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<p>1</p><p>O NEGRO BRASILEIRO: QUESTÕES IDENTITÁRIAS,</p><p>RACIAIS E DE AFRICANIDADE NO CONTEXTO DA LUTA E</p><p>RESISTÊNCIA NEGRA NO BRASIL</p><p>Regina de Cássia Fernandes Sanches1</p><p>Resumo: o artigo analisa a participação do negro na formação da sociedade</p><p>brasileira, sua luta e formas de resistência contra a recorrente desigualdade social que</p><p>os afeta e que remonta à época da escravidão. A luta dos negros brasileiros passa pela</p><p>questão identitária, pois envolve a definição de lugares tanto na história do Brasil</p><p>como na formação de sua sociedade. Os movimentos negros têm denunciado a falsa</p><p>ideia de democracia racial e protagonizado ações em favor da mudança desse quadro</p><p>e transformação da realidade social. A articulação de tais movimentos remete para</p><p>discussões em torno da construção de novas identidades, sua relação com a cultura e</p><p>as possibilidades contemporâneas, que requisitam discussões em torno da questão</p><p>das raças e do significado dos esforços de africanização do negro considerado então</p><p>em diáspora. A discussão proposta desafia a uma contínua problematização das</p><p>questões colocadas pela luta dos negros no país.</p><p>Palavras-chave: negro; identidade; cultura; raça; africanidade.</p><p>Abstract: this paper analyses the black’s participation in the formation of Brazilian</p><p>society, their struggle and forms of resistance against the ongoing social inequality</p><p>that affects them dating back to the slavery period. The Brazilian blacks’ struggle</p><p>passes through the identity issue since it involves the definition of places both in</p><p>Brazil’s history as in its society formation. The Black movements have denounced</p><p>the false idea of racial democracy and played a major role in favor of changes in this</p><p>scenario and of transformation of the social reality. The articulation of such</p><p>movements refers back to discussions about the construction of new identities, their</p><p>relations with culture and contemporary possibilities, which demands further</p><p>discussions about the race issue and the meanings of the africanization efforts of the</p><p>blacks, then considered in a diaspora. The discussion here proposed challenges to a</p><p>continuous problematization of the issues put forth by the black struggles in the</p><p>country.</p><p>Keywords: black people; identity; culture; race; africanity.</p><p>1 Mestra em Teologia e Práxis, mestra em Missiologia, Especialista em História e Cultura Afro-brasileira e</p><p>Indígena. Atualmente é professora e coordenadora da graduação na FLAM – Faculdade Latino-americana.</p><p>2</p><p>Introdução</p><p>Os movimentos negros no Brasil lidam com situações singulares e complexas devido</p><p>à diversidade racial/étnica, do povo brasileiro. Se tais movimentos já são, em todas as suas</p><p>versões nacionais e internacionais, esforços pela construção de novas identidades dos negros</p><p>diaspóricos ou que se autocompreendem como tal, no caso do Brasil trazem implicações</p><p>diretas para a compreensão da própria identidade brasileira. A mestiçagem característica do</p><p>contexto social de formação do nosso povo coloca em questão a possibilidade de se falar de</p><p>raça negra e cultura negra. O problema das raças trataremos nesse artigo então com o auxílio</p><p>do Prof. Roberto Silvério, que apresenta as recentes discussões sobre a temática racial.</p><p>Discutir esse assunto exige que se considere crítica e criteriosamente a história de formação</p><p>do povo brasileiro e o que é ser negro no Brasil.</p><p>Outro fator importante, além do contexto local, é aquele de tempo. Estamos em uma</p><p>época caracterizada pela superação de valores e concepções modernas, tornando as</p><p>identidades mais fluídas, construídas a partir das múltiplas interações provocadas pela</p><p>globalização atual. Discutiremos esse assunto na perspectiva, principalmente, de Stuart Hall,</p><p>que trata da flexibilização das identidades na modernidade tardia, na perspectiva da cultura.</p><p>A africanização dos descendentes remotos dos negros escravizados nos períodos</p><p>coloniais, destituídos de sua identidade original por um longo e doloroso processo de</p><p>desenraizamento, tem sido um esforço considerado importante para a construção de novas</p><p>pertenças históricas e culturais. Para isso, no conjunto e como parte dessas ações, tem se</p><p>recuperado também a história do continente africano e o estudo de suas diversas culturas.</p><p>Uma volta à África, conforme problematizam Alberti e Pereira, visa dar sentido à essa</p><p>peregrinação simbólica e mesmo mítica de reconstrução de raízes, ainda que distantes, mas</p><p>significativas. Tais esforços vão para além da construção identitária, mas de conquista de</p><p>um novo lugar dos negros na sociedade brasileira, em uma condição social mais igualitária.</p><p>Como tem se revelado historicamente, esta é uma conquista protagonizada pelos próprios</p><p>negros, por meio da luta e da resistência, na atualidade, muito mais conduzida pelos</p><p>movimentos negros.</p><p>Todavia, retornando ao problema posto pelo artigo, a questão da identidade negra</p><p>não é simples e se torna mais complexa ao se pensar que ao identificar o “negro” brasileiro</p><p>considerando simplesmente o aspecto cromático, incorre-se no risco de exclusão daqueles</p><p>que, por causa da mestiçagem, não serão vistos como negros pelos negros, porém, nem como</p><p>3</p><p>brancos pelos brancos. Há um possível risco de se reviver e acentuar um dos maiores</p><p>problemas do povo brasileiro, a definição de uma possível identidade ou de identificação</p><p>racial e cultural. Este assunto certamente suscitará a problematização da questão racial, e,</p><p>como isto vem sendo discutido atualmente. Para explorarmos tais assuntos, consideramos</p><p>necessário tratar, ainda que brevemente, do problema das identidades, principalmente diante</p><p>dos desafios impostos pela globalização contemporânea.</p><p>A africanização do negro brasileiro, como decorrente de um movimento mais amplo</p><p>no Ocidente e que remonta ao início do século passado, é outro assunto que exige ser</p><p>examinado no conjunto de tais discussões. Concluímos, ampliando a problemática acima</p><p>colocada, sobre a complexidade do problema do negro no contexto especificamente sócio-</p><p>histórico e cultural brasileiro como ponto de partida para a discussão.</p><p>1. Identidades contemporâneas</p><p>Identificar algo é incorrer no risco da redução de sua abrangência e possibilidades,</p><p>tendo em vista que “identidade” tem a pretensão de ser um marco, uma delimitação, uma</p><p>definição e apreensão de algo ou alguém. Na contemporaneidade, somente é possível falar</p><p>de identidade a partir da compreensão de que ela não é e nem pode ser fixa ou definitiva. Há</p><p>sempre um caráter de provisoriedade e de estado de construção nas identidades sociais,</p><p>conforme esclarece o Dr. Tilio citando Bakhtin:</p><p>Identidades sociais não são fixas e inerentes às pessoas; elas são</p><p>construídas no discurso durante os processos de construção de</p><p>significados. Um conceito fundamental, portanto, aqui é o conceito de</p><p>alteridade: aquilo que dizemos em nossas práticas discursivas depende da</p><p>forma como enxergamos o outro. Consequentemente, a forma como nos</p><p>vemos no mundo social também depende da forma como enxergamos o</p><p>outro e de como o outro nos enxerga. (2009, p. 111)</p><p>A globalização tem sido qualificada como causadora do fim das identidades fixas, ou</p><p>de sua pulverização no cenário global. Hall, compreende como próprio da modernidade</p><p>tardia a fragmentação do sujeito moderno, essencialmente estável: “[...] as velhas</p><p>identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo</p><p>surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um</p><p>sujeito unificado. ” (2002, p. 07). Isto implica, para ele, na verdadeira morte do indivíduo</p><p>que possuía a identidade centrada em seu próprio Eu essencial ou em relação com a cultura,</p><p>também como força unificadora e identitária:</p><p>4</p><p>[...] conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou</p><p>permanente. A identidade torna-se uma celebração “móvel”: formada</p><p>e</p><p>transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos</p><p>representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam...O</p><p>sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades</p><p>que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. (HALL, 2002, p. 11)</p><p>Para Hall devemos falar na atualidade em “identidades”, que são flutuantes e com</p><p>possibilidades de contínua transformação. Conclui-se que o fato de o mundo contemporâneo</p><p>tender à construção de novas identidades, não implica exatamente em sua extinção, mas em</p><p>sua mobilização, visando também o estabelecimento de referências para o diálogo global.</p><p>Este é o caso dos movimentos negros no mundo, caracterizados como uma força identitária</p><p>no contexto das lutas e resistências. Tais movimentos, no impulso das possibilidades</p><p>contemporâneas, revelam alcances globais e, ao mesmo tempo, específicos de cada situação</p><p>histórica e social. A globalização então não incorre exatamente no fim das identidades, mas</p><p>em sua flexibilização como condição de possibilidade de novas significações em um mundo</p><p>dinâmico, interativo e sempre possível de mudanças. No âmbito das culturas esse não é um</p><p>fenômeno atual conforme Ribeiro, mas próprio da história da humanidade:</p><p>É importante lembrar que, a não ser em tempos muito remotos, a</p><p>diversidade cultural tem acompanhado a própria história da humanidade.</p><p>Parece ser constitutivo da própria humanidade um mecanismo</p><p>diferenciador: quando um encontro entre duas sociedades parece gerar um</p><p>resultado homogêneo, no interior desta mesma sociedade surgem</p><p>diferenças significativas marcando fronteiras entre os grupos sociais.</p><p>(1995, p. 430)</p><p>As mudanças culturais e consequente surgimento de fronteiras, provocadas pelo</p><p>encontro entre grupos culturais diferentes, conforme tratado por Omar Ribeiro, revelam a</p><p>preocupação em torno do fortalecimento de identidades culturais, para evitar a rendição à</p><p>identidade do outro, ainda que em processo de assimilação seletiva. Isso remete para a</p><p>discussão entre identidade e cultura, dois assuntos que necessitam ser tratados em conjunto,</p><p>visto que, conforme define Tassinari, cultura abrange toda uma construção simbólica</p><p>coletiva visando dar sentido ao mundo e à vida:</p><p>[...] conjunto de símbolos compartilhado pelos integrantes de determinado</p><p>grupo social e que lhes permite atribuir sentido ao mundo em que vivem e</p><p>às suas ações. Portanto, a noção de cultura com a qual a Antropologia</p><p>trabalha atualmente está menos ligada a costumes, técnicas, artefatos em</p><p>si, e mais relacionada ao significado que estes têm no interior de um código</p><p>simbólico. (1995, p. 445)</p><p>Omar Ribeiro também explica a cultura como a significação da vida e do mundo que</p><p>integramos (1995, p. 427). É possível afirmar então que a cultura é fruto da vivência e das</p><p>5</p><p>construções simbólicas relacionadas ao imaginário coletivo em sua correspondência às</p><p>condições geográficas, históricas e virtuais do contexto em seu sentido amplo, espaço e</p><p>tempo. A contemporaneidade cria novos lugares de construção cultural, muito mais</p><p>representados simbolicamente e com possibilidades polissêmicas, o que estreita as fronteiras</p><p>culturais e, ao mesmo tempo, as distancia.</p><p>A cultura possibilita pertença de pessoas, grupos e comunidades em geral, com</p><p>enraizamentos necessários para a vida humana, que não são exclusivamente geográficos,</p><p>mas também no campo das representações. A noção de verdade moderna, sustentadora das</p><p>identidades fixas, tem sido deslocada para o mundo das significações, o que envolve com</p><p>isso a compreensão de cultura, como linguagem expressa das mais diversas formas e com</p><p>riqueza imensurável de sentidos. Ferreira Dias a explica como</p><p>[...] um conjunto de significados/significantes que através das tradições</p><p>desvia-se para uma nova forma de situar-se, produzir-se, no sentido mais</p><p>amplo, num processo de metamorfose em que novos conceitos,</p><p>compreensões e caminhos nos permitem o surgimento de novos sujeitos.</p><p>(2011, p. 152).</p><p>Segundo Hall, a noção de cultura moderna era evidentemente próxima daquela da</p><p>identidade, e se referia a representação da cultura nacional como unificadora e geradora de</p><p>políticas e ações centralizadas: “No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos</p><p>se constituem em união das principais fontes de identidade cultural. ” (2005, p. 47). Segue</p><p>que, para ele, nação não é simplesmente uma unidade política, mas uma representação</p><p>produtora de sentidos, uma “comunidade simbólica”:</p><p>Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos</p><p>pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a</p><p>diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas</p><p>divisões e diferenças internas, sendo "unificadas" apenas através do</p><p>exercício de diferentes formas de poder cultural. (HALL, 2002, p. 61)</p><p>A cultura (nacional), enquanto “dispositivo discursivo”, envolve relações de poder</p><p>das mais variadas formas, sejam simbólicas ou expressas de modo concreto em ações</p><p>políticas, o que a torna também e consequentemente lugar de resistências e contestação. Suas</p><p>diferenças internas revelam igualmente a recente noção de diversidade, característica do</p><p>tempo atual e com implicações importantes para o tratamento do tema da identidade.</p><p>Aproximamos então da situação do Brasil, que é conhecido como o país da</p><p>diversidade, não somente em relação à sua fauna e flora, mas com respeito inclusive à sua</p><p>população. Caroline Mackenzie, em vista do FSM – Fórum Social Mundial, explica que a</p><p>6</p><p>compreensão da diversidade é “a pedra angular do outro mundo possível”, ou seja, é a</p><p>condição de possibilidade para a construção de relações de respeito e reciprocidade em uma</p><p>sociedade ideal. (2006, p. 181). O reconhecimento de diferenças não é necessariamente o</p><p>reconhecimento da diversidade, que requer a validação do plural, da multiplicidade.</p><p>Diversidade e cultura são temáticas que se interdependem, e, principalmente no caso</p><p>brasileiro não podem ser tratadas em separado. A diversidade é marca distintiva da cultura</p><p>brasileira, potencializada pelas representações simbólicas de formação de nosso povo e</p><p>sociedade, o que remete para a discussão de outra temática importante: a questão das raças.</p><p>2. Resistência e movimentos negros</p><p>A globalização, na sua forma atual, tem colocado em questão a compreensão de</p><p>identidade e cultura modernas, remetendo para sua fluidez. Um dos fatores que,</p><p>historicamente, tem contribuído para isso tem sido a mobilidade física e virtual dos povos,</p><p>promotoras não somente de transformações culturais, mas da própria concepção do que seja</p><p>cultura e identidade:</p><p>As identidades, concebidas como estabelecidas e estáveis, estão</p><p>naufragando nos rochedos de uma diferenciação que prolifera. Por todo o</p><p>globo, os processos das chamadas migrações livres e forçadas estão</p><p>mudando de composição, diversificando as culturas e pluralizando as</p><p>identidades culturais dos antigos Estados-nação dominantes das antigas</p><p>potências imperiais e, de fato do próprio globo. Os fluxos não regulados de</p><p>povos e culturas são tão amplos e tão irrefreáveis quanto os fluxos</p><p>patrocinados do capital e da tecnologia (HALl, 2003, apud, DIAS, 2011,</p><p>p. 44).</p><p>A movimentação sócio-política de povos não é especificamente um problema atual,</p><p>embora tenha se intensificado nos últimos anos devido ao agravamento das guerras e</p><p>problemas socioeconômicos em diversos países. Outro fator de mobilidade é o trânsito</p><p>virtual, possibilitado pelas inúmeras redes de comunicação atuais, mediadas pelas novas</p><p>tecnologias, que coloca o mundo em uma rede cibernética e global de interlocução,</p><p>fluidificando elementos culturais e provocando ressignificações.</p><p>Em relação às formas tradicionais de encontros culturais sabemos, no caso da África,</p><p>que foram provocados por migrações internas e externas, algumas voluntárias e como</p><p>práticas culturais e outras forçadas, como foi o caso da escravidão</p><p>negra ocorrida nos séculos</p><p>XVI a XIX. Atualmente, acontecem também por força das condições políticas e econômicas</p><p>de alguns países. A segunda forma de movimento dos africanos, por meio da escravidão,</p><p>7</p><p>ainda traz repercussões culturais e identitárias, principalmente em se tratando da experiência</p><p>brasileira.</p><p>No Brasil, a chegada dos africanos trouxe um impacto cultural por vias clandestinas</p><p>e subversivas, conforme denunciado nos dias atuais pelos movimentos negros que retomam</p><p>esse assunto como algo ainda não resolvido, e, ao mesmo tempo, necessário de se resolver.</p><p>Isto se deve ao fato de que, somente nas últimas décadas, os negros têm conquistado alguns</p><p>espaços, por meio de atos reivindicatórios dos movimentos negros, de contar a própria</p><p>história a partir de memórias ressignificadas, no contexto das possibilidades</p><p>contemporâneas.</p><p>Na intenção de remontar à formação da sociedade e cultura brasileira, vale lembrar</p><p>que as culturas indígenas existentes e praticadas nas terras invadidas não receberam</p><p>tratamento diferente, e entraram em processo de extinção juntamente com seus povos. A</p><p>única cultura válida na conjuntura do projeto colonizador europeu era aquela do próprio</p><p>colonizador. Esta foi uma prática comum de todas as formas históricas de colonização, como</p><p>estratégia de validação e fortalecimento da empresa colonial. É nesse sentido que cabe a</p><p>crítica de Carvalho de que a “A “civilização” instalou-se, no Brasil, sob o signo da repressão</p><p>estética e espiritual e não da “fusão” harmônica de três raças, como se ensina até hoje nos</p><p>textos escolares. ” (2005, p. 03). A forma possível de prática cultural que não fosse aquela</p><p>europeia, se sabe da época, era pelo caminho da dissimulação, do disfarce e do</p><p>mascaramento. É um fato histórico que denuncia, por si mesmo, a desigualdade social e</p><p>consequente formação arbitrária da sociedade brasileira, tornando-se então a objeção</p><p>geradora das lutas dos movimentos negros, conforme Alberti e Pereira:</p><p>A rigor, seria mais apropriado chamar as iniciativas e as instituições que se</p><p>multiplicaram no Brasil a partir dos anos 1970 de “movimentos negros” no</p><p>plural, dada sua diversidade e suas frequentes cisões e divergências, mas</p><p>não há dúvida de que todas tinham por objetivo o combate ao racismo e a</p><p>luta pela melhoria de condições de vida das populações negras. (2007, p.</p><p>26)</p><p>A construção da identidade do negro brasileiro passa então pela legitimação da</p><p>cultura de raízes africanas, que foi sendo transformada por ele ao longo da sua história, e o</p><p>reconhecimento de sua importância na construção da identidade do povo brasileiro. Será</p><p>preciso admitir, para isso, que a cultura prevalente, de uma minoria, não é tão “mestiça”</p><p>quanto da maioria do povo brasileiro, que se auto-reconhece mestiço e que constrói para si</p><p>formas diferenciadas de modos de vida. A própria mestiçagem do povo brasileiro requer</p><p>8</p><p>então ser entendida muito mais do que mera mistura de raças, e colocada em questão se não</p><p>se comprova uma forma de “mestiçagem” cultural. É em vista de tais questões que</p><p>afirmamos que a identidade do negro brasileiro vem sendo construída em meio à lutas e</p><p>resistências, desde os primórdios da chegada dos africanos no Brasil, arrancados de suas</p><p>culturas tradicionais, portanto, das identidades culturais de origem e forçados a repensar sua</p><p>própria existência humana em um contexto de negação delas. A africanidade tornou-se então</p><p>uma condição remota, mas significativa no processo de construção identitária no incurso do</p><p>contexto contemporâneo.</p><p>Para isso, é preciso ter em mente que um dos problemas implicados na tragédia dos</p><p>escravos africanos é também de ordem filosófica. Somente se concebe a existência do outro</p><p>como humano a partir da própria compreensão de humanidade. Reificar o outro,</p><p>transformando-o em mercadoria de compra e venda, é negar sua humanidade, e, aquele que</p><p>sofre a desumanização necessita resistir consigo mesmo e com os outros que tentam</p><p>convencê-lo disso, reafirmando para si e para aqueles que isso não é verdadeiro. O</p><p>convencimento é a via mais fácil para a servilização do outro, pois evita o consumo da força</p><p>e dos recursos, e, o não convencimento, é prova cabal de resistência, luta e possibilidades de</p><p>mudança.</p><p>Em vista dessas discussões a teoria da fusão das raças, como geradora de uma</p><p>democracia racial, tem sido amplamente debatida e questionada no Brasil, principalmente</p><p>mediante a situação sociocultural da população negra e indígena no país. Estima-se que</p><p>tenham sido trazidos para o Brasil cerca de 4 milhões de africanos, no período entre meados</p><p>do séc. XVI e final do séc. XIX. De acordo com Darcy Ribeiro, os negros trazidos para o</p><p>Brasil eram provenientes da costa sudanesa, representantes dos grupos Yoruba, Dahomey,</p><p>Fanti-Ashanti. Vieram também os Penhl, os Mandinga e os Haussa do norte da Nigéria. Dos</p><p>grupos congo-angoleses foram trazidos principalmente os Bantu. De acordo com Ribeiro,</p><p>representantes de outros grupos de regiões como Gâmbia, Serra Leoa, Costa da Malagueta e</p><p>Costa do Marfim, também foram aportados e, literalmente, comercializados em terras</p><p>brasileiras (1995, p. 114).</p><p>Contabiliza-se em torno de 300 anos de escravidão direta e oficial do negro africano,</p><p>período também em que se deu a configuração inicial do povo brasileiro, que desde então se</p><p>mantém em formação. Nem se menciona o tempo de escravidão indireta por meio da má</p><p>remuneração, emprego de castigos físicos e inferiorização dos negros nas relações de</p><p>trabalho. Tal quadro histórico é denunciador da ausência de equidade na formação social do</p><p>9</p><p>povo brasileiro. Os negros e indígenas, embora sempre formassem boa parte da população</p><p>brasileira, entraram nessa composição em condição de incomparável desvantagem social, o</p><p>que se comprova, de acordo com o prof. Roberto Silvério, por meio de estudos a partir de</p><p>trabalhos quantitativos pós-década de 70:</p><p>Os estudos quantitativos tiveram o mérito de dar substância às insistentes</p><p>denúncias das entidades negras sobre a discriminação racial no mercado de</p><p>trabalho, e se tornaram parte integrante das provas científicas que refutam</p><p>o mito da igualdade no tratamento entre as raças e, ao mesmo tempo, estão</p><p>na base do ressurgimento da polêmica em torno do uso do termo raça no</p><p>debate contemporâneo brasileiro. (2004, p. 03).</p><p>A situação-problema que se impõe é o fato de que houve, inegavelmente, uma</p><p>mistura racial inicial formadora dessa população brasileira. Darcy Ribeiro, em seu estudo</p><p>sobre a formação do povo brasileiro, desfaz a ideia de que foi uma mistura pacífica e</p><p>igualitária, mas mantém a teoria da fusão das matrizes, ainda que em meio à uma disparidade</p><p>escandalosa de condições. O mito da democracia racial, gerador de políticas, inclusive,</p><p>educacionais, tem sido desfeito em meio aos números chocantes da desigualdade social no</p><p>país, que envolve dados étnico-raciais. Todavia, a ideia do Brasil como um país multirracial,</p><p>requer, conforme Silvério “reconhecer as diferenças étnico/raciais como constitutivas e</p><p>perenes na construção da nação brasileira” (2004, p. 04), o que parece estar em contramão</p><p>com o debate atual em torno da situação racial, que vai muito mais na direção do</p><p>reconhecimento do mito das raças do que de seu reconhecimento e validação.</p><p>A reconstrução da história de formação do povo brasileiro passa também pelo que</p><p>Santos explica sobre a contemporaneidade e as novas noções do tempo, dos objetos, da</p><p>própria história e a impossibilidade de construção de grandes narrativas: “O mundo pós-</p><p>moderno coloca o tempo no universo de suas significações e nas suas possibilidades de</p><p>construir leituras. ” (2009, p. 74). A história da formação do nosso povo, requisitada pelos</p><p>movimentos negros, torna-se uma construção a partir “de várias identidades articuladas em</p><p>memórias diferentes. ” (Santos, 2009, p. 78). A memória nem sempre corresponde</p><p>completamente aos fatos em</p><p>si e seus objetos, mas é capaz de dar sentido e ser geradora de</p><p>novas identidades no conjunto das novas experiências dos sujeitos.</p><p>Isto posto, a construção das novas identidades exige revisitar a história do negro no</p><p>Brasil e dos movimentos abolicionistas, que começaram a surgir ainda no final do séc. XVIII,</p><p>mas que apenas no séc. XIX se intensificaram causando maior impacto na criação de leis e</p><p>políticas de fim da escravidão. No Brasil, a escravidão ainda perdurou por mais tempo do</p><p>10</p><p>que na maioria dos países europeus e foi um processo mais lento e de resistências, tanto da</p><p>parte dos escravizadores para fins de sua manutenção, como dos escravizados em prol da</p><p>abolição. Leis como a do Ventre Livre (de 28 se setembro 1871) e do Sexagenário (28 de</p><p>setembro de 1885), precederam a Lei de 13 de maio de 1888 que extinguia a escravidão no</p><p>Brasil. Formas variadas de resistência negra para o “fim da escravidão, como as fugas, a</p><p>formação de quilombos e a rebeldia cotidiana. ” (ALBUQUERQUE, FILHO, 2006, p. 175),</p><p>certamente cumpriram papel determinante em sua promulgação.</p><p>É fato dado que a abolição da escravatura não foi um ato político isolado de</p><p>generosidade da governança do país, muito menos dos senhores de escravos, que no Brasil</p><p>resistiram o máximo possível ante a pressão estrangeira para libertação de seus escravos. Ela</p><p>foi muito mais o culminar de uma ebulição de movimentos, tanto protagonizados por</p><p>abolicionistas atuantes nas mais diversas áreas sociais e culturais, como dos próprios negros</p><p>escravos. Estes últimos manifestaram resistência à morosidade do fim da escravidão, das</p><p>mais diversas formas, conforme reforça Wlamyra Albuquerque: “Pois, o escravo teve um</p><p>papel autônomo na crise terminativa da escravidão, depois que a propaganda [abolicionista]</p><p>lhe abriu os olhos para a iniquidade que o vitimava. ” (2010, p. 110).</p><p>A luta dos negros manteve-se após o período de escravidão e no decurso de sua</p><p>história no Brasil, desde então, principalmente em relação às desigualdades sociais que,</p><p>gradativamente, foram sendo percebidas na organização da sociedade brasileira.</p><p>Historicamente, a resistência tem revelado seus heróis, que se constituem, implicitamente,</p><p>heróis da história brasileira. João Cândido, que liderou a Revolta da Chibata em 1910 (Rio</p><p>de Janeiro) tem sido reconhecido e significado ao longo da história do país como um desses</p><p>símbolos de resistência. Ele lutou contra o maltrato aos marinheiros negros e pardos de sua</p><p>época, tratados sob a forma de escravidão dissimulada e, ao mesmo tempo, legitimada como</p><p>recurso de disciplina militar. Silvia Capanema relata a história de João Cândido, e também</p><p>o processo de ressignificação de sua memória, atribuindo-lhe o status de herói nacional e</p><p>ícone da resistência e luta negra no país. (2011 p. 63)</p><p>Outro reconhecido movimento de resistência foram os quilombos ainda no período</p><p>da escravidão, dos quais o Quilombo dos Palmares teve maior expressão. Nele, Zumbi dos</p><p>Palmares revelou-se um dos principais personagens da luta negra brasileira. O dia de sua</p><p>morte (20 de novembro) tornou-se a data mais importante para o movimento negro no Brasil;</p><p>até mesmo em relação à data da abolição da escravidão no país (13 de maio de 1888). Tais</p><p>esforços de reconstrução de memórias e reconhecimento dos heróis nas lutas, contribuem</p><p>11</p><p>para comprovar que a libertação dos negros no Brasil foi principalmente uma conquista</p><p>protagonizada por eles próprios: “Simbolicamente propunham romper com a ideia de</p><p>liberdade concedida por uma concepção de liberdade conquistada, tendo em Palmares e em</p><p>Zumbi seu referente. ” (CAMPOS, 2008, p. 235).</p><p>Entretanto, a luta dos negros e dos movimentos que os representam é um processo</p><p>longe de terminar, de acordo com Santos em sua tese doutoral “Movimentos Negros,</p><p>Educação e Ações Afirmativas”, na qual descreve o desenvolvimento histórico das lutas</p><p>antirracistas, desde o período da escravidão até as políticas atuais para transformação dessa</p><p>situação social. O autor evidencia que a situação do negro no país, mesmo com todos os</p><p>esforços de resistência e lutas, que têm sido provocadoras de políticas e ações afirmativas,</p><p>ainda é de complexa solução.</p><p>3. Raças como impossibilidade biológica e constructo social</p><p>De um ponto de vista biológico o preconceito racial demonstra ser, em primeiro</p><p>momento, um preconceito da cor, da aparência e da forma, conforme explica Telles. “A ‘cor’</p><p>no Brasil corresponde ao termo em inglês race e é baseada em uma avaliação fenotípica</p><p>complexa, que leva em conta a pigmentação da pele e dos olhos, o tipo de cabelo e a forma</p><p>do nariz e dos lábios” (TELLES, apud Pena e Birchal, 2005-2006, p. 15). Pena e Birchal ainda</p><p>acrescentam:</p><p>Em conclusão, os nossos estudos demonstraram claramente que, no Brasil,</p><p>a cor avaliada fenotipicamente com base na pigmentação da pele e dos</p><p>olhos, na textura do cabelo e no formato dos lábios e do nariz, tem uma</p><p>correlação muito fraca com o grau de ancestralidade africana estimada por</p><p>marcadores genômicos específicos (Parra et al., 2003). Individualmente,</p><p>qualquer tentativa de previsão torna-se muito difícil, já que pela inspeção</p><p>da aparência física de um brasileiro não podemos chegar a nenhuma</p><p>conclusão confiável sobre o seu grau de ancestralidade africana. Em outras</p><p>palavras, no Brasil, a cor, como socialmente percebida, tem pouca ou</p><p>nenhuma relevância biológica. (2005-2006, p. 16)</p><p>No inglês, e especialmente nos Estado Unidos, foi usado por muito tempo, inclusive</p><p>na maior parte do século vinte, a expressão people of color, ou colored people, literalmente</p><p>“pessoas de cor” para se referir aos negros. O uso de tais expressões estava tanto relacionado</p><p>a diferenciar aqueles que eram “de cor” daqueles que “não eram de cor”, como de um suposto</p><p>esforço em ser politicamente correto não se referindo ao outro como negro ou preto, uma</p><p>espécie de designação supostamente ofensiva. Se considerarmos ofensivo a referência de</p><p>12</p><p>raça ou cor em relação ao negro, asiático, indígena e não o considerarmos da mesma forma</p><p>em relação ao branco, temos instalado um problema de preconceito, baseado no privilégio</p><p>da raça/cor branca em relação às outras cores e raças existentes.</p><p>Ainda em referência ao problema biológico de raça, o Dr. Kabengele Munanga</p><p>reconhece que a questão do ser negro no Brasil é mais uma situação política do que biológica,</p><p>tendo em vista o “desejo de branqueamento” ocorrido no país. De acordo com ele, “Os</p><p>conceitos de negro e de branco tem um fundamento etno-semântico, político e ideológico,</p><p>mas não um conteúdo biológico. ” (2004, p. 52). Embora quase a totalidade dos brasileiros</p><p>possuam traços genéticos africanos e ameríndios, a negritude do povo brasileiro se comprova</p><p>muito mais no plano histórico e sociocultural. Todavia, há uma evidente negação disso que</p><p>se revela das mais variadas formas, seja pela autodeclaração de uma raça branca ou por</p><p>esforços de branqueamento da aparência física. Isto se explica pelo fato de que o racismo,</p><p>como afirmado acima, tem sido relacionado à aparência exterior, à cor da pele, traços e</p><p>texturas.</p><p>Ocorre que a discriminação “racial” no Brasil não acontece exatamente na condição</p><p>exclusiva de pessoas de cor branca para com pessoas de cor negra, como incide em lugares</p><p>onde houve sistemas de segregação racial, mas se dá também no amplo cenário de</p><p>negritudes. Em um país tão caracterizado pela mistura de etnias (ainda que em condições</p><p>socialmente desigualitárias) é complexo falar de “raças” e de diferenciações raciais, ao</p><p>menos de modo radical. De acordo com Pena e Birchal até mesmo porque o conceito de</p><p>raças visa interesses diversos:</p><p>No passado, a crença de que “raças” humanas possuíam diferenças</p><p>biológicas substanciais e bem demarcadas contribuiu para justificar</p><p>discriminação, exploração e atrocidades. Recentemente, porém, os avanços</p><p>da genética molecular e o sequenciamento</p><p>do genoma humano permitiram</p><p>um exame detalhado da correlação entre a variação genômica humana, a</p><p>ancestralidade biogeográfica e a aparência física das pessoas, e mostraram</p><p>que os rótulos previamente usados para distinguir “raças” não têm</p><p>significado biológico. Pode parecer fácil distinguir fenotipicamente um</p><p>europeu de um africano ou de um asiático, mas tal facilidade desaparece</p><p>completamente quando procuramos evidências dessas diferenças “raciais”</p><p>no genoma das pessoas. Apesar disso, o conceito de “raças” persiste, qua</p><p>construção social e cultural, como forma de privilegiar culturas, línguas,</p><p>crenças e diferenciar grupos com interesses econômicos diferentes</p><p>(AZEREDO, 1991, apud, Pena e Birchal, 2003-2005, p. 13).</p><p>É certo que a discussão sobre o negro no Brasil não pode desprezar a mediação</p><p>científica das ciências biológicas, que, embora não possuindo a resposta última para o</p><p>problema, fornecem contribuições importantes, conforme os autores acima citados: “[...]</p><p>13</p><p>embora a ciência não seja o campo de origem dos mandamentos morais, ela tem um papel</p><p>importante na instrução da esfera social, pois, ao mostrar “o que não é”, ela liberta, ou seja,</p><p>tem o poder de afastar erros e preconceitos. ” (PENA E BIRCHAL, 2003-2005, p.13).</p><p>De acordo com Maio e Santos a discussão em torno do conceito de raças é antigo e</p><p>tem causado sua ressignificação “perdendo seu status epistemológico de categoria</p><p>explicativa da variabilidade biológica humana”. Todavia, eles esclarecem que ainda que a</p><p>possibilidade de comprovação de origens e de ancestralidade pela via genética seja mínima,</p><p>tem sido um recurso apropriado por movimentos e sociedades para afirmação identitária.</p><p>(MAIO, SANTOS, 2010, p. 213).</p><p>A asseveração de Silvério sobre a contribuição das ciências para a antiga suposta</p><p>diferenciação das raças, vai na mesma direção: “Assim, a ciência primeiro endossou a</p><p>existência de raças biológicas para posteriormente negar a existência de diferenças genéticas</p><p>significativas entre os vários “grupos” e “populações” no interior da espécie humana”. Ele</p><p>ainda acrescenta que “A desconstrução científica da raça biológica não fez desaparecer a</p><p>evidência simbólica das raças percebidas”, e, não foi então possível impedir o surgimento</p><p>de construções simbólicas fundadoras de ações e políticas racistas:</p><p>No entanto, a negação em si não foi suficiente para inibir o surgimento de</p><p>formas de simbolização que recriem um mundo em que a raça, enquanto</p><p>uma construção científico-social datada, deixe de operar como um</p><p>marcador fundamental da experiência sócio-histórica dos vários grupos</p><p>étnico/raciais, que passaram a formar os novos Estados nacionais, em</p><p>especial naquelas nações em que o processo de colonização forçou a</p><p>convivência, normalmente, de forma violenta de uma diversidade de povos</p><p>com experiências culturais muito distintas. (SILVÉRIO, 2004, p. 7).</p><p>Essa é a situação na qual podemos enquadrar o caso do Brasil, de uma mistura forçada</p><p>de povos pela empresa colonial europeia. O grupo minoritário dos brancos prevaleceu frente</p><p>à maioria que eram os indígenas e negros. Isto se deu pela força das armas, mas certamente</p><p>também pela crença na superioridade branca, validadora da dominação e capaz de promover</p><p>sujeição. Todavia, a desmistificação de tal crença tem contribuído para o surgimento de</p><p>mecanismos de resistência e luta, inclusive no campo ideológico.</p><p>Entre as ações realizadas no campo da demitificação racial e da luta, têm-se buscado</p><p>a ressignificação da forma, como um dos esforços contemporâneos de resistência ao</p><p>branqueamento como modo de aceitação social, como para a valoração do tipo negro e sua</p><p>beleza própria, em reconhecimento das múltiplas belezas que caracteriza o povo brasileiro.</p><p>Algo novo surge dessa construção, vigorosa o suficiente para promover transformações do</p><p>14</p><p>contexto social, como no caso do corpo e cabelo negro como símbolos de identidade. Em</p><p>tempos de massificação cultural o que era considerado diferente se torna mais diferente ainda</p><p>e se destaca como um valor, o étnico.</p><p>Os salões étnicos compõem o cenário de luta e resistência contra o tratamento</p><p>desigual, racista e discriminatório baseado na forma do outro. Certamente há uma exploração</p><p>mercantilizada do produto étnico, visto que em tempos de capitalismo ferrenho tudo tende a</p><p>tornar-se produto do mercado e de sua ávida exploração, mas Sansone alega que “a</p><p>mercantilização é tão antiga quanto as culturas negras”, e defende que os produtos das</p><p>culturas negras estão tão sujeitos à comercialização quanto as demais culturas, e não é algo</p><p>que se possa evitar:</p><p>Se existe mesmo uma tradição, ela mostra que as culturas negras estão</p><p>sempre sendo feitas e que esse processo exige a mercantilização, a</p><p>fabricação de objetos negros. Não devemos supor que as culturas negras</p><p>sejam mais “naturais” e resistentes à mudança que as “culturas brancas”.</p><p>(2000, p. 111)</p><p>O autor ainda problematiza o consumo ostentoso, muito percebido na cultura negra</p><p>baiana, como forma de ascensão, mas, ao mesmo tempo, negativamente como meio de</p><p>exclusão social daqueles que são economicamente impossibilitados desse consumo e de</p><p>ostentar. (2000, p. 111). De qualquer forma, não há como desvincular as relações entre</p><p>cultura, mercado e o consumo a que ele remete no capitalismo atual.</p><p>Em relação aos estudos dos movimentos negros, Flávia Rios (2008), destaca a</p><p>importância de tais tarefas, até mesmo para fortalecimento das lutas e resistências negra no</p><p>Brasil. Ela aponta que os novos estudos realizados sobre a temática depois da década de 70,</p><p>tem sido, muitos deles, protagonizados por estudiosos negros. As críticas internas e externas</p><p>ao movimento fazem entender seu amadurecimento e avanço na problematização da situação</p><p>dos negros brasileiros. As questões acerca da ascensão social, questão identitária e igualdade</p><p>racial tornaram-se objetos de intensas discussões a partir desse período. No entanto, ela</p><p>esclarece que o avanço das discussões e mudança da realidade social não foram tão</p><p>significativos quanto às questões colocadas durante o desenvolvimento histórico de</p><p>acercamento do problema.</p><p>4. Africanidade como mito e moto de resistência</p><p>15</p><p>A africanidade dos negros da diáspora deve ser tratada também em relação com a</p><p>discussão da questão racial, da cultura e das identidades, tendo em vista que representa uma</p><p>busca pela ancestralidade e condição originária. É nesse sentido que o movimento negro, nas</p><p>suas várias expressões no Brasil e fora dele, tem empreendido lutas marcadas por</p><p>construções simbólicas de bases étnicas e de unificação e reafricanização dos negros,</p><p>conforme esclarece Campos (2008, p. 237). Para Alberti e Pereira (2007, p. 26) a adoção da</p><p>ênfase na África pelos movimentos negros pós década de 70 se deu pela busca da</p><p>ancestralidade e também de uma África mítica e cultural, conforme aponta Gomes: “[...]</p><p>acaba remetendo, às vezes de forma consciente e outras não, a uma ancestralidade africana</p><p>recriada no Brasil” (Gomes, p. 2). Patrícia Pinho também explica que “As conexões</p><p>esquecidas são mais uma vez estabelecidas, de forma nova e criativa, produzindo identidades</p><p>baseadas no mito de uma africanidade unificadora e formulando as imagens e discursos</p><p>diaspóricos.” (2004, p. 30). A África servia então como forte inspiração para os movimentos</p><p>negros “É uma África que pode até ser muitas Áfricas, mas que permanece uma” (2004, p.</p><p>27).</p><p>Trata-se da África de uma memória saudosa, sem muita preocupação de</p><p>correspondência com a África atual, mas muito mais com aquelas Áfricas dos escravos.</p><p>África tribal “vinculada ao passado dos ancestrais” (2004, p. 27), terra distante dos negros</p><p>da diáspora, reconstruída muito mais no imaginário com a força e importância de uma</p><p>memória que já não se tem. Pinho esclarece “[...] uma África mítica e idealizada por parte</p><p>de comunidades negras diaspóricas, e como essa ideia tem permeado</p><p>a criação e recriação</p><p>de culturas negras em diferentes tempos e espaços” (2004, p. 27).</p><p>O que chamamos então de africanização dos negros dispersos, principalmente nos</p><p>continentes americanos, se deu na busca de uma identidade comum geradora de movimentos</p><p>negros em várias partes do mundo ocidental. O africanismo se tornou um fator simbólico e</p><p>de significação identitária, capaz de produzir sentido para os movimentos. Eles reconstroem</p><p>em suas lutas formas de comunidades imaginárias que remontam à África dos escravizados,</p><p>dos quais a grande maioria não pôde retornar à sua terra de origem e, hoje, não há mais</p><p>sentido em fazê-lo, pois na África atual seriam muito mais estrangeiros do que nos países</p><p>onde nasceram.</p><p>A luta negra atual não visa o retorno, nem mesmo às remotas raízes africanas perdidas</p><p>no tempo, impossíveis de serem recuperadas. Visualiza, muito mais, a construção de novas</p><p>identidades das quais a África é parte fundamental da história, por meio de se recuperar</p><p>16</p><p>simbolicamente uma espécie de “elo perdido”, provocado por um rompimento brusco e</p><p>forçado na história desses grupos. Remontar à antiga história da África e priorizar os estudos</p><p>de sua situação atual torna-se fator significativo nesse processo, tanto quanto a recuperação</p><p>das histórias dos povos ameríndios, colocando-as em situação de igualdade, ainda que tardia,</p><p>com os estudos da história e cultura europeia.</p><p>De acordo com Alberti e Pereira, no contexto de multiplicação dos movimentos</p><p>negros no Brasil a partir da década de 70 “[...] a descoberta da África tinha uma função</p><p>importante no processo de instrumentalização do militante, tanto porque ampliava a</p><p>consciência sobre sua própria imagem, como porque abria possibilidades de ação. ” (2007,</p><p>p. 26). Não se tratava simplesmente do reconhecimento e valorização do biótipo africano,</p><p>mas de um esforço de ressignificação da identidade negra, sob a bandeira da luta e da</p><p>resistência dos movimentos negros no país. A intenção não era exatamente recuperar a África</p><p>no Brasil, mas suas imagens por meio de memórias reconfiguradas com a história dos negros</p><p>no país. Neste caso, tratava-se de uma África que somente negros brasileiros poderiam</p><p>reconhecer de fato, pois ela era muito mais simbólica do que geográfica.</p><p>O conhecimento do passado africano e dos acontecimentos recentes</p><p>envolvendo populações negras espalhadas pelo mundo teve uma função</p><p>importante no processo de construção e consolidação da identidade negra</p><p>do militante. De um lado, importava buscar uma África livre de</p><p>estereótipos, um passado que fosse motivo de orgulho para militantes,</p><p>crianças e jovens negros. Por exemplo, os antigos impérios e as modernas</p><p>cidades, como o avesso da pobreza e do atraso. ” (ALBERTI e PEREIRA,</p><p>2007, p. 47)</p><p>Reconstruir de modo ressignificado a memória da África surge então não como via</p><p>de recuperação de uma racialidade, o que parece ir na contramão das tendências</p><p>contemporâneas de discussão sobre as questões raciais, todavia, importante no campo das</p><p>significações e construções de identidades, neste caso, de uma identidade africana e</p><p>brasileira, denominada de afro-brasileira.</p><p>Conclusão:</p><p>Negros africanos vieram para o Brasil originalmente por meio da empresa</p><p>colonizadora europeia, como força de trabalho escravo. Eram provenientes de vários lugares</p><p>da África, representando grupos étnicos diversos do grande mosaico que é o continente</p><p>africano. Ainda que os primeiros africanos tenham mantido muito de suas referências étnicas</p><p>originais, conforme explica Nina Rodrigues, intentando, inclusive, o retorno à África ainda</p><p>17</p><p>que na velhice (2010, p. 107), aqueles que foram nascendo no Brasil distanciaram-se,</p><p>gradativamente, das origens dos seus antepassados. A abolição da escravatura, reivindicada</p><p>e protagonizada muito mais pelos próprios negros, não foi suficiente para reparar os danos</p><p>de séculos de escravidão, haja vista, que também não foi acompanhada de políticas sociais</p><p>favoráveis aos ex-escravos. Instaurou-se no país um sistema perverso de desigualdade social,</p><p>capaz de manter os privilégios, dominação cultural e prevalência do branco-europeu em</p><p>detrimento dos povos indígenas, em processo de extinção na época pós escravidão, e do</p><p>negro africano. O mito da democracia racial visava ilustrar uma sociedade igualitária e</p><p>ricamente formada por várias raças que harmonicamente construíam o Brasil. Os</p><p>movimentos negros e pesquisas sociológicas quantitativas comprovaram e denunciaram</p><p>como inverdade a ideia de equidade social, evidenciando que não há democracia quando uns</p><p>sobrepõem a outros em direitos, não necessariamente em deveres, principalmente tomando</p><p>como base supostas superioridades de raça.</p><p>Os movimentos negros no país surgiram e tem se desenvolvido em função dessa</p><p>situação da população negra brasileira. Suas articulações políticas e os estudos que elas</p><p>geram tem remetido para vários outros problemas implicados na questão do negro no Brasil.</p><p>Entre eles, a busca pela construção identitária do negro brasileiro, principalmente na</p><p>contemporaneidade. Outra discussão a que o assunto remete é o problema das raças,</p><p>conforme vem sendo discutido pelas ciências já há algum tempo. A questão da africanidade</p><p>é outro fator importante na construção da identidade negra, como referenciação de pertença</p><p>remota a uma África distante e simbólica, do que em forma atual de organização política e</p><p>cultural. Surge desse esforço a pessoa afro-brasileira, que requisita possuir não somente</p><p>traços fenótipos específicos, mas ser representante de uma cultura também específica, que,</p><p>todavia, somente possui sentido étnico dentro do contexto e na conjuntura histórica</p><p>brasileira.</p><p>Concluímos que a situação é extremamente complexa e não há uma única solução</p><p>possível. Qualquer solução poderá incorrer em ganhos e perdas não somente para a</p><p>população autodeclarada negra no Brasil, mas para aqueles que não se enquadram em uma</p><p>identificação racial própria, se mantivermos a discussão no incurso da existência das raças.</p><p>Uma africanização, ainda que simbólica, do negro brasileiro certamente o auxiliará na</p><p>construção de possíveis novas identidades, mas poderá também resultar em sua</p><p>estrangeirização dentro do próprio país de nascimento.</p><p>18</p><p>Concluímos que devemos tratar de modo sempre muito consequente a temática, a fim</p><p>de realmente contribuirmos para a necessária urgente transformação da realidade social</p><p>brasileira, onde negros e indígenas não sejam tratados como meras representações</p><p>simbólicas nas esferas das decisões políticas e sociais, mas protagonizem, não somente como</p><p>força de trabalho mal remunerada, o desenvolvimento do país. Certamente isto não se fará</p><p>sem lutas e resistências, como tem sido até então, mas agora no universo das possibilidades</p><p>contemporâneas.</p><p>19</p><p>Bibliografia</p><p>ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. Qual África? Significados da África para</p><p>o movimento negro no Brasil. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº 39 (janeiro-</p><p>junho), 2007.</p><p>ALBUQUERQUE, Wlamyra. A vala comum da ‘raça emancipada’”: abolição e</p><p>racialização no Brasil, breve comentário. Texto é parte de pesquisa ainda em andamento</p><p>apoiada pelo CNPq. Salvador: UFB, 2010.</p><p>______, FILHO. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-</p><p>Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.</p><p>CAMPOS, Deivison Moacir Cezar de. A ressignificação de Palmares: uma história de</p><p>resistência. In.: SILVA, Gilberto Ferreira da; SANTOS, José Antônio dos; CARNEIRO,</p><p>Luis Carlos da Cunha. (orgs) RS negro: cartografias sobre a produção do conhecimento.</p><p>Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.</p><p>CAPANEMA, Silvia. Do marinheiro João Cândido ao Almirante Negro: conflitos</p><p>memoriais na construção do herói de uma revolta centenária. In.: São Paulo: Revista</p><p>Brasileira de História, v. 31, nº 61, p. 61-84- 2011.</p><p>CARVALHO, José Jorge de. As Artes Sagradas Afro-Brasileiras e a preservação</p><p>da</p><p>Natureza. Palestra proferida no Centro de Cultura Popular em 14/12/2004.</p><p>HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A,</p><p>2005.</p><p>MACKENZIE, Caroline. Diversidade, pluralidade e identidades. In.: BLIN, Arnaud; et. al.</p><p>100 Propostas do Fórum Social Mundial. Petrópolis: Vozes, 2006.</p><p>MAIO, Marcos Chor (org.). Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil.</p><p>Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010.</p><p>RIOS, Flávia Mateus. Institucionalização do Movimento Negro no Brasil Contemporâneo.</p><p>São Paulo: USP, 2008. Dissertação de Mestrado não publicada.</p><p>RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de</p><p>Pesquisas Sociais, 2010.</p><p>SANTOS, Roberto dos. Pós-modernidade, história e representação: cultura negra e</p><p>identidade. In.: MOUSEION, vol. 3, n.5, Jan-Jul/2009.</p><p>SÉRGIO, Sergio D J; BIRCHAL, Telma S. A inexistência biológica versus a existência</p><p>social de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social? In.: REVISTA USP, São Paulo:</p><p>USP, n.68, p. 10-21, dezembro/fevereiro 2005-2006.</p><p>SILVÉRIO, Valter Roberto. O Movimento Negro e os novos contornos do debate</p><p>brasileiro sobre raça, etnia e democracia. In: VIII Congresso Luso-brasileiro de Ciências</p><p>Sociais, “A Questão Social no Novo Milênio”, Coimbra: CES, 16 a 18 de setembro de</p><p>2004.</p><p>20</p><p>TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. Sociedades Indígenas: Uma introdução ao tema</p><p>da diversidade cultural. In.: SILVA, Racy Lopes; GRUPIONE, Luiz Donizete Benzi. A</p><p>Temática Indígena na Escola., Brasília: MEC/ MARI/ UNESCO, 1995.</p><p>THOMAZ, Omar Ribeiro. A antropologia e o mundo contemporâneo: Cultura e diversidade.</p><p>In.: SILVA, Racy Lopes; GRUPIONE, Luiz Donizete Benzi. A Temática Indígena na</p><p>Escola. Brasília: MEC/ MARI/ UNESCO, 1995.</p>

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