, 1995, p. 292-297.</p><p>______. Imagens na oralidade. Tese (Doutorado) — UFPE, 1998.</p><p>DIONÍSIO, A.; HOFFNAGEL, J. Recursos paralinguísticos e suprassegmentais</p><p>nas narrativas conversacionais. In: MAGALHÃES, M. I. (Org.). As múltiplas</p><p>faces da linguagem. Brasília: Editora da UnB, 1996. p. 503-514.</p><p>EGGINS, S.; SLADE, D. Analysing casual conversation. London: Cassell, 1997.</p><p>FÁVERO, L. L. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 1992.</p><p>GALEMBECK, P. et al. O turno conversacional. In: PRETI, D.; URBANO, H. A</p><p>linguagem falada culta na cidade de São Paulo. São Paulo: T. A.</p><p>Queiroz/Fapesp, v. IV, p. 59-98, 1997.</p><p>HILGERT, J. G. A paráfrase: um procedimento de constituição do diálogo. Tese</p><p>(Doutorado) — PUC-SP, 1989.</p><p>JEFFERSON, G. Sequencial aspects of storytelling in conversation. In:</p><p>SCHEENKEIN, J. (Ed.). Studies in the organization of interaction. New York:</p><p>Academic, 1978. p. 219-248.</p><p>JUBRAN, C. C. A. S. Para uma descrição textual-interativa das funções das</p><p>parentização. In: KATO, M. (Org.). Gramática do português falado. Campinas:</p><p>Editora da Unicamp/Fapesp, v. V, p. 339-354, 1996.</p><p>JUBRAN, C. C. A. S. et al. Organização</p><p>tópica da conversação. In: ILARI, R.</p><p>(Org.). Gramática do português falado: níveis de análise linguística. Campinas:</p><p>Editora da Unicamp, v. II, 1992.</p><p>KATO, M. (Org.). Gramática do português falado. Campinas: Editora da</p><p>Unicamp/Fapesp, v. V, 1996.</p><p>KELLER, M. C.; KELLER, J. D. Imaging in iron, or thought is not inner speech.</p><p>In: GUMPERZ, J.; LEVINSON, S. (Eds.). Rethinking linguistic relativity.</p><p>Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 115-129.</p><p>KOCH, I. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1992.</p><p>______. Cognição e processamento textual. Revista da ANPOLL, n. 2, p. 35-44,</p><p>1996.</p><p>______. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.</p><p>KOCH, I.; BARROS, K. (Orgs.). Tópicos em linguística de texto e análise da</p><p>conversação. Natal: EDUFRN, 1997.</p><p>MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986.</p><p>______. Marcadores conversacionais no português brasileiro: formas, posições e</p><p>funções. In: CASTILHO, A. T. (Org.). Português culto falado no Brasil.</p><p>Campinas: Editora da Unicamp, 1989. p. 281-321.</p><p>______. Sistema mínimo de notações reelaborado para as transcrições do projeto</p><p>sobre a hesitação na língua falada. Recife, 1993. (Mimeo.)</p><p>______. Oralidade e escrita. Conferência pronunciada no II Colóquio Franco-</p><p>Brasileiro sobre Educação. Natal, UFRN, 26-28 de junho de 1995.</p><p>______. Citação de fala na interação verbal como fala idealizada. Actas del I</p><p>Coloquio Latinoamericano de Analistas del Discurso. Caracas, Universidad</p><p>Central de Venezuela, 1997, p. 187-202.</p><p>______. Perspectivas dos estudos em interação social na Linguística brasileira</p><p>dos anos 90. Recife, 1998a. (Mimeo.)</p><p>______. Atividades de compreensão na interação verbal. In: PRETI, D. (Org.).</p><p>Variações e confrontos. São Paulo: FFLCH/USP, 1998b. p. 15-45.</p><p>MILANEZ. W. Pedagogia do oral: condições e perspectivas para sua aplicação</p><p>no português. Campinas: Sama, 1993.</p><p>OCHS, E. Narrative. In: DIJK, T. van (Ed.). Discourse as structure and process.</p><p>Discourse Studies. a multidisciplinary introduction. London: Sage, v. 1, p. 185-</p><p>207, 1997.</p><p>POLANYI, L. Conversational storytelling. In: DIJK, T. van (Ed.). Handbook of</p><p>discourse analysis. London: Academic Press, v. 3, p. 183-201, 1985.</p><p>PRETI, D. (Org.). Análise de textos orais. São Paulo: FFLCH/USP, 1993.</p><p>______ (Org.). O discurso oral culto. São Paulo: FFLCH/USP, 1997.</p><p>______ (Org.). Variações e confrontos. São Paulo: FFLCH/USP, 1998.</p><p>SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON. A simplest systematics for the</p><p>organization of turn-taking for conversation. Language, 50, p. 696-735, 1974.</p><p>SCHIFFRIN, D. Discourse markers. Cambridge: Cambridge University Press,</p><p>1987.</p><p>STEINBERG, M. Os elementos não verbais da conversação. São Paulo: Atual,</p><p>1988.</p><p>TANNEN, D. Relative focus on involvement in oral and written discourse. In:</p><p>OLSON, D., TORRANCE, N.; HILDARD, A. (Eds.). Literacy, language, and</p><p>learning: the nature and consequences of reading and writing. Cambridge:</p><p>Cambridge University Press, 1985.</p><p>______. Talking voices: repetiton, dialogue, and imagery in conversational</p><p>discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.</p><p>URBANO, H. et. al. Perguntas e respostas na conversação. In: CASTILHO, A.</p><p>T. (Org.). Gramática do português falado. As abordagens. Campinas: Ed.</p><p>Unicamp/Fapesp, v. III, p. 75-97, 1993.</p><p>PUBLICAÇÕES DE TRANSCRIÇÕES DE TEXTOS ORAIS</p><p>A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. Elocuções formais.</p><p>CASTILHO, A.; PRETI, D. (Orgs.). São Paulo: T. A. Queiroz/Fapesp, v. I, 1987.</p><p>A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. Diálogos entre dois</p><p>informantes. CASTILHO, A.; PRETI, D. (Orgs.). São Paulo: T. A.</p><p>Queiroz/Fapesp, v. II, 1988.</p><p>A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. Entrevistas. PRETI, D.;</p><p>URBANO, H. (Orgs.). São Paulo: T. A. Queiroz/Fapesp, v. III, 1988.</p><p>A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro. Elocuções formais.</p><p>CALLOU, D. (Org.). Rio de Janeiro: UFRJ/FJB, v. I, 1992.</p><p>A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro. Diálogos entre</p><p>informante e documentador. CALLOU, D.; LOPES, C. R. (Orgs.). Rio de</p><p>Janeiro: UFRJ/Capes, v. II, 1993.</p><p>A linguagem falada culta na cidade do Rio de Janeiro. Diálogos entre</p><p>informante e documentador. CALLOU, D.; LOPES, C. R. (Orgs.). Rio de</p><p>Janeiro: UFRJ/Capes, v. III, 1994.</p><p>A linguagem falada culta na cidade de Salvador. Diálogos entre informante e</p><p>documentador. MOTA, J.; ROLLEMBERG, V. (Orgs.). Salvador: Instituto de</p><p>Letras da UFBa, v. I, 1994.</p><p>A linguagem falada culta na cidade de Recife. Diálogos entre informante e</p><p>documentador. SÁ, M. P. M. de; CUNHA, D. C. da; LIMA, A. M.; OLIVEIRA</p><p>JR., M. (Orgs.). Recife: Universitária, v. I, 1996.</p><p>A linguagem falada culta na cidade de Porto Alegre. Diálogos entre informante</p><p>e documentador. HILGERT, J. G. (Org.). Passo Fundo/Porto Alegre:</p><p>Ediupf/Universitária/UFRGS, v. I, 1997.</p><p>PUBLICAÇÕES DE GRAMÁTICAS DO PORTUGUÊS FALADO</p><p>Gramática do português falado. A ordem. CASTILHO, A. T. (Org.). Campinas:</p><p>Unicamp/Fapesp, v. I, 1990.</p><p>Gramática do português falado. Níveis de análises linguísticas. ILARI, R.</p><p>(Org.). Campinas: Unicamp/Fapesp, v. II, 1992.</p><p>Gramática do português falado. As abordagens. CASTILHO, A. T. (Org.).</p><p>Campinas: Unicamp/Fapesp, v. III, 1993.</p><p>Gramática do português falado. Estudos descritivos. CASTILHO, M. (Org.).</p><p>Campinas: Unicamp/Fapesp, v. IV, 1996.</p><p>Gramática do português falado. Convergências. KATO, M. (Org.). Campinas:</p><p>Unicamp/Fapesp, v. V, 1996.</p><p>Gramática do português falado. KOCH, I. (Org.). Campinas: Unicamp/Fapesp,</p><p>v. VI, 1996.</p><p>1. Marcuschi, L. A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986, p. 14.</p><p>2. Marcuschi, L. A. Perspectivas dos estudos em interação social na Linguística</p><p>brasileira dos anos 90. Recife, 1998a, p. 7. (Mimeografado.)</p><p>3. Ibidem, p. 6.</p><p>4. A Etnometodologia “tem como objeto de estudo (a) as atividades práticas do</p><p>cotidiano, o que implica (b) o caráter empírico desse estudo, além disso, supõe</p><p>(c) um princípio de organização na realização dessas atividades pelos membros</p><p>do grupo social”. Hilgert, J. G. A paráfrase: um procedimento de constituição do</p><p>diálogo. Tese de doutorado. PUC-SP, 1989, p. 80.</p><p>5. A análise desses níveis se encontra diluída no desenrolar deste capítulo. Em</p><p>função disso, faremos agora apenas uma apresentação mais geral.</p><p>6. Ver o conceito de atos de fala no capítulo “Pragmática”, neste mesmo volume.</p><p>7. Hilgert, J. G., A paráfrase, op. cit.</p><p>8. Marcuschi, L. A. Análise da conversação, op. cit., p. 5.</p><p>9. Marcuschi, L. A. Perspectivas dos estudos em interação social na Linguística</p><p>brasileira dos anos 90, op. cit., p. 6.</p><p>10. Uma das dificuldades encontradas pelos analistas da conversação se refere à</p><p>definição do termo tópico discursivo, tendo em vista o “caráter vago e amplo do</p><p>significado de assunto, e do consequente grau de subjetividade que preside a</p><p>própria compreensão dessa noção”; (...) e o “fato de que a associação de assunto</p><p>e tema torna a explicação circular, na medida em que o conceito de tema carece,</p><p>igualmente, de uma definição precisa” (Jubran, C. C. A. S. et al. Organização</p><p>tópica da conversação. In: Ilari, R. (org.). Gramática do português falado.</p><p>Campinas: Editora da Unicamp, 1992, p. 360-361.)</p><p>11. Koch, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto,</p><p>1997, p. 116.</p><p>12. Marcuschi, L. A. Perspectivas dos estudos em interação social na Linguística</p><p>brasileira dos anos 90, op. cit., p. 14.</p><p>13. Ibidem.</p><p>14. Koch, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos, op. cit., p. 116.</p><p>15. Koch, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos, op. cit., p. 63.</p><p>16. Marcuschi, L. A. Oralidade e escrita. Conferência pronunciada durante II</p><p>Colóquio Franco-Brasileiro sobre Linguagem e Educação. Natal, UFRN, 26-28</p><p>de junho de 1995, p. 14.</p><p>17. Hilgert, J. G. A paráfrase, op. cit., p. 90.</p><p>18. Marcuschi, L. A. Análise da conversação, op. cit, p. 9.</p><p>19. Steinberg, M. Os elementos não verbais da conversação. São Paulo: Atual,</p><p>1988, p. 3.</p><p>20. Ibidem, p. 5.</p><p>21. Ibidem, p. 16.</p><p>22. Marcuschi, L. A. Análise da conversação, op. cit., p. 89.</p><p>23. Galembeck,</p><p>P. et al. O turno conversacional. In: Preti, D.; Urbano, H. A</p><p>linguagem falada culta na cidade de São Paulo. São Paulo: T. A .</p><p>Queiroz/Fapesp, 1997, v. IV, p. 75. (Título original, 1990.)</p><p>24. Ibidem, p. 78.</p><p>25. Sacks, Schegloff eJefferson (1974) elaboraram um modelo sobre o sistema</p><p>de organização da conversação com base na tomada de turno.</p><p>26. Marcuschi, L. A. Análise da conversação, op. cit., p. 37.</p><p>27. Marcuschi, L. A. Marcadores conversacionais no português brasileiro:</p><p>formas, posições e funções. In: Castilho, A. T. (org.) Português culto falado no</p><p>Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1989, p. 288.</p><p>28. Marcuschi, L. A. Análise da conversação, op. cit., p. 62.</p><p>29. Marcuschi, L. A. Atividades de compreensão na interação verbal. In: Preti,</p><p>D. (org.) Variações e confrontos. São Paulo, FFLCH/USP, 1998b, p. 15.</p><p>30. Ibidem, p. 21.</p><p>31. Ibidem, p. 19.</p><p>32. Ibidem, p. 19.</p><p>33. Ibidem, p. 19.</p><p>34. Ibidem, p. 21.</p><p>35. “Sintonia referencial” é um termo empregado por Marcuschi (1998b).</p><p>36. Marcuschi, L. A. Atividades de compreensão na interação verbal, op. cit., p.</p><p>25-26.</p><p>37. Ibidem, p. 26.</p><p>38. Ibidem, p. 30.</p><p>39. Keller, M. C.; Keller, J. D. Imaging in iron, or thought is not inner speech.</p><p>In: Gumperz, J.; Levinson, S. (Eds.). Rethinking linguistic relativity. Cambridge:</p><p>Cambridge University Press, 1996, p. 118.</p><p>4</p><p>ANÁLISE DO DISCURSO¹</p><p>Fernanda Mussalim</p><p>1. A GÊNESE DA DISCIPLINA</p><p>1.1. Estruturalismo, marxismo e psicanálise: um terreno fecundo</p><p>Falar em Análise do Discurso pode significar, num primeiro momento, algo vago</p><p>e amplo, já que toda produção de linguagem pode ser considerada “discurso”.</p><p>No entanto, a Análise do Discurso de que vamos falar neste capítulo trata-se de</p><p>uma disciplina que teve sua origem na França na década de 1960.</p><p>Para entender a gênese dessa disciplina é preciso compreender as condições que</p><p>propiciaram a sua emergência. Maldidier (1994) descreve a fundação da Análise</p><p>do Discurso através das figuras de Jean Dubois e Michel Pêcheux. Dubois, um</p><p>linguista, lexicólogo envolvido com os empreendimentos da Linguística de sua</p><p>época; Pêcheux, um filósofo envolvido com os debates em torno do marxismo,</p><p>da psicanálise, da epistemologia. O que há de comum no trabalho desses dois</p><p>pesquisadores com preocupações distintas é que ambos são tomados pelo espaço</p><p>do marxismo e da política, partilhando convicções sobre a luta de classes, a</p><p>história e o movimento social.</p><p>É, pois, sob o horizonte comum do marxismo e de um momento de crescimento</p><p>da Linguística — que se encontra em franco desenvolvimento e ocupa o lugar de</p><p>ciência piloto — que nasce o projeto da Análise do Discurso (doravante AD). O</p><p>projeto da AD se inscreve num objetivo político, e a Linguística oferece meios</p><p>para abordar a política. Vamos compreender de que maneira.</p><p>Na conjuntura estruturalista, a autonomia relativa da língua é unanimemente</p><p>reconhecida. Isso porque, devido ao recorte que as teorias estruturalistas da</p><p>linguagem fazem de seu objeto de estudo — a língua —, torna-se possível</p><p>estudá-la a partir de regularidades e, portanto, apreendê-la na sua totalidade</p><p>(pelo menos é nisso que crê o estruturalismo), já que as influências externas,</p><p>geradoras de irregularidades, não afetam o sistema por não serem consideradas</p><p>como parte da estrutura. A língua não é apreendida na sua relação com o mundo,</p><p>mas na estrutura interna de um sistema autônomo. Daí “estruturalismo”: é no</p><p>interior do sistema que se define, que se estrutura o objeto, e é este objeto assim</p><p>definido que interessa a esta concepção de ciência em vigor na época.</p><p>Um exemplo. O estruturalismo de vertente saussureana² define as estruturas da</p><p>língua em função da relação que elas estabelecem entre si no interior de um</p><p>mesmo sistema linguístico. Essa relação é sempre binária — ou seja, os</p><p>elementos do sistema são sempre tomados dois a dois — e se organiza a partir do</p><p>critério diferencial, que determina que todos os elementos do sistema se definem</p><p>negativamente. Tomando como pares os fonemas [p] e [b], para citar um</p><p>exemplo no nível fonológico, pode-se dizer que, quanto ao traço de sonoridade,</p><p>[p] se define com relação a [b] por ser [-vozeado], ou seja, [b] é um fonema</p><p>vozeado enquanto [p] é desvozeado. Por sua vez, tomando como pares os</p><p>fonemas [p] e [t], quanto ao lugar de articulação, pode-se dizer que [p] se define</p><p>como [-dental]³ em relação a [t]. Nessa mesma vertente, o significado também é</p><p>definido a partir de uma relação de diferenças no interior do sistema.⁴ Por</p><p>exemplo, o signo linguístico “homem” se define em relação ao signo linguístico</p><p>“mulher”, do ponto de vista dos traços semânticos, por ser [-feminino]; por sua</p><p>vez, com relação ao signo linguístico “cachorro”, o signo “homem” se define por</p><p>ser [-quadrúpede], e assim por diante.</p><p>A Linguística, assim, acaba por se impor, com relação às ciências humanas,</p><p>como uma área que confere cientificidade aos estudos, já que esses deveriam</p><p>passar por suas leis (é nesse sentido que ela se torna uma ciência piloto), em vez</p><p>de agarrarem-se diretamente a instâncias socioeconômicas.⁵ É nesse horizonte</p><p>que se inscreve, por exemplo, o projeto do filósofo Althusser, como afirma</p><p>Maingueneau (1990): “a linguística caucionava tacitamente a linha de horizonte</p><p>do estruturalismo na qual se inscreve o procedimento althusseriano”.</p><p>Em Ideologia e aparelhos ideológicos do estado (1970/1974), Althusser, fazendo</p><p>uma releitura de Marx, distingue uma “teoria das ideologias particulares”, que</p><p>exprimem posições de classes, de uma “teoria da ideologia em geral”, que</p><p>permitiria evidenciar o mecanismo responsável pela reprodução das relações de</p><p>produção, comum a todas as ideologias particulares. É nesse último aspecto que</p><p>reside o interesse do autor.</p><p>Ao propor-se a investigar o que determina as condições de reprodução social,</p><p>Althusser parte do pressuposto de que as ideologias têm existência material, ou</p><p>seja, devem ser estudadas não como ideias, mas como um conjunto de práticas</p><p>materiais que reproduzem as relações de produção. Trata-se do materialismo</p><p>histórico, que dá ênfase à materialidade da existência, rompendo com a</p><p>pretensão idealista da ciência de dominar o objeto de estudo, controlando-o a</p><p>partir de um procedimento administrativo aplicável a um determinado universo,</p><p>como se a sua existência se desse no nível das ideias. Para o materialismo, “o</p><p>objeto real (tanto no domínio das ciências da natureza como no da história)</p><p>existe independentemente do fato de que ele seja conhecido ou não, isto é,</p><p>independentemente da produção ou não produção do objeto do conhecimento</p><p>que lhe corresponde”.⁷</p><p>Um exemplo: no modelo econômico do capitalismo (considerando aqui a</p><p>concepção clássica de capitalismo, tal como ele foi compreendido pelas teorias</p><p>marxistas), as relações de produção implicam divisão de trabalho entre aqueles</p><p>que são donos do capital e aqueles que vendem a mão de obra. Esse modo de</p><p>produção é a base econômica da sociedade capitalista. Na metáfora marxista do</p><p>edifício social, a base econômica é chamada de infraestrutura, e as instâncias</p><p>político-jurídicas e ideológicas são denominadas superestrutura. Valendo-se</p><p>dessa metáfora, Althusser levanta a necessidade de se considerar que a</p><p>infraestrutura determina a superestrutura (materialismo histórico), ou seja, que a</p><p>base econômica é que determina o funcionamento das instâncias político-</p><p>jurídicas e ideológicas de uma sociedade. A ideologia — parte da superestrutura</p><p>do edifício —, portanto, só pode ser concebida como uma reprodução do modo</p><p>de produção, uma vez que é por ele determinada. Ao mesmo tempo, por uma</p><p>“ação de retorno” da superestrutura sobre a infraestrutura, a ideologia acaba por</p><p>perpetuar a base econômica que a sustenta. Nesse sentido é que se pode</p><p>reconhecer a base estruturalista da teoria de Althusser, na medida em que a</p><p>infraestrutura determina a superestrutura e é ao mesmo tempo perpetuada por</p><p>ela, como um sistema cuja circularidade faz com que seu funcionamento recaia</p><p>sobre si mesmo.</p><p>Como modo de apreensão do funcionamento da ideologia, o conceito de</p><p>aparelhos</p><p>ideológicos de Althusser é bastante esclarecedor. Retomando a teoria</p><p>marxista de Estado, o autor afirma que o que tradicionalmente se chama de</p><p>Estado é um aparelho repressivo do Estado (ARE), que funciona “pela</p><p>violência” e cuja ação é complementada por instituições — a escola, a religião,</p><p>por exemplo —, que funcionam “pela ideologia” e são denominadas aparelhos</p><p>ideológicos de Estado (AIE). Pela maneira como se estruturam e agem esses</p><p>aparelhos ideológicos — por meio de suas práticas e de seus discursos — é que</p><p>se pode depreender como funciona a ideologia (trata-se sempre, para Althusser,</p><p>do funcionamento da ideologia dominante, pois mesmo que as ideologias</p><p>apresentadas pelos AIE sejam contraditórias, tal contradição se inscreve no</p><p>domínio da ideologia dominante).</p><p>A Linguística, então, aparece como um horizonte para o projeto althusseriano da</p><p>seguinte maneira: como a ideologia deve ser estudada em sua materialidade, a</p><p>linguagem se apresenta como o lugar privilegiado em que a ideologia se</p><p>materializa. A linguagem se coloca para Althusser como uma via por meio da</p><p>qual se pode depreender o funcionamento da ideologia.</p><p>Poderemos agora melhor compreender a afirmação de Maingueneau (1990)</p><p>anteriormente citada — “a linguística caucionava tacitamente a linha de</p><p>horizonte do estruturalismo na qual se inscreve o procedimento althusseriano”</p><p>— e entender também por que é que, como já foi dito, presidem o nascimento da</p><p>AD o marxismo e a Linguística. O projeto althusseriano, inserido em uma</p><p>tradição marxista que buscava apreender o funcionamento da ideologia a partir</p><p>de sua materialidade, ou seja, por meio das práticas e dos discursos dos AIE, via</p><p>com bons olhos uma Linguística fundamentada sobre bases estruturalistas. Mas</p><p>uma Linguística saussureana, uma Linguística da língua, não seria suficiente; só</p><p>uma teoria do discurso, concebido como o lugar teórico para o qual convergem</p><p>componentes linguísticos e socioideológicos, poderia acolher esse projeto.</p><p>É neste contexto que nasce o projeto da AD. Michel Pêcheux, apoiado numa</p><p>formação filosófica, desenvolve um questionamento crítico sobre a Linguística</p><p>e, diferentemente de Dubois, não pensa a instituição da AD como um progresso</p><p>natural permitido pela Linguística, ou seja, não concebe que o estudo do discurso</p><p>seja uma passagem natural da Lexicologia (estudo das palavras) para a Análise</p><p>do Discurso. A instituição da AD, para Pêcheux, exige uma ruptura</p><p>epistemológica, que coloca o estudo do discurso num outro terreno em que</p><p>intervêm questões teóricas relativas à ideologia e ao sujeito. Assim é que, como</p><p>afirma Maldidier (1994), o objeto discurso de que se ocupa Pêcheux em seu</p><p>empreendimento “não é uma simples ‘superação da Linguística saussuriana’”.⁸</p><p>A Linguística saussureana, fundada sobre a dicotomia língua/fala — a primeira</p><p>concebida como sistêmica, por isso objetivamente apreendida; a segunda, não</p><p>objetivamente apreendida por variar de acordo com os diversos falantes, que</p><p>selecionam parte do sistema da língua para seu uso concreto em determinadas</p><p>situações de comunicação —, permitiu a constituição da Fonologia, da</p><p>Morfologia e da Sintaxe, mas não foi, segundo Pêcheux (1975/1988), suficiente</p><p>para permitir a constituição da Semântica, lugar de contradições da Linguística.</p><p>Para ele, o sentido, objeto da Semântica, escapa às abordagens de uma</p><p>Linguística da língua.¹ A teoria do valor de Saussure (1916/1974), segundo a</p><p>qual os signos se definem negativamente, subordina, como aponta Brandão</p><p>(1998a), a significação ao valor, de onde decorre que a significação, para</p><p>Saussure, é concebida como sistêmica. Para Pêcheux, ao contrário, a significação</p><p>não é sistematicamente apreendida por não ser da ordem da língua, mas da</p><p>ordem do discurso e, portanto, do sujeito, e sofrer, assim, alterações de acordo</p><p>com as posições ocupadas pelos sujeitos que enunciam. O autor retoma esta</p><p>dicotomia saussureana para inscrever os processos de significação num outro</p><p>terreno, mas não concebe nem o sujeito, nem os sentidos como individuais, mas</p><p>como históricos, ideológicos. Assim é que o autor propõe uma semântica do</p><p>discurso — concebido como lugar para onde convergem componentes</p><p>linguísticos e socioideológicos — em vez de uma semântica linguística, pois as</p><p>condições sócio-históricas de produção de um discurso são constitutivas de suas</p><p>significações.</p><p>Pode-se, assim, perceber o paralelismo dos projetos althusseriano e da AD. A</p><p>Análise do Discurso, demonstrando uma vontade de formalização do discurso a</p><p>partir da proposta de Pêcheux (1969/1990) de uma análise automática do</p><p>discurso (doravante AAD), oferecia um procedimento de leitura que relacionava</p><p>determinadas condições de produção¹¹ — “mecanismo de colocação dos</p><p>protagonistas e do objeto do discurso, mecanismo que chamamos de ‘condições</p><p>de produção do discurso’”¹² — com os processos de produção de um discurso.</p><p>Para Pêcheux, é como se houvesse uma “máquina discursiva”, um dispositivo</p><p>capaz de determinar, sempre numa relação com a história, as possibilidades</p><p>discursivas dos sujeitos inseridos em determinadas formações sociais, conceito</p><p>originário da obra de Althusser (1970/1974), que designa, em um determinado</p><p>momento histórico, um estado de relações — de aliança, antagonismo ou</p><p>dominação — entre as classes sociais de uma sociedade. Assim é que a AD</p><p>intervém como um componente essencial do projeto althusseriano que visava</p><p>definir uma ciência da ideologia que não fosse ideológica, isto é, que não</p><p>implicasse uma posição ideológica de sujeito. O autor, buscando definir uma</p><p>“teoria da ideologia em geral” que permitisse evidenciar o mecanismo</p><p>responsável pela reprodução das relações de produção comum a todas as</p><p>ideologias particulares, vislumbrava a AAD como uma possibilidade empírica de</p><p>realização de seu projeto. Do mesmo modo, o pensamento althusseriano também</p><p>é determinante na fase inicial de instituição da AD, cuja proposta se inscreve no</p><p>materialismo histórico.</p><p>Esperamos ter explicitado até aqui o palco do materialismo histórico e do</p><p>estruturalismo sobre o qual surge a AD. O materialismo histórico e o</p><p>estruturalismo estabelecem as bases não só para a gênese da AD e do projeto</p><p>althusseriano (o conceito de “máquina discursiva” e a metáfora do edifício social</p><p>evidenciam isso), mas também para a convergência entre esses projetos.</p><p>Ainda um outro elemento compõe o quadro epistemológico do surgimento da</p><p>AD: a psicanálise lacaniana. Abordaremos o pensamento lacaniano procurando</p><p>evidenciar como ele é fundamental neste momento inicial de fundação da</p><p>Análise do Discurso.</p><p>A partir da descoberta do inconsciente por Freud, o conceito de sujeito sofre uma</p><p>alteração substancial, pois seu estatuto de entidade homogênea passa a ser</p><p>questionado diante da concepção freudiana de sujeito clivado, dividido entre o</p><p>consciente e o inconsciente. Lacan faz uma releitura de Freud recorrendo ao</p><p>estruturalismo linguístico, mais especificamente a Saussure e a Jakobson, numa</p><p>tentativa de abordar com mais precisão o inconsciente, muitas vezes tomado</p><p>como uma entidade misteriosa, abissal.</p><p>Para poder trazer à tona seu material, Lacan assume que o inconsciente se</p><p>estrutura como uma linguagem, como uma cadeia de significantes¹³ latente que</p><p>se repete e interfere no discurso efetivo, como se houvesse sempre, sob as</p><p>palavras, outras palavras, como se o discurso fosse sempre atravessado pelo</p><p>discurso do Outro, do inconsciente. A tarefa do analista¹⁴ seria a de fazer vir à</p><p>tona, através de um trabalho na palavra e pela palavra, essa cadeia de</p><p>significantes, essas “outras palavras”, esse “discurso do Outro”, isto é, do</p><p>inconsciente, lugar desconhecido, estranho, de onde emana o discurso do pai, da</p><p>família, da lei, enfim, do Outro e em relação ao qual o sujeito se define, ganha</p><p>identidade. Apoiado em alguns critérios do estruturalismo linguístico, Lacan</p><p>aborda esse inconsciente, demonstrando que existe uma estrutura discursiva que</p><p>é regida por leis. Decorrem dessa proposta implicações para a psicanálise. A que</p><p>mais diretamente interessa à AD diz respeito ao conceito de</p><p>sujeito, definido em</p><p>função do modo como ele se estrutura a partir da relação que mantém com o</p><p>inconsciente, com a linguagem, portanto, já que, para Lacan, “a linguagem é</p><p>condição do inconsciente”.¹⁵</p><p>Saussure, como já apontado anteriormente, define o sistema linguístico a partir</p><p>do critério diferencial, segundo o qual na língua não há mais que diferenças.</p><p>Sendo assim, não se pode atribuir aos elementos do sistema nada de substancial,</p><p>ou seja, não se pode defini-los por eles mesmos, tomando suas características</p><p>independentemente das características de outros elementos do sistema, com os</p><p>quais pode ser tomado em relação. Passa-se, assim, como uma consequência</p><p>inevitável do critério diferencial, ao critério relacional, que delimita a função da</p><p>relação entre os elementos no interior do sistema. Dessa remissão entre os</p><p>elementos do sistema também decorre o critério do lugar vazio, segundo o qual</p><p>cada elemento adquire sua identidade fora de si, já que, na óptica estruturalista,</p><p>são as diferenças que definem os elementos. Essas diferenças, por sua vez, não</p><p>são intrínsecas aos elementos e nem extrínsecas a eles, mas só podem ser</p><p>consideradas a partir de uma posição no interior do sistema. A definição de cada</p><p>elemento é uma definição de posição, ou seja, a sua identidade resulta sempre da</p><p>relação que um elemento, que ocupa uma determinada posição inicial no interior</p><p>do sistema, mantém com outro elemento, que ocupa uma posição terminal: o</p><p>fonema [p], ponto inicial, com relação ao fonema [b], ponto terminal; o fonema</p><p>[p], ponto inicial, com relação ao fonema [t], ponto terminal, por exemplo. A</p><p>identidade resulta sempre dos lugares de onde são tomados os elementos na</p><p>relação binária. Trata-se do critério posicional.</p><p>Desses critérios decorrem implicações para o conceito lacaniano de sujeito</p><p>(Santiago, 1995), ao qual não se pode atribuir nada de substancial, pois ele só se</p><p>define em relação ao Outro (critérios diferencial e relacional). O sujeito</p><p>dessubstancializado não está onde é procurado, ou seja, no consciente, lugar</p><p>onde reside a ilusão do “sujeito centro” como sendo aquele que sabe o que diz,</p><p>aquele que sabe o que é, mas pode ser encontrado onde não está, no inconsciente</p><p>(critério do lugar vazio). Assim, a identidade do sujeito lhe é garantida pelo</p><p>Outro (inconsciente), ou seja, por um sistema parental simbólico que determina a</p><p>posição do sujeito desde sua aparição. Como explica Santiago (1995), “o pai e a</p><p>mãe deixam de ser meros semelhantes com os quais o sujeito se relacionou numa</p><p>dimensão de rivalidade ou amor, para se tornarem lugares na estrutura”,¹ como</p><p>se o sujeito fosse tomado por uma ordem anterior e exterior a ele. Dessa forma, o</p><p>pai, por exemplo, pode surgir sob diferentes formas buscadas no imaginário —</p><p>pai complacente, pai ameaçador etc. —, mas pode também, ocupando um lugar</p><p>no discurso da mãe, tomar formas diferentes — pai ausente, pai presente etc.</p><p>(critério posicional).</p><p>Essa relação entre o sujeito e o Outro se apoia na oposição binária de Jakobson</p><p>(1960/1970), segundo a qual um remetente, ocupando uma posição inicial no</p><p>processo de comunicação, coloca-se em relação comunicativa com um</p><p>destinatário, que ocupa uma posição terminal no sistema de comunicação.</p><p>Jakobson não é um estruturalista stricto sensu, pois, além de considerar os</p><p>interlocutores do processo comunicativo — fato completamente discordante do</p><p>estruturalismo de vertente saussureana, que exclui de seu campo de análise a fala</p><p>por ser do âmbito do sujeito —, não trata do sistema linguístico em si, das regras</p><p>de organização da língua propriamente ditas. Jakobson é, por vezes, apontado</p><p>como estruturalista pelo fato de abordar o processo comunicativo como um</p><p>sistema composto de elementos — remetente, destinatário, código, mensagem,</p><p>contexto, canal — que se relacionam no interior de um sistema fechado e</p><p>recorrente, como um circuito comunicativo.</p><p>Pôde-se perceber, até aqui, em que sentido Lacan recorre ao estruturalismo, mais</p><p>especificamente a Saussure e a Jakobson. No entanto, há pontos em que</p><p>divergem radicalmente os caminhos do estruturalismo e de Lacan. O primeiro</p><p>deles diz respeito à inserção do sujeito na estrutura, um deslocamento com</p><p>relação ao estruturalismo saussureano que, num certo sentido e de maneira</p><p>diferente, Jakobson também realizara. O segundo ponto se refere à maneira</p><p>como é concebida a relação do sujeito com o Outro, deslocamento que se realiza</p><p>a partir da concepção do processo comunicativo de Jakobson.</p><p>Esclareçamos o primeiro ponto, mostrando como a inserção do sujeito no</p><p>sistema afeta a sua estrutura. O sujeito, por definir-se na relação com o Outro</p><p>(inconsciente), nada mais é que um significante do Outro. Mas, por ser um</p><p>sujeito clivado, dividido entre o consciente e o inconsciente, inscreve-se na</p><p>estrutura, caracteristicamente definida por relações binárias entre seus</p><p>elementos, como uma descontinuidade, pois emerge no intervalo existente entre</p><p>dois significantes, emerge sob as palavras, sob o discurso. Lacan, assim, não</p><p>assume o pressuposto básico do estruturalismo, de completude do sistema, já que</p><p>o sujeito — pura descontinuidade na cadeia significante — “descompleta” o</p><p>conjunto dos significantes.</p><p>No que diz respeito ao segundo ponto, Lacan rompe com o estruturalismo ao</p><p>romper com a simetria entre os interlocutores. Jakobson atesta uma simetria</p><p>entre esses interlocutores na medida em que não considera a supremacia de</p><p>nenhum deles sobre o outro. Lacan rompe com essa simetria. Para ele, o Outro</p><p>ocupa uma posição de domínio com relação ao sujeito, é uma ordem anterior e</p><p>exterior a ele, em relação à qual o sujeito se define, ganha identidade.</p><p>Feita essa breve abordagem de alguns aspectos do pensamento lacaniano,</p><p>poderemos agora explicar em que sentido o pensamento lacaniano é fundamental</p><p>neste momento inicial de fundação da Análise do Discurso, ou seja, em que se</p><p>pode perceber a relevância do projeto lacaniano para a AD.</p><p>O estudo do discurso para a AD, como já dito anteriormente, inscreve-se num</p><p>terreno em que intervêm questões teóricas relativas à ideologia e ao sujeito.</p><p>Assim, o sujeito lacaniano, clivado, dividido, mas estruturado a partir da</p><p>linguagem, fornecia para a AD uma teoria de sujeito condizente com um de seus</p><p>interesses centrais, o de conceber os textos como produtos de um trabalho</p><p>ideológico não consciente. Calcada no materialismo histórico, a AD concebe o</p><p>discurso como uma manifestação, uma materialização da ideologia decorrente do</p><p>modo de organização dos modos de produção social. Sendo assim, o sujeito do</p><p>discurso não poderia ser considerado como aquele que decide sobre os sentidos e</p><p>as possibilidades enunciativas de seu dizer, mas como aquele que ocupa um</p><p>lugar social e a partir dele enuncia, sempre inserido no processo histórico que lhe</p><p>permite determinadas inserções e não outras. Em outras palavras, o sujeito não é</p><p>livre para dizer o que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso (e</p><p>aqui reconhecemos a propriedade do conceito lacaniano de sujeito para a AD), a</p><p>ocupar seu lugar em determinada formação social e enunciar o que lhe é possível</p><p>a partir do lugar que ocupa. Como afirma Althusser (1970):</p><p>A ideologia é bem um sistema de representações: mas estas representações não</p><p>têm, na maior parte do tempo, nada a ver com a “consciência”: elas são na maior</p><p>parte das vezes imagens, às vezes conceitos, mas é antes de tudo como estruturas</p><p>que elas se impõem à maioria dos homens, sem passar por suas consciências.¹⁷</p><p>Tendo até aqui descrito o terreno em que se funda a Análise do Discurso — um</p><p>terreno em que se relacionam a Linguística e as Ciências Sociais —, uma</p><p>questão importante se coloca: qual a especificidade da AD neste terreno? É o</p><p>que procuraremos responder a seguir.</p><p>1.2. A especificidade da AD</p><p>Como aponta Maingueneau (1997), o campo da Linguística, de maneira muito</p><p>esquemática, opõe um núcleo “rígido” a uma periferia de contornos instáveis,</p><p>que está em contato com a Sociologia, Psicologia, História, Filosofia etc. O</p><p>núcleo rígido¹⁸ se ocupa do estudo da língua como</p><p>que todas as línguas variam e que todas as línguas mudam.</p><p>Em seguida, começamos a explorar as áreas que fazem parte daquilo que é</p><p>tradicionalmente concebido como a descrição gramatical das línguas naturais. Os</p><p>capítulos de Fonética, Fonologia, Morfologia e Sintaxe possuem a tarefa de</p><p>introduzir as perspectivas teóricas e metodológicas que constituíram a</p><p>Linguística como uma ciência autônoma e com um objeto de estudo próprio, ao</p><p>longo do século XX. Em contato com esses capítulos, o leitor terá a</p><p>oportunidade de escrutinar o fenômeno linguístico em seus diferentes níveis e,</p><p>também, de ter acesso a um olhar predominantemente formalista em relação às</p><p>línguas naturais. Em outras palavras, nesses capítulos, o leitor estará entrando</p><p>em contato com abordagens que propõem um número restrito de princípios</p><p>firmes e seguros que são utilizados na construção positiva do conhecimento das</p><p>línguas e da faculdade de linguagem.</p><p>Finalizamos o primeiro volume com o capítulo de Linguística Textual. Essa área,</p><p>que tem como principal interesse o estudo dos processos de produção, recepção</p><p>e interpretação dos textos, reintegra o sujeito e a situação de comunicação em</p><p>seu escopo teórico. Esse movimento faz parte de um esforço mais amplo de</p><p>construção de uma Linguística para além dos limites da frase.</p><p>Iniciamos o volume 2 apresentando a área da Semântica, que tem como objeto</p><p>de estudo a questão do significado e/ou dos processos de significação. Esse foi</p><p>um tema sempre presente em outros lugares de construção do conhecimento, tais</p><p>como a Lógica, a Retórica, a Filosofia e, mais recentemente, a Semiótica, a</p><p>História, a Antropologia e as Ciências Cognitivas, o que nos sinaliza para o fato</p><p>de que este objeto “transborda as próprias fronteiras da Linguística” e nos coloca</p><p>na posição de ter de enfrentar as discussões sobre as relações entre linguagem e</p><p>mundo, linguagem e conhecimento.</p><p>Os capítulos de Pragmática, Análise da Conversação e Análise do Discurso, que</p><p>são apresentados na sequência, podem ser definidos, de maneira geral, como</p><p>aqueles que, a partir de pressupostos teóricos diferenciados, estabelecem</p><p>relações com a exterioridade da linguagem, problematizando a separação entre a</p><p>materialidade da língua e seus contextos de produção. Para tanto, essas áreas</p><p>também mobilizam saberes advindos de outros campos, tais como a Filosofia da</p><p>Linguagem, a Antropologia, a História, a Sociologia, a Psicanálise, e as Ciências</p><p>Cognitivas, proporcionando ao leitor diferentes olhares em relação às formas de</p><p>construção dos sentidos, de nossa subjetividade/alteridade e de nossa</p><p>historicidade.</p><p>Com o capítulo de Neurolinguística, continuamos o nosso percurso pelas áreas</p><p>que, pela natureza das indagações que fazem, são constituídas fundamentalmente</p><p>por teorias linguísticas e por teorias advindas de outros campos do saber. Em</p><p>outras palavras, “as fronteiras que delimitam os objetos de estudo destas áreas</p><p>são instáveis, movediças”. Os capítulos de Neurolinguística, Psicolinguística e</p><p>Aquisição da Linguagem se distinguem dos outros e se aproximam entre si por</p><p>necessitarem da articulação de saberes produzidos, principalmente, na</p><p>Linguística, na Psicologia e na área de Neurociências, para que sejam</p><p>respondidas as questões elaboradas em seus respectivos campos sobre as</p><p>relações entre linguagem e cognição, linguagem e cérebro, enfim, sobre os</p><p>diferentes modos pelos quais os sujeitos adquirem, organizam e reelaboram o</p><p>conhecimento.</p><p>O último capítulo deste volume, Língua e ensino: políticas de fechamento,</p><p>tematiza as contribuições que alguns importantes pressupostos teóricos</p><p>construídos pela ciência da linguagem ao longo do século XX podem dar para o</p><p>ensino. O capítulo apresenta as diferentes concepções de gramática que norteiam</p><p>as práticas pedagógicas, além de problematizar as atuais práticas de leitura e de</p><p>produção de textos na escola, proporcionando ao leitor um olhar crítico em</p><p>relação aos processos de “homogeneização e silenciamento dos sujeitos”, tão em</p><p>curso nas instituições escolares.</p><p>Essa explicação sobre a disposição dos capítulos na obra não tem o objetivo de</p><p>impor uma leitura linear. Dependendo dos seus interesses e de suas questões, o</p><p>leitor poderá elaborar a sua própria ordem de leitura.</p><p>Introdução à Linguística: domínios e fronteiras é fruto de um trabalho coletivo,</p><p>resultante de uma verdadeira cooperação entre nós, organizadoras, entre as</p><p>organizadoras e os autores, entre os autores e seus diversos interlocutores, entre</p><p>nós e as pessoas que acompanharam mais de perto o projeto ao longo desses</p><p>três anos, e entre nós e os editores. Esta experiência de constante diálogo nos foi</p><p>extremamente valiosa e prazerosa. Esperamos que nossos leitores também se</p><p>beneficiem da estimulante “atmosfera” de reflexão sobre a linguagem</p><p>propiciada pelo trabalho de cada um dos autores desta obra.</p><p>Aos autores e autoras, agradecemos o entusiasmo com que se engajaram neste</p><p>projeto intelectual, a tolerância às longas conversas teóricas por telefone e às</p><p>propostas de intervenção em seus estilos pessoais de escrita e pelos textos em si,</p><p>que se constituem em brilhantes contribuições para o entendimento da ciência da</p><p>linguagem e de seus tão diversos e fascinantes objetos.</p><p>Agradecemos a Sírio Possenti pela gentileza em prefaciar esta obra,</p><p>colaborando, com seu conhecimento sobre a linguagem e sua experiência como</p><p>pesquisador e professor, para que este projeto alcançasse o bom nível que</p><p>alcançou. Agradecemos também à Ingedore Koch que, com sua reconhecida</p><p>autoridade e competência, nos presenteou com um texto de apresentação para a</p><p>capa desta obra.</p><p>Gostaríamos de deixar público o nosso reconhecimento aos professores Angel</p><p>Mori, Aryon Rodrigues, Edwiges Morato, Erotilde Pezatti, Ester Scarpa, Helena</p><p>Brandão, Ingedore Koch, Jairo M. Nunes, João Wanderley Geraldi, Kanavillil</p><p>Rajagopalan, Luiz Antônio T. Marcuschi, Sírio Possenti e à pesquisadora Helena</p><p>Britto, por suas leituras atenciosas, que contribuíram de forma decisiva para a</p><p>concepção e organização de alguns capítulos desta obra.</p><p>Temos também o prazer de reconhecer que, nestes tempos difíceis para a</p><p>universidade brasileira, ainda existem espaços institucionais que proporcionam</p><p>as condições para que um projeto dessa natureza seja passível de ser executado.</p><p>Assim, agradecemos ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade</p><p>Estadual de Campinas, por ser uma espécie de confortável “lar” acadêmico, onde</p><p>tivemos a oportunidade de aprender que uma formação sólida pode e deve estar</p><p>aliada a compromissos políticos mais amplos.</p><p>A evolução deste livro tem um débito especial para com Edwiges Maria Morato,</p><p>nossa companheira nesta jornada intelectual, por ter participado das inúmeras</p><p>discussões sobre a organização dos capítulos, pelas leituras perspicazes e</p><p>construtivas de alguns deles e por nos ter sempre incentivado, com sua amizade</p><p>sólida, com seu brilhantismo e com seu compromisso com níveis elevados de</p><p>instigação, a acreditar que valia a pena. Gostaríamos ainda de agradecer a Ivana</p><p>Lima Regis, por sua amizade e por ter sido uma interlocutora especial em todos</p><p>os estágios deste trabalho, e a Marcelo Lemos Silveira, pelo apoio e</p><p>companheirismo.</p><p>Esperamos que este livro possibilite ao leitor vislumbrar a ciência da linguagem.</p><p>Evidentemente, não tivemos a pretensão de esgotar as discussões que são feitas</p><p>atualmente nas diferentes áreas apresentadas. Ao contrário, Introdução à</p><p>Linguística: domínios e fronteiras propõe-se a ser uma porta de entrada para o</p><p>campo da Linguística, um campo vasto, heterogêneo, multidisciplinar, que</p><p>consolida seus domínios e constrói seus objetos de estudo a partir de influências</p><p>intradisciplinares e de uma complexa, mas muito produtiva, rede de relações</p><p>com outros lugares de construção do conhecimento.</p><p>Fernanda Mussalim</p><p>Anna Christina Bentes</p><p>Organizadoras</p><p>1</p><p>SEMÂNTICA¹</p><p>Roberta Pires de Oliveira</p><p>1. INTRODUÇÃO</p><p>Embora não seja tarefa fácil definir o objeto de estudos da Semântica, afirma-se</p><p>classicamente que seu objeto é o “significado” das palavras e das sentenças.</p><p>se ela fosse apenas um</p><p>conjunto de regras e propriedades formais, ou seja, não considera a língua</p><p>enquanto produzida em determinadas conjunturas históricas e sociais. A outra</p><p>região, de contornos instáveis,¹ ao contrário, “se refere à linguagem apenas à</p><p>medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em estratégias de</p><p>interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas”.² A Análise do</p><p>Discurso pertence a essa última região, ou seja, considera esse último modo de</p><p>compreender a linguagem, o que não significa que, para ela, a linguagem não</p><p>apresente também um caráter formal, como apontava o próprio Pêcheux</p><p>(1975/1988), ao afirmar que existe uma base linguística regida por leis internas</p><p>(conjunto de regras fonológicas, morfológicas, sintáticas) sobre a qual se</p><p>constituem os efeitos de sentido, como poderemos observar a partir da análise da</p><p>tira que se segue:</p><p>Há duas maneiras de interpretar o enunciado de Stock no último quadrinho: que</p><p>há vinte anos ele vivia fazendo sexo com a própria noiva, ou então que há vinte</p><p>anos ele vivia fazendo sexo com a noiva de Wood, seu amigo. Em termos</p><p>essencialmente linguísticos, diríamos que o que permite essa ambiguidade é a</p><p>presença do pronome possessivo de 1ª pessoa “minha”. Pelo fato de ser um</p><p>dêitico²¹ — termo que permite identificar pessoas, coisas, momentos e lugares a</p><p>partir da situação de enunciação —, possibilita que o seu referente seja tanto</p><p>Stock quanto Wood, ou seja, permite ao leitor que ele interprete o pronome</p><p>“minha” como referindo-se à noiva de Stock, o responsável pelo enunciado, ou à</p><p>noiva de Wood. Isso porque poderíamos nos perguntar: sobre que parte do</p><p>enunciado o advérbio “também” da expressão “Eu também” incide? Sobre “Bete</p><p>Speed” (eu também fazendo sexo com a Bete Speed) ou sobre “minha noiva” (eu</p><p>também fazendo sexo com minha noiva)? Em outras palavras, qual o escopo²² de</p><p>“também”?</p><p>Essa primeira análise, referente ao funcionamento da língua, explica o porquê da</p><p>ambiguidade na tira, mas não explica por que achamos graça quando Stock</p><p>enuncia “Eu também” no último quadrinho. Por que lemos esta tira como um</p><p>discurso de humor? Devido às suas condições de produção. Produzido para</p><p>circular em uma sociedade em que fazer sexo com a noiva de outro seria um</p><p>comportamento bastante fora dos padrões morais apresentados como adequados</p><p>a seus membros, a possibilidade de Stock ter feito sexo com a noiva de seu</p><p>amigo gera riso, pois coloca Wood em uma situação bastante constrangedora. No</p><p>entanto, este mesmo discurso produzido no interior da comunidade dos</p><p>esquimós, por exemplo, não geraria riso, pois, segundo os costumes dessa</p><p>comunidade, quando um esquimó recebe um visitante em sua casa, ele oferece</p><p>sua mulher a ele como sinal de hospitalidade. Nesse contexto, portanto, o</p><p>discurso apresentado nesta tira não seria de humor, seria apenas uma conversa</p><p>corriqueira entre dois amigos que relembram fatos do passado.</p><p>A ambiguidade se mantém tanto num como noutro contexto, mas os efeitos que</p><p>ela gera são diferentes, e são justamente esses efeitos de sentido que interessam à</p><p>Análise do Discurso. No caso da tira em questão, a pergunta que os analistas do</p><p>discurso fariam seria: por que essa ambiguidade gera riso? Para a Análise do</p><p>Discurso, perguntar somente o que gera a ambiguidade seria muito pouco, essa</p><p>pergunta já seria feita, por exemplo, pela Semântica e pela Pragmática (as</p><p>noções de escopo e de dêixis, mobilizadas para a análise da tira, pertencem,</p><p>respectivamente, ao quadro teórico dessas duas áreas da Linguística). O que</p><p>garante a especificidade da Análise do Discurso é a formulação de uma pergunta</p><p>subsequente a essa: qual o efeito dessa ambiguidade? A resposta a essa pergunta</p><p>reside justamente na relação que os analistas do discurso procuram estabelecer</p><p>entre um discurso e suas condições de produção, ou seja, entre um discurso e as</p><p>condições sociais e históricas que permitiram que ele fosse produzido e gerasse</p><p>determinados efeitos de sentido e não outros.</p><p>É preciso esclarecer, no entanto, ao falarmos da especificidade da AD, que não</p><p>há apenas uma Análise do Discurso, esta de que vimos falando. Como</p><p>decorrência dessa fronteira instável sobre a qual se situa a Análise do Discurso e</p><p>em função da disciplina vizinha com a qual ela privilegia o contato, surgem</p><p>diferentes “Análises do Discurso”. Classicamente considera-se que, se uma delas</p><p>mantém uma relação privilegiada com a História, com os textos de arquivo, que</p><p>emanam de instâncias institucionais, enquanto uma outra privilegia a relação</p><p>com a Sociologia, interessando-se por enunciados com estruturas mais flexíveis,</p><p>como uma conversa informal, por exemplo, têm-se duas “Análises do Discurso”</p><p>diferentes: a Análise do Discurso de origem francesa, que privilegia o contato</p><p>com a História, e a Análise do Discurso anglo-saxã,²³ área bastante produtiva no</p><p>Brasil, que privilegia o contato com a Sociologia.</p><p>Atualmente, no entanto, este marco divisório não é tão rígido assim. Possenti</p><p>(1996), no artigo “O dado dado e o dado dado (O dado em análise do discurso)”,</p><p>faz uma consideração a esse respeito, apontando que a diferença entre a Análise</p><p>do Discurso de origem francesa e uma análise conversacional não precisa ser</p><p>uma diferença de dados, mas de teoria: “não é porque os eventos de discurso de</p><p>tipo ‘linguagem ordinária’ foram objeto de descrições ‘conversacionais’ ou</p><p>‘intencionais’ que eles não são discursos, que eles não podem ser tomados em</p><p>conta numa AD”.²⁴ Assim, o que diferencia a Análise do Discurso de origem</p><p>francesa da Análise do Discurso anglo-saxã, ou comumente chamada de</p><p>americana, é que esta última considera a intenção dos sujeitos numa interação</p><p>verbal como um dos pilares que a sustenta, enquanto a Análise do Discurso</p><p>francesa não considera como determinante essa intenção do sujeito; esta</p><p>considera que esses sujeitos são condicionados por uma determinada ideologia</p><p>que predetermina o que poderão ou não dizer em determinadas conjunturas</p><p>histórico-sociais. Essa é, entre outras, uma das diferenças teóricas entre as duas</p><p>linhas.</p><p>Apontamos, de maneira bastante geral, diferenças entre a Análise do Discurso de</p><p>origem francesa e a de origem anglo-saxã. No entanto, há diferenças no interior</p><p>de cada uma dessas vertentes. No interior da Análise do Discurso de origem</p><p>francesa, por exemplo, Fiorin (1990) aponta diferentes tendências. Fazendo uma</p><p>análise do que foi feito no Brasil nas últimas décadas em termos de Análise do</p><p>Discurso, o autor apresenta três correntes ordenadas historicamente e</p><p>apresentadas a partir dos interditos, ou seja, a partir do que não é “permitido”</p><p>fazer no interior de cada uma delas.</p><p>A primeira corrente “proibia ocupar-se do funcionamento interno do texto”, sob</p><p>o risco de ser tachado de um “direitista do campo da Letras”. A segunda corrente</p><p>esboçava um interdito contrário: “é preciso ocupar-se do funcionamento interno</p><p>do texto”.²⁵ Fiorin (1990) analisa esse interdito relacionando-o com a “vitória”</p><p>do capitalismo, que concebe a história como “contrato”, ou seja, como sendo</p><p>regida pelos mecanismos internos do mercado. Analogicamente, na Análise do</p><p>Discurso, os mecanismos internos de produção do sentido é que serão</p><p>enfatizados. Não obedecer à interdição dessa segunda corrente significaria pagar</p><p>o preço de ser considerado “anacrônico”, assim como neste momento é</p><p>considerado anacrônico o universo conceitual marxista. A terceira corrente, que</p><p>representa a tendência atual, procura eliminar esses dois interditos que pesaram</p><p>sobre a AD em determinados momentos e abordar o discurso em toda a sua</p><p>complexidade, concebendo-o como um objeto linguístico e cultural. Há,</p><p>entretanto, apesar dessas divergências, um elemento comum entre essas Análises</p><p>do Discurso, e esse elemento comum diz respeito à própria especificidade da</p><p>AD, como ressalta Fiorin (1990): “o que é específico de todas essas Análises do</p><p>Discurso é o estudo da discursivização”,² ou seja, o estudo das relações entre</p><p>condições de produção dos discursos e seus processos de constituição.</p><p>Tendo apresentado o palco intelectual</p><p>— ocupado ao mesmo tempo pelo</p><p>estruturalismo, marxismo e psicanálise — sobre o qual emerge a AD e mostrado</p><p>a sua especificidade, passaremos agora a apontar duas influências decisivas neste</p><p>primeiro momento de fundação da AD, no que tange aos seus procedimentos de</p><p>análise. Trata-se do método harrisiano de análise e das gramáticas gerativas.</p><p>1.3. Procedimentos de análise: a contribuição de Harris e Chomsky</p><p>O método de Harris (1969) seguia o rumo das análises estruturalistas, mas</p><p>ampliava a unidade de análise. Propondo-se a analisar o texto, concebe tal</p><p>análise como uma análise transfrástica, isto é, como uma análise que transpunha</p><p>o limite do enunciado, uma vez que não toma como unidade de análise os</p><p>elementos que o compõem, mas o próprio enunciado. É um método fundado</p><p>basicamente na linearidade do discurso; o autor propõe que se observe a ligação</p><p>entre os enunciados a partir de conectivos, com o objetivo de equacionar essa</p><p>linearidade em classes de equivalência. Tomaremos como exemplo ilustrativo de</p><p>uma análise pautada pelo método harrisiano o seguinte discurso, analisado por</p><p>Osakabe (1979, p. 12-13):</p><p>(1) O menino viu o belo quadro e gostou dele. Mas o pintor não lhe deu o</p><p>quadro.</p><p>Segundo o autor, esse discurso, já na forma reduzida por transformações e</p><p>equivalências fornecidas pela gramática da língua, poderia ser apresentado da</p><p>seguinte maneira:</p><p>(1’) O menino viu o quadro.</p><p>O quadro era belo.</p><p>O menino gostou do quadro.</p><p>(Mas) o pintor não deu o quadro ao menino.</p><p>Partindo das recorrências e da distribuição dos elementos de cada enunciado,</p><p>obtém-se um quadro de equivalências. Por exemplo, o verbo ver pode, neste</p><p>contexto, ser tomado como equivalente a gostar, e assim teríamos:</p><p>(2) A: 1. O menino viu o quadro.</p><p>2. O menino gostou do quadro.</p><p>B: O quadro era belo.</p><p>(Mas)</p><p>C: O pintor não deu o quadro ao menino.</p><p>Como resultado, obteríamos a seguinte forma para esse discurso:</p><p>(3) A1:</p><p>A2:</p><p>B:</p><p>(Mas)</p><p>C:</p><p>Ou ainda,</p><p>(4) A:</p><p>B:</p><p>(Mas)</p><p>C:</p><p>O recurso a esse método pelos iniciadores da AD explica-se por um certo</p><p>interesse comum em produzir uma análise da superfície discursiva: Dubois se</p><p>valia desse método, como relata Maldidier (1994), como “um meio de fazer</p><p>aparecer as regularidades significativas dos discursos contrastados pelo</p><p>corpus”,²⁷ ou seja, como uma forma de evidenciar o que havia de regular, de</p><p>constante em cada um dos discursos contrastados. Para Pêcheux, por sua vez, a</p><p>deslinearização decorrente das transformações — (1) e (2) —, por exemplo,</p><p>permitia perceber os traços dos processos discursivos — (3) e (4) —, ou seja, os</p><p>processos pelos quais um discurso se constituía enquanto tal.</p><p>Harris, como foi possível perceber, restringe-se a uma concepção de discurso</p><p>como uma sequência de enunciados. Essa definição mostrou-se insuficiente para</p><p>os propósitos da AD, que buscava reintegrar uma teoria do sujeito e uma teoria</p><p>da situação. Assim, Pêcheux, visando a construção de um arcabouço teórico que</p><p>lhe permitisse isso, passa a considerar a oposição enunciação e enunciado.²⁸ A</p><p>primeira se refere às condições de produção do discurso (é neste nível que será</p><p>possível reintegrar as teorias do sujeito e da ideologia), que permitiriam a</p><p>elocução de um discurso e não de outros, isto é, refere-se a determinadas</p><p>circunstâncias, a saber, o contexto histórico-ideológico e as representações que o</p><p>sujeito, a partir da posição que ocupa ao enunciar, faz de seu interlocutor, de si</p><p>mesmo, do próprio discurso etc.; e o segundo se refere à superfície discursiva</p><p>resultante dessas condições. O procedimento gerativista de análise,² já bastante</p><p>difundido na época, vem ao encontro dos interesses de Pêcheux.</p><p>Em 1957, Noam Chomsky, aluno de Z. Harris, publica Estruturas sintáticas e</p><p>coloca em questão o método estruturalista americano.³ Chomsky postula a</p><p>existência de um sistema de regras internalizadas responsável pela geração das</p><p>sentenças. A possibilidade de produzir uma análise nesses moldes aponta um</p><p>caminho para a AD reintegrar as teorias do sujeito e da situação. Numa analogia</p><p>com o postulado de que o sistema de regras é responsável pela geração das</p><p>sentenças, propõe-se a noção de condições de produção, responsável pela</p><p>geração dos discursos. Esse conceito de condições de produção é, como aponta</p><p>Orlandi (1987), básico para a AD, pois elas “caracterizam o discurso, o</p><p>constituem e como tal são objeto de análise”.³¹ Para a AD, portanto, a</p><p>enunciação não é um desvio, mas um “processo constitutivo da matéria</p><p>enunciada”, afirma a autora.³²</p><p>É este último procedimento de análise que será produtivo para a AD, pois será a</p><p>partir dele que ela formulará e reformulará seus procedimentos de análise e seu</p><p>objeto de estudo, que definirão, por sua vez, o que chamamos as fases da AD.</p><p>2. FASES DA AD: OS PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE E A DEFINIÇÃO</p><p>DO OBJETO</p><p>A primeira época da Análise do Discurso³³ (doravante AD-1) explora a análise</p><p>de discursos mais “estabilizados”, no sentido de serem pouco polêmicos,³⁴ por</p><p>permitirem uma menor carga polissêmica, isto é, uma menor abertura para a</p><p>variação do sentido devido a um maior silenciamento do outro (outro</p><p>discurso/outro sujeito). Os discursos políticos teórico-doutrinários, como um</p><p>manifesto do Partido Comunista, são um bom exemplo. Por serem mais</p><p>“estabilizados”, pressupõe-se que tais discursos sejam produzidos a partir de</p><p>condições de produção mais estáveis e homogêneas, isto é, no interior de</p><p>posições ideológicas e de lugares sociais menos conflitantes: o manifesto</p><p>comunista é enunciado do interior do Partido Comunista e representa seus</p><p>possíveis interlocutores inscritos neste mesmo espaço discursivo. Considere,</p><p>para contrapor, um debate político de que estivessem participando marxistas e</p><p>liberais. Nessas condições de produção, o discurso do Partido Comunista</p><p>representaria parte de seu(s) interlocutor(es) inscrito(s) em um outro lugar social,</p><p>a saber, no espaço discursivo liberal. Neste caso, teríamos uma relação mais</p><p>conflitante, pouco “estabilizada”. Um debate não seria, portanto, objeto de</p><p>análise da AD-1.</p><p>Com relação aos procedimentos de análise da AD-1, eles são realizados por</p><p>etapas, apresentadas a seguir:</p><p>a) primeiramente se seleciona um corpus fechado de sequências discursivas (o</p><p>corpus analisado por Simone Bonnafous,³⁵ sobre as moções do Congresso de</p><p>Metz do Partido Socialista, de 1979, é um bom exemplo);</p><p>b) em seguida, faz-se a análise linguística de cada sequência, considerando as</p><p>construções sintáticas (de que maneira são estabelecidas as relações entre os</p><p>enunciados) e o léxico (levantamento de vocabulário);</p><p>c) passa-se depois à análise discursiva, que consiste basicamente em construir</p><p>sítios de identidades a partir da percepção da relação de sinonímia (substituição</p><p>de uma palavra por outra no contexto) e de paráfrase (sequências substituíveis</p><p>entre si no contexto);</p><p>d) por fim, procura-se mostrar que tais relações de sinonímia e paráfrase são</p><p>decorrentes de uma mesma estrutura geradora do processo discursivo.</p><p>Têm-se, então, a noção de “máquina discursiva”: uma estrutura (condições de</p><p>produção estáveis) responsável pela geração de um processo discursivo (o</p><p>processo de construção das moções do Congresso de Metz do Partido Socialista,</p><p>de 1979, por exemplo) a partir de um conjunto de argumentos e de operadores</p><p>responsáveis pela construção e transformação das proposições, concebidas como</p><p>princípios semânticos que definem, delimitam um discurso (o do Congresso de</p><p>Metz do Partido Socialista, para tomá-lo como exemplo).</p><p>Para a AD-1, cada processo discursivo é gerado por uma máquina discursiva.</p><p>Assim, diferentes processos discursivos referem-se a diferentes máquinas</p><p>discursivas, cada uma delas idêntica a si mesma e fechada sobre si mesma</p><p>(Pêcheux, 1983/1990).</p><p>Na segunda fase da AD³ (AD-2), a noção de máquina estrutural fechada começa</p><p>a explodir. O conceito de formação discursiva, elaborado pelo filósofo Michel</p><p>Foucault (1969/2004), é um dos dispositivos que desencadeia esse processo de</p><p>transformação na concepção do objeto de análise da Análise do Discurso.</p><p>Faremos</p><p>uma incursão pelas formulações de Foucault em torno desse conceito, a</p><p>fim de delimitar melhor sua abordagem e, ao mesmo tempo, possibilitar ao leitor</p><p>que, no decorrer da leitura deste capítulo, ele possa bem distinguir entre as</p><p>concepções foucaultiana e pecheutiana de formação discursiva.</p><p>Foucault (1969/2004), em seu livro Arqueologia do saber, define discurso como</p><p>um conjunto de enunciados que provém de um mesmo sistema de formação, ou</p><p>ainda, para especificar melhor, define discurso como sendo constituído por um</p><p>número limitado de enunciados para os quais se pode definir um conjunto de</p><p>condições de existência.</p><p>Nesse livro, o autor dá um tratamento extenso ao discurso, uma vez que a</p><p>arqueologia proposta por ele é uma modalidade de análise do discurso. O</p><p>discurso, nessa obra, tem o estatuto de uma entrada metodológica, visto que o</p><p>alvo das reflexões de Foucault não é o discurso em si, isto é, o conjunto de</p><p>enunciados, mas a descrição de suas condições de existência, de seu sistema de</p><p>formação, ou, melhor dizendo, da formação discursiva, definida como</p><p>um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no</p><p>espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica,</p><p>geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função</p><p>enunciativa.³⁷</p><p>Enunciado, discurso e formação discursiva são, pois, conceitos que, em</p><p>Foucault, reenviam uns aos outros.</p><p>N’Arqueologia, o autor se propõe a realizar, fundamentalmente, duas grandes</p><p>tarefas. A primeira delas consiste em liberar terreno, isto é, em desfazer-se de</p><p>categorias que, em alguma medida reforçam:</p><p>i) o pressuposto da continuidade histórica, como é o caso das noções de tradição;</p><p>de influência; de desenvolvimento e evolução; de mentalidade ou espírito de</p><p>época;</p><p>ii) a ideia de familiaridade, que sustenta agrupamentos (ciência, literatura,</p><p>filosofia, religião, história, ficção) tomados como grandes individualidades</p><p>históricas;</p><p>iii) temas que condenam a análise histórica à repetição, tais como o de que há,</p><p>para além de qualquer começo, uma origem secreta; e o de que todo discurso</p><p>efetivo repousaria sobre um já dito.</p><p>Uma vez suspensas tais categorias, o autor passa a delinear os instrumentos e o</p><p>objetivo fundamental da arqueologia que propõe. Enquanto método de análise</p><p>dos discursos, a arqueologia não busca ser nem interpretação, o que implicaria</p><p>referir o discurso às coisas ou à interioridade da consciência de um indivíduo</p><p>(por isso Foucault recusa o conceito de frase), nem tampouco formalização, o</p><p>que implicaria estabelecer as condições gramaticais e lógicas da formação dos</p><p>enunciados (por isso recusa o conceito de proposição). Diferentemente, a</p><p>arqueologia que propõe trata-se de uma análise histórica das condições de</p><p>enunciabilidade ou, mais especificamente, trata-se de uma análise das condições</p><p>de possibilidade que fizeram com que, em determinado momento histórico,</p><p>apenas alguns enunciados tenham sido efetivamente possíveis — isto é, tenham</p><p>sido efetivamente produzidos — e outros não. É a partir dessa perspectiva que</p><p>Foucault assume o enunciado como unidade de análise e busca definir as</p><p>formações discursivas a partir de suas regularidades.</p><p>Mas que regularidades são essas? Para esclarecer essa questão, Foucault delineia</p><p>quatro hipóteses que fundamentam a arqueologia que propõe enquanto método</p><p>de análise dos discursos.</p><p>Recusando a ideia de que enunciados, diferentes em sua forma e dispersos no</p><p>tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto, isto</p><p>é, rechaçando a ideia de que a unidade dos discursos se funda na unidade do</p><p>objeto, o autor formula a hipótese de que cada discurso (por exemplo, o discurso</p><p>clínico, o discurso econômico, o discurso da história natural, o discurso</p><p>psiquiátrico) constitui seu objeto e o elabora até transformá-lo inteiramente, de</p><p>modo que os enunciados de um discurso remetem não a um correlato que lhe</p><p>imprime sentido, ou a um referente no mundo que determina seu valor de</p><p>verdade, mas a um referencial constituído pelas regras que definem as condições</p><p>históricas de surgimento de um objeto. Com base em seu trabalho desenvolvido</p><p>em História da loucura (1961/2008), o autor esclarece que não se deve tentar</p><p>identificar um objeto (no caso, a loucura) único e perene, mas tentar estabelecer</p><p>as regras que determinaram o espaço histórico-social em que esse objeto se</p><p>constituiu e se transformou. Por exemplo, deve-se tentar explicar por que, em</p><p>determinada época, começou-se a falar de determinados comportamentos em</p><p>termos de loucura e enfermidade mental.</p><p>Na análise da formação dos objetos, Foucault afirma que é necessário:</p><p>a) demarcar as superfícies primeiras de emergência, isto é, mostrar onde podem</p><p>surgir. No caso da psicopatologia do século XIX, o autor afirma que essas</p><p>superfícies primeiras de emergência dos objetos (que fazem-nos aparecer,</p><p>tornam-nos nomeáveis e descritíveis) foram, muito provavelmente, constituídas</p><p>pela família, pelo meio do trabalho, pela comunidade religiosa, pelo grupo social</p><p>próximo, pela arte com sua normatividade própria, pela sexualidade, pela</p><p>penalidade;</p><p>b) descrever as instâncias de delimitação, que distinguem, nomeiam, instauram</p><p>os objetos. No século XIX, por exemplo, a medicina tornou-se a instância</p><p>superior que, na sociedade ocidental, distinguiu, designou, nomeou e instaurou a</p><p>loucura como objeto. Mas, além da medicina, também a justiça penal, a</p><p>autoridade religiosa, a crítica literária e artística tornaram-se instâncias de</p><p>delimitação desse objeto;</p><p>c) analisar as grades de especificação, que se referem aos sistemas segundo os</p><p>quais se separam, se opõem, se associam, se reagrupam, se classificam, se</p><p>derivam, por exemplo, as diferentes “loucuras” como objetos do discurso</p><p>psiquiátrico do século XIX. As grades de especificação desse discurso, segundo</p><p>Foucault, foram a alma, o corpo, a vida e a história dos indivíduos, os jogos de</p><p>correlações psicológicas.</p><p>Entretanto, de acordo com Foucault (1969/2004), a consideração dessas três</p><p>instâncias não é suficiente para se analisar a formação dos objetos e, com base</p><p>nesse aspecto, caracterizar a individualidade de um discurso. A formação dos</p><p>objetos é assegurada pelo conjunto de relações estabelecidas entre essas</p><p>instâncias — de emergência, delimitação e especificação.</p><p>A segunda hipótese formulada pelo autor nasce da recusa à ideia de que a</p><p>unidade dos discursos se funda na forma de seus enunciados, no tipo de</p><p>encadeamento entre eles, ou seja, num certo caráter constante da enunciação,</p><p>num certo estilo, portanto. Diferentemente, Foucault postula que apenas se pode</p><p>dizer que um conjunto de enunciados pertence à mesma ordem do discurso,</p><p>caracterizando o modo de coexistência desses enunciados (dispersos e</p><p>heterogêneos), descrevendo o sistema que rege sua repartição, o modo como se</p><p>transformam, se apoiam uns nos outros, se supõem ou se excluem, se revezam,</p><p>se substituem. Por exemplo, em O nascimento da clínica (1963/2008), o autor</p><p>busca demonstrar que a unidade do discurso clínico não decorre da unicidade das</p><p>modalidades enunciativas; diferentemente, sua individualidade provém do</p><p>conjunto de regras que possibilitam a coexistência de diferentes modalidades</p><p>enunciativas. Essas modalidades enunciativas diversas e o lugar de onde vêm</p><p>podem ser identificadas a partir das seguintes questões:</p><p>a) “quem fala?”: quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem esta</p><p>espécie de linguagem? / qual é o status dos indivíduos que têm o direito de</p><p>proferir semelhante discurso?;</p><p>b) “de que lugares institucionais se fala?”: de onde o médico obtém seu discurso,</p><p>e de onde este encontra sua origem legítima e seu ponto de aplicação (o hospital,</p><p>a prática privada, o laboratório)?;</p><p>c) “de que posições variadas se fala?”: o sujeito questiona a partir de que grade</p><p>de interrogações, ouve a partir de que programa de informação? / ocupa que</p><p>lugar na rede de informações (no ensino teórico ou na pedagogia escolar; no</p><p>sistema da comunicação oral ou da documentação escrita)? etc.</p><p>Foucault (1969/2004) esclarece que</p><p>essas diversas modalidades de enunciação</p><p>não estão relacionadas à unidade de um sujeito, isto é, não remetem à função</p><p>unificante de um sujeito; diferentemente, manifestam sua dispersão nos diversos</p><p>status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ao exercer</p><p>um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala, portanto. Com base</p><p>nesse pressuposto é que o autor postula que não é pelo recurso a uma</p><p>subjetividade psicológica ou a um sujeito transcendental que o regime das</p><p>enunciações de um discurso é definido, mas pelo sistema de relações por meio</p><p>do qual todas as modalidades de enunciação encontram-se ligadas. Deve-se,</p><p>pois, definir a unidade de um discurso considerando o campo de regularidades</p><p>que rege essas diversas (e dispersas) modalidades de subjetividade.</p><p>A terceira hipótese apresentada pelo autor em Arqueologia do saber (1969/2004)</p><p>diz respeito à formação dos conceitos. Foucault refuta a ideia de que a unidade</p><p>dos discursos se funda na persistência e permanência de determinados conceitos</p><p>e defende que o reconhecimento dessa unidade decorre da descrição da</p><p>organização do campo em que os enunciados aparecem e circulam, isto é, da</p><p>descrição de:</p><p>a) como esses enunciados se sucedem:</p><p>• como as séries enunciativas se ordenam (por inferência, demonstração etc.);</p><p>• quais são os tipos de dependência enunciativa (dependência hipótese-</p><p>verificação, lei geral-caso particular etc.);</p><p>• quais são os esquemas retóricos (como se articulam num texto, por exemplo,</p><p>deduções e descrições).</p><p>b) quais são suas formas de coexistência, que incluem:</p><p>• campo de presença: todos os enunciados já formulados em alguma parte e que</p><p>são retomados em um discurso, a título de pressuposto necessário, verdade</p><p>admitida, raciocínio fundado, bem como todos os enunciados discutidos,</p><p>criticados, julgados, rejeitados, excluídos;</p><p>• campo de concomitância: enunciados que pertencem a tipos de discurso</p><p>diversos e/ou que se referem a domínios de objetos inteiramente diferentes, mas</p><p>que atuam entre os enunciados estudados, valendo como confirmação lógica,</p><p>princípio geral, modelos transferíveis a outros conteúdos etc.;</p><p>• domínio de memória: enunciados que não são mais admitidos, nem discutidos e</p><p>que, por isso, não definem mais nem um corpo de verdades, nem um domínio de</p><p>validade, mas em relação aos quais são estabelecidos laços de gênese, filiação,</p><p>transformação, continuidade ou descontinuidade histórica.</p><p>c) quais são os procedimentos de intervenção que podem ser aplicados aos</p><p>enunciados, e que aparecem:</p><p>• nas técnicas de reescrita: as que permitiram, por exemplo, aos naturalistas do</p><p>período clássico reescrever descrições lineares em quadros classificatórios;</p><p>• nos métodos de transcrição de enunciados: das línguas naturais para uma língua</p><p>mais ou menos formalizada e artificial, por exemplo;</p><p>• nos modos de tradução dos enunciados quantitativos em formulações</p><p>qualitativas e vice-versa;</p><p>• nos meios utilizados para aumentar a aproximação dos enunciados e refinar sua</p><p>exatidão;</p><p>• na maneira pela qual se delimita o domínio de validade dos enunciados (por</p><p>extensão ou restrição);</p><p>• na maneira pela qual se transfere um tipo de enunciado de um campo de</p><p>aplicação a outro (por exemplo, a transferência da caracterização vegetal à</p><p>taxinomia animal);</p><p>• nos métodos de sistematização de proposições, que já foram formuladas</p><p>anteriormente e em separado;</p><p>• nos métodos de redistribuição de enunciados já ligados uns aos outros, mas que</p><p>são recompostos em um novo conjunto sistemático.</p><p>No entanto, mais uma vez, Foucault (1969/2004) esclarece que toda essa</p><p>descrição não é suficiente para definir a unidade de um discurso, visto que o que</p><p>permite delimitar o grupo de conceitos específicos a ele é a maneira pela qual</p><p>todos esses diferentes elementos (relativos à organização do campo de</p><p>enunciados, à configuração desse campo e aos procedimentos de intervenção)</p><p>estão relacionados uns aos outros; é esse feixe de relações que constitui um</p><p>sistema de formação conceitual.</p><p>Por fim, Foucault apresenta a quarta hipótese de seu trabalho. Refutando o</p><p>pressuposto de que a unidade dos discursos provém da identidade e da</p><p>persistência de determinados temas, o autor afirma que definir essa unidade</p><p>implica definir as suas possibilidades estratégicas,³⁸ ou seja, implica:</p><p>a) assinalar os pontos de difração possíveis do discurso, que se caracterizam</p><p>como:</p><p>• pontos de incompatibilidade: dois objetos, dois tipos de enunciação ou dois</p><p>conceitos podem aparecer no mesmo discurso, mas não podem entrar em uma</p><p>mesma e única série de enunciados;</p><p>• pontos de equivalência: dois elementos incompatíveis que, por responderem às</p><p>mesmas possibilidades de existência, por serem formados a partir das mesmas</p><p>regras e se situarem em um mesmo nível, representam uma alternativa;</p><p>• pontos de ligação de uma sistematização, que possibilitam que, a partir de</p><p>pontos de equivalência ou incompatibilidade, sejam derivados uma série</p><p>coerente de objetos, formas enunciativas e conceitos, com outros pontos de</p><p>incompatibilidade ou equivalência.</p><p>b) descrever as instâncias específicas de decisão, a fim de explicar as escolhas</p><p>realizadas, entre todas que poderiam ter sido feitas. Descrever tais instâncias</p><p>implica:</p><p>• explicitar a economia da constelação discursiva, isto é, o papel desempenhado</p><p>pelo discurso estudado em relação aos que lhe são contemporâneos e vizinhos;</p><p>• descrever, entre diversos discursos, relações de delimitação recíproca, isto é,</p><p>quais são as marcas distintivas (de singularidade) de cada um deles, perceptíveis</p><p>pela diferenciação de seus métodos, instrumentos e domínio de aplicação.</p><p>c) estabelecer a função do discurso em relação às práticas não discursivas.</p><p>Em relação a essa última hipótese, Foucault (1969/2004) também afirma que a</p><p>individualidade de um discurso não decorre da descrição de todos esses pontos</p><p>relativos à formação das estratégias. Diferentemente, a individualização de um</p><p>discurso decorre do sistema de formação das diferentes estratégias que nele se</p><p>desenrolam, estratégias essas que derivam de um mesmo jogo de relações.</p><p>Como deve ter sido possível perceber na apresentação dessas quatro hipóteses, a</p><p>unidade dos discursos não decorre de um plano de análise específico, ou do</p><p>conjunto de todos os planos de análise considerados, mas do sistema de relações</p><p>entre todos eles. É considerando esse método arqueológico de análise do</p><p>discurso que Foucault (1969/2004) propõe que se busque descrever os sistemas</p><p>de dispersão em suas regularidades, afirmando que:</p><p>No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,</p><p>semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de</p><p>enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma</p><p>regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,</p><p>transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação</p><p>discursiva.³</p><p>Dessa perspectiva, mais de um discurso pode relevar de uma mesma formação</p><p>discursiva. É o caso, apenas para exemplificar, do discurso da gramática do</p><p>século XIX e do discurso da biologia do mesmo século. Isto porque os</p><p>enunciados (de diversos discursos) se submetem, em última instância, a um</p><p>sistema de formação, cujas “regras anônimas, históricas, sempre determinadas</p><p>no tempo e no espaço” definiram “em uma época dada, e para uma área social,</p><p>econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função</p><p>enunciativa” (Foucault, 1969/2004, p. 133). Evidentemente, da perspectiva</p><p>foucaultiana, não se trata de um espírito de época, mas de condições históricas</p><p>de enunciabilidade.</p><p>Tendo apresentado a noção de formação discursiva em Foucault, voltamos ao</p><p>tópico central dessa seção (apresentação das fases de AD), buscando responder</p><p>em que sentido a noção de formação discursiva formulada em Arqueologia do</p><p>saber participa do processo de transformação na concepção do objeto de análise</p><p>da Análise do Discurso.</p><p>Paul Henry (1990), no artigo intitulado “Os fundamentos teóricos da Análise</p><p>‘Análise Automática do Discurso’ de</p><p>Michel Pêcheux (1969)”, afirma que</p><p>existem muitos pontos de contato entre o que Michel Foucault e Michel Pêcheux</p><p>elaboraram em suas reflexões sobre discurso, dentre eles — e talvez o ponto</p><p>mais evidente — o interesse comum que partilhavam pela história das ciências e</p><p>das ideias. Falar, pois, das influências do trabalho de Foucault sobre as reflexões</p><p>de Pêcheux — mesmo no que tange especificamente às formulações referentes à</p><p>Arqueologia do saber — exigiria paralelos razoavelmente extensos.⁴ Para os</p><p>propósitos deste texto, entretanto, gostaríamos apenas de pontuar que uma das</p><p>contribuições fundamentais que a noção de formação discursiva desenvolvida</p><p>por Foucault traz para o campo da Análise do Discurso é a possibilidade de se</p><p>eliminar o problema da homogeneidade na constituição dos corpora</p><p>discursivos.⁴¹ O campo de aplicação da noção de formação discursiva</p><p>foucaultiana extrapola — e muito — um discurso produzido a partir de</p><p>condições de produção homogêneas (concepção de discurso formulada na</p><p>primeira fase da AD), e isso será decisivo para os novos horizontes vislumbrados</p><p>pelas reflexões de Pêcheux.</p><p>A noção de formação discursiva é acolhida por Pêcheux, mas reconfigurada no</p><p>quadro teórico do marxismo althusseriano, passando a constituir a tríade</p><p>formação social, formação ideológica e formação discursiva. De acordo com</p><p>Pêcheux e Fuchs (1975/1990), toda formação social se caracteriza por uma certa</p><p>relação entre as classes sociais e implica a existência de posições ideológicas e</p><p>políticas que se organizam em formações, que mantêm entre si relações de</p><p>confronto e antagonismo, de aliança ou dominação. A esse respeito, os autores</p><p>esclarecem que falarão em formação ideológica</p><p>para caracterizar um elemento (esse aspecto da luta nos aparelhos) suscetível de</p><p>intervir como uma força em confronto com outras na conjuntura ideológica</p><p>característica de uma formação social em dado momento; desse modo, cada</p><p>formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de</p><p>representações que não são nem “individuais” nem “universais” mas se</p><p>relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas</p><p>com as outras.⁴²</p><p>Seguindo Althusser, Pêcheux e Fuchs ainda afirmam que o discursivo deve ser</p><p>concebido como um dos aspectos materiais da materialidade ideológica, ou, em</p><p>outras palavras, afirmam que</p><p>a espécie discursiva pertence ao gênero ideológico, o que é o mesmo que dizer</p><p>que as formações ideológicas (...) comportam necessariamente, como um de seus</p><p>componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam</p><p>o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma harenga, um sermão</p><p>um panfleto, uma exposição, um programa etc.) a partir de uma posição dada</p><p>numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um</p><p>aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes.⁴³</p><p>As formações discursivas, portanto, intervêm nas formações ideológicas</p><p>enquanto componentes que materializam a contradição entre diferentes posições</p><p>ideológicas. Assim, uma formação discursiva (doravante FD) não pode ser</p><p>concebida como homogênea ou como um espaço estrutural fechado, visto que,</p><p>pelo fato de suas condições de produção serem contraditórias, ela se constitui</p><p>como um espaço constantemente invadido por elementos que vêm de outro</p><p>lugar, de outras formações discursivas. Neste sentido, o espaço de uma FD é</p><p>atravessado pelo “pré-construído”,⁴⁴ ou seja, por discursos que vieram de outro</p><p>lugar (de uma construção anterior e exterior) e que são incorporados por ela</p><p>numa relação de confronto ou aliança. Uma FD, portanto, é constituída por um</p><p>sistema de paráfrases, já que é um espaço em que enunciados são retomados e</p><p>reformulados sempre “num esforço constante de fechamento de suas fronteiras</p><p>em busca da preservação de sua identidade”.⁴⁵</p><p>Nesta segunda fase da AD, o objeto de análise passará a ser as relações entre as</p><p>“máquinas” discursivas. Vale ressaltar, no entanto, que o fechamento da</p><p>maquinaria ainda é conservado, pois a presença do outro (outra FD) sempre é</p><p>concebida a partir do interior da FD em questão.</p><p>No que diz respeito aos procedimentos de análise, a AD-2 apresenta muito</p><p>poucas inovações; o deslocamento efetivo que se dá com relação à AD-1 diz</p><p>respeito sobretudo ao objeto de análise: discursos menos “estabilizados”, por</p><p>serem produzidos a partir de condições de produção menos homogêneas. O</p><p>“discurso comunista dirigido aos cristãos”, corpus de análise de Courtine (1981)</p><p>é um bom exemplo.</p><p>A desconstrução da maquinaria discursiva só ocorrerá mesmo na terceira fase da</p><p>Análise do Discurso⁴ (AD-3). Essa desconstrução é decorrente de um</p><p>deslocamento que ocorre no que diz respeito à relação de uma FD com as outras.</p><p>Na AD-2, o “outro” — outra(s) FD(s) — é incorporado pela FD em questão, que</p><p>mantém, mesmo sendo atravessada por outros discursos, uma identidade. É</p><p>possível, através de uma análise discursiva, determinar o interno e o externo de</p><p>uma formação discursiva, isto é, o que pertence a uma ou à(s) outra(s) FD(s).</p><p>Na AD-3, por sua vez, adota-se a perspectiva segundo a qual uma FD está</p><p>sempre dominada pelo interdiscurso,⁴⁷ a ponto de Pêcheux afirmar que a</p><p>formação discursiva só pode produzir o assujeitamento ideológico — isto é, só</p><p>pode levar um sujeito a ocupar uma posição no interior das relações de classes</p><p>sem se dar conta de que é levado a isso —, na medida em que ela está de fato</p><p>dominada pelo interdiscurso, conceito que é entendido pelo autor como sendo o</p><p>conjunto estruturado das formações discursivas ou, ainda, como um todo</p><p>complexo com dominante. Essa é uma das formas de se entender uma tese cara à</p><p>AD, a saber, a do primado do interdiscurso sobre o discurso:</p><p>(...) toda formação discursiva dissimula, pela transparência de sentido que nela</p><p>se constitui, sua dependência em relação ao “todo complexo com dominante”</p><p>das formações discursivas, intricado no complexo das formações ideológicas.⁴⁸</p><p>Essa nova postura teórica frente ao objeto da AD exclui definitivamente a</p><p>possibilidade de se considerar a FD como a unidade de análise. O objeto de</p><p>análise da Análise do Discurso passa a ser o espaço de trocas entre formações</p><p>discursivas, ou ainda, o interdiscurso.</p><p>Os trabalhos de Dominique Maingueneau, além de serem bastante</p><p>representativos dessa nova forma de se conceber o objeto da AD, ainda</p><p>desenvolvem uma concepção de interdiscurso bastante produtiva e operacional</p><p>para o analista do discurso, na medida em que explicita seus diversos níveis de</p><p>funcionamento. Em Gênese dos discursos (1984/2008), o autor concebe o</p><p>interdiscurso a partir da consideração do discurso sob o duplo ponto de vista de</p><p>sua gênese e de sua relação com o interdiscurso, o que significa assumir que a</p><p>identidade de um discurso é indissociável de sua emergência e de sua</p><p>manutenção através do interdiscurso. Ou seja, o que há, a princípio, é o</p><p>interdiscurso (um conjunto de formações discursivas em relação), de modo que a</p><p>identidade de cada FD não está dada a priori, mas se constitui de maneira</p><p>regulada no interior de um interdiscurso. Será a relação interdiscursiva, portanto,</p><p>que estruturará a identidade das formações discursivas em relação. Um</p><p>postulado como esse explode definitivamente o procedimento de análise por</p><p>etapas, com ordem fixa, tal como levavam a cabo os trabalhos da AD-1 e da AD-</p><p>2.</p><p>O conceito de interdiscurso apresentado em Gênese dos discursos⁴ é um dos</p><p>pontos fortes da reflexão teórica de Dominique Maingueneau. No intuito de</p><p>especificar melhor essa noção, que considera vaga para seus propósitos, o autor</p><p>propõe que se considere o interdiscurso a partir da tríade universo discursivo,</p><p>campo discursivo e espaço discursivo.</p><p>A noção de universo discursivo diz respeito ao conjunto de formações</p><p>discursivas de todos os tipos, que interagem em uma conjuntura dada. Mesmo</p><p>não sendo possível apreendê-lo em sua globalidade, trata-se de um conjunto</p><p>finito que define uma extensão a partir da qual serão construídos domínios</p><p>susceptíveis de serem estudados, a saber, os campos discursivos.</p><p>O campo discursivo deve</p><p>ser compreendido como sendo um conjunto de</p><p>formações discursivas⁵ com mesma função social, que divergem, entretanto,</p><p>quanto ao modo pelo qual essa função deve ser preenchida.⁵¹ Em uma região</p><p>determinada do universo discursivo, tais formações discursivas buscam</p><p>delimitar-se reciprocamente, por meio de uma relação de concorrência,</p><p>compreendendo este último termo de maneira mais ampla, de modo a significar</p><p>tanto afrontamento aberto, quanto aliança, neutralidade aparente etc. O recorte</p><p>em campos discursivos não define zonas insulares; é antes uma abstração</p><p>necessária que deve permitir abrir múltiplas redes de trocas. A delimitação</p><p>desses campos também não tem nada de evidente, mas exige do analista que ele</p><p>faça hipóteses e escolhas, pautadas tanto na materialidade linguística dos</p><p>supostos discursos que se encontram em relação, como nas condições de</p><p>enunciabilidade de tais discursos, condições que, por sua vez, circunscrevem-se</p><p>historicamente.</p><p>É no interior do campo discursivo que se constitui uma FD, e sua constituição</p><p>pode, de acordo com Maingueneau, ser descrita em termos de operações</p><p>regulares sobre formações discursivas já existentes. Essa hipótese nos conduz a</p><p>uma outra noção definida pelo autor, a saber, a noção de espaço discursivo, que</p><p>deve ser compreendido como um subconjunto de formações discursivas cuja</p><p>relação o analista julga pertinente considerar para seu propósito. O recorte desse</p><p>subconjunto deve resultar de hipóteses fundadas sobre um conhecimento dos</p><p>textos e sobre um saber histórico que serão confirmados, ou não, no decorrer da</p><p>pesquisa.</p><p>Estas três noções (universo, campo e espaço discursivos) trazidas para o interior</p><p>da Análise do Discurso por Maingueneau permitem definir zonas de</p><p>regularidade semântica (o campo e o espaço), no interior das quais pode ser mais</p><p>produtivo o tratamento da gênese e do modo de coesão entre as formações</p><p>discursivas em relação, já que tais zonas de regularidade acabam por delimitar</p><p>rigorosamente o fenômeno da interdiscursividade a partir de condições históricas</p><p>bem especificadas.</p><p>Na seção que se segue, faremos a análise de uma crônica a fim de</p><p>operacionalizar uma análise de texto com base nos pressupostos da AD.</p><p>Retomaremos alguns conceitos já apresentados, além de apresentar outros ainda</p><p>não abordados (pelo menos de forma direta), como os conceitos de sujeito e</p><p>sentido.⁵²</p><p>3. UMA ANÁLISE</p><p>3.1. Como ler um texto: em pauta as noções de formação ideológica, formação</p><p>discursiva, interdiscurso, condições de produção, heterogeneidade, sujeito e</p><p>sentido</p><p>Nesta seção, nos debruçaremos sobre a análise de um texto — a crônica “Um só</p><p>seu filho” de Bráulio Tavares, publicada no Caderno Mais da Folha de S.Paulo,</p><p>no dia l6 de março de 1997. Antes, porém, é necessário esclarecer que o texto,</p><p>para a AD, não é concebido como uma unidade coerente de sentido, tal como o</p><p>é, por exemplo, para a Linguística Textual. A relevância do texto para a AD</p><p>“decorre do fato de que cada texto é parte de uma cadeia (de um arquivo)”,</p><p>decorre de ele ser concebido “como uma superfície discursiva, uma</p><p>manifestação aqui e agora de um processo discursivo específico”.⁵³ Para a AD, o</p><p>texto faz sentido</p><p>por sua inserção em uma FD, em função de uma memória discursiva, do</p><p>interdiscurso, que o texto retoma e do qual é parte. Ou seja, não há propriamente</p><p>texto, concebido como uma unidade; o que há são linearizações concretas</p><p>(materiais) de discursos.⁵⁴</p><p>Será, pois, desta perspectiva que empreenderemos a análise da crônica. Vale</p><p>ainda esclarecer que a escolha por este material de análise se justifica pela</p><p>própria forma como a crônica é construída, de maneira bastante interessante para</p><p>um primeiro contato com alguns dos fundamentos teóricos da AD. Em função</p><p>dos objetivos deste capítulo, não consideraremos aspectos literários do texto em</p><p>questão, o que não significa que não os reconheçamos.⁵⁵</p><p>Outra questão importante a esclarecer é que empreenderemos uma análise</p><p>fundamentalmente de filiação pecheutiana, mobilizando os conceitos de</p><p>formação ideológica, formação discursiva, interdiscurso, condições de produção,</p><p>heterogeneidade, sujeito e sentido. Entretanto, como se trata de um texto literário</p><p>e não de um texto do campo político (tipo de corpus privilegiado por Pêcheux),</p><p>são necessários alguns deslocamentos teóricos. Mais efetivamente, os</p><p>deslocamentos necessários são aqueles relacionados às noções de formação</p><p>ideológica e formação discursiva. Como já apresentado, a noção de formação</p><p>ideológica, tal como mobilizada em Pêcheux e Fuchs (1975/1990, p. 166), é</p><p>definida como sendo um conjunto de atitudes e representações que “se</p><p>relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas</p><p>com as outras” (grifos nossos). A formação discursiva, como componente da</p><p>formação ideológica, acaba por materializar — também mais ou menos</p><p>diretamente — essas posições de classe em conflito. A própria formulação</p><p>desses conceitos, portanto, abre possibilidade para a análise de corpora</p><p>discursivos a partir dos quais se podem considerar conjuntos de atitudes e</p><p>representações que se relacionam menos diretamente a posições de classe, como</p><p>é o caso, a nosso ver, do discurso literário.⁵ Consequentemente, a noção de</p><p>formação discursiva passa a ser produtiva também em campos não propriamente</p><p>(ou diretamente) político-social ou econômico. Assumindo, pois, a possibilidade</p><p>desse deslocamento, é que, na análise da crônica “Um só seu filho”,</p><p>mobilizaremos, da perspectiva pecheutiana, as noções de formação ideológica e</p><p>de formação discursiva, focalizando, a partir dessas noções, conflitos e</p><p>contradições ideológicas decorrentes do embate entre diferentes posições</p><p>discursivas.</p><p>Outras perspectivas discursivas de abordagem dessa crônica poderiam ser</p><p>empreendidas. No entanto, como este capítulo tem o intuito de apresentar os</p><p>fundamentos da constituição da Análise do Discurso enquanto disciplina, e é</p><p>Pêcheux quem se debruça mais arduamente sobre essa tarefa, colocando a</p><p>questão fundamental da AD, a saber, como ler um texto, e postulando as bases</p><p>para uma semântica discursiva que seja da ordem das formações discursivas e</p><p>não da ordem da língua,⁵⁷ optamos por privilegiar a perspectiva teórica</p><p>pecheutiana.</p><p>Tendo feito essas considerações, reproduzimos, a seguir, a crônica a ser</p><p>analisada.</p><p>Naquela noite, o papa atravessou sua recorrente insônia com a ajuda de algumas</p><p>páginas do tratado ilustrado de Mary D’Império sobre o manuscrito Voynich, na</p><p>edição de luxo de 1994. Leu até que os nomes de John Dee e Roger Bacon</p><p>pareceram misturar-se e seus olhos começaram a arder. Usando os óculos</p><p>dobrados para marcar a página, colocou o livro sobre a mesa de cabeceira e</p><p>apertou o botão que mergulhou o quarto nas trevas. Fez suas orações deitado,</p><p>autoindulgência da qual teria se envergonhado aos 60 anos, mas que agora já lhe</p><p>parecia um direito adquirido. Também lhe sucedia às vezes adormecer antes de</p><p>concluir as preces; isso também não o inquietava mais. Pensava: “Deus enxerga</p><p>meu coração; ele sabe que meu pecado não é este, que minhas dívidas são</p><p>outras”.</p><p>De repente, estava sentado no alto de uma montanha. O horizonte imenso</p><p>estendia-se à sua frente; o vento era frio, mas não incomodava.</p><p>— Este foi seu último dia sobre a Terra — disse uma voz ao seu lado. Tens agora</p><p>o direito de fazer um último pedido.</p><p>Ao seu lado havia uma forma que a princípio ele tomou por um homem de pé,</p><p>depois por uma árvore, depois por uma nuvem vertical. Seus traços podiam</p><p>corresponder a qualquer uma das coisas, e ele imaginou que aquilo era Deus.</p><p>— Obrigado, Senhor — disse. Não mereço esta graça.</p><p>— Todos os homens a recebem — disse a voz. Não és melhor do que ninguém.</p><p>Sem saber o que responder, ele inclinou-se mais uma vez. Pensou: “É meu</p><p>último dia de vida, isto não deve me amedrontar; é como quando após uma</p><p>refeição alguém retira de minha frente o prato vazio. Por que me rebelar, se já</p><p>fruí o que me interessava?”.</p><p>— Olha para tua mão — disse a voz. O que mais desejas?</p><p>Ele fitou a palma da própria mão: viu com espantosa nitidez as linhas e as</p><p>comissuras da pele, viu as rugosidades, o intrincamento têxtil das camadas</p><p>superpostas, viu o fervilhar da matéria viva e as células que se partiam e se</p><p>fundiam umas às outras como gotas d’água.</p><p>— Nascer de novo — respondeu ele, sem pensar.</p><p>— Queres voltar ao passado?</p><p>— Quero nascer de novo, mas no futuro — retrucou. Quero nascer sob a forma</p><p>de outra pessoa e saber se serei novamente seminarista, e padre, e cardeal, e</p><p>papa. Quero que algumas destas minhas células sejam transplantadas para um</p><p>tubo de ensaio e dali talvez para um ventre, de onde eu renasça: corpo, rosto e</p><p>mente iguais aos que tive quando nasci. Código genético igual ao meu, sem a</p><p>interferência abastardante de genes de uma fêmea, de uma parideira intrusa.</p><p>Quero que meu espírito se faça carne, mas quero ser o Pai único de meu Filho.</p><p>— Para quê?</p><p>Ele ergueu-se e maravilhou-se de ver que mesmo diante de Deus podia ficar de</p><p>pé quando bem entendesse (“mas, aí”, pensou, “é o último dia”). Olhou o vale</p><p>que se espalhava lá embaixo: à luz roxa que vinha do céu, distinguia florestas,</p><p>mares, arquipélagos, cidades, desertos de areia intacta, enormes cordilheiras de</p><p>gelo rodopiando devagar em águas de um azul metálico. Cruzou os braços e</p><p>virou-se para o vulto.</p><p>— Se minha alma existe está ligada sem remissão a este corpo mortal. Se meu</p><p>corpo se repetir, minha alma permanecerá aqui na Terra. De novo nascerei e</p><p>serei um menino que irá dançar ao som de pandeiros e rabecas; de novo roubarei</p><p>frutas, correrei atrás de cães, beijarei a boca de alguma moça de tranças louras.</p><p>De novo estudarei o latim e a álgebra, de novo andarei anônimo e de batina por</p><p>entre homens arrogantes que não suspeitarão o meu futuro. Farei voto de</p><p>pobreza e viverei depois como um monarca; farei voto de obediência e subirei</p><p>degrau após degrau das hierarquias de comando; farei voto de castidade... e</p><p>quem sabe da próxima vez terei mais sorte.</p><p>Lá embaixo, no vale, a luz crescia, e ele já enxergava centenas de metrópoles e</p><p>cada janela de cada casa, e cada rosto adormecido por trás de cada janela.</p><p>— Ninguém teve esta segunda chance — disse a voz, mas sem tentar persuadi-</p><p>lo.</p><p>— O que pedem os homens, então?</p><p>— Pedem dinheiro, poder, mulheres. Pedem oxímoros, paradoxos: juventude</p><p>eterna, imortalidade do corpo... Tu pedes que teu corpo se multiplique. E se, em</p><p>vez de um, fizerem dois? De quantas almas irás precisar? E se fizerem 20, 200?</p><p>Ele voltou a sentar-se. Sabia que quem acabara de fazer aquele pedido não era o</p><p>ancião calejado pelos debates escolásticos, o erudito capaz de enfrentar a</p><p>teologia e a metafísica em 12 idiomas e, sim, o rapaz que em uma noite de febre</p><p>sentira pela primeira vez, no pulsar dos próprios gânglios, a semente da morte</p><p>crescendo dentro de si.</p><p>— Vai, pede — disse a voz; e, sem surpresa, ele soube naquele instante que</p><p>aquela voz não era Deus. Estendeu a mão para o vulto, e tocou nele.</p><p>O camareiro, que se chamava Gesualdo, encontrou-o pela manhã, apalpou a pele</p><p>fria de seu rosto, viu os olhos azuis virados para o teto. Gritou por socorro e teve</p><p>a preocupação de não tocar em nada no quarto.</p><p>Nessa crônica é possível perceber que se cruzam, pelo menos, duas questões</p><p>mobilizadas pelo autor através do devaneio do Papa, que se vê diante de seu</p><p>último dia de vida. Antes de iniciarmos esta análise, no entanto, gostaríamos de</p><p>esclarecer que, ao falarmos em devaneio ou discurso do personagem Papa,</p><p>estaremos, na verdade, sempre nos referindo a discursos que são mobilizados</p><p>pelo autor por meio deste personagem. Neste devaneio é delatado um conflito</p><p>entre dois posicionamentos, um religioso e outro científico. Suspenso entre duas</p><p>maneiras de conceber a sua existência, o Papa reflete sobre a possibilidade de</p><p>nascer de novo, “sem a interferência abastardante de uma fêmea, de uma</p><p>parideira intrusa”, numa referência à clonagem de seres humanos, mas se depara</p><p>com um conflito espiritual: “Tu pedes que teu corpo se multiplique. E se, em vez</p><p>de um, fizerem dois? De quantas almas irás precisar?”.</p><p>A Análise do Discurso considera como parte constitutiva do sentido o contexto</p><p>histórico-social; ela considera as condições em que este texto, por exemplo, foi</p><p>produzido. Contextualizado num momento histórico em que a clonagem</p><p>levantava a questão da ética na ciência, nada mais representativo desse contexto</p><p>que a figura do Papa como contraponto ideológico. Por meio deste personagem,</p><p>o autor presentifica no texto o posicionamento religioso católico que faz</p><p>oposição a uma ciência que se confronta com a concepção de homem como ser</p><p>espiritual. Se este contexto for ignorado, todo o sentido do texto é alterado. Basta</p><p>considerar a hipótese de este texto, por exemplo, ter sido escrito no século XIX,</p><p>em que a clonagem de seres humanos não passava de pura ficção científica e não</p><p>era, como nos dias atuais, uma possibilidade que a ciência considera. Este texto</p><p>não teria o estatuto que atribuímos a ele, o de colocar em cena um conflito</p><p>ideológico atual, mas lhe seria atribuído o estatuto de “ficção científica” por</p><p>abordar fatos inconcebíveis ao homem da época. O contexto histórico-social,</p><p>então, as condições de produção, constituem parte do sentido do discurso e não</p><p>apenas um apêndice que pode ou não ser considerado. Em outras palavras, pode-</p><p>se dizer que, para a AD, os sentidos são historicamente construídos.</p><p>Nesta crônica, é delatado um conflito, um confronto entre forças ideológicas. O</p><p>conflito, materializado na alternância das posições que o personagem Papa</p><p>ocupa durante seu devaneio — ora desempenha o papel de autoridade da Igreja</p><p>Católica, instituição que representa, ora ocupa o lugar de um homem comum</p><p>fascinado pelas promessas da ciência de sua época —, é caraterístico de posições</p><p>ideológicas contrárias uma em relação à outra em uma conjuntura dada, ou seja,</p><p>o conflito é característico de um embate de nossa época. O texto, portanto, não</p><p>se apresenta como um conjunto de enunciados unificados por posições</p><p>ideológicas não conflitantes, como algo homogêneo. Ao contrário, o texto se</p><p>constitui de posicionamentos divergentes cujas fronteiras se intersectam (o</p><p>próprio devaneio se caracteriza pela ausência de uma demarcação definida entre</p><p>uma posição e outra); o texto, nesse sentido, é constitutivamente heterogêneo, de</p><p>modo que não é possível definir a identidade de um desses posicionamentos sem</p><p>remeter ao outro.</p><p>O que se pode dizer do devaneio do Papa? Que ele representa um</p><p>posicionamento da Igreja Católica com relação à liberdade do homem diante da</p><p>própria vida? Que ele representa as possibilidades que a ciência moderna oferece</p><p>ao homem de ser senhor da própria vida? Não é possível optar por apenas uma</p><p>das hipóteses sem incorrer no risco de desconfigurar o sentido do texto. O</p><p>devaneio do Papa representa, ao mesmo tempo, o posicionamento católico e o</p><p>posicionamento da ciência moderna, ele só existe na verdade porque existe um</p><p>conflito ideológico, ético no caso, entre as duas posições. Como já apontado,</p><p>Pêcheux e Fuchs (1975/1990) falam em formação ideológica (FI) para</p><p>caracterizar este confronto de forças em um dado momento histórico. Sendo</p><p>assim, uma formação ideológica comporta necessariamente mais de uma posição</p><p>capaz de se confrontar uma com a outra. Na verdade, numa formação ideológica,</p><p>as forças não precisam estar necessariamente em confronto; elas podem entreter</p><p>entre si relações de aliança ou também de dominação. A ideia de confronto foi</p><p>colocada em destaque aqui unicamente em função do texto analisado.</p><p>O conceito de formação discursiva (FD), também já apresentado, é mobilizado</p><p>pela AD de filiação pecheutiana para designar o lugar onde se articulam discurso</p><p>e ideologia. Nesse sentido é que podemos dizer que uma formação discursiva é</p><p>governada por uma formação ideológica (FI). Como uma FI coloca em relação</p><p>necessariamente mais de uma força ideológica, uma formação discursiva sempre</p><p>colocará em jogo mais de uma posição discursiva. No caso da crônica analisada,</p><p>temos interligados, por uma relação de forças contraditórias, certo</p><p>posicionamento da ciência moderna e o posicionamento</p><p>religioso católico.</p><p>Para esclarecer melhor a constituição de uma formação discursiva, gostaríamos</p><p>de analisar uma tira de Bill Watterson:</p><p>Calvin, o personagem menino que assume o papel de enunciador do discurso “A</p><p>força para mudar o que eu puder, a inabilidade de aceitar o que eu não posso e a</p><p>incapacidade de ver a diferença”, enuncia inscrito em uma formação discursiva.</p><p>Como uma FD é um dos componentes de uma formação ideológica específica, o</p><p>fechamento, o limite que define uma formação discursiva é instável, pois ela se</p><p>inscreve em um espaço de embates, de lutas ideológicas. Assim, uma FD não</p><p>consiste em um limite traçado de maneira definitiva; uma FD se inscreve entre</p><p>diversas formações discursivas, e a fronteira entre elas se desloca em função dos</p><p>embates da luta ideológica, sendo esses embates recuperáveis no interior mesmo</p><p>de cada uma das FDs em relação. Vejamos como isso se dá no discurso de</p><p>Calvin.</p><p>O quadro que se segue foi-nos apresentado por um aluno do 2º ano do curso de</p><p>Tradutor e Intérprete da Universidade de Franca,⁵⁸ por ocasião da leitura da</p><p>primeira versão deste texto. Nós o reproduzimos aqui como uma contribuição</p><p>para a explanação do conceito em questão.</p><p>FD FD CRISTÃ</p><p>“A força para mudar o que eu puder” A força para mudar o que puder (objetiva transformar)</p><p>“A inabilidade para aceitar o que eu não posso” A habilidade de aceitar o que não pode ser mudado (resignação diante dos obstáculos intransponíveis)</p><p>“A incapacidade de ver a diferença” A capacidade de ver a diferença (aspira-se à sabedoria)</p><p>O quadro apresentado mostra o discurso de Calvin como decorrente de um</p><p>embate entre duas formações discursivas, a “FD cristã”, enunciada a partir de um</p><p>lugar ideológico que valoriza a convivência pacífica e equilibrada de um sujeito</p><p>consigo mesmo e com o próximo, e a “FD neoliberal”,⁵ enunciada a partir de</p><p>um lugar ideológico que valoriza a vida pautada pelos desejos pessoais e</p><p>particulares do sujeito (os nomes dados às FDs são bastante “esquemáticos”, no</p><p>sentido de rotularem os discursos; foram escolhidos em função do que julgamos</p><p>ser o componente semântico mais característico das FDs em questão e são aqui</p><p>utilizados apenas para fins didáticos). De acordo com o quadro, um mesmo</p><p>enunciado pode ser compreendido de duas maneiras, dependendo do lugar</p><p>ideológico de onde é enunciado. “A força para mudar o que eu puder” pode</p><p>significar a luta por uma transformação pautada na boa vontade e na</p><p>solidariedade cristãs ou uma imposição ditatorial pautada pelo egocentrismo e</p><p>individualismo. Ao mesmo tempo, enunciados como “A inabilidade para aceitar</p><p>o que eu não posso” e “A incapacidade para ver a diferença”, que parecem nos</p><p>remeter univocamente à “FD neoliberal”, no quadro são apresentados como nos</p><p>remetendo também à “FD cristã”. O leitor deve estar se perguntando por quê.</p><p>Uma breve apresentação do conceito de heterogeneidade discursiva poderá</p><p>esclarecer essa questão. Antes, porém, não poderíamos deixar de fazer uma</p><p>referência a Bakhtin (1929/1988), que apresenta uma noção de dialogismo sobre</p><p>a qual se funda grande parte da literatura sobre heterogeneidade discursiva.</p><p>Bakhtin (1929/1988) considera que a verdadeira substância da língua é</p><p>constituída pelo fenômeno social da interação verbal e que o ser humano é</p><p>inconcebível fora das relações que o ligam ao outro. Partindo desse</p><p>pressuposto, critica a concepção de língua enquanto estrutura, argumentando</p><p>que, ao ser tomada como alheia aos processos sociais, passa a não ser articulável</p><p>com uma prática social concreta, com a história e tampouco com o sujeito.</p><p>Segundo Authier-Revuz (1982), um paradigma é constante nos estudos do</p><p>círculo de Bakhtin: opõem-se o dialógico ao monológico, o múltiplo ao único, o</p><p>heterogêneo ao homogêneo. ¹ O dialogismo do círculo de Bakhtin, no entanto,</p><p>não tem como preocupação central o diálogo face a face, mas diz respeito a uma</p><p>teoria de dialogização interna do discurso. É nesse sentido que, para Bakhtin, o</p><p>discurso, cujo dialogismo se orienta para outros discursos e para o outro da</p><p>interlocução, instaura-se numa perspectiva plurivalente de sentidos, bem como a</p><p>própria palavra que, pelo fato de ser atravessada por sentidos constituídos</p><p>historicamente, não é monológica, não é neutra, mas atravessada pelos discursos</p><p>nos quais viveu sua existência socialmente sustentada. ²</p><p>Recorrendo a este conceito de dialogismo ³ concebido pelo círculo de Bakhtin,</p><p>Authier-Revuz (1990) indica algumas formas de heterogeneidade mostrada no</p><p>discurso, formas que se articulam sobre a realidade da heterogeneidade</p><p>constitutiva de todo discurso. A heterogeneidade constitutiva, segundo</p><p>Maingueneau (1997), não é marcada em superfície, mas a AD pode defini-la,</p><p>formulando hipóteses, a partir do pressuposto da presença constante do Outro na</p><p>constituição de uma formação discursiva. Authier-Revuz (1982) aponta três tipos</p><p>de heterogeneidade mostrada:</p><p>a) aquela em que o locutor ou usa de suas próprias palavras para traduzir o</p><p>discurso de um Outro (discurso relatado) ou então recorta as palavras do Outro e</p><p>as cita (discurso direto);</p><p>b) aquela em que o locutor assinala as palavras do Outro em seu discurso, por</p><p>meio, por exemplo, de aspas, de itálico, de uma remissão a outro discurso, sem</p><p>que o fio discursivo seja interrompido;</p><p>c) aquela em que a presença do Outro não é explicitamente mostrada na frase,</p><p>mas é mostrada no espaço do implícito, do sugerido, como nos casos do discurso</p><p>indireto livre, da antífrase, da ironia, da imitação, da alusão. ⁴</p><p>Essas três formas de heterogeneidade mostrada assinalam a presença do Outro</p><p>na superfície discursiva de maneira diferente, desde formas mais evidentes (a, b),</p><p>que Authier-Revuz (1990) classifica como heterogeneidade mostra-</p><p>da marcada, até a forma mais complexa, menos evidente (c), em que a voz do</p><p>locutor se mistura à do Outro, e que a autora classifica como heterogeneidade</p><p>mostrada não marcada. No entanto, independentemente dessa classificação,</p><p>todas essas formas de heterogeneidade estão ancoradas no princípio da</p><p>heterogeneidade constitutiva do discurso.</p><p>Retornando agora à análise da tira de Watterson apresentada no quadro, ficará</p><p>mais fácil de compreender por que os enunciados “A inabilidade para aceitar o</p><p>que eu não posso” e “A incapacidade para ver a diferença” são apresentados</p><p>como remetendo também à “FD cristã”.</p><p>Nos dois enunciados há a marca da negação — o prefixo in —, uma forma de</p><p>heterogeneidade mostrada marcada na superfície do discurso. Por meio desta</p><p>marca, o que é negado é justamente o discurso que é apresentado no quadro</p><p>como remetendo à “FD cristã”: “A habilidade para aceitar o que eu não posso” e</p><p>“A capacidade para ver a diferença”. Assim, a negação de um discurso</p><p>necessariamente nos remete a ele, de forma que ele pode ser percebido como a</p><p>presença do “Outro” no interior do discurso que o nega.</p><p>Já o enunciado “A força para mudar o que eu puder”, como já dito</p><p>anteriormente, também remete à “FD cristã” e à “FD neoliberal”, mas pela</p><p>presença da heterogeneidade mostrada não marcada na superfície discursiva. É</p><p>no espaço do sugerido que percebemos esta heterogeneidade, é em função da</p><p>relação que estabelecemos entre “A força para mudar o que eu puder” e os</p><p>demais enunciados do discurso de Calvin que percebemos a dupla alusão deste</p><p>enunciado. Retomando Maingueneau (1997), é formulando hipóteses desse tipo</p><p>que podemos perceber a presença constante do Outro na constituição de uma</p><p>formação discursiva, que podemos perceber a realidade da heterogeneidade</p><p>constitutiva do discurso. A própria Authier-Revuz (1982) considera que os dois</p><p>níveis de heterogeneidade mostrada, a marcada e a não marcada, são, na</p><p>verdade, formas linguísticas de representação de diferentes modos de negociação</p><p>do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva, sendo a heterogeneidade</p><p>mostrada não marcada uma forma mais arriscada de negociação porque, ao jogar</p><p>com a diluição, é mais dificilmente controlada pelo sujeito.</p><p>Foi possível perceber, então, que existe, numa formação discursiva, sempre a</p><p>presença do Outro,</p><p>e é esta presença que confere ao discurso o caráter de ser</p><p>heterogêneo. O quadro apresentado a partir da análise da tira de Watterson dá</p><p>visibilidade a esse caráter heterogêneo do discurso. Apesar de Calvin enunciar</p><p>de um lugar ideológico, digamos, “neoliberal”, os embates entre este lugar</p><p>ideológico e o “cristão” são recuperáveis no interior mesmo da FD. Calvin, ao</p><p>ironizar o discurso cristão negando-o através de uma paródia, recupera-o como</p><p>parte constitutiva do discurso. É em função desse modo de funcionamento</p><p>discursivo que Maingueneau (1997) — considerando, na esteira de Pêcheux, que</p><p>uma formação discursiva não pode ser compreendida como um bloco compacto</p><p>e fechado, mas que ela é definida a partir de uma incessante relação com o Outro</p><p>— afirma o primado do interdiscurso sobre o discurso. Para ele, como já</p><p>dissemos anteriormente, a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas</p><p>um espaço de trocas entre vários discursos. Os diversos discursos que</p><p>atravessam uma FD não passam de componentes, ou seja, em termos de gênese,</p><p>tais discursos não se constituem independentemente uns dos outros para serem,</p><p>em seguida, postos em relação, mas se formam de maneira regulada no interior</p><p>de um interdiscurso. Será a relação interdiscursiva, pois, que estruturará a</p><p>identidade das FDs em questão. A AD-3 e as recentes pesquisas tomam, como já</p><p>apontado, o interdiscurso como um pressuposto teórico.</p><p>O pressuposto do primado do interdiscurso sustenta-se muito bem na crônica</p><p>“Um só seu filho”, pois o sentido do texto não pode ser apreendido em um</p><p>espaço fechado, dependente de uma posição enunciativa absoluta ou de outra,</p><p>mas ele deve ser apreendido como circulação dissimétrica de uma posição</p><p>enunciativa à outra. Observemos dois trechos.</p><p>Quando a voz pergunta ao Papa qual era o seu último pedido, o Papa, depois de</p><p>alguma hesitação, responde:</p><p>— Quero nascer de novo, mas no futuro — retrucou. Quero nascer sob a forma</p><p>de outra pessoa e saber se serei novamente seminarista, e padre, e cardeal, e</p><p>papa. Quero que algumas destas minhas células sejam transplantadas para um</p><p>tubo de ensaio e dali talvez para um ventre, de onde eu renasça: corpo, rosto e</p><p>mente iguais aos que tive quando nasci. Código genético igual ao meu, sem a</p><p>interferência abastardante de genes de uma fêmea, de uma parideira intrusa.</p><p>Quero que meu espírito se faça carne, mas quero ser o Pai único de meu Filho.</p><p>Nesse trecho, podemos perceber que há um diálogo incessante entre a “voz” da</p><p>ciência — “Código genético igual ao meu, sem a interferência abastardante de</p><p>genes de uma fêmea, de uma parideira intrusa.” — e a “voz” da religião —</p><p>“Quero que meu espírito se faça carne, mas quero ser o Pai único de meu Filho”.</p><p>A posição enunciativa do sujeito do discurso, no caso o personagem Papa,</p><p>mobilizado pelo autor como responsável por esta enunciação, circula</p><p>dissimetricamente pelo espaço interdiscursivo, na medida em que ora enuncia de</p><p>uma posição, ora de outra.</p><p>O mesmo ocorre quando esse personagem faz uma reflexão a respeito do que ele</p><p>voltaria a viver se nascesse de novo. Atravessando o discurso sobre a sua</p><p>trajetória na Igreja Católica, é possível perceber a presença de um discurso de</p><p>crítica à Igreja, uma vez que faz referência à arrogância de alguns de seus</p><p>companheiros, ao mesmo tempo que deixa entrever em sua fala um certo</p><p>sentimento de orgulho e desforra ao referir-se ao seu brilhante futuro: “De novo</p><p>estudarei o latim e a álgebra, de novo andarei anônimo e de batina por entre</p><p>homens arrogantes que não suspeitarão o meu futuro”.</p><p>Nesses dois trechos, o personagem ora enuncia de um lugar ideológico, ora de</p><p>outro. Os trabalhos mais recentes da AD não considerariam que os dois polos</p><p>enunciativos de onde enuncia o personagem Papa são constituídos a priori e só</p><p>então colocados em relação, mas que essa circulação dissimétrica de uma</p><p>posição enunciativa à outra ocorre devido ao fato de o campo discursivo</p><p>(Maingueneau, 1984/2008) — conjunto de formações discursivas com mesma</p><p>função social que se encontram em concorrência, aliança ou neutralidade</p><p>aparente e que se divergem sobre o modo pelo qual tal função deve ser</p><p>preenchida —, no qual o sujeito do discurso se inscreve e circula, caracterizar-se</p><p>essencialmente por ser um espaço interdiscursivo. Do ponto de vista da AD,</p><p>seria possível dizer que o efeito de devaneio do sujeito-personagem é construído</p><p>sobre a possibilidade de circulação entre posições enunciativas que o campo</p><p>discursivo oferece.</p><p>3.2. A noção de sentido para a AD</p><p>Considerando o que foi apresentado até aqui, seria quase redundante dizer que,</p><p>para a AD, o(s) sentido(s) de uma formação discursiva depende(m) da relação</p><p>que ela estabelece com as formações discursivas no interior do espaço</p><p>interdiscursivo.</p><p>A heterogeneidade constitutiva do discurso o impede, como vimos, de ser um</p><p>espaço “estável”, “fechado”, “homogêneo”, mas não o redime de estar inserido</p><p>em um espaço controlado, demarcado pelas possibilidades de sentido que a</p><p>formação ideológica pela qual é governado lhe concede. Uma formação</p><p>discursiva, apesar de heterogênea, sofre as coerções da formação ideológica em</p><p>que está inserida. Sendo assim, as sequências linguísticas possíveis de serem</p><p>enunciadas por um sujeito já estão, em alguma medida, previstas, porque o</p><p>espaço interdiscursivo se caracteriza pela defasagem entre uma e outra formação</p><p>discursiva. Explicando melhor: as sequências linguísticas possíveis de serem</p><p>enunciadas por um sujeito circulam entre esta ou aquela formação discursiva que</p><p>compõem o interdiscurso.</p><p>O devaneio do personagem Papa é bastante esclarecedor nesse sentido. Ora o</p><p>personagem fala a partir de um posicionamento ideológico, ora de outro. Ora é o</p><p>representante da Igreja Católica diante de Deus — “Obrigado, Senhor. Não</p><p>mereço esta graça” —, ora é apenas um homem moderno atormentado pela ideia</p><p>da morte — “Nascer de novo”.</p><p>Mas não seria inverossímil o personagem Papa, mobilizado pelo autor como</p><p>responsável pela enunciação, pedir para nascer de novo? É justamente neste</p><p>ponto que a AD se mostra bastante esclarecedora. Para a Análise do Discurso, o</p><p>que está em questão não é o sujeito em si; o que importa é o lugar ideológico de</p><p>onde enunciam os sujeitos. Em outras palavras, no espaço interdiscursivo,</p><p>enunciando do interior de uma formação discursiva de cunho ideológico cristão-</p><p>católico, o personagem jamais poderia pedir para nascer de novo. Ao fazer esse</p><p>pedido, o que ocorre é que ele deixa de enunciar inscrito em uma FD de cunho</p><p>cristão-católico e passa a enunciar de um outro lugar ideológico, estando</p><p>inscrito, assim, em outra formação discursiva. Dessa forma, apesar do caráter</p><p>constitutivamente heterogêneo do discurso, não se pode concebê-lo como livre</p><p>de restrições. O que é e o que não é possível de ser enunciado por um sujeito já</p><p>está, em alguma medida, demarcado pela própria formação discursiva na qual</p><p>está inserido. Os sentidos possíveis de um discurso, portanto, são sentidos</p><p>fortemente condicionados pela própria identidade de cada uma das formações</p><p>discursivas colocadas em relação no espaço interdiscursivo.</p><p>No entanto, apesar de os sentidos possíveis de um discurso estarem fortemente</p><p>condicionados, eles não são constituídos a priori, ou seja, eles não existem antes</p><p>do discurso. O sentido vai se constituindo à medida que se constitui o próprio</p><p>discurso. Não existe, portanto, o sentido em si, ele vai sendo determinado</p><p>simultaneamente às posições ideológicas que vão sendo colocadas em jogo na</p><p>relação entre as formações discursivas que compõem o interdiscurso.</p><p>Se tomarmos como exemplo a própria constituição da crônica “Um só seu filho”,</p><p>ou melhor, se a tomarmos como uma metáfora de como se constitui o sentido</p><p>para a AD, ficará mais fácil de compreender a noção de sentido.</p><p>O sentido (ou os sentidos) da crônica não é dado a priori, mas vai sendo</p><p>construído à medida que se constrói o texto. Não se tem a priori com muita</p><p>clareza o que está efetivamente ocorrendo com o personagem Papa. O</p><p>personagem vai se constituindo à medida que o texto vai sendo construído</p><p>e, por</p><p>sua vez, vai-se construindo o sentido do texto à medida que se dá a sua própria</p><p>constituição. Esse sentido, no entanto, não é qualquer sentido, mas está, de certa</p><p>forma, previsto pelas forças ideológicas colocadas em jogo na crônica. A AD</p><p>diria que os sentidos possíveis para esta crônica deslocam-se entre (e aqui</p><p>diremos de maneira bastante esquemática e simplificadora, apenas para</p><p>exemplificar) a “formação discursiva da ciência” e a “formação discursiva</p><p>católica”. No espaço de circulação entre essas duas formações discursivas é que</p><p>residiria o sentido. O sentido, portanto, não é único, já que se dá num espaço de</p><p>heterogeneidade, mas é necessariamente demarcado.</p><p>Um outro exemplo que pode ser esclarecedor é pensarmos nas propagandas</p><p>eleitorais que a cada quatro anos assistimos pela televisão. Os discursos de cada</p><p>partido ou político não são elaborados previamente e guardados em gavetas até a</p><p>data prevista para serem enunciados na TV. Mas, à medida que vai se dando o</p><p>embate político entre partidos e candidatos, os discursos vão sendo escritos,</p><p>reescritos, e os sentidos, então, vão sendo constituídos no próprio processo de</p><p>constituição dos discursos. Evidentemente, não são quaisquer sentidos que são</p><p>constituídos a partir de uma formação discursiva, como já foi dito anteriormente,</p><p>mas somente aqueles possíveis pela configuração da formação ideológica que</p><p>rege determinado discurso. Assim, considerando o contexto político-histórico-</p><p>social do Brasil nos anos de 1980, por exemplo, dificilmente ouviríamos de um</p><p>candidato do PT algo como “Vamos privatizar os setores básicos da economia”</p><p>ou, então, de um candidato do PFL, “Abaixo a privatização”.</p><p>3.3. O conceito de sujeito na AD</p><p>Não fica muito difícil de prever, considerando o percurso que fizemos até aqui,</p><p>de que maneira a subjetividade é concebida pela AD. Para abordarmos essa</p><p>questão, consideraremos as fases da AD apresentadas anteriormente, já que,</p><p>decorrente de cada noção de discurso, têm-se diferentes noções de sujeito.</p><p>Na AD-1, como cada processo discursivo é gerado por uma “máquina</p><p>discursiva”, o sujeito não poderia ser concebido como um indivíduo que fala</p><p>(“eu falo”), como fonte do próprio discurso. O sujeito, para a AD-1, é concebido</p><p>como sendo assujeitado à maquinaria [para utilizar um termo do próprio</p><p>Pêcheux (1983/1990)], já que está submetido às regras específicas que delimitam</p><p>o discurso que enuncia. Assim, segundo essa concepção de sujeito, “quem de</p><p>fato fala é uma instituição, ou uma teoria, ou uma ideologia”. ⁵</p><p>Na AD-2, a noção de sujeito sofre uma alteração. Não existe mais, neste segundo</p><p>momento, a noção de um sujeito marcado pela ideia de unidade, tal como era</p><p>concebido na AD-1. Diferentemente, o sujeito passa a ser concebido como</p><p>aquele que desempenha diferentes funções de acordo com as várias posições que</p><p>ocupa no espaço interdiscursivo. Dessa forma, na AD-2, “vigora a ideia de que o</p><p>sujeito é uma função, e que ele pode estar em mais de uma”. No entanto, nesta</p><p>segunda fase, o sujeito, apesar da possibilidade de ocupar diferentes posições,</p><p>não é totalmente livre; ele sofre as coerções da formação discursiva do interior</p><p>da qual enuncia, já que esta é regulada por uma formação ideológica. Em outras</p><p>palavras, o sujeito do discurso ocupa um lugar de onde enuncia, e é este lugar,</p><p>entendido como a representação de traços de determinado lugar social (o lugar</p><p>do professor, do político, do publicitário, por exemplo), que determina o que ele</p><p>pode ou não dizer a partir dali. Ou seja, este sujeito, ocupando o lugar que ocupa</p><p>no interior de uma formação social, é dominado por uma determinada formação</p><p>ideológica que preestabelece as possibilidades de sentido de seu discurso.</p><p>Com relação, portanto, às concepções de sujeito da AD-1 e da AD-2, pode-se</p><p>dizer que, apesar de diferentes, elas são influenciadas por uma teoria da</p><p>ideologia que coloca o sujeito no quadro de uma formação ideológica e</p><p>discursiva (Brandão, 1994). Nesse sentido é que, para a AD, não existe o sujeito</p><p>individual, mas apenas o sujeito ideológico: a ideologia se manifesta (é falada)</p><p>através dele.</p><p>Na AD-3, por sua vez, a noção de sujeito sofre um deslocamento que inaugura</p><p>uma nova vertente, bastante atual, da Análise do Discurso. Compatível com uma</p><p>noção de discurso marcado radicalmente pela heterogeneidade — afirma-se na</p><p>AD-3 o primado do interdiscurso —, tem-se um sujeito essencialmente</p><p>heterogêneo e descentrado.</p><p>Os trabalhos de Authier-Revuz, ⁷ em torno dos quais se desenvolve essa nova</p><p>vertente, incorporam descobertas das teorias do inconsciente, que consideram</p><p>que o centro do sujeito não é mais o estágio consciente, mas que ele é dividido,</p><p>clivado entre o consciente e o inconsciente. Inserido nesta base conceitual, o</p><p>sujeito da AD se movimenta entre esses dois polos sem poder definir-se em</p><p>momento algum como um sujeito inteiramente consciente do que diz. Nesse</p><p>sentido, o “eu” perde a sua centralidade, deixando de ser senhor de si, já que o</p><p>“outro”, o desconhecido, o inconsciente, passa a fazer parte de sua identidade. O</p><p>sujeito é, então, um sujeito descentrado, constitutivamente heterogêneo, da</p><p>mesma forma como o discurso o é. Para Authier-Revuz (1982), a</p><p>heterogeneidade mostrada é uma tentativa do sujeito de explicitar a presença do</p><p>outro no fio discursivo, na busca de harmonizar as diferentes vozes que</p><p>atravessam o seu discurso, na busca pela unidade, mesmo que ilusória.</p><p>Apresentadas as concepções de sujeito em três diferentes fases da AD, é possível</p><p>perceber que, apesar de distintas, elas possuem uma característica em comum: o</p><p>sujeito não é senhor de sua vontade; ou temos um sujeito que sofre as coerções</p><p>de uma formação ideológica e discursiva, ou temos um sujeito submetido à sua</p><p>própria natureza inconsciente.</p><p>É preciso salientar, também, que, ao contrapormos uma primeira vertente (AD-1</p><p>e AD-2) a uma segunda, mais atual, o fizemos de maneira a focalizar apenas os</p><p>aspectos discriminadores entre essas vertentes. No entanto, Authier-Revuz, ao</p><p>privilegiar o enfoque da dimensão do inconsciente como constitutiva da</p><p>linguagem e do sujeito, não deixa de concebê-los — linguagem e sujeito — no</p><p>interior de uma perspectiva discursiva em que se articulam com o social e,</p><p>portanto, com o ideológico. Por sua vez, a AD-1 e a AD-2, ao conceberem o</p><p>sujeito como interpelado pela ideologia, não deixam de concebê-lo também</p><p>como um sujeito inconsciente. Os esquecimentos 1 e 2 de que tratam Pêcheux e</p><p>Fuchs (1975/1990) são uma evidência disso. Segundo os autores, o sujeito se</p><p>ilude duplamente: a) por “esquecer-se” de que ele mesmo é assujeitado pela</p><p>formação discursiva em que está inserido ao enunciar (esquecimento nº 1); b)</p><p>por crer que tem plena consciência do que diz e que por isso pode controlar os</p><p>sentidos de seu discurso (esquecimento nº 2). Esses dois esquecimentos estão</p><p>constitutivamente relacionados ao conceito de assujeitamento ideológico, ou</p><p>interpelação ideológica, que “consiste em fazer com que cada indivíduo (sem</p><p>que ele tome consciência disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que é</p><p>senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar, a identificar-se</p><p>ideologicamente com grupos ou classes de uma determinada formação social”. ⁸</p><p>O personagem Papa, tal como foi constituído pelo autor da crônica, é uma boa</p><p>metáfora de como se constitui o sujeito para a AD. Exemplificaremos aqui a</p><p>constituição desse sujeito, considerando-o apenas a partir das perspectivas da</p><p>AD-2 e da AD-3, por serem essas as perspectivas que se mostraram mais</p><p>produtivas no campo da Análise do Discurso.</p><p>Na perspectiva da AD-3, diríamos que o personagem Papa é um personagem</p><p>heterogêneo, descentrado, que por alguns momentos crê que tem consciência do</p><p>que diz — “Nascer de novo” —, mas que, a seguir, se depara com a própria</p><p>inconsciência — “Sabia que quem acabara de fazer aquele pedido não era o</p><p>ancião calejado pelos debates escolásticos, o erudito capaz de enfrentar a</p><p>teologia e a metafísica em 12 idiomas”. O personagem em questão é uma</p><p>metáfora de um sujeito dividido pela própria</p><p>Abordagens mais recentes entendem que seu objetivo é descrever a capacidade</p><p>que um falante tem para interpretar qualquer sentença de sua língua. Em</p><p>quaisquer das abordagens, devemos definir o conceito de significado. O</p><p>problema é que não há consenso sobre o que é o “significado”. Uma das</p><p>dificuldades de definirmos esse termo se deve ao fato de que ele é usado para</p><p>descrever situações de fala muito diferentes. Vejamos: em “Qual é o significado</p><p>de mesa?”, indagamos sobre o significado de um termo, mesa; em “Qual o</p><p>significado dessa sua atitude?”, perguntamos sobre a intenção não linguística de</p><p>nosso interlocutor. Falamos ainda sobre o significado de um livro, o significado</p><p>da vida, o significado do verde no semáforo, o significado da fumaça (“O que</p><p>significa aquela fumaça?”) e sobre muitos outros significados. Abarcar essas e</p><p>outras situações de uso mina o próprio projeto de se construir uma teoria</p><p>científica sobre o significado nas línguas naturais.² E mesmo delimitando seu</p><p>alcance ao significado que o falante atribui às palavras e sentenças de sua língua,</p><p>continua válida a afirmação do filósofo Hilary Putnam (1975, p. 32): “o que</p><p>atrapalha a Semântica é ela depender de um conceito pré-teórico de</p><p>‘significado’”, porque não sabemos exatamente o que é o significado.</p><p>Explicar o significado — e essa é a dificuldade — transborda as próprias</p><p>fronteiras do puramente linguístico, entre outros motivos porque ele está</p><p>fortemente ligado à questão do conhecimento. Responder a como é que</p><p>atribuímos significado a uma cadeia de ruídos implica adotar um ponto de vista</p><p>sobre a aquisição de conhecimento. É o significado uma relação causal entre as</p><p>palavras e as coisas? Será ele uma entidade mental? Ele pertence ao indivíduo ou</p><p>à comunidade, ao domínio público? Essas perguntas, caras ao semanticista,</p><p>levam inevitavelmente a enfrentar a espinhosa relação entre linguagem e mundo</p><p>e consequentemente a buscar uma resposta sobre como é possível (se é que é</p><p>possível) o conhecimento.</p><p>Se não há acordo sobre as questões anteriormente levantadas, então há várias</p><p>formas de se descrever o significado. Há várias semânticas. Cada uma elege a</p><p>sua noção particular de significado, responde diferentemente à questão da</p><p>relação linguagem e mundo e constitui, até certo ponto, um modelo fechado,</p><p>incomunicável com outros. O Estruturalismo de vertente saussureana, por</p><p>exemplo, define o significado como uma unidade de diferença, isto é, o</p><p>significado se dá numa estrutura de semelhanças e diferenças com relação a</p><p>outros significados. Assim, o significado de uma palavra se define por não ser</p><p>outros significados — mesa se define por não ser cadeira, sofá — e por manter</p><p>com esses outras semelhanças — eles são móveis. Nessa perspectiva, o</p><p>significado não tem nada a ver com o mundo, mesa não é o nome de um objeto</p><p>no mundo, é a estrutura de diferença e semelhança com cadeira, sofá. Essa</p><p>abordagem pode levar a uma posição relativista, já que cada língua, cada sistema</p><p>de diferenças, institui sua própria racionalidade.³ Para a Semântica Formal, o</p><p>significado é um termo complexo que se compõe de duas partes objetivas, o</p><p>sentido e a referência. O sentido do nome mesa é o modo de apresentação de um</p><p>conjunto de objetos no mundo, as mesas. Assim, no modelo lógico, a relação da</p><p>linguagem com o mundo é fundamental e pouco importa as relações internas ao</p><p>sistema.</p><p>Para a Semântica da Enunciação, herdeira do estruturalismo, o significado é o</p><p>resultado do jogo argumentativo criado na linguagem e por ela. Diferentemente</p><p>do estruturalismo, mesa, na Semântica da Enunciação, significa as diversas</p><p>possibilidades de encadeamentos argumentativos das quais a palavra pode</p><p>participar. Seu significado é o somatório das suas contribuições em inúmeros</p><p>fragmentos de discurso: “Comprei uma mesa”, “Senta ali na mesa...”. Estamos</p><p>fechados nas cadeias linguísticas e não há lugar para o mundo. Para a Semântica</p><p>Cognitiva, mesa é a superfície linguística de um conceito, o conceito mesa, que é</p><p>adquirido por meio de nossas manipulações sensório-motoras com o mundo. É</p><p>tocando coisas que são mesas que formamos o conceito pré-linguístico mesa que</p><p>aparece nas nossas interações. Esse conceito tem estrutura prototípica, porque se</p><p>define pelo membro mais emblemático: um objeto de quatro pernas com um</p><p>tampo. Nessa modelo, o significado está no corpo.</p><p>A pluralidade de semânticas será ilustrada pela apresentação das linhas mestras</p><p>de três formas de fazer semântica: a Semântica Formal, a Semântica da</p><p>Enunciação e a Semântica Cognitiva. A escolha desses modelos procura refletir</p><p>o atual estado da arte em Semântica no Brasil.⁴ Buscaremos mostrar como um</p><p>fenômeno linguístico, a pressuposição, recebe um tratamento diferenciado em</p><p>cada abordagem. Na sentença “O homem de chapéu saiu” há, segundo a</p><p>Semântica Formal, uma pressuposição de existência e unicidade: existe um e</p><p>apenas um indivíduo, e ele é homem. A Semântica da Enunciação vê nessa</p><p>mesma sentença a presença da polifonia, a voz de mais de um enunciador: uma</p><p>fala que diz que há um único indivíduo, outra, que ele está de chapéu e outra,</p><p>que ele saiu. Finalmente, a Semântica Cognitiva descreve a sentença a partir da</p><p>hipótese de que na sua interpretação formamos espaços mentais: o espaço mental</p><p>em que há um único homem. Esperamos que, ao final deste capítulo, o leitor não</p><p>apenas seja capaz de diferenciar esses modelos de Semântica, mas consiga</p><p>manipulá-los minimamente.</p><p>2. A SEMÂNTICA FORMAL</p><p>Historicamente, a Semântica Formal antecede as demais abordagens, o que a</p><p>torna o referencial teórico e o grande inimigo a ser destruído. Hoje em dia</p><p>falamos em semântica formal das línguas naturais para diferenciá-la da lógica.</p><p>Embora sua história possa ser retraçada até Aristóteles, a semântica formal das</p><p>línguas naturais teve início na década de 1970 com os trabalhos de Barbara</p><p>Partee. Seu ponto de partida é a crença de que o significado das sentenças se</p><p>estrutura logicamente.⁵ Para ilustrar relações lógicas retomemos a análise de</p><p>Aristóteles, um pioneiro neste tipo de estudo.</p><p>Ao analisar o raciocínio dedutivo presente nas sentenças a seguir, Aristóteles</p><p>mostra que há relações de significado que se dão independentemente do</p><p>conteúdo das expressões. Vejamos:</p><p>(1) Todo homem é mortal.</p><p>João é homem.</p><p>Logo, João é mortal.</p><p>Se garantirmos que as duas primeiras sentenças, chamadas premissas, são</p><p>verdadeiras, concluímos a terceira. A primeira premissa afirma que o conjunto</p><p>dos homens está contido no conjunto dos mortais; a segunda, que João é um</p><p>elemento do conjunto dos homens. Então, necessariamente, ele é um elemento</p><p>do conjunto dos mortais. O interessante é que esse raciocínio se garante apenas</p><p>pelas relações que se estabelecem entre os termos, independentemente do que</p><p>homem ou mortal significam. Se alterarmos as expressões e mantivermos as</p><p>relações, o raciocínio será sempre válido. Experimente verificar se o raciocínio</p><p>seguinte é válido e justificar sua validade: Todo cachorro tem 4 patas; Bela é um</p><p>cachorro; logo, Bela tem 4 patas.</p><p>Essas são relações lógicas, ou formais, porque podemos representá-las por letras</p><p>vazias de conteúdo, mas que descrevem as relações de sentido. Podemos, pois,</p><p>dizer que “se A é um conjunto qualquer que está contido em um outro conjunto</p><p>qualquer, o conjunto B, e se c é um elemento do conjunto A, então, c é um</p><p>elemento do conjunto B”. Lógico, não?!</p><p>A definição de significado que ancora as pesquisas em semântica formal e contra</p><p>a qual as demais semânticas irão reagir, deve-se ao lógico alemão Gottlob Frege</p><p>(1848-1925), que nos legou pelo menos várias contribuições, entre elas: a</p><p>distinção entre sentido e referência, o conceito de função, a primeira</p><p>compreensão de quantificador. Para ele, o estudo científico do significado só é</p><p>possível se diferenciarmos os seus diversos aspectos para reter apenas aqueles</p><p>que são objetivos. Ele exclui da Semântica o estudo das representações</p><p>individuais que uma dada palavra pode provocar. Ao ouvir o nome próprio</p><p>estrela da manhã, formo uma ideia, uma representação, que é só minha, uma</p><p>inconsciência.</p><p>Na perspectiva da AD-2, por sua vez, diríamos que o personagem Papa é</p><p>assujeitado pelas formações discursivas colocadas em relação no texto, por</p><p>enunciar apenas o que já está previsto por estas mesmas FDs. Assim, o</p><p>personagem enuncia inscrito num espaço discursivo demarcado pela formação</p><p>ideológica que o rege. De acordo com o que vimos analisando da crônica em</p><p>questão, diríamos, de maneira bastante esquemática, que este personagem</p><p>enuncia inscrito em um espaço discursivo que coloca em uma relação de conflito</p><p>dois posicionamentos, um religioso e outro científico; enunciará, portanto,</p><p>apenas o que está previsto como enunciados possíveis para estas FDs.</p><p>3.4. As condições de produção do discurso</p><p>A dupla ilusão do sujeito de que tratam Pêcheux e Fuchs (1975/1990), abordada</p><p>anteriormente, é, para a AD, constitutiva das condições de produção do discurso.</p><p>Como decorrência dessa dupla ilusão, manifestações que se dão no nível da</p><p>superfície discursiva, como a heterogeneidade mostrada, foram interpretadas por</p><p>Pêcheux (1969/1990) como uma evidência dessa relação imaginária que o</p><p>sujeito tem com o próprio discurso, como uma manifestação da tentativa</p><p>(ilusória) de controlar o próprio discurso.</p><p>Assim, para a AD, o sujeito, por não ter acesso às reais condições de produção</p><p>de seu discurso, representa essas condições de maneira imaginária. É o que</p><p>Pêcheux (1969/1990) chama de jogo de imagens de um discurso.</p><p>Reproduziremos a seguir o quadro que o próprio autor apresenta:</p><p>A fim de facilitar a compreensão desse quadro para o leitor, vamos apresentá-lo</p><p>dividindo-o em dois blocos:</p><p>1. A imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso, faz:</p><p>a) do lugar que ocupa;</p><p>b) do lugar que ocupa seu interlocutor;</p><p>c) do próprio discurso ou do que é enunciado.</p><p>2. A imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso, faz da imagem que seu</p><p>interlocutor faz:</p><p>a) do lugar que ocupa o sujeito do discurso;</p><p>b) do lugar que ele (interlocutor) ocupa;</p><p>c) do discurso ou do que é enunciado.</p><p>Esse jogo de imagens, mesmo estabelecendo as condições de produção do</p><p>discurso, ou seja, aquilo que o sujeito pode/deve ou não dizer, a partir do lugar</p><p>que ocupa e das representações que faz ao enunciar, não é preestabelecido antes</p><p>que o sujeito enuncie o discurso, mas este jogo vai se constituindo à medida que</p><p>se constitui o próprio discurso. Em outras palavras, o sujeito não é livre para</p><p>dizer o que quer, a própria opção do que dizer já é em si determinada pelo lugar</p><p>que ocupa no interior da formação ideológica à qual está submetido, mas as</p><p>imagens que o sujeito constrói ao enunciar só se constituem no próprio processo</p><p>discursivo.</p><p>Ainda mais uma vez nos valeremos da metáfora do personagem, agora para</p><p>explicar como as imagens se constituem no próprio processo discursivo. O</p><p>discurso do sujeito-personagem não está constituído a priori, mas vai se</p><p>delineando à medida que ele representa a voz que lhe fala, a partir das imagens</p><p>que faz do que lhe é dito. Assim, por exemplo, num primeiro momento, coloca-</p><p>se como um sujeito que não teme a morte — “É meu último dia de vida, isto não</p><p>deve me amedrontar; é como quando após uma refeição alguém retira de minha</p><p>frente o prato vazio. Por que me rebelar, se já fruí o que me interessava?” —,</p><p>mas redefine todo seu discurso a partir da imagem que faz de si naquele</p><p>momento — “Ele fitou a palma da própria mão: viu com espantosa nitidez as</p><p>linhas e as comissuras da pele, viu as rugosidades, o intrincamento têxtil das</p><p>camadas superpostas, viu o fervilhar da matéria viva e as células que se partiam</p><p>e se fundiam umas às outras como gotas d’água”. É nesse sentido que o jogo de</p><p>imagens faz parte das condições de produção de um discurso, na medida em que</p><p>as imagens que o sujeito vai construindo ao enunciar vão definindo e redefinindo</p><p>o processo discursivo.</p><p>4. CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>Abordamos neste artigo o que julgamos ser fundamental para um primeiro</p><p>contato com a Análise do Discurso, buscando, ao mesmo tempo, esclarecer, por</p><p>meio das análises aqui apresentadas, alguns dos conceitos que foram colocados.</p><p>Queremos ressaltar, no entanto, que este texto não esgota de forma alguma as</p><p>questões que são colocadas pela AD; propõe-se apenas a ser uma porta de</p><p>entrada possível para o campo, fornecendo ao leitor alguns subsídios para que</p><p>ele possa iniciar seus estudos na área.</p><p>Assim, concluir este texto significa apenas concluir a reflexão que fizemos</p><p>nestas poucas páginas, já que muitas questões poderiam ainda ser aqui</p><p>consideradas. Optamos, então, por concluí-lo retomando apenas um aspecto já</p><p>abordado neste capítulo, por julgarmos crucial enfatizá-lo ao falarmos em</p><p>Análise do Discurso: sua especificidade.</p><p>O leitor deve ter percebido, ao entrar em contato com os conceitos que embasam</p><p>a AD, que a definição de todos eles se fundamenta sobre uma característica em</p><p>comum, que chamaremos aqui de constitutividade: o discurso, o sentido, o</p><p>sujeito, as condições de produção vão se constituindo no próprio processo de</p><p>enunciação. E não poderia ser diferente. A AD, ao conceber o discurso como</p><p>sendo de natureza, ao mesmo tempo linguística e sócio-histórica, não poderia</p><p>constituir-se enquanto disciplina no interior de fronteiras rígidas, que não</p><p>levassem em conta sua intrínseca relação com determinadas áreas das ciências</p><p>humanas — como a História, a Sociologia, a Psicanálise — e com certas</p><p>tendências desenvolvidas no interior da própria Linguística — como a Semântica</p><p>da Enunciação e a Pragmática, por exemplo.</p><p>Devido a esse caráter eminentemente “relacional”, a Análise do Discurso se</p><p>apresenta como uma disciplina em constante processo de constituição, de onde</p><p>decorre a constitutividade dos próprios conceitos que a fundamentam. Esse</p><p>caráter “relacional”, diriam alguns, poderia colocar a AD numa situação de</p><p>extrema fugacidade. No entanto, não é esse o perigo que a espreita. Na verdade,</p><p>o único perigo que poderia colocá-la em xeque seria o de não reconhecermos sua</p><p>especificidade e tentarmos excluir de seu campo as contradições, em vez de</p><p>simplesmente tentarmos apreendê-las na materialidade discursiva.</p><p>Se o leitor tiver apreendido esse caráter da Análise do Discurso, terá</p><p>compreendido sua característica fundamental. O mais será uma questão de</p><p>interesse que, obviamente, esperamos ter despertado com esta introdução.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Trad. J. J. Moura</p><p>Ramos. Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1974. (Título original, 1970.)</p><p>AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In: ORLANDI, E. P.;</p><p>GERALDI, J. W. Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas, Unicamp-IEL,</p><p>n. 19, jul./dez., 1990.</p><p>______. Hétérogénéité montrée e hétérogénéité constitutive: élements pour une</p><p>approche de l’autre dans le discours. 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Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. E. P.</p><p>Orlandi et al. Campinas: Editora da Unicamp, 1988. (Título original, 1975.)</p><p>PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso:</p><p>atualização e perspectivas. Trad. P. Cunha. In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por</p><p>uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux.</p><p>Campinas: Editora da Unicamp, 1990. (Título original, 1975.)</p><p>PÊCHEUX, M. et al. Apresentação da análise automática do discurso. In:</p><p>GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma</p><p>introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.</p><p>(Título original, 1982.)</p><p>PINTO, J. M. Lacan e o ideal de matema. In: MARI, H.; DOMINGUES, I.;</p><p>PINTO, J. (Orgs.). Estruturalismo: memória e repercussões. Rio de Janeiro:</p><p>Diadorim/UFMG, 1995.</p><p>POSSENTI, S. A heterogeneidade e a noção de interdiscurso. 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Contribuições de Dominique Maingueneau à</p><p>Análise do Discurso. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). Da análise do</p><p>discurso no Brasil à análise do discurso do Brasil: três épocas histórico-</p><p>analíticas. Uberlândia: Edufu, 2010.</p><p>SANTIAGO, J. Jacques Lacan: a estrutura dos estruturalistas e a sua. In: MARI,</p><p>H.; DOMINGUES, I.; PINTO, J. (Orgs.). Estruturalismo: memória e</p><p>repercussões. Rio de Janeiro: Diadorim/UFMG, 1995.</p><p>SAUSSURE, F. de. Curso de linguística geral. Trad. A. Chelini et al. São Paulo:</p><p>Cultrix, 1974. (Título original, 1916.)</p><p>SEARLE, J. R. Os actos de fala: um ensaio de filosofia da linguagem. Coimbra:</p><p>Almedina, 1981.</p><p>SILVA, S. M. Morfologia: (de)pendência estrutural sistemática. In: MARI, H.;</p><p>DOMINGUES, I.; PINTO, J. (Orgs.). Estruturalismo: memória e repercussões.</p><p>Rio de Janeiro: Diadorim/UFMG, 1995.</p><p>TAVARES, Bráulio. Um só filho seu. Folha de S.Paulo. São Paulo, 16 de março</p><p>de 1997. Caderno Mais.</p><p>1 Agradecemos a Sírio Possenti, a Anna Christina Bentes, a Edwiges Morato, a</p><p>Claudia Bertelli Reis e a Cleudemar Alves Fernandes pelas contribuições a este</p><p>texto.</p><p>2. Remetemos o leitor à obra de Saussure (1916/1974), Curso de linguística</p><p>geral, considerada a obra fundadora da Linguística moderna por possibilitar uma</p><p>abordagem da língua a partir de suas regularidades e, assim, defini-la como um</p><p>objeto passível de análise científica, para os padrões de cientificidade da época.</p><p>3. A respeito das classificações dos fonemas, remetemos o leitor aos capítulos</p><p>“Fonética” e “Fonologia”, no volume 1 desta obra.</p><p>4. Remetemos o leitor ao capítulo “Semântica”, neste mesmo volume.</p><p>5. Löwy (1988) faz um interessante estudo da história das ciências sociais.</p><p>Remetemos o leitor à sua obra para compreender como as vertentes filosóficas</p><p>— positivismo, historicismo, marxismo — nortearam os critérios de</p><p>cientificidade de cada época, critérios que, por sua vez, nortearam os propósitos,</p><p>os estudos e os métodos nas ciências humanas.</p><p>6. Maingueneau, D. Análise do Discurso: a questão dos fundamentos. Cadernos</p><p>de Estudos Linguísticos. Campinas: Unicamp- IEL, n. 19, jul./dez., 1990. p.68.</p><p>7. Pêcheux, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.</p><p>Campinas: Editora da Unicamp, 1988, p. 74. (título original: Les vérites de la</p><p>Palice, 1975)</p><p>8. Maldidier, D. Elementos para uma história da Análise do Discurso na França.</p><p>In: Orlandi, E. P. (org.) Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas:</p><p>Editora da Unicamp, 1994, p. 19.</p><p>9. Remetemos o leitor ao capítulo “Fonologia” no volume 1 desta obra, que</p><p>também aborda esta dicotomia.</p><p>10. Possenti (1995) aponta que, para Granger (1973), as línguas não são sistemas</p><p>formais, mas sistemas simbólicos que contêm um sistema formal, pois só se</p><p>comportam como uma estrutura no nível fonológico; nos outros domínios,</p><p>inclusive nos domínios da Morfologia e da Sintaxe, a língua falha como</p><p>estrutura.</p><p>11. Sobre a origem do termo condições de produção, ver Brandão (1998a).</p><p>12. Pêcheux, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: Gadet, F.; Hak,</p><p>T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de</p><p>Michel Pêcheux. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 78.</p><p>13. Para Saussure (1916/1974), o signo linguístico é composto de significante e</p><p>significado compreendidos, respectivamente, como imagem acústica (som com</p><p>função linguística) e conceito. Remetemos o leitor ao capítulo “Fonologia” no</p><p>volume 1, que também aborda o conceito de signo.</p><p>14. Maingueneau (1990) aponta uma questão interessante com relação ao uso do</p><p>termo análise: “é a materialização de uma certa configuração do saber em que o</p><p>termo análise funciona ao mesmo tempo sobre os registros linguístico, textual e</p><p>psicanalítico”. Pode-se estender esta colocação ao termo analista, na medida em</p><p>que, ainda como afirma o autor, “a escola francesa de Análise do Discurso se</p><p>afirma como uma análise (= psicanálise) aplicada aos textos” (Maingueneau,</p><p>1990, p. 69).</p><p>15. Lacan é citado em Brandão, H. N. Introdução à Análise do Discurso. 7. ed.</p><p>Campinas: Editora da Unicamp, 1998a, p. 56.</p><p>16. Santiago, J. Jacques Lacan: a estrutura dos estruturalistas e a sua. In: Mari,</p><p>H.; Domingues, I.; Pinto, J. (Orgs.). Estruturalismo: memória e repercussões.</p><p>Rio de Janeiro: Diadorim/UFMG, 1995, p. 221.</p><p>17. Althusser (1970) é citado em Maingueneau (1990, p. 69).</p><p>18. Ver os capítulos “Fonética”, “Fonologia” e “Sintaxe”, no volume 1, e</p><p>“Semântica”, no volume 2. No que diz respeito ao capítulo “Sintaxe”, referimo-</p><p>nos apenas à Sintaxe Gerativa, e, em relação ao capítulo “Semântica”, apenas à</p><p>Semântica Formal.</p><p>19. Ver no volume 1 os capítulos “Sintaxe” (referimo-nos aqui à Sintaxe</p><p>funcional), “Sociolinguística” e “Linguística Textual”; ver neste volume os</p><p>capítulos “Semântica” (referimo-nos aqui à Semântica da enunciação),</p><p>“Pragmática” e “Análise de Conversação”.</p><p>20. Maingueneau, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas:</p><p>Pontes/Editora da Unicamp, 1997, p. 11.</p><p>21. Sobre a noção de dêitico, ver Lahud (1979) e Geraldi e Ilari (1985).</p><p>22. Sobre a noção de escopo, ver Geraldi e Ilari (1985).</p><p>23. Sobre a Análise do Discurso anglo-saxã ver, neste mesmo volume, o capítulo</p><p>“Análise da Conversação” e, no volume 1, o capítulo “Linguística Textual”.</p><p>24. Possenti, S. O dado dado e o dado dado (O dado em análise do discurso). In:</p><p>Castro, M. F. P. de. (org.) O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas:</p><p>Editora da Unicamp, 1996, p. 199.</p><p>25. Fiorin, J. L. Tendências da Análise do Discurso. Cadernos de Estudos</p><p>Linguísticos. Campinas: Unicamp-IEL, jul./dez., 1990, p. 175.</p><p>26. Ibidem, p. 174.</p><p>27. Maldidier (1994, p. 21).</p><p>28. Remetemos o leitor aos capítulos “Semântica” e “Pragmática” neste mesmo</p><p>volume para uma maior compreensão da oposição enunciado/enunciação. Ver</p><p>também Benveniste (1974/1989) e Searle (1981). Vale dizer, no entanto, que a</p><p>noção de enunciação é reinterpretada pela AD. Neste arcabouço teórico, a</p><p>enunciação não é compreendida como a situação empírica em que ocorre o</p><p>discurso, mas como estando relacionada à imagem que o sujeito do discurso,</p><p>inserido em determinadas condições sociais, faz das condições de produção de</p><p>seu discurso. Ver, a esse respeito, Pêcheux e Fuchs (1975/1990).</p><p>29. Remetemos o leitor ao capítulo “Sintaxe” no volume 1 desta obra, e aos</p><p>capítulos “Aquisição da Linguagem” e “Psicolinguística” neste mesmo volume.</p><p>30. O gerativismo, apesar do rigor de sua formalização, é interpretado como uma</p><p>ruptura com o estruturalismo. Posicionando-se a esse respeito em entrevista dada</p><p>a Jean Paris, como relata Silva (1995), Chomsky aponta os limites do</p><p>estruturalismo, afirmando a seu respeito não ser suficientemente teórico, por</p><p>deixar de pesquisar os processos gerativos subjacentes que determinam as</p><p>estruturas que observa e estuda.</p><p>31. Orlandi, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2.</p><p>ed. Campinas: Pontes, 1987, p. 110.</p><p>32. Orlandi (1987) faz uma comparação entre as diferentes formas de a</p><p>Sociolinguística, a teoria da enunciação e a Análise do Discurso trabalharem</p><p>com a exterioridade. Aponta que a Sociolinguística visa a relação entre o social e</p><p>o linguístico; a teoria da enunciação trata da determinação entre o funcional</p><p>(enunciação) e o formal (enunciado); a AD “procura estabelecer essa relação de</p><p>forma mais imanente, considerando as condições de produção (exterioridade,</p><p>processo histórico-social) como constitutivas da linguagem” (Orlandi, E. P. A</p><p>linguagem e o seu funcionamento, op. cit., p. 111).</p><p>33. Ver Pêcheux (1969/1990).</p><p>34. Orlandi (1987) propõe uma tipologia discursiva classificando os discursos</p><p>em três tipos: o lúdico, o polêmico e o autoritário. Essa classificação é feita,</p><p>entre outras coisas, com base no grau de reversibilidade entre os interlocutores:</p><p>no discurso autoritário esta reversibilidade tende a zero; no polêmico ela é</p><p>controlada; no lúdico a reversibilidade é total. Optamos no texto pela utilização</p><p>da expressão “menos polêmicos” porque queremos enfatizar apenas esta</p><p>reversibilidade que possibilita, de acordo com seu grau, uma menor/maior</p><p>abertura para a variação do sentido devido a um menor/maior silenciamento do</p><p>outro (outro discurso/outro sujeito), de onde decorrem discursos menos/mais</p><p>“estabilizados”. Ressaltamos, portanto, que não temos aqui a intenção de</p><p>classificar discursos.</p><p>35. Ver Pêcheux et al. (1982/1990)</p><p>36. Ver Pêcheux e Fuchs (1975/1990).</p><p>37. Foucault (1969/2004, p. 133).</p><p>38. Foucault (1969/2004, p. 71) esclarece o que entende por estratégias:</p><p>“Discursos como a economia, a medicina, a gramática, a ciência dos seres vivos</p><p>dão lugar a certas organizações de conceitos, a certos reagrupamentos de objetos,</p><p>a certos tipos de enunciação, que formam, segundo seu grau de coerência, de</p><p>rigor e de estabilidade, temas ou teorias. (...) Qualquer que seja seu nível formal,</p><p>chamaremos, convencionalmente, de ‘estratégias’ a esses temas e a essas teorias.</p><p>O problema é saber como se distribuem na história.”</p><p>39. Foucault, 1969/2004, p. 43.</p><p>40. Para uma relação mais pontual entre os trabalhos de Michel e Foucault e</p><p>Michel Pêcheux, ver Gregolin (2004).</p><p>41. Para uma discussão mais aprofundada sobre essa questão, ver Courtine</p><p>(1981).</p><p>42. Pêcheux e Fuchs (1975/1990, p. 166).</p><p>43. Ibidem, p. 166-167.</p><p>44. Sobre a noção de pré-construído, ver Pêcheux (1975/1988).</p><p>45. Brandão, H. N. Introdução à Análise do Discurso, op. cit., p. 39.</p><p>46. Ver Maingueneau (1997, 2008).</p><p>47. Para um melhor desenvolvimento da noção de interdiscurso, ver o capítulo</p><p>“Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas” do volume 3 desta obra.</p><p>48. Pêcheux (1975/1988, p. 162).</p><p>49. Para uma melhor apresentação dos trabalhos de Dominique Maingueneau,</p><p>ver Possenti e Mussalim (2010).</p><p>50. No Prefácio da edição brasileira de Gênese dos discursos, Maingueneau</p><p>afirma que o termo “formação discursiva” foi utilizado com certa “frouxidão”, já</p><p>que hoje se falaria preferencialmente em posicionamento, noção que deve ser</p><p>compreendida mais precisamente como uma identidade enunciativa forte, um</p><p>lugar de produção discursiva bem específico no interior de um campo (por</p><p>exemplo, o discurso do partido comunista de tal período). Na verdade esse termo</p><p>designa “ao mesmo tempo as operações pelas quais essa identidade</p><p>enunciativa</p><p>se instaura e se conserva num campo discursivo, e essa própria identidade”</p><p>(Charaudeau; Maingueneau, 2004, p. 392).</p><p>51. Por exemplo, pode-se falar em campo político, filosófico, literário, etc.</p><p>Considerando, a título de ilustração, o campo literário, pode-se falar em</p><p>formação discursiva modernista, formação discursiva parnasiana e assim por</p><p>diante.</p><p>52. Para uma abordagem mais detalhada destes e de outros conceitos da AD, ver</p><p>o capítulo “Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas” do volume 3</p><p>desta obra.</p><p>53. Possenti, 2004, p. 364.</p><p>54. Ibidem, p. 365.</p><p>55. Para uma abordagem discursiva do fato literário, remetemos o leitor a</p><p>Maingueneau (2006).</p><p>56. Há, entretanto, a possibilidade de se considerar que a literatura mantém</p><p>relações diretas com posições de classes sociais. Da perspectiva da abordagem</p><p>marxista do fenômeno literário, as obras “devem ser lidas como um ‘reflexo’</p><p>ideológico e, portanto, deformado de uma instância exterior a elas que os</p><p>determina em última análise: a luta de classes” (Maingueneau, 2006, p. 21).</p><p>Lucien Goldmann, proeminente representante dessa vertente, reconhece que a</p><p>abordagem marxista do fenômeno literário tem o mérito de oferecer o</p><p>fundamento científico ao conceito de visão de mundo, ao se propor a integrar o</p><p>pensamento dos indivíduos ao conjunto da vida social, realizando uma análise da</p><p>função histórica das classes sociais.</p><p>57. Pêcheux reconhece a especificidade da língua (que tem regras próprias de</p><p>funcionamento), mas limita seu domínio: o sentido, conforme afirma Pêcheux</p><p>(1975/1988), não é da ordem da língua, não se submetendo, pois, aos seus</p><p>critérios. A Linguística saussureana, analisa o autor, permitiu a constituição da</p><p>Fonologia da Morfologia e da Sintaxe, mas não foi suficiente para permitir a</p><p>constituição da Semântica, lugar de contradições da Linguística. Para ele, o</p><p>sentido, objeto da Semântica, escapa às abordagens de uma Linguística da</p><p>língua, já que a significação não é sistematicamente apreendida, devido ao fato</p><p>de sofrer alterações de acordo com as posições ocupadas pelos sujeitos que</p><p>enunciam. Nesse sentido é que Pêcheux, considerando que as condições de</p><p>produção de um discurso são constitutivas de suas significações, propõe uma</p><p>semântica do discurso, no lugar de uma semântica da língua.</p><p>58. Agradecemos a Eugênio Rodrigues pela contribuição.</p><p>59. Na versão não revista e ampliada deste capítulo, havíamos nomeado esta FD</p><p>como “FD individualista”. Para uma melhor adequação à ideia de posição</p><p>ideológica, alteramos para “FD neoliberal”.</p><p>60. Remetemos o leitor a Brait (1997), uma coletânea de artigos que apresenta</p><p>estudos sobre os principais conceitos da obra bakhtiniana.</p><p>61. Authier-Revuz (1982) é citada em Brandão, H. N., Introdução à Análise do</p><p>Discurso, op. cit., p. 52.</p><p>62. Bakhtin (1929/1988).</p><p>63. Embora ele se situe na perspectiva da Semântica da Enunciação, cabe citar</p><p>aqui o texto de Ducrot (1984/1987), “Esboço de uma teoria polifônica da</p><p>enunciação”, em que o autor, contestando a unicidade do sujeito falante, procura</p><p>mostrar como em um mesmo enunciado é possível detectar mais de uma voz.</p><p>Remetemos o leitor ao capítulo “Semântica”, neste mesmo volume, para maiores</p><p>informações.</p><p>64. Authier-Revuz (1982) é citada em Brandão, H. N., Introdução à Análise do</p><p>Discurso, op. cit., p. 50.</p><p>65. Possenti, S. Apresentação da Análise do Discurso. Campinas, [19--]b.</p><p>(mimeografado)</p><p>66. Idem.</p><p>67. Ver Authier-Revuz (1982, 1990 e 1998).</p><p>68. Brandão, H. N. Introdução à Análise do Discurso, op. cit., p. 89.</p><p>69. Remetemos o leitor a Osakabe (1979), que, além fazer uma apresentação</p><p>bastante esclarecedora do jogo de imagens de Pêcheux (1969), reestrutura esse</p><p>quadro mostrando a necessidade de se considerar os atos de linguagem como</p><p>pertinentes às condições de produção. Assim, teríamos outra representação: “O</p><p>que A pretende falando dessa forma?”.</p><p>5</p><p>NEUROLINGUÍSTICA</p><p>Edwiges Maria Morato</p><p>1. INTRODUÇÃO: UM BREVE PERCURSO HISTÓRICO</p><p>A Neurolinguística, precedida por estudos realizados no século XIX, tem se</p><p>firmado como um dos mais promissores domínios da ciência da linguagem.</p><p>Inicial e tradicionalmente pautada, por um lado, pelo localizacionismo estrito e,</p><p>por outro, pelo estruturalismo linguístico, a Neurolinguística tem abrigado nas</p><p>últimas décadas, como veremos neste capítulo, uma agenda heterogênea de</p><p>questões provindas seja de modelos biomédicos, seja de modelos psicossociais</p><p>sobre nossa vida mental.</p><p>Um incremento da discussão epistemológica no campo, especialmente a partir</p><p>dos anos 1980, é possível ser observado em manuais ou livros-texto publicados a</p><p>partir desse período, como os de Lesser e Milroy (1993), Goodwin(2003),</p><p>Ahlsén (2006).</p><p>Do ponto de vista da demarcação do campo, as definições e as descrições</p><p>concernentes ao interesse teórico e metodológico da Neurolinguística</p><p>encontradas na literatura da área revelam que as fronteiras que delimitam seu</p><p>objeto — as relações entre linguagem, cérebro e cognição — são de fato</p><p>movediças. Assim, não é de estranhar que a Neurolinguística, enquanto</p><p>disciplina do conhecimento, resulte de verdadeiros clusters de influência,</p><p>integrando em torno de seu objeto diferentes áreas como a Linguística, as</p><p>Neurociências, a Filosofia, as Ciências Cognitivas, a Sociologia, as Ciências da</p><p>Computação, dentre outras. Com isso, tanto áreas das ciências humanas e</p><p>sociais, quanto das ciências biológicas e da saúde encontram-se representadas na</p><p>agenda científica atual da Neurolinguística. Como podemos definir, então, esse</p><p>campo de estudos?</p><p>Há quem atribua o início da Neurolinguística, como o fazem Bouton (1984) ou</p><p>Lecours e Lhermitte (1979), à publicação, em 1939, do livro Le Syndrome de</p><p>Désintégration Phonétique, de Alajouanine, Ombredane (neurologistas) e</p><p>Durand (foneticista). Há também os que consideram a Neurolinguística um ramo</p><p>(Luria, 1976) ou um subconjunto (Hécaen, 1972) da Neuropsicologia, o que</p><p>significa circunscrevê-la ao campo de estudo das perturbações verbais</p><p>decorrentes de lesões cerebrais. Para autores como Whitaker e Whitaker (1976),</p><p>em função de seu complexo objeto, a Neurolinguística seria uma área</p><p>“francamente interdisciplinar” que relaciona linguagem e comunicação humana</p><p>com algum aspecto do cérebro ou da função cerebral.</p><p>Posteriormente aos autores mencionados acima e, de certo modo, consoante a</p><p>essa visão mais tradicional, Caplan (1987) define a Neurolinguística como o</p><p>estudo das relações entre cérebro e linguagem, com enfoque no campo das</p><p>patologias cerebrais e na relação de determinadas estruturas do cérebro com</p><p>distúrbios da linguagem. Por seu turno, Menn e Obler (1990) procuram definir a</p><p>área por meio de seu objetivo, que é, segundo as autoras, teorizar sobre o</p><p>“como” a linguagem é processada no cérebro.</p><p>Mais recentemente, em um manual de Neurolinguística, Ahlsén define a</p><p>Neurolinguística como o estudo da relação entre diferentes aspectos da função</p><p>cerebral atinentes à linguagem e à comunicação. Para a autora, que não limita o</p><p>campo a estudos atinentes ao contexto patológico, cabe à Neurolinguística</p><p>“explorar como o cérebro compreende e produz linguagem e comunicação”</p><p>(Ahlsén, 2006, p. 3).</p><p>Ainda que professem diferentes abordagens relativas a distintos modelos e</p><p>construtos teóricos e metodológicos, todos esses autores não deixam de</p><p>considerar que os estudos sobre as condições de linguagem e de comunicação</p><p>após algum comprometimento neuropsicológico constituem, provavelmente, a</p><p>investigação neurolinguística mais corrente e prolífera.</p><p>Parece óbvio, levando em conta o hibridismo da palavra, que Neurolinguística</p><p>diga respeito às relações entre linguagem e cérebro e que acione dois principais</p><p>campos do conhecimento humano para explicá-las, as Neurociências e a</p><p>Linguística. Isso realmente seria um truísmo se nós não tivéssemos tantos</p><p>problemas para dar conta dos complexos processos que constituem linguagem e</p><p>cérebro, bem como do modo de funcionamento de ambos.</p><p>A despeito do avanço biotecnológico encontrado em nossa época, muitas das</p><p>indagações a respeito das relações</p><p>entre linguagem e cérebro ainda permanecem</p><p>à hora atual, como as referentes à constituição daquilo que chamamos de</p><p>conhecimento ou aos fenômenos cerebrais envolvidos nos chamados processos</p><p>cognitivos superiores (linguagem, memória, atenção etc.). Nossos processos</p><p>cognitivos, vale lembrar, já se mostraram empiricamente não redutíveis à</p><p>intimidade do tecido neural, tanto por meio de estudos considerados</p><p>metodologicamente invasivos (como os córtico-eletrofisiológicos, realizados em</p><p>geral em ambiente intracirúrgico), quanto não invasivos (como os que utilizam</p><p>ressonância magnética funcional, tomografia por emissão de fóton único,</p><p>tomografia por emissão de pósitrons, potencial evocado relacionado a evento).</p><p>Mesmo depois de terminada a chamada “década do cérebro”, os anos 1990,</p><p>ainda não podemos prognosticar entre os estudiosos um consenso em torno das</p><p>correlações estabelecidas entre linguagem e cérebro. Assim, um bom começo</p><p>para entrever as relações que ambos os processo mantêm entre si — e nas quais</p><p>intervêm a cultura, as práticas ou experiências histórico-sociais, o contexto, a</p><p>interação — é verificar o que estamos entendendo por uma e outra coisa. A partir</p><p>daí, naturalmente, não escaparemos da Filosofia. É fundamentando</p><p>empiricamente essa questão que estaremos “fazendo” Neurolinguística.</p><p>Se considerarmos que linguagem e cérebro têm uma relação (ou seja, não são</p><p>uma mesma coisa e tampouco são coisas logicamente heterogêneas entre si), de</p><p>que ordem ela seria? Haveria uma relação de causalidade entre ambos os</p><p>processos ou sistemas (na medida em que um cérebro “defeituoso” causaria uma</p><p>linguagem ou uma mente “defeituosa”) ou haveria uma relação de reciprocidade</p><p>entre eles, na medida em que a estrutura e o funcionamento do cérebro podem</p><p>constituir a linguagem e da mesma forma ser por ela constituídos?</p><p>Embora as respostas a essas questões sejam por vezes apaixonadas e parciais, o</p><p>que sabemos na atualidade sobre a atividade cognitiva indica que há na verdade</p><p>entre linguagem e cérebro uma relação estreita, baseada na influência recíproca</p><p>entre diferentes áreas do Sistema Nervoso Central e vários processos cognitivos</p><p>com os quais percebemos e interpretamos o mundo de várias formas.</p><p>Linguagem e cérebro, assim, funcionariam como um sistema dinâmico e</p><p>flexível, cujas regularidades e estabilidades não são determinadas a priori (ou</p><p>seja, não são fixadas ou pré-determinadas biologicamente; não obedecem a</p><p>padrões estáticos e homogêneos de existência). Antes, dependem e são</p><p>constituídos por diferentes fatores de ordem sociocognitiva (cultural, pragmática,</p><p>contextual, interacional).</p><p>Tendo isso em vista, admitamos, pois, que Neurolinguística é um campo de</p><p>arbitragem interdisciplinar, cujo foco é o estudo das relações entre linguagem,</p><p>cérebro e cognição; admitamos, ainda, que seu objeto diz respeito, a um só</p><p>tempo, às ciências humanas, às neurociências e às ciências da cognição. A partir</p><p>disso, nosso olhar deve estar voltado para o que caracteriza tal campo de</p><p>investigação, para o legado filosófico-científico que o tem constituído. Em boa</p><p>parte por assumir pressupostos e métodos próprios à Linguística e às</p><p>Neurociências, a Neurolinguística está sempre colocada frente aos modos de se</p><p>conceber e investigar tais relações: em que termos são elas estabelecidas?</p><p>1.1. A agenda científica da Neurolinguística</p><p>Apesar de não ter um programa definido de forma muito precisa, a</p><p>Neurolinguística, grosso modo, caracteriza um campo de investigação que se</p><p>interessa de maneira geral pela cognição humana e, de maneira mais específica,</p><p>pela linguagem e por processos afeitos a ela, direta ou indiretamente.</p><p>A Neurolinguística tem sido, pois, um lugar de estudo do processamento normal</p><p>e patológico da linguagem, oral e escrita, da relação entre semiose verbal e não</p><p>verbal, da semiologia de patologias de linguagem, da relação entre normalidade</p><p>e patologia, das condições de reorganização linguístico-cognitiva após dano</p><p>cerebral, das relações entre o processo de aquisição e o de patologia de</p><p>linguagem. Um lugar, enfim, de proposição de construtos ou modelos de</p><p>processamento cerebral da linguagem e da cognição. Visto assim, o programa</p><p>teórico-metodológico da Neurolinguística tem na questão do Conhecimento seu</p><p>problema fundamental.</p><p>Enquanto disciplina híbrida, a Neurolinguística tem construído sua agenda</p><p>científica assumindo pressupostos e métodos próprios à Linguística e às</p><p>Neurociências.</p><p>Da tradição e da agenda mais atual dos estudos linguísticos, a Neurolinguística</p><p>mantém o foco e o interesse na descrição e na análise da estrutura, organização e</p><p>funcionamento da linguagem. Isso implica, além do interesse pelo sistema</p><p>linguístico e seus diferentes níveis de constituição, o interesse pela estruturação e</p><p>gestão das práticas socioculturais, pelo contexto de produção e interpretação</p><p>linguística, pelos vários modos de significação não verbais, pelos processos</p><p>cognitivos com os quais compreendemos e atuamos no mundo (dentre os quais a</p><p>memória, a atenção, a percepção, a gestualidade etc.).</p><p>Da tradição de estudo das Neurociências, a Neurolinguística mantém o foco e o</p><p>interesse em um conjunto de questões às voltas com o velho problema mente-</p><p>cérebro: como o cérebro reage ante as dificuldades linguísticas e cognitivas que</p><p>se impõem após o dano neurológico? Como se desenvolve a plasticidade</p><p>cerebral e como ela atua no desenvolvimento e no declínio cognitivo? Como as</p><p>crianças desenvolvem e usam a linguagem? Qual é a responsabilidade do</p><p>cérebro em relação aos processos cognitivos, e qual seria a responsabilidade</p><p>destes em relação ao cérebro, sua estrutura e seu funcionamento? Em que</p><p>medida é possível “visualizar” substratos cerebrais do processamento linguístico</p><p>e cognitivo?</p><p>Na esteira das Neurociências, assim como o faz em relação à Linguística, a</p><p>Neurolinguística tem se servido de uma complexa e variada metodologia, tanto</p><p>de modo quantitativo e experimental, quanto qualitativo e observacional: estudo</p><p>da linguagem e da comunicação após lesões cerebrais por meio de vários</p><p>recursos metodológicos, como os testes diagnósticos, a observação da linguagem</p><p>e da comunicação em ambientes naturais de produção, as simulações</p><p>computacionais, a elaboração de modelos de processamento linguístico e</p><p>cognitivo por meio de técnicas cada vez mais sofisticadas (porque funcionais e</p><p>temporais, não apenas estruturais) de imageamento cerebral.</p><p>Tendo em vista essa dinâmica e híbrida configuração disciplinar da</p><p>Neurolinguística, é possível esboçar, sem chegar a exaurir as possibilidades do</p><p>campo, sua agenda científica atual:</p><p>a) estudo do processamento normal e patológico da linguagem, oral e escrita, por</p><p>meio de modelos ou construtos elaborados no campo da Linguística e no das</p><p>Neurociências;</p><p>b) estudo da repercussão dos estados patológicos no funcionamento da</p><p>linguagem e da cognição, com base na sustentação, refutação ou construção de</p><p>teorias linguísticas e cognitivas. Associados a este item estão a (re)discussão e</p><p>(re)análise da semiologia tradicional das patologias neurolinguísticas, bem como</p><p>da tipologia ou classificação de quadros nosológicos. Os dados de contextos</p><p>patológicos, como a afasia ou a Doença de Alzheimer, por exemplo, por</p><p>implicarem graus variados de instabilidade nos processos linguístico-cognitivos,</p><p>tornam-se cruciais para qualquer teorização geral sobre o funcionamento da</p><p>linguagem e da cognição humana;</p><p>c) estudo das condições e características neurolinguísticas do bilinguismo e da</p><p>surdez. Tanto a rediscussão de antigos mitos existentes no campo dos estudos</p><p>sobre a surdez (como o relativo à idade crítica para aquisição da linguagem ou a</p><p>uma suposta concretude cognitiva do pensamento do indivíduo surdo), quanto</p><p>das teses sobre a natureza monolíngue ou plurilíngue do cérebro e sobre a</p><p>natureza inata ou adquirida da competência linguística, identificam, em relação a</p><p>este item, a contribuição relevante da pesquisa neurolinguística;</p><p>d) estudo neurolinguístico e sociocognitivo do envelhecimento e da</p><p>neurodegenerescência, como a Doença de Alzheimer.</p><p>Estão associados a este</p><p>item as relações entre linguagem, memória e consciência no contexto normal e</p><p>no patológico, a discussão acerca de vantagens e desvantagens de modelos</p><p>biomédicos e modelos sociais do envelhecimento normal e patológico, as</p><p>caracaterísticas e relações entre fenômenos linguísticos e cognitivos no contexto</p><p>do envelhecimento normal, da Doença de Alzheimer e das afasias, a análise de</p><p>discrepâncias observadas no comportamento dos indivíduos em ambientes</p><p>fortemente institucionalizados e em ambientes mais naturais de produção de</p><p>linguagem e interação;</p><p>e) estudo de processos de significação não verbais, com destaque para a relação</p><p>que estes mantêm com a linguagem e com o contexto comunicacional.</p><p>Associados a este item estão os estudos de processos ou estratégias</p><p>compensatórias de comunicação e os estudos sobre a dimensão multimodal da</p><p>linguagem e da interação. Este item diz respeito à análise de contextos não</p><p>necessariamente patológicos e não estritamente verbais, tais como os que</p><p>focalizam a gestualidade, a música, o corpo etc.;</p><p>f) discussão sobre a questão do método de investigação neurolinguística. Este</p><p>item refere-se à questão da constituição, visibilidade e tratamento de dados — o</p><p>que inclui o problema da escolha e do aperfeiçoamento de sistemas de</p><p>transcrição (linguística e mutimodal) adequados para os fenômenos ou processos</p><p>focalizados nas investigações. A questão, assim, recobre múltiplas preocupações:</p><p>teórica, metodológica, técnica, ética, jurídica, tecnológica.</p><p>O desenvolvimento dessa agenda tem permitido que a teorização produzida pela</p><p>pesquisa neurolinguística retorne à Linguística de forma extremamente produtiva</p><p>em relação aos interesses gerais da ciência da linguagem.</p><p>A análise dos dados obtidos no contexto patológico, bem como o estudo</p><p>sistemático da relação entre linguagem, cérebro e cognição em diferentes</p><p>contextos de produção, permite diferentes e prolíferos movimentos teóricos:</p><p>colabora para o entendimento dos processos normais de aquisição e</p><p>desenvolvimento da linguagem e da cognição; promove a construção de teorias</p><p>“pontes” no interior da própria Linguística; atua na relação interdisciplinar entre</p><p>a Linguística e outras disciplinas do conhecimento; contribui para o</p><p>desenvolvimento teórico e prático de atividades clínico-terapêuticas,</p><p>desempenhando também um importante papel social ao destinar seus interesses</p><p>científicos à diminuição de impactos e sofrimentos derivados das patologias</p><p>cerebrais e ao atuar na recepção social de doenças ou circunstâncias cujo estigma</p><p>é ainda forte entre nós.</p><p>Não é de se estranhar, portanto, que a arbitragem interdisciplinar seja o vetor</p><p>epistemológico que sustenta toda e qualquer pesquisa produzida na área.</p><p>Tanto a tradição europeia, que identifica a Neurolinguística com os estudos</p><p>afasiológicos e psicolinguísticos, quanto a tradição americana de inspiração</p><p>conversacional e aplicada, que a identifica com a fundamentação de práticas</p><p>clínico-terapêuticas e com estudos de aspectos comunicacionais afetados pela</p><p>patologia, são bons indicadores da relevância da área que, cumpre observar, tem</p><p>se desenvolvido bastante nos últimos anos no meio acadêmico do País.</p><p>2. DAS CONDIÇÕES DE SURGIMENTO DA ANTIGA AFASIOLOGIA</p><p>Ainda que seja tradicional apontar o século XIX como aquele que propiciou o</p><p>nascimento da Afasiologia e do estudo científico da correspondência entre</p><p>cérebro e linguagem, a questão sobre a representação cerebral da linguagem e de</p><p>outros processos mentais é tão antiga quanto a Humanidade.</p><p>Desde a Antiguidade (de Hipócrates a Galeno), focaliza-se o cérebro como o</p><p>órgão da sensação e da inteligência. Mesmo antes disso, os sacerdotes egípcios</p><p>já faziam correlações anátomo-clínicas após a morte de indivíduos doentes.</p><p>Apenas no século XIX, período culturalmente animado pela corrente teórica</p><p>positivista, chegamos ao estudo “científico” do cérebro. A descoberta das</p><p>localizações cerebrais e os primeiros trabalhos sobre a teoria celular da rede</p><p>nervosa datam dessa época</p><p>Se é bem verdade que o problema corpo-mente funda toda nossa tradição</p><p>científico-filosófica, o problema cérebro-linguagem, de sua parte, toma forma</p><p>num período mais recente, mais precisamente no início do século XIX. Esse</p><p>início, chamado Frenologia (teoria a respeito das localizações cerebrais de</p><p>nossas faculdades mentais, que tem por base a observação a olho nu das fossas</p><p>cranianas), logo alargou seus interesses em direção aos estudos anátomo-</p><p>fisiológicos mais complexos da linguagem e seus distúrbios.</p><p>Para entendermos o nascimento da Afasiologia, também chamada de</p><p>“Neuropsicologia da linguagem” por autores franceses (Hécaen e Dubois, 1969),</p><p>é preciso levar em conta o espírito intelectual dos séculos XVIII e XIX, marcado</p><p>por uma crescente e grande confiabilidade na ideia de ciência e no gosto por</p><p>antinomias clássicas. Nesse contexto intelectual, encontramos um tipo de</p><p>dualismo biológico (cérebro/mente) que marca fortemente a Linguística e</p><p>demais ciências ao longo de todo século XX.</p><p>O que temos ao final do século XIX, de fato, é um perfeito mosaico de</p><p>inteligibilidades construído em torno do empreendimento positivista. Trata-se de</p><p>um período estimulante para as descobertas biológicas: a teoria celular já tinha</p><p>avançado no século anterior, Darwin publica nesse período sua obra Origem das</p><p>espécies, a Revolução Industrial torna-se mais do que uma realidade no campo</p><p>das ciências, o gosto pelas “origens” insinua uma cultura ocidental etnocêntrica e</p><p>expansionista, passível de ser observada na constituição da própria Linguística,</p><p>bem como de outras ciências que à época se firmavam enquanto tais.</p><p>Com relação ao conhecimento sobre o cérebro, o século XIX foi de fato</p><p>impressionante. De Galeno (século II) até a Idade Média preponderou a Teoria</p><p>dos Ventrículos, responsável pela explicação da arquitetura anatomicamente</p><p>determinante de três faculdades mentais: a memória, a razão e o senso comum</p><p>— a linguagem praticamente não fazia parte das evidências de sequelas de</p><p>distúrbios cerebrais em virtude do fato de que ela simplesmente não existia para</p><p>os estudiosos (cf. Marx, 1966; Benton e Joint, 1974). A linguagem era</p><p>“invisível” porque não era corpórea, não estava localizada no cérebro.¹</p><p>O interesse pela organização cerebral da linguagem, bem como pela sua</p><p>realidade cognitiva surgiu a partir do momento em que ela passa a ser “visível”</p><p>para os antigos estudiosos da correlação entre comportamentos humanos e áreas</p><p>corticais lesadas, por volta da segunda metade do século XIX. Antes disso,</p><p>cumpre lembrar, os fenômenos que de alguma forma eram afeitos ou</p><p>relacionados à linguagem eram creditados a alguma capacidade intelectiva do</p><p>homem, como a percepção, a memória, o raciocínio, a inteligência.</p><p>De fato, toda a tradição científico-filosófica acerca da linguagem a toma como</p><p>uma espécie de exteriorização de conteúdos mentais que seriam subjetivados e</p><p>aparentemente inacessíveis ao investigador. Afinal, para os antigos, a linguagem,</p><p>essa espécie de “dom divino” dado homem (portanto, inata, essencial,</p><p>verdadeira, lógica) não se confunde com a realização humana (a fala), que a</p><p>deforma, e sim com a mente (o espírito), que a contém.</p><p>A falta de teorias-pontes entre a Linguística e a Neurologia então nascente de</p><p>fato contribuiu para que os estudos linguísticos sobre a afasia e sobre outros</p><p>contextos patológicos não acontecessem ainda no século XIX (podemos até</p><p>mesmo aludir a um desconhecimento teórico recíproco entre essas duas</p><p>ciências).</p><p>Além disso, a percepção da Linguística como mera “ciência auxiliar” também</p><p>não foi favorável à colaboração dos linguistas com o estudo neuropatológico das</p><p>afasias que então despontava. Somado a todos esses fatores, lembramos ainda</p><p>que o psicologismo que dominava as primeiras explicações sobre as afasias de</p><p>certa forma também inibia a incursão dos linguistas no campo da Afasiologia</p><p>(Françozo, 1987).</p><p>A linguagem só veio a ter uma realidade mental (“mental” significando ou</p><p>reduzindo-se ao cerebral, de acordo com o espírito da época) e um estatuto</p><p>nosológico</p><p>(a afasia) apenas no século XIX. A partir daí, consagrou-se a ideia de</p><p>que a linguagem tinha uma realidade neurocognitiva (isto é, era concebida como</p><p>um processo mental e estava localizada no cérebro).</p><p>Se a questão da localização cerebral precisa dos processos mentais humanos é</p><p>ainda hoje um tema discutível, a definição da responsabilidade da “área de</p><p>Broca” (isto é, a região situada ao pé da terceira circunvolução frontal do</p><p>hemisfério esquerdo) frente aos processos da linguagem articulada significou,</p><p>sem dúvidas, um avanço do reconhecimento da importância da comunicação</p><p>verbal em nossa vida mental.</p><p>A descrição sistemática das alterações de linguagem decorrentes de lesões</p><p>cerebrais, feita inicialmente por médicos neurologistas (ou por anatomistas), deu</p><p>origem à Afasiologia, o campo de estudo das afasias, isto é, problemas de</p><p>linguagem decorrentes de lesão focal adquirida no Sistema Nervoso Central.</p><p>Quando se efetivou, em meados da década de 1960, o estudo linguístico da</p><p>afasia dizia respeito basicamente à sintaxe (ou melhor, às regularidades</p><p>gramaticais e às regras de boa formação de sentenças) e à semântica (ou melhor,</p><p>às representações lógico-formais de sentenças). A fala, em seu contexto fonético,</p><p>ficou de fora dos problemas afásicos (como estava, no início, de fora da própria</p><p>Linguística, cumpre lembrar), já que era considerada uma realização</p><p>simplesmente motora (o que equivale a dizer não simbólica, ou não linguística).</p><p>Também ficaram de fora do início dos primeiros estudos linguísticos das afasias</p><p>as atividades realizadas pelos falantes em situações de uso efetivo da linguagem,</p><p>os aspectos socioculturais a ela relacionados e as práticas discursivas que a</p><p>mobilizam. Vale ressaltar, a propósito, que foi preciso esperar por Roman O.</p><p>Jakobson, que realizou o primeiro estudo propriamente linguístico das afasias</p><p>(tendo como base de seu trabalho a descrição neuropsicológica dos fenômenos</p><p>afásicos feita pelo neuropsicólogo russo Alexander R. Luria), para que o diálogo</p><p>entre a Afasiologia e a teoria linguística se tornasse fecundo, criativo e</p><p>promissor.</p><p>3. AFASIOLOGIA E NEUROLINGUÍSTICA</p><p>A Afasiologia, em seu início, pode ser compreendida como o campo de estudo</p><p>das correlações entre linguagem e determinadas áreas do cérebro que seriam por</p><p>ela responsáveis. Dos estudos específicos sobre as afasias aos estudos de</p><p>processos linguísticos e cerebrais em contexto normal ou patológico, deu-se um</p><p>desdobramento quase natural. Dessa maneira, precedida por trabalhos realizados</p><p>há mais de duzentos anos, com base na colaboração algo tumultuosa entre a</p><p>ciência médica e a ciência linguística, nasce a Neurolinguística, inicialmente</p><p>representada por uma área de interesses bem determinada, o estudo das afasias,</p><p>ou Afasiologia. Ainda que a Afasiologia (ou Linguística Afasiológica, na</p><p>expressão de Caplan, 1987) não totalize o interesse teórico-metodológico da</p><p>Neurolinguística atual, ela é, sem dúvida, o seu campo de investigação mais</p><p>prolífero, razão pela qual damos destaque a ele neste capítulo.</p><p>Embora seja tradicional falar que a Afasiologia nasceu com o médico francês</p><p>Paul Broca em 1861, quando ele descreveu os primeiros casos de afasia motora,</p><p>alteração que afetaria basicamente o aspecto expressivo da linguagem</p><p>(descrevendo, entre outros, o caso do paciente Leborgne, apelidado “Tan-tan”</p><p>por ser esta a única forma expressiva que lhe restara para se comunicar com os</p><p>outros), cumpre salientar que quem estabeleceu propriamente a relação entre</p><p>área cerebral lesada e manifestações clínicas de pacientes neurológicos foi Gall,</p><p>no início do século XIX, fazendo correlações anátomo-clínicas vistas a olho nu</p><p>na caixa craniana. A propósito, sua peculiar doutrina, intitulada “Anatomia e</p><p>fisiologia do Sistema Nervoso em geral e do cérebro em particular”, recebeu o</p><p>nome de Frenologia e dizia que as disposições morais e intelectuais dependiam</p><p>de faculdades inatas e distintas, que estariam inscritas no cérebro. Assim, o lugar</p><p>ontológico da alma desviou-se para o cérebro...</p><p>Coube, pois, ao médico e anatomista alemão Franz Joseph Gall, no começo do</p><p>século XIX, a partir dos estudos de correlação anátomo-clínica, introduzir a</p><p>linguagem entre as faculdades mentais localizadas no cérebro, e coube ao</p><p>médico francês Paul Broca, na década de 1860, “localizá-la” em partes</p><p>circunscritas do Sistema Nervoso, a qual chamou Área de Broca, responsável</p><p>pela linguagem articulada, pela memória das palavras.</p><p>Quando Broca apresentou o “caso Lerborgne” (cuja afasia se caracterizava</p><p>essencialmente por um distúrbio de linguagem articulada, sem problemas de</p><p>compreensão ou de outros déficits linguísticos e cognitivos), de certo modo</p><p>reforçando as ideias de Gall, passou-se a localizar ao pé da terceira</p><p>circunvolução frontal do hemisfério esquerdo do cérebro (a “área de Broca”) a</p><p>sede da linguagem. Ainda que sob contestações, essa ideia perdura até os dias de</p><p>hoje, como já mencionamos.</p><p>Todavia, a descrição do caso desse paciente de Broca tem sido alvo de muitas</p><p>críticas. Internado havia 20 anos no Hospital Bicêtre, em Paris, o paciente</p><p>padecia de vários males mesmo antes de ter sofrido uma lesão cerebral (e consta</p><p>que não teria sido apenas uma lesão, o que enfraquece ainda mais a corrente</p><p>localizacionista, que relaciona diretamente área cerebral lesada e alteração de</p><p>linguagem e de outros processos cognitivos....). Com isso, muitos admitem, não</p><p>sem uma ponta de ironia, que a Afasiologia tem sua origem numa espécie de</p><p>malogro ou equívoco clínico. Além disso, como diziam os críticos da corrente</p><p>localizacionista (como Sigmund Freud, que escreveu em 1891 uma instigante</p><p>monografia doutoral sobre as afasias), uma coisa é localizar no cérebro áreas</p><p>que, prejudicadas, perturbariam a linguagem e demais processos cognitivos;</p><p>outra coisa — bem diferente — é localizar de maneira precisa a linguagem no</p><p>cérebro. Somente a história das ideias ou a filosofia da ciência seriam capazes de</p><p>identificar as razões da manutenção, até os dias de hoje, de um paradigma</p><p>estabelecido nessas bases.</p><p>Já à época do nascimento da Afasiologia, vários autores também se dedicavam a</p><p>compreender se a alteração da linguagem nas afasias perturbava o</p><p>comportamento psicoafetivo do indivíduo, ou sua inteligência.²</p><p>Associado por vários autores a uma alteração de memória, de maneira explícita</p><p>ou implícita, o distúrbio de fala então descrito já havia sido classificado pelo</p><p>filólogo alemão Johann Gesner, no século XVIII, como “amnésia da fala”,</p><p>causada, segundo ele, pela inércia de conexões entre diferentes partes do cérebro</p><p>(Ahlsén, 2006, p. 13).</p><p>Em trabalho de 1825, contrariando a tese unitarista segundo a qual o cérebro</p><p>participa como um todo e não de maneira especializada e específica do</p><p>funcionamento de uma determinada função mental, Jean-Baptiste Bouillaud,</p><p>aluno de Gall, descreveu dois tipos de desordens afásicas relacionadas a lesões</p><p>no lobo frontal: os concernentes aos movimentos da fala (relativos à capacidade</p><p>motora de articular os sons da fala), e os concernentes à memória de palavras</p><p>(relativos à capacidade mental de evocar palavras). Em 1898, Albert Pitres</p><p>descreveu o que chamou de “afasia amnésica”, isto é, uma dificuldade de</p><p>nomear objetos e encontrar palavras na fala espontânea (Ahlsén, 2006, p. 24).</p><p>Nessas primeiras descobertas, linguagem e memória são fenômenos associados</p><p>entre si nas descrições das afasias; contudo, para os primeiros afasiólogos, a</p><p>primeira não seria mais do que mera expressão da segunda.</p><p>O distúrbio de linguagem articulada, descrito nas monografias dos</p><p>neuropatologistas do século XIX e chamado inicialmente de afemia por Broca, é</p><p>finalmente denominado de afasia após o médico francês Armand Trousseau usar</p><p>o termo pela primeira vez em 1862. A propósito dessa questão terminológica,</p><p>observa Morato (2010b, p. 24):</p><p>No mundo clássico, a ideia de afasia não era ligada à ideia de doença,</p><p>propriamente; era ligada à ideia de retórica, de mneumotécnica, de defesa de</p><p>pontos de vista. Era ligada, portanto, à ideia de logos, não apenas de realização</p><p>motora da</p><p>fala ou do pensamento que não se materializa. Poderia ser</p><p>considerado afásico aquele desprovido de argumento de um discurso racional;</p><p>afásico também poderia se referir àquele de quem não se podia falar. A ideia de</p><p>afasia e, mais ainda, a ideia de afemia, assim, está ligada à ideia de infâmia, ou</p><p>de infame (daí o fato de Trousseau ter recusado o termo afemia, originalmente</p><p>proposto por Broca para dar nome à patologia da linguagem articulada que de</p><p>forma pioneira descrevera em 1861, preferindo, em vez disso, o termo afasia).</p><p>Tal sugestão teria sido acatada pelo pai da Afasiologia, em correspondência</p><p>trocada entre ambos, ainda que Broca tenha reivindicado para si a descrição e o</p><p>diagnóstico da doença agora renomeada (cf. Hécaen e Dubois, 1969).</p><p>Ainda que até hoje perdure a ideia de que a área de Broca atua de maneira</p><p>importante e imprescindível no processamento da linguagem articulada houve, à</p><p>época do médico francês, um acirrado debate em torno de um arrazoado ainda</p><p>vigente entre nós: uma coisa seria identificar zonas cerebrais que atuam de</p><p>maneira importante na linguagem articulada, de modo a se responsabilizar por</p><p>suas alterações (como as afasias), outra coisa bem diferente é a postulação de</p><p>uma localização precisa ou estrita da linguagem no cérebro.</p><p>O velho localizacionismo, ainda que corrente dominante por muito tempo, não</p><p>parecia já no início da Afasiologia corresponder à explicação definitiva de como</p><p>o cérebro se estrutura e funciona. De todo modo, tampouco o associacionismo ou</p><p>o globalismo conseguiram firmar-se como corrente explicativa dominante ou</p><p>consensual nessa época.</p><p>Ao final do século XIX, o localizacionismo era questionado fortemente por</p><p>autores como o neurologista britânico John Hughlings Jackson e o neurologista</p><p>austríaco Sigmund Freud.</p><p>Na primeira metade do século XX, vários neurologistas e afasiólogos,</p><p>procurando superar os limites do antagonismo localizacionismo (corrente teórica</p><p>baseada, em termos gerais, na ideia de que as funções mentais encontram-se</p><p>localizadas em determinadas regiões do cérebro, por elas responsáveis) versus</p><p>globalismo (corrente teórica baseada, em termos gerais, não na ideia da não</p><p>especialização cerebral, mas sim na de que todo o cérebro, de forma holística, é</p><p>responsável por cada uma das funções mentais), já admitiam que o cérebro opera</p><p>em concerto, ainda que certas regiões pareçam mais importantes do que outras</p><p>para a constituição e funcionamento das funções mentais.</p><p>Ligados a esse pensamento crítico, encontramos autores identificados com a</p><p>“moderna Neuropsicologia”, como Constantin von Monakov, Henry Head, Kurt</p><p>Goldstein e Alexander Romanovich Luria. Para eles, o cérebro obedecia a uma</p><p>lei hierárquica de organização das funções mentais, resultante de uma longa</p><p>trajetória filogenética, isto é, de uma evolução biológica e cultural da espécie</p><p>humana.</p><p>Embora importantes estudiosos dessa mesma época esboçassem críticas à tese do</p><p>localizacionismo (ou tese da correlação direta entre zona cerebral e função</p><p>mental), como o médico e neuroatanomista Jean-Martin Charcot e seu então</p><p>discípulo Sigmund Freud, foi preciso esperar o século XX para que a tese</p><p>funcionalista — segundo a qual o cérebro, assim como a linguagem e demais</p><p>processos cognitivos, se estrutura como um sistema funcional complexo — se</p><p>consolidasse de forma a implicar mudanças teóricas e metodológicas</p><p>importantes no campo das Neurociências.</p><p>A noção de sistema funcional complexo foi introduzida no campo da</p><p>Neuropsicologia por Alexander Romanovich Luria (1981). Por ela se entende</p><p>que as diferentes partes do Sistema Nervoso Central (portanto, do cérebro)</p><p>funcionam de maneira integrada, trabalhando em concerto em distintos níveis de</p><p>complexidade hierárquica da atividade cognitiva. Para o autor,</p><p>toda atividade mental humana é um sistema funcional complexo efetuado por</p><p>meio de uma combinação de estruturas cerebrais funcionando em concerto, cada</p><p>uma das quais dá sua contribuição peculiar para o sistema funcional como um</p><p>todo. (Luria, 1981, p. 23)</p><p>Com base nessa concepção integrativa, dinâmica e plástica da estrutura e do</p><p>funcionamento cerebral, a afasia é concebida não apenas como um problema de</p><p>articulação da fala, mas também como uma alteração do sistema linguístico</p><p>como um todo (fala, audição, leitura e escrita), ainda que os sintomas possam se</p><p>manifestar de forma seletiva (mais semânticos ou mais sintáticos, por exemplo).</p><p>De todo modo, essa concepção sistêmica e funcional do cérebro implica uma</p><p>nova forma de se conceber os distúrbios cognitivos. A afasia, compreendida</p><p>inicialmente como um problema de fala articulada ou um problema de</p><p>linguagem interna, passa a ser vista como um problema de metalinguagem, o que</p><p>traz à tona a relação do falante com a produção e a interpretação da linguagem e</p><p>da comunicação, com os aspectos verbais e não verbais da significação.</p><p>A partir do momento em que passa a situar-se na Linguística, a antiga</p><p>Afasiologia — atualmente, Neurolinguística — pode projetar de maneira</p><p>interessante antigas indagações filosóficas sobre o sentido, a representação, o</p><p>conhecimento, o pathos, a memória etc. Pode, sobretudo, voltar-se para a</p><p>Linguística de modo a assumir seus pressupostos e métodos próprios, por vezes</p><p>criando teorias-pontes entre distintos domínios da própria ciência da linguagem,</p><p>como a Psicolinguística, a Sociolinguística, a Pragmática, a Análise da</p><p>Conversação, a Linguística Textual, a Linguística Cognitiva, a Análise do</p><p>Discurso.</p><p>4. AS PRIMEIRAS TEORIZAÇÕES SOBRE AS AFASIAS E A LINGUAGEM</p><p>PATOLÓGICA</p><p>O conhecimento a respeito das afasias dá-se inicial e predominantemente no</p><p>campo das ciências médicas. Métodos investigativos utilizados à época do</p><p>nascimento da Afasiologia, como a correlação anátomo-clínica, a entrevista</p><p>anamnésica e os protocolos diagnósticos estão na base da investigação clínica</p><p>ainda vigente.</p><p>Vimos que os primeiros a diagnosticar e classificar as afasias foram os próprios</p><p>médicos que as descreveram a partir do que exibiam seus pacientes. Na</p><p>realidade, as classificações vigentes, em sua maioria, não divergem entre si e</p><p>reafirmam de certa forma descrições e concepções tradicionais.</p><p>Desde a primeira metade do século XX os linguistas passaram a estudar as</p><p>afasias com o intuito de testar ou comprovar suas teorias. Dessa forma, a</p><p>Afasiologia tornou-se uma importante fonte de dados para o desenvolvimento da</p><p>teoria linguística.</p><p>Se a falta de uma ciência da linguagem obrigou os primeiros afasiólogos a</p><p>levarem em conta o bom senso e a intuição na análise da linguagem em</p><p>contextos patológicos (à maneira de Jacques Lordat ou Armand Trousseau, por</p><p>exemplo, que faziam inúmeras observações interessantes, embora algo</p><p>subjetivistas, a respeito das implicações da afasia na linguagem cotidiana e na</p><p>vida prática de seus pacientes), a institucionalização inicial do estudo das afasias</p><p>no terreno da Medicina do século XIX fez com que fosse afastado tudo aquilo</p><p>que envolvesse aspectos socioculturais, contextuais e psicoafetivos da</p><p>linguagem. O que se recusava à época, em função da concepção positivista de</p><p>ciência, era a “exótica” inclinação filosófica que o estudo das afasias suscitava.³</p><p>A distinção entre língua e fala, central no nascimento da Linguística, por sua vez,</p><p>conduziu os estudos da afasia em direção ao estudo da língua, concebida como</p><p>sistema abstrato, autônomo, homogêneo e inato, dissociado da fala ou das</p><p>atividades que com ela fazem os falantes. Esta concepção de língua ajustava-se à</p><p>veiculada nos estudos afasiológicos iniciais, que a consideravam uma espécie de</p><p>representação do pensamento. Com isso, a afasia acabava sendo definida não</p><p>como um problema de linguagem em toda a sua abrangência, mas basicamente</p><p>como um problema relativo a aspectos internos, subjetivados, representacionais,</p><p>mentais: em suma, como um problema de “linguagem interna” (Françozo,</p><p>1987).⁴</p><p>Foi preciso que a forte distinção língua/ fala fosse diluída de algum modo para</p><p>que aqueles objetos considerados “heteróclitos” por Saussure à época do</p><p>nascimento da Linguística (ou seja,</p><p>os falantes, suas atividades, os aspectos</p><p>histórico-culturais que configuram os usos da linguagem etc.) passassem a ser</p><p>incorporados ao estudo da linguagem.</p><p>A tradição estruturalista dividiu as afasias em dois grandes tipos: não fluentes e</p><p>fluentes,⁵ anteriores e posteriores, motores e sensoriais. Os primeiros têm como</p><p>características principais problemas de expressão oral e/ou escrita (como</p><p>alterações fonético-fonológicas, estereotipias, perserverações, disprosódias,</p><p>parafasias — sobretudo fonológicas —, fala telegráfica, agramatismo, falta de</p><p>iniciativa verbal, alteração de linguagem escrita, apraxia buco-lábio-lingual) e</p><p>são creditados a lesões na parte anterior do córtex cerebral. Os segundos têm</p><p>como características a ausência de déficits articulatórios, a presença de</p><p>problemas de compreensão oral e/ou escrita e a alteração nos aspectos</p><p>semânticos da linguagem (como anomias, dificuldades de evocar ou selecionar</p><p>palavras, parafasias — sobretudo semânticas —, circunlóquios, confabulações).</p><p>Os problemas perceptivos e gestuais são mais frequentes e numerosos nesse tipo</p><p>de afasia, que é creditado a lesões na parte posterior do córtex cerebral.</p><p>Sem maiores especificações, esse é o quadro geral das classificações das afasias,</p><p>que acaba por orientar a classificação de síndromes neurológicas distintas, como</p><p>as demências, por exemplo. Tanto os neuropsicólogos quanto os neurolinguistas</p><p>têm tentado colocar tal quadro à prova mediante outras e distintas descrições e</p><p>análises de fenômenos afásicos. Contudo, novas descrições e explicações</p><p>acabam sendo “encaixadas” nas velhas classificações de maneira ad hoc. O fato</p><p>é que, sob contestações de toda ordem, elas continuam a vigorar, sobretudo</p><p>quando evocadas para serem aplicadas ao contexto clínico-terapêutico.</p><p>4.1. Sobre as afasias: o problema do escopo do termo</p><p>A afasia tem sido definida tradicionalmente como uma alteração de linguagem</p><p>oral e/ou escrita causada por um comprometimento cerebral adquirido</p><p>decorrente de acidentes vasculares cerebrais (isquêmicos ou hemorrágicos),</p><p>traumatismos crânio-encefálicos, tumores. Em relação à etiologia, os quadros</p><p>neurológicos aos quais pertencem as afasias estão associados (muitas vezes de</p><p>maneira integrada) a doenças cardíacas, diabetes, tabagismo, hipertensão,</p><p>alcoolismo, sedentarismo.</p><p>A afasia pode e geralmente é acompanhada de alterações de outros processos</p><p>cognitivos e sinais neurológicos, como a hemiplegia (paralisia de um dos lados</p><p>do corpo), a apraxia (distúrbio da gestualidade), a agnosia (distúrbio do</p><p>reconhecimento), a anosognosia (falta de consciência do problema por parte do</p><p>sujeito cérebro-lesado) etc. Não se trata de afasia, assim, alterações de</p><p>linguagem que se manifestam nas psicopatologias (como a esquizofrenia ou o</p><p>autismo), nas deficiências mentais e auditivas ou nas demências, ou mesmo nas</p><p>amnésias (Morato et al., 2002).</p><p>Esta definição restringe a concepção de afasia a um problema de linguagem</p><p>derivado de uma lesão focal no hemisfério cerebral esquerdo. Além isso, entende</p><p>que, por ser um sintoma diagnóstico, a afasia — e, portanto, o distúrbio de</p><p>linguagem que ela representa — integra um determinado conjunto de critérios de</p><p>diagnose (cf. Ahlsén, 2006, p. 101). A propósito, ressalta Morato (2010b, p. 40):</p><p>A atual investigação das afasias no campo da Neurolinguística e no da</p><p>Neuropsicologia não deixa de ser marcada pela influência do método clínico</p><p>iniciado no século XIX: a correlação anatomoclínica, a entrevista anamnésica</p><p>dirigida e, mais posteriormente, a psicometria são elementos que normalmente</p><p>funcionam como base da semiologia ou sintomatologia da síndrome afásica,</p><p>base por sua vez do diagnóstico e da prescrição: “Ao dar um rótulo ao problema</p><p>espera-se diminuir a ansiedade da ignorância. A nomeação de doenças envolve</p><p>classificação, promove o prognóstico e indica a terapia” (Porter, 1994, p. 365).</p><p>Após o dano cerebral, a qualidade de vida do sujeito cérebro-lesado será</p><p>proporcional à intensidade do impacto da afasia. Este dependerá, entre outras</p><p>coisas, do grau de extensão e importância do comprometimento lesional, da</p><p>etiologia da afecção (AVC, TCE, tumor etc.), das sequelas neurológicas e</p><p>neurolinguísticas resultantes (afasia, agnosia, hemiplegia, apraxia etc.) e das</p><p>características do próprio sujeito (idade, atividade sócio-ocupacional, interesses</p><p>culturais, escolaridade, habilidades, humor etc.), bem como da forma como ele e</p><p>seus familiares ou amigos reagem a isso tudo.</p><p>Na prática, com quais dificuldades se deparam em geral as pessoas afásicas, que</p><p>podem apresentar dificuldades motoras (como hemiplegias) e sensoriais (como</p><p>agnosias e apraxias)?</p><p>Do ponto de vista da linguagem oral e escrita, podem faltar-lhe as palavras de</p><p>maneira importante (anomias, dificuldades de selecionar ou evocar palavras),</p><p>resultando muitas vezes em substituições ou trocas inesperadas e</p><p>incompreensíveis de palavras inteiras ou de partes delas (são as parafasias, que</p><p>têm diversas naturezas: fonético-fonológicas, semânticas, morfológicas). Sua</p><p>fala pode ser permeada por longas pausas ou hesitações, muitas vezes seguidas</p><p>de desalentado abandono do turno de fala ou do tópico conversacional, bem</p><p>como da perda do “fio da meada”. Pode também acontecer de sua fala resultar</p><p>muito laboriosa (alterações apráxicas, fonoarticulatórias) ou ter um aspecto</p><p>“telegráfico”, em função de dificuldades de ordem sintática (como o</p><p>agramatismo) ou semântico-lexical (como as dificuldades de encontrar palavras).</p><p>Ainda pode acontecer de o indivíduo afásico ter dificuldades para objetivar ou</p><p>“controlar” os sentidos e a forma de expressá-los, tendo em vista os contextos e</p><p>as regras pragmáticas e conversacionais que presidem a utilização da linguagem.</p><p>O afásico pode “infringi-las” ao confabular (isto é, produzir falsas informações</p><p>ou falsas memórias), ao produzir circunlóquios, ao apresentar uma fala</p><p>jargonafásica (isto é, uma fala permeada de abundantes parafasias de diversas</p><p>naturezas), ao atuar de maneira irrelevante com relação à atividade referencial (e</p><p>aos fatores de coesão, de coerência, de progressão tópica) e à atividade</p><p>inferencial (subentendidos, implícitos etc.).</p><p>É interessante ressaltar que esses aspectos, em muito semelhantes ao que ocorre</p><p>no contexto “normal”, extrapolam o terreno do sistema linguístico e atingem a</p><p>chamada exterioridade da língua, como os contextos de uso da linguagem, as</p><p>normas sociais que presidem a produção e a interpretação da linguagem, a</p><p>coexistência de processos de significação verbais e não verbais nos atos</p><p>comunicativos etc.</p><p>A partir da integração de elementos e fatores tidos como intra e extralinguísticos,</p><p>a afasia se exibe de maneira mais radical como uma questão discursiva, isto é,</p><p>não redutível aos níveis linguísticos ou à língua e seus mecanismos internos de</p><p>constituição. Envolve o funcionamento da linguagem e os processos de alguma</p><p>maneira a ele associados; envolve, dessa maneira, práticas linguísticas e</p><p>sociocognitivas que caracterizam as mais diversas rotinas e práticas</p><p>significativas humanas.</p><p>A maneira como se lida social e subjetivamente com a afasia condiciona, de</p><p>certa forma, a sorte dos que com ela convivem. Isso acaba por influenciar</p><p>fortemente o processo de (re)construção linguístico-cognitiva ou a possibilidade</p><p>de adaptação ou reinserção sócio-ocupacional de sujeitos afásicos: “Nesse caso,</p><p>a afasia deixa de ser apenas uma questão de saúde, uma questão linguística, uma</p><p>questão cognitiva. A afasia torna-se uma questão social” (Morato, 2000, p. 65-</p><p>66).</p><p>Em 1875, M. Legroux definia a afasia como “perversão da faculdade normal de</p><p>exprimir ou compreender as ideias pelos signos convencionais”. A origem</p><p>anatômica parece dar a essa linguagem uma morbidez indiscutível (daí a</p><p>medicalização, o organicismo, a psicologização etc.).</p><p>Herdeira do logocentrismo greco-latino, a cultura ocidental, ao vigiar</p><p>severamente as formas de dizer ou falar, acaba por caracterizar a perda ou a</p><p>alteração da linguagem como um “escândalo” intolerável, como se o pathos não</p><p>fosse constitutivo também</p><p>da ideia de normal (algo abordado com agudeza por</p><p>autores como Sigmund Freud, George Canguilhem e Michel Foucault). Como</p><p>afirma Roy Porter (1993), a “doença põe a linguagem sob tensão”. Daí se vê a</p><p>preocupação com o sintoma, com a nosologia, com a forte distinção entre o</p><p>normal e o patológico: “uma doença nomeada é uma doença quase curada”. A</p><p>pessoa que se torna afásica, em função dessa idealização (da linguagem, do</p><p>falante, da saúde etc.), acaba por conviver com um estigma muitas vezes</p><p>devastador.</p><p>As afasias têm sido definidas como alteração da capacidade de realizar</p><p>operações metalinguísticas (cf. Jakobson, 1954/1981) ou como perda ou</p><p>alteração da metalinguagem (cf. Lebrun, 1983). O que estaria alterado ou</p><p>perdido no caso dos afásicos credita-se a um domínio cognitivo ou mental da</p><p>competência linguística de que os indivíduos seriam dotados para se servir de</p><p>recursos linguísticos com os quais representam e categorizam os objetos e</p><p>estados de coisas do mundo. No sentido que lhe dá Chomsky (1970, p. 52), trata-</p><p>se de uma capacidade inata e mental que temos para falar e compreender a</p><p>linguagem: “O conhecimento de uma língua — a ‘competência linguística’, no</p><p>sentido técnico deste termo — implica que dominamos esses processos</p><p>gramaticais”.</p><p>Contudo, indaga Morato (2010b, p. 32-33), em relação a esse ponto:</p><p>Se a perda da capacidade metalinguística que caracterizaria as afasias disser</p><p>respeito à perda de uma competência ligada ao conhecimento (psicológico) que</p><p>teria o indivíduo acerca dos recursos a serem processados na produção e na</p><p>compreensão de objetos linguísticos com os quais é possível referir e interpretar</p><p>o mundo, como explicar os fatos linguísticos descritos e analisados no âmbito</p><p>deste volume — que nos mostram precisamente várias formas ou dimensões da</p><p>competência relativamente à linguagem (e à cognição)? Como analisar esses</p><p>fatos a não ser por um deslocamento teórico que permita repor no estudo da</p><p>linguagem e da cognição aqueles elementos tidos como “heteróclitos” para a</p><p>tradição estruturalista e cognitivista, tais como o aspecto intersubjetivo, cultural</p><p>e histórico das atividades que desenvolvem os indivíduos em sua vida social, a</p><p>forma contextualizada pela qual emergem e se desenvolvem os processos de</p><p>significação verbais e não verbais, a dimensão dialógica própria das práticas</p><p>linguísticas, a construção multimodal e interacional do sentido, a forma dinâmica</p><p>e distribuída do processamento da fala e dos processos cognitivos?</p><p>Como é possível observar, deparamos-nos com um problema sério nessa</p><p>tentativa de divisão de águas. Porém, se fugirmos do beco sem saída da</p><p>dicotomia língua-fala, bem como da oposição interno-externo em relação à</p><p>linguagem, admitiremos que a afasia, sendo um problema de linguagem, afeta</p><p>tanto a estrutura da língua quanto seu funcionamento. Assim, vários são os</p><p>processos e níveis de descrição que devem ser levados em conta na compreensão</p><p>da linguagem: não apenas os fonético-fonológicos, lexicais e sintáticos, mas</p><p>também os pragmáticos, os sociolinguísticos, os textuais, os discursivos. Além</p><p>disso, outros processos cognitivos, com suas realidades semiológicas</p><p>particulares, devem também ser considerados no processamento da linguagem</p><p>em uso: memória, emoção, gestualidade, percepção etc.</p><p>Assim, voltamos ao ponto de nossa discussão acerca das polêmicas que</p><p>encerram os debates ainda vigentes sobre os limites acerca da correlação direta</p><p>entre área cerebral e função linguística.</p><p>4.2. O estudo das afasias no âmbito da Linguística: as reflexões pioneiras de</p><p>Jakobson</p><p>O primeiro linguista que se dedicou sistematicamente ao estudo das afasias foi o</p><p>moscovita Roman O. Jakobson, tendo por base a classificação neuropsicológica</p><p>feita por outro eminente cientista russo, Alexander R. Luria (que estipulou seis</p><p>formas básicas de afasia: eferente, aferente, sensorial, dinâmica, semântica e</p><p>amnésica). Para Luria, lembremos, as afasias afetam distintamente os aspectos</p><p>motores e sensoriais (expressivos e receptivos) implicados nas tarefas de</p><p>articular e compreender a linguagem, que pode ser alterada de forma seletiva em</p><p>suas diferentes funções (fala, audição, leitura e escrita) e modalidades (oral e</p><p>escrita).</p><p>Jakobson, ao longo de sua vasta obra, focalizou as afasias de um ponto de vista</p><p>linguístico no contexto do estruturalismo e do funcionalismo. “Aphasia as a</p><p>linguistic topic” (1953) e o célebre “Dois tipos de linguagem e dois tipos de</p><p>afasia” (1954) são dois artigos complementares que representam a reflexão</p><p>jakobsoniana a respeito das afasias nos anos 1950.</p><p>Em outros trabalhos, como “Metalanguage as a linguistic problem” (1956) e</p><p>“Linguística e Poética” (1960), dedicados à descrição do sistema</p><p>comunicacional, o autor evoca a noção de metalinguagem — a capacidade</p><p>autorreflexiva da linguagem de voltar-se sobre si mesma, tanto sobre sua</p><p>estrutura, quanto sobre seu uso — para analisar a presença das operações</p><p>metalinguísticas no uso cotidiano da linguagem.</p><p>Ao se dedicar às afasias, Jakobson estava, na verdade, interessado em construir</p><p>uma teoria geral da linguagem, uma teoria que a explicasse no seu todo:</p><p>aquisição, funcionamento, estrutura, alteração etc. Para o autor (1954/1981),</p><p>justamente por ferir a norma, a gramaticalidade, os padrões estruturais e</p><p>funcionais da língua, as afasias dariam solidez empírica à sua teorização sobre o</p><p>funcionamento da linguagem de um modo geral (e da sua aquisição pela criança,</p><p>de um modo particular).</p><p>A partir dessa primeira incursão linguística (já que as anteriores nada mais</p><p>fizeram do que coadjuvar, digamos assim, as investigações de médicos e</p><p>neuropatologistas), passou-se a admitir que os linguistas (e a Linguística) em</p><p>muito contribuiriam para uma melhor descrição da semiologia e do diagnóstico</p><p>das afasias.</p><p>Na prática (isto é, na teoria), Jakobson ampliou, tendo como pano de fundo o</p><p>estruturalismo e o funcionalismo linguístico (sob sua forma mais produtiva, o</p><p>Círculo Linguístico de Praga), algumas das ideias de Ferdinand de Saussure,</p><p>considerado o pai da Linguística. No entendimento dos tipos de afasia descritos</p><p>em termos neuropsicológicos por Luria, Jakobson trabalhou teórica e</p><p>metodologicamente com dicotomias clássicas, estabelecendo dois grandes eixos</p><p>de relações (simbólicas) inicialmente projetados um sobre o outro e</p><p>posteriormente inter-relacionados: duas formas de organização da linguagem,</p><p>sintagmática/metonímica (responsável pela combinação de unidades) e</p><p>paradigmática/metafórica (responsável pela seleção de unidades). Esta</p><p>combinação conferiria unidade linguística ao sistema de linguagem. Nas afasias,</p><p>segundo o autor, “um ou outro desses dois processos é reduzido ou totalmente</p><p>bloqueado” (1954/1981, p. 55).</p><p>Lembrando a tradição saussuriana, as explicações de Jakobson partem do</p><p>princípio de que o falante não apenas opera com unidades, mas também com</p><p>unidades em relação, isto é, em cadeia linguística. Estas combinações são</p><p>chamadas de sintagmas e são qualificadas como relações in praesentia (como as</p><p>estruturas sintáticas). Haveria ainda uma outra classe de relações, só que entre</p><p>entidades que têm entre si algo de comum. São chamadas de paradigmáticas e</p><p>são qualificadas como relações in absentia (como classes morfológicas e campos</p><p>lexicais).</p><p>Mais no início de seus estudos sobre as afasias, Jakobson (1954/1981) era mais</p><p>fortemente comprometido com o pensamento luriano, chegando mesmo a</p><p>afirmar que haveria correlação entre lesões anteriores e transtornos de</p><p>codificação, assim como entre lesões posteriores e transtornos de decodificação.</p><p>A hipótese de Jakobson era de que as duas formas do eixo estariam na</p><p>dependência de estruturas cerebrais diferentes; embora ambas possam atuar de</p><p>maneira integrada na comunicação, são relativamente independentes.</p><p>Considerando, posteriormente, que nem sempre os linguistas estão atentos para a</p><p>natureza sistêmica e funcional dos dois processos (metafórico-</p><p>paradigmático/metonímico-sintagmático) que estão interligados por uma relação</p><p>de “predominância” no uso da linguagem, Jakobson (1960/1981) chega</p><p>vez</p><p>que ela depende de minha experiência subjetiva no mundo. O estudo desse</p><p>aspecto do significado cabe à Psicologia. À Semântica cabe o estudo dos</p><p>aspectos objetivos, isto é, aqueles que estão abertos à inspeção pública. Sua</p><p>objetividade é garantida pela uniformidade de assentimento entre os membros de</p><p>uma comunidade. Eu e você temos representações distintas de estrela — você</p><p>talvez a associe a um sentimento nostálgico, eu, à euforia das viagens espaciais</p><p>—, mas compartilhamos o sentido de estrela, já que sempre concordamos</p><p>quando alguém diz estrela apontando um certo objeto no céu que reconhecemos</p><p>como estrela. Nós também concordamos em discordar do uso de estrela para se</p><p>referir à lua, a menos que estejamos diante de algum tipo de uso indireto da</p><p>palavra ou de um engano. O sentido de um nome próprio como estrela da manhã</p><p>é o que nos permite alcançar, falar sobre, um certo objeto no mundo da razão</p><p>pública, o planeta Vênus, a sua referência, que também é pública porque todos</p><p>temos acesso ao mesmo objeto.</p><p>O sentido é o caminho que nos permite chegar a uma referência no mundo.</p><p>Frege (1978) precisa dessa distinção porque sem ela não é possível explicar a</p><p>diferença entre:</p><p>(2) A estrela da manhã é a estrela da manhã.</p><p>(3) A estrela da manhã é a estrela da tarde.</p><p>A sentença (2) é uma tautologia, uma verdade óbvia que independe dos fatos no</p><p>mundo. Daí seu grau de informatividade tender a zero. Já em (3), afirmamos</p><p>uma igualdade, cuja veracidade deve ser verificada no mundo. Se, de fato, aquilo</p><p>que denominamos estrela da manhã é o mesmo objeto que denominamos estrela</p><p>da tarde, então, quando aprendemos que a estrela da manhã é a estrela da tarde</p><p>aprendemos uma verdade sobre o mundo: que podemos nos referir ao planeta</p><p>Vênus de pelo menos duas maneiras diferentes. A sentença (3) expressa uma</p><p>verdade sintética, isto é, uma verdade que só pode ser apreendida pela inspeção</p><p>de fatos no mundo, por isso ela pode nos proporcionar um ganho real de</p><p>conhecimento. Ela exprime uma descoberta da Astronomia: a estrela da manhã</p><p>não era, como se pensava desde os gregos, uma estrela diferente da estrela da</p><p>tarde, mas o mesmo planeta Vênus. Estrela da manhã e estrela da tarde são dois</p><p>caminhos/sentidos para se chegar à mesma referência, o planeta Vênus.</p><p>Só conseguimos explicar a diferença entre as sentenças (2) e (3) se distinguimos</p><p>sentido de referência: embora ambas as sentenças tenham a mesma referência,</p><p>elas expressam pensamentos diferentes. Se o sentido é o caminho que nos</p><p>permite alcançar a referência, quando descobrimos que dois caminhos levam à</p><p>mesma referência, aprendemos algo sobre esse objeto, sobre o mundo. Todos nós</p><p>já experimentamos a sensação de entusiasmo quando de repente descobrimos</p><p>que 3 + 3 é o mesmo que 10 – 4. Ao tomarmos consciência da igualdade,</p><p>descobrimos dois caminhos, dois sentidos, para alcançarmos a mesma referência,</p><p>o número 6. Uma mesma referência pode, pois, ser recuperada por meio de</p><p>vários sentidos. Considere a cidade de Florianópolis. Podemos nos referir a ela</p><p>por meio de diferentes sentidos: a cidade de Florianópolis, Florianópolis, a</p><p>capital de Santa Catarina, a antiga Nossa Senhora do Desterro... Você certamente</p><p>já viveu a experiência de descobrir que Florianópolis é a capital de Santa</p><p>Catarina, isto é, de falar de um objeto, a cidade de Florianópolis, de modos</p><p>distintos. Atente para a distinção entre linguagem e mundo: Florianópolis e</p><p>Florianópolis.</p><p>Para esclarecer a diferença entre sentido e referência, Frege propõe uma analogia</p><p>com um telescópio apontado para a Lua. A Lua é referência: sua existência e</p><p>propriedades independem daquele ou daquela que a observa. Ela pode, no</p><p>entanto, ser olhada a partir de diferentes perspectivas, e observá-la de</p><p>determinado ângulo pode nos ensinar algo novo sobre ela. A imagem da Lua</p><p>formada pelas lentes do telescópio é o que tanto eu quanto você vemos. Essa</p><p>imagem compartilhada é o sentido. Ao mudarmos o telescópio de posição,</p><p>vemos uma face diferente da mesma Lua, alcançamos o mesmo objeto por meio</p><p>de outro sentido. Lembremos que a imagem mental que cada um de nós forma</p><p>da imagem objetiva do telescópio está fora dos interesses da Semântica.</p><p>O sentido só nos permite conhecer algo se a ele corresponder uma referência.</p><p>Em outros termos, o sentido permite alcançarmos um objeto no mundo, mas é o</p><p>objeto no mundo que nos permite formular um juízo de valor, isto é, que nos</p><p>permite avaliar se o que dizemos é falso ou é verdadeiro. A verdade não está,</p><p>pois, na linguagem, mas nos fatos do mundo. A linguagem é apenas um</p><p>instrumento que nos permite alcançar aquilo que há. Por isso, para Frege, mas</p><p>não para a Semântica Formal contemporânea, sentenças que falam de</p><p>personagens fictícios carecem de valor de verdade. Uma sentença ficcional, por</p><p>exemplo “Papai Noel tem a barba branca”, não pode ser cognitiva, porque ela</p><p>não se refere a um objeto real. Hoje em dia, com a Semântica de Mundos</p><p>Possíveis, temos uma outra compreensão dos objetos fictícios, eles existem em</p><p>outros mundos que não o mundo do falante.</p><p>Intervalo I</p><p>Se você entendeu bem essa história de sentido e referência, diga qual a</p><p>referência de: a capital da França, Paris, Paris é a capital da França. A seguir</p><p>descreva a cidade do Rio de Janeiro através de diferentes sentidos.</p><p>Para Frege (1978), um nome próprio deve ter sentido e referência. Florianópolis</p><p>e a capital de Santa Catarina são dois nomes próprios porque têm sentido e nos</p><p>permitem falar sobre um objeto no mundo, a cidade de Florianópolis. Os nomes</p><p>próprios são saturados porque eles expressam um pensamento completo e</p><p>podemos, por meio deles, identificar uma referência. Há, no entanto, expressões</p><p>que são incompletas, que não nos possibilitam chegar a uma referência, porque</p><p>não expressam um pensamento completo. Esse é o caso da expressão ser capital</p><p>de. Além disso, é fácil notar que a expressão ser capital de é recorrente em</p><p>inúmeras sentenças:</p><p>(4) São Paulo é a capital de São Paulo.</p><p>(5) São Paulo é a capital de Santa Catarina.</p><p>(6) Florianópolis é a capital de Santa Catarina.</p><p>(7) Florianópolis é a capital de São Paulo.</p><p>As sentenças anteriores são nomes próprios porque elas expressam um</p><p>pensamento completo e têm uma referência. Em (4) e (6), a referência é a</p><p>verdade, já que no nosso mundo São Paulo é a capital de São Paulo e</p><p>Florianópolis é a capital de Santa Catarina; em (5) e (7), a referência é o falso. A</p><p>expressão ser capital de, que se repete nas sentenças acima, é insaturada, porque</p><p>não expressa um pensamento completo. Para tanto, ela precisa preenchida em</p><p>dois lugares: um que a antecede, outro que a sucede. Esses vazios são chamados</p><p>argumentos. A expressão insaturada chama-se predicado. O predicado ser capital</p><p>de é um predicado de dois lugares, porque há dois espaços a serem preenchidos</p><p>por argumentos: ______ ser capital de ______. Podemos, no entanto,</p><p>transformá-lo em um predicado de um lugar: ______ ser a capital de São Paulo,</p><p>por exemplo. Você conseguiria recortar diferentes predicados de um lugar a</p><p>partir das sentenças de (4) a (7)? São Paulo é a capital de______; Florianópolis é</p><p>a capital de______; ______ é a capital de Santa Catarina são alguns exemplos.</p><p>O contraste que Frege constrói é, pois, entre funções incompletas, isto é, aquelas</p><p>que comportam pelo menos um espaço e pedem, portanto, pelo menos um</p><p>argumento, e argumentos que denotam uma referência em particular. Uma</p><p>expressão insaturada combinada com um argumento gera uma sentença, que é</p><p>uma expressão completa/saturada, um nome próprio, que tem como referência</p><p>um valor de verdade, isto é, o verdadeiro ou o falso. Podemos entender o</p><p>predicado como uma máquina, que toma elementos ou que os relaciona. Em (4),</p><p>o predicado ser capital de relaciona São Paulo com São Paulo, gerando o nome</p><p>próprio, São Paulo é a capital de São Paulo, que tem sentido, expressa um</p><p>pensamento, e tem uma referência, a verdade.</p><p>O predicado pode ser preenchido por um nome próprio, como nos exemplos</p><p>dados, mas ele pode também ser preenchido por uma expressão quantificada,</p><p>que, intuitivamente,</p><p>a afirmar</p><p>que não há entre eles uma forte divisão de águas. O autor discute essa questão na</p><p>análise dos eixos de reações substitutivas (metafóricas) e de reações predicativas</p><p>(metonímicas). A reflexão jakobsoniana assinala que as afasias são um bom</p><p>lugar para a análise funcional da linguagem, já que perturbariam de maneira</p><p>seletiva esses dois eixos responsáveis por todo seu funcionamento simbólico.</p><p>Para Jakobson, a metalinguagem é deficiente nos afásicos que apresentam uma</p><p>desordem de similaridade; nesse caso, apesar das instruções do interlocutor, os</p><p>indivíduos afásicos não podem responder à palavra estímulo com uma palavra</p><p>ou uma expressão equivalente e carecem da capacidade de construir proposições</p><p>equacionais. Com isso, o contexto mostra-se decisivo neste tipo de distúrbio,</p><p>pois o individuo apoia-se na contiguidade para contornar seus problemas</p><p>relativos ao processo de decodificação. A função metalinguística, aquela em que</p><p>se usa a linguagem para falar sobre a linguagem (isto é, o código ou o sistema</p><p>linguístico), seria da ordem da fala, e é concebida apenas como expressão</p><p>externa de conteúdos internos ou do pensamento. Para Jakobson, ao que parece,</p><p>metalinguagem e função metalinguística são, na realidade, operações distintas</p><p>(cf. Morato, 2005).</p><p>Para ilustrar minimamente o teor da argumentação de Jakobson, tomemos uma</p><p>distinção que decorreria, segundo o autor, da consideração do eixo</p><p>paradigmático/sintagmático, relacionado aos problemas de decodificação e</p><p>codificação da linguagem.</p><p>No processo de decodificação da linguagem, o contato inicial do falante é com o</p><p>contexto linguístico e depois com seus constituintes. O inverso dar-se-ia na</p><p>codificação, em que a primeira etapa diz respeito à seleção dos termos para que,</p><p>na etapa posterior, seja possível combiná-los.</p><p>Ao processo de codificação subjaz a relação de contiguidade (que opera através</p><p>da combinação das unidades linguísticas entre si, a precedente determinando a</p><p>consecutiva e esta a posterior). Este é o processo que determina o contexto</p><p>verbal. Na afasia motora, um tipo muito recorrente, este seria o problema básico</p><p>(isto é, uma desordem de combinação e de contexto que se manifestaria no nível</p><p>fonológico através da dificuldade no uso de grupo de fonemas, na construção da</p><p>sílaba e na transição de um fonema a outro). Em termos de produção verbal, o</p><p>que se nota é a ausência quase total dos conectivos que constituem o contexto</p><p>gramatical e a permanência de palavras com conteúdo lexical: a isso a literatura</p><p>afasiológica tem reservado um termo, “fala telegráfica”.</p><p>Distanciando-se paulatinamente em suas reflexões dos interesses anátomo-</p><p>clínicos da Neuropsicologia, Jakobson passa a descrever ainda uma série de</p><p>dicotomias que estariam na base do funcionamento comunicativo da linguagem,</p><p>tais como: limitação/desintegração (aplicada à situação na qual há alteração dos</p><p>processos de combinação e seleção de constituintes que compõem a sentença);</p><p>sequenciação/simultaneidade (aplicada à situação na qual há alteração da</p><p>ordenação ou da possibilidade combinatória dos constituintes, tal como ocorre</p><p>nas afasias eferentes ou nas afasias amnésicas, bem como à situação na qual há</p><p>perturbação de seleção de traços distintivos que compõem um fonema, tal como</p><p>ocorre nas afasias aferentes).</p><p>Além de representar uma espécie de marco no estudo das afasias, as reflexões de</p><p>Jakobson também tiveram o mérito de incentivar o interesse dos linguistas pelas</p><p>patologias e de apontar propriedades comuns tanto às afecções, quanto à</p><p>aquisição de língua materna e demais fatos de linguagem ordinária.</p><p>A teorização formulada por Jakobson não deixou, contudo, de sofrer críticas no</p><p>que diz respeito ao potencial explicativo de sua classificação linguística dos</p><p>distúrbios afásicos. A propósito, na obra Nouveau dictionaire encyclopédique</p><p>des sciences du langage, Ducrot e Schaeffer assim comentam os estudos de</p><p>Jakobson sobre as afasias: “Malgrado o interesse do empreendimento de</p><p>Jakobson, essas distinções, entretanto, permanecem muito gerais para darem</p><p>conta da variedade de operações perturbadas nos diferentes tipos de afasia”</p><p>(1995, p. 528 — nossa tradução).</p><p>5. UMA PERSPECTIVA INTERACIONISTA EM NEUROLINGUÍSTICA</p><p>Tomada em um sentido largo, a perspectiva sociocognitiva destaca dentre seus</p><p>postulados os seguintes aspectos: i) a linguagem é indissociável de outros fatores</p><p>e propriedades da cognição humana; ii) a linguagem é resultado de uma</p><p>imbricação de fatores externos e internos, como os relativos às propriedades</p><p>biológicas e cognitivas dos seres humanos e os relativos às práticas da vida em</p><p>sociedade e às experiências socioculturais dos indivíduos. Tais aspectos, de</p><p>maneira distinta, estão presentes no desenvolvimento, na restrição ou na</p><p>reorganização tanto de processos de aquisição, quanto de alteração da</p><p>linguagem.</p><p>Nessa perspectiva, a pergunta sobre a cognição não é uma indagação direta sobre</p><p>a relação linguagem-mundo, mas sim sobre como nós usamos a linguagem</p><p>enquanto forma constitutiva de mediação dessa relação. Para essa perspectiva, a</p><p>cognição é um resultado, e não um antecedente da atividade interacional dos</p><p>indivíduos com o mundo sociocultural. Esse entendimento, forte desde os anos</p><p>1980, está de alguma forma presente na concepção de cognição e de linguagem</p><p>como atividades situadas e coletivas.</p><p>Como afirma Tomasello (1999/2003), nossa cognição não se tornou possível via</p><p>mera adaptação biológica, mas sim por aprendizado, transmissão e construção</p><p>evolutivo-cultural. Tal percurso evolutivo não se deu somente de forma</p><p>cumulativa, mas sim de forma psicossocial, por meio de sistemas de</p><p>representação dos quais a linguagem é, sem dúvida, o exemplo mais radical. Esta</p><p>é, à maneira de Vygotsky (1934/1987), uma tese forte a respeito da sociogênese</p><p>da cognição humana, intersubjetiva e perspectival, como assinala Tomasello</p><p>(1999/2003), a partir do que se pode estabelecer um quadro relacional entre o</p><p>biológico e o cultural.</p><p>Uma das teses da perspectiva sociocognitiva (cf. Salomão, 1999) refere-se à</p><p>centralidade da linguagem e da interação social na constituição da cognição</p><p>humana. A Neurolinguística cria um terreno propício a essa abordagem ao se</p><p>instanciar entre os vários domínios da Linguística pós-estruturalista.</p><p>Se o primeiro passo da antiga Afasiologia do século XIX em direção à</p><p>Linguística foi a descrição, a semiologia e a classificação das afasias em termos</p><p>linguísticos, o segundo passo, condição para que se expandisse sob a forma</p><p>híbrida denominada Neurolinguística, foi levar em conta o arcabouço teórico-</p><p>metodológico da ciência da linguagem.</p><p>É dentro dessa preocupação teórica que a Neurolinguística, para além da</p><p>descrição de processos gramaticais (prosódicos, fonológicos, morfológicos,</p><p>semânticos, sintáticos) relativos ao sistema, procura sustentação nos construtos</p><p>teóricos da Linguística, de modo a transcendê-la. Na área da Pragmática e da</p><p>Análise da Conversação, a Neurolinguística procura sustentação para o estudo da</p><p>estruturação e da gestão da interação, bem como da competência linguística e</p><p>comunicativa dos falantes; para o reconhecimento e a manipulação das</p><p>chamadas “leis conversacionais” e das intenções dos interactantes; para o</p><p>reconhecimento e a manipulação de normas pragmáticas que orientam o uso</p><p>social da linguagem, bem como a produção e a interpretação de inferências e dos</p><p>vários atos de fala presentes na comunicação.</p><p>Do mesmo modo, é a preocupação com a estrutura e o funcionamento da</p><p>linguagem que leva a Neurolinguística à Linguística Textual e aos estudos da</p><p>textualização e da referenciação (Koch, 2002, 2004; Marcuschi, 2007, 2008;</p><p>Cavalcante et al., 2005; Koch, Morato e Bentes, 2005), bem como ao estudo das</p><p>relações formais e discursivas entre fala e escrita (Marcuschi, 2001), dos</p><p>diferentes aspectos do contexto que emolduram a significação linguística (Koch,</p><p>2002; Van Dijk, 2008; Hanks, 2008) e da constituição dinâmica dos gêneros</p><p>textuais orais e escritos (Hanks, 2008; Marcuschi, 2008; Koch e Elias, 2006;</p><p>Bentes e Rezende, 2008).</p><p>A Neurolinguística</p><p>indica uma quantidade.⁷ Vejamos alguns exemplos:</p><p>(8) Alguma cidade de Santa Catarina é de origem alemã.</p><p>(9) Todos os homens são mortais.</p><p>(10) Todos os meninos amam uma professora.</p><p>Em (8), afirmamos que há uma cidade de Santa Catarina tal que ela é a capital</p><p>daquele Estado, embora a sentença não especifique que cidade é essa. Algum é</p><p>um quantificador existencial que afirma que a intersecção entre o conjunto das</p><p>cidades de SC e o conjunto das cidades de origem alemã não é vazia, há pelo</p><p>menos um elemento que é ao mesmo tempo cidade de SC e cidade de origem</p><p>alemã. Em (9) temos um quantificador universal todos que afirma que o</p><p>conjunto dos homens está contido no conjunto dos mortais. Na sentença (10)</p><p>temos a presença de dois quantificadores combinados: o universal (todos) e o</p><p>existencial (uma). Essa sentença pode ter duas interpretações; ela é ambígua:</p><p>para todo aluno há pelo menos uma professora que ele ama — trata-se de uma</p><p>leitura distributiva — ou há uma única professora que todos os alunos amam. No</p><p>primeiro caso, o quantificador universal antecede o existencial; no segundo,</p><p>inverte-se a situação de modo que o existencial tem escopo sobre o universal.</p><p>O modo como os operadores se combinam gera diferentes interpretações. Essa</p><p>interação de operadores — os quantificadores são operadores — explica a</p><p>chamada ambiguidade semântica. Considere a sentença:</p><p>(11) O João não convidou só a Maria.</p><p>Você consegue enxergar duas interpretações? A sentença (11) descreve duas</p><p>situações bem distintas: ou o João só não convidou a Maria, ou o João não só</p><p>convidou a Maria, mas também outras pessoas. Utilizamos diferentes entonações</p><p>para veicular um ou outro significado. Essa dupla interpretação é explicada pelo</p><p>modo como se combinam os operadores não e só: ou o não atua sobre o só,</p><p>gerando não só; ou o só atua sobre o não, produzindo só não. Essa relação em</p><p>que um operador atua sobre um certo domínio denomina-se escopo: na primeira</p><p>leitura, o operador só tem escopo sobre a negação; na segunda, é a negação que</p><p>tem escopo sobre o só: “O João não só convidou a Maria”.</p><p>Intervalo II</p><p>1. Considere as seguintes sentenças. Recorte-as segundo os conceitos de</p><p>predicado e argumento em Frege:</p><p>a) João é casado com Maria.</p><p>b) Maria é brasileira.</p><p>c) Oscar é jogador de basquete.</p><p>2. A partir dos conceitos de quantificador universal e existencial e da noção de</p><p>escopo, descreva as sentenças abaixo:</p><p>a) Todo homem é casado com alguma mulher.</p><p>b) Um homem é casado com todas as mulheres.</p><p>c) A Maria não está grávida de novo.</p><p>Considere agora a sentença:</p><p>(12) O rei da França é careca.</p><p>Ela se compõe de um nome próprio, o rei da França, e de um predicado de um</p><p>lugar, ser careca. Nosso problema é o sintagma nominal o rei da França, que</p><p>chamamos de descrição definida. Uma descrição definida caracteriza-se por ser</p><p>uma expressão nominal introduzida por um artigo definido. Como veremos, há</p><p>diferentes maneiras de analisarmos a descrição definida. Na abordagem formal, a</p><p>controvérsia diz respeito ao conteúdo semântico veiculado pela descrição.</p><p>Pergunte-se: a sentença em (12) é falsa ou verdadeira? Leve em consideração</p><p>que não há, no momento atual, rei da França. Essa sentença proferida em 1780</p><p>na França seria falsa, porque a descrição definida denotaria Luís XVI, que não</p><p>era careca.⁸ Mas é hoje em dia? Ela é falsa ou verdadeira? Há duas respostas:</p><p>uma que descende de Frege e entende que se não há uma referência para a</p><p>descrição definida, a sentença não tem valor de verdade — não faz sentido</p><p>afirmar de algo que não existe, que ele é careca ou não — e outra que vem de</p><p>Bertrand Russell, para quem o artigo definido é um quantificador e na situação</p><p>atual a sentença é falsa.</p><p>Na tradição de Frege, a descrição definida carrega uma pressuposição: a</p><p>pressuposição de que há um único indivíduo que é rei da França. Em outros</p><p>termos, a sentença (12) expressa um pensamento completo, mas para atribuirmos</p><p>a ela um valor de verdade é preciso que a pressuposição de que há um único rei</p><p>da França seja verdadeira. Essa pressuposição não é semântica. Frege mantém</p><p>que se a pressuposição fosse semântica, então a negação da sentença seria</p><p>ambígua. Vejamos:</p><p>(13) O rei da França não é careca.</p><p>Se a pressuposição fosse semântica, afirma Frege, então (13) significaria ou que</p><p>não existe um único indivíduo que é rei da França ou que há um único rei da</p><p>França e ele não é careca. No entanto, intuitivamente, (13) só significa que ele</p><p>não é careca. Isto é, a pressuposição de que existe um único indivíduo que é rei</p><p>da França se mantém inalterada na negação, por isso ela não se confunde com o</p><p>conteúdo da sentença. Essa solução de Frege caminha paralelamente à sua</p><p>análise sobre os seres imaginários, como o Batman: sentenças em que uma das</p><p>suas expressões se refere a seres ou coisas que não têm existência têm sentido,</p><p>mas não têm referência. Elas não são nem verdadeiras nem falsas.</p><p>Bertrand Russell (1905) propõe outra análise da descrição definida. Ele trata o</p><p>artigo definido como um quantificador.¹ Assim, o conteúdo semântico da</p><p>sentença em (12) é: existe um e apenas um indivíduo que é rei da França e ele é</p><p>careca. Como já vimos, os operadores podem se combinar. Dado que tanto o</p><p>artigo definido quanto o não são operadores, esperamos que eles estabeleçam</p><p>diferentes relações de escopo. A sentença (13) seria, portanto, ambígua: a</p><p>negação pode ter escopo sobre o artigo definido, e teremos a forma lógica (14),</p><p>ou o artigo definido tem escopo sobre a negação, e a forma lógica será (15):</p><p>(14) [não [existe um apenas um indivíduo tal que [ele é rei da França] e [é</p><p>careca]]]</p><p>(15) [existe um e apenas um indivíduo tal que [ele é rei da França] e [não [é</p><p>careca]]]</p><p>A proposta de Russell trata a existência e a unicidade como partes do conteúdo</p><p>da sentença. Nesse caso, proferir a sentença (12) hoje em dia, quando não existe</p><p>rei da França, é afirmar uma falsidade.</p><p>Independentemente dessa controvérsia, a Semântica Formal considera que há</p><p>pressuposição quando tanto a verdade quanto a falsidade da sentença dependem</p><p>da verdade da sentença pressuposta. Há muitos tipos de pressuposição. A</p><p>sentença (16) contém uma pressuposição, mas dessa vez não se trata de uma</p><p>pressuposição de existência e unicidade:</p><p>(16) Maria parou de fumar.</p><p>Para podermos atribuir um valor de verdade a essa sentença, devemos aceitar</p><p>que a pressuposição que Maria fumava é verdadeira. A sentença é falsa se ela</p><p>não parou de fumar e verdadeira se ela parou. Se Maria nunca fumou, então ter</p><p>parado de fumar é algo que simplesmente não se aplica a ela e a sentença não é</p><p>nem verdadeira nem falsa.</p><p>Intervalo III</p><p>A partir das noções de escopo e operador, descreva a ambiguidade presente na</p><p>sentença a seguir:</p><p>(1) João não escreveu sua tese para agradar a mãe.</p><p>Determine se há pressuposição na sentença abaixo e justifique sua resposta. O</p><p>melhor teste para a pressuposição é negar a sentença e avaliar qual informação</p><p>se mantém inalterada:</p><p>(2) João lamenta a morte do pai.</p><p>A década de 1970 conheceu uma explosão de trabalhos sobre a pressuposição.</p><p>Salienta-se, dentre eles, o trabalho de Oswald Ducrot que, certamente</p><p>influenciado pelos trabalhos de Émile Benveniste e pela escola francesa de</p><p>Análise do Discurso,¹¹ se opõe veementemente ao tratamento que a Semântica</p><p>Formal oferece para a pressuposição em particular e para o significado em geral.</p><p>Suas críticas e análises possibilitaram a formação de um outro modelo: a</p><p>Semântica da Enunciação.</p><p>3. A SEMÂNTICA DA ENUNCIAÇÃO</p><p>A visão de linguagem que, segundo Ducrot, subsidia a Semântica Formal é</p><p>inadequada porque, argumenta o autor, ela se respalda num modelo</p><p>informacional, em que o conceito de verdade é externo à linguagem. Na</p><p>Semântica Formal, a linguagem é um meio para alcançarmos uma verdade que</p><p>está fora da linguagem, o que nos permite falar objetivamente sobre o mundo e,</p><p>consequentemente, adquirir um conhecimento seguro sobre ele. É possível que o</p><p>conceito de referência em Frege esteja mesmo revestido de tal realismo: a</p><p>metáfora do telescópio deixa claro que o objeto descrito,</p><p>a Lua, não é uma</p><p>função da descrição dada, do sentido. É o nosso conhecimento da Lua que</p><p>depende do sentido. Vemos a mesma Lua a partir de pontos de vista diferentes,</p><p>não vemos luas diferentes. A diferença é sutil, mas necessária para distinguirmos</p><p>entre semânticas ditas objetivistas ou realistas, que postulam uma ordem no</p><p>mundo que dá, ao menos em certa medida, conteúdo à linguagem, e semânticas</p><p>mais próximas do relativismo, que acreditam que não há uma ordem no mundo</p><p>que seja dada independentemente da linguagem e da história. Só a linguagem</p><p>constitui o mundo, por isso não é possível escapar dela. A Semântica da</p><p>Enunciação certamente se inscreve nessa perspectiva, mas há abordagens</p><p>formais que não se vinculam a uma metafísica realista.¹²</p><p>Para a Semântica da Enunciação, a referência é uma ilusão criada pela</p><p>linguagem. Estamos sempre inseridos na linguagem, moscas presas na garrafa.</p><p>Os dêiticos — expressões cujo conteúdo depende da remissão à externalidade</p><p>linguística, os pronomes isto, eu, você, por exemplo — que nos dão a</p><p>sensação/ilusão de estar fora da língua. Estamos, no entanto, sempre fechados</p><p>nela e por ela. A Semântica Formal, diz Ducrot, cai na ilusão, criada pela própria</p><p>linguagem, de que ela se refere a algo externo a ela mesma, de onde ela retira a</p><p>sua sustentação. A linguagem, afirma Ducrot, é um jogo de argumentação</p><p>enredado em si mesmo; não falamos sobre o mundo, falamos para construir um</p><p>mundo e a partir dele tentar convencer nosso interlocutor da nossa verdade,</p><p>verdade criada pelas e nas nossas interlocuções. A verdade deixa, pois, de ser um</p><p>atributo do mundo e passa a ser relativa à comunidade que se forma na</p><p>argumentação. Assim, a linguagem é uma dialogia, ou melhor, uma</p><p>“argumentalogia”; não falamos para trocar informações sobre o mundo, mas para</p><p>convencer o outro a entrar no nosso jogo discursivo, para convencê-lo de nossa</p><p>verdade.¹³</p><p>Essa diferença de concepção da linguagem surte efeitos na forma como os</p><p>fenômenos semânticos são descritos. Tomemos a questão da pressuposição. Se a</p><p>linguagem não se refere, se a referência é interna ao próprio jogo discursivo,</p><p>então também a pressuposição, seja ela existencial ou de qualquer outro tipo, é</p><p>criada pelo e no próprio jogo de encenação que a linguagem constrói. A</p><p>pressuposição não pode ser uma crença em algo externo à linguagem. É porque</p><p>falamos de algo que esse algo passa a ter sua existência no quadro criado pelo</p><p>próprio discurso. Nas versões mais atuais da Semântica da Enunciação, o</p><p>conceito de pressuposição é substituído pelo de enunciador. Um enunciado se</p><p>constitui de vários enunciadores que, por sua vez, formam o quadro institucional</p><p>que referenda o espaço discursivo em que o diálogo vai se desenvolver. A</p><p>pressuposição, um enunciador presente no enunciado, situa o diálogo no</p><p>comprometimento de que o ouvinte aceita essa voz pressuposta. De tal sorte que</p><p>negá-la é romper o diálogo, criando um discurso polêmico.</p><p>Retornemos ao exemplo do rei da França ser careca. Quando enunciamos (12),</p><p>comprometemos nosso ouvinte com o fato de que há um e apenas um rei da</p><p>França. O enunciado é polifônico porque encerra várias vozes. Na enunciação de</p><p>(12), o locutor põe em cena um diálogo entre enunciadores. Vejamos:</p><p>(17) O rei da França é careca.</p><p>E1: Há um e apenas uma pessoa.</p><p>E2: Essa pessoa é rei da França.</p><p>E3: Essa pessoa é careca.</p><p>Essa estrutura polifônica deixa claro que há dois tipos de negação.</p><p>Diferentemente do que ocorre na proposta de Russell, a sentença em (17) não é</p><p>ambígua. O que ocorre é que o ouvinte pode realizar diferentes tipos de negação:</p><p>ele pode negar o enunciador E1, nesse caso estamos diante de uma negação</p><p>polêmica; mas ele pode negar o posto, o enunciador E3, nesse, caso temos uma</p><p>negação metalinguística. Vejamos a análise do exemplo (16), retomado aqui em</p><p>(18):</p><p>(18) Maria parou de fumar.</p><p>E1: Maria fumava.</p><p>E2: Maria não fuma mais.</p><p>A enunciação de (18) põe em jogo um enunciador que afirma que Maria fumava</p><p>antes, trata-se do pressuposto, e outro que diz que ela já não fuma mais, o posto.</p><p>Se negamos a fala do primeiro enunciador, realizamos uma negação polêmica; se</p><p>negamos o posto, uma negação metalinguística.</p><p>Assim, as diferentes leituras, explicadas como ambiguidade estrutural pela</p><p>Semântica Formal, são, para a Semântica da Enunciação, explicadas lançando</p><p>mão do conceito de polissemia; em outras palavras, um mesmo enunciado se</p><p>abre num leque de significados diferentes, mas relacionados. A Semântica</p><p>Formal resolve o problema da ambiguidade por meio do conceito de escopo,</p><p>enquanto na Semântica da Enunciação a noção de escopo não tem lugar e o</p><p>problema se resolve via a hipótese de que há diferentes tipos de negação. O que</p><p>explica as diferentes leituras da sentença (19) é a presença de uma série de</p><p>enunciadores e diferentes tipos de negação.</p><p>(19) O rei da França não é careca.</p><p>(19’) E1: Há apenas um rei da França.</p><p>E2: Ele é careca.</p><p>E3: E1 é falsa.</p><p>(19”) E1: Há apenas um rei da França.</p><p>E2: Ele é careca.</p><p>E3: E2 é falsa.</p><p>Não se trata de uma diferença estrutural, até porque nessa abordagem não há</p><p>forma lógica. A pressuposição, na Semântica da Enunciação, se resolve pela</p><p>hipótese da polifonia e, portanto, da existência de diferentes enunciadores, e a</p><p>ambiguidade se desfaz pela determinação de diferenças de uso das palavras: o</p><p>não polêmico e o não metalinguístico.</p><p>Eis outro exemplo. Em resposta a alguém que diz que meu carro está mal</p><p>estacionado, posso retrucar:</p><p>(20) Não, meu carro não está mal estacionado (porque eu não tenho carro).</p><p>Nesse caso, estou fazendo uso da negação polêmica, afinal estou negando o</p><p>quadro criado pela fala do meu interlocutor, na medida em que nego o</p><p>enunciador que afirma a existência de um único carro que seja meu. Imagine</p><p>agora a mesma situação, só que dessa vez o locutor tem um carro:</p><p>(21) Não, meu carro não está mal estacionado (porque está bem estacionado).</p><p>Essa é a negação metalinguística: o locutor retoma a fala do outro, que aparece</p><p>na voz de um enunciador que afirma que o carro está mal estacionado, para</p><p>negá-la, mas aceita o enunciador que afirma que o falante tem apenas um carro.</p><p>A sentença (21) pode ser descrita da seguinte forma:</p><p>(21’) E1: Você tem um único carro.</p><p>E2: Esse carro está mal estacionado.</p><p>E3: A fala de E2 é falsa.</p><p>Ducrot distingue ainda um terceiro tipo de negação, a negação descritiva. Nela o</p><p>locutor descreve um estado do mundo negativamente; portanto, na sua</p><p>enunciação não há um enunciador que retoma a fala de outro enunciador</p><p>negando-a. Na enunciação de (22), o locutor está descrevendo um estado do</p><p>mundo utilizando a negação:</p><p>(22) Não há uma nuvem no céu.</p><p>Nesse caso, não há a retomada da fala de outro, mas a apresentação negativa de</p><p>uma descrição. Evidentemente, não é possível definirmos o tipo de negação sem</p><p>levarmos em consideração os encadeamentos discursivos em que a enunciação</p><p>ocorre. (22) poderia comportar uma negação polêmica, desde que ela ocorresse</p><p>em outro contexto. Vale notar que para a Semântica da Enunciação não há</p><p>sentença, entidade cujo sentido não depende do contexto em que ela é dita, mas</p><p>enunciações, singularidades enunciativas que formam cadeias discursivas.</p><p>Intervalo IV</p><p>1. Utilizando o arcabouço teórico da Semântica da Enunciação, descreva as</p><p>leituras possíveis do enunciado “Meu livro não foi reeditado”. A seguir descreva</p><p>a ambiguidade por meio da noção de escopo da Semântica Formal.</p><p>A negação é, pois, um fenômeno de polissemia que, como dissemos, define-se</p><p>por identificar usos distintos que são relacionados. Outro exemplo de polissemia</p><p>é televisão, que designa tanto o aparelho quanto a rede de transmissão. A mesma</p><p>estratégia de multiplicação de sentidos aparece na descrição que a Semântica da</p><p>Enunciação propõe para o conectivo mas. Para a Semântica Formal não há</p><p>diferença semântica entre e e mas. Na forma lógica, ambos fazem o mesmo:</p><p>garantem que a sentença complexa é verdadeira se e somente se as partes que a</p><p>compõem também forem verdadeiras. Assim as sentenças:</p><p>(23) João passou no concurso e não foi contratado.</p><p>(24) João passou no concurso mas não foi contratado.</p><p>exprimem o mesmo conteúdo semântico: as sentenças João passou no concurso e</p><p>João não foi contratado são verdadeiras. A diferença de significado é explicada</p><p>pela Pragmática. Como dissemos, a Semântica da Enunciação dispensa a</p><p>hipótese de forma lógica. A diferença é descrita pela postulação de que e e mas</p><p>são dois itens lexicais distintos. Ducrot dá um passo além afirmando que há dois</p><p>mas que, em português, são homônimos, porque têm a mesma representação</p><p>sonora e escrita. O espanhol e o alemão são, no entanto, línguas em que a cada</p><p>mas corresponde uma palavra diferente: em espanhol, pero e mas; em alemão,</p><p>sonder e aber.</p><p>Na Semântica da Enunciação distinguem-se, pois, dois sentidos de mas: o masPA</p><p>e o masSN. O masPA se caracteriza por apresentar um raciocínio inferencial do</p><p>tipo: a primeira sentença nos leva a supor uma certa conclusão e essa conclusão</p><p>é negada pela segunda sentença. Retornemos ao exemplo (24): a afirmação de</p><p>que João passou no concurso nos leva a imaginar que ele será contratado. A</p><p>conclusão, suscitada pela primeira sentença, é negada pela segunda em que se</p><p>afirma que ele não vai ser contratado.</p><p>O masSN estabelece outra relação semântica. Nele, a primeira sentença nega</p><p>fortemente uma fala que supostamente a antecede, e repara, na segunda sentença,</p><p>o que foi dito na primeira. Tomemos a sentença (25):</p><p>(25) Pedro não está triste, mas ensimesmado.</p><p>Essa sentença se decompõe numa série de enunciadores. Um enunciador afirma</p><p>que Pedro está triste (E1: Pedro está triste). Essa fala é negada pelo segundo</p><p>enunciador (E2: E1 é falsa). E um terceiro enunciador descreve o estado de</p><p>Pedro (E3: Pedro está ensimesmado).</p><p>Intervalo V</p><p>Diga se o mas presente nas sentenças abaixo é PA ou SN. Justifique a sua</p><p>resposta:</p><p>(1) João não está cansado, mas deprimido.</p><p>(2) João foi ao cabeleireiro, mas não cortou o cabelo.</p><p>Construa cadeias discursivas em que a negação nos seguintes exemplos receba</p><p>diferentes interpretações:</p><p>(1) O João não saiu.</p><p>(2) O céu não está azul.</p><p>A Semântica da Enunciação também se consagrou por ter iniciado a descrição de</p><p>fenômenos que até pouco tempo resistiam a um tratamento formal: as gradações</p><p>— presentes em O café não está frio, está morno —, e as escalas argumentativas.</p><p>Vejamos um caso.</p><p>Considere o par de sentenças a seguir:</p><p>(26) João comeu pouco.</p><p>(27) João comeu um pouco.</p><p>Segundo a Semântica da Enunciação, não seria possível analisar formalmente</p><p>essas sentenças porque em termos informativos elas veiculam o mesmo</p><p>conteúdo; suas condições de verdade são exatamente as mesmas: elas são</p><p>verdadeiras se João não comeu muito. No entanto, sabemos intuitivamente que</p><p>elas não são equivalentes, porque não podemos substituir uma pela outra. Ao</p><p>contrário, há contextos específicos para o uso de cada uma dessas formas, o que</p><p>significa dizer que seus encadeamentos discursivos são distintos.</p><p>Imaginemos a situação de um moleque que está ameaçado pelo pai: se não</p><p>comer, não brinca. O pai pergunta para a mãe: “E o Joãozinho, comeu?”.</p><p>Supondo que a mãe saiba da ameaça, se ela responde com (26), sua fala vai na</p><p>direção de que ele não comeu: se ele comeu pouco, então ele está mais próximo</p><p>de não comeu. E o coitado do Joãozinho fica sem brincar. Se a mãe responde</p><p>com (27), sua fala vai na direção de comer: se ele comeu um pouco (um tanto de</p><p>comida), então ele caminha na direção de comeu. E, portanto, ele pode brincar. A</p><p>hipótese é de que os operadores pouco e um pouco direcionam diferentemente</p><p>uma mesma escala de comer, que vai de comer muito a não comer: um pouco</p><p>direciona a escala no sentido de comer e pouco no de não comer.</p><p>Se a semântica da enunciação analisa sempre em termos de argumentação, então</p><p>a fala da mãe com um pouco vai na direção de comer e, portanto, é um</p><p>argumento a favor do menino sair para brincar, ao passo que com pouco a</p><p>estrutura argumentativa é inversa e ele não brinca.</p><p>Intervalo VI</p><p>Em termos de valor de verdade, as sentenças a seguir são idênticas. No entanto,</p><p>do ponto de vista argumentativo, elas se comportam de forma bem diferente.</p><p>Procure descrever a contribuição de sentido proporcionada pelo até nas</p><p>sentenças:</p><p>(1) O presidente do Brasil esteve na festa.</p><p>(2) Até o presidente do Brasil esteve na festa.¹⁴</p><p>A partir da análise de “pouco” e “um pouco” reflita sobre o par:</p><p>(1) João dormiu um pouco.</p><p>(2) João dormiu pouco.</p><p>4. A SEMÂNTICA COGNITIVA</p><p>A Semântica Cognitiva tem como marco inaugural a publicação, em 1980, de</p><p>Metaphors We Live By, de George Lakoff e Mark Johnson.¹⁵ Embora bastante</p><p>recente, esse modelo semântico conta hoje com a participação de diversos</p><p>pesquisadores, trabalhando nos diferentes níveis de análise da linguagem, da</p><p>Fonologia à Pragmática. Parte-se, nesse modelo, da hipótese de que o significado</p><p>é central na investigação sobre a linguagem, chocando-se, portanto, com a</p><p>abordagem gerativista, que defende a centralidade da sintaxe.¹ A forma deriva</p><p>da significação corpórea, da interação do corpo com o ambiente, inclusive o</p><p>social. O corpo está na mente; ele a estrutura. Daí a Semântica Cognitiva se</p><p>inscrever no quadro do funcionalismo.</p><p>Ela se opõe explicitamente ao que Lakoff denomina Semântica Objetivista,</p><p>aquela que, segundo o autor, prega que o significado se baseia na referência e na</p><p>verdade, que entende verdade como correspondência com o mundo e que</p><p>acredita na existência de apenas uma maneira objetivamente correta de associar</p><p>símbolos e mundo. É inadequado associar essa visão à Semântica Formal,</p><p>embora seja esse o alvo das críticas de Lakoff, um dissidente do gerativismo. A</p><p>Semântica Cognitiva quer combater a ideia, de fato presente em algumas</p><p>abordagens formais, de que a linguagem está numa relação de correspondência</p><p>direta com o mundo. O significado, afirma a Semântica Cognitiva, nada tem a</p><p>ver com pareamento entre linguagem e mundo. Antes, ele emerge de dentro para</p><p>fora, do corpo para o mundo, e por isto ele é motivado. A significação linguística</p><p>emerge de nossas significações corpóreas, dos movimentos de nossos corpos em</p><p>interação com o meio que nos circunda.</p><p>Estaria, então, a Semântica Cognitiva mais próxima dos postulados da Semântica</p><p>da Enunciação, que insiste que o significado é o resultado dos jogos</p><p>argumentativos na linguagem? Sim, se levarmos em consideração o fato de que</p><p>ambas negam a hipótese da referência. No entanto, diferentemente da Semântica</p><p>da Enunciação, a Semântica Cognitiva não se baseia na crença de que não há</p><p>mundo, não há exterioridade, a não ser aquela constituída pela própria</p><p>linguagem, nem na crença de que a linguagem é um jogo de argumentação. Ela é</p><p>uma abordagem realista; um realismo experiencialista, diz Lakoff, que se afasta</p><p>do relativismo. A hipótese central de que o significado é natural e experiencial se</p><p>sustenta na constatação de que ele se constrói a partir de nossas interações</p><p>físicas, corpóreas, com o meio ambiente em que vivemos. O significado,</p><p>enquanto corpóreo, não é nem exclusiva, nem prioritariamente linguístico.</p><p>A criança, na história da aquisição contada pela Semântica Cognitiva,</p><p>inicialmente aprende esquemas de movimento e categorias de nível básico. Por</p><p>exemplo, a criança se move várias vezes em direção a certos alvos. Desses</p><p>movimentos, emerge um esquema imagético cinestésico (uma memória de</p><p>movimento) em que há um ponto de partida do movimento, um percurso e um</p><p>ponto de chegada. Esse esquema, que surge diretamente de nossa experiência</p><p>corpórea com o mundo, ancora o significado de nossas expressões linguísticas</p><p>sobre o espaço. Nessa perspectiva, o significado linguístico não é arbitrário,</p><p>porque deriva de esquemas sensório-motores. São, portanto, as nossas ações no</p><p>mundo que nos permitem apreender diretamente esquemas imagéticos espaciais</p><p>e são esses esquemas que dão significado às nossas expressões linguísticas.</p><p>Esquemas mais básicos são obviamente independentes da linguagem.</p><p>Nossos deslocamentos de um lugar para outro, que ocorrem quando ainda não</p><p>falamos, estruturam um esquema imagético, e, portanto, não proposicional.</p><p>O</p><p>esquema de deslocamento Lakoff denomina CAMINHO¹⁷ e pode ser</p><p>esquematizado como a seguir:</p><p>A (fonte do movimento) B (alvo do movimento)</p><p>Muitos outros esquemas derivam diretamente de nossas experiências corpóreas</p><p>no mundo. Por exemplo, o esquema de estar dentro e fora de algum lugar,</p><p>chamado RECIPIENTE; o esquema de balanço, BALANÇO, aprendido em</p><p>nossos ensaios para ficar em pé. São esses esquemas que dão sentido às nossas</p><p>interações linguísticas. A linguagem é uma manifestação desses esquemas, como</p><p>atestam as sentenças a seguir:</p><p>(28) Fui do quarto para a sala.</p><p>(29) Vim de São Paulo.</p><p>(30) Estou em Florianópolis.</p><p>(31) Nasceu no Brasil.</p><p>O que dá sentido às sentenças (28) a (31) não é uma relação de correspondência</p><p>com o mundo, nem uma relação de dialogia com um outro construindo</p><p>encadeamentos discursivos, mas o fato de que em (28) e (29) está presente o</p><p>esquema imagético CAMINHO, e em (30) e (31), o esquema RECIPIENTE.</p><p>Esses esquemas, organizações cinestésicas diretamente apreendidas, carregam</p><p>uma memória de movimentação ou de experiência. É essa memória que ampara</p><p>nosso falar e pensar. Por isso, o significado é uma questão da cognição em geral,</p><p>e não um fenômeno pura ou prioritariamente linguístico. A linguagem articulada</p><p>não é mais que uma das manifestações superficiais da nossa estruturação</p><p>cognitiva, que lhe antecede e dá consistência.</p><p>Mas nem todos os nossos conceitos resultam diretamente de esquemas</p><p>imagético-cinestésicos. Basta lembrarmos o conceito de argumentação para</p><p>notarmos que não há um esquema sensório-motor que o ancore diretamente. Há,</p><p>pois, domínios da experiência cuja conceitualização depende de mecanismos de</p><p>abstração. A Semântica Cognitiva privilegia dois mecanismos: a metáfora e a</p><p>metonímia. A metáfora define-se por ser o mapa (um conjunto de</p><p>correspondências matemáticas) entre um domínio da experiência e outro</p><p>domínio. Vamos examinar algumas sentenças sobre o tempo:</p><p>(32) De ontem para hoje, o José ficou doente.</p><p>(33) A conferência foi de segunda a sábado.</p><p>Se observarmos essas e outras sentenças, notaremos que nosso conceito de</p><p>tempo se estrutura via o esquema espacial do CAMINHO: nos deslocamos no</p><p>tempo ou com o tempo em direção ao futuro. Nesse sentido, as sentenças (32) e</p><p>(33) são metafóricas, porque nelas o tempo é conceituado a partir de</p><p>correspondências com o esquema espacial. Falamos, pensamos e agimos sobre o</p><p>tempo como se ele fosse uma linearidade, como uma reta direcionada para o</p><p>futuro. De tal sorte que há o ponto de partida do movimento temporal, ontem em</p><p>(32), segunda em (33); um percurso, o tempo decorrido entre os dois pontos; e</p><p>um ponto de chegada, hoje em (32), sábado em (33).</p><p>Nas sentenças (32) e (33), o esquema CAMINHO foi mapeado para o domínio</p><p>do tempo. Ele pode, no entanto, ser mapeado para outros domínios. É esse</p><p>esquema que utilizamos para expressar passagens de um estado emocional a</p><p>outro, como na sentença (34) a seguir. Ele também está presente na estruturação</p><p>de nosso conceito de transferência de posse, como em (35):</p><p>(34) João foi de mal a pior.</p><p>(35) João deu este presente para a Maria.</p><p>Já deve estar claro que não apenas o termo “metáfora” tem um sentido especial</p><p>na Semântica Cognitiva, mas principalmente que nesse modelo nosso falar e</p><p>pensar cotidianos são, na sua maior parte, metafóricos. Metáfora não são aquelas</p><p>sentenças que, na escola, aprendemos a classificar como metáfora. A sentença</p><p>Maria é uma flor é uma metáfora linguística para a Semântica Cognitiva, porque</p><p>expressa uma maneira fantasiosa de falar, não uma metáfora conceitual. A</p><p>metáfora, para a Semântica Cognitiva, é um processo cognitivo que permite</p><p>mapearmos esquemas, aprendidos diretamente pelo nosso corpo, em domínios</p><p>mais abstratos, cuja experimentação é indireta. É por isso que as sentenças de</p><p>(32) a (35) são metafóricas. Nelas há o mapeamento de um domínio mais</p><p>concreto da experiência, o domínio organizado pelo esquema imagético</p><p>CAMINHO, na conceituação de domínios da experiência que são mais abstratos,</p><p>o tempo, o estado de saúde, a posse. Nesses exemplos, percebemos a ubiquidade</p><p>da metáfora.</p><p>A propriedade fundamental da metáfora é preservar as inferências do domínio</p><p>fonte no domínio alvo, desde que não haja violação da estrutura inerente ao</p><p>domínio alvo. Se mapeamos o esquema CAMINHO no tempo, então podemos</p><p>esperar que nesse domínio se estabelece uma organização espacial em que as</p><p>inferências do espaço se mantêm. Trata-se da Hipótese da Invariância. Por</p><p>exemplo: se eu vou daqui para ali, e esse esquema é mapeado no tempo, então eu</p><p>também devo poder me mover no tempo de um ponto de partida A em direção a</p><p>um ponto B. Se entre os pontos espaciais A e B há posições intermediárias, então</p><p>também entre o ponto A e B na linha do tempo há pontos intermediários. Além</p><p>de explicar as inferências, essa hipótese procura justificar o fato de que há</p><p>aspectos que não são mapeados. Podemos mapear o espaço no tempo, mas certas</p><p>relações espaciais serão bloqueadas por causa da própria estrutura do tempo. Eis</p><p>o realismo! Assim, não podemos dizer Chegou atrás da hora.</p><p>Como, então, se explica a estrutura de inferência apresentada no primeiro</p><p>exemplo deste texto, reproduzido a seguir?</p><p>(36) Todo homem é mortal.</p><p>João é homem.</p><p>Logo, João é mortal.</p><p>Essas sentenças refletem a presença do esquema imagético RECIPIENTE, em</p><p>que há recipientes nos quais podemos entrar e sair ou colocar e tirar coisas. A</p><p>base corpórea que a sustenta é estarmos sempre em algum lugar e nosso próprio</p><p>corpo ser um recipiente. Assim, entendemos a primeira premissa como “o</p><p>recipiente que contém homens está dentro do recipiente dos mortais”; “João está</p><p>dentro do recipiente dos homens”. Enfatizando, é o nosso corpo que dá sentido</p><p>para as relações lógicas.</p><p>A título de exemplo da metodologia de análise na Semântica Cognitiva,</p><p>apresentamos uma possibilidade de descrição do conectivo mas. Sua descrição</p><p>inicia com um levantamento de suas várias possibilidades de uso. Uma pesquisa</p><p>etimológica, resgatando a história desse conectivo, seria também interessante.</p><p>Considere como dado a sentença (25), Pedro não está triste, mas ensimesmado.</p><p>Etimologicamente, segundo Vogt (1977), mas deriva da expressão latina magis</p><p>quam, que estabelece a comparação de superioridade: isso é mais do que aquilo.</p><p>Se adotamos a hipótese de que os usos mais antigos são aqueles mais próximos</p><p>do físico, então é o esquema corporal do BALANÇO que dá sustentação ao mas:</p><p>pesamos duas coisas e a balança pende para uma delas. No caso do exemplo</p><p>(25), a balança pende para o lado do ensimesmado: se pesamos os dois, Pedro é</p><p>mais ensimesmado do que triste. Uma vez estabelecida que essa é a base física,</p><p>resta-nos dar conta de suas extensões metafóricas.¹⁸</p><p>Intervalo VII</p><p>Considere as sentenças a seguir:</p><p>(1) Gastei cinco horas para chegar aqui.</p><p>(2) Economizei duas horas por este caminho.</p><p>Descreva essas sentenças a partir do arcabouço teórico proporcionado pela</p><p>Semântica Cognitiva.</p><p>Ache exemplos que confirmem a existência da metáfora conceitual</p><p>ARGUMENTAÇÃO É UMA GUERRA.</p><p>Dissemos que há dois primitivos na teoria da Semântica Cognitiva: os esquemas</p><p>imagéticos e as categorias de nível básico. Sobre os primeiros já falamos e</p><p>mostramos que eles se estendem via metáfora. Resta-nos agora tratar das</p><p>categorias de nível básico. Sua discussão é importante porque ela toca numa</p><p>questão cara à Semântica Cognitiva: a categorização.</p><p>Mas qual é o problema da categorização? É explicar que critérios necessários e</p><p>suficientes permitem que um dado exemplar faça parte de uma certa categoria</p><p>(ou conceito). Ilustremos esse problema: como é que determinamos que um</p><p>indivíduo particular pertence à classe dos homens? Como é que sabemos que</p><p>João é humano? Na visão tradicional, aquela que se encontra na Semântica</p><p>Formal clássica, um termo genérico como homem não se refere a um indivíduo</p><p>em particular, mas a todos os indivíduos que possam ser alcançados por meio de</p><p>certas propriedades, necessárias e suficientes, instanciadas por homem. Sabemos</p><p>que João pertence à classe dos humanos</p>