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<p>e Porto Alegre 2000 2 Definição de psicopatologia U fenômeno é sempre biológico em suas cias dos doentes mentais têm uma dimensão pró- raízes e social em sua extensão final. Mas pria, genuína, não sendo apenas "exageros" do nós não nos devemos esquecer, também, de que, normal), e têm também, por outro lado, cone- entre esses dois, ele é mental. xões complexas com a psicologia do normal (o mundo da doença mental não é um mundo to- Jean Piaget talmente estranho ao das experiências psicoló- gicas "normais"). Campbell (1986) define a psicopatologia A psicopatologia tem boa parte de suas raí- como o ramo da ciência que trata da natureza zes na tradição médica (na obra dos grandes clí- essencial da doença mental suas causas, as nicos e alienistas do passado), que propiciou, mudanças estruturais e funcionais associadas a nos últimos dois séculos, a observação prolon- ela e suas formas de manifestação. Entretanto, gada e cuidadosa de um grande número de doen- nem todo estudo psicopatológico segue, a rigor, tes mentais. Em uma outra vertente, a psicopa- os ditames de uma ciência sensu strictu. A psi- tologia nutre-se de uma tradição humanística (a copatologia, em uma acepção mais ampla, pode filosofia, a literatura, as artes, a psicanálise) que ser definida como o conjunto de conhecimen- sempre viu na "alienação mental", no pathos tos referentes ao adoecimento mental do ser do sofrimento mental extremo, uma possibi- humano. É um conhecimento que se esforça por lidade excepcionalmente rica de reconheci- ser sistemático, elucidativo e desmistificante. mento de dimensões humanas que sem o "fe- Como conhecimento que visa ser científico, não nômeno "doença mental" permaneceriam des- inclui critérios de valor, nem aceita dogmas ou conhecidas. Apesar de se beneficiar das tra- verdades a priori. O psicopatólogo não julga dições neurológicas, psicológicas e filosófi- moralmente o seu objeto, busca apenas obser- cas, a psicopatologia não se confunde com a var, identificar e compreender os diversos ele- neurologia das chamadas funções corticais mentos da doença mental. O psicopatólogo re- superiores (não se resume, portanto, a uma jeita qualquer tipo de dogma, seja ele religioso, ciência natural dos fenômenos associados às filosófico, psicológico ou biológico; o conhe- zonas associativas do cérebro lesado), nem cimento que busca está permanentemente su- com uma hipotética psicologia das funções jeito a revisões, críticas e reformulações. mentais desviadas. A psicopatologia é uma O campo da psicopatologia inclui um gran- ciência autônoma, não é nem um prolonga- de número de fenômenos humanos especiais, mento da neurologia nem da psicologia. associados ao que se denominou historicamen- Karl Jaspers (1883-1969), um dos principais te doença mental. São vivências, estados men- autores da psicopatologia moderna, afirma que tais e padrões comportamentais que têm, por um esta é uma ciência básica, que serve de auxílio lado, uma especificidade psicológica (as vivên- à psiquiatria, que é, por sua vez, um conheci-</p><p>PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS 23 mento aplicado a uma prática profissional e so- de sua biografia, isso nunca explicará totalmente cial concreta. a vida e a obra de Van Gogh. Sempre resta algo Jaspers é muito claro em relação aos limites que transcende à psicopatologia, e, mesmo, à da psicopatologia: embora o objeto de estudo ciência, e que permanece no domínio do misté- da psicopatologia seja o homem na sua totali- rio. dade ("nosso tema é homem todo em sua en- fermidade" Jaspers, 1913), os limites da cia psicopatológica consistem precisamente em FORMA E CONTEÚDO DOS SINTOMAS que nunca se pode reduzir inteiramente ser humano a conceitos psicopatológicos. O domí- Quando se estuda os sintomas psicopatoló- nio da psicopatologia, segundo ele, estende-se gicos costuma-se enfocar dois aspectos básicos; a "todo fenômeno psíquico que se possa apre- a forma dos sintomas, isto é, sua estrutura bási- ender em conceitos de significação constantes ca, relativamente semelhante nos diversos pa- e com possibilidade de comunicação". Assim, cientes (alucinação, delírio, idéia obsessiva, la- a psicopatologia, enquanto ciência, exige um bilidade afetiva, etc.) e seu conteúdo, ou seja, pensamento rigorosamente conceitual, que seja aquilo que preenche a alteração estrutural (con- sistemático e que possa ser comunicado de modo teúdo de culpa, religioso, de perseguição, etc.). inequívoco. Na prática profissional, entretanto, O conteúdo é, geralmente, mais pessoal, depen- participam ainda opiniões instintivas, uma in- dendo da história de vida do paciente, de seu tuição pessoal que nunca se pode universo cultural e personalidade prévia ao Assim, a ciência psicopatológica é tida como adoecimento. uma das abordagens possíveis do homem men- talmente doente, mas não a única e exclusiva. Em todo indivíduo oculta-se algo que não Quadro 2.1 Temas existenciais que se pode conhecer, pois a ciência requer um pen- se expressam no conteúdo dos sintomas psicopatológicos samento conceitual sistemático, pensamento que cristaliza, que torna evidente, mas também que Temas centrais para que busca e deseja ser humano aprisiona o conhecimento. Quanto mais concei- tualiza, afirma Jaspers, "quanto mais reconhe- Sexo Alimentação Prazer ce e caracteriza o típico, que se acha de acor- Conforto físico do com os princípios, tanto mais reconhece que, em todo indivíduo, oculta-se algo que não pode Dinheiro Segurança/controle Poder sobre o outro conhecer". a psicopatologia sempre per- Prestígio de, obrigatoriamente, aspectos essenciais do ho- mem, principalmente nas dimensões existenci- ais, estéticas, éticas e metafísicas. O filósofo Gadamer (1990) afirma que, "diante de uma Quadro 2.2 Temores que obra de arte, experimentamos uma verdade ina- se expressam no conteúdo cessível por qualquer outra via; é isso que dos sintomas psicopatológicos constitui significado filosófico da arte. Da Temores centrais Formas comuns de forma que a experiência da filosofia, do ser humano lidar com tais temores também a experiência da arte incita a consciên- Morte Religião/mundo místico cia científica a reconhecer seus limites". Continuidade pelas Dito de outra forma, não se pode compreen- novas gerações der ou explicar tudo o que existe em um ho- Ter uma doença grave Vias mágicas/medicina/ mem por meio de conceitos psicopatológicos. Sofrer dor física ou moral psicologia, etc. Assim, ao se diagnosticar Van Gogh como es- Miséria quizofrênico (ou epiléptico, maníaco-depressi- Falta de sentido Relações pessoais vo, ou qualquer que seja o diagnóstico formu- existencial significativas Mundo da cultura lado), ao se fazer uma análise psicopatológica</p><p>24 PAULO DALGALARRONDO De modo geral, os conteúdos dos sinto- giosidade, etc. Esses temas representam uma mas estão relacionados aos temas centrais da espécie de "substrato" que entra como ingre- existência humana, temas como a sobrevivên- diente fundamental na constituição da expe- cia e a segurança, a sexualidade, os temores riência psicopatológica. Nesse sentido, ver os básicos (morte, doença, miséria, etc.), a reli- Quadros 2.1 e 2.2, na página 23.</p><p>3 Conceito de normalidade em psicopatologia Q ue é loucura: ser cavaleiro andante é saúde e doença mental. Estes temas têm des- ou segui-lo como escudeiro? dobramentos em várias áreas da saúde mental, De nós dois, quem louco verdadeiro? como, por exemplo, em: que, acordado, sonha doidamente? 1. Psiquiatria legal ou forense: A determi- que, mesmo vendado, nação de anormalidade psicopatológica pode ter vê o real e segue o sonho importantes implicações legais, criminais e éti- de um doido pelas bruxas embruxado? cas, podendo definir o destino social, institu- cional e legal de uma pessoa. Carlos Drummond de Andrade 2. Epidemiologia psiquiátrica: Neste caso, (Quixote e Sancho de Portinari, 1974) a definição de normalidade é tanto um proble- ma como um objeto de trabalho e pesquisa. A epidemiologia, inclusive, pode contribuir para O conceito de normalidade em psicopatolo- a discussão e o aprofundamento do conceito de gia é questão de grande controvérsia. Obvia- normalidade em saúde. mente quando se trata de casos extremos, cujas 3. Psiquiatria cultural e etnopsiquiatria: alterações comportamentais e mentais são de in- Aqui o conceito de normal é tema sumamente tensidade acentuada e longa duração, o deline- importante, de pesquisas e debates. De modo amento das fronteiras entre o normal e o pato- geral, o conceito de normalidade em psicopato- lógico não é tão problemático. Entretanto, há logia impõe a análise do contexto sociocultu- muitos casos limítrofes nos quais a delimitação ral; necessariamente exige o estudo da relação entre comportamentos e formas de sentir nor- entre o fenômeno supostamente patológico e o mais e patológicas é bastante Nesses contexto social no qual tal fenômeno emerge e casos, o conceito de normalidade em saúde recebe este ou aquele significado cultural. mental ganha especial relevância. Aliás, o pro- 4. Planejamento em saúde mental e políti- blema não é exclusivo da psicopatologia, mas cas de saúde: Nesta área, é necessário estabe- de toda a medicina; tome-se como exemplo a lecerem-se critérios de normalidade, principal- questão da delimitação dos níveis de tensão ar- mente no sentido de se verificarem as deman- terial para a determinação de hipertensão ou de das assistenciais de determinado grupo popu- glicemia, na determinação do diabete. Este pro- lacional, as necessidades de serviços, quais e blema foi brilhantemente estudado pelo filóso- quantos serviços devem ser colocados à dis- fo e médico francês Georges Canguilhem posição desse grupo, etc. (1978), cujo livro O normal e o patológico tor- 5. Orientação e capacitação profissional: nou-se indispensável nesta discussão. Por exemplo, na definição de capacidade e ade- O conceito de normalidade em psicopatolo- quação de um indivíduo para exercer certa pro- gia implica também na própria definição do que fissão, manipular máquinas, usar armas, dirigir</p><p>26 PAULO DALGALARRONDO veículos, etc. Pensemos no caso de indivíduos 3. Normalidade estatística: A normalidade com déficits cognitivos e que desejam dirigir estatística identifica norma e É um veículos, indivíduos psicóticos que querem po- conceito de normalidade que se aplica especial- der portar armas ou pessoas com crises epilép- mente a fenômenos quantitativos, com determi- ticas que manipulam máquinas perigosas, etc. nada distribuição estatística na população geral 6. Prática clínica: Não menos importante é (como peso, altura, tensão arterial, horas de a capacidade de se discriminar, no processo de sono, quantidade de sintomas ansiosos, etc.). O avaliação e intervenção clínica, se tal ou qual normal passa a ser aquilo que se observa com fenômeno é patológico ou normal, se faz parte mais Os indivíduos que se situam, de um momento existencial do indivíduo ou é estatisticamente, fora (ou no extremo) de uma algo francamente patológico. curva de distribuição normal, passam, por exem- plo, a ser considerados anormais ou doentes. É um critério muitas vezes falho em saúde geral e CRITÉRIOS DE NORMALIDADE mental, pois nem tudo o que é é ne- cessariamente "saudável", assim como nem tudo Há vários critérios de normalidade e anor- que é raro ou é patológico. Tome- malidade em medicina e em psicopatologia. A mos como exemplo fenômenos como as cáries adoção de um ou outro depende, entre outras dentárias, a presbiopia, os sintomas ansiosos e coisas, de opções filosóficas, ideológicas e prag- depressivos leves, o uso pesado de álcool, fe- máticas do profissional. Apresentam-se em se- nômenos esses que podem ser muito frequen- guida os principais critérios de normalidade uti- tes, mas que evidentemente não podem, a prio- lizados em psicopatologia: ri, ser considerados normais ou saudáveis. 1. Normalidade como ausência de doença: 4. Normalidade como bem-estar: A Orga- primeiro critério que geralmente se utiliza é nização Mundial da Saúde (OMS) definiu, em o de saúde como "ausência de sintomas, de si- 1958, a saúde como o completo bem-estar físi- nais ou de doenças". Lembremos aqui do velho co, mental e social, e não simplesmente como aforismo médico que diz: A saúde é o silêncio ausência de doença. É um conceito criticável dos Normal, do ponto de vista psico- por ser muito vasto e impreciso, pois bem-estar patológico, seria, então, aquele indivíduo que é algo difícil de se definir objetivamente. Além simplesmente não é portador de um transtor- disso, esse completo bem-estar físico, mental e no mental definido. Tal critério é bastante fa- social é tão utópico que poucas pessoas se en- lho e precário, pois, além de redundante, ba- caixariam na categoria seia-se em uma "definição negativa", ou seja, 5. Normalidade funcional: Tal conceito irá define-se a normalidade não por aquilo que assentar-se sobre aspectos funcionais e não ne- ela supostamente é, mas, sim, por aquilo que cessariamente quantitativos. O fenômeno con- ela não é, pelo que lhe falta. siderado patológico a partir do momento em que 2. Normalidade ideal: A normalidade aqui é é disfuncional, provoca sofrimento para o pró- tomada como uma certa "utopia". Estabelece-se prio indivíduo ou para seu grupo social. arbitrariamente uma norma ideal, o que é supos- 6. Normalidade como processo: Neste caso, tamente "sadio", mais "evoluído". Tal norma é, mais do que uma visão estática, consideram-se de fato, socialmente constituída e referendada. os aspectos dinâmicos do desenvolvimento Depende, portanto, de critérios socioculturais e psicossocial, das desestruturações e reestru- ideológicos arbitrários, e, no mais das vezes, turações ao longo do tempo, de crises, de mu- dogmáticos e doutrinários. Exemplos de tais danças próprias a certos períodos etários. Este conceitos de normalidade são aqueles baseados conceito é particularmente útil em psiquiatria na adaptação do indivíduo às normas morais e infantil e de adolescentes, assim como em psi- políticas de determinada sociedade (lembremos quiatria geriátrica. do macartismo nos Estados Unidos e no pseu- 7. Normalidade subjetiva: Aqui é dada maior dodiagnóstico de dissidentes políticos como ênfase à percepção subjetiva do próprio indiví- doentes mentais na antiga União Soviética). duo em relação ao seu estado de saúde, às suas</p><p>PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS 27 vivências subjetivas. O ponto falho deste crité- frimentos e limitações inerentes à condição hu- rio é que muitos indivíduos que se sentem bem, mana e, assim, desfrutar do resquício de liber- "muito saudáveis e felizes", como no caso de dade e prazer que a existência nos oferece. pessoas em fase maníaca, apresentam de fato 9. Normalidade operacional: É um critério um transtorno mental grave. assumidamente arbitrário, com finalidades prag- 8. Normalidade como liberdade: Alguns au- máticas explícitas. Define-se a priori o que é tores de orientação fenomenológica e existen- normal e o que é patológico e busca-se traba- cial propõem conceituar a doença mental como lhar operacionalmente com tais conceitos, acei- perda da liberdade existencial (Henri Ey, por tando-se as consequências de tal definição prévia. exemplo). Desta forma, a saúde mental vincu- Portanto, de modo geral, pode-se concluir lar-se-ia às possibilidades de transitar com graus que os critérios de normalidade e de doença em distintos de liberdade sobre o mundo e sobre o psicopatologia variam consideravelmente em próprio destino. A doença mental é constrangi- função dos fenômenos específicos com os quais mento do ser, é fechamento, fossilização das trabalhamos e, também, de acordo com as op- possibilidades existenciais. Dentro desse espí- ções filosóficas do profissional. Além disso, em rito, o psiquiatra gaúcho Cyro Martins afirma- alguns casos pode-se utilizar uma associação de va que a saúde mental poderia ser vista, até cer- vários critérios de normalidade ou doença, de to ponto, como a possibilidade de dispor de acordo com o objetivo que se tem em mente. "senso de realidade, senso de humor e de um De toda forma, essa é uma área da psicopatolo- sentido poético perante a vida", atributos esses gia que exige uma postura permanentemente que permitiriam ao indivíduo "relativizar" os so- crítica e reflexiva dos profissionais.</p>

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