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<p>INFÂNCIA:</p><p>FIOS E DESAFIOS DA PESQUISA</p><p>Sonia Kramer</p><p>Maria Isabel Leite (orgs.)</p><p>>></p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>SÉRIE PRÁTICA</p><p>PEDAGÓGICA</p><p>O universo da produção intelectual na área</p><p>pedagógica, no Brasil, ainda carece de material</p><p>didático que subsidie o trabalho dos professores</p><p>de ensino médio e de ensino superior no exercício</p><p>de sua atividade docente.</p><p>A Série Prática Pedagógica tem exatamente o</p><p>objetivo de oferecer a esse professor textos que</p><p>sirvam como fontes de referência para o</p><p>desenvolvimento de sua prática no contexto da</p><p>sala de aula e dos “laboratórios de pesquisa”.</p><p>Pretende-se atuar na perspectiva da formação</p><p>pedagógica do professor em suas dimensões de</p><p>consumidor e construtor do saber na área</p><p>pedagógica.</p><p>A série envolve dois conjuntos básicos de</p><p>publicações estreitamente relacionados: textos</p><p>sobre a prática do ensino e textos sobre a prática</p><p>da pesquisa. Completarão a coleção textos de</p><p>leitura sobre o ensino e a pesquisa na área</p><p>pedagógica, envolvendo tradução inédita e</p><p>reedição de textos literários.</p><p>Cada publicação contempla questões</p><p>relacionadas aos fundamentos e à prática em</p><p>diferentes áreas do saber pedagógico, no âmbito</p><p>do ensino, e em diferentes formas de investigação,</p><p>no âmbito da pesquisa.</p><p>Os autores das publicações, além de reconhecidas</p><p>contribuições na área, apresentam propostas</p><p>diferenciadas de ensino e de pesquisa e, na</p><p>medida do possível, representam diferentes</p><p>regiões do país.</p><p>Maria Rita Neto Sales Oliveira</p><p>Marli Eliza Dalmazo Afonso de André</p><p>Coordenadoras da série</p><p>SUMÁRIO</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Sonia Kramer e Maria Isabel Ferraz Pereira Leite (orgs.)</p><p>1. PESQUISANDO INFÂNCIA E EDUCAÇÃO: UM ENCONTRO</p><p>COM WALTER BENJAMIN</p><p>Sonia Kramer</p><p>2. RESSIGNIFICANDO A PSICOLOGIA DO</p><p>DESENVOLVIMENTO: UMA CONTRIBUIÇÃO CRÍTICA À</p><p>PESQUISA DA INFÂNCIA</p><p>Solange Jobim e Souza</p><p>3. INFÂNCIA E HISTÓRIA: LEITURA E ESCRITA COMO</p><p>PRÁTICAS DE NARRATIVA</p><p>Maria Luiza Magalhães Bastos Oswald</p><p>4. O QUE FALAM DE ESCOLA E SABER AS CRIANÇAS DA</p><p>ÁREA RURAL? UM DESAFIO DA PESQUISA NO CAMPO</p><p>Maria Isabel Ferraz Pereira Leite</p><p>5. A CRIANÇA E O COMPUTADOR: TRILHANDO CAMINHOS</p><p>DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO NA MODERNIDADE</p><p>Letícia Nogueira</p><p>6. ENTRELAÇAMENTO DE VOZES INFANTIS: UMA PESQUISA</p><p>FEITA NA ESCOLA PÚBLICA</p><p>Maria Angélica Pampolha Algebaile</p><p>7. CRIANÇAS E LINGUAGEM NUM CONTEXTO ESPECIAL: UM</p><p>ESTUDO ETNOGRÁFICO</p><p>Mariangela da Silva Monteiro</p><p>NOTAS</p><p>BIBLIOGRAFIA GERAL</p><p>SOBRE AS AUTORAS</p><p>OUTROS LIVROS DAS AUTORAS</p><p>REDES SOCIAIS</p><p>CRÉDITOS</p><p>CRIANÇA DESORDEIRA. Cada pedra que ela encontra,</p><p>cada flor colhida e cada borboleta capturada já é para</p><p>ela princípio de uma coleção, e tudo que ela possui, em</p><p>geral, constitui para ela uma coleção única. Nela essa</p><p>paixão mostra sua verdadeira face, o rigoroso olhar</p><p>índio, que, nos antiquários, pesquisadores, bibliômanos,</p><p>só continua ainda a arder turvado e maníaco. Mal entra</p><p>na vida, ela é caçador. Caça os espíritos cujo rastro</p><p>fareja nas coisas; entre espíritos e coisas ela gasta anos,</p><p>nos quais seu campo de visão permanece livre de seres</p><p>humanos. Para ela tudo se passa como em sonhos: ela</p><p>não conhece nada de permanente; tudo lhe acontece,</p><p>pensa ela, vai-lhe de encontro, atropela-a. Seus sonhos</p><p>de nômade são horas na floresta do sonho. De lá ela</p><p>arrasta a presa para casa, para limpá-la, fixá-la,</p><p>desenfeitiçá-la. Suas gavetas têm de tornar-se casa de</p><p>armas e zoológico, museu criminal e cripta. “Arrumar”</p><p>significaria aniquilar...</p><p>Walter Benjamin</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>Apresentar este livro significa, de alguma maneira, contar uma</p><p>história. Tudo começou em dezembro de 1994, ou melhor, tudo ficou</p><p>mais claro em dezembro de 1994. Rio de Janeiro, muito calor, vésperas</p><p>de Natal. Sonia Kramer reuniu algumas de suas orientandas de mestrado</p><p>para um último encontro acadêmico onde poderiam trocar suas</p><p>experiências e ansiedades, planejar o ritmo das férias, traçar metas,</p><p>discutir questões. Interessante ouvir o outro, ajuda a diminuir a sensação</p><p>de solidão que, muitas vezes, nos invade durante o percurso de</p><p>dissertação ou de tese... E foi aí que as coisas ficaram mais claras. Nas</p><p>vozes de cada orientanda, brotando de suas pesquisas em andamento,</p><p>um ponto muito forte em comum: todas pesquisavam a infância.</p><p>Desse grupo, Maria Isabel Leite e Letícia Nogueira instigaram-se a</p><p>intensificar essa troca. Não só estudavam a infância como, mais do que</p><p>isso, tinham as crianças como depoentes privilegiados em suas</p><p>pesquisas. Foram, então, apresentadas por Sonia a Maria Angélica</p><p>Algebaile e Mariangela Monteiro. Foi esse grupo de quatro que</p><p>começou a se encontrar regularmente e, como contadoras de histórias</p><p>em volta do fogo quente, a tecer a substância viva de seus próprios</p><p>textos. Apoiado por Sonia, o grupo ganha força e peso. As discussões</p><p>ampliam-se e as mestrandas vão pouco a pouco defendendo suas</p><p>dissertações.</p><p>Mas, se as discussões foram ricas para elas próprias, poderiam ser</p><p>mais ainda se ampliassem esse auditório social. O projeto do livro ia</p><p>ganhando força. Solange Jobim e Souza, orientadora de Mariangela e</p><p>parceira de Sonia há tantos anos, foi marcante nos estudos das outras</p><p>três e, por isso, convidá-la a participar de um projeto que, a essa altura,</p><p>deixava de ser puro sonho foi o caminho natural.</p><p>Pesquisávamos a infância. Destacávamos a importância da voz.</p><p>Recorríamos em nossos textos a autores comuns, especialmente</p><p>Bakhtin, Benjamin e Vygotsky. Conhecendo Maria Luiza Oswald,</p><p>sabíamos o quanto ela agregaria aspectos e reflexões importantes ao</p><p>nosso projeto.</p><p>Então, passo a passo, foi se delineando a possibilidade de</p><p>transformar concretamente um projeto artesanal, rico de histórias, num</p><p>livro que, circulando, sendo lido, debatido e criticado, faria crescer</p><p>todas nós e, em especial, o debate da infância e da pesquisa. Pensar no</p><p>livro como um todo orgânico que, simultaneamente, não perdesse a</p><p>singularidade de suas partes foi o desafio. Desafio que perpassava desde</p><p>o título, a ordem dos textos até a bibliografia – afinal, conteúdo e forma</p><p>são indissociáveis.</p><p>Começamos com o texto de Sonia Kramer – Pesquisando infância</p><p>e educação: Um encontro com Walter Benjamin – um panorama destes</p><p>tantos caminhos percorridos na pesquisa em educação. Visitar esta</p><p>trajetória possibilita que o leitor compreenda melhor o que germinou a</p><p>discussão inicial deste livro – estamos em processo; não há uma nova</p><p>verdade proposta para suplantar uma verdade anterior já superada.</p><p>Buscamos fios na história e construímos um novo caminho para a</p><p>pesquisa, sempre passível de novas leituras e reinterpretações.</p><p>Solange Jobim e Souza, em Ressignificando a psicologia do</p><p>desenvolvimento: Uma contribuição crítica à pesquisa da infância,</p><p>lança um olhar mais detido na Psicologia, possibilitando um repensar</p><p>crítico dessa relação com a educação. Sua escrita abre mais portas de</p><p>entendimento ao leitor, instrumentalizando-o a refletir sobre questões</p><p>que se colocarão em textos adiante, fundamentais para se repensar o</p><p>tema do desenvolvimento infantil.</p><p>Como que completando uma trilogia de textos constituídos de</p><p>reflexões e indagações, Maria Luiza Oswald – Infância e história:</p><p>Leitura e escrita como práticas de narrativa – convida o leitor a com</p><p>ela mergulhar em sua própria identidade de leitor, a ver-se leitor e</p><p>escritor. Passeando pelas diversas teorias, esse texto dará subsídios</p><p>importantes ao leitor, instigando-o a refletir sobre suas ações cotidianas</p><p>com a criança e com a leitura/escrita.</p><p>Os três primeiros textos são, então, uma espécie de trama na qual se</p><p>estruturaram teoricamente os quatro seguintes. A organicidade do livro</p><p>se faz presente na medida em que os aspectos teóricos desenvolvidos</p><p>nesses textos serão invocados pelos demais, porém, sem</p><p>aprofundamento – as autoras que se seguem vão privilegiar as histórias</p><p>vividas e discutidas em suas pesquisas.</p><p>Maria Isabel Leite foi a campo – literalmente. Em O que falam de</p><p>escola e saber as crianças da área rural? Um desafio da pesquisa no</p><p>campo traz ao leitor um texto marcado pela presença das crianças da</p><p>roça, seu jeito de pensar e de ver o mundo. Surpreende-se com a</p><p>“verdade” emerge não no estabelecimento de uma</p><p>psicologia universal, tal como Piaget pretendia, mas na compreensão do</p><p>quanto uma teoria revela a estrutura de sua própria sociedade. No caso</p><p>da teoria de Piaget, é inegável que seus testes representam um indicador</p><p>eficiente do modo pelo qual uma criança funciona cognitivamente, de</p><p>acordo com as exigências e expectativas da racionalidade ocidental.</p><p>Sintetizando essa discussão, é necessário destacar que a</p><p>característica marcante das teorias do desenvolvimento, do século XIX</p><p>em diante, é se constituírem como saberes que engendram conceitos</p><p>universalizantes e abordagens teleológicas que demarcam a natureza e o</p><p>lugar social dos sujeitos, segundo estágios ou etapas unidirecionais de</p><p>desenvolvimento, ou segundo sua idade cronológica. Assim sendo, a</p><p>concepção de tempo linear, cumulativo, homogêneo e vazio, apontando</p><p>sempre para seu desdobramento inexorável no futuro, parece se</p><p>constituir no alicerce ideológico mais importante para as concepções de</p><p>desenvolvimento baseadas nos princípios ditos ontogenéticos. Com base</p><p>no anteriormente exposto, a infância pressupõe um tempo de mudanças</p><p>e de instabilidade em contraste com um tempo de estabilidade e</p><p>maturidade. Supõe-se, assim, que a infância deve ser vista como mero</p><p>estado de passagem, precário e efêmero, que caminha para sua</p><p>resolução posterior na idade adulta, por meio da acumulação de</p><p>experiências e conhecimento. A linearidade do tempo cronológico</p><p>autoriza uma compreensão da infância que lhe atribui uma qualidade de</p><p>menoridade e, consequentemente, sua relativa desqualificação como</p><p>estado transitório, inacabado e imperfeito. Essa concepção vai marcar</p><p>de forma profunda a compreensão do que é ser criança nas sociedades</p><p>complexas modernas, definindo padrões de normalidade e deficiência,</p><p>além de legitimar todo tipo de tratamento infligido sobre as crianças</p><p>pelos “especialistas” (Castro 1992; 1994).</p><p>O que podemos concluir de tudo isso é que de fato a psicologia do</p><p>desenvolvimento nos habituou a pensar a criança na perspectiva de um</p><p>organismo em formação, que se desenvolve por etapas, segundo uma</p><p>dada cronologia, e que, além disso, fragmenta a criança em áreas ou</p><p>setores de desenvolvimento (cognitivo, afetivo, social, motor,</p><p>linguístico...) de acordo com a ênfase dada a essas áreas por cada teoria</p><p>específica. Mas, diz-nos Perrotti (1986, p. 14),</p><p>se não podemos deixar de concordar que a criança é um dado etário, natural, não</p><p>podemos esquecer também que este dado está imerso na História e,</p><p>conseqüentemente, é em relação à História que este etário se define. Se é verdade,</p><p>ao menos em princípio, que todas as crianças crescem, é verdade também que a</p><p>direção desse crescimento estará em relação constante com o ambiente</p><p>sociocultural.</p><p>Entretanto, o que se evidencia com frequência é que a criança,</p><p>jamais vista por inteiro, como membro de uma classe social situada</p><p>histórica, social e culturalmente, é seccionada em infinitos</p><p>comportamentos e/ou habilidades. Esses comportamentos, mesmo</p><p>sendo reunidos posteriormente por meio de uma articulação teórica</p><p>abstrata, não conseguem resgatar o lugar social da criança como um ser</p><p>que interage com a história do seu tempo, modificando-a ao mesmo</p><p>tempo em que é modificada por ela.</p><p>Com isso, acabamos nos convencendo de que a criança é uma</p><p>categoria desvinculada do social, impermeável às relações de classe,</p><p>apenas um organismo em processo de socialização. Pensar a criança</p><p>nessa dimensão faz com que nossa relação com ela seja marcada por</p><p>uma concepção adultocêntrica, inviabilizando o verdadeiro diálogo com</p><p>ela, ou seja, aquele diálogo em que ela nos mostra os espaços sociais e</p><p>culturais de onde emergem a sua voz e o seu desejo. Enfim, nessa</p><p>perspectiva, a criança não é vista como um sujeito na e da história</p><p>(Jobim e Souza 1994).</p><p>A racionalização da infância</p><p>O que pode ser criticado com base nessas abordagens é que as</p><p>teorias do desenvolvimento humano têm fornecido os elementos</p><p>necessários para a legitimação “científica” de um crescente processo de</p><p>racionalização e institucionalização da infância e da adolescência.</p><p>Assim sendo, a psicologia do desenvolvimento e suas teorias engrossam</p><p>o arsenal teórico-científico que oferece os subsídios indispensáveis para</p><p>a regulação social e disciplinar do curso de vida. Com isso, ela constrói</p><p>uma compreensão das capacidades humanas de acordo com uma certa</p><p>visão da experiência da criança e de sua competência, que está,</p><p>inexoravelmente, a serviço das imposições de uma racionalidade técnica</p><p>que predomina no mundo moderno ocidental. A psicologia do</p><p>desenvolvimento é modeladora das formas específicas de subjetividade,</p><p>cuja matriz é a situação histórica e social do homem moderno, submerso</p><p>nas exigências de um ideal de sujeito produtivo e consumidor (Jobim e</p><p>Souza 1994). Nessa vertente, concordamos com os autores (Buck-Morss</p><p>1987; Broughton 1987; Vonèche 1987) que afirmam que não é por</p><p>acaso que as formas particulares de educação infantil estejam</p><p>organizadas de acordo com as exigências específicas do mundo do</p><p>trabalho. O caráter universal e cíclico da divisão social do trabalho</p><p>penetra as diferentes organizações institucionais que participam da vida</p><p>dos cidadãos, inserindo-se no âmago da vida privada, transformando as</p><p>relações no interior da família e reconduzindo-as a outros modos de</p><p>ligações socioafetivas. Uma vez mais a psicologia do desenvolvimento</p><p>entra em cena – ora como reguladora disciplinar da trajetória de vida,</p><p>ora como legitimadora dos hábitos que formam o perfil psicológico do</p><p>futuro consumidor.</p><p>O que pode ser constatado pela análise apresentada é que a</p><p>psicologia do desenvolvimento vem se constituindo, principalmente,</p><p>com base em um investimento sistemático na produção de técnicas de</p><p>intervenção da realidade, fornecendo um instrumental teórico e prático</p><p>que funcionou e ainda funciona a serviço das necessidades da sociedade</p><p>atual de submeter o homem ao mais estrito controle, adaptando-o a uma</p><p>sociedade regulada e planificada pelas regras do consumo do mundo</p><p>pós-industrial (Jobim e Souza 1994).</p><p>Será que o futuro da psicologia do desenvolvimento se reduz ao</p><p>funesto destino de sempre se identificar com os instrumentos de</p><p>dominação e controle social? Não necessariamente, mas para isso é</p><p>necessário que ela construa uma nova identidade em direção a uma</p><p>outra forma de produzir conhecimento que devolva ao homem sua</p><p>condição de sujeito e de, portanto, ser capaz de questionar e transformar</p><p>as estruturas de “saber-poder” que o oprimem. Mas como isso é</p><p>possível?</p><p>Uma abordagem nova para as questões do desenvolvimento requer,</p><p>certamente, outros paradigmas teóricos e uma metodologia que permita</p><p>des-construir as concepções teóricas que nos levam a impasses práticos</p><p>diante de questões do desenvolvimento humano que estamos nos</p><p>propondo a desvendar. Por tudo que foi dito até aqui, podemos afirmar a</p><p>necessidade de assumirmos a tarefa de adotar um enfoque que caminhe</p><p>simultaneamente em duas direções. A primeira direção seria redefinir a</p><p>questão da temporalidade humana. A racionalidade capitalista despreza</p><p>completamente o tempo dos homens; tempo total, integral, simultâneo;</p><p>passado, presente e futuro fundidos em instantes de plenitude. A</p><p>fragmentação dos homens em tempos estanques (infância – maturidade</p><p>– velhice) trata o tempo humano como se este não fosse uma coisa total,</p><p>unitária, simultânea. Perrotti (1986) afirma que desse modo é criado um</p><p>descompasso temporal que impossibilita qualquer integração da</p><p>experiência total vivida pelas pessoas, já que a realidade temporal do</p><p>sistema (externa) se impõe à realidade temporal humana (interna), sem</p><p>a menor consideração pelas características desta (p. 20).</p><p>A segunda direção é, pois, resgatar no homem contemporâneo o seu</p><p>caráter de sujeito social, histórico e cultural. Ser sujeito é colocar-se</p><p>como autor das transformações sociais. Uma vez que a linguagem é o</p><p>que caracteriza e marca o homem, trata-se de restaurar no interior da</p><p>psicologia do desenvolvimento o lugar social dessa linguagem na</p><p>constituição do</p><p>sujeito e das próprias teorias que falam a respeito desse</p><p>sujeito que fala. A linguagem é o local de produção de sentidos e o</p><p>ponto para o qual jogo, criatividade e pensamento crítico convergem.</p><p>Portanto, o sentido plural da palavra é o caminho para o resgate</p><p>daquilo que no homem é sujeito, no qual ele não se anula nem se desfaz.</p><p>Daí propormos um encontro com a linguagem e as possibilidades</p><p>lúdicas que ela oferece como o caminho para uma outra compreensão</p><p>do desenvolvimento integral da criança.</p><p>Enfatizar a linguagem e o lúdico como expressões do</p><p>desenvolvimento da criança é também buscar um caminho conceitual e</p><p>metodológico que permita tirar a psicologia do desenvolvimento do</p><p>“seu beco sem saída”, superando as correntes de desenvolvimento que</p><p>trabalham na perspectiva do progresso e da evolução linear do sujeito</p><p>humano.</p><p>O lúdico e a linguagem no desenvolvimento da criança</p><p>“O lúdico não é regulável, mensurável nem objetivável. Toda a</p><p>tentativa de subordiná-lo ao tempo de produção provoca a sua morte...</p><p>O lúdico, dentro do mecanismo do sistema, é a sua negação. Daí o</p><p>lúdico identificar-se com a criança” (Perrotti 1986). Quando a criança</p><p>lida com a linguagem de forma lúdica, ela rompe com as formas</p><p>fossilizadas e cristalizadas de seu uso cotidiano. Dessa forma, podemos</p><p>dizer que as crianças usam a linguagem para protestar contra os limites</p><p>da realidade, transgredindo-a, ao mesmo tempo em que protegem a</p><p>realidade contra a tirania da linguagem. Nas brincadeiras, as crianças</p><p>estão em cumplicidade com os objetos, salvando-os de serem</p><p>consumidos pelo conceito (Buck-Morss 1987; Jobim e Souza 1994).</p><p>A criança que está atrás da cortina torna-se ela mesma algo ondulante e branco, um</p><p>fantasma. A mesa de refeições sob a qual ela se acocorocou a faz tornar ídolo de</p><p>madeira do templo onde as pernas entalhadas são as quatro colunas. E atrás de uma</p><p>porta ela própria é porta, está revestida dela como de pesada máscara e, como</p><p>mago-sacerdote, enfeitiçará todos os que entram sem pressentir nada. (Benjamin</p><p>1987, p. 39)</p><p>É que as crianças... sentem-se irresistivelmente atraídas pelos destroços que</p><p>surgem da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate</p><p>ou do marceneiro. Nestes restos que sobram elas reconhecem o rosto que o mundo</p><p>das coisas volta exatamente para elas, e só para elas. Nestes restos elas estão</p><p>menos empenhadas em imitar as obras dos adultos do que em estabelecer entre os</p><p>mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma</p><p>nova e incoerente relação. Com isso as crianças formam seu próprio mundo de</p><p>coisas, mundo pequeno inserido em um maior. (Benjamin 1984a, p. 77)</p><p>Esses fragmentos nos permitem uma aproximação maior com a</p><p>necessidade que a criança tem de brincar com a realidade e construir um</p><p>universo particular, dando outra significação ao cotidiano, incorporando</p><p>às suas vivências uma mística que enfatiza sua sensibilidade pelo</p><p>mundo material.</p><p>A criança está sempre pronta para criar outros sentidos para os</p><p>objetos que possuem significados fixados pela cultura dominante,</p><p>ultrapassando o sentido único que as coisas novas tendem a adquirir.</p><p>Sendo capaz de denunciar o novo no contexto do sempre igual, ela</p><p>desmascara o fetiche das relações de produção e consumo. A criança</p><p>conhece o mundo enquanto cria, e, ao criar o mundo, ela nos revela a</p><p>verdade sempre provisória da realidade em que se encontra.</p><p>Construindo seu universo particular no interior de um universo maior</p><p>reificado, ela é capaz de resgatar uma compreensão polifônica do</p><p>mundo, devolvendo, por meio do jogo que estabelece na relação com os</p><p>outros e com as coisas, os múltiplos sentidos que a realidade física e</p><p>social pode adquirir (Jobim e Souza 1994).</p><p>Mas como entender o papel do jogo ou da brincadeira lúdica no</p><p>desenvolvimento da criança?</p><p>Na infância, a imaginação, a fantasia, o brinquedo não são</p><p>atividades que podem se caracterizar apenas pelo prazer que</p><p>proporcionam. Para a criança, o brinquedo é uma necessidade</p><p>(Vygotsky 1984). Se observamos uma criança pequena em suas</p><p>atividades, percebemos o quanto ela busca a satisfação de seus desejos</p><p>imediatamente. Entretanto, é na fase pré-escolar que ela começa a sentir</p><p>as primeiras restrições aos seus desejos e tendências que não podem ser</p><p>realizados de imediato. A tensão que a criança enfrenta entre o seu</p><p>desejo e o fato objetivo de não poder ter tudo o que quer faz com que a</p><p>imaginação entre em cena. A imaginação é um processo novo que surge</p><p>como mediador do conflito entre o desejo e a frustração com que depara</p><p>a criança por não poder concretizá-lo. O jogo lúdico é a imaginação da</p><p>criança agindo no mundo. Contudo, é importante destacar, ao contrário</p><p>do senso comum, que imaginação e realidade não são processos</p><p>antagônicos. Observando as brincadeiras infantis, podemos, mais</p><p>facilmente, compreender a articulação entre fantasia e realidade.</p><p>Vygotsky (1984) ajuda-nos a sistematizar o que podemos constatar</p><p>observando os jogos infantis. Para esse autor, não existe brinquedo sem</p><p>regras, pois qualquer situação imaginária requer uma compreensão de</p><p>regras em diferentes níveis. O que na vida real passa despercebido pela</p><p>criança (por não ser capaz de explicitar de forma consciente) torna-se</p><p>para ela uma regra de comportamento no jogo do faz de conta. Em</p><p>outras palavras, a criança que brinca de mãe e filha, de ser professora,</p><p>tia, avó ou irmã assume na brincadeira regras de comportamento e</p><p>mostra, além da sua compreensão dos papéis sociais, como domina na</p><p>ação as regras do convívio social. Ser mãe ou filha, avó ou tia exige</p><p>comportamentos específicos e estes emergem na brincadeira do faz de</p><p>conta de forma exemplar.</p><p>Mas é bom lembrarmos que o jogo lúdico é o resultado de um</p><p>processo de desenvolvimento, e, portanto, antes mesmo de a criança</p><p>mostrar como seus desejos se manifestam no jogo do faz de conta, é</p><p>importante entendermos como se articula na ação (a brincadeira</p><p>propriamente) o significado que ela confere ao jogo.</p><p>Se observamos o bebê, constatamos que suas ações são limitadas</p><p>por restrições situacionais. Quer dizer, os objetos ditam à criança o que</p><p>ela pode fazer, ou seja, os objetos têm uma força motivadora inerente.</p><p>Por exemplo, um chocalho pode ser sacudido, jogado ao chão, colocado</p><p>na boca. Uma porta serve para abrir e fechar, assim como uma caixa etc.</p><p>A mera percepção é um estímulo para a atividade da criança pequena,</p><p>gera uma reação motora.</p><p>À medida que a criança cresce, os objetos vão perdendo sua força</p><p>determinadora, ou seja, a criança vê o objeto, mas age diferente em</p><p>relação ao que vê, isso porque na brincadeira a criança aprende a agir</p><p>numa esfera cognitiva, em vez da esfera visual externa, como</p><p>anteriormente. Numa fase posterior, a criança é orientada por</p><p>motivações e tendências internas e não mais pelos incentivos fornecidos</p><p>pelos objetos externos. Isso quer dizer que, na idade pré-escolar, como</p><p>consequência do desenvolvimento, ocorre uma divergência entre os</p><p>campos do significado e da percepção. O processo se inverte e a ação</p><p>não mais surge pela imposição das coisas, mas das ideias da criança.</p><p>Portanto, a ação regida por regras começa a ser determinada pelas</p><p>ideias, e não pelos objetos. O jogo lúdico opera uma ruptura entre a</p><p>realidade e a percepção da realidade, fazendo com que a imaginação</p><p>entre em cena.</p><p>Comparando o bebê com a criança pré-escolar, podemos dizer que,</p><p>no mundo do bebê, o objeto tem uma predominância e conduz o seu</p><p>comportamento. Já com a criança pré-escolar os objetos são deslocados</p><p>de uma posição dominante para uma posição subordinada. Nesse</p><p>momento, a linguagem, principal conquista dessa fase, começa a se</p><p>evidenciar, colocando o significado das coisas como palco principal de</p><p>suas atenções. Portanto, a criação de uma situação imaginária não é algo</p><p>fortuito na vida da criança; ao contrário, é a primeira manifestação da</p><p>emancipação da criança em relação às restrições situacionais (Vygotsky</p><p>1984).</p><p>Sem dúvida, podemos afirmar que a imaginação é um jogo de</p><p>linguagem. Elias Canetti (1989) ilustra muito bem esse</p><p>fato numa</p><p>passagem autobiográfica de sua infância, em que a atividade criadora da</p><p>linguagem se revela em sua narrativa.</p><p>Em casa eu costumava brincar sozinho no quarto das crianças. Na verdade,</p><p>brincava pouco, pois me dedicava a falar com o papel de parede. O padrão do</p><p>papel de parede, com muitos círculos escuros, me parecia gente. Inventava</p><p>histórias em que eles intervinham, ou lhes contava histórias, ou brincava com eles;</p><p>nunca me cansava das pessoas do papel de parede, e podia me distrair com elas</p><p>durante horas. (...) Quando os pequenos estavam por perto, eu só sussurrava com</p><p>as pessoas do papel de parede; se a governanta estava presente, contava as histórias</p><p>para mim mesmo, sequer movendo os lábios. Mas quando saíam do quarto, eu</p><p>esperava um pouco e então me abandonava. Logo começava a animação, que era</p><p>grande, pois tentava persuadir os personagens do papel de parede a empreender</p><p>feitos heróicos, manifestando-lhes meu desagrado quando recusavam. Eu os</p><p>incitava, os insultava, sentia um certo medo de estar a sós com eles, mas tudo eu</p><p>atribuía a eles, de maneira que eram eles os covardes. Mas eles também me</p><p>acompanhavam nos jogos e tinham a oportunidade de se manifestar. Havia um</p><p>círculo, num lugar especialmente vistoso, que me retrucava com eloqüência</p><p>própria, e não era uma vitória nada desprezível quando conseguia convencê-lo. (p.</p><p>48)</p><p>Nesse fragmento literário, fica um belo registro de como a</p><p>linguagem, no brinquedo, significa sempre necessidade de libertação e</p><p>criação. Se é no real que a criança procura os elementos constitutivos de</p><p>sua imaginação, suas histórias, embora fantasias, não deixam de ser</p><p>expressão de uma realidade possível. A imaginação da criança trabalha</p><p>subvertendo a ordem estabelecida, pois, impulsionada pelo desejo, ela</p><p>está sempre pronta para mostrar uma outra possibilidade de apreensão</p><p>das coisas do mundo e da vida. Entretanto, é de se ressaltar que, nesse</p><p>jogo lúdico que acabamos de citar, transparece uma situação, à primeira</p><p>vista no mínimo paradoxal. Se, por um lado, quando brinca a criança</p><p>segue o caminho do prazer, por outro, ela também se vê obrigada a</p><p>subordinar-se às regras, renunciando ao seu desejo. Sujeitar-se às regras,</p><p>renunciando à ação impulsiva, constitui o caminho para o prazer no</p><p>brinquedo. Isso quer dizer que o brinquedo cria uma nova forma de</p><p>desejos e ensina a criança a desejar, relacionando-se de forma fictícia</p><p>com a realidade. Com isso ela cria vários “eus” fictícios e os</p><p>experimenta no jogo de papéis. Suas ações durante a brincadeira</p><p>dependem dos significados que ela confere aos diferentes personagens</p><p>no jogo do faz de conta. Dessa forma, podemos dizer que o brincar na</p><p>idade pré-escolar contribui com a principal contradição para o</p><p>desenvolvimento. Vejamos por quê.</p><p>No dia a dia, o comportamento da criança é predominantemente</p><p>conduzido por atividades práticas, ou seja, as ações dominam a vida</p><p>prática. Por exemplo, a criança acorda, lava o rosto e escova os dentes,</p><p>toma café da manhã, vai para escola, almoça etc. No entanto, quando a</p><p>criança brinca, ela inverte esse processo e faz com que suas ações</p><p>fiquem subordinadas ao significado. Seu comportamento passa a</p><p>depender, assim, de operações baseadas em significados. Por exemplo, a</p><p>criança que corre mexendo com os braços para cima e para baixo,</p><p>imitando um pássaro, na verdade prioriza nessa ação o significado do</p><p>que é ser um pássaro. Se bate com os pés no chão imitando um cavalo,</p><p>novamente o significado é o que determina a sua ação. Portanto, a</p><p>principal contribuição da brincadeira no desenvolvimento da criança é a</p><p>criação de uma nova relação entre o campo do significado e o campo da</p><p>percepção visual. Assim sendo, quando a criança brinca, ela</p><p>normalmente mostra no jogo um comportamento mais sofisticado do</p><p>que aquele que ela, normalmente, apresenta na vida diária. No jogo, a</p><p>criança demonstra a consciência que possui das regras e dos valores de</p><p>convívio com a realidade. Porém, mais do que se conformar e</p><p>reproduzir essas regras, a criança reelabora-as criativamente,</p><p>combinando-as entre si e edificando com elas novas possibilidades de</p><p>interpretação e representação do real. Vygotsky (1984) chamou de zona</p><p>de desenvolvimento proximal todo o comportamento que a criança</p><p>apresenta no jogo, mas que raramente transparece na vida diária. Esses</p><p>comportamentos são a base da construção dos valores éticos, morais,</p><p>afetivos e cognitivos que, posteriormente, vão compor suas</p><p>possibilidades de subjetivação diante do contexto social e cultural em</p><p>que vive. Discutir e analisar o desenvolvimento integral da criança,</p><p>tendo a linguagem e o jogo lúdico como parâmetros fundamentais, é</p><p>propor uma outra forma de enfrentar e superar as limitações da</p><p>psicologia do desenvolvimento, possibilitando, assim, a construção de</p><p>uma nova visibilidade para os problemas que essa área enfrenta no</p><p>momento. Essa nova possibilidade talvez possa encontrar sua expressão</p><p>maior na relação entre a experiência estética e o desenvolvimento</p><p>humano.</p><p>Experiência estética e desenvolvimento</p><p>As teorias do desenvolvimento sempre estiveram muito mais</p><p>preocupadas em equacionar as questões do desenvolvimento com as</p><p>experiências racionais ou lógicas da criança do que propriamente com</p><p>suas experiências estéticas. Mas o que é uma experiência estética</p><p>comparada a uma experiência racional? A experiência estética é a</p><p>criação de uma possibilidade utópica de questionamento da realidade</p><p>existente, ou o desejo de construir um mundo melhor por intermédio do</p><p>trabalho artístico. O trabalho artístico estabelece uma relação de tensão</p><p>entre o mundo da experiência e a ordem estética, gerando por meio</p><p>desse esforço a forma estética. A coerência interna da composição</p><p>estética é alcançada pela articulação dos antagonismos entre ideia e</p><p>realidade (Buck-Morss 1987).</p><p>A experiência racional, por sua vez, é a insistência do mundo</p><p>externo impondo sua estrutura e seu modo de funcionamento sobre a</p><p>consciência dos indivíduos, fazendo com que os sujeitos se adaptem à</p><p>realidade sem a preocupação de transformá-la. O jogo e a brincadeira</p><p>podem ser compreendidos tanto como uma experiência estética quanto</p><p>como uma experiência racional.</p><p>Piaget entende o jogo como uma experiência racional. Isso significa</p><p>que o jogo é simplesmente a predominância da assimilação sobre a</p><p>acomodação, posto que, ao invés de a criança subverter a realidade, é a</p><p>realidade que constrange a criança, impondo-se a ela. O prazer que a</p><p>criança atinge com o jogo é libertar-se dos conflitos cognitivos e atingir</p><p>o domínio sobre a realidade em níveis de sofisticação cada vez mais</p><p>elevados. Portanto, jogo, na perspectiva piagetiana, é “prática” e</p><p>“repetição”; sua distinção da atividade séria é uma questão apenas de</p><p>grau (Buck-Morss 1987).</p><p>Se estamos convencidos de que a criança é capaz de pensar não</p><p>meramente no interior dos sistemas cognitivo e social existentes, mas</p><p>além deles ou mesmo contra eles, então o jogo como experiência</p><p>estética pode ser tão ou mais relevante que as noções de Piaget para</p><p>uma teoria do desenvolvimento humano integral. Com isso, o que se</p><p>propõe é uma mudança de ênfase: estimular na criança a habilidade de</p><p>tolerar a ambivalência, mais do que enfatizar a habilidade para sintetizar</p><p>contradições. Trabalhar na perspectiva da ambivalência como incentivo</p><p>ao processo de desenvolvimento é correr o risco de se confrontar com a</p><p>criação de algo inteiramente novo. É, portanto, falar de</p><p>desenvolvimento como liberdade. É ousar ir ao encontro da linguagem</p><p>como expressão criativa do ser, onde o sujeito não se anula nem se</p><p>desfaz.</p><p>3</p><p>INFÂNCIA E HISTÓRIA: LEITURA E ESCRITA</p><p>COMO PRÁTICAS DE NARRATIVA</p><p>Maria Luiza Magalhães Bastos Oswald[20]</p><p>Quem possui uma cultura própria e se exprime através</p><p>dela, é livre e rico.</p><p>Pier Paolo Pasolini</p><p>O objetivo deste artigo é apontar a relação entre as teorias do</p><p>conhecimento e as práticas pedagógicas de leitura e de escrita dirigidas</p><p>à infância.</p><p>Minha intenção com isso é trazer contribuições para que a escola</p><p>possa rever a lógica instrumental que está implícita a essas práticas,</p><p>a</p><p>qual, impondo à criança ler e escrever “para ser alguém no futuro”,</p><p>impede-a de desfrutar, aqui e agora, as dimensões estética, ética e</p><p>política desses atos.</p><p>O caráter de produtividade de que a leitura e a escrita se revestem</p><p>na sala de aula é incoerente com a concepção de criança como sujeito</p><p>social imerso na cultura que desponta, a exemplo dos artigos presentes</p><p>neste livro, como eixo fundamental de uma linha de investigação que</p><p>vem permitindo ao campo da educação entender a infância, esteja ela na</p><p>creche, na pré-escola ou no ensino fundamental como protagonista viva</p><p>da história, da sociedade e da cultura.</p><p>De acordo com o objetivo do artigo, as práticas pedagógicas de</p><p>leitura e escrita serão analisadas relativamente às teorias do</p><p>conhecimento empirista, interacionista-construtivista e</p><p>sociointeracionista (Oswald 1989). Em seguida, essas práticas serão</p><p>abordadas do ponto de vista de uma teoria crítica da cultura.</p><p>Teorias do conhecimento e a criança: Implicações para as</p><p>práticas pedagógicas de leitura e escrita</p><p>Teoria empirista</p><p>De acordo com essa teoria, o desenvolvimento, identificado como</p><p>comportamento, deriva da ação causal exercida pelos objetos exteriores</p><p>sobre os mecanismos nervosos e cerebrais. Dentro desse enfoque, a</p><p>criança é um ser passivo; o conhecimento se dá pela absorção do meio;</p><p>a aprendizagem supõe o treino, a repetição, a memorização; a</p><p>linguagem é concebida como comportamento verbal, sendo a escrita</p><p>mera atividade motora que deriva da associação dos estímulos sonoro-</p><p>auditivos; a avaliação baseia-se no modelo de escrita “correto” do ponto</p><p>de vista do adulto.</p><p>Essa abordagem do desenvolvimento infantil que continua</p><p>informando as práticas escolares expulsa da sala de aula o diálogo, as</p><p>negociações, e alimenta relações entre professor e alunos que se pautam</p><p>nas disposições de dominação e submissão. O professor exerce a</p><p>dominação sobre a criança, submetendo-a a padrões preestabelecidos</p><p>que não levam em conta as singularidades cognitivas, linguísticas,</p><p>sociais, culturais e afetivas das crianças. Na medida em que elas não</p><p>correspondem a esses padrões, elas são estigmatizadas. É o que</p><p>acontece, comumente, com as crianças das classes populares: como</p><p>fogem aos padrões previstos, elas são rotuladas como social e</p><p>culturalmente privadas. Essa marca vai funcionar como um</p><p>contramodelo de comportamento: as crianças têm que abdicar de suas</p><p>maneiras de ser e de se expressar e adotar as condutas estereotipadas</p><p>que a escola exige.</p><p>Com relação às práticas de escrita, de acordo com essa abordagem</p><p>que concebe a linguagem como comportamento verbal, elas se voltarão</p><p>ao desenvolvimento da prontidão, no caso das crianças que ainda não</p><p>escrevem. Essa prontidão será alcançada por meio da exercitação das</p><p>habilidades perceptomotoras, atendendo ao pressuposto de que o</p><p>domínio prévio dessas habilidades garantirá a aquisição da escrita.</p><p>Com relação às crianças que já sabem escrever, serão utilizados os</p><p>recursos: (1) das cópias de letras, de palavras isoladas e dos extensos</p><p>enunciados dos exercícios que os professores escrevem no quadro-</p><p>negro, cujo significado, na maior parte das vezes, as crianças ignoram;</p><p>(2) das redações, cujos conteúdos são aprisionados pelos temas,</p><p>predeterminados, pela escola, como também pela exigência de que</p><p>sejam corretas do ponto de vista gramatical e ortográfico.</p><p>No que diz respeito às práticas de leitura, as estratégias mais</p><p>utilizadas são as cartilhas e os livros didáticos ou paradidáticos, cujos</p><p>conteúdos, carregados de ideologia, prestam-se tanto à escrita quanto à</p><p>manipulação dos alunos.[21] Ainda no que tange à leitura, enfatiza-se a</p><p>sonorização da escrita, por meio da qual, transformando os sinais</p><p>gráficos em sonoros, a criança vai a duras penas identificando cada</p><p>palavra escrita sem conseguir, no entanto, atribuir-lhes significado.</p><p>Essas práticas de leitura que, na maioria das vezes, se constituem na</p><p>única via de acesso à escrita pelas crianças das classes populares</p><p>podem, como ressalta Soares (1988, p. 22), “significar a renúncia ao seu</p><p>próprio saber e ao seu próprio discurso, a sujeição ao saber e ao</p><p>discurso do dominante”.</p><p>Analisando as práticas de leitura e escrita que se baseiam na</p><p>“ideologia instrumental”, Giroux (1983; 1986) mostra que, apoiando a</p><p>cultura oficial em detrimento das experiências culturais e históricas dos</p><p>sujeitos, elas representam “o mais acabado modelo de alijamento do</p><p>estudante da participação ativa na construção do conhecimento e na</p><p>partilha do poder” (p. 67).</p><p>Teoria interacionista-construtivista</p><p>Contrariamente à anterior, essa teoria, que tem em Piaget seu</p><p>principal representante, concebe a criança como um ser ativo,</p><p>inteligente, que constrói o seu conhecimento com base na interação com</p><p>o ambiente. Por intermédio dos processos mentais de assimilação e</p><p>acomodação, o sujeito vai se modificando para se adaptar ao meio. Essa</p><p>modificação se refere à evolução da criança no que diz respeito ao seu</p><p>modo de operar logicamente a realidade.</p><p>De acordo com esse modelo do conhecimento, a aprendizagem</p><p>dependerá do desenvolvimento. Na medida em que a evolução do</p><p>pensamento obedece a uma ordem de estágios, sendo cada estágio</p><p>necessário ao seguinte, o ensino não pode se adiantar à ordem destes,</p><p>sob o risco de queimar etapas indispensáveis à consolidação do</p><p>conhecimento.</p><p>Com relação à linguagem, ela é entendida como sistema de</p><p>representação da ação, não sendo por si só constitutiva do pensamento</p><p>lógico. Sua importância está ligada ao fato de que, com as demais</p><p>manifestações da função semiótica – o desenho, a imitação, o jogo</p><p>simbólico –, ela possibilita que, por meio da representação, a criança vá</p><p>destacando o pensamento da ação e vá, assim, evoluindo dos esquemas</p><p>sensório-motores para os operatórios-concretos.</p><p>Ferreiro e Teberosky (1990), com base na psicogênese do</p><p>conhecimento em Piaget, vão elaborar uma psicogênese da escrita.</p><p>Tomando a escrita como objeto do conhecimento, elas observaram que,</p><p>na sua interação com esse objeto, a criança vai desenvolvendo hipóteses</p><p>cada vez mais avançadas sobre a escrita, que são originais em relação à</p><p>concepção adulta e que mantêm padrões conceituais evolutivos comuns</p><p>a todas as crianças. A escrita alfabética é, portanto, sempre antecedida</p><p>dos níveis pré-silábico, silábico e silábico-alfabético. No que diz</p><p>respeito à avaliação, ela se baseia nesses padrões cognitivos não sendo</p><p>mais pertinente ao modelo de escrita do adulto.</p><p>As pesquisas de Ferreiro e Teberosky trouxeram para as práticas de</p><p>escrita a enorme contribuição de libertar a criança da obrigação de</p><p>passar grande parte do seu tempo na escola exercitando suas funções</p><p>percepto-neurológicas. Em outras palavras, libertaram-na das tarefas</p><p>pouco significativas de “cobrir pontinhos”, “levar o osso ao</p><p>cachorrinho”, “apontar a cadeira que está à esquerda da mesa”,</p><p>“corresponder vogais” etc. Livraram-na também das intermináveis</p><p>cópias e das correções que, efetuadas com caneta vermelha, faziam sua</p><p>escrita sangrar.</p><p>A partir do momento em que o professor entendeu que a construção</p><p>da escrita acompanha o desenvolvimento do pensamento lógico-</p><p>matemático, ele passou a esforçar-se por entender a produção escrita da</p><p>criança desde a sua gênese.</p><p>As garatujas e os primeiros desenhos, que não eram dignos de</p><p>acompanharem os trabalhinhos mensalmente levados para casa,</p><p>passaram a ser valorizados e entendidos como pré-história da escrita.</p><p>Quanto à etapa inicial da escrita, as crianças também escaparam de</p><p>muitos rótulos e preconceitos.</p><p>Como exigir delas nessa fase, por exemplo, a leitura/escrita de</p><p>palavras como vovô, vovó, lata, asa, ovo, se pelas hipóteses que</p><p>levantam essas grafias são ilegíveis porque não apresentam uma</p><p>“variedade interna de caracteres”?</p><p>Ou como não entender que elas não aprendam, de imediato, os</p><p>artigos “o” e “a”, tão fáceis porque têm apenas uma letra, se pelo</p><p>critério da “quantidade mínima de caracteres”, poucas letras não se</p><p>podem ler nem escrever?</p><p>Ou como, ainda, dar conceito mínimo a uma criança porque no</p><p>ditado representou todas as palavras</p><p>de três sílabas com três letras, se</p><p>ela estava simplesmente efetuando uma “hipótese silábica”?</p><p>A escrita silábico-alfabética, por sua vez, totalmente rejeitada pela</p><p>escola até as descobertas de Ferreiro, passa a ser aceita como algo não</p><p>só coerente, mas muito desejável porque muito próximo da escrita</p><p>alfabética.</p><p>Caem, ainda, por terra as correções dos erros gramaticais e</p><p>ortográficos que levavam as crianças ao emudecimento de suas mãos.</p><p>Como se vê, reconhecer o sistema da escrita como objeto do</p><p>conhecimento e a criança como sujeito que reconstrói esse sistema foi</p><p>um grande passo em relação à superação dos conceitos de prontidão e</p><p>de privação cultural.</p><p>Entretanto, é preciso ressalvar que o entendimento do sistema de</p><p>escrita como objeto do conhecimento que é apropriado individualmente</p><p>pela criança leva ao risco, como aponta Smolka (1988), de que esses</p><p>preconceitos sejam substituídos pelo também preconceituoso rótulo de</p><p>uma avaliação cognitiva. Se a construção da escrita é uma atividade</p><p>essencialmente cognitiva que prescinde das interações sociais, o</p><p>fracasso na alfabetização recairá nas costas da criança que não superou</p><p>a “fase figurativa da escrita” ou “não ultrapassou a hipótese silábica”</p><p>etc.</p><p>É importante dizer que esse problema decorre do fato de a escola</p><p>querer reconstruir em sala de aula a psicogênese da escrita, o que leva a</p><p>mais um impasse: o privilégio dado ao texto escrito na pesquisa de</p><p>Ferreiro e Teberosky exclui a possibilidade de a criança reconstruir o</p><p>sistema da escrita pela via da leitura, da interpretação. Nesse sentido, as</p><p>práticas pedagógicas que pretendem transpor os resultados dessa</p><p>investigação para a sala de aula também priorizam a produção de textos</p><p>escritos em detrimento da leitura (Freitag 1994).</p><p>A teoria interacionista-construtivista, ao enfatizar a subjetividade</p><p>constituidora da escrita, afasta-se dos pressupostos mecanicistas da</p><p>teoria empirista. Sendo assim, é indiscutível a sua importância no que</p><p>diz respeito à demonstração da falsidade da premissa de que o</p><p>treinamento das habilidades sonoro-auditivas seria prioritário à</p><p>aquisição da escrita.</p><p>No entanto, ao conceber a escrita como produção do sujeito</p><p>cognoscente, sem levar em conta as condições sócio-históricas em que</p><p>essa produção se realiza, essa abordagem dá margens a que a escrita</p><p>seja entendida como objeto escolar.</p><p>Outra vez aprisionada entre as paredes da sala de aula, a escrita</p><p>readquire o caráter de instrumento, coerente com os objetivos da escola</p><p>na modernidade: priorizar o domínio da escrita que se pauta na</p><p>linguagem padrão, em detrimento da oralidade ou das experiências</p><p>culturais.</p><p>Referindo-se à constituição das cidades modernas latino-americanas</p><p>na virada do século XIX, Rama (1985) comenta o quanto a escrita foi</p><p>responsável pelo declínio da oralidade das culturas rurais cuja</p><p>“memória viva das canções e narrações” foi sendo solapada “pelas</p><p>pautas educativas que as cidades impõem...”. São essas pautas que</p><p>transformam a escrita dos letrados em sepultura na qual a produção oral,</p><p>comumente alheia ao livro e à sua rigidez imobilizadora, é encerrada</p><p>para sempre (p. 90).</p><p>É isso o que a escola faz quando leva as crianças a conviver</p><p>pragmaticamente com a leitura e a escrita, sonegando-lhes a dimensão</p><p>estética, cultural, política e afetiva dos atos de ler e escrever (Kramer</p><p>1993).</p><p>Teoria sociointeracionista</p><p>Diferentemente das duas teorias anteriores, a criança, para</p><p>Vygotsky (1979; 1984), é sujeito social criador e recriador de cultura.</p><p>Baseado na construção de uma epistemologia sociogenética, ele chega à</p><p>conclusão de que ao mesmo tempo em que a criança é transformada</p><p>pelos valores culturais do seu ambiente, ela transforma esse ambiente.</p><p>Para Vygotsky, portanto, o conhecimento é fruto das interações sociais</p><p>que se estabelecem pela mediação dos signos culturais construídos na</p><p>coletividade.</p><p>A linguagem é, segundo ele, o comportamento mais importante do</p><p>uso desses signos porque ela é, primordialmente, responsável pelas</p><p>interações sociais. Nesse sentido, ela é a fonte do conhecimento.</p><p>A importância que Vygotsky dá às interações sociais leva-o a</p><p>conceber o ensino como responsável pelas modificações no</p><p>desenvolvimento infantil. Criando zonas de desenvolvimento proximal,</p><p>o ensino despertaria na criança vários processos de desenvolvimento</p><p>que não viriam à tona se ela estivesse operando a realidade sozinha.</p><p>A concepção de criança como sujeito social e a compreensão da</p><p>importância que a linguagem assume na constituição do conhecimento</p><p>trazem para as práticas de leitura e escrita uma implicação metodológica</p><p>decisiva à suspensão do poder que a escola confere à escrita: a</p><p>aproximação da escrita com as experiências histórico-culturais, as quais</p><p>se materializam na linguagem, na oralidade.</p><p>Entender a escrita na sua aproximação com a oralidade é entendê-</p><p>la, como diz Smolka (1988), como prática interdiscursiva, ou seja: a</p><p>construção da escrita é um processo de interconstrução que se dá com</p><p>base na emergência coletiva dos múltiplos significados que a escrita</p><p>assume no seio das interações sociais.</p><p>Desse modo, a sala de aula deixa de ser o espaço no qual sujeitos</p><p>cognoscentes interagem com o objeto de conhecimento e passa a ser o</p><p>lugar onde interlocutores se encontram para interpretar suas leituras e</p><p>escritas: “a criança aprende a ouvir, a entender o outro pela leitura;</p><p>aprende a falar, a dizer o que quer pela escrita” (Smolka 1988, p. 63).</p><p>Leituras dos gestos, dos rabiscos, dos desenhos, dos grafismos que,</p><p>sendo compartilhadas na linguagem, na dialogia, criam zonas de</p><p>desenvolvimento proximal, ampliando a possibilidade da emergência</p><p>das escritas.</p><p>Como a escola, comumente, está interessada em que a criança</p><p>adquira o domínio da escrita padrão, ela sonega-lhe o fluir dos sentidos</p><p>que se dá pela via das interpretações, das leituras. E com isso a escola</p><p>transforma a escrita dos alunos em sepultura na qual suas histórias, suas</p><p>culturas, suas linguagens, seus desejos serão encerrados para sempre,</p><p>alienados de sua existência.</p><p>A concepção da linguagem como fonte do conhecimento traz para a</p><p>prática a noção de que a produção de escrita não alienada é aquela que</p><p>materializa a consciência do escritor. Como, segundo Vygotsky, a</p><p>consciência se forma e transforma na interdiscursividade, é na</p><p>interdiscursividade que a escrita tem que ser produzida para não ser</p><p>alienada. Nesse sentido, a materialização da consciência implica mais</p><p>do que a palavra escrita, a palavra vivida de que fala Paulo Freire</p><p>(1982).</p><p>E se o que interessa é a palavra vivida, a produção do texto escrito</p><p>supõe, necessariamente, deixar a vida vir à tona, a título de permitir o</p><p>fluir da existência. Deixar a vida vir à tona permitindo à criança existir</p><p>plenamente nas leituras e escritas que produz aqui e agora.</p><p>Na creche, quando afetando o outro pelos gestos e se afetando pelos</p><p>gestos do outro, ela já se constitui como sujeito social imerso na cultura.</p><p>Na pré-escola, quando por meio de rabiscos, brincadeiras,</p><p>desenhos, modelagens, dramatizações etc., construídos na coletividade,</p><p>a criança vai ressignificando ou transformando a sua consciência sobre</p><p>a realidade, por intermédio dos múltiplos significados que os diferentes</p><p>sujeitos atribuem ao mundo físico e social.</p><p>No ensino fundamental, quando entendendo o caráter de mediador</p><p>cultural da escrita, ela a transforma em manifestação de expressão de</p><p>sua existência histórico-social.</p><p>Leituras e escritas produzidas aqui e agora contam histórias de</p><p>infância diferentes daquelas que a modernidade contou/conta sobre ela,</p><p>a infância.</p><p>Se, do ponto de vista da psicologia cognitiva, a criança é o sujeito</p><p>do conhecimento, do ponto de vista da psicologia sociointeracionista ela</p><p>é sujeito da cultura. Essa percepção de Vygotsky humaniza, por assim</p><p>dizer, a criança, salvando-a da armadilha de viver como sujeito</p><p>epistêmico.</p><p>Nesse sentido Vygotsky vai se aproximando de Benjamin, autor</p><p>que, por meio de sua filosofia da história, rememorando a infância do</p><p>homem como momento privilegiado para se entender o presente,</p><p>permite</p><p>que a criança seja encarada como ser humano pleno. Como</p><p>ressalta Adorno: “Em todas as suas fases Benjamin pensou</p><p>simultaneamente o ocaso do sujeito e a salvação do ser humano” (apud</p><p>Gagnebin 1994, p. 85).</p><p>Teoria crítica da cultura</p><p>História e infância: Desafiando o devir</p><p>Analisando criticamente a modernidade, Benjamin (1985; 1987) vai</p><p>relacionar a ânsia do progresso e do desenvolvimento ao</p><p>empobrecimento da experiência humana e à alienação da linguagem. A</p><p>construção dessa relação é fruto de sua crítica à concepção</p><p>evolucionista de história, à visão de história como um tempo contínuo</p><p>que caminha inexoravelmente para o futuro. Nessa perspectiva, o</p><p>passado seria o antigo, o velho, o bárbaro, algo descartável que precisa</p><p>ser substituído pelo novo, pelo progresso. O que passou, passou...</p><p>porque “águas passadas não movem moinhos”, sendo o futuro o que</p><p>interessa. O presente é apenas um tempo fugidio imprensado entre um</p><p>obscuro ontem e a promessa de um amanhã mais iluminado.</p><p>Segundo o autor, a obsessão pelo progresso e desenvolvimento – o</p><p>olho no futuro – entorpece os homens, destituindo-os da linguagem e da</p><p>cultura, o que lhes subtrai a capacidade de fazer história.</p><p>Benjamin chama isso de barbárie, e contra isso ele sugere o resgate</p><p>da narrativa que, restituindo ao homem a experiência e a linguagem, o</p><p>reconduz à tarefa histórica e cultural de ser humano. Para tanto,</p><p>necessário seria explodir o continuum da história para que “o presente</p><p>pudesse ser colocado numa situação crítica” (Konder 1988, p. 92).</p><p>Em “Infância berlinense por volta de 1900”, Benjamin (1987,</p><p>pp. 71-142) vai esboçar o seu método historiográfico pelo qual visava</p><p>romper com o historicismo que condiciona a ação humana ao devir.</p><p>Voltando à sua meninice, ele a mostra não como tempo de faltas, de</p><p>imaturidade, mas como narrativa de experiências culturais. Sua relação</p><p>com as letras, com as cores, com as assombrações, com as histórias,</p><p>com as louças, com os livros, com os animais são modos de ler, de</p><p>conhecer, de compreender e escrever o mundo em nada incompletos ou</p><p>absenteístas, mas plenos, sensíveis, lógicos, criativos e refinados.</p><p>Essa volta à infância de Benjamin está longe de ser uma</p><p>autobiografia nostálgica. A viagem que o autor empreendeu aos seus</p><p>tempos de criança seria o germe de sua historiografia que busca, como</p><p>ficará explícito em suas teses sobre o conceito de história (Benjamin</p><p>1985), apresentar a rememoração do passado como meio de</p><p>presentificar o futuro: “a lembrança do passado desperta no presente o</p><p>eco de um futuro perdido do qual a ação política deve, hoje, dar conta”</p><p>(Gagnebin 1994, p. 101).</p><p>Mais do que dar voz ao menino Walter, o que Benjamin pretendeu</p><p>foi dar voz à infância ou à origem da humanidade para que, colocando o</p><p>presente em xeque, essa voz pudesse revolucionar o futuro. Passado,</p><p>presente e futuro estão intrinsecamente entrecruzados, transgredindo a</p><p>inexorabilidade da história oficial.</p><p>Longe de ser um tempo contínuo e linear que predetermina o agir</p><p>do homem, a história é feita da renúncia do homem à segurança do</p><p>previsível, renúncia que lhe permite ser livre. Assim como a criança é</p><p>livre para penetrar no labirinto, ainda que diante da insegurança de</p><p>perder-se: “No limiar do labirinto, a criança não manifesta medo; pelo</p><p>contrário, o desejo de exploração predomina como se soubesse,</p><p>confusamente, que só poderá se reencontrar se ousar perder-se”</p><p>(Gagnebin 1994, p. 103).</p><p>A desconstrução do tempo contínuo permite à criança liberdade</p><p>para dizer adeus às ilusões futuras e olá à busca do tempo perdido, à</p><p>origem, à tradição, à vida necessária. Com isso, resgata-se,</p><p>definitivamente, o tempo presente do agir infantil. Como tempo repleto</p><p>de humanidade, ele não é mais uma simples ligação entre o ontem e o</p><p>amanhã, mas tempo vivo necessário a que a criança transforme sua</p><p>futura produtividade em produção presente de cultura, de linguagem, de</p><p>história.</p><p>Benjamin, com sua “Infância berlinense por volta de 1900”, traz</p><p>contribuições concretas para que a criança, independentemente de etnia,</p><p>religião, gênero e inserção social, deixe de ser penalizada pela</p><p>concepção evolucionista da história. Esvai-se, assim, o feitiço da</p><p>modernidade que a condenava apenas a “vir a ser”.</p><p>Leitura e escrita como práticas de narrativa</p><p>É imprescindível, agora, dar crédito à verdade de suas histórias,</p><p>verdade que não pode ser desdita pela instrumentalidade racionalizadora</p><p>das práticas pedagógicas de leitura e escrita que, destituindo a criança</p><p>de sua voz, obrigam-na a “falar como o livro”, o que converte essa fala</p><p>em silêncio (Frago 1993, p. 21).</p><p>Para tanto, necessário seria que a escola se rendesse à sedução da</p><p>história, indo buscar, em outros tempos e espaços, discernimento para</p><p>“arrancar a tradição ao conformismo que quer apoderar-se dela”</p><p>(Benjamin 1985, p. 224).</p><p>Esse salto ao passado poderia constituir-se num ato político de</p><p>salvação do futuro das crianças, presentificado em leituras e escritas que</p><p>servem “para arranjar um emprego quando sair da escola”, “para</p><p>comprar uma casa para a mãe”, “para não repetir a 1ª série”.</p><p>Essa dimensão de arma contida nas respostas de crianças às</p><p>indagações de Kramer (1993, p. 121) sobre os motivos pelos quais elas</p><p>aprendiam a ler e a escrever levou a autora a se perguntar:</p><p>Será justo exigir que as crianças permaneçam na aridez da linguagem mecânica –</p><p>instrumento –, distanciando-as, ao invés de aproximá-las, do significado da escrita</p><p>como arma e sonho? E o retirar prazer do lido? E o expressar idéia, sentimentos,</p><p>desejos? E o penetrar no mundo do simbólico e também assim conhecer outros</p><p>povos, outras terras, outras gentes, o meu Brasil? (p. 28)</p><p>Pois é a essa dimensão do sonho que a escola iria chegar pelo salto</p><p>à origem da leitura e da escrita. Esse salto ao passado mostra que nem</p><p>sempre essas práticas estiveram enclausuradas pela supremacia que a</p><p>escola confere à escrita.</p><p>Tomando por base a teoria benjaminiana da origem da linguagem</p><p>(Benjamin 1984b), poder-se-ia dizer que a linguagem escrita está presa</p><p>ao “reino das significações, sobre as quais pesa toda a tristeza do</p><p>homem exilado” por oposição à linguagem oral, “livre expressão da</p><p>criatura” (Rouanet apud Benjamin 1984b, p. 17).</p><p>Pasolini (1990) explica bem essa oposição. Colocando-se</p><p>diametralmente contra o alargamento progressivo do “horrendo</p><p>universo do consumo” na Itália pós-Guerra, ele vai mostrar que um dos</p><p>símbolos dessa “tragédia” foi o aniquilamento da tradição cultural do</p><p>povo por meio da unificação da língua italiana, que desmoralizou os</p><p>falares dialetais. Como ele diz:</p><p>(...) embora permaneça intacto – estatisticamente falado pelo mesmo número de</p><p>pessoas –, [o dialeto] não é mais um modo de ser e um valor. O violão dialetal</p><p>perde uma corda a cada dia. O dialeto ainda está cheio de riquezas que todavia não</p><p>se pode mais gastar, de jóias que não se pode mais ofertar. Quem o fala é como um</p><p>pássaro que canta numa gaiola. O dialeto é como o peito de uma mãe onde todos</p><p>mamaram e sobre o qual agora cospem (a abjuração!). (p. 69)</p><p>Reagindo a essa abjuração, ele volta a escrever poemas no dialeto</p><p>do Friuli, lugarejo italiano onde nasceu, elegendo o falar friulano como</p><p>“substância-testemunho” ou como paradigma que permitiria a</p><p>interpretação das sociedades modernas, nas quais os indivíduos,</p><p>perdendo sua autenticidade em face dos valores da burguesia, deixam de</p><p>ser os senhores da sua história (Lahud 1993, p. 50).</p><p>Para Pasolini, essa volta ao dialeto não é um “voltar para trás”, pois</p><p>“na história não existe o para frente e o para trás. O para frente e o para</p><p>trás existem na retórica” (Pasolini 1990, p. 73). Implicando uma forma</p><p>de vida anterior à industrialização, o retorno ao dialeto supõe a procura</p><p>da origem histórica dos sujeitos, visando</p><p>(...) revelar o que desapareceu, o que poderia acontecer, o que poderia retornar. O</p><p>começo comporta a recusa do esquecimento, as imagens primordiais acusam os</p><p>traços da degradação, as fontes desvendam as peripécias da queda. (Boyer apud</p><p>Lahud 1993, p. 59)</p><p>Pois bem, voltar ao tempo em que a escrita era um</p><p>saber que nascia</p><p>do convívio oral com as histórias contadas ou lidas pode comportar a</p><p>recusa do esquecimento, trazendo à tona práticas de leitura e escrita</p><p>que, estando em seu nascedouro prenhes de invenções culturais, possam</p><p>salvar as crianças de seu cruel destino de precisar falar como livros.</p><p>É importante dizer que, se esse retorno leva a momentos de</p><p>convívio oral com a escrita, marginalizadores com relação às classes</p><p>populares, sua lembrança é vital a que os excluídos de ontem possam</p><p>ser hoje vingados.</p><p>Com relação a essa exclusão, Moysés (1995) mostra como,</p><p>esquivando, entre as rodas de leitura no Brasil pré-republicano, os</p><p>negros iam se submetendo à escrita dos brancos, embranquecendo eles</p><p>próprios por meio da ruptura com seus valores culturais, jamais</p><p>presentes naquelas rodas brancas de leitura.</p><p>Se, por um lado, essas imagens primordiais das práticas de leitura</p><p>no século XIX acusam os traços da degradação, por outro lado elas</p><p>revelam, com mônadas, a origem da escrita tal como ela era socializada</p><p>anteriormente à sua escolarização, daí sua importância.</p><p>Nada de decifrações, nada de cartilhas, nada de lousas, nada de</p><p>tormentas e frustrações... Ler e escrever eram processos que emergiam</p><p>de contextos familiares e sociais que os propiciavam e que, apontando</p><p>para o convívio entre leitura e oralidade, acabam por tornar</p><p>desconcertante a ideia atual da racionalização da escrita.</p><p>Vaz (1994) traz alguns exemplos desse convívio. Essas experiências</p><p>comungam não só do fato de que seus protagonistas foram iniciados na</p><p>leitura no âmbito do aconchego familiar, mas também de que todos se</p><p>transformaram em escritores. Segundo o autor, Proust, Canetti,</p><p>Guimarães Rosa e Klaus Mann (filho de Katia e Thomas Mann)</p><p>revelam “a marca da força e da ternura da voz paterna e/ou materna,</p><p>lendo ou narrando histórias sem fim” (p. 12). Destaca, ainda, a</p><p>importância dos métodos utilizados por esses pais, tão significativos à</p><p>formação de seus filhos como leitores/escritores: “métodos naturais,</p><p>receitas caseiras, nenhum didatismo, nada institucional” (p. 13). Como</p><p>ele diz: “Nada há de esotérico nesses métodos; nenhum recurso à magia,</p><p>senão o ambiente mágico provocado pelos leitores/narradores... Todos</p><p>aprendendo ou ensinando a ler, aprendendo ou ensinando a ser leitor”</p><p>(p. 13).</p><p>Ao interpretar a fala dos escritores a respeito de suas iniciações à</p><p>leitura, Vaz desvela uma das contingências fundamentais da formação</p><p>do leitor. Quando leem ou narram “histórias sem fim” para os filhos,</p><p>seus pais os instigam a fazer parte da trama e, assim, a continuar a</p><p>história que está sendo narrada. Desse modo, estabelece-se uma</p><p>coletividade (pais, filhos, autores) na qual, transformados em</p><p>ouvintes/narradores, todos se tornam receptivos às experiências uns dos</p><p>outros, o que leva a leitura a se configurar em produção de cultura ou de</p><p>conhecimento relativo à construção de humanidade, tão diverso da</p><p>produção de leitura escolar cujo caráter instrumental, comumente,</p><p>transforma crianças em alunos, ou seja, em peças de montagem.</p><p>Não teriam sido as “histórias sem fim” as responsáveis pelo</p><p>reconhecimento de Proust, Canetti, Rosa e Mann como escritores?</p><p>Benjamin (1985) diz que “entre as narrativas escritas, as melhores</p><p>são as que menos se distinguem das histórias orais ...” (p. 198), e</p><p>entende que “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua</p><p>própria experiência ou a relatada pelos outros” (p. 201).</p><p>Sendo assim, não seria possível reconhecer nas produções escritas</p><p>dos autores o eco das leituras tecidas na interpenetração das vozes, das</p><p>culturas, das histórias? Não seriam elas reescritas das leituras infantis</p><p>da “palavramundo”? (Freire 1982).</p><p>Vygotsky (1990) responderia afirmativamente a essa questão, pois</p><p>para ele as realizações dos artistas não são decorrentes de relampejos</p><p>individuais de genialidade. Segundo ele, a fantasia, indispensável à</p><p>criação, forja-se na experiência acumulada do homem que, por sua vez,</p><p>é ampliada pela imaginação (p. 20).</p><p>E se a experiência acumulada pode ser entendida como histórias de</p><p>vida que se inscrevem na cultura, tem-se que a escola, ao impedir que a</p><p>vida se presentifique, mata na criança a possibilidade de se constituir</p><p>leitor-escritor-narrador-criador.</p><p>Esta é a contribuição que a teoria crítica da cultura traz para as</p><p>práticas de leitura e escrita: apontar para a escola a necessidade e a</p><p>importância de que ela permita à infância presentificar-se, narrar-se.</p><p>A compreensão da escrita como prática de narrativa desmistifica</p><p>seu caráter ideológico e destitui sua primazia sobre a leitura, sobre a</p><p>produção de sentidos. Assim, escrever implica releitura tanto quanto ler</p><p>supõe reescrita.</p><p>Se é verdade que o “começo comporta a recusa do esquecimento”,</p><p>cabe, então, à escola (re)começar, restabelecendo as rodas de leitura e</p><p>instituindo as rodas de escrita. Não “rodas brancas” de leitura e escrita,</p><p>mas rodas multiculturais de leitura e escrita, nas quais essas práticas não</p><p>mais sirvam de instrumento para submeter, constranger, homogeneizar,</p><p>mas que sejam bem-vindas como práticas de liberdade.</p><p>4</p><p>O QUE FALAM DE ESCOLA E SABER AS</p><p>CRIANÇAS DA ÁREA RURAL? UM DESAFIO</p><p>DA PESQUISA NO CAMPO[22]</p><p>Maria Isabel Ferraz Pereira Leite[23]</p><p>É sabido que o dizer não é apenas a expressão do</p><p>pensamento, mas também sua realização. Do mesmo</p><p>modo, o caminhar não é apenas a expressão do desejo de</p><p>alcançar uma meta, mas também sua realização.</p><p>Walter Benjamin</p><p>Diante do desafio de escrever minha experiência de pesquisa com</p><p>crianças de São José do Vale do Rio Preto, teço uma narrativa contínua,</p><p>inteira, sem subtítulos ou divisões. Procuro estruturar um texto marcado</p><p>pelo diálogo, pela compreensão do olhar do outro, pela importância dos</p><p>diversos modos de entender o mundo; uma fala alinhavada pelo tempo</p><p>não cronológico, não linear. A espinha dorsal é a pesquisa de campo e as</p><p>questões que esse grupo de crianças me suscitou. Costurando essas</p><p>reflexões, procuro ir trazendo à tona o referencial teórico-metodológico</p><p>que foi sendo construído ao longo do percurso. Portanto, este texto é, ao</p><p>mesmo tempo, produto e processo de uma pesquisa.</p><p>A primeira questão que coloco é então: por que trabalhar com</p><p>crianças do campo? Desde 1990 vinha tendo a oportunidade de</p><p>estabelecer um contato regular informal com a área rural. A riqueza de</p><p>suas linguagens e saberes, em contraposição à pobreza de suas escolas,</p><p>chamava-me especial atenção. Dentro desse tema mais amplo, decidi</p><p>tomar a criança como eixo, a fim de captar a sua visão de escola e de</p><p>acesso ao saber: O que falam de escola e saber as crianças da área rural?</p><p>O próprio recorte da pesquisa deflagra uma postura teórico-</p><p>metodológica: optei por trabalhar com crianças e, portanto, falo de</p><p>criança como sujeito, como ser social situado no tempo e no espaço,</p><p>como cidadã hoje, que tem suas especificidades em relação aos adultos</p><p>e por essas especificidades deve ser respeitada. Para mim, elas não</p><p>foram objeto de pesquisa, mas sujeito com vida, em processo dinâmico</p><p>e contínuo de transformação.</p><p>Quando trago a voz das crianças, apresento não só os diversos</p><p>auditórios sociais aos quais ela pertence, mas, vale ressaltar, trago os</p><p>outros atores sociais da escola que – mesmo ausentes em sua própria</p><p>fala – se fazem fortemente presentes na fala dessas crianças. Na medida</p><p>em que interagi com esses sujeitos, dei forma ao trabalho e estabeleci</p><p>recortes, o meu espaço de fala também está claramente marcado e</p><p>entrelaçado ao deles.</p><p>E quem são essas crianças? As crianças com as quais convivi têm</p><p>uma experiência de vida e uma possibilidade de constituir-se sujeito,</p><p>diferentes das crianças das camadas populares urbanas. A criança da</p><p>área rural, por mim tomada aqui, brinca e se relaciona com seus pares,</p><p>ao mesmo tempo em que convive com seus outros papéis, suas funções</p><p>dentro da comunidade familiar, o cumprimento de suas tarefas. Essas</p><p>crianças na zona rural usufruem um estreito contato em família – que é</p><p>geralmente numerosa –, e pais, filhos grandes e pequenos coexistem de</p><p>forma a possibilitar que cada um seja verdadeiramente</p><p>importante e</p><p>único no seu funcionamento como um todo. Ela constrói e vive o hoje,</p><p>vive a sua história. Ela vive a história de sua família, da sua</p><p>comunidade, da humanidade. Tem seu espaço-criança. Benjamin</p><p>(1984a) diz que “as crianças não constituem nenhuma comunidade</p><p>isolada, mas sim uma parte do povo e da classe de que provêm” (p. 70).</p><p>Neste trabalho procurei não sectarizar a criança-trabalhadora, a criança-</p><p>sem-infância, a criança-oprimida, mas pensar na criança como sujeito</p><p>sócio-histórico que é.</p><p>Trabalhei com um grupo de cerca de 30 moradores de uma mesma</p><p>localidade,[24] com faixa etária entre 6 e 14 anos. A observação</p><p>participante foi o ponto forte da minha pesquisa de campo. As</p><p>observações deram-se fora do contexto escolar, em seu espaço cotidiano</p><p>de trabalho doméstico e de lazer. Fiz essa opção por entender que esses</p><p>espaços permitiriam maior liberdade de expressão às crianças,</p><p>especialmente porque minhas questões eram centradas em torno dos</p><p>temas escola e saber.</p><p>A pouca literatura específica a respeito de pesquisa de campo com</p><p>crianças (Irwin e Bushnell 1984; Arfouilloux 1988) serviu de desafio</p><p>para que eu mesma tivesse que achar meus caminhos. Como trabalhar</p><p>com crianças que não conhecia, numa comunidade distante da minha,</p><p>assegurando seu espaço de narrativa e ainda tendo como desafio</p><p>transformar esses encontros em momentos prazerosos? “Fazer a história</p><p>dos grupos marginalizados (pobres, mulheres, crianças etc.) leva</p><p>inevitavelmente o pesquisador a posturas diferentes, mais ideológicas, o</p><p>que não sucede quando ele estuda sujeitos culturalmente mais parecidos</p><p>com ele” (Faria 1993, p. 27).</p><p>Como não morava naquela região, tinha que, antes de mais nada,</p><p>estabelecer minha inserção naquele contexto. A entrada no campo passa</p><p>por uma espécie de “ritual de passagem”, em que pesquisador e</p><p>pesquisado vão pouco a pouco estabelecendo e criando laços – laços</p><p>estes que serão os determinantes de sua relação com aquela</p><p>comunidade. Passei cinco meses indo a campo dois ou três dias na</p><p>semana, além de todos os fins de semana, procurando conhecer</p><p>famílias, escolas, professoras e, principalmente, crianças. O que ficou</p><p>claro é que a comunidade vai construindo representações acerca do</p><p>pesquisador e que as nossas relações foram se transformando ao longo</p><p>desse ano juntos. Inicialmente eu era vista como professora: respeitada,</p><p>porém distante. Um dia ajudei a socorrer um lavrador atropelado, e isso</p><p>fez com que tivesse minha imagem muito associada à área de saúde – as</p><p>mães me procuravam para conversar sobre febre, diarreia, machucados</p><p>inflamados etc. No decorrer da pesquisa propriamente dita, fui sendo</p><p>vista como repórter, fotógrafa... Percebo que todo esse período</p><p>exploratório inicial foi significativo, não só para o amadurecimento da</p><p>pesquisa em si, mas, principalmente, para estabelecer minha “inserção</p><p>no pedaço”.[25]</p><p>Vale ressaltar que, se eu queria compreender o que as crianças</p><p>falavam sobre escola e saber, acreditava que não deveria ter minha</p><p>imagem identificada com a escola – entendia que isso já comprometeria</p><p>suas falas. Comumente em relações de desigualdade de forças –</p><p>pai/filho, patrão/empregado, aluno/professor – a pessoa facilmente age</p><p>ou responde, não necessariamente o que pensa, mas o que imagina que</p><p>deveria; o que imagina que querem que ela faça ou fale. Dentro disso,</p><p>se eu tivesse minha imagem vinculada à imagem da professora, a</p><p>riqueza e a diversidade das falas poderiam não ter sido essas.</p><p>Conhecer as crianças é buscar compreender seu pensamento, sua</p><p>visão de mundo, suas relações socioculturais. Salta imediatamente aos</p><p>olhos do pesquisador que o caráter dado ao trabalho na região é</p><p>substancialmente diverso do que vemos nos bolsões das periferias</p><p>urbanas. Como essas crianças vivenciam o trabalho?</p><p>Apesar de inúmeros dados sobre a área rural apontarem um quadro</p><p>alarmante sobre o trabalho de crianças no campo, especialmente quando</p><p>se denuncia o trabalho escravo no Brasil,[26] as crianças desse</p><p>município não exercem hoje, em sua maioria, funções formais nas</p><p>fazendas ou granjas da região. Elas se envolvem em muitos outros tipos</p><p>de trabalho que não o assalariado.</p><p>Tomo conta do nenê, lavo roupa, encero e arrumo a casa. (Vanessa, 7 anos)</p><p>Ajudo Daniel a cortar capim. (Chaoli, 9 anos)</p><p>A atividade doméstica é encarada como trabalho e é esse trabalho</p><p>familiar que ocupa grande espaço nessa área. Desde bem pequenas</p><p>realizam as tarefas ao lado dos mais velhos: ajudam suas mães nas</p><p>atividades domésticas e seus pais em serviços variados. Além de ser</p><p>visto como fundamental, o trabalho é valorizado e internalizado dentro</p><p>da dimensão do querer, do gostar...</p><p>Rosiléia não gosta de trabalhar não... só gosta de ficar à toa... É não fazer nada...</p><p>nem serviço, nem lavar copo, nem arrumar casa... Mas em casa tem que fazer</p><p>mesmo, né? Eu gosto mais de passar pano que brincar. (Natália, 12 anos, falando</p><p>de sua irmã de 10 anos)</p><p>De manhã eu gosto de estudar; depois do almoço eu gosto de ajudar minha mãe.</p><p>(Carícia, 10 anos)</p><p>Gosto de tirar leite e capinar. (André, 13 anos)</p><p>Foi difícil aceitar que as crianças gostassem exatamente do que elas</p><p>tinham que executar... mas, ao longo da pesquisa, percebi isso cada vez</p><p>mais forte na forma de educar das famílias. O trabalho, desde cedo,</p><p>como aprendizado de vida, está presente na fala de crianças e adultos.</p><p>Percebia então qual era, na realidade, o maior desafio desta pesquisa:</p><p>estar atenta, com olhos e ouvidos abertos para ler, ver e escutar tudo,</p><p>para captar os não ditos, as múltiplas vozes, para estranhar o diferente</p><p>de mim. Isto é, entendi que deveria ter um olhar suficientemente</p><p>próximo para compreendê-las; mas, ao mesmo tempo, suficientemente</p><p>afastado para analisá-las. Portanto, o estranhamento foi fundamental –</p><p>foi o distanciamento necessário que me permitiu ver o diferente de mim</p><p>e perceber no familiar aquilo que pode me ensinar de novo. Bakhtin</p><p>insiste na necessidade simultânea de identificação e distância, “empatia</p><p>e ‘exotopia’, a capacidade de ocupar a posição do outro através da</p><p>imaginação, para depois retomar um distanciamento crítico” (in: Stam</p><p>1992, p. 99).</p><p>Estava então preocupada em perceber as diversas contradições</p><p>sociais presentes no contexto rural, em buscar captar o significado das</p><p>ações dos sujeitos, em interagir, dialogar, levar em conta seu</p><p>pensamento. Essa postura me remetia a um entendimento da realidade</p><p>como polifacética, e não como algo pronto ou dado, que pudesse ser</p><p>simplesmente retratado (como dados estáticos disponíveis para serem</p><p>coletados); ela tinha que ser penetrada para que pudesse ser percebida,</p><p>compreendida – e compreensão pressupõe subjetividade. Cabe deixar</p><p>claro que essa posição não implicou – ao contrário! – abrir mão do rigor</p><p>necessário à construção do conhecimento; essa postura me fez abdicar</p><p>da rigidez, do aprisionamento. Se eu tomasse posse das falas, me</p><p>apropriasse de conclusões como verdades únicas, estaria tornando a</p><p>palavra monológica, dicionarizada. Freitas (1994a) contribui aqui</p><p>analisando o pensamento de Bakhtin: “Em seu método não há lugar</p><p>para a explicação, que considerou monológica. O importante para ele é</p><p>a compreensão que implica na presença de duas consciências, no</p><p>encontro de dois sujeitos imersos no diálogo” (p. 153).</p><p>Para Bakhtin (1992a), só há compreensão quando há perguntas; as</p><p>perguntas levam ao dialogismo. Diálogo entendido como comunicação</p><p>por meio da diferença, tanto entre pessoas como entre grupos sociais – é</p><p>a relação (refutar, confirmar, complementar, defender...) entre os</p><p>diversos enunciados; um diálogo constante entre os muitos eus e os</p><p>muitos outros. Portanto, trabalhar com as comunidades rurais</p><p>procurando conhecê-las com suas diferenças e buscando humildade para</p><p>com elas aprender foi “tentar apreender a sua visão de mundo, isto é, o</p><p>significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias</p><p>ações” (Lüdke e André 1986, p. 26). Era o desafio de falar da</p><p>comunidade rural e não sobre ela... não pretender que as coisas viessem</p><p>em minha direção, mas que eu as penetrasse, assim como,</p><p>nos livros de</p><p>histórias, “não são as coisas que saltam das páginas em direção à</p><p>criança que as contempla – a própria criança penetra-as no momento da</p><p>contemplação” (Benjamin 1984a, p. 55).</p><p>A relação entre brincar-trabalhar-aprender na região estudada é</p><p>especialmente forte, diferentemente do quadro vivido pelas crianças dos</p><p>centros urbanos, nos quais das crianças pobres é usurpado o direito de</p><p>brincar ou de transformar em lúdica a sua relação com o trabalho. À</p><p>criança burguesa é vetada a possibilidade de se emancipar, de viver o</p><p>hoje: tudo a cerceia para ela se guardar para o porvir (Faria 1993).</p><p>Quando acabo tudo, brinco de casinha. Pego as coisinhas e fico montando.</p><p>(Carícia, 10 anos)</p><p>Quando o bebê dorme, eu brinco de boneca. Pego as taubas [tábuas], faço</p><p>varalzinho... (Vanessa, 7 anos)</p><p>Às vezes minha mãe manda eu ficar [em casa] porque ela fica enrolada no serviço,</p><p>né? Prefiro ficar em casa de serviço. Muito mesmo! Arrumar cozinha, lavar</p><p>caneca... é mais melhor que ir pra escola fazer dever. (Rosiléia, 10 anos)</p><p>O trabalho esteve muito presente nas diversas falas, e sempre</p><p>ligado ao fazer-benfeito e ao jogo, enquanto a escola foi mais associada</p><p>ao sempre-igual e ao fracasso. O trabalho dessas crianças está inserido</p><p>no cotidiano de seu núcleo social: dá-se na família, com seus pares. Em</p><p>contraposição, a escola aparece descontextualizada: é a instituição</p><p>urbana, é o que vem de fora.</p><p>O que falam da escola essas crianças do campo?</p><p>A escola local é estruturada para o atendimento de crianças</p><p>burguesas da cidade, e, nesse padrão de expectativa, a criança rural está</p><p>sempre em falta. No entanto, quando as crianças buscam uma</p><p>explicação para o seu não aprendizado, geralmente a centram em três</p><p>categorias: na falta de empenho pessoal (“Eu fugia para o riacho e não</p><p>ia para a escola. Aí, não aprendi”), no reconhecimento de uma</p><p>incapacidade pessoal (“Minha mente não era boa para isso”) ou pela</p><p>sinalização institucional dessa incapacidade (“A psicóloga da outra</p><p>escola disse que Rosiléia não dava para os estudos”).</p><p>Dentro disso, chamou-me atenção um fato: na região em que a</p><p>pesquisa foi realizada, as pessoas não dizem que faltam à escola, mas</p><p>que falham à escola. Até que ponto o uso comum dessa palavra não está</p><p>sinalizando o quanto já identificam ou internalizam a sua imagem com a</p><p>falha, com o fracasso? As crianças falham quando não vão à aula... mas,</p><p>na forma pela qual a escola está estruturada, também falham quando</p><p>vão. Falham [faltam] à aula para ajudar pais ou irmãos, quando chove,</p><p>quando o sol está muito forte, quando estão com bicho-de-pé, quando o</p><p>sapato fica sujo e não dá para lavar, quando o casaco molha e não dá</p><p>para secar, quando ficam doentes, quando não estão com vontade,</p><p>quando..., quando... Críticas diretas à escola foram muito raras, mas este</p><p>sujeito, ao “falhar” na sua ida à escola, está dizendo algo, mesmo sem</p><p>falar ou escrever.</p><p>Na minha escola não tem nem um escorregador! Nadinha!</p><p>Só bola... nem campo tem!</p><p>Deixa eu falar! Tinha que ter brinquedo!</p><p>Na escola chego cedo, espero, tomo leite, estudo. Aprendo a estudar, fazer dever,</p><p>ler e escrever. (Chaoli, 9 anos)</p><p>Umas meninas no último dia de aula, a menina ficou... ela [a professora] estava</p><p>mandando umas meninas lá fazer fila, as meninas corria dela. Por causa disso, a</p><p>gente não, agora, não vai ter mais recreio. (Natália, 12 anos)</p><p>Há diversos estudos que apontam para o fato de que a criança do</p><p>campo tem sua escolaridade reduzida por causa do trabalho precoce na</p><p>lavoura. Como já coloquei, nessa localidade estudada o trabalho é de</p><p>outra ordem... Talvez pela vasta área disponível para brincadeiras, as</p><p>crianças faltam muito às aulas para brincar. E talvez até o fato de elas</p><p>faltarem muito à escola para brincar escondido (elas fingem que vão</p><p>para a aula, e os pais fingem que não sabem que elas não foram) seja</p><p>uma forma de resistência... O brincar ajuda a organizar suas ações e</p><p>realinhar o real. Cabe à escola não apenas tolerar, mas, mais do que</p><p>isso, considerar as brincadeiras como espaços essenciais de</p><p>aprendizado. O lúdico está completamente ausente da instituição</p><p>escolar. Está ausente da relação professor-aluno, da possibilidade de</p><p>brincar, dançar, pintar, passear, mexer-se. É preciso que a escola</p><p>compreenda a importância do lúdico na formação, não apenas da</p><p>criança mas também do educador.</p><p>Vygotsky (1984) aponta para o fato de as crianças exercerem tarefas</p><p>diversas dando a elas um caráter lúdico e singular. A criança como</p><p>sujeito social, brincando, não está só fantasiando, mas trabalhando suas</p><p>contradições e ambiguidades, trabalhando valores sociais. O brincar não</p><p>é uma característica infantil, mas do ser humano. A fantasia, a</p><p>imaginação são fundamentais, mas não são específicas ou exclusivas da</p><p>criança, assim como o real também não o é.</p><p>A ludicidade e a expressão artística são ainda comumente vistas</p><p>como subversivas. A arte mostra a vida de outra forma. Como</p><p>comunicação estética, a arte carrega consigo a dimensão ideológica,</p><p>política, sociológica, pedagógica. Cada manifestação artística é um</p><p>conjunto de linguagens. A comunicação impõe o aprendizado da</p><p>linguagem do outro – trabalhar com múltiplas expressões é ampliar esse</p><p>aprendizado; é trabalhar não só com as diferenças, com a dimensão</p><p>crítica, mas também a possibilidade de trabalhar a dimensão artística do</p><p>conhecimento.</p><p>Acredito que são o olhar e a escuta sensíveis do sujeito – portanto,</p><p>a linguagem – que lhe possibilitam perceber o outro como diferente de</p><p>si; que lhe permitem perceber o outro em sua singularidade, com suas</p><p>nuanças, seus tons, suas texturas, seus timbres, suas especificidades. Por</p><p>isso, utilizei-me de múltiplas formas de linguagem artística: desenhos,</p><p>dramatizações, histórias, músicas, danças... entendendo que quanto</p><p>maior o leque de opções para a expressão, mais portas abrimos para</p><p>nossa escuta. Sendo assim, a arte se faz presente como linguagem, como</p><p>expressividade, e não como técnica. Desenvolvi, então, uma série de</p><p>abordagens, variadas e divertidas, procurando redefinir teórico-</p><p>metodologicamente o esquema convencional de entrevistas. Elas eram</p><p>apenas o pontapé inicial. As próprias crianças iam conduzindo nossos</p><p>encontros por meio do uso que davam aos materiais disponíveis –</p><p>gostavam muito de desenhar, de cantar e, principalmente, de contar</p><p>“causos”!</p><p>Hoje reflito criticamente e vejo que foram as múltiplas linguagens,</p><p>associadas à grande disponibilidade interior para a escuta, que</p><p>possibilitaram nossa aproximação... “Oi! Sou da PUC, do Rio, e estou</p><p>fazendo um trabalho com crianças da área rural...”. O que é PUC? Rio?</p><p>Qual deles? O córrego? O Rio Preto? O que é área rural? No entanto,</p><p>essa frase de apresentação, tão sem sentido para aquela comunidade,</p><p>era dita com um sorriso, um aconchego às crianças, um agachar, um</p><p>olho no olho, um afago... era acompanhada de gestos, entonações e</p><p>atitudes que a carregavam de sentido e possibilitavam que fosse</p><p>decodificada. A resposta era sempre uma casa aberta, sorrisos, café</p><p>quente, broa, fotos da família, muita prosa...</p><p>“Vamos sentar no chão para ouvir uma história?” Já buscando</p><p>aproximação direta com as crianças, fui logo me sentando no terreiro de</p><p>terra batida, e rapidamente todos vinham trazendo seus bancos,</p><p>cadeiras, tocos, tamboretes. Sentar no chão de terra? Nem pensar!</p><p>Você sabe que eu sei coisas que lhe interessariam e fica frustrada porque não falei</p><p>delas. (...) Não se desespere. Uma boa pesquisadora deve ser paciente, insistir em</p><p>suas investigações.[27]</p><p>É difícil confessar aqui, mas, nos primeiros encontros, ficava muito</p><p>aflita com a não diretividade que eu tinha criado: “Meu Deus! Vou ficar</p><p>dias e dias e eles não falarão nada do que eu preciso?!” Eram momentos</p><p>de desespero pessoal que retratam a aflição e a tentação que temos –</p><p>como pesquisadores – de querer ouvir aquilo que, por hipótese,</p><p>imaginamos que encontraremos no campo. Salva pelas crianças! Toda e</p><p>qualquer tentação nesse sentido era imediatamente soterrada pela</p><p>riqueza das falas que elas todo o tempo me traziam.</p><p>As crianças, em suas diversas</p><p>expressões do cotidiano, acentuavam</p><p>os múltiplos sentidos da palavra e essa pluralidade é a marca da</p><p>linguagem. Como pesquisadora, assumia o desafio de olhar de forma</p><p>mais plural e de traduzir em palavras esse meu olhar, tendo como certa a</p><p>multiplicidade de interpretações possíveis. Não houve registros escritos</p><p>por eles, só gravações orais, e, como pode ser percebido pelas falas</p><p>presentes neste texto, não intencionando analisar a variação dialetal da</p><p>região, mas querendo trazer as próprias palavras dos atores, optei por</p><p>transcrever os diálogos sem ressaltar acentuações, porém mantendo a</p><p>mesma estrutura frasal e o vocabulário por eles utilizado.</p><p>Nossos encontros tiveram, cada um, mais ou menos uma hora de</p><p>duração, nas férias, nos fins de semana ou ao final da tarde (após o</p><p>expediente escolar e ao término das tarefas domésticas),</p><p>preferencialmente nos terreiros de casas à beira da estrada,</p><p>possibilitando o acercamento espontâneo de diversas crianças. Cada</p><p>encontro contou com a presença de aproximadamente 10 a 15 crianças,</p><p>e, na formação desses grupos, não havia distinção de sexo, religião,</p><p>parentesco ou atividade profissional. Houve um grupo fixo de quatro</p><p>crianças que participou de todos os encontros e com as quais pude</p><p>aprofundar alguns pontos em conversas individuais. A escolha do local</p><p>se dava de acordo com o consentimento dos donos da casa, a distância</p><p>etc.</p><p>Como disse, os encontros foram gravados e posteriormente</p><p>transcritos. Muitos foram também fotografados. Ao final do dia escrevia</p><p>meu diário de campo onde narrava os acontecimentos. Depois eu o lia e</p><p>filosofava acerca dos episódios vividos, anotando minhas reflexões. A</p><p>trama da rede de entendimentos, fruto de nossos diálogos, foi sendo</p><p>tecida, pouco a pouco, ponto por ponto. Assim fomos nos conhecendo.</p><p>Nossos sucessivos encontros e desencontros; nossas diferentes histórias</p><p>de vida foram tecendo a nossa história. Vivíamos juntos uma história.</p><p>Construíamos nossa história no diálogo. Acendia em mim a</p><p>consciência de que ser falado é diferente de se pronunciar... Por isso,</p><p>destacando como depoente o infante, que etimologicamente é “aquele</p><p>que não fala”, procurei sinalizar a possibilidade de falar como marca do</p><p>não autoritarismo: é o não aprisionamento da palavra. A fala da criança</p><p>não é a única, não sei se é a principal, mas é a fala daqueles que mais</p><p>diretamente vivem o processo de escolarização; de um ator legítimo que</p><p>durante tanto tempo não pôde ser ouvido. Ampliando a fala da criança,</p><p>tentei fazer aparecer aquilo que normalmente fica obscurecido por causa</p><p>do mundo adulto – como se, subvertendo a ordem e revelando o que não</p><p>aparece, a linguagem infantil ajudasse a “escovar a história a</p><p>contrapelo” (Benjamin 1985, p. 225).</p><p>A escola devia ter um carro para levar a gente ao dentista, uma kombi. Porque não</p><p>pode estragar os dentes. Devia cuidar com os mosquitos também, que fica</p><p>mordendo as pessoas. Aquelas mosca-azul que fica voando na pessoa... isso tudo!</p><p>Passar o carro de fumacê para os mosquitinhos não morder mais a gente. (Natália,</p><p>12 anos)</p><p>Na localidade estudada, a ausência da escola ou a presença dela não</p><p>sinalizam ausência ou presença dos conhecimentos que supostamente</p><p>essa escola deveria transmitir. Portanto, posso supor que a forma pela</p><p>qual alguns pais prolongam a escolaridade de seus filhos, mesmo sem</p><p>um retorno escolar concreto, remete-nos a outras razões por trás da</p><p>demanda escolar. O fato de o seu caráter assistencialista ter sido</p><p>ressaltado, especialmente na fala dos adultos, leva-me a crer que hoje</p><p>esse é um fator de peso para a permanência dos alunos na instituição: a</p><p>escola dá banho, leva ao dentista, vira posto de vacinação, oferece</p><p>merenda. Nada disso impede, no entanto, que, no discurso, seu papel de</p><p>transmissora de conhecimento esteja presente:</p><p>A escola ensina a escrever, ler, desenhar e cantar. (Gisele, 9 anos)</p><p>Aprende ler, escrever e contar. (Vanilda, 9 anos)</p><p>Escrever, ler e contar. (Alessandra, 11 anos)</p><p>Escrever, ler... não! Ler eu não sei não... é... escrever! Copiar do quadro! (Babalu,</p><p>7 anos)</p><p>Apesar da aparente unanimidade em torno da ideia de aprendizado</p><p>da escrita e da leitura, as crianças tiveram dificuldade de responder qual</p><p>a função da leitura e da escrita. Vivem nessa comunidade pouco</p><p>cercadas por esse mundo letrado – para a maioria das crianças, ler e</p><p>escrever são uma atividade escolar, pedagogizada, estéril e sem vida,</p><p>desprazerosa e inútil. Mesmo assim, de maneira geral, os comentários</p><p>dos pais são também de grande valorização do estudo, apesar de a</p><p>maioria não ter estudado ou, mesmo tendo frequentado a escola, não ser</p><p>alfabetizada.</p><p>Acredito que educação seja algo muito mais amplo do que os</p><p>bancos da escola; há que perceber as circunstâncias específicas do</p><p>lugar: seu nível de urbanização e saneamento básicos, seu atendimento</p><p>médico-dentário etc., mas sem deixar obscurecer o papel da escola</p><p>como via de acesso ao conhecimento formal, ou ponte de interligação</p><p>entre o conhecimento espontâneo da comunidade e o conhecimento</p><p>científico. É fundamental que haja circulação de conhecimento, que se</p><p>permeie o acesso ao mundo letrado, às ciências de modo geral; esses</p><p>conhecimentos precisam ser reapropriados por todos, de forma que se</p><p>crie um vínculo entre esse conhecimento formal e a vida. Vida – é o que</p><p>falta na escola!</p><p>A Tia Célia só dá dever e revista pra gente ler. Não conta nenhuma história pra</p><p>gente. A Tia Célia não liga pra conversar com a gente. A Tia Célia só passa dever e</p><p>fala: “É pra fazer isso, isso, isso” e vai lá pra fora acertar os negócios.</p><p>Na visão das crianças aqui estudadas, o espaço de fala na escola é</p><p>preenchido pelo espaço do silêncio. A espontaneidade, pela obediência</p><p>passiva. O aluno só fala quando solicitado pela professora. Esta, por sua</p><p>vez, só fala para dar as ordens a serem executadas. Não há lugar para</p><p>histórias de vida, troca de experiências – o diálogo ameaça a disciplina.</p><p>Como a professora-que-não-fala pode dar abertura à fala do aluno?</p><p>Como entendê-lo como narrador? Está o educador podendo colocar sua</p><p>voz na arena do diálogo, ou é passivo receptor de ordens? A mesma</p><p>professora que supostamente ensina manda calar.</p><p>Segundo Benjamin (1985), falar e ouvir são elos da mesma</p><p>corrente. Entretanto, Martins (1991) sinaliza para o fato de a criança</p><p>pouco falar, mas muito ouvir, fazer parte do grupo não privilegiado –</p><p>aqueles que têm amplo conhecimento das ocorrências, mas que são</p><p>considerados “os mudos da história” (p. 54).</p><p>Impossibilitando o espaço de fala, inviabiliza-se que a trajetória</p><p>escolar fique prenhe de vida, de singularidade, de afetividade. A escola</p><p>tende a separar conhecimento e afetividade. Para Vygotsky (1984), as</p><p>coisas caminham juntas – a criança, na sua relação com o</p><p>conhecimento, com as pessoas, com o mundo, sofre transformações. O</p><p>conhecimento, de maneira geral, tem sido levado às comunidades de</p><p>forma imposta e muito fragmentada. Pelo depoimento das crianças,</p><p>posso dizer que a escola procura inserir seu conteúdo, tão desvinculado</p><p>da realidade, por meio da repetição mecânica.</p><p>O dever é de continha e faça-família.[28] (Vanessa, 7 anos)</p><p>É o mesmo livro sempre!</p><p>Tem dia que ela passa numere.(Chaoli, 9 anos)</p><p>Dever de trissílaba, polissílaba... dissílaba, monossílaba. Tabuada, conta... conta de</p><p>dois números... só, né? (Natália, 12 anos)</p><p>Uns dever maluco lá! Uns dever doido que ela passa lá! Dever maluco! (André, 13</p><p>anos)</p><p>Bakhtin (1992a) sinaliza que o nosso ensino da língua se atrelou à</p><p>ideia de língua morta. Critica que se ensina língua materna como se</p><p>fosse língua estrangeira – incompreensível? Indecifrável? Maluca? O</p><p>conteúdo na escola é prioritário. A forma é deixada de lado. Mas por</p><p>que a escola faz isso? Será mais fácil de ensinar? Ou mais eficiente para</p><p>controlar? O professor não é, e precisaria não se supor, o detentor do</p><p>saber, mas aquele que, com as crianças, possibilita que estas se</p><p>apropriem desse saber e, em constante confronto com os seus outros</p><p>inúmeros saberes, vão construindo a sua rede de relações. Para que isso</p><p>ocorra, não se pode dicotomizar</p><p>organização familiar, com a diversidade e com a riqueza cultural da</p><p>região, servindo de contraponto à pobreza das escolas e à formação de</p><p>seu quadro docente.</p><p>Trazendo uma infância tão diferente da estudada por Isabel, o texto</p><p>A criança e o computador: Trilhando caminhos de pesquisa em</p><p>educação na modernidade, de Letícia Nogueira, nos faz pensar o hoje e</p><p>o agora: a modernidade. Pesquisando crianças em relação ao símbolo da</p><p>sociedade contemporânea – o computador –, estrutura uma narrativa</p><p>repleta de questões baseada no referencial teórico de sua dissertação de</p><p>mestrado.</p><p>Ainda na cidade, porém distante do computador, Maria Angélica</p><p>Algebaile lança seu olhar para as crianças moradoras da favela que</p><p>estudam na escola pública. O texto Entrelaçamento de vozes infantis:</p><p>Uma pesquisa feita na escola pública é tecido com base na experiência</p><p>de vida dessas crianças, mostrando-nos a possibilidade de</p><p>(re)descobrirmos nossos próprios alunos, refletindo criticamente sobre</p><p>nosso dia a dia de professora de escola pública.</p><p>Fazendo um outro recorte na experiência docente de escola pública,</p><p>Mariangela Monteiro – Crianças e linguagem num contexto especial:</p><p>Um estudo etnográfico – privilegia a discussão em torno das crianças</p><p>das classes especiais. Sua inserção no mundo escolar, a constituição de</p><p>suas identidades, sua relação com a comunidade são alguns dos</p><p>aspectos que afloram ao longo desta pesquisa.</p><p>Ao final, há a bibliografia-base, que é referência geral dos textos.</p><p>Vale esclarecer que aquelas obras consideradas específicas aparecem</p><p>nos próprios textos, na forma de rodapé.</p><p>Livro costurado, tecido, é fundamental que possamos de viva voz</p><p>agradecer a todas as pessoas que tornaram este projeto uma realidade.</p><p>Em primeiro lugar, às crianças, a seus pais e professores, que</p><p>depositaram confiança em nós, pesquisadoras, e mostraram tanta</p><p>disponibilidade de falar, ouvir, explicar, contar, apostar. Agradecemos</p><p>também aos nossos interlocutores – professores da Pontifícia</p><p>Universidade Católica do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado</p><p>do Rio de Janeiro, onde foram produzidos estes trabalhos – e aos nossos</p><p>alunos – que nos instigam, dia a dia, com suas questões e reflexões, a</p><p>buscar mais.</p><p>Enfim, a expressão de um desejo: o de que o material aqui reunido</p><p>possa subsidiar a prática de pesquisa e a ação educativa daqueles que,</p><p>como nós, atuam com crianças. De um outro, ainda: que os resultados</p><p>dos trabalhos sejam lidos, incorporados e/ou criticados por aqueles que</p><p>respondem pela gestão da educação da criança no nosso país.</p><p>Sonia Kramer</p><p>Maria Isabel Ferraz Pereira Leite</p><p>1</p><p>PESQUISANDO INFÂNCIA E EDUCAÇÃO: UM</p><p>ENCONTRO COM WALTER BENJAMIN</p><p>Sonia Kramer[1]</p><p>Escavando e recordando – e se ilude, privando-se do</p><p>melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe</p><p>assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é</p><p>conservado o velho.</p><p>Walter Benjamin</p><p>O propósito deste texto é discutir as contribuições teóricas de</p><p>diversos campos do conhecimento voltados à infância, analisando sua</p><p>influência na pesquisa em educação. Focalizo, em particular, a busca</p><p>que temos empreendido, ao longo de quase 20 anos, no sentido de</p><p>delinear um referencial para o estudo da infância, concebendo a criança</p><p>na sua condição social de ser histórico, político e cultural. Desenvolvo</p><p>essa análise em três momentos. Em primeiro lugar, procuro recuperar</p><p>rastros de alguns caminhos teóricos que tive a oportunidade de percorrer</p><p>na tentativa de construir esse referencial. Bernard Charlot e Phillipe</p><p>Ariès são trazidos para o centro da cena, como autores básicos para</p><p>mim neste debate. São abordadas, aqui, as polêmicas relacionadas ao</p><p>significado ideológico da criança nas diversas classes sociais e os</p><p>diferentes conceitos de infância construídos ao longo da história.</p><p>Em seguida, aponto outros marcos teóricos que têm ampliado e</p><p>aprofundado os estudos da infância nos últimos anos e o faço</p><p>apresentando áreas do conhecimento que têm fornecido subsídios para</p><p>compreender a educação e nela atuar, e para conhecer a criança e com</p><p>ela agir, tanto no nível da investigação científica quanto no da</p><p>intervenção educacional. Destaco aqui, ainda que de forma breve, as</p><p>influências e os caminhos deste debate no Brasil.</p><p>Por fim, trago alguns eixos provisórios que tenho defendido como</p><p>sendo cruciais para se delinear uma outra ótica da infância. Aqui a</p><p>criança é concebida na sua condição de sujeito histórico que verte e</p><p>subverte a ordem e a vida social. Analiso, então, a importância de uma</p><p>antropologia filosófica (nos termos que dela falava Walter Benjamin),</p><p>perspectiva que, efetuando uma ruptura conceitual e paradigmática,</p><p>toma a infância na sua dimensão não infantilizada, desnaturalizando-a e</p><p>destacando a centralidade da linguagem no interior de uma concepção</p><p>que encara as crianças como produzidas na e produtoras de cultura. A</p><p>crítica à pedagogização do conceito de infância e à pedagogização das</p><p>tantas ações desenvolvidas com crianças é fio condutor da análise. Esse</p><p>fio constitui, vale dizer, o desafio teórico com o qual defrontamos ainda</p><p>hoje.</p><p>Rastros teóricos – Da crítica ao conceito abstrato de infância, o</p><p>encontro com Charlot e Ariès</p><p>Devo o início desse percurso ao meu mestre José Silvério Baia</p><p>Horta. Explico: em março de 1978, um grupo de profissionais da</p><p>educação reunia-se para estudar e se candidatar ao mestrado em</p><p>educação. Éramos professores de instituições de ensino superior e</p><p>integrávamos movimentos sociais e sindicais em educação que</p><p>lentamente reencontravam o seu vigor, sonhando com a volta de “tanta</p><p>gente que partiu num rabo de foguete”. Naquele momento, a campanha</p><p>pela anistia política, após os anos de chumbo da ditadura no Brasil,</p><p>ganhava força; simultaneamente, a reflexão crítica sobre as questões</p><p>sociais aprofundava a feição política que vinha se esboçando desde</p><p>meados da década de 1970: não por acaso, a análise dos temas relativos</p><p>à infância e à educação revestia-se também de um forte significado</p><p>sociológico, político e ideológico. Questões relativas à exploração</p><p>social, à dominação política e econômica e ao papel da educação na</p><p>(re)produção da desigualdade ou na transformação estavam em pauta.</p><p>Mas foi, contraditoriamente, a definição pela Unesco de que 1979 seria</p><p>Ano Internacional da Criança que forneceu o pretexto para o mergulho</p><p>no trabalho teórico com o objetivo de compreender a visão de infância</p><p>presente no senso comum e na pedagogia.[2]</p><p>Naquele momento, uma versão marginalizadora e preconceituosa</p><p>das crianças das classes populares agudizava-se e tornava-se</p><p>hegemônica, não só no cenário nacional mas em todos os países do</p><p>então chamado Terceiro Mundo, de tal modo que infância pobre e</p><p>fracasso na escola pública apareciam como elementos de um</p><p>inseparável e quase insuperável problema social. Falta de cultura,</p><p>carência social e afetiva, deficit linguístico, desnutrição, imaturidade no</p><p>comportamento e atraso no desenvolvimento, por conjuntura familiar</p><p>desfavorável ou por condições de moradia precárias, eram temas e</p><p>termos trazidos para explicar por que as crianças pobres não tinham</p><p>sucesso na escola, por que não aprendiam, por que falhavam. Se antes, e</p><p>no decorrer da Segunda Guerra, a origem da diversidade era localizada</p><p>em aspectos de natureza genética – o determinismo biológico – e se</p><p>eram geradas ações sociais e políticas de nítido cunho racista, num</p><p>quadro desumano de discriminação e eliminação da diferença, agora se</p><p>desviava o curso da análise. As questões de ordem natural e genética,</p><p>que durante anos a fio prevaleceram na explicação sobre os problemas</p><p>de desempenho, eram superadas. Estávamos em meados dos anos 70, e</p><p>chegava ao Brasil a abordagem da privação cultural – cunhada no pós-</p><p>Guerra e, portanto, quase 20 anos antes – em países onde os filhos de</p><p>imigrantes das populações negras (no caso dos Estados Unidos) ou</p><p>daqueles que viviam em situação de miséria apresentavam problemas na</p><p>escola, rompendo com a explicação biológica e instaurando um</p><p>determinismo social, atribuindo agora a culpa pelo fracasso na escola a</p><p>fatores sociais, culturais, ambientais,</p><p>vida-aprendizagem.</p><p>E é por isso que precisamos conhecer nosso aluno. Conhecê-lo</p><p>como representante da sua classe; como sujeito capaz de agir sobre sua</p><p>trajetória; como narrador, produtor e consumidor de cultura que, através</p><p>da e na linguagem, imprime suas marcas, reelabora o seu passado, vive</p><p>o seu presente e tem possibilidade de não aprisionar o seu futuro.</p><p>Precisamos ouvi-lo, aprender com ele, trocar com ele. A troca, o</p><p>intercâmbio fazem com que o conhecimento passe pelo social – a fala é</p><p>o espaço de troca por excelência. Só ampliando espaços de fala</p><p>poderemos criar laços afetivos e só assim ele se sentirá confiante e</p><p>inteiro. Só confiante e inteiro ele estabelecerá as pontes entre sua vida</p><p>cotidiana e o mundo ao seu redor. Assim, então, ele crescerá; assim esse</p><p>aluno será também mestre.</p><p>Em nossos espaços de troca, talvez pelas próprias especificidades</p><p>do local, não tenho dúvida de que a máquina fotográfica e depois o</p><p>gravador foram excelentes cartões de entrada... acabei sendo chamada</p><p>para fotografar festas, casamentos, aniversários. O gravador era</p><p>disputadíssimo para as sessões musicais – são horas e horas de músicas,</p><p>hinos e versos que sempre pediam para gravar e ouvir depois (não só as</p><p>crianças...). Os recursos que utilizei para as atividades causaram, em sua</p><p>maioria, especial curiosidade. Não conheciam as histórias contadas,</p><p>fantoches de dedo, canetas hidrocor. Por causa disso, dedicava algum</p><p>tempo para que pudessem explorar livremente o material apresentado e</p><p>só depois eu fazia alguma proposta com ele. Era comum pedirem para</p><p>ficar com os materiais – combinava, então, que podiam usar e cuidar</p><p>daquilo até a minha volta. Funcionou muito bem!</p><p>Nossa relação nos surpreendia dia a dia. Nosso espaço de fala,</p><p>nossa liberdade de expressão dos sentimentos e pensamentos.</p><p>Diferentemente, na escola, os mecanismos de repreensão (repressão?)</p><p>usados para manter a ordem, a distância, o poder estão muito presentes.</p><p>Contaram que a professora coloca de castigo, tira recreio e, dentre</p><p>outras coisas, repreende alunos faltosos colocando “desistência” na</p><p>ficha do aluno:</p><p>“Como é botar desistência?”</p><p>É que aí, o aluno nunca estuda mais na escola. Só estuda se o pai vim. Se o pai e a</p><p>mãe vim junto. Bota no nome das pessoas que estuda na escola. Não tem um</p><p>negocinho que bota o nome das pessoas? Data que nasce? Então!</p><p>“Na ficha?...”</p><p>É.</p><p>“Aí a professora escreve desistência e o aluno não pode mais estudar?”</p><p>É.</p><p>“Vocês conhecem alguém que levou desistência na ficha?”</p><p>A Alessandra... ela falhava muito a aula mesmo. Aí a tia pegou e botou desistência.</p><p>No Mazinho também, parente dela. O Marcelo... só que eles veio e a tia deu uma</p><p>chance para eles, né? A tia deu. A Vanilda, lá de baixo, a tia também deu chance.</p><p>Mesmo depois da desistência a tia deu chance.</p><p>Então eu me pergunto: desistência como sugestão disciplinar? Para</p><p>homogeneizar (calar/disciplinar), basta eliminar o diferente? Fazê-lo</p><p>desistir? Diante disso, só conseguia me indagar: quem desiste de quem?</p><p>O aluno que falta é então obrigado a desistir da escola? Ou a escola</p><p>desiste dele? Por que faltam esses alunos? O que é “dar mais uma</p><p>chance”? Um favor? Essas crianças estão tendo, concretamente, alguma</p><p>chance? Posso entender que a professora rural imagina ter diante de si</p><p>um aluno passivo e ao mesmo tempo vazio de história e de vida? Mas, e</p><p>a professora? Está podendo ser sujeito da sua trajetória? Tem sua voz</p><p>ouvida? Será que a ela também é dada, concretamente, alguma chance?</p><p>Afinal, quem dá a chance a quem?</p><p>E é André quem, aos 13 anos, me diz que vai dar “a última chance”</p><p>para sua professora... Contou-me que ela pegou seu caderno para</p><p>mostrar à técnica da prefeitura que ele não aprendia nada. E ele, então</p><p>avisou-a: se ela fizesse aquilo de novo, ele abandonaria a escola! É a</p><p>sua última chance!</p><p>A meu ver, o professor, nas suas condições de trabalho – baixos</p><p>salários, dificuldade de transporte, precárias condições físicas e</p><p>materiais das escolas, pouco acesso à formação permanente em serviço</p><p>–, é mais um sujeito que precisa rever a sua própria história e ter a sua</p><p>história revista nesta engrenagem maior...</p><p>Nesta pesquisa, a imagem da professora foi bastante valorizada –</p><p>não como uma representante fundamental da luta de classes (como a</p><p>que lemos em relatos, especialmente em assentamentos de terra), mas</p><p>como uma figura mais distante, algo como um mito. Quando falam do</p><p>que não queriam que a professora fizesse, as crianças estão claramente</p><p>trazendo a forma como gostariam que ela fosse, como acreditariam que</p><p>se pudessem estabelecer essas relações interpessoais na escola.</p><p>Parar de gritar com a gente, parar de zangar com a gente. Às vezes a</p><p>gente tá conversando, ela chega, joga a gente. Apaga o quadro sem a</p><p>pessoa acabar de copiar, a gente tem que andar rápido... Eu acho que ela</p><p>podia assim, melhorar um pouquinho, né?</p><p>Não se trata de culpabilizar a professora. Esteja situada no campo</p><p>ou na cidade, é preciso que a escola trabalhe com uma criança vista e</p><p>tratada como cidadã; e também com professoras-cidadãs.</p><p>Refletir o papel do professor no espaço escolar leva-me a outra</p><p>questão: que peso tem o saber sistematizado, do qual ele é</p><p>representante, em relação ao conhecimento espontâneo construído na</p><p>comunidade?</p><p>Aprendo mais coisas na escola porque a professora ensina a ler e em casa minha</p><p>mãe nem meu pai não me ensina. (Vanessa, 7 anos)</p><p>Eu aprendo mais coisas na escola porque lá a gente aprende a ler e escrever e</p><p>minha mãe disse que é importante. (Carícia, 10 anos)</p><p>Acho que aprendo mais coisas na escola porque a professora ensina educação. Em</p><p>casa só aprendo as coisas mais ou menos. (Daniela, 13 anos)</p><p>Por meio de uma cadeia de relações entre pessoas da comunidade,</p><p>cria-se uma rede para a transmissão de tipos distintos de conhecimento</p><p>e de perspectivas. Essa relação de aprendizagem informal é importante</p><p>para a estruturação da cultura de classes, especialmente naquilo que</p><p>distingue a comunidade das classes dominantes. O fortalecimento dessa</p><p>rede tenderia a colocar a escola numa posição tangencial com relação à</p><p>experiência global (Willis 1991). O fracasso escolar não impede que as</p><p>crianças se reconheçam como possuidoras de inúmeros saberes que</p><p>aprendem em família, sozinhas ou com seus pares.</p><p>Sei fazer pipa, casinha e sopão [alçapão]. A pipa eu aprendi sozinho. Essa casinha</p><p>eu peguei as tábuas no abatedouro, fiquei vendo o Marcos fazer e aprendi. Aprendi</p><p>a tirar leite com o meu pai. (André, 13 anos)</p><p>Sei desenhar, fazer bolo e fazer doce. Foi minha mãe que ensinou. Minha irmã</p><p>ensinou a fazer boneca. (Daniela, 13 anos)</p><p>Sei fazer carrinho de rolimã. Aprendi a ler com minha irmã Daniela. (Pedro, 10</p><p>anos)</p><p>Entretanto, esses conhecimentos não têm, nessa comunidade, o</p><p>mesmo peso que o conhecimento formal da escola. Aquelas pessoas</p><p>entendem que a escola traz conhecimentos que não teriam fora dela; e</p><p>comumente veem esse aprendizado como mais importante do que as</p><p>suas conquistas do dia a dia. Mais uma vez aqui percebo forte marco na</p><p>educação que a comunidade dá a seus filhos. A escola é vista como</p><p>necessária e fundamental, e o conhecimento nela produzido é bastante</p><p>ressaltado, apesar de muito poucos conseguirem adquiri-lo.</p><p>A escola, fazendo preponderar a importância dos conhecimentos</p><p>científicos de forma distanciada da vida da comunidade, e</p><p>inviabilizando a construção da rede de conhecimentos espontâneos em</p><p>seu interior, ignora que diferentes processos históricos de constituição e</p><p>desenvolvimento das sociedades humanas marcam a heterogeneidade</p><p>dos modos de vida, a pluralidade nas expressões das relações sociais, a</p><p>multiplicidade de culturas. É a ideia de culturas que permite assinalar a</p><p>singularidade histórica e social de um grupo. Não é possível agrupar em</p><p>um todo homogêneo as manifestações culturais dos diversos setores da</p><p>sociedade (Chauí 1988). Cultura é produto e processo. Comunidades</p><p>diferentes, culturas diferentes, compreensões de mundo diferentes... isso</p><p>é multiplicidade!</p><p>A sociedade e suas diversas instituições têm dificuldade de lidar</p><p>com as diferenças; baseiam-se</p><p>em normas, regras e enquadramentos,</p><p>empenhando-se na tentativa de legitimar ideias hegemônicas como</p><p>sendo as corretas, entendendo como erradas as que, na verdade, são</p><p>diferentes. As diferentes culturas são formas fundamentais de expressão</p><p>da sensação popular do mundo (Bosi 1988). O encontro dialógico de</p><p>culturas não deveria implicar perda de identidade de nenhuma delas; em</p><p>vez disso, conservando abertas a sua unidade e a sua totalidade, elas se</p><p>enriqueceriam mutuamente.</p><p>Se a escola percebesse os trabalhos das crianças e a sua capacidade</p><p>expressiva como criação/recriação de sua realidade, estaria não só</p><p>valorizando a produção, mas contribuindo para o fortalecimento da luta</p><p>pela expressividade, pela legitimação de uma cultura. Esta é também</p><p>uma luta política e pelo direito à constituição plural de identidades</p><p>(Macedo, 1988).</p><p>Lidar com as diferenças; mais do que isso – respeitá-las e</p><p>compreendê-las como marcas da nossa condição humana. Entendo que</p><p>a escola deveria ser um espaço especialmente propício a isso.</p><p>Diferentemente, o que vemos é a padronização e a ausência de</p><p>circulação de conhecimento sistematizado. A forma pela qual se</p><p>relacionam umas com as outras, a maneira pela qual são vistas pela</p><p>escola, tudo caminha para, apesar de muito diferentes entre si, as</p><p>crianças serem vistas como bloco homogêneo. Precisamos da escola</p><p>pública viva, democrática, sensível, aberta, permeável às trocas,</p><p>singular. Somente ampliando o espaço de fala, de rememoração e</p><p>possibilitando acesso aos diversos saberes, a escola estará possibilitando</p><p>o não apagamento das diferenças, a não cristalização dos papéis, a não</p><p>restrição aos conhecimentos formais; estará, assim, possibilitando</p><p>mudar a história (Kramer 1995).</p><p>A insensibilidade com a cultura e a linguagem da criança faz com</p><p>que as instituições identifiquem como carência aquilo que é, na</p><p>realidade, diferença. Quero, então, reforçar: diferentemente do que</p><p>defendem as teorias da privação cultural, as crianças-sujeitos desta</p><p>pesquisa não são carentes nem estão em falta. Vivem seus diferentes</p><p>papéis em família; estão inseridas na comunidade e no funcionamento</p><p>desta; têm espaço para brincar; possuem inúmeros saberes; são</p><p>educadas para o trabalho, para gostar do que fazem, parecendo viver a</p><p>possibilidade de aliar o trabalho ao jogo, estruturando suas relações com</p><p>a vida, com a produção, e não necessariamente para a reprodução.</p><p>Entendo, então, que me relacionei com um sujeito produtor de</p><p>cultura e, portanto, narrador. Sendo assim, não dei voz à comunidade</p><p>rural – ela já tinha voz! Procurei, sim, instigá-la a soltar a voz. Afinal,</p><p>falar é perceber-se na corrente da comunicação verbal, em suas</p><p>múltiplas vozes. Bakhtin (1992a) diz que o sujeito está na língua, ele</p><p>não a adquire; ele a usa, modifica-a (e é por ela modificado); ele entra</p><p>na corrente da língua como entra na corrente da história. A língua está</p><p>sempre muito próxima da história dos grupos que a constituem; é</p><p>carregada do conjunto de conteúdos e sentidos que historicamente se dá</p><p>às palavras; é a presença viva da história na palavra. Portanto, em seu</p><p>discurso, como membro de uma coletividade, a criança está em relação</p><p>com todos os sujeitos e todos os contextos da enunciação: está situada</p><p>historicamente. Bakhtin (1992a) dá destaque ao sujeito em sua</p><p>perspectiva dialética valorizando sua interação com o outro,</p><p>reconhecendo-o enquanto voz e texto. Martins (1991) diz: “A fala de</p><p>cada criança é claramente fragmento de um enredo mais amplo, que ela</p><p>protagoniza com os outros” (p. 58).</p><p>Benjamin (1985), em seu texto “O narrador”, diz que a capacidade</p><p>de narrar está desaparecendo. A narrativa cede lugar à informação –</p><p>cada vez mais rápida, útil, absoluta. Não deve haver margens para</p><p>outros entendimentos. Perdemos hoje nossa possibilidade de</p><p>intercambiar experiências. O isolamento do grupo nos afasta do papel</p><p>de sujeitos históricos e faz com que percamos a possibilidade narrativa,</p><p>visto que a semente desta é o outro e não a nossa própria fala. A palavra,</p><p>que era também expressão, vem-se tornando apenas instrumento de</p><p>comunicação, esterilizada, a serviço da transmissão, da constituição de</p><p>verdades únicas, monológicas, sem capacidade crítica ou analítica.</p><p>Portanto, resgatando o papel da linguagem como instrumento</p><p>privilegiado de interação sujeito-meio social, busquei a fala das próprias</p><p>crianças para pensar a infância, trazendo à tona especificidades da área</p><p>rural na sua realidade sociocultural. Acredito, com isso, estar também</p><p>contribuindo para um novo olhar teórico-metodológico de pesquisa.</p><p>Fugindo ao homogêneo, ao padrão, vejo claramente que nem tudo</p><p>no campo são flores. Além de problemas muito concretos (atoleiros,</p><p>tempestades, tiros), outros bem mais subjetivos cercaram e se acercaram</p><p>da pesquisa todo o tempo. Lidar com pessoas, com sujeitos, com as</p><p>diferenças... e novamente a linguagem! Linguagem que aproxima e que</p><p>afasta; que seduz e que petrifica; que dialoga e que cala. Relembro que</p><p>sou mulher-adulta-urbana assumindo o desafio de conhecer e</p><p>compreender meninos e meninas-crianças-camponeses. Nossa relação</p><p>foi sendo construída, tecida...</p><p>Sou uma fonte preciosa. Estou disposto a lhe contar coisas interessantes. Para isso,</p><p>entretanto, seria bom que você voltasse com a mente mais aberta, sem idéias</p><p>preconcebidas. (...) Libere sua curiosidade e então lhe contarei aspectos</p><p>surpreendentes dessa vida que você está esmiuçando.[29]</p><p>Percebi aos poucos que nossos encontros, até então marcados pela</p><p>surpresa e pela curiosidade, apesar de continuarem sendo espaços de</p><p>prazer, sinalizavam a hora de parar... as falas começavam a se repetir, as</p><p>mesmas histórias a reaparecer... Era preciso distanciar; decantar;</p><p>costurar melhor. Conversei com as crianças. Como foi difícil! Durante</p><p>um tempo, ainda me procuravam atrás de brincadeiras e histórias. Seus</p><p>desenhos, cartinhas e versinhos acumulados nesse tempo são produções</p><p>gráficas dos sentimentos que nos uniam: afetividade e respeito mútuos,</p><p>compreensão das diferenças, linguagem.</p><p>Se nossa relação se construiu na base da confiança, do respeito e da</p><p>afetividade, estávamos ali inteiros, sujeitos que somos, com nossa</p><p>identidade e singularidade presentes. Se trabalhava com sujeitos,</p><p>ressaltando a importância da criança-cidadã, sinalizando a relevância da</p><p>voz, da autoria, ainda tinha um desafio metodológico: como resolver a</p><p>questão dos nomes das crianças? Usar seus nomes verdadeiros? A</p><p>pesquisa que fiz elucidou questões que, mesmo sem aprofundamento,</p><p>denunciam a situação de opressão do campo. Portanto, a fim de</p><p>resguardar a integridade das crianças e dos adultos – sujeitos narradores</p><p>nesse trabalho –, optei por substituir todos os nomes. Por essa mesma</p><p>razão, omiti o nome da localidade estudada. Outra hipótese seria usar</p><p>um código ou mesmo omiti-los. Acredito, porém, que nosso nome é</p><p>importante por contribuir com nossa constituição como sujeitos-</p><p>cidadãos, com nossa identidade, nossa autoimagem. Nenhuma das</p><p>opções correntes me agradava... e aí surgiu uma nova ideia: pedi que</p><p>cada um escolhesse o nome com que gostaria de aparecer no texto.</p><p>Dessa forma, acredito que a pesquisa pôde trazer contribuições efetivas</p><p>sem carregar de medo e denúncias a vida, já tão oprimida, dessa</p><p>comunidade e, ao mesmo tempo, destacou seus moradores em seu papel</p><p>de sujeitos, de autores e narradores que são.</p><p>Discutir com eles os nomes que desejariam ter foi outro momento</p><p>rico. Alguns se animaram a escolher heróis ou ídolos (Bruce Lee, Van</p><p>Damme, Daniela Mercury, Angélica); outros optavam por nomes de</p><p>amigos ou parentes com fortes laços afetivos; uns poucos não quiseram</p><p>trocar e houve até aqueles que tiveram muita preocupação em ocultá-lo,</p><p>mas não conseguiam descolar-se dele e, a todo momento, viam-se</p><p>descobertos por qualquer nome sugerido. Tomo o exemplo de um dos</p><p>poucos adultos que aparecem mais intensamente na pesquisa – foram</p><p>muitas conversas, em tom preocupado, em que ele só sugeria os nomes</p><p>de seus próprios filhos ou irmãos (todos muito diferentes dos nomes</p><p>convencionais e, portanto, marcantes na região)</p><p>e imediatamente se</p><p>dava conta de que seria facilmente reconhecido se o fizesse... até</p><p>finalmente perceber que poderia ampliar esse universo de nomes e</p><p>poderia ser qualquer pessoa. Eis que escolheu Gomercino.</p><p>Ao longo do processo e, principalmente, ao final, o desafio era</p><p>outro: partilhar a pesquisa e traduzir em palavras meu pensamento e</p><p>minha fala interior, tão abreviada que é. Escrever o texto da pesquisa</p><p>foi, para mim, então, um processo de tecelagem – é a alegoria do tecer,</p><p>da coisa em sua forma mais artesanal, a que melhor se aplica ao meu</p><p>modo de construção. Partindo da ideia orgânica do todo, fui tecendo-o:</p><p>linha por linha, palavra por palavra. Diferentemente do esculpir, em que</p><p>uma unidade maior vai sendo polida, cortada, raspada, refinada, no</p><p>texto as ideias vão se entrelaçando, crescendo, ganhando corpo e</p><p>sentido. Para escrever, também não tinha dois pontos fixos: o de saída e</p><p>o de chegada. Sinto que minha escrita foi sim, um caminho, uma</p><p>trajetória. Se quiser imaginar o espectro de cores, sei que não saí do</p><p>preto para chegar ao branco – fui trabalhando com os matizes de cinza.</p><p>Ora os escurecendo, ora os clareando. Fui acreditando que sempre</p><p>poderia haver um tom ainda mais claro do que aquele branco ou mais</p><p>retinto do que aquele preto. É como se sempre depois daquele extremo</p><p>já conhecido pudesse haver um outro; entendendo aquele extremo como</p><p>nosso extremo, o que conhecemos hoje – mas há de haver um novo para</p><p>além dele. “A verdade perdeu o caráter permanente de outros tempos e</p><p>é, com freqüência, operada do ângulo de verdade como processo.”[30]</p><p>Por isso, a pesquisa não tem fim em si mesma. Cada vez que é lida,</p><p>é partilhada, é modificada em seu sentido. Cada leitor, ao ler um texto,</p><p>mobiliza sua história, seu olhar, sua experiência de vida – e é com base</p><p>nesse enfoque que ele entende o texto. “Toda palavra (todo signo) de</p><p>um texto conduz para fora dos limites do texto. A compreensão é o</p><p>cotejo de um texto com outros textos” (Bakhtin 1992b, p. 404). O autor</p><p>e o texto são penetrados pelo leitor com base em seu contexto, em sua</p><p>ótica e nesta relação autor-leitor-texto atam-se, então, outros nós, outros</p><p>laços, e cada leitor, artesão individual que é, contribui na construção</p><p>coletiva do trabalho artesanal, que já não é mais o mesmo – é um outro,</p><p>um novo.</p><p>Olhar a escrita como tecelagem é buscar, na linguagem, sua</p><p>dimensão estética e sua possibilidade expressiva. Essa reflexão acerca</p><p>das dimensões ética e estética da linguagem encontrei também em</p><p>Benjamin:[31] a valorização da possibilidade de se relacionar com o</p><p>outro, com sua história; a linguagem como possibilidade de encontrar,</p><p>de socializar a dimensão artística, de entender uma forma científica</p><p>outra na qual paixão e afetividade sejam marcantes. É buscar uma</p><p>escrita des-formatada, des-enformada. Livre de algemas e amarras, uma</p><p>escrita viva. É buscar o resgate da arte de narrar. Eu-narradora, sujeito</p><p>com vida e história, com experiências a intercambiar. Escrevendo um</p><p>texto, escrevo minha história, escrevo a história da comunidade. Minha</p><p>escrita não é só minha. Ela é o registro dos muitos sujeitos que na</p><p>coletividade me constituem. Assim vejo a escrita, assim vejo a autoria; e</p><p>entendo que essa concepção de escrita e de autoria me remete ao</p><p>entendimento que tenho de criança autora/narradora – entendimento que</p><p>me leva a compreender que a história e a cultura podem constituir um</p><p>enfoque teórico-metodológico de pesquisa cujo eixo seja a linguagem.</p><p>Procurei escrever este texto na mesma forma dialogal com que a</p><p>pesquisa foi se estruturando. Crianças-sujeitos, eu-pesquisadora e</p><p>autores-teóricos fomos tomando força e corpo – concepções de infância</p><p>e de cultura construíram-se em confronto com as visões de trabalho,</p><p>escola e saber das crianças, na arena com Benjamin, Bakhtin e</p><p>Vygotsky, trazendo conosco o lúdico e o artístico em sua força</p><p>subversiva, abrindo portas para se pensar a escola, a professora, o</p><p>sistema... O referencial teórico-metodológico não se constituiu num a</p><p>priori isolado, separado e amorfo, mas sim como parte da trama tecida e</p><p>construída ao longo da caminhada.</p><p>Não há nada na composição do sentido que possa colocar-se acima da evolução,</p><p>que seja independente do alargamento dialético do horizonte social. A sociedade</p><p>em transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a</p><p>significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e</p><p>dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma</p><p>nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias.</p><p>(Bakhtin 1992a, p. 136)</p><p>5</p><p>A CRIANÇA E O COMPUTADOR: TRILHANDO</p><p>CAMINHOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO NA</p><p>MODERNIDADE</p><p>Letícia Nogueira[32]</p><p>Nenhuma política pública pode (...) desconsiderar uma</p><p>análise crítica do mundo moderno e da experiência</p><p>humana, social e cultural do homem neste mundo, na</p><p>medida em que pretenda introduzir mudanças, gerar</p><p>transformações, ou mesmo manter o existente. Assim, é</p><p>fundamental o conhecimento das circunstâncias em que</p><p>estão imersos homens e mulheres, entendendo-se, além</p><p>disso, essas “circunstâncias” como parte da história</p><p>humana. Não pode, pois, uma política pública pretender</p><p>instalar o novo deixando de perceber o sempre igual...,</p><p>sob pena de – embora comprometa-se ao nível do</p><p>discurso com a mudança, com a liberdade e a dignidade,</p><p>com igualdade e a justiça – favorecer tão-somente a</p><p>repetição, a mesmice, a massificação e a manutenção das</p><p>desigualdades.</p><p>Sonia Kramer</p><p>É urgente colocarmos computadores nas escolas? Crianças do</p><p>século XXI estudarão em escolas do século XIX? O computador</p><p>desenvolve a inteligência do aluno? As crianças gostam de trabalhar no</p><p>computador? É importante formar cidadãos que saibam lidar com a</p><p>tecnologia? No futuro, quem não souber inglês e informática não terá</p><p>lugar no mercado de trabalho? Adultos (principalmente professores)</p><p>detestam máquinas? Crianças têm maior facilidade de lidar com elas? O</p><p>computador, com suas imagens coloridas e animadas, motiva o aluno na</p><p>aprendizagem das mais diversas disciplinas? Daqui a algum tempo todo</p><p>o conhecimento estará armazenado no computador?</p><p>Perguntas com poucas respostas. Entretanto, perguntas que, na área</p><p>de informática na educação, são colocadas como afirmações. Como</p><p>escapar do senso comum? Como olhar, com algum estranhamento, uma</p><p>realidade na qual estamos inseridos? Ou melhor, como olhar para essa</p><p>realidade por diferentes ângulos? Como fazer surgir seus diferentes</p><p>pontos de vista?</p><p>Baseada na minha história, vou em busca de novos referenciais que</p><p>possam me ajudar a pensar criticamente o uso do computador na escola.</p><p>E, tentando entender esse uso, reporto-me às crianças. Crianças que</p><p>sonham, inventam, destroem, criam. Brincadeiras, brinquedos, textos,</p><p>sonhos... individuais ou coletivos? Crianças que constroem a história.</p><p>Qual história? A mesma de sempre? Partindo da criança, entendendo-a</p><p>como sujeito sócio-histórico, busco uma compreensão da modernidade.</p><p>Modernidade que poderia ter como símbolo o computador. Computador</p><p>a serviço do capitalismo, nos bancos. A serviço do homem, nos</p><p>hospitais. Objeto neutro ou múltiplo? Poderia, nas mãos das crianças,</p><p>ser usado para subverter a nossa história?</p><p>Captar os diversos aspectos emaranhados na relação da criança com</p><p>o computador... É o que eu tento fazer. Mas como? Como registrar as</p><p>vozes das crianças sem aprisioná-las em um significado único? Traço</p><p>aqui um possível caminho. Caminho de pesquisa em educação.</p><p>Essa história começa assim...</p><p>Cada pedra que eu achava, cada flor colhida, cada</p><p>borboleta capturada, já era para mim começo de uma</p><p>coleção, e tudo que, em geral, eu possuía, formava para</p><p>mim uma única coleção.</p><p>Walter Benjamin</p><p>Trabalhando no Ginape (Grupo de Informática Aplicada à</p><p>Educação), no Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ, participava</p><p>da história da informática na educação. Uma história que começa na</p><p>década de 1960, quando a proposta da instrução programada de Skinner</p><p>foi utilizada como modelo para elaboração de diversos tipos de CAI</p><p>(Computer Aided</p><p>Instructions). Até então, os computadores só existiam</p><p>nas universidades e nas grandes empresas para efetuar cálculos, guardar</p><p>informações e gerar relatórios. Nessa mesma época, no MIT</p><p>(Massachusetts Institute of Technology), surgia uma nova abordagem</p><p>do uso de computadores no ensino: a linguagem Logo. Mais do que</p><p>uma linguagem, o grupo dirigido por Seymour Papert e Marvin Minsky</p><p>concebeu uma teoria de aprendizagem baseada na teoria epistemológica</p><p>de Jean Piaget. Pretendia-se, assim, criar um ambiente no qual o</p><p>conhecimento não fosse passado para a criança, mas no qual a criança,</p><p>interagindo com as outras crianças, com o professor e com os objetos</p><p>desse ambiente (computador, tintas, brinquedos, livros, massinha entre</p><p>outros), pudesse construir, no seu ritmo, seu conhecimento.[33]</p><p>No Brasil, entretanto, só na década de 1980 o computador começa a</p><p>chegar às escolas. E foi nessa década que, trabalhando no Ginape, tive</p><p>oportunidade de participar de um projeto de implantação de</p><p>computadores no Colégio de Aplicação da UFRJ. O objetivo desse</p><p>projeto era criar um ambiente onde fossem utilizados programas</p><p>aplicativos e linguagens de programação como ferramentas auxiliares</p><p>no ensino de disciplinas em cursos de 1º e 2º graus (atualmente ensino</p><p>fundamental e médio). Depois de dois anos sensibilizando um grupo de</p><p>professores da escola, criamos, em conjunto com alguns deles, oficinas</p><p>de trabalho com os alunos. Como eram atividades extraclasse, só</p><p>participavam aqueles que estivessem realmente interessados. Muitos</p><p>chegavam com uma grande expectativa mas, muitas vezes, se</p><p>frustravam. Alguns alunos apareciam na sala do computador fora dos</p><p>horários das oficinas. Uns queriam jogar... Outros queriam fazer</p><p>trabalhos das disciplinas curriculares... A maioria queria conhecer a</p><p>grande novidade da escola.</p><p>Foi nesse período que comecei a pensar mais criticamente no uso</p><p>de computadores em escolas. Comecei a achar que estávamos no</p><p>caminho errado. Afinal, percebi que o computador pouco trazia de</p><p>mudança. Quem trazia alguma mudança éramos nós, os professores,</p><p>discutindo textos de escola, de crianças. Discutindo criatividade,</p><p>flexibilidade, multiplicidade, cooperatividade. Imaginação e criação.</p><p>Com lápis, papel, tesoura, som, computador, cola, argila. Prazer em</p><p>aprender.</p><p>Depois disso, trabalhei, como professora de informática de</p><p>professores de crianças, no Centro de Informática Educativa do Projeto</p><p>Horizonte. Esse projeto, criado pela IBM, enfatiza o desenvolvimento</p><p>cognitivo, social e afetivo dos alunos, buscando uma educação em que o</p><p>aluno participe ativamente da construção do conhecimento, utilizando o</p><p>computador como auxiliar versátil e flexível. Assim, em um primeiro</p><p>momento, os professores participam de um curso no qual pensam o</p><p>computador como ferramenta que pode ajudar. A ideia é que usem</p><p>programas abertos (editores de texto, gráfico, Logo e sistemas de</p><p>autoria em hipermídia)[34] como instrumentos auxiliares na criação de</p><p>projetos interdisciplinares. Assim que o trabalho começa com os alunos,</p><p>são realizadas algumas visitas para que possamos dialogar com os</p><p>professores e com as crianças, conhecer suas dificuldades, seus</p><p>sucessos.</p><p>Tanto na UFRJ, como na IBM, pensávamos o computador como</p><p>uma ferramenta. Como instrumento auxiliar no processo de ensino-</p><p>aprendizagem. Apesar de utilizarmos programas variados, tentávamos</p><p>criar o ambiente de aprendizagem proposto por Papert. Entretanto,</p><p>muitas vezes não conseguíamos... Collis,[35] fazendo uma revisão das</p><p>pesquisas existentes sobre informática na educação, afirma não</p><p>podermos chegar a uma conclusão generalizada sobre o impacto do</p><p>computador em nenhuma área específica de ensino-aprendizagem. Os</p><p>efeitos do computador são determinados, não pelo computador, mas</p><p>pelas características dos alunos e professores, pela metodologia de</p><p>ensino, pela organização social da turma.</p><p>Procurando compreender as possibilidades do uso do computador</p><p>na educação em um contexto sócio-histórico, vendo as crianças como</p><p>construtoras da cultura e da história, busco referenciais que possam me</p><p>ajudar.</p><p>Assim, com Benjamin, tento entender as ambiguidades da técnica,</p><p>da modernidade. Técnica que massifica e homogeneiza os homens. Que</p><p>desvaloriza a experiência, a narrativa. Técnica que pode se transformar</p><p>em linguagem artística. Libertadora... Benjamin ajuda-me a</p><p>compreender o computador, objeto exemplar da modernidade. Na</p><p>história. Entrecruzamento de passado, presente e futuro. História</p><p>construída por homens e mulheres. Por crianças.</p><p>Bakhtin, por sua vez, mostra-me a centralidade da linguagem nas</p><p>ciências humanas. Linguagem polissêmica, polifônica. Linguagem que</p><p>constitui os sujeitos, a cultura. Reflete e refrata a realidade. Linguagem</p><p>que transforma a palavra abstrata de dicionário em palavra significada,</p><p>contextualizada. Contada, cantada, escrita, pensada. Linguagem que é</p><p>diálogo na história... Tento, com Bakhtin, entender a linguagem como</p><p>ponto fundamental para entender a criança que transforma e é</p><p>transformada. A criança que, na linguagem – da vida, da ciência, da</p><p>arte –, faz história.</p><p>Com Benjamin, pensando a modernidade e a criança</p><p>A novidade veio dar à praia</p><p>Na qualidade rara de sereia</p><p>Metade o busto de uma deusa maia</p><p>Metade um grande rabo de baleia...</p><p>Herbert Vianna/Bi Ribeiro/João Barone/Gilberto Gil</p><p>Buscando compreender os diversos aspectos presentes nos diversos</p><p>usos do computador na educação; tentando encontrar, na história, a</p><p>criança vista por inteiro, não esfacelada pela psicologia, pela educação,</p><p>pela ciência; entendendo a vida, a modernidade, a tecnologia, o</p><p>computador nas suas multiplicidades, alio-me a Walter Benjamin.</p><p>Benjamin[36] fala da modernidade e de suas contrariedades.</p><p>Escovando a história a contrapelo, recusa a ilusão de progresso, critica o</p><p>capitalismo e o consumismo que massificam e homogeneizam os</p><p>homens.</p><p>Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os</p><p>dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os</p><p>despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que</p><p>chamamos bens culturais. (...) Devem sua existência não somente ao esforço dos</p><p>grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos.</p><p>Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da</p><p>barbárie. (Benjamin 1985, p. 225)</p><p>Como subverter essa história? Benjamim acredita que é na arte de</p><p>narrar que recuperamos nossa memória, nossa cultura. E denuncia o</p><p>caráter medíocre da experiência do mundo moderno.</p><p>Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em</p><p>histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de</p><p>explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da</p><p>narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está</p><p>em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral.[37] (...) O extraordinário e o</p><p>miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação</p><p>não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com</p><p>isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação. (Idem,</p><p>1985, p. 203)</p><p>Como resgatar a experiência em uma sociedade que é tecnicista e</p><p>cientificista, consumista? Uma sociedade que pode ter como símbolo o</p><p>computador. Uma sociedade onde não se deixam rastros. Onde as</p><p>informações são rápidas e voláteis. Onde a realidade é inventada ou,</p><p>melhor dizendo, manipulada. Sem entrar na corrente da experiência</p><p>humana, perdemos o barco da história. Não percebemos os modismos,</p><p>os idealismos por trás (e pela frente também) do tecnicismo.</p><p>Pretendemos formar crianças para um futuro tecnológico, esquecendo o</p><p>passado e o presente. Não nos perguntamos como subverter essa história</p><p>porque nem sequer percebemos que ela precisa ser subvertida. Perdendo</p><p>nossos valores, perdemos a capacidade crítica. Somos mais facilmente</p><p>convencidos. Inebriamo-nos com propostas de mudanças tecnicistas</p><p>sem nos dar conta de que a ideologia não foi transformada.</p><p>Entretanto, Benjamin (1985) consegue perceber as ambiguidades</p><p>presentes na sociedade. Vendo no presente, repleto de passado e futuro,</p><p>uma possibilidade de modificação, percebendo as tensões existentes</p><p>entre a técnica e seu uso, postula que a reprodutibilidade técnica da obra</p><p>de arte amplia as possibilidades de novos e mais numerosos produtores.</p><p>Benjamin acredita que, por meio da sensibilidade artística, abrimos</p><p>caminho para enfrentar os desafios impostos pela sociedade. Assim, fala</p><p>do cinema como linguagem libertadora. Como linguagem que, através</p><p>da imagem, faz com que o homem capte uma nova dimensão do mundo.</p><p>Uma das funções sociais mais importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o</p><p>homem e o aparelho. O cinema não realiza essa tarefa apenas pelo modo com que</p><p>o homem se representa diante do aparelho, mas pelo modo com que ele representa</p><p>o mundo, graças a esse aparelho. Através dos seus grandes planos, de sua ênfase</p><p>sobre pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares, e de sua investigação</p><p>dos ambientes mais vulgares sob a direção genial da objetiva, o cinema faz-nos</p><p>vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa</p><p>existência, e por outro assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de liberdade.</p><p>(Idem, 1985, p. 189)</p><p>Falando de cinema, de modernidade, trago o Pasolini de Jovens</p><p>infelizes (1990). Pasolini cineasta e ensaísta. Pasolini que nos mostra o</p><p>sutil fascismo do consumo. Pasolini que, assim como Benjamin, critica</p><p>o empobrecimento da linguagem, a falta de diálogo entre as gerações.</p><p>Pasolini que percebe o cinema, através de suas lentes artísticas, de seu</p><p>olhar sensível, como linguagem transformadora da história, capaz de</p><p>exercitar no homem um outro modo de olhar e prestar atenção ao</p><p>mundo que o rodeia. Para Pasolini, são as coisas, antes de tudo, que nos</p><p>educam.</p><p>As palavras dos pais, dos primeiros mestres e finalmente dos professores se</p><p>sobrepõem ao que já ensinaram ao menino as coisas e os atos, cristalizando esse</p><p>ensinamento. Só a educação recebida dos companheiros será muito semelhante à</p><p>ministrada pelas coisas e pelos atos. (p. 127)</p><p>Quais são as coisas que educam as crianças de hoje? Que objetos</p><p>estão presentes na vida contemporânea? A técnica possibilita às crianças</p><p>serem também artistas? Possibilita refletir, partindo-se de sonhos</p><p>coletivos, como sugere Benjamin, a barbárie? Poderia o computador,</p><p>assim como a fotografia ou o cinema, ser linguagem libertadora?</p><p>Transformando a técnica em magia, em imaginação, em brinquedo, a</p><p>criança poderia estar subvertendo a história?</p><p>Tentando entender a modernidade, encontro-me com a criança. E</p><p>procuro, com Benjamin, conhecê-la.</p><p>Mais do que na infância de um indivíduo, Benjamin estava</p><p>interessado na infância como um coletivo. Falando das crianças e de</p><p>seus brinquedos, Benjamin (1985, p. 109) busca a rememoração da</p><p>infância de uma era. De uma infância histórica. Ultrapassando a</p><p>dicotomia entre singular e universal, busca as semelhanças nas</p><p>particularidades.</p><p>Mesmo para os homens dos nossos dias pode-se afirmar que os episódios</p><p>cotidianos em que eles percebem conscientemente as semelhanças são apenas uma</p><p>pequena fração dos inúmeros casos em que a semelhança os determina, sem que</p><p>eles tenham disso consciência. As semelhanças percebidas conscientemente – por</p><p>exemplo, nos rostos – em comparação com as incontáveis semelhanças das quais</p><p>não temos consciência, ou que não são percebidas de todo, são como a pequena</p><p>ponta do iceberg, visível na superfície do mar, em comparação com a poderosa</p><p>massa submarina.</p><p>Criança que vê o mundo com uma lógica própria. Criança-criança,</p><p>criança-gente que constrói, que cria, que refaz, que destrói sua cultura e</p><p>sua história. Com que a criança brinca?</p><p>CANTEIRO DE OBRA. Elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos –</p><p>material educativo, brinquedos ou livros – que fossem apropriados para crianças é</p><p>tolice. Desde o Iluminismo essa é uma das mais bolorentas especulações dos</p><p>pedagogos. Seu enrabichamento pela psicologia impede-os de reconhecer que a</p><p>Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercício infantis. E</p><p>dos mais apropriados. Ou seja, as crianças são inclinadas de modo especial a</p><p>procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a atividade</p><p>sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo que surge na</p><p>construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria.</p><p>Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta</p><p>exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras</p><p>dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que</p><p>com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso</p><p>as crianças formam para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas</p><p>mesmas. Seria preciso ter em mira as normas desse pequeno mundo das coisas, se</p><p>se quer criar deliberadamente para as crianças e não se prefere deixar a atividade</p><p>própria, com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento, encontrar por si só o</p><p>caminho que conduz a elas. (Benjamin 1987, p. 18)</p><p>Criando, por meio da imaginação e da fantasia, um mundo com</p><p>uma lógica própria, brincando com o lixo da história, a criança está,</p><p>assim, refazendo a história. Para criança, o computador é um</p><p>brinquedo? Um objeto da família? Passado, presente ou futuro?... Vozes</p><p>de crianças. Linguagem. Falada, escrita, pensada. Linguagem que</p><p>penetra em todas as atividades humanas, carregando uma ideologia,</p><p>uma história. É por meio da linguagem que o homem se faz homem...</p><p>Se quero conhecer a criança; se quero perceber o significado que ela dá</p><p>à tecnologia... devo fazê-lo na linguagem!</p><p>Com Bakhtin, pensando a linguagem</p><p>Se o homem investisse no assovio tudo o que</p><p>normalmente atribui à palavra, e se o melro modulasse</p><p>no assovio todo o não-dito de sua condição de ser</p><p>natural, eis que estaria assim realizado o primeiro passo</p><p>para preencher a separação entre... entre que e o quê?</p><p>Natureza e cultura? Silêncio e palavra? O senhor</p><p>Palomar espera sempre que o silêncio contenha algo</p><p>além daquilo que a linguagem pode expressar. Mas e se a</p><p>linguagem fosse na verdade o ponto de chegada a que</p><p>tende tudo o que existe? Ou se tudo que existe fosse</p><p>linguagem, já desde o princípio dos tempos?</p><p>Ítalo Calvino</p><p>Como captar as múltiplas vozes da realidade? Como equacionar a</p><p>tensão entre subjetividade e objetividade? Ou melhor: Como perceber a</p><p>realidade como um todo, na sua diversidade? Como percebê-la pelos</p><p>olhos das crianças – sujeitos sociais, históricos e culturais – sem apagar</p><p>as suas marcas? Como levar em consideração suas singularidades sem</p><p>abrir mão da totalidade?</p><p>Torna-se fundamental a adoção de um enfoque metodológico que resgate no</p><p>homem contemporâneo o seu caráter de sujeito social, histórico e cultural. Ser</p><p>sujeito é ter o direito de se colocar como autor das transformações sociais. Uma</p><p>vez que a linguagem é o que caracteriza e marca o homem, trata-se de restaurar nas</p><p>ciências humanas o seu valor como constituidora do sujeito e da própria realidade.</p><p>É na linguagem, e por meio dela, que construímos a leitura da vida e da nossa</p><p>própria história. (Jobim e Souza 1994, p. 21)</p><p>Para Benjamin, é na narrativa – entrecruzamento de passado,</p><p>presente e futuro – que resgatamos nossa memória, nossa cultura, nossa</p><p>história. Construímos uma identidade. E a narrativa nada mais é do que</p><p>linguagem. Linguagem plena de sentido, de tradição, de história.</p><p>Pasolini, por sua vez, busca, por meio da literatura e do cinema, uma</p><p>história esquecida. Ou uma subversão da história presente. Literatura e</p><p>cinema. Linguagens! Assim, percebendo a centralidade da linguagem –</p><p>constituidora do sujeito, da história e da cultura – nas ciências humanas,</p><p>pergunto-me: O que é linguagem? É tudo o que existe, como sugere</p><p>Calvino na citação acima? Cinema, fotografia? Existe uma linguagem</p><p>das coisas?</p><p>Bakhtin, descrito por Todorov[38] como uma das figuras mais</p><p>múltiplas e enigmáticas da cultura europeia de meados do século XX,</p><p>[39]</p><p>é agora quem me auxilia.</p><p>As ciências exatas são uma forma monológica de conhecimento: o intelecto</p><p>contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que</p><p>pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia-se). Diante dele, há</p><p>a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (incluindo o homem) pode ser</p><p>percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser</p><p>percebido e estudado a título de coisa porque, como sujeito, não pode,</p><p>permanecendo sujeito, ficar mudo; conseqüentemente, o conhecimento que se tem</p><p>dele só pode ser dialógico. (Bakhtin 1992b, p. 403)</p><p>Concebendo o homem como sujeito que dialoga com a realidade,</p><p>que se constitui na interação com os outros; procurando sair da</p><p>dicotomia entre forma e conteúdo; contrapondo (e unindo) arte e</p><p>comunicação verbal na vida cotidiana, Bakhtin (1976, p. 21) traça uma</p><p>concepção de linguagem.</p><p>Onde a análise lingüística vê apenas palavras e as inter-relações de seus fatores</p><p>abstratos (fonéticos, morfológicos, sintáticos, etc.), a percepção artística viva e a</p><p>análise sociológica concreta revelam relações entre pessoas, relações meramente</p><p>refletidas e fixadas no material verbal. O discurso verbal é o esqueleto que só toma</p><p>forma viva no processo da percepção criativa – conseqüentemente, só no processo</p><p>da comunicação social viva.</p><p>Assim, Bakhtin (1976) ressalta que, ao falarmos ou escrevermos</p><p>(ao usarmos qualquer forma de comunicação), as palavras ditas estão</p><p>impregnadas de qualidades, de valores presumidos e não enunciados. A</p><p>compreensão de uma determinada frase implica a compreensão de uma</p><p>situação extraverbal, de um contexto. Retirando o contexto no qual foi</p><p>dita a frase, não podemos entendê-la na sua totalidade.</p><p>A vida, portanto, não afeta um enunciado de fora; ela penetra e exerce influência</p><p>num enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão da existência que</p><p>circunda os falantes e unidade e comunhão de julgamentos de valor essencialmente</p><p>sociais, nascendo deste todo sem o qual nenhum enunciado inteligível é possível.</p><p>(Idem, 1976, p. 17)</p><p>Para Bakhtin (1976), na fronteira entre a vida e o aspecto verbal de</p><p>um determinado enunciado está a entoação. É a entoação que dá vida a</p><p>um discurso, traz esse discurso para corrente da história, dá a uma</p><p>palavra o seu caráter único. Quem são os personagens dessa história? O</p><p>autor – aquele que fala –, o ouvinte – quem escuta –, e o tema – aquilo</p><p>de que estão falando. São esses três personagens que, interagindo na</p><p>história, registram, nas palavras, a sua realidade.</p><p>Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas</p><p>também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona</p><p>como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa</p><p>física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse</p><p>sentido, a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto, passível de um</p><p>estudo metodologicamente unitário e objetivo. (Bakhtin 1992a, p. 33)</p><p>É na palavra que percebemos as diversas ideologias, condições</p><p>sociais, hierarquias. Por penetrar em todos os domínios da sociedade, é</p><p>indicadora das transformações sociais. Refletindo e refratando a</p><p>realidade, é transformadora da cultura, da história. “A palavra associa o</p><p>traço visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou</p><p>temida, como uma frágil passarela improvisada sobre o abismo”</p><p>(Calvino 1990, p. 90).</p><p>Assim, por intermédio da palavra construída na interação entre os</p><p>interlocutores, buscando perceber a ideologia nela contida, acreditando</p><p>que ela se dá na tensão entre o coletivo e o individual, que por sua vez</p><p>também é formado por muitas vozes, tento buscar uma metodologia de</p><p>pesquisa que consiga captar, na palavra objetiva, a subjetividade da</p><p>história.</p><p>Teorias... Como funcionam na prática?</p><p>Com vocês, a criança da cidade na modernidade...</p><p>Em cada palavra há vozes, vozes que podem ser</p><p>infinitamente longínquas, anônimas, quase desperso-</p><p>nalizadas (...), inapreensíveis, e vozes próximas que soam</p><p>simultaneamente.</p><p>Mikhail Bakhtin</p><p>Trago agora a voz, a escrita, o desenho de uma criança. Trago seu</p><p>texto e seu contexto. Leio, interpreto, compreendo esse texto. Trazendo</p><p>o meu contexto, o meu texto. De outra maneira... O texto não pode ser</p><p>aprisionado em um significado único. Ele é polissêmico, múltiplo,</p><p>plural. O que eu aqui apresento é uma das muitas possíveis leituras,</p><p>interpretações. Dessa forma, coloco em prática a teoria. Tento entender</p><p>a relação da criança com o computador. Criança da cidade na</p><p>modernidade. Vamos à história...</p><p>Essa história que conto é a história de Pedro. História de um</p><p>menino que nasceu em um mundo não muito bom. Nem muito ruim.</p><p>Um mundo em que uns eram muito pobres. Outros, ricos demais. Um</p><p>mundo em que existiam corruptos. E trabalhadores. Guerras.</p><p>Movimentos sociais. Um mundo bem confuso. Um mundo sem certos,</p><p>sem errados. Um mundo.</p><p>Nesse mundo, os homens tinham dominado a natureza. Ou pelo</p><p>menos achavam que tinham. Tinham dominado o fogo, inventado</p><p>formas de se comunicar, criado máquinas que melhoravam sua vida.</p><p>Melhoravam sua vida? Algumas sim, outras não. Nem sempre essa</p><p>técnica toda vinha a serviço de um bem-estar da humanidade. O</p><p>computador, por exemplo, inventado anos antes de Pedro ter nascido,</p><p>servia para ajudar o homem em táticas de guerra. Você acha que essa era</p><p>uma boa invenção? Também acho que não. Mas esse mesmo</p><p>computador foi depois usado nos hospitais, para ajudar a salvar vidas.</p><p>Ah... então podia ser usado para várias coisas? É, podia. Podia até ser</p><p>usado por crianças, imagine você! E muitas escolas começaram a se</p><p>interessar em ter um computador. Nessa época, os professores das</p><p>escolas falavam sem parar. E botaram os computadores para falar sem</p><p>parar, como os professores. Mas computador falava? Não! Isso é modo</p><p>de dizer. Os computadores davam muitos textos para as crianças lerem.</p><p>Pediam para elas fazerem exercícios. Depois inventaram que o</p><p>computador podia ajudar as crianças a aprender. A pensar. Muitas</p><p>crianças gostavam. Outras não! Achavam aquilo chatíssimo. Quem</p><p>ensinava às crianças como aprender era uma tartaruga... O computador</p><p>nessa época começou a ser usado como máquina de escrever, tela de</p><p>pintura. Conseguia guardar muita coisa: receitas, cartas, informações</p><p>científicas. E as crianças também usavam o computador para escrever,</p><p>desenhar, guardar coisas...</p><p>Já ia me esquecendo do Pedro... Ele nasceu nesse mundo. Seu pai</p><p>ensinava o computador a fazer desenhos. Sua mãe ensinava as crianças</p><p>e os professores a usar o computador. Pedro nasceu com um</p><p>computador dentro de casa. Com um ano, adorava apertar todos os seus</p><p>botões. Adorava também brincar de bola, ir à praia, passear. Com três</p><p>anos, pintava alguns desenhos já prontos no computador. Pintava</p><p>também com tinta, com lápis. Pintava o sete. Com três anos, começando</p><p>a perceber o mundo das letras, escrevia no computador: TLFN</p><p>(telefone), PEDRO (seu nome ele já sabia escrever), MAJCO (mágico).</p><p>Escrevia também com lápis e papel. Gostava que lhe contassem</p><p>histórias. Muitas vezes lia sozinho, reinventando as histórias. As</p><p>palavras que escrevia eram palavras do seu mundo, dos livros, da vida.</p><p>Escrevia porque queria, porque gostava. Certo dia, Pedro falou: “Quero</p><p>aprender a ler e a escrever todas as palavras do mundo!” E assim o fez.</p><p>Com 4 anos estava lendo e escrevendo. Como se deu esse processo?</p><p>Não sei muito bem. Aliás, não é o que interessa aqui. Deixa eu</p><p>continuar a história: Pedro estava lendo e escrevendo.</p><p>Mas... Lendo e escrevendo o quê? Lendo livros para criança, lendo</p><p>rótulos de embalagem, lendo placas de rua, lendo cartazes publicitários,</p><p>lendo desenhos animados na televisão, lendo conversas entre seus</p><p>amigos, lendo a escola, a família, o mundo. Interpretava o que lia. E</p><p>escrevia: suas palavras faladas, escritas, desenhadas. Escrevia seu</p><p>mundo. Que mundo era esse? É Pedro quem nos conta.[40]</p><p>eu fui em jaragua la tem</p><p>grama la é cidade</p><p>tambem la tem</p><p>varios tios</p><p>eles são legais</p><p>de pedro n. m. para</p><p>guilherme f.</p><p>Nas férias, Pedro conheceu</p><p>Jaraguá. Cidade do interior. Quando</p><p>chega, escreve uma carta para Guilherme, um amigo da escola.</p><p>Contando de Jaraguá – cidade com grama e com tios –, conta da cidade</p><p>em que mora – cidade sem grama e sem tios. Cidade com televisão.</p><p>Pedro dentro da televisão.</p><p>Televisão: uma grande caixa. Mágica? Pedro nos mostra o que ele</p><p>lê nessa caixa. E conta, na sua linguagem, a linguagem da televisão.</p><p>Linguagem de consumo, linguagem publicitária. Linguagem que vende</p><p>brinquedo, gente. Linguagem que vende mundo pra todo mundo.</p><p>Pedro gosta de televisão. Mas gosta também da escola, de seus</p><p>amigos. E adora fazer uma lista com os nomes dos melhores amigos da</p><p>escola (essa lista sempre muda). Gosta de fazer cartas para seus amigos.</p><p>Cartas que contam, que convidam. Cartas que mostram o seu mundo.</p><p>Rafael</p><p>Um dia você Quer ir</p><p>numa Fazenda que chama</p><p>FAZENDA ALEGRIA</p><p>Lá tem uma Piscina</p><p>Que é muito legal</p><p>que tem um escorrega</p><p>Maneiro</p><p>Pedro</p><p>Outra coisa de que Pedro gosta muito é festa de aniversário. Não</p><p>gosta só do dia da festa, mas dos preparativos. Pedro começa a perceber</p><p>que forma e conteúdo estão sempre relacionados. Para contar e</p><p>convidar, faz cartas. Para dizer como fazer, faz receitas. E dá a receita</p><p>para quem quiser fazer uma festa:</p><p>Como fazer o meu aniversario</p><p>1 fazer o bolo</p><p>1 fazer de chocolate</p><p>2 cozinhar o bolo para botar a calda de morango no bolo</p><p>3 acabar de cozinhar para botar a calda de morango no bolo</p><p>4 quando acabar de cozinhar bota a calda de morango</p><p>5 quando acabar de botar a calda de morango no bolo bota o bolo no</p><p>forno para esquentar</p><p>Como fazer os enfeites</p><p>Compra a cartolina, as tintas e o isopor</p><p>Aumenta o desenho do peter pan no computador</p><p>Passa o desenho grande para cartolina</p><p>Pinta</p><p>Corta</p><p>Cola no isopor</p><p>Corta o isopor</p><p>Pedro constrói histórias. Histórias fictícias, histórias com formato</p><p>de livro infantil. Sempre começam com um sonoro Era uma vez...</p><p>Histórias com título, autor e data. Pedro é, agora, escritor. Suas histórias</p><p>imprime e leva para a escola.</p><p>Era uma vez um menininho o</p><p>céu estava azul bem clarinho e o</p><p>sol estava bem amarelinho o</p><p>nome dele era guilherme</p><p>ele tinha 5 anos</p><p>a mãe dele falou para ele recolher</p><p>os legumes verduras e frutas ai o pai dele</p><p>chegou com o carro e falou oi filho você</p><p>esta recolhendo legumes verduras e frutas</p><p>ai acabou todos os legumes verduras e frutas ai e ele foi para casa</p><p>E o computador? O que Pedro fala do computador?</p><p>Pedro N. M.</p><p>o meu pai vai</p><p>gravar arquivo</p><p>porque é file</p><p>o meu computador</p><p>porque eu tambem</p><p>gosto de arquivo</p><p>vai ser muito legal</p><p>guilherme f.</p><p>Pedro conta ao seu amigo que o pai vai colocar no seu computador</p><p>um programa em português. Por isso diferencia arquivo de file (arquivo</p><p>em inglês). Pai e filho – mesmo computador. O mesmo objeto de uso, o</p><p>mesmo objeto de trabalho. Objeto que permite que Pedro seja escritor-</p><p>desenhista. Permite que distribua várias cópias de seus textos para seus</p><p>amigos. Objeto de gente de todas as idades.</p><p>É só sua mãe ou seu pai sentarem-se ao computador para fazerem</p><p>alguma coisa, que Pedro vem atrás: “Mãe, posso brincar no</p><p>computador? Você já trabalhou muito...” Brincadeira e trabalho... Pedro</p><p>também usa computador na escola. Para escrever, desenhar e jogar.</p><p>Quando chega em casa, sua mãe sempre pergunta:</p><p>“Pedro, o que você fez na escola hoje?”</p><p>– Ah, mãe, não fiz nada! (sem paciência com a pergunta de todo dia)</p><p>“Como nada?”</p><p>– Ah... me lembrei. Hoje a gente foi na sala do computador.</p><p>“E o que você fez no computador?”</p><p>– Ah, nada! (fala irritado) A Valentina não deixou. Ela fica o tempo todo jogando.</p><p>“E o que você queria fazer?”</p><p>– Jogar o Froks. Mas ela não deixou!</p><p>“Pedro, o que você mais gosta de fazer no computador?”</p><p>– O que eu gosto mais... Jogar o Froks. Quando umas pedras caem em cima da</p><p>gente, a gente morre. Eu queria ir até a fase 6 para ficar mais fera. Mas a Adriana</p><p>(sua professora) sempre quer que a gente escreva. Escrever é muito chato!</p><p>“Ué?! Mas você sempre pede para escrever no computador... Você acha chato</p><p>escrever???”</p><p>(pensando) – Não... Mas eu acho jogar e desenhar mais legal!</p><p>Pedro gosta de desenhar e jogar. Fala que escrever é muito chato.</p><p>Por que, então, escreve tanta coisa em casa? O jogo, por ter um desafio</p><p>– chegar à fase 6 – é mais divertido? Sobreviver em Froks – um jogo</p><p>em que você tem que construir uma casa, mas pedras caem sobre você –</p><p>é sobreviver no mundo moderno? É chato escrever ou é chato ter a</p><p>obrigação de escrever?... Chega de tantas perguntas. A conversa</p><p>continua com sua mãe querendo saber de Pedro mais coisas (eta mãe</p><p>perguntadeira!).</p><p>“Pedro... O que você acha que o computador é, hein?”</p><p>– Ô mãe... você tá cansada de saber! O computador é uma máquina!</p><p>“É uma máquina para brincar?”</p><p>– Não! (já muito irritado com tantas perguntas) É uma máquina que tem jogos.</p><p>Mas tem também escritor para escrever e desenhos. Agora chega!</p><p>Sua mãe para de perguntar. E vai escrever tudo que Pedro tinha</p><p>falado. Daqui a alguns minutos chega ele e, como quem não quer nada,</p><p>pergunta:</p><p>– Mãe, o que você está fazendo?</p><p>“Estou escrevendo tudo aquilo que a gente conversou.”</p><p>– Para quê?</p><p>“Para depois não me esquecer. Pedro... o computador pensa?” (de novo as</p><p>perguntas!)</p><p>– Não. (já mais interessado, por perceber que tudo que ele falava sua mãe anotava)</p><p>Só naquele jogo das bolinhas que ele fica jogando sozinho! Ele ganha tudo porque</p><p>é fera nisso. Mas algumas vezes ele não funciona. Mãe... deixa eu escrever para</p><p>você o nome do programa que não funciona? (escreve na folha)</p><p>“Você gosta de escrever?”</p><p>– Mais ou menos. Gosto também de ler, de ouvir histórias, de brincar de carrinho,</p><p>de posto, de garagem.</p><p>Pedro diz que gosta mais ou menos de escrever. E conta tudo o que</p><p>gosta de fazer. Mas a toda hora escreve alguma coisa. Pedro diz que o</p><p>computador não é brinquedo. Mas sempre que faz alguma coisa no</p><p>computador – escreve, desenha, joga – diz que está brincando no</p><p>computador. A não ser nos dias em que o computador está muito</p><p>ocupado. Nesses dias ele diz que tem um trabalho muito sério para</p><p>fazer.</p><p>E de que Pedro brinca-trabalha no computador de casa? Brinca de</p><p>ser escritor-desenhista. Brinca com jogos. Mas, a não ser por algumas</p><p>exceções, os jogos só fazem sucesso enquanto são novidades. Depois</p><p>enjoam. A brincadeira de artesão das formas e das letras não enjoa</p><p>nunca. Nunca se repete. Pedro pensa o que vai escrever. Escolhe a letra,</p><p>o tipo de parágrafo, a forma. Pedro pensa o que vai desenhar. Vai</p><p>experimentando as cores. A reta, a curva, o pincel. Se não ficou bom,</p><p>apaga. Às vezes tudo. Às vezes só um pedacinho. Vai construindo seu</p><p>texto-desenho. Quando acha que ficou bom, imprime. Com papel</p><p>branco sempre. Rascunho não vale. Quando tem mais de uma folha (às</p><p>vezes tem até capa), grampeia e faz um livro. Com lápis de cor, faz a</p><p>arte-final. Está pronto seu trabalho que ele leva para a escola para</p><p>mostrar para os amigos. Ou não. Às vezes aquilo é só dele e não quer</p><p>mostrar para ninguém. Guarda no seu armário. Às vezes escreve-</p><p>desenha e depois não quer mais. Rasga.</p><p>Como termina essa história? Também não sei. Talvez Pedro</p><p>desligue o computador e vá viver no interior, onde tem grama. Talvez vá</p><p>trabalhar com computador na televisão, fazendo anúncios publicitários.</p><p>Talvez seja relações-públicas e dê muitas festas. Para todos os seus</p><p>amigos. Talvez seja cozinheiro ou escritor... O que Pedro vai ser ou</p><p>deixar de ser já não interessa. Importa o que ele é. E o que ele é? É</p><p>criança. Criança que usa o computador do mesmo modo que o lápis de</p><p>cor. Criança que brinca com as palavras, com as cores, com o mundo.</p><p>Destrói e reconstrói. Cria. Sonha. Faz história.</p><p>História de Pedro... De Marcos, de Júlia, de João, de Cristina...</p><p>Enfim...</p><p>Contando a história de Pedro, percebo estar acompanhada.</p><p>Acompanhada de pensamentos. Benjaminianos e bakhtinianos.</p><p>Pensamentos que me ajudam a ler a história que Pedro conta. Que me</p><p>ajudam a compreender Pedro. Criança da cidade. Na modernidade.</p><p>Pedro, no seu texto, conta seu mundo. Para quem? Para o mundo. O</p><p>mundo da televisão, da escola, das festas de aniversário. Seu texto é</p><p>resposta e pergunta. Como</p><p>diria Bakhtin, um elo na comunicação verbal</p><p>da história. Pedro lê o mundo, interpreta, faz julgamentos. Escreve.</p><p>Conteúdo e forma entrelaçados. Escreve um mundo inventado, recriado,</p><p>destruído. Os não ditos, os presumidos, também fazem parte do texto.</p><p>Assim como as entoações, os gestos.</p><p>Pedro nos conta de um mundo sem grama. Mundo da televisão.</p><p>Televisão que invade a vida. Promove o consumo. Massifica e</p><p>homogeneiza. Pedro conta também de um mundo com amigos, festas e</p><p>livros. Um mundo com computador. Máquina de brincar, escrever,</p><p>desenhar. Sua máquina. Máquina do seu mundo. Máquina-resíduo do</p><p>trabalho dos adultos. Transformada em máquina-brinquedo. Máquina-</p><p>arte. Pedro recria a história.</p><p>Mas qual é a importância da história de Pedro? Pedro é um entre os</p><p>milhares e milhares de crianças que usam computador. Que vivem em</p><p>cidade grande... Contando a história de Pedros, Brunas, Marias e</p><p>Gustavos, contamos a história de uma época. Em cada história, em cada</p><p>fragmento, o todo. A modernidade. Recriada, reinventada. Por cada uma</p><p>das crianças.</p><p>Para vocês, aqui acaba a história. Para mim, aqui ela começa.</p><p>Porque a história que contei é caminho. Construção. Construção de uma</p><p>pesquisa de mestrado. Uma pesquisa que me ajudou a compreender o</p><p>que o computador significa para as crianças. Uma pesquisa que teve</p><p>como objetivo captar, na linguagem (oral, escrita, artística), os aspectos</p><p>entrelaçados na relação da criança com o computador. Em outras e</p><p>minuciosas palavras:</p><p>O que as crianças falam do computador? Qual o significado que</p><p>atribuem a ele? É brinquedo? Um brinquedo para gente de todas as</p><p>idades? Um brinquedo pedagógico? É ferramenta? Linguagem? É uma</p><p>promessa de um futuro melhor? Uma chance de experimentar o</p><p>presente? De viver o seu tempo? Qual a importância que dão a ele? É</p><p>fundamental para suas vidas? Útil? Dispensável? Para que serve um</p><p>computador? E ainda: onde usam o computador? Como aprenderam a</p><p>usá-lo? Com alguém da família? Na escola? Em um curso? O que fazem</p><p>no computador? Jogam? Que tipo de jogos? Escrevem? O quê?</p><p>Desenham? Criam ou copiam? São artistas? Reproduzem ou</p><p>subvertem?</p><p>Com essas questões, fui tecendo a história das crianças. Crianças</p><p>pobres. Ricas. Crianças. Crianças que estão na escola. Pública.</p><p>Particular. Que têm computador em casa. Crianças que, de alguma</p><p>forma, de todas as formas, das mais diversas formas, usam o</p><p>computador. Busquei outros Pedros, Marias e Gustavos. Na minha</p><p>cabeça, levava dúvidas: Conseguiria conhecer essas crianças para poder</p><p>contar suas histórias? Conseguiria, por meio dessas histórias,</p><p>compreender a modernidade? Hoje posso dizer: consegui conhecer as</p><p>crianças. Consegui?</p><p>Estou preso nessa contradição: de um lado, creio conhecer o outro melhor do que</p><p>ninguém (...); e, por outro lado sou freqüentemente assaltado por essa evidência: o</p><p>outro é impenetrável, raro, intratável; não posso abri-lo, chegar até sua origem,</p><p>desfazer o enigma. De onde ele vem? Quem é ele? Por mais que me esforce não o</p><p>saberei jamais. (Barthes apud Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro 1995, p.</p><p>18)</p><p>Se conhecer é impossível, consegui estabelecer espaços de trocas,</p><p>espaços de interação. Espaços em que eu era eu mesma, sem</p><p>representar. Espaços em que estavam presentes o jogo, a arte, o lúdico.</p><p>Um espaço construído na hora do recreio. Um espaço conquistado. Por</p><p>mim e pelas crianças. Com muita brincadeira, fomos conversando e nos</p><p>conhecendo... Mas essa já é uma outra história...</p><p>6</p><p>ENTRELAÇAMENTO DE VOZES INFANTIS:</p><p>UMA PESQUISA FEITA NA ESCOLA</p><p>PÚBLICA[41]</p><p>Maria Angélica Pampolha Algebaile[42]</p><p>Quando eu soltar a minha voz</p><p>por favor entenda</p><p>que palavra por palavra</p><p>eis aqui uma pessoa se entregando</p><p>coração na boca, peito aberto, vou sangrando</p><p>são as lutas dessa nossa vida...</p><p>Gonzaguinha</p><p>Enquanto menina-adolescente sempre sonhei ser professora.</p><p>Educadores na família? Nenhum. Não foi muito significativo também o</p><p>estímulo para que eu fosse educadora. Apesar dos contras familiares,</p><p>não só caminhei solitariamente até a conclusão do curso de formação de</p><p>professores como também acreditei e investi no curso de pedagogia.</p><p>Sempre estudei em instituições particulares religiosas (fundamental ao</p><p>ensino superior), e os estágios (da escola normal e da faculdade)</p><p>ocorreram em instituições do mesmo tipo. Entretanto, apesar de ter</p><p>experiência profissional em escolas particulares, a opção por ser</p><p>educadora foi (e está sendo) o exercício do magistério na escola pública.</p><p>A realidade apresentada pela escola pública estava totalmente</p><p>desvinculada da realidade da formação profissional. Quantos</p><p>professores não receberam igual formação? “Habilitada” para a escola</p><p>“ideal” (inexistente), encontrei a escola real, uma escola constituída por</p><p>crianças oriundas de famílias de baixa renda, crianças classificadas de</p><p>“carentes”. Os primeiros contatos com o ensino público deixaram-me</p><p>em estado de choque. Fora as condições físicas precárias das escolas, o</p><p>que me espantou de fato foi uma série de fatores sobre os quais minha</p><p>visão era irreal, como as condições socioculturais, econômicas e físico-</p><p>psicológicas dos alunos (um número considerável de crianças em nível</p><p>de Curso de Alfabetização, C.A., e 1ª série já estava comprometido com</p><p>o fracasso escolar). Gradativamente, fui percebendo uma série de</p><p>deficiências não do aluno mas da própria escola que, na verdade, a</p><p>incapacitavam de dar conta dessa realidade. A ausência de uma política</p><p>educacional adequada à nossa sociedade, a falta de material didático, a</p><p>deficiente formação do professor, a ausência de atualização dos</p><p>profissionais e outras questões agravavam o quadro. Mas o que</p><p>incomodava mais era o discurso monológico tão presente no contexto</p><p>pedagógico.</p><p>Falar de monologismo é falar que a escola oferece muito pouco</p><p>espaço para as crianças expressarem seus anseios, alegrias, medos,</p><p>angústias, prazeres, enfim, suas vidas. Há pouco espaço e tempo para o</p><p>diálogo entre educadores e educandos, para ambos narrarem as suas</p><p>experiências. A linguagem está encarcerada, cristalizada, fossilizada.</p><p>Ela é a oficial, a dominante, a que privilegia a norma linguística, a</p><p>correção ortográfica e gramatical em detrimento da linguagem como</p><p>significado para o educando:</p><p>Eu gosto de ler revista em quadrinhos da Mônica, do saci-pererê mas a leitura que</p><p>a professora passa no quadro eu não gosto. Eu não queria ler leitura que a</p><p>professora bota no papel e a gente leva para casa e depois tem que ler para ela.</p><p>(Fábio, 11 anos)[43]</p><p>Muitas vezes, esperamos para os deveres de aula e casa, nas provas</p><p>e nos testes respostas prontas. Mas a criança, subvertendo a ordem (tão)</p><p>“natural” das coisas, responde com uma experiência de vida sua, isto é,</p><p>com um dado significativo para ela, que surpreende, fazendo-nos</p><p>pensar. Cenas do cotidiano escolar: correção do dever...</p><p>Complete:</p><p>Joãozinho ganhou 10 balas.</p><p>Ele já comeu 5 balas.</p><p>Joãozinho ficou com tente</p><p>Paulinho vende bala.</p><p>Paulinho vende fogos.</p><p>“Júlio, você pode unir essas duas frases em uma só usando o ‘e’ – Paulinho vende</p><p>balas e fogos.”</p><p>– Não pode, não, professora. Ele vende as balas de manhã e os fogos, à tarde. Ele</p><p>passa em casa pra trocar de mercadoria e de ponto. (Júlio, 10 anos)</p><p>Os educandos nos exigem fisicamente (beijos e abraços) e nos</p><p>“seguram” para contar/narrar histórias. Histórias de suas vidas. Reais.</p><p>Fortes! As crianças desejam falar. Desejam ser ouvidas. Elas desejam</p><p>conversar. Desejam perguntar. E... um detalhe: todas de uma só vez! Ao</p><p>mesmo tempo! Que overdose de vozes infantis! Boa overdose, pois não</p><p>mata, pelo contrário, está cheia de vida! E a escola com tão pouco</p><p>espaço! Tão pouco tempo! Que desperdício de vidas! Que descaso com</p><p>as narrativas (lembro Benjamin)![44] Que ausência de ouvintes! Que</p><p>prática pedagógica está favorecendo à criança registrar sua história de</p><p>vida? A sua história é a sua construção como sujeito na linguagem.</p><p>Fora a questão da linguagem, outra questão vem causando</p><p>incômodo: O que é ser criança (a quem chamam) carente? Essas</p><p>crianças são “carentes”, “deficientes”, “inferiores” porque não</p><p>correspondem a</p><p>um padrão estabelecido? Faltam a essas crianças</p><p>atitudes ou conteúdos que deveriam ser nelas incutidos? Não devemos</p><p>nos limitar a levar um número considerável de crianças a atingir</p><p>modelos. A nossa prática necessita centrar não no que falta, no que</p><p>carece, mas no que a criança apresenta. Se não conhecemos o que ela</p><p>tem, não saberemos o que ela é. Se carência é a “falta de”, então, não só</p><p>a criança está carente. O sistema sociopolítico, econômico e cultural e</p><p>as condições concretas das políticas públicas de educação não oferecem</p><p>ao professor possibilidades de conhecer a vida de seus alunos. Quem</p><p>são nossos alunos?</p><p>Somos professores em escolas ou em excolas?! O hiato</p><p>estabelecido entre educadores e educandos advém, principalmente, de</p><p>uma diferença de linguagem, e, portanto, de cultura. Baratz (apud</p><p>Kramer 1992) entende que o que determina que a criança não aprenda é</p><p>a falha no sistema educacional, é a insensibilidade da escola às</p><p>diferenças culturais e linguísticas que as crianças trazem para o</p><p>ambiente escolar. Essa escola falha em utilizar os padrões culturais das</p><p>crianças como veículo para a aprendizagem de novos estilos culturais.</p><p>Carência ou diferença, pluralidade? Os educadores estão disponíveis</p><p>para essa multiplicidade?[45] Foi a caminho da diferença, da</p><p>pluralidade, da multiplicidade, da linguagem verbal e escrita da criança</p><p>com significado de vida para ela, e, principalmente, foi a caminho de</p><p>conhecer e compreender o contexto (político-socioeconômico-cultural)</p><p>que está por detrás das palavras (vozes) dos educandos que encontrei</p><p>Mikhail Bakhtin.</p><p>Bakhtin e a polifonia</p><p>A categoria básica da concepção de linguagem em Bakhtin é a</p><p>interação verbal cuja realidade fundamental é seu caráter dialógico.</p><p>Esse tema central assume diversos nomes: poliglossia, heteroglossia e</p><p>polifonia. Todos os termos estão associados à comunicação por meio da</p><p>diferença, tanto entre pessoas como entre textos ou grupos sociais. A</p><p>abordagem bakhtiniana aceita e instiga a pensar a diferença como</p><p>sinônimo de multiplicidade (Stam 1992). A essência do pensamento</p><p>bakhtiniano é a contribuição pessoal (a singularidade de cada sujeito)</p><p>para o seu coletivo (os vários auditórios sociais). Sendo assim, esse</p><p>autor nos faz pensar e repensar a concepção de adulto/educador, de</p><p>criança/educando e de escola e, principalmente, a ideia de não termos</p><p>medo de conviver com a diversidade e investirmos em um trabalho</p><p>coletivo. O múltiplo, o dialogismo, a autoria coletiva, a não detenção do</p><p>poder da palavra, a capacidade (o privilégio) de em tudo ver “nuanças”</p><p>e ouvir “vozes” não implicarão a perda de identidade, cada sujeito</p><p>conservará a sua unidade e totalidade, porém, se enriquecerá</p><p>mutuamente. Cada pensamento e cada enunciado são parte do</p><p>encadeamento mais amplo, aberto e sem fim do diálogo da vida e na</p><p>história. A verdade não se encontra no interior de uma única pessoa,</p><p>mas está no processo de uma interação dialógica entre pessoas que a</p><p>procuram coletivamente. Uma das características fundamentais do</p><p>dialogismo é conceber a unidade do mundo nas múltiplas vozes que</p><p>participam do diálogo da vida. A unidade do mundo é, na concepção de</p><p>Bakhtin, polifônica. Bakhtin reporta-se a Dostoievski para falar de</p><p>polifonia. Para ele, esse escritor é o orquestrador das vozes dos seus</p><p>personagens. Não poderíamos nos considerar orquestradores de vozes?</p><p>De vozes infantis!</p><p>Perceber o todo que está por detrás das vozes individuais é um</p><p>grande desafio, posto que exige do ouvinte/orquestrador profunda</p><p>sensibilidade e uma atitude destituída de poder, permitindo às vozes se</p><p>expressarem com propriedade. Os professores também precisam reger</p><p>essa orquestra polifônica. O giz é a nossa batuta e o quadro-negro, a</p><p>nossa pauta. Mas não só o quadro e o giz, tampouco somente a sala de</p><p>aula. O pátio, a biblioteca, os corredores, o auditório e outros espaços</p><p>podem servir de palco. O discurso infantil está no refeitório, na fila da</p><p>birosca (algumas escolas públicas têm um espaço onde são vendidos</p><p>refrigerantes, doces, salgados etc.), no portão, nas brigas, nas</p><p>brincadeiras, por intermédio das saudações, das conversas, das</p><p>discussões. O professor deve estar atento e lançar mais vezes “uma</p><p>mirada” ao discurso de seus alunos. O professor pode e deve buscar a</p><p>harmonia dessas vozes infantis sem excluir a sua própria voz. O que se</p><p>estará buscando? A harmonia do diferente. A singularidade do plural.</p><p>As ideias de Bakhtin são impregnadas de vida. Vida, significando</p><p>relação entre os sujeitos. Relação que propicia movimento com</p><p>possibilidades de mudança. Relação estabelecida entre sujeitos</p><p>diferentes com possibilidades de se conhecerem, se compreenderem e</p><p>construírem juntos. Mais do que com as pessoas nos relacionamos com</p><p>as suas histórias. O pensamento de Bakhtin dá sustentação à prática</p><p>pedagógica que objetiva o reposicionamento da criança seja no contexto</p><p>escolar seja no social. Penso que a pesquisa aqui relatada possa</p><p>contribuir para que atuais e futuros educadores percebam “nas dobras</p><p>do cotidiano escolar” (Kramer 1993) pistas para sua transformação. A</p><p>possível aplicabilidade deste estudo consiste em contribuir para uma</p><p>reavaliação e, consequentemente, para uma reorientação da prática do</p><p>educador, baseada na compreensão e na interpretação do mundo através</p><p>da ótica infantil, uma vez que o conhecimento da leitura do mundo, pelo</p><p>olhar da criança, lança perspectivas outras de reflexão e atuação do</p><p>educador, no seu dia a dia em sala de aula, concebendo-se a criança</p><p>como ser construtor se construindo.</p><p>Crianças na escola</p><p>Martins (1991, p. 51) faz algumas considerações sobre a pesquisa, o</p><p>pesquisador e a criança, que cabe, de início, assinalar. Para esse autor,</p><p>as ciências sociais têm, num certo sentido, uma concepção definida de</p><p>quais são as fontes aceitáveis e respeitáveis do dado sociológico. Para</p><p>ele, por exemplo, entre a história oral e a história documental,</p><p>dificilmente um historiador considera a primeira tão importante e segura</p><p>quanto a segunda. Martins diz também que entre o formulário pré-</p><p>codificado e o depoimento autobiográfico espontâneo, o sociólogo e o</p><p>cientista político tenderão a considerar o primeiro fonte mais objetiva</p><p>que o segundo. E continua afirmando que entre o depoimento do chefe</p><p>de família e o da empregada doméstica dirão que o primeiro é mais</p><p>completo e mais seguro, quando se tratar de um estudo em que a família</p><p>for considerada o “sujeito” de investigação. Em sua opinião, o cientista</p><p>social interessa-se por informantes que estão no centro dos</p><p>acontecimentos, que têm (supostamente) uma visão mais ampla dos</p><p>fatos, enfim, que são os arquitetos da encenação social. Para Martins, a</p><p>relação do pesquisador com o pesquisado é, também, uma relação de</p><p>poder ou, mais comumente, uma relação de autoridade, apoiada na</p><p>concepção de um mundo hierarquizado. O pesquisador quase sempre</p><p>pressupõe e descarta uma parcela de seres humanos silenciosos, os que</p><p>não falam. São aqueles que em público ou diante do estranho</p><p>permanecem em silêncio: as mulheres, as crianças (grifo meu), os</p><p>velhos, os agregados da casa, os dependentes. Ou os mudos da história,</p><p>os que não deixam textos escritos, documentos. No seu entender, as</p><p>ciências humanas, com a possível exceção da antropologia, não têm</p><p>sido capazes de decifrar o silêncio daqueles que não foram eleitos pelo</p><p>saber acadêmico como informantes válidos dos pesquisadores.</p><p>Essas ideias de Martins levam a refletir sobre o papel da professora,</p><p>pesquisadora do silêncio e das falas das crianças. Na busca de caminhos</p><p>para chegar à criança-educando (na etapa do trabalho de campo), uma</p><p>questão se apresentou: como ser professora/pesquisadora ao mesmo</p><p>tempo? Por desenvolver a pesquisa com crianças com as quais já vinha</p><p>trabalhando há algum tempo, de imediato, pensei que, por já conhecê-</p><p>las, pudesse estar perdendo informações importantes para as novas</p><p>indagações, por inúmeras situações não causarem estranhamento, susto,</p><p>descoberta. Tais situações presentes constantemente na escola, à</p><p>primeira vista, parecem fatos corriqueiros, comuns, e, por</p><p>isso mesmo,</p><p>passam despercebidas à nossa interpretação. Assumimos perante elas</p><p>atitudes preconceituosas, repetindo justificativas preconcebidas de</p><p>maneira tal que não conseguimos visualizar um caráter novo, diferente</p><p>dentro do óbvio. O porquê é quase sempre justificando e quase nunca</p><p>indagando: Por quê?</p><p>Por outro lado, quando não conhecemos o objeto de nossa pesquisa,</p><p>podemos percorrer o caminho das hipóteses e de suas constatações.</p><p>Entretanto, não almejei constatar, isto é, não objetivei demonstrar. As</p><p>pistas estão no cotidiano escolar. Só que precisamos compreender.</p><p>Enfim, mergulhar no comum e... estranhar! Acrescentando a estes</p><p>outros olhares para o sempre igual outras informações. As inquietações</p><p>(como ondas) movimentaram o meu mergulho da superfície ao fundo e</p><p>vice-versa.</p><p>Segundo Lüdke e André (1986), como atividade humana e social, a</p><p>pesquisa traz consigo, inevitavelmente, a carga de valores, preferências,</p><p>interesses e princípios que orientam o pesquisador e, portanto, sua visão</p><p>de mundo influencia a abordagem. No entanto, o olhar do pesquisador</p><p>não anula o caráter científico da pesquisa posto que o “conhecimento</p><p>científico vem sempre e necessariamente marcado pelos sinais de seu</p><p>tempo, comprometido portanto com sua realidade histórica. A</p><p>construção da ciência é um fenômeno social” (p. 5) Completando essa</p><p>ideia, Lüdke e André (op. cit.) falam da impossibilidade de se</p><p>estabelecer uma separação nítida e asséptica entre o pesquisador e o que</p><p>ele estuda. Não há como o pesquisador se abrigar em uma posição de</p><p>neutralidade científica, pois ele está implicado necessariamente nos</p><p>fenômenos que conhece e nas consequências desse conhecimento que</p><p>ajudou a estabelecer. Portanto, a opção foi por uma abordagem</p><p>qualitativa porque esta proporciona ao investigador colocar-se na cena</p><p>investigada.</p><p>O chegar ao outro parece ser um longo caminho. Como chegar lá?</p><p>Como chegar à criança? Segundo Benjamin (1984a), brincar significa</p><p>libertação. Para Kishimoto (1993), o que nos permite compreender</p><p>melhor o cotidiano infantil é o lugar que a criança ocupa num contexto</p><p>social específico e a educação a que está submetida. É nesse cotidiano</p><p>que se forma a imagem da criança e de seu brincar. Do mesmo modo,</p><p>Jobim e Souza (1994) aponta para o fato de a criança estar sempre</p><p>pronta para criar outros sentidos para os objetos que possuem</p><p>significados fixados pela cultura dominante, ultrapassando o sentido</p><p>único. A criança denuncia o novo contexto do sempre igual. Ela</p><p>conhece o mundo enquanto cria. Ao criar, a criança nos revela a verdade</p><p>sempre provisória da realidade em que se encontra. Construindo seu</p><p>universo particular no interior de um universo maior, ela é capaz de</p><p>resgatar uma compreensão polifônica do mundo, devolvendo, por meio</p><p>do jogo que estabelece na relação com os outros e com as coisas, os</p><p>múltiplos sentidos que a realidade física e social pode adquirir. Então,</p><p>como chegar à criança? Um caminho se mostrou: o lúdico. Dobradura,</p><p>música, literatura infantil, desenho, recorte e colagem, dramatização,</p><p>mímica, confecção de marionetes, brinquedos e brincadeiras. Assim, as</p><p>falas e os escritos das crianças, isto é, as vozes infantis foram se</p><p>apresentando no momento em que as crianças realizavam essas</p><p>atividades. Desse modo, ao mesmo tempo em que estava sendo buscada</p><p>uma ressignificação da linguagem infantil, estavam sendo cunhadas</p><p>novas metodologias para essa busca, ou seja, uma outra forma e um</p><p>outro conteúdo que se reafirmassem um ao outro.</p><p>Esta pesquisa abrangeu aproximadamente 270 crianças, cerca de</p><p>147 meninos e 123 meninas entre 6 e 11 anos da rede pública municipal</p><p>do Rio de Janeiro. O material infantil pesquisado enfocou os seguintes</p><p>ângulos: família, escola, trabalho, de ser menino e de ser menina,</p><p>violência, de ser criança e brincadeiras. Esses temas não foram</p><p>escolhidos aleatoriamente. Nestes dez anos como professora, observei</p><p>que questões relacionadas a eles frequentemente estão presentes no</p><p>cotidiano da escola. Para efeito deste texto, centrarei o relato da</p><p>pesquisa ressaltando os seguintes aspectos: trabalho, de ser menino e de</p><p>ser menina, violência e brincadeiras. Embora esses temas estejam na</p><p>escola, esta não os considera como se fossem seus. A relevância de</p><p>discuti-los recai na compreensão da educação como prática social. Será</p><p>que pensar a educação como prática social tem sido uma reflexão da</p><p>escola?</p><p>A observação, os depoimentos verbais e escritos, a revisão de</p><p>literatura e a análise documental alicerçaram o trabalho de campo. A</p><p>revisão de literatura foi feita concomitantemente às outras atividades.</p><p>Ela serviu de suporte para a análise do que as crianças falaram e</p><p>escreveram. Para Benjamin (1984a), “a verdadeira essência da educação</p><p>está na observação”. No seu entender, na observação começa a</p><p>educação posto que “toda ação e gesto infantil transformam-se em</p><p>sinal” (p. 86). Por sua vez, Lüdke e André (1986) ressaltam o lugar</p><p>privilegiado que a observação vem ocupando nas novas abordagens da</p><p>pesquisa educacional. Segundo as autoras, a observação possibilita um</p><p>contato pessoal e estreito do pesquisador (relação face a face) com o</p><p>fenômeno estudado. A observação direta permite que o observador</p><p>chegue mais perto das perspectivas do sujeito. O pesquisador participa</p><p>da vida dos sujeitos pesquisados, no seu cenário natural. Ele é parte do</p><p>contexto, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado. As</p><p>crianças foram observadas no seu dia a dia, dentro e fora do espaço da</p><p>sala de aula (biblioteca, refeitório, pátio, fila da birosca) e em outros</p><p>locais dos quais elas demonstram gostar muito: o jardim próximo da</p><p>casa do casal residente e os espaços em torno do prédio da escola.</p><p>Para complementar, servir de contraponto e/ou desvelar aspectos</p><p>novos, foram utilizadas informações contidas nas fichas brancas das</p><p>crianças.[46]</p><p>Entre as questões que nortearam a pesquisa, duas se destacariam,</p><p>para fins específicos deste texto: O que falam e escrevem sobre esses</p><p>temas? Como repensar a escola tendo por base a visão de mundo pelo</p><p>olhar infantil?</p><p>Trabalho</p><p>Eu desejo ser astronauta porque me dá emoção de ver as</p><p>estrelas.</p><p>Daniel, 8 anos</p><p>Foi contada uma história. Sentadas em círculo, no pátio, as crianças</p><p>ouviram a história do sapo Batista.[47] Enquanto as crianças ouviam a</p><p>história, era solicitado a elas que imitassem os bichos-personagens que</p><p>apareciam no texto (sons e movimentos). Após o término da leitura,</p><p>conversamos sobre a atitude do sapo Batista e sobre as tarefas</p><p>(profissões) de cada bicho. Ainda no pátio, foi pedido que fizessem a</p><p>mímica de outros bichos e depois passamos para as pessoas e seus</p><p>sentimentos: alegria, tristeza, susto, nervosismo, desespero, paixão,</p><p>raiva... Como última sugestão, pedi que imaginassem a seguinte cena:</p><p>elas já eram jovens ou mais adultas e tinham saído de casa para procurar</p><p>emprego. O pátio era o local de seu trabalho. Cada criança deveria fazer</p><p>a mímica da profissão em que desejaria (sonhava) um dia trabalhar, e o</p><p>restante do grupo deveria adivinhá-la. Em sala, as crianças desenharam</p><p>a si mesmas trabalhando e completaram a frase: Eu desejo ser...</p><p>porque...</p><p>A fim de refletir até que ponto os desejos infantis vão/estão para</p><p>além da sua realidade ou se são apenas fruto direto de seu contexto, foi</p><p>realizado um levantamento (nas fichas brancas) com informações sobre</p><p>as famílias dessas crianças no que diz respeito ao trabalho de seus</p><p>familiares.[48]</p><p>Revendo os desenhos e relendo suas justificativas, podemos reunir</p><p>em um mesmo conjunto (que chamaremos de primeiro conjunto) as</p><p>profissões denominadas pela sociedade subalternas, menores, enfim,</p><p>aquelas que não exigem muitos anos de escolaridade, diploma e grande</p><p>qualificação. Nesse grupo as crianças desejam ser, por exemplo:</p><p>... faxineira porque Eu gosto muito Eu não gosto da rua suja? (Lena, 7 anos)</p><p>... porque eu sou limpa. (Raquel, 8 anos)</p><p>... garçonete porque eu gosto de servir as pessoas. (Neuza, 9 anos)</p><p>Nesse caso, chamamos a atenção do leitor para a fala de Neuza, que</p><p>é quem mais representa esse grupo de futuros trabalhadores:</p><p>mas de maneira a – perversamente</p><p>– responsabilizar os que sofriam as consequências do problema. O que</p><p>acontecia era considerado, então, fracasso na escola e não da escola.</p><p>Tive, naquela ocasião, oportunidade de realizar uma investigação</p><p>de natureza teórica, que tomava como eixo de análise a abordagem da</p><p>privação cultural, e procurei tecer, então, a crítica à educação</p><p>compensatória decorrente dessa abordagem.[3] No centro da ideia de</p><p>privação cultural e de compensação de carências, identificávamos –</p><p>desde aquele momento – um conceito de criança abstrato, delineado</p><p>com base em padrões fixos de desenvolvimento, de linguagem e de</p><p>socialização, uma infância definida pela falta, por aquilo que não é, que</p><p>não tem, que não conhece e, fundamentalmente, uma criança</p><p>compreendida pela negação de sua humanidade: filhote do homem, a</p><p>ela cabia ser moldada ou no máximo se desenvolver para tornar-se</p><p>alguém no dia em que, adulta, deixasse de ser criança. Deixando de lado</p><p>aqui os efeitos, para o campo das políticas públicas, dessa importação</p><p>tardia de teorias e propostas superadas em outros países, cabe destacar</p><p>que, situada nesse contexto, a escola de 1º grau, atual ensino</p><p>fundamental, saiu ilesa: embora fosse uma das principais responsáveis</p><p>pelo fracasso, agravando a marginalização social e produzindo a</p><p>marginalização cultural, a escola foi colocada entre parênteses. Tratava-</p><p>se de culpabilizar famílias e grupos sociais e de designar a pré-escola</p><p>como solução redentora, mágica e imediata.</p><p>O intenso debate político-educacional que se desencadeou a partir</p><p>daí foi fundamental na consolidação de um firme marco teórico e de</p><p>clara visão política em defesa de uma infância considerada na sua</p><p>dimensão de cidadã de direitos. Inquestionável hoje do ponto de vista</p><p>constitucional, mas longe de se tornar uma conquista de fato, a criança,</p><p>ao longo dessas décadas, deixa de ser alguém que não é (pelo menos nas</p><p>discussões acadêmicas) e passa à condição de cidadã (pelo menos na</p><p>letra da lei...). O papel dos movimentos sociais nesse processo – em</p><p>especial as lutas de mulheres – e a conquista da normalidade</p><p>democrática, em particular com a volta das eleições para os governos de</p><p>estados e municípios, foram cruciais no reconhecimento dos direitos</p><p>sociais de todos os cidadãos: no caso da educação, o direito a creches e</p><p>pré-escolas de qualidade.[4] A partir daí, e progressivamente, a</p><p>necessidade de propostas pedagógicas e de estratégias de formação dos</p><p>profissionais tem tornado sempre presente a diversidade das populações</p><p>infantis. Igualdade de direitos e desigualdade de condições são verso e</p><p>reverso de um contexto que tem envolvido, inegavelmente, muito</p><p>esforço (1) de pesquisa e construção teórica; (2) de mobilização social e</p><p>engajamento nas lutas específicas e (3) de trabalho pedagógico</p><p>propriamente dito, tripé este que move e sustenta a educação infantil.</p><p>Rastreado esse percurso – em que minha trajetória pessoal se</p><p>entrelaça a um projeto coletivo –, penso ter enfatizado a necessidade de</p><p>se aprofundar criticamente o estudo da infância. Vale dizer que, nesses</p><p>quase 20 anos, estive mobilizada pela dimensão política dos temas</p><p>relativos à criança, pela prática de pesquisa e pela intervenção</p><p>educacional, âmbitos nos quais se manifesta sempre uma dada</p><p>concepção de infância. Retornando, então, à ponta do rastro, cabe dizer</p><p>que as matrizes teóricas que possibilitaram, em 1979/1980, minha</p><p>reflexão e a sedimentação de uma crítica ao conceito abstrato de</p><p>infância encontram-se particularmente nas obras de Bernard Charlot e</p><p>Philippe Ariès.</p><p>Buscando a sociologia, a história e a antropologia para</p><p>compreender a infância, eu me afastava de referenciais eminentemente</p><p>psicológicos – e de uma psicologia do indivíduo, dos dons e aptidões –</p><p>que estiveram presentes na formação acadêmica que recebíamos, e que</p><p>insistiam em caracterizar a criança quer como imatura e dependente,</p><p>carente e incompleta, quer como esponja absorvente, semente a</p><p>desabrochar, quer ainda como perverso polimorfo ou sujeito epistêmico.</p><p>Trazendo Charlot e Ariès para a cena, mais do que faculdades mentais,</p><p>sentidos, maturação ou escalas de desenvolvimento, tratava-se de</p><p>colocar em pauta a condição histórica e cultural das crianças. Mas,</p><p>apresentando aqui esses dois teóricos como fundamentais na ruptura</p><p>conceitual que então pude realizar, não posso deixar de, ainda que de</p><p>forma breve, apontar suas contribuições específicas.</p><p>Philippe Ariès, pesquisador francês do campo da nova história e</p><p>que se tornaria conhecido no Brasil na década seguinte por pesquisar a</p><p>vida privada, publicara nos anos 70 sua História social da criança e da</p><p>família,[5] estudo que, a meu ver, inaugura uma linha de investigação: a</p><p>história da infância. Ora, mesmo reconhecendo a procedência de</p><p>críticas que seriam mais tarde dirigidas a Ariès,[6] e embora divergindo</p><p>de sua preferência pela singularidade em detrimento de uma dimensão</p><p>de totalidade para a história, ainda assim, considero inegável o</p><p>rompimento provocado por sua obra, em especial no que se refere à</p><p>infância. Nesse sentido, penso hoje – como em 1980 – que os estudos</p><p>de Ariès influenciaram pesquisadores e cientistas sociais do mundo</p><p>inteiro quanto à mudança do papel da família ao longo dos séculos.</p><p>Estudando a transformação da concepção de infância e família, por</p><p>meio do exame de pinturas, antigos diários e testamentos, inscrições em</p><p>igrejas e pedras tumulares, seu trabalho, além das conclusões quanto ao</p><p>momento e às condições de surgimento da família nuclear, da escola e</p><p>da consciência da particularidade infantil, em especial na França, trouxe</p><p>um novo ângulo de análise para a função desempenhada por essas</p><p>instituições. A mudança da concepção de infância foi compreendida</p><p>como eco da própria mudança nas formas de organização da sociedade,</p><p>das relações de trabalho, das atividades realizadas e dos tipos de</p><p>inserção que nessa sociedade têm as crianças. Assim entendida a</p><p>questão, não se trata de estudar a criança como um problema em si, mas</p><p>de compreendê-la segundo uma perspectiva histórica.</p><p>Para Ariès (1978), o sentimento moderno de infância corresponde a</p><p>duas atitudes contraditórias dos adultos: uma considera a criança</p><p>ingênua, inocente e pura e é traduzida por aquilo que ele chamou de</p><p>“paparicação”; a outra surge simultaneamente à primeira, mas</p><p>contrapõe-se a ela, tomando a criança como um ser imperfeito e</p><p>incompleto, que necessita da “moralização” e da educação feitas pelo</p><p>adulto. A análise desses e de outros achados do autor possibilitou e</p><p>possibilita concluir que</p><p>a idéia de infância não existiu sempre e da mesma maneira. Ao contrário, ela</p><p>aparece com a sociedade capitalista, urbano-industrial, na medida em que mudam a</p><p>inserção e o papel social da criança na comunidade. Se, na sociedade feudal, a</p><p>criança exercia um papel produtivo direto (“de adulto”) assim que ultrapassava o</p><p>período de alta mortalidade, na sociedade burguesa ela passa a ser alguém que</p><p>precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para uma atuação futura. Este</p><p>conceito de infância é, pois, determinado historicamente pela modificação nas</p><p>formas de organização da sociedade. (Kramer 1982, p. 18)</p><p>Por outro lado, a análise permite inferir que, numa sociedade de</p><p>classes, as crianças desempenham, nos diversos contextos, papéis</p><p>diferentes. Ocorre que a ideia de infância da sociedade moderna foi</p><p>universalizada pelas classes hegemônicas com base no seu padrão de</p><p>criança, tecido partindo-se de critérios de idade e de dependência do</p><p>adulto, característicos da sua inserção específica no interior dessas</p><p>classes.</p><p>É interessante observar que a absorção das pesquisas de Ariès e das</p><p>reflexões por elas engendradas se deu de forma crítica mesmo naquele</p><p>momento, fato pouco comum especialmente no campo da educação.</p><p>Assim é que já sabíamos, no final dos anos 70, que essas descobertas</p><p>não poderiam ser mecanicamente transpostas para a realidade brasileira,</p><p>dada a diversidade de aspectos sociais, culturais e políticos que</p><p>interferiam na nossa formação: a presença da população indígena e de</p><p>seus costumes,</p><p>as</p><p>profissões escolhidas manifestam a ideia de servir aos outros,</p><p>certamente, a seus patrões. Ou de estarem à mercê de outrem. De</p><p>qualquer modo, de uma maneira geral, esse grupo de crianças não fugiu</p><p>do contexto familiar. Elas perpetuaram as atividades realizadas por seus</p><p>pais (segundo as fichas brancas). Aqui os desejos não foram além da</p><p>realidade.</p><p>Outro grupo de crianças deseja exercer profissões que diríamos</p><p>estar um degrau acima do conjunto anterior na escala social. Nesse</p><p>(digamos) segundo conjunto, elas sonham ser:</p><p>... fotógrafo porque é meu sonho ser. (Alex, 8 anos)</p><p>... ser taxicita porque gainha dinheiro. (Tiago, 10 anos)</p><p>Ainda aqui, o grupo de crianças não foi muito além de seu contexto</p><p>(há pais e mães fotógrafos, vendedores, costureiras...), só que as</p><p>justificativas do sonho de ser e do ganhar dinheiro conferiram uma</p><p>particularidade a esse grupo. O sonho de ser (mesmo que seja o que os</p><p>pais são) como contraponto à ideia do tem que ser (autoritarismo) ou só</p><p>poderá ser (determinismo) e a ambição do ganhar dinheiro</p><p>(resguardadas as devidas proporções) passam a impressão de se querer e</p><p>poder avançar partindo do que se tem como espelho.</p><p>Um grupo reduzido de crianças (terceiro conjunto de profissões)</p><p>almeja:</p><p>... ser professor(a) porque eu não gosto que ascrianças fica senaula. (Jussara, 9</p><p>anos)</p><p>... para ajudar ensinar as crianças. (Alan, 8 anos)</p><p>... eu quero ajuda minha família. (Vilma, 11 anos)</p><p>Eu gosto de ser guitarrista para ir pra fora do Brasil. (Sílvio, 8 anos)</p><p>Eu desejo ser cantor, porque ese é meu destino. (Leonardo, 10 anos)</p><p>... ser ator para ajudar os pobres. (José, 8 anos)[49]</p><p>Eu desejo ser doutora porque gosto de curar as pessoas. (Vera, 7 anos)</p><p>... médico por que salva vida. (Éliton, 10 anos)</p><p>... ser pediatria porque Eu acho que voi ser emportante para a saúde de todas as</p><p>criaças. (Ana, 8 anos)</p><p>Esse grupo, sim, ultrapassou todo um contexto, expressando desejo</p><p>de rompê-lo, principalmente as crianças que sonham ser artistas,</p><p>modelos e médicas.</p><p>No entanto, há crianças que já trabalham exercendo ou não</p><p>atividades que seus pais exercem. E, ainda, crianças que declararam</p><p>desejar ser o que os seus responsáveis desejam. João (6 anos) é o</p><p>exemplo vivo de aluno-trabalhador. Ele manifestou o sonho de ser</p><p>policial, mas já trabalha como boleiro. João vai para o trabalho às 19</p><p>horas e volta bem tarde, sozinho. “Boleiro é aquele que, quando a bola</p><p>sai do campo, pega a bola de novo.” Essa criança trabalha todos os dias,</p><p>de domingo a domingo, à noite. Todo fim de noite, o aluno ganha R$</p><p>0,70. Ele já comprou uma lapiseira e compra várias coisas que a mãe</p><p>pede (ovo, carne...). João estuda no C.A., no turno da manhã.</p><p>Os depoimentos infantis escritos sobre o trabalho futuro (como um</p><p>todo) nos apresentaram crianças com grande dificuldade de se descolar</p><p>do contexto, de se distanciar dele, enfim, com dificuldade de transpor o</p><p>real e, simplesmente, sonhar. Por que será que essa dificuldade existe?</p><p>Sonhar é um privilégio ao qual essas crianças não têm direito? Não se</p><p>dão o direito? Ou a realidade é tão forte, tão presente, tão marcante que</p><p>fica difícil fugir dela para ousar outros caminhos, percorrendo inúmeras</p><p>trilhas, até onde os sonhos podem nos levar?</p><p>Em vista disso, é pertinente indagarmos: Como a escola vem</p><p>enfrentando a ausência das crianças dos “bancos escolares” e o</p><p>crescimento da mão de obra infantil? Ela está consciente dessa</p><p>realidade? A escola contribui, camufla, ignora, denuncia? A relação é</p><p>escola-criança-trabalho ou trabalho-criança X escola? Urge que</p><p>discutamos as questões pedagógicas, obviamente. Mas as questões</p><p>sociais que perpassam a escola devem fazer parte da pauta de reuniões,</p><p>pois “educação é prática social” (Kramer 1993, p. 25). Se não</p><p>discutimos, colaboramos com uma sociedade excludente. A escola</p><p>pública desconhece o contexto de vida de seus alunos, a sua história, a</p><p>sua cultura. Na maioria das vezes, ela nega ou renega, isto é, insiste em</p><p>negar esse conhecimento persistindo em impor outra cultura, outro</p><p>modo de entender a realidade. A cultura para Geertz (apud Dauster</p><p>1992) é uma “reunião de textos” e é “neste texto” que fazemos a leitura</p><p>do modo de viver desse segmento e percebemos os princípios e regras</p><p>que o orientam. A escola tende a homogeneizar e, à luz de Bakhtin</p><p>(1992a), torna-se fundamental que ela trabalhe com as singularidades,</p><p>redefinindo o pedagógico. Transpor o pedagógico significa o</p><p>compromisso de pensar o outro como aluno dotado de uma identidade</p><p>construída histórica e socialmente. Daí a importância, não só de trazer o</p><p>cotidiano para o interior da escola, mas também a história e o desafio de</p><p>lidar com a diferença e a heterogeneidade cultural (Dauster 1992).</p><p>Parece unânime que adultos-professores não aceitam a criança no</p><p>trabalho. Mas, já que ela existe, já que ela é real, a escola tem que</p><p>refletir sobre essa realidade. Como educadores de crianças-estudantes e</p><p>trabalhadoras ou muito próximas do trabalho devemos nos informar</p><p>reciprocamente. Junto esse pensamento ao de Mata e Dauster (1993),</p><p>dizendo que o fazer escolar poderá e deverá partir do contexto cultural</p><p>do aluno, tornando possível uma maior interação entre a escola oficial e</p><p>a escola da vida e que, conhecendo melhor os efeitos do trabalho sobre</p><p>a escolarização e da escolarização sobre o trabalho, estaremos</p><p>diminuindo o distanciamento existente entre o mundo escolar e o do</p><p>trabalho.</p><p>De ser menino e menina</p><p>Eu preferiria ser menina sempre. As meninas são mais</p><p>bonitas e charmosas. (Rose, 7 anos)</p><p>Tem homem charmoso, é o Romário. (Fernando, 6 anos)</p><p>Bebeto. (Rose)</p><p>Para colocar em discussão essa antiga polêmica, seguimos o</p><p>seguinte caminho: narrei para as turmas a história de Aninha e João.[50]</p><p>Após a narrativa, as crianças desenharam o que quiseram sobre o tema;</p><p>durante o tempo do desenho, assumi o papel de uma repórter de TV que</p><p>estava percorrendo as escolas para saber a opinião das crianças sobre o</p><p>assunto. O clima da entrevista (a cena propriamente dita) era a seguinte:</p><p>as crianças/telespectadores/entrevistados em suas mesas desenhando e</p><p>colorindo e eu, atrás da televisão de sucata, entrevistando. Cada criança</p><p>que eu chamava permanecia próximo a mim falando na/para a TV.</p><p>Então: O que é ser menino? O que é ser menina?</p><p>Na opinião de Mara (6 anos): “Ser menina é brincar de boneca,</p><p>panelinha e casinha e ser menino é brincar de boneco (He-man e</p><p>Robocop) e de moto.”</p><p>Ricardo (7 anos) é categórico: “Homem e mulher têm que fazer</p><p>diferente. Eu criaria os meus filhos fazendo diferente.”</p><p>Já Luciana (7 anos) parece não se importar, impondo apenas uma</p><p>condição: “Eles podem fazer tudo mas os meninos menos de boneca</p><p>porque as meninas riem deles.”</p><p>É Priscila (7 anos) que complementa: “O menino não pode brincar</p><p>de boneca, ele vira bichinha. Menina não deve ter brinquedo de menino.</p><p>Juntos só pique.”</p><p>A separação continua: “Brincadeiras das meninas, pique e pular</p><p>corda.” Pergunto, então, se os meninos não pulam corda. “Menino só</p><p>segura a corda. Eles batem a corda.” (Vivian, 7 anos)</p><p>Em contrapartida, dois representantes do sexo masculino</p><p>declararam:</p><p>– Menino é jogar bola, brincar de carro. Menina é brincar de corda e de bola.</p><p>(Alessandro, 7 anos)</p><p>“Então eles podem brincar juntos de bola, meninos e meninas?”</p><p>– Menino jogando futebol e a menina jogando vôlei.</p><p>– Mas tem que ensinar. O homem tem que ensinar. (Fernando, 6 anos)</p><p>Assim, brinquedos e brincadeiras discriminam e separam meninos e</p><p>meninas. As falas dessas crianças são fragmentos do coletivo. Essas</p><p>declarações retratam como as crianças assimilam o discurso do adulto</p><p>(pai, mãe, professor...) em tão pouco tempo, com tão pouca idade...</p><p>Prosseguindo... Menino ou menina? Vantagens e desvantagens?</p><p>Preferência? Opção? De se gostar menina. De se gostar menino. Sim ou</p><p>não? Por quê? Leiam o que os meninos estão falando sobre eles e sobre</p><p>elas...</p><p>“O que você pensa das meninas?”</p><p>– Que elas devem ficar em casa trabalhando, ajudando a mãe.</p><p>“E brincadeiras e passeios?”</p><p>– Só depois do serviço. (Pedro, 12 anos)</p><p>Paulo (12 anos), igualmente a Pedro, é severo,</p><p>rigoroso e</p><p>perpetuador do poder adquirido:</p><p>As mulheres ficam reclamando toda hora, reclamando de acordar cedo e de ir para</p><p>o colégio. Os meninos, não. É legal ser menino para mandar nas mulheres. Eu</p><p>falaria para minha namorada fazer a minha comida e tudo. E a minha filha, eu</p><p>deixaria ela pra lá, com o namorado fazendo qualquer coisa. O meu filho eu</p><p>mandaria para um clube de esporte.</p><p>A discussão continua: leiam o que as meninas estão falando sobre</p><p>elas e sobre eles...</p><p>As meninas faz muita coisa! Arruma a casa, lava roupa, faz tudo e os meninos não</p><p>faz nada, só vem pra escola e fica brincando. (Lúcia, 11 anos)</p><p>Ser menino é ser melhor do que ser menina porque eles podem fazer tudo que eles</p><p>quer. (Graça, 9 anos)</p><p>E quando a questão é ser mais afetuosa e menos afetuoso. A menina</p><p>como um ser sincero, compreensivo, amoroso e os meninos como</p><p>representantes do não afeto, da força física e da rigidez no</p><p>comportamento, segundo eles próprios:</p><p>Menino é chato, é machão. (Carolina, 9 anos)</p><p>Menina é ser cuidadosa e inteligente. (Paula, 8 anos)</p><p>Eu gosto de ser menina por causa de que eu acho as meninas mais elegantes,</p><p>bonitas e os meninos são violentos, eles batem em crianças pequenas, eles</p><p>ameaçam todo mundo. A mulher é forte mas eles bate em mulher, eles são</p><p>covardes. (Kátia, 9 anos)</p><p>Nenhum dia ser menino! Menino é muito grosso, muito chato! Menina é educada e</p><p>simples. Têm várias meninas chatas igual aos meninos. Mas a maioria é educada.</p><p>(Cristina, 8 anos)</p><p>Refletindo sobre as palavras das crianças, tão impregnadas de</p><p>preconceitos que são assimilados sem muita chance de resistência por</p><p>ambos os sexos, recorro a Belotti (1979). Suas inquietações em relação</p><p>ao condicionamento e à submissão da mulher vão ao encontro das falas</p><p>dos meninos e das meninas. Vinculando as falas das crianças à escrita</p><p>de Belotti (à guisa de fundamentar a prática à luz da teoria), esta nos</p><p>comunica que o menino é desejado por si mesmo, pelo prestígio que o</p><p>seu nascimento projeta sobre a família, pela autoridade que terá dentro</p><p>ou fora dela, por aquilo que há de realizar. A menina é desejada, quando</p><p>o é, com base numa escala de valores, por assim dizer, de utilidade: são</p><p>mais afetuosas, sentem gratidão, são graciosas e apaixonadas, vesti-las</p><p>traz satisfação, fazem companhia em casa e ajudam nos trabalhos</p><p>domésticos.</p><p>Continuando o debate... e quando a preferência é uma questão de</p><p>sexo...</p><p>Eu gosto de ser menino porque os caras não ficam trepando em cima de você. Não</p><p>fica... sabe, né?! (risadas) Sabe, né?! (gestos, olhares e risadas). Aí, depois não tem</p><p>que ficar fazendo operação pra tirar o neném e lavando roupa... (Sandro, 11 anos)</p><p>Ser menina é muito ruim porque eu ia namorar uns caras e os caras batendo em</p><p>nós. E nós pensando em safadeza. Às vezes, eu penso nisso (em safadeza), à vezes,</p><p>não. Eu estava com a minha prima e a minha prima falou:</p><p>– O seu pau tá duro? (gargalhadas da turma toda)</p><p>– Tá.</p><p>– Deixa eu apalmar?</p><p>– Eu?!... tá (risadas de Anselmo). (Anselmo, 10 anos)</p><p>Mulher feia eu jogo no lixo! Mas se for gostosa eu como, eu como e eu como!</p><p>Menino é bom porque não sente a dor que a mulher sente para ter um filho! Ser</p><p>mulher é muito chato, arruma a casa. O homem só faz o filho. (Carlos, 11 anos)</p><p>Alice (9 anos) responde a Carlos:</p><p>“Os meninos não ficam com aquele pesão na barriga nove ou até</p><p>dez meses, não sei; eu nunca tive. Mas no fundo, no fundo, é gostoso!”</p><p>E Márcio (11 anos) insiste, fazendo questão de falar:</p><p>“Menino ou menina? Macho!!! Homem é melhor. A mulher tem</p><p>que ficar em casa, lavando roupa, fazendo comida. Homem tem que</p><p>trabalhar e pegar as garotas na rua e namorar. Quando eu crescer eu</p><p>vou namorar e conquistar elas.”</p><p>É por essas e por outras que algumas meninas assumiram desejar</p><p>mudar de sexo nem que fosse por algum tempo (minutos, horas, dias) e</p><p>por algumas situações: “Eu queria ser menino um dia porque não faz</p><p>nada e as meninas fazem muita coisa! Nesse dia eu ia voltar a não sei</p><p>que horas da noite... ia ficar na rua nem iria me preocupar em arrumar a</p><p>casa e sendo menina, eu não posso fazer isso, claro que não!” (Patrícia,</p><p>11 anos).</p><p>Somente um menino demonstrou o desejo de mudar de sexo,</p><p>mesmo assim, com interesses bem definidos: “Eu queria ser menina só</p><p>quando crescesse porque é mais fácil de sair e arranjar namorado. E</p><p>menino arranja mais ou menos, à vezes” (César, 10 anos).</p><p>Bakhtin afirma que nenhum falante é o primeiro a falar sobre o</p><p>tópico de seu discurso. O falante não é o Adão bíblico que nomeia o</p><p>mundo pela primeira vez. Ao usar as palavras para falar sobre</p><p>determinado tópico, encontramo-no já habitado por outras falas de</p><p>outras pessoas (apud Jobim e Souza 1994). Juntando as palavras de</p><p>Bakhtin com as de Jobim e Souza, como professora/pesquisadora devo</p><p>confessar que estou preocupada (e será que o leitor também estará?)</p><p>com o discurso do poder masculino e com o discurso da submissão</p><p>feminina contidos nas falas das crianças. A sensação não é de estarmos</p><p>ouvindo o discurso do adulto através das vozes infantis? A</p><p>contrapalavra da criança está bastante abafada, sufocada! A palavra dela</p><p>sobre o tema tem significado de vida sim, não é mera repetição, ela vive</p><p>a experiência de ser menina ou menino desde que nasce, mas, dentro do</p><p>mundo já habitado pelas falas de outras pessoas, a fala dela com relação</p><p>a essa experiência de vida está encarcerada! Algumas ousaram.</p><p>Inseguras, mas ousaram. Não devemos desejar para elas o papel do</p><p>Adão bíblico (é Bakhtin que nos fala do poder inalienável da palavra</p><p>pelo falante que é diferente do poder sobre a palavra). Mas também,</p><p>com certeza, não devemos desejar (perpetuar) o lugar do ouvinte</p><p>passivo.</p><p>Neste momento, torna-se imprescindível parar e refletir: até que</p><p>ponto, como mulheres-educadoras, no dia a dia da escola, estamos</p><p>mantendo ou não a supremacia dos meninos em relação às meninas?</p><p>Enfatizamos ou não a separação entre os sexos? Fazemos, a todo</p><p>instante, distinção (discriminação) entre meninas e meninos? Algumas</p><p>situações nos são bem conhecidas: na lista de chamada, primeiramente,</p><p>vem o nome dos meninos. Por que não, em ordem alfabética,</p><p>independentemente do sexo? A fila? A forma? Há duas fileiras: a dos</p><p>meninos e a das meninas. Em muitas escolas, as aulas de educação</p><p>física são realizadas em dias diferentes e/ou para grupos distintos: o dos</p><p>meninos e o das meninas. E as frases corriqueiras que quanto mais</p><p>faladas mais introjetadas: “Que caderno (ou letra) feio! Nem parece de</p><p>menina!”, “... tinha que ser um menino!”, “Você já é uma mocinha...”</p><p>etc. Qual a professora que na hora da escolha de presentes não pensou</p><p>nas cores azul e rosa?! E os livros didáticos e os de literatura infantil</p><p>nos quais o sexo masculino, pela força física, é sempre o vencedor e os</p><p>que falam de “bons modos”, “das boas maneiras” têm como</p><p>personagem principal as meninas? Faz-se necessário que repensemos</p><p>nossa prática. Continuo preocupada.</p><p>Violência</p><p>A violência magoa! (...) espero que a violência acabe do</p><p>mundo todo!!!</p><p>Regina, 8 anos</p><p>Fomos ao “encontro da violência” da seguinte forma: narrei para as</p><p>turmas uma história de violência vivida por um ex-aluno. Então, o</p><p>espaço ficou aberto e o tempo disponível para que as crianças, que</p><p>quisessem, narrassem uma experiência sua com a violência ou qualquer</p><p>outro caso. Após relatos emocionados, fizemos uma dobradura de onde</p><p>surge a forma de um rosto. Com base nessa dobradura, elas criaram um</p><p>personagem (um dos personagens da história narrada por cada um). De</p><p>posse da dobradura e de jornais e revistas, cola, tesoura, lápis de cor e</p><p>canetas hidrocores, cada criança montou uma cena para a história que</p><p>acabara de contar. Foi solicitada a elas a escrita do texto da história que</p><p>contaram.</p><p>Como apresentar ao leitor o que narraram as crianças sobre a</p><p>violência? Nas pegadas de Walter Benjamin (1985) e de Jobim e Souza</p><p>(1994, p. 116), “nada melhor do que o texto da criança para nos</p><p>surpreender com a imagem do mundo que se manifesta na sua palavra”:</p><p>– Violência é todo mundo calado quando a professora diz para calar a boca. (Rui, 6</p><p>anos)</p><p>Bala perdida não</p><p>tem nome!</p><p>– Ontem eu pedi a minha professora pra mim sair cedo porque eu pensei que ia ter</p><p>polícia mas não teve porque ia ter tiroteio. É hoje que vai ter porque ontem eles</p><p>estava vindo sem ordem.</p><p>“Quem estava vindo sem ordem?”</p><p>– Os polícia lá pro morro.</p><p>“Então ia ter ontem (quarta-feira) e não teve? Vai ter hoje (quinta). Como que você</p><p>sabe que vai ter hoje?”</p><p>– Porque eles falou.</p><p>“Quem falou?”</p><p>– Os polícia falou que hoje ia ter polícia.</p><p>“E falou pra quem?”</p><p>– Pra gente.</p><p>“Eles chegam assim no morro e vão falando?”</p><p>– Eles chegam gritando.. Eles falam no meio do caminho...</p><p>“Que vai ter polícia?”</p><p>– Estou chegando, hein. Amanhã eu vou vim, hein. (imitando a polícia) Eles ficam</p><p>atirando nos meninos. A gente tem medo é só de bala perdida. Eles mesmos falam:</p><p>– “Bala perdida, gente, não tem nome, não!”</p><p>“Quer dizer que atirou...matou?!”</p><p>– Matou.</p><p>“Você falou que mora lá em cima...”</p><p>– Eu e minha irmã somos as únicas que moramos lá no pico. E é lá que tem mais</p><p>tiro. Aí todo mundo fica: – “E... a lá... hoje é inferno, hoje lá em cima, hein!”</p><p>Sabe? Eu fico até com vontade de chorar.</p><p>“Por que você fica com vontade de chorar?”</p><p>– Porque eu fico com raiva.</p><p>“Por quê?”</p><p>– Porque eles ficam olhando pra cara da gente e rindo: “Hoje vai ter inferno lá no</p><p>pico, hein?!” Os meninos de lá debaixo. Os meninos, não. As mulheres.</p><p>“Por que as mulheres fazem isso com você? Quando você está subindo?”</p><p>– É... da escola.</p><p>“Da escola? Falando isso pra você? Você fica triste e chora?”</p><p>– ... (emoção)</p><p>“E... por que é um inferno?”</p><p>– Por causa dos tiros lá em cima.</p><p>“E a que horas? De manhã? De tarde? À noite?”</p><p>– Qualquer hora. De manhã é muito difícil. Só fica passando helicóptero atirando.</p><p>“Eu sei. Eu já vi daqui debaixo. Nós vimos um helicóptero pertinho do barraco</p><p>atirando.”</p><p>– A gente tem o maior medo.</p><p>“Você mora com quem?”</p><p>– Com minha mãe. O meu pai separou da minha mãe. A minha mãe quer mudar de</p><p>casa porque não dá mais não. Lá em casa é muito alto. Às vezes, eu tenho que</p><p>descer para a minha avó e dormir lá. Eles ficam do lado da minha casa atirando pra</p><p>lá.</p><p>“E vocês fazem o que nesta hora?”</p><p>– Quando acaba tudo, a gente dorme na minha vó. Ela mora lá embaixo.</p><p>“Onde eles ficam escondidos?”</p><p>– No mato. Quando passa o besourinho...</p><p>“Quem é o besourinho?”</p><p>– É o helicóptero. Ele passa baixinho e joga eles no chão. Muita gente boa já</p><p>morreu lá no morro por causa do helicóptero. Eles não faz mal a ninguém, não. Os</p><p>vagabundos. Eles dá dinheiro pra gente quando a gente vai pra escola. Eles dá</p><p>algodão-doce quando a gente sobe. Mas as polícia, não. Lá ninguém gosta de</p><p>polícia.</p><p>“Por quê? Mas a polícia não tem que prender bandido?”</p><p>– Tem... mas só que não prende. Eles mata. Por que matar? Eles já ficam presos na</p><p>cadeia! Tem um moço, ele é meu tio, o irmão da minha prima. Que sorte! Todo</p><p>mundo saiu pra fora pra não matar ele! Ele ia morrer. Todo mundo saiu pra fora pra</p><p>não matar ele! Aí não mataram porque viram um montão de criança, um montão de</p><p>gente, aí levaram ele preso, botaram ele no helicóptero. (Marta, 8 anos)</p><p>A VIOLÊNCIA DO MEU irmão RAFAEL</p><p>Olhaso vamos comesa foi um Dia tirivio irce[51]</p><p>5:00 horas. quimataram o meu irmão eu chorei. Pracaranba eu fui nointero ele</p><p>extava muito deformado Acara dele o numiro. Dacatatunba é 50100. todo sábado E</p><p>Domingo eu vou bota Vela e tamben flores amarera e bramca</p><p>Apolicia Matou o meu irmão. (Felipe, 8 anos)</p><p>Violencia</p><p>A violencia é uma coisa muito triste. no mundo a violencia está no mundo inteiro.</p><p>Um dia eu passei na rua de noite e derepente eu vi muito meninos, muito novo do</p><p>meu tamanho, sentado na escada é cherando drogas. A violencia é uma coisa tão</p><p>triste para todos nós. Um dia, eu estava em casa é derepente. eu vie um vagabundo</p><p>da boca de fumo matando um homem. ele matou ele e deu 4 tiros na barriga é dois</p><p>no coração. eu vi na minha casa. têm uma janela que da para ver. A violencia têm</p><p>que acaba! (Artur, 10 anos)</p><p>A Gerra.</p><p>Era uma vez um menino de 11 anos ele morava no morro.</p><p>Nun dia às 6 e 30 o menino foi com prar leite e estava dando tiroteio.</p><p>O menino morrel pela bala perdida.</p><p>A mãe do menino perce beu que o menino tinha demoradomuito.</p><p>A mãe dele foi lápara ver se O menino moreu e ela viu o menino caido lá no chão.</p><p>(Érica, 8 anos)</p><p>Como acabar com a violencia.</p><p>Gente outro dia eu vi aqui na escola um violencia que me abalou. Sabe o que foi?</p><p>Vou lis comtar. Um pai de um galoto que mora no morro mandou o garoto meter a</p><p>porada em quem mexer com ele. Bom se os pais não estimolase as crinancas a</p><p>bater e nem deixase as crinaças ver violencia não ia ter violencia então todos ião</p><p>viver melhor, sem nedo, se todos não fízecem isso emtão vamos lá colabore. Fim</p><p>Boa sorte para quem esta fazendo o bem. (Rosana, 9 anos)</p><p>Podem histórias como essas permanecer fora da escola? Não</p><p>conceber a criança como autora e narradora de suas histórias é</p><p>desconsiderá-la como ser social que ela é, criadora e criatura da cultura.</p><p>Calar o outro é violência.</p><p>Brincadeiras</p><p>É perigoso brincar na rua porque o exército tá lá! É</p><p>perigoso!!! Jane, 10 anos</p><p>Para saber de que essas crianças brincam, com o que e com quem</p><p>brincam e em que locais, combinei que trouxessem brinquedos, jogos e</p><p>sugestões de brincadeiras para que fizéssemos um encontro de</p><p>brinquedos e brincadeiras. As crianças espalharam-se em grupos (por</p><p>brinquedos e/ou brincadeiras), ao ar livre e permaneceram brincando à</p><p>vontade. Enquanto isso, indagava-lhes sobre seus brinquedos e</p><p>brincadeiras.</p><p>As crianças brincam em casa com os seus brinquedos: carrinhos,</p><p>caminhões, motos, avião, helicóptero, carros de controle remoto,</p><p>telefone celular, panelinhas e móveis e copa e cozinha (de casinha), os</p><p>bonecos e as bonecas. A boneca mais citada foi a Barbie (Barbie-noiva,</p><p>Barbie-sereia, Barbie-aniversário etc.) e sua casa (o quarto da Barbie, o</p><p>banheiro da Barbie...), suas roupas, o seu carro e até o namorado (Ken).</p><p>Os meninos brincam com os bonecos. Há uma variedade deles: Giban,</p><p>Batman, Comandos em Ação (vários bonequinhos), Cavaleiros do</p><p>Zodíaco (bonecos com armaduras), As Tartarugas Ninja, soldados,</p><p>Jaspion, Homem-Lagarto, Robocop, Rambo, A Família Dinossauros e o</p><p>Forte-Apache.</p><p>As crianças brincam dentro de casa sozinhas, com seus irmãos, às</p><p>vezes com os amigos, e também com os seus pais. Fora de casa, as</p><p>crianças estão brincando nos becos (espaços entre um barraco e outro),</p><p>nas ruas (poucas no morro), nos campinhos (campo de futebol no</p><p>morro) e nas quadras (onde há os ensaios das escolas de samba e os</p><p>pagodes e bailes, nos fins de semana). Algumas crianças descem os</p><p>morros para brincar nas pracinhas próximas às favelas, nas praias e até</p><p>em clubes. Outras crianças apontaram a laje (pátio de cimento) e a</p><p>varanda, espaços “fora de casa” (embora pertencendo ao terreno de suas</p><p>casas). Então, fora da casa ou fora de casa as brincadeiras são com a</p><p>bola (futebol, queimado, vôlei e basquete), o pião, a pipa, as bolas de</p><p>gude, a corda e o elástico,[52] a bicicleta e o velocípede (Velotrol). Os</p><p>piques (abaixo da bola) são a grande diversão! E que variedade![53]</p><p>Além da bola e dos piques, outras brincadeiras, igualmente conhecidas,</p><p>foram bastante mencionadas: a cabra-cega, a amarelinha, a brincadeira</p><p>de médico(a) e a de escolinha.</p><p>Já Raul (7 anos) e Hélio (10 anos), representando um grupo</p><p>considerável de meninos, declararam adorar brincar de polícia e ladrão:</p><p>– Eu sou sempre o ladrão, claro, porque eles não deixam. Mas um dia, eu fui</p><p>polícia e os dois meus amigos, os ladrões. Só eu de polícia e peguei os dois no</p><p>flagra. Aí dei um tiro na cara deles, de espoleta. (Raul)</p><p>– Polícia e ladrão: mão pro alto! (risadas)</p><p>“Você é o polícia?”</p><p>– Não. Eu sou o ladrão! (risadas)</p><p>“Por quê?”</p><p>– Eu acho mais divertido. Só na brincadeira...</p><p>“Você nunca foi polícia?”</p><p>– Não. Não quero. É melhor ser ladrão. (Hélio)</p><p>Talvez seja a brincadeira de polícia e ladrão a que mais</p><p>exemplifique o real dia a dia dessas crianças. Sendo assim, esse</p><p>exemplo vivo da realidade social vai ao encontro do pensamento de</p><p>Kishimoto (1993) que nos chama a atenção para o fato de “todo ser</p><p>humano ter o seu cotidiano marcado pela</p><p>presença de valores</p><p>hierárquicos que dão sentido às imagens culturais de cada época” (p. 7).</p><p>Construídas por personagens que fazem parte desse contexto, tais</p><p>imagens decorrem de informações, valores e preconceitos oriundos da</p><p>vida cotidiana. Esses valores se refletem na criança e no seu brincar.</p><p>Como a escola vem se relacionando com o lúdico?</p><p>– Eu gosto da professora quando ela brinca com a gente. A gente se diverte</p><p>também. (Bianca, 8 anos)</p><p>– A minha professora é tão boa que têm vez que ela da recreiasão pra gente.</p><p>(Janete, 10 anos)</p><p>– Eu acho a professora bonita porque ela deixa a gente ir pro recreio. Mas quem</p><p>faz bagunça não vai pro receio. Só quem faz o dever certo. (Valéria, 7 anos)</p><p>Por que o brincar não está presente na sala de aula? Só no recreio e</p><p>em outros locais da escola? E mesmo assim, algumas crianças ainda</p><p>pensam que a recreação é um favor, uma troca e não um direito! É</p><p>comum os professores dizerem: “Se der tempo... a gente brinca”; “Hora</p><p>de brincar é no recreio”; “Vocês não acham que já brincaram bastante,</p><p>não?! Aqui é sala de aula”. Em nossas escolas públicas sem brinquedos,</p><p>sem jogos e onde as brincadeiras têm horários e locais bem definidos,</p><p>de que estão brincando nossas crianças? As crianças brincam de piques</p><p>(variedades), de bola (futebol, queimado e vôlei), de polícia e ladrão.</p><p>Não é demais enfatizar que o horário e o espaço do brincar na escola</p><p>passam pelo desejo do professor de brincar com a criança ou de permitir</p><p>que elas brinquem.</p><p>Em muitos momentos, as escolas não têm esses espaços e os</p><p>professores necessitam ir ao encontro deles. Eles podem, por exemplo,</p><p>estar ao redor das escolas (as pracinhas, os parques, os jardins, as</p><p>praias...). Em outros momentos, os temos, sim, embora não saibamos</p><p>aproveitá-los, e até mesmo os ignoremos. Mas o espaço mais propício é</p><p>dentro da escola. E o horário? Indeterminado. O que pode estar faltando</p><p>é o professor se permitir brincar com e aprender-e-ensinar</p><p>brincadeiras. Permitir-se ser criança, sendo adulto, é resgatar sua</p><p>infância, que significa ser parte de sua história de vida. Ser adulto e</p><p>resgatar a sua infância no brincar é um caminho de se chegar ao outro.</p><p>Que outro? A criança.</p><p>Aqui paro, lembrando Clarice Lispector (1992, p. 25): “Tudo no</p><p>mundo começou com um sim”. Sim. Eu disse ao magistério apesar dos</p><p>contras familiares. Sim. Continuei dizendo sim apesar das adversidades</p><p>do cotidiano escolar que me causavam desestímulo, desânimo, apatia,</p><p>comodismo, revolta... Sim. Quando busquei no mestrado</p><p>fundamentação teórica para prática, prática que se oferece como</p><p>elemento dinâmico para a reflexão. A pluralidade de vozes, que há nove</p><p>anos soava a mim como desafinada e em que o momento solo era</p><p>reservado somente a mim, hoje se apresenta em consonância e</p><p>transpondo o didático, permitindo, assim, o desvelamento do todo que</p><p>existe por detrás das vozes individuais. Harmonia não são todos a uma</p><p>só voz. Harmonia são múltiplas vozes atingindo a unidade.</p><p>Aonde essas vozes infantis me fizeram chegar? Ao contexto de vida</p><p>dessas crianças me possibilitando reafirmar que é fundamental conhecer</p><p>as crianças com quem trabalhamos. Suas declarações suscitaram em</p><p>mim questionamentos muito além do que eu esperava, surpreendi-me.</p><p>Espero que o leitor, em especial o leitor/educador, tenha se sentido</p><p>estimulado, perante cada fala escrita infantil, a procurar caminhos</p><p>outros de aprofundamento para os temas enfocados, e/ou tenha</p><p>despertado para outras questões igualmente necessitadas de</p><p>investigação. Quantos significados estão contidos em cada fala e em</p><p>cada escrita? Até onde os ditos e os não ditos podem nos conduzir? O</p><p>importante é que o educador, ao optar por uma direção, esteja optando</p><p>primeiramente pela criança.</p><p>Hoje vejo com mais clareza que o que continuarei buscando é a</p><p>descoberta e a construção do sujeito na linguagem. O que me interessa é</p><p>a criança-educando como autor e narrador de sua história, dentro de um</p><p>contexto histórico que deve ser construído e transformado também por</p><p>ela.</p><p>Eu fico com a pureza da resposta da criança...</p><p>E a vida?</p><p>É bonita, é bonita e é bonita!</p><p>Gonzaguinha</p><p>7</p><p>CRIANÇAS E LINGUAGEM NUM CONTEXTO</p><p>ESPECIAL:</p><p>UM ESTUDO ETNOGRÁFICO[54]</p><p>Mariangela da Silva Monteiro[55]</p><p>O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir</p><p>entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade</p><p>de que nada do que um dia aconteceu pode ser</p><p>considerado perdido para a história.</p><p>Walter Benjamin</p><p>A trajetória profissional em educação especial e as muitas</p><p>indagações que fui fazendo, como psicóloga e educadora, conduziram o</p><p>desenvolvimento desta pesquisa. Nela estão contidas as inquietações</p><p>que me acompanharam durante anos e o percurso que empreendi para</p><p>compreender os processos de constituição dos sujeitos no contexto das</p><p>classes especiais para crianças deficientes mentais. A Secretaria</p><p>Estadual de Educação do Rio de Janeiro/Coordenadoria de Educação</p><p>Especial define, no seu “Plano de atividades da educação especial para</p><p>o portador da deficiência mental”, deficiente mental como o “indivíduo</p><p>que apresenta funcionamento intelectual geral significativamente abaixo</p><p>da média, que se caracteriza pela inadequação no comportamento</p><p>adaptativo (aprendizagem e socialização)”.</p><p>Ao longo dos anos, às complexas e conflitantes relações, aos</p><p>encontros e desencontros com uma prática esquadrinhada no espaço</p><p>institucional da escola, foi se acrescentando uma sensação de</p><p>estranhamento, diante de práticas baseadas em definições pré-</p><p>fabricadas, nas quais as crianças não eram vistas como sujeitos</p><p>inseridos num tempo e espaço culturalmente determinados.</p><p>Estranhamento diante de abordagens teóricas que, apontando</p><p>concepções universais, não me falavam da criança portadora de</p><p>necessidades educativas especiais[56] como sujeito histórico, em</p><p>permanente diálogo com a vida.</p><p>Compreender processos de constituição de subjetividades; mudar o</p><p>olhar; pensar encontros que produzam diálogos; pensar a classe especial</p><p>revelada por meio das palavras daqueles que a constituem: com essas</p><p>intenções, adotando uma abordagem etnográfica de pesquisa, mergulhei</p><p>no cotidiano de uma classe especial, para encontrar nas relações</p><p>dialógicas as implicações presentes nas interações sociais e históricas</p><p>daquele contexto específico, a meu ver, semelhante a tantos outros</p><p>espaços da educação especial.</p><p>Dessa forma, fui ao encontro da palavra dos alunos considerados</p><p>deficientes mentais e de seus interlocutores para refletir, entre outras</p><p>questões: por que tantas crianças são encaminhadas às classes</p><p>especiais? Quem são essas crianças? Como interagem os alunos dessas</p><p>classes? O que aprendem? Como aprendem? Para isso, tomei como base</p><p>teórica os estudos de Vygotsky e Bakhtin, autores que, a partir de uma</p><p>perspectiva histórica e dialética, dão à linguagem um lugar central na</p><p>constituição da consciência.</p><p>Na historicidade da educação especial, busco compreender os seus</p><p>caminhos, entendendo que “compreender é cotejar com outros textos e</p><p>pensar num contexto novo (no meu contexto, no contexto</p><p>contemporâneo, no contexto futuro). Contextos presumidos do futuro: a</p><p>sensação de que estou dando um novo passo (de que me movimentei)”</p><p>(Bakhtin 1992b, p. 404).</p><p>Caminhos da educação especial no contexto das classes especiais</p><p>Iniciada em instituições de reabilitação, a educação de “indivíduos</p><p>portadores de deficiências” trouxe para a escola as marcas do modelo</p><p>médico: a visão da patologia individual com a consequente indicação de</p><p>estratégias e arranjos ambientais que permitissem adaptar as limitações</p><p>do indivíduo às demandas do ambiente social (Ferreira 1993).</p><p>No ensino público, as classes especiais, como modalidade de</p><p>atendimento, tornaram-se o serviço preferencial para a educação dos</p><p>deficientes mentais “leves” ou “educáveis”.[57]</p><p>Funcionando no ensino regular, essas classes têm por finalidade</p><p>atender esses alunos de forma menos segregativa que as instituições</p><p>específicas para educação de indivíduos deficientes; para tanto elas são</p><p>definidas, de acordo com o plano traçado pelo MEC/Secretaria de</p><p>Educação Especial, para</p><p>a Política Nacional de educação especial</p><p>(1994), como:</p><p>salas de aula em escolas do ensino regular, organizadas como ambiente próprio e</p><p>adequado ao processo ensino/aprendizagem do alunado da educação especial, onde</p><p>professores capacitados se utilizam de métodos, técnicas e recursos pedagógicos</p><p>especializados e, quando necessário, equipamentos e materiais didáticos. (p. 13)</p><p>Ferreira (1993) acrescenta que o atendimento em classes especiais</p><p>se dá de forma concentrada nos estados mais desenvolvidos e com</p><p>maior índice de escolarização. Isso pode significar que a educação</p><p>especial evolui com a educação regular, aumentando-se ao mesmo</p><p>tempo o acesso escolar para alunos normais e deficientes. No entanto,</p><p>tal fato pode também apontar que o ensino especial cresce como</p><p>subproduto dos problemas do ensino regular, sem necessariamente</p><p>ampliar o acesso de deficientes.</p><p>Tais considerações nos remetem à análise histórica feita por</p><p>Jannuzzi (1985).[58] Desse estudo, apreendemos que a criação das</p><p>classes especiais, primeiramente sob a jurisdição do Serviço de Higiene</p><p>e Saúde Pública, em virtude da conotação médica que detinha tal</p><p>atendimento, vincula-se à criação de um espaço no ensino público para</p><p>atender os indivíduos considerados “anormais de escola”, ou seja,</p><p>aquelas crianças que não se incluem nos padrões esperados pela escola.</p><p>Assim, o espaço da classe especial passou a ser destinado às crianças</p><p>com diferentes “problemas de aprendizagem”. Quanto aos alunos com</p><p>deficiências evidentes, muitos deixam de ingressar no ensino público,</p><p>ficando sem atendimento educacional ou o recebendo por intermédio de</p><p>instituições especializadas particulares.</p><p>Mas como são organizadas as classes especiais? Como nelas se</p><p>estrutura o atendimento aos alunos?</p><p>Para atender alunos “deficientes mentais”, as classes se organizam</p><p>de diferentes maneiras. Nelas podemos encontrar tanto crianças com</p><p>comprometimentos orgânicos e distúrbios psiquiátricos quanto as que</p><p>possuem problemas de aprendizagem não específicos. A dinâmica e as</p><p>características das classes variam também conforme o espaço físico</p><p>reservado na escola para esse atendimento. O seu funcionamento pode,</p><p>portanto, nos revelar para que serve a classe especial em determinada</p><p>escola. De qualquer forma esse é o lugar para onde são encaminhados</p><p>os diferentes ou a-normais.</p><p>Desse modo, as diversas acepções do termo “normalidade”</p><p>apontam para algo comum: um padrão através do qual toda e qualquer</p><p>diferença é pensada, valorativamente, como algo que dele transborda. A</p><p>positividade que reside no interior da norma é subtraída para tudo que</p><p>dela se afaste. Para o a-normal, como negação da lógica do normal,</p><p>acentua-se o que não é, o que falta, o que se apaga (Lobo 1992).[59]</p><p>Assim, se os critérios para o encaminhamento dos alunos ao ensino</p><p>especial têm por base a normalidade, tais critérios não se relacionam</p><p>apenas a pressupostos biológicos ou neutros, não se estabelecem por</p><p>uma norma abstrata que determina a essência a-histórica da espécie</p><p>humana, mas estreitam-se à norma estabelecida pelos homens em suas</p><p>relações socioculturais.</p><p>Bueno (1991),[60] fazendo uma análise sobre as práticas da</p><p>educação especial, aponta o predomínio de uma visão a-histórica na</p><p>elaboração de conhecimentos nessa área. Tal visão gera duas diretrizes</p><p>de ação: a da integração e a da racionalização; orientações que</p><p>privilegiam ações administrativas como forma segura para se solucionar</p><p>o acesso à escolaridade aos indivíduos excepcionais, redundando dessa</p><p>maneira em procedimentos técnicos.</p><p>Procedimentos técnicos norteiam as ações para a formação de uma</p><p>classe especial. Critérios subjetivos e conhecimentos cientificamente</p><p>construídos fundamentam o encaminhamento de alunos. Os motivos</p><p>costumam variar de acordo com a procedência da criança (escolas,</p><p>comunidade, postos de saúde). Para os alunos com “deficiências</p><p>mentais leves”, quase sempre o processo começa na escola, pelo olhar</p><p>seletivo da professora e dos especialistas, que solicitam a avaliação de</p><p>profissionais de “fora da escola”,[61] aqueles que formam as equipes de</p><p>educação especial.[62] Com o pedido de avaliação, geralmente, é</p><p>encaminhada a lista dos possíveis candidatos à classe especial –</p><p>“problemas” com os quais a escola já “não sabe o que fazer”. A lista</p><p>registra o fracasso atribuído à criança e, frequentemente, estendido à sua</p><p>família. Dessa maneira, sua referência passa a ser um número no</p><p>prontuário, uma classificação, um “caso”.</p><p>Fundamentadas em concepções abstratas, as avaliações</p><p>diagnósticas tendem a enfatizar as descrições de características</p><p>generalizadas e estereotipadas, voltadas para aquilo que falta ao aluno.</p><p>Com frequência, evidencia-se que o deficiente, nessa visão, jamais é</p><p>enfocado por inteiro, sentido, aliás, subjacente ao próprio significado</p><p>dicionarizado da palavra “integração” (princípio básico da educação</p><p>especial): “tornar inteiro: completar, inteirar, integralizar.”[63]</p><p>Com a inclusão em classe especial, espera-se a integração do aluno</p><p>no contexto da escola. Porém, em relação à integração, Ferreira (1993)</p><p>assinala o isolamento da própria educação especial como sistema de</p><p>ensino que, tal como o aluno, é segregada, isolada em vários aspectos.</p><p>Desse modo, alunos e profissionais vivem um espaço comum, porém</p><p>separado. Lobo (1992) apoia essas observações, ao destacar que as</p><p>classes especiais ocupam um espaço geográfico, em geral o pior, sendo</p><p>muitas vezes alijadas dos acontecimentos institucionais; uma</p><p>segregação que ocorre no interior do próprio espaço escolar, onde são</p><p>ignoradas as normas e os programas da classe especial. Mas serão as</p><p>suas práticas tão diferenciadas das propostas oferecidas pelo ensino</p><p>regular? Que concepções estarão fundamentando essas práticas?</p><p>Configurada no espaço do isolamento, em decorrência de sua</p><p>suposta especificidade, como prática pedagógica, a educação especial</p><p>tem se valido dos conhecimentos elaborados por várias ciências. Dentre</p><p>elas, a psicologia destaca-se nas contribuições para a compreensão dos</p><p>diferentes aspectos relativos à deficiência mental. Teorias psicológicas,</p><p>ao fundamentarem as práticas pedagógicas dessa área específica,</p><p>definem concepções de sujeito e aprendizagem que se refletem no</p><p>atendimento educacional. Sem deixar de reconhecer a relevância de</p><p>outros fundamentos teóricos, cabe ressaltar as contribuições da teoria</p><p>behaviorista e da teoria interacionista baseada em Piaget, em virtude da</p><p>significativa importância que apresentam no embasamento de propostas</p><p>pedagógicas desenvolvidas nas classes especiais.</p><p>Os fundamentos da teoria behaviorista possibilitam associar a</p><p>educação do deficiente às práticas sistemáticas e às variáveis</p><p>mensuráveis e manipuláveis. Enfatizando a aquisição de</p><p>comportamentos “adequados”, “inteligentes”, essa teoria veio destacar a</p><p>maneira pela qual tais comportamentos poderiam ser adquiridos e</p><p>encontrou na educação dos indivíduos portadores de deficiências um</p><p>terreno fértil.</p><p>A grande valorização dos estímulos ambientais levou à</p><p>supervalorização das técnicas de manipulação de estímulos e à</p><p>proposição de programas de ensino, nos quais são utilizados diferentes</p><p>procedimentos, visando acelerar ou alterar o rumo do desenvolvimento</p><p>da criança deficiente suprindo seus deficit, modificando seus</p><p>comportamentos inadequados.</p><p>Em oposição a essa concepção, que enfatiza as ações do meio sobre</p><p>o sujeito e que nos diz ser todo o conhecimento advindo da experiência,</p><p>a teoria interacionista, baseada nas contribuições teóricas de Piaget</p><p>(1896-1980) e seus seguidores, entende que o conhecimento provém da</p><p>interação do sujeito que aprende com o real, ou seja, é por meio da</p><p>relação com o objeto que o conhecimento é construído pelo sujeito,</p><p>estabelecendo-se, por conseguinte, uma interdependência entre o sujeito</p><p>que aprende e o objeto a ser conhecido. Assim, o conhecimento não</p><p>procede nem da experiência única com objetos nem de uma</p><p>programação inata pré-formada no sujeito, mas de sucessivas</p><p>construções.</p><p>A teoria cognitivista, como também pode ser chamada a teoria de</p><p>Piaget, tem gerado consideráveis</p><p>modificações na compreensão da</p><p>construção de conhecimentos pelo aluno deficiente mental,</p><p>influenciando a elaboração de uma prática pedagógica que entende esse</p><p>sujeito como ser ativo que tem um papel significativo na aprendizagem.</p><p>Porém, consideramos que, ao reduzir a compreensão da construção do</p><p>conhecimento ao desenvolvimento da inteligência lógico-matemática,</p><p>outras formas de conhecimento, expressas por intermédio das mais</p><p>diversas manifestações culturais que o homem é capaz de produzir,</p><p>tornam-se irrelevantes.</p><p>Ao relegarem os aspectos socioculturais a um papel secundário na</p><p>constituição do sujeito, tais teorias não nos permitem entender o</p><p>indivíduo portador de deficiência fora da concepção linear do</p><p>desenvolvimento ou do caráter adaptativo de sua educação. Ao não</p><p>levarem em conta a historicidade, esses conhecimentos nos remetem a</p><p>concepções abstratas e universais, que não nos apontam os múltiplos</p><p>sentidos que ganha a sua existência.</p><p>A necessidade de entender as relações social e culturalmente</p><p>determinadas, inseridas no contexto da classe especial, encaminha-nos a</p><p>romper com a visão a-histórica de sujeito, proposta por um modelo que</p><p>se perpetua na história da educação especial. Isso nos leva a indagar:</p><p>como romper com as definições cristalizadas, nas quais o sujeito deixa</p><p>de ser visto em espaço e tempo definidos? Como encontrar outra via</p><p>para ressignificar os processos de constituição dos sujeitos inseridos nas</p><p>classes especiais? Como captar a sua singularidade diante do sistema</p><p>massificador em que vivemos? Como entender o deficiente como ser</p><p>desejante sem sedentarizá-lo, fixá-lo no território de um rótulo</p><p>qualquer?</p><p>Sem pretensões de encontrar “verdades” e, até mesmo, apontando</p><p>para a necessidade de convivermos com as incertezas de uma realidade</p><p>dinâmica, de múltiplos sentidos e em constante transformação,</p><p>entendemos que é no caminho do fazer-se como prática educativa e,</p><p>portanto, social e histórica, que identificamos na educação especial a</p><p>necessidade de restaurar o espaço de sentido por meio da linguagem,</p><p>pois é ela – a linguagem – que caracteriza e marca o homem. Nessa</p><p>vertente, entendemos que “o sentido da palavra é o caminho para o</p><p>resgate daquilo que no homem é sujeito, no qual ele não se anula e nem</p><p>se desfaz” (Jobim e Souza 1994, p. 51).</p><p>História e linguagem na compreensão do sujeito social</p><p>Levar em consideração a produção da linguagem significa estudar o</p><p>homem produtor de texto, autor da sua palavra, significa também buscar</p><p>outras concepções para a compreensão do sujeito, aluno da classe</p><p>especial para deficientes mentais e as suas relações com o aprender.</p><p>Fugindo das concepções pré-fabricadas sobre maneiras de ser e de</p><p>agir ou de formas que são abstratamente retratadas nos manuais que</p><p>acompanham as propostas pedagógicas do nosso cotidiano escolar, a</p><p>linguagem, como elemento que caracteriza e marca o homem, permite-</p><p>nos uma compreensão abrangente do que significa existir socialmente</p><p>num contexto marcado por profundas contradições econômicas, sociais</p><p>e culturais. Compreender o sujeito por intermédio da palavra significa</p><p>compreender o ato humano como um texto em potencial, reflexo</p><p>subjetivo de um mundo objetivo, expressão da consciência no contexto</p><p>dialógico do seu tempo. Significa entender o sujeito como ser</p><p>inacabado, mergulhado em sentidos transitórios.</p><p>Nesse sentido, o conhecimento é dialógico; é acontecimento; é</p><p>encontro (Kramer 1993). Portanto, a educação especial pode ser falada</p><p>de outra maneira, através da vertente sócio-histórica. Para esse</p><p>movimento, os pressupostos teóricos de Vygotsky e Bakhtin</p><p>possibilitam encontrarmos nas relações dialógicas os processos de</p><p>constituição de subjetividades.</p><p>Vygotsky ocupou-se particularmente da educação de crianças</p><p>deficientes, sendo esse um campo de interesse importante em seus</p><p>estudos. Ele investigou o desenvolvimento da criança portadora de</p><p>deficiência, por meio dos pressupostos gerais sobre o desenvolvimento</p><p>das funções psicológicas. Luria (1988, p. 34), ao referir-se aos estudos</p><p>de Vygotsky nessa área, assinala que ele “rejeitava as descrições</p><p>simplesmente quantitativas de tais crianças, em termos de traços</p><p>unidimensionais refletidos nos resultados dos testes. Em vez disso,</p><p>preferia confiar nas descrições qualitativas da organização especial de</p><p>seus comportamentos”.</p><p>Portanto, nessa abordagem, mais que desvios em relação a</p><p>determinados padrões, a criança portadora de uma deficiência apresenta,</p><p>como qualquer outra criança, um tipo peculiar, qualitativamente distinto</p><p>de desenvolvimento.</p><p>Em uma abordagem dialética, Vygotsky entende que as funções</p><p>psicológicas se desenvolvem nas interações da criança com os</p><p>diferentes contextos culturais e históricos. Os significados, socialmente</p><p>construídos, e todas as funções aparecem duas vezes; primeiro, no nível</p><p>de social (interpsicológico) e, depois, no interior da criança</p><p>(intrapsicológico). O desenvolvimento decorre de duas linhas que se</p><p>entrecruzam: os processos elementares (origem biológica) e as funções</p><p>superiores (origem sociocultural). Então, ao estudarmos a consciência</p><p>da criança, não podemos nos resumir a analisar suas condições</p><p>biologicamente determinadas ou a constituição de seu mundo interno,</p><p>em si mesmo, mas precisamos resgatar o reflexo do mundo externo no</p><p>interno, ou seja, a interação da criança com a realidade, pois “desde os</p><p>primeiros dias do desenvolvimento da criança, suas atividades adquirem</p><p>um significado próprio num sistema de comportamento social e, sendo</p><p>dirigidas a objetivos definidos, são refratadas através do prisma do</p><p>ambiente da criança” (Vygotsky 1984, p. 33).</p><p>As relações sociais vividas pela criança portadora de deficiência</p><p>constituem um núcleo de fatores que afetam seu desenvolvimento.</p><p>Esses fatores – secundários à deficiência – são aqueles que mais devem</p><p>interessar aos educadores, pois, como destaca Vygotsky (1989), é</p><p>preciso reconhecer que a deficiência tem uma influência dupla no</p><p>desenvolvimento: se, por um lado, cria obstáculos e dificuldades, por</p><p>outro, serve de estímulo para o aparecimento de canais de compensação</p><p>que podem levar da deficiência à constituição de uma nova ordem. Não</p><p>seria essa uma outra forma de olharmos a singularidade de um aluno</p><p>considerado portador de uma deficiência?</p><p>A ênfase dada por Vygotsky aos processos interativos de</p><p>aprendizagem leva-nos a refletir sobre a forma pela qual as práticas</p><p>institucionais são estruturadas. Compreendendo que as funções</p><p>psicológicas são internalizadas pela criança por meio das suas</p><p>interações sociais, entendemos também que sua inclusão em espaços</p><p>que restringem as suas relações sociais tende a prejudicar o</p><p>desenvolvimento de suas funções psicológicas. Não podemos esquecer</p><p>que, historicamente, a esses alunos têm sido reservados espaços de</p><p>exclusão que, restringindo suas interações sociais, limitam o seu</p><p>aprendizado.</p><p>Vygotsky (1979; 1984; 1989) atribui significativa importância ao</p><p>aprendizado escolar e afirma que ele produz algo novo no</p><p>desenvolvimento. Analisando a relação entre aprendizado e</p><p>desenvolvimento, ele nos diz que a aprendizagem se antecipa ao</p><p>desenvolvimento das funções e o impulsiona, fazendo emergir funções</p><p>que estão em processo de amadurecimento (nível de desenvolvimento</p><p>potencial), expresso pela solução de problemas pela criança, sob a</p><p>orientação de um adulto ou de outro companheiro mais experiente. As</p><p>ações independentes, aquelas que a criança consegue resolver sozinha,</p><p>representam o nível de desenvolvimento real. Dessa maneira, o</p><p>desenvolvimento mental só pode ser determinado se forem observados</p><p>os seus dois níveis (real e potencial) e a zona de desenvolvimento</p><p>proximal, que nos indica a dimensão da diferença entre esses níveis.</p><p>Podemos dizer, então, que desenvolvimento, aprendizagem e ensino são</p><p>processos inter-relacionados.</p><p>Essas concepções trazem importantes implicações educacionais.</p><p>Elas alteram nossas perspectivas em relação à avaliação do</p><p>desenvolvimento mental da criança, pois indicam que uma avaliação</p><p>baseada em testes ou provas dá apenas uma dimensão do</p><p>desenvolvimento</p><p>– o seu nível real. Faz-se necessário, então, romper</p><p>com o caráter de neutralidade e isolamento em que as crianças são</p><p>avaliadas, transformando a avaliação em processo interativo, que</p><p>permita observar também como, por meio da cooperação, o</p><p>desenvolvimento potencial nos indica a direção no sentido de se tornar</p><p>desenvolvimento real. Estaremos, desse modo, diante de relações que</p><p>apontam ações propiciadoras do desenvolvimento e não apenas</p><p>justificando a realidade que se apresenta.</p><p>Analisando a educação oferecida no início do século XX às</p><p>crianças deficientes, Vygotsky (1989) tece importantes considerações,</p><p>relevantes também para nossas práticas atuais. Para ele, a educação</p><p>especial costuma acomodar-se e adaptar-se ao retardo mental, na</p><p>medida em que assume que a criança deficiente domina com grande</p><p>dificuldade o pensamento abstrato e, portanto, deve fundamentar a sua</p><p>aprendizagem no caráter concreto e na visualização. Ao operar</p><p>exclusivamente com representações concretas, a escola limita e dificulta</p><p>o desenvolvimento do pensamento abstrato, cuja função, na conduta da</p><p>criança, não pode ser substituída por nenhum “procedimento visual”.</p><p>Um dos principais objetivos de Vygotsky foi entender a relação</p><p>entre pensamento e linguagem. Para ele, o uso da linguagem constitui a</p><p>condição mais significativa de elaboração das funções psicológicas. O</p><p>significado de uma palavra “representa um amálgama tão estreito do</p><p>pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um</p><p>fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento” (Vygotsky 1979,</p><p>p. 104). Desse modo, a experiência histórica dos homens acha-se</p><p>refletida nas criações materiais, e também aparece representada nas</p><p>palavras, consolidadas nos conteúdos que as envolvem. É por meio da</p><p>linguagem que os indivíduos interatuam ao mesmo tempo em que</p><p>internalizam papéis sociais e conhecimentos que possibilitam seu</p><p>desenvolvimento psicológico. Por meio da linguagem, em suas</p><p>múltiplas expressões, exprimimos significados e sentidos, sentimentos e</p><p>afetos; texto e subtexto implicados na evolução da consciência humana.</p><p>Essas ideias também são trazidas por Bakhtin, e ampliadas no</p><p>sentido de apontar a necessidade de levarmos em conta o aspecto</p><p>ideológico da linguagem, permitindo um outro olhar, uma outra</p><p>compreensão do papel das relações dialógicas na constituição da</p><p>consciência. Bakhtin utiliza o termo ideologia do cotidiano para</p><p>explicitar o domínio da palavra ainda não fixado num sistema. Assim,</p><p>nossos atos, gestos ou palavras serão sempre expressões ideológicas.</p><p>Para Bakhtin (1992a), a categoria básica de concepção de</p><p>linguagem é a interação verbal, e esta se dá fundamentalmente pelo</p><p>diálogo. Toda enunciação é um diálogo e faz parte de um processo</p><p>ininterrupto. Diálogo é aqui compreendido com um sentido amplo,</p><p>correspondendo não apenas à comunicação em voz alta entre duas</p><p>pessoas, mas a toda comunicação verbal. Nesse sentido, qualquer</p><p>enunciado pressupõe aqueles que o antecederam e outros que o</p><p>sucederão, cada enunciado é um elo de uma cadeia de comunicação e só</p><p>pode ser compreendido em um contexto determinado.</p><p>Bakhtin assinala que a construção de conhecimento sobre o homem</p><p>se dá por meio do diálogo, pois “o sujeito como tal não pode ser</p><p>percebido e estudado a título de coisa porque, como sujeito, não pode,</p><p>permanecendo sujeito, ficar mudo; conseqüentemente, o conhecimento</p><p>que se tem dele só pode ser dialógico” (1992b, p. 403). Como aspecto</p><p>relevante para conhecimento do contexto da classe especial, a</p><p>linguagem é, portanto, muito mais que a expressão da estrutura</p><p>cognitiva. Ela é a expressão semiótica do contato entre o sujeito e o seu</p><p>meio. A palavra, signo ideológico por excelência, ganha vida não por</p><p>ser assimilada como um sinal abstrato da língua, como uma forma</p><p>sempre idêntica a si mesma, mas na concretude dos enunciados nos</p><p>quais aparece de forma flexível e variável. Como afirma Bakhtin</p><p>(1992a, p. 45), “não são as palavras o que pronunciamos ou escutamos,</p><p>mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais,</p><p>agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de</p><p>um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”.</p><p>O olhar fundamentado na teoria sócio-histórica, com base nas</p><p>contribuições de Vygotsky e Bakhtin, permite-nos compreender</p><p>processos de constituição de subjetividades; pensar encontros que</p><p>produzem diálogos; pensar diálogos em cadeias de enunciações;</p><p>permite-nos pensar a classe especial por meio das palavras daqueles que</p><p>se inserem em seu contexto.</p><p>O contexto especial</p><p>Com a intenção de desvelar o cotidiano da classe especial, tomei</p><p>como espaço a sala de aula de uma das quatro classes especiais para</p><p>deficientes mentais, de uma escola da rede pública de ensino, de um</p><p>município da Baixada Fluminense, no estado do Rio de Janeiro.</p><p>Nessa escola de ensino fundamental, são atendidos 949 alunos.</p><p>Dentre esses, 48 estão incluídos nas classes especiais. Duas funcionam</p><p>no turno da manhã e duas, no turno da tarde.</p><p>Embora situada no centro do município, a escola não é</p><p>necessariamente bem localizada; a rua em que se encontra é considerada</p><p>uma das piores da região: nela há um rio onde são despejados o lixo e o</p><p>esgoto das casas construídas em suas margens. Poluído pelo lixo e pelo</p><p>esgoto sem tratamento, o rio, à época de chuvas fortes, transborda,</p><p>invade as casas e também a escola, destruindo seus muros e paredes.</p><p>Nas margens do rio, a pobreza é evidente. Contrastando com a lama, o</p><p>lixo e a fragilidade dos barracos à beira do rio, nas ruas próximas</p><p>encontram-se as sólidas construções, o comércio, a avenida e as ruas</p><p>asfaltadas.</p><p>Para escolha da escola e da classe, tive como base os seguintes</p><p>critérios: facilidade de acesso quanto à localização; larga experiência da</p><p>escola em atendimento nas classes para deficientes mentais; a qualidade</p><p>do trabalho da professora (há mais de cinco anos atuando com classes</p><p>especiais); o fato de já conhecer alguns de seus profissionais, por haver</p><p>desenvolvido, como profissional da educação especial, um trabalho na</p><p>escola – fato que contribuiu para eu ser bem-recebida na escola.</p><p>Seguindo os princípios metodológicos do estudo etnográfico, para</p><p>registro dos fatos, fiz uso de entrevistas (semiestruturadas) e</p><p>observações. Desse modo, considerei poder compreender significados</p><p>manifestos e latentes, tecendo os fios invisíveis entre os protagonistas,</p><p>interligando os diferentes pontos observados, na busca de uma visão de</p><p>totalidade.</p><p>Comecei a pesquisa de campo entrevistando a professora e a</p><p>diretora da escola. Iniciava assim uma fase exploratória para obter</p><p>informações sobre o espaço e a estrutura dinâmica, na qual iria estar</p><p>inserida.</p><p>Entrevistando a diretora, obtive informações sobre aspectos</p><p>institucionais. Tinha como objetivo conhecer um pouco da história da</p><p>escola e nela a classe especial. Entre outros fatos, fui informada das</p><p>muitas dificuldades enfrentadas para manutenção do prédio, tão</p><p>desgastado pelas frequentes enchentes. Falamos também sobre as</p><p>relações da escola com a comunidade e os problemas enfrentados pelos</p><p>alunos provenientes de famílias muito pobres. Segundo a diretora, há</p><p>“(...) muitos problemas nas famílias que são levados para a escola, (...) o</p><p>problema é a família. Tem aquele que não tem mãe em casa, não tem</p><p>relógio para chegar na hora na escola... Tem criança que você não pode</p><p>nem brigar”.</p><p>Quanto aos aspectos pedagógicos, ela relatou que um dos maiores</p><p>problemas são os alunos repetentes, que há anos frequentam as classes</p><p>de alfabetização sem conseguir rendimento, e acrescentou:</p><p>Eles precisam de uma classe especial. Eu acho. (...) Não acho que deva ser</p><p>rotulado, não é isso. Inclusive, eu já trabalhei muito isto aqui na escola, no início a</p><p>classe especial, ... o aluno especial? Mandar para a Etesp[64] avaliar... Não, não é</p><p>por aí, apresentou qualquer problema vai para a classe especial. Mas, na classe</p><p>regular eles não aprendem. Eles estão dois... três... quatro anos. Eles têm</p><p>dificuldades mesmo. Até a brincadeira é diferente. Eles apresentam dificuldades</p><p>para brincar e</p><p>não conseguem assimilar nada. Eu acho que é muito tempo que eles</p><p>já estão na escola.</p><p>Dificuldades de brincar. Problemas de aprendizagem. Crianças com</p><p>diferentes histórias de vida. A classe especial é vista como o lugar onde</p><p>“os problemas” podem ser resolvidos. Possíveis soluções são pensadas</p><p>partindo-se da inclusão num espaço onde essas diferenças possam ser</p><p>homogeneizadas. Um lugar de práticas pedagógicas desconhecidas pela</p><p>escola, como indicam as palavras da diretora:</p><p>(...) eu acho que esta parte (acompanhamento das práticas das classes especiais)</p><p>fica mais com vocês, mas é porque é um trabalho que a gente não conhece. Se</p><p>professor precisar alguma coisa ele pode contar. A avaliação, isto tudo é feito por</p><p>vocês. Então, não existe ninguém na escola que faça isso.</p><p>Desconhecida quanto aos aspectos pedagógicos; que outras</p><p>características tem a classe especial? Como ela se organiza no espaço da</p><p>escola? Qual a dinâmica de seu funcionamento? Quem é a professora?</p><p>Quem são os seus alunos?</p><p>Quanto à localização, a classe ocupava um lugar reservado; seu</p><p>tamanho era bem menor do que as outras, permitindo apenas o</p><p>atendimento máximo de nove alunos (geralmente as classes para</p><p>deficientes mentais atendem de 10 a 15 alunos). Destacava-se quanto ao</p><p>mobiliário por não ter mesas ou carteiras individuais, substituídas por</p><p>três mesas redondas, colocadas uma ao lado da outra. Essa arrumação</p><p>levava os alunos a estarem permanentemente organizados em grupo.</p><p>Com muita criatividade, os alunos e a professora arrumavam os</p><p>materiais no pequeno espaço da sala de aula. Vários cartazes colados</p><p>nas paredes, quadro de pregas com nome dos alunos, produções dos</p><p>alunos presas em varal, prateleira de livros e revistas, caixas com</p><p>sucatas e jogos pedagógicos, um armário para guardar materiais de uso</p><p>específico da professora compunham o cenário onde atuava um grupo</p><p>em aprendizagem, mais especificamente em processo de alfabetização,</p><p>orientado por uma professora especializada.</p><p>Trabalhando há 15 anos como professora da rede pública, a</p><p>professora há sete anos atua em classes especiais destinadas ao</p><p>atendimento a deficientes mentais. Antes de se dedicar a essa área, teve</p><p>experiências com turmas de alfabetização e primeiras séries. Tem cursos</p><p>de aperfeiçoamento em educação especial. Inicialmente, enfrentou</p><p>algumas dificuldades para trabalhar nessa área, porque pouco sabia</p><p>sobre alunos especiais, conhecendo apenas os atendimentos clínicos a</p><p>eles oferecidos. Outra barreira foram as palavras daqueles que, ao</p><p>perceberem o seu desejo de iniciar nesse trabalho, indagavam-lhe</p><p>“como teria coragem de trabalhar com tais alunos”. No entanto, esses</p><p>fatos não foram suficientemente fortes para impedi-la de enfrentar</p><p>aquilo que considerou um desafio em sua carreira profissional. Aos</p><p>poucos, ela foi descobrindo, na relação de ensinar, a igualdade de</p><p>oportunidades e o respeito às diferenças, concluindo que</p><p>não existe diferença entre o ensino especial e o ensino regular... A forma de</p><p>apresentar é que é diferente... uma maneira mais lenta; de maneira mais lenta; de</p><p>maneiras mais agradáveis a criança vai absorvendo o conteúdo melhor. Temos que</p><p>acompanhar o percurso que a criança vai fazendo para aprender.</p><p>Com esse desejo de tornar o aprender mais prazeroso, a professora</p><p>acha importante o uso de jogos (bingo, caça-palavra, ache as diferenças,</p><p>quebra-cabeça, jogo da memória...). Dando destaque ao caráter lúdico</p><p>na aprendizagem, ela considera que “o jogo é a maneira de chegar até a</p><p>criança”. Esses jogos se estendem para fora da sala de aula e são, além</p><p>de recreação, caminhos para expressão artística e corporal. “No teatro</p><p>eles participam muito, eles representam e se movimentam... tudo sem</p><p>esquecer do conteúdo de português, da matemática, dos estudos sociais</p><p>e ciências que eles também aprendem”, acrescenta a professora.</p><p>Em entrevista, ela falou também sobre cada um de seus alunos,</p><p>apresentando algumas de suas características. Nosso diálogo serviu de</p><p>base para o conhecimento das nove crianças consideradas, de acordo</p><p>com avaliação diagnóstica, portadoras de “deficiências mentais</p><p>educáveis”, com comprometimentos “leves” e “moderados”.</p><p>Com base na visão da professora, apresentamos algumas</p><p>características dos alunos:[65]</p><p>Priscila (13 anos) “tem um comprometimento mental mais</p><p>acentuado, porém tem tido grande desenvolvimento”. Renato (12 anos)</p><p>e Bárbara (8 anos), portadores de síndrome de Down, fizeram a pré-</p><p>escola em escolas da rede particular e foram encaminhados à classe</p><p>especial por essas escolas. Bárbara “é muito comunicativa, gosta de</p><p>estar falando, conversando... Participa ativamente de todas as aulas,</p><p>principalmente quando a atividade é teatro ou recreação... Já escreve o</p><p>próprio nome”. Renato “já tem uma escrita legível... É muito tímido.</p><p>Senta separado dos outros e aguarda ser convidado para as brincadeiras.</p><p>Ele é muito diferente da Bárbara”. Marcelo (10 anos) “foi incluído em</p><p>classe especial por apresentar “condutas típicas”.[66] Ele reconhece</p><p>todas as cores, os números, guarda datas, fatos que aconteceram. Tem</p><p>uma memória fantástica. Tem algumas características de autista...”.</p><p>Érica (14 anos) “apresenta deficiência mental leve, mas o maior</p><p>problema é emocional. É muito ativa, quer organizar as brincadeiras. É</p><p>uma líder... Costuma ficar revoltada quando não a deixam fazer o que</p><p>alunos de outras turmas fazem”. Estela (13 anos) “falta muito à aula. A</p><p>família não aceita que ela esteja na classe especial... Em termos de</p><p>alfabetização está indo muito bem...”. Alessandra (10 anos), Tiago (10</p><p>anos) e Marcos (10 anos) são alunos que não aparentam ter deficiência.</p><p>Depois de alguns anos de repetência na 1ª série, foram encaminhados à</p><p>classe especial. A professora não consegue entender os motivos que</p><p>levaram Marcos, Tiago e Alessandra ao ensino especial, destacando, por</p><p>exemplo, que Marcos, aluno que já frequentou várias classes especiais,</p><p>com pouco tempo nessa turma, “apresentou um enorme progresso na</p><p>aprendizagem. Ele é uma revelação!”</p><p>Com esse grupo de crianças, levando em conta a mediação</p><p>pedagógica proposta pela professora, procurei observar nas relações</p><p>dialógicas o cotidiano da classe especial, incluindo-me naquele</p><p>contexto.</p><p>O lugar. A escola. As pessoas. O que encontrava me era familiar,</p><p>mas nem por isso posso dizer conhecido. Um objetivo diferente fazia</p><p>dessa relação algo novo para todos nós: era um outro olhar. Velho</p><p>(1987) afirma que o “processo de estranhar o familiar torna-se possível</p><p>quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo</p><p>emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes a</p><p>respeito de fatos” (p. 131). Acrescenta, ainda, que conhecer dados sobre</p><p>determinadas situações sociais do cotidiano não significa nem que</p><p>conheçamos a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação</p><p>social nem os subtextos que estão por trás dessas interações.</p><p>Desse modo, apesar de estar numa escola onde há algum tempo</p><p>desenvolvi um trabalho, considerei estar vivendo um momento novo:</p><p>apresentei-me aos alunos e expliquei-lhes o objetivo de minha presença,</p><p>bem como o motivo do desenvolvimento da pesquisa e os rumos que,</p><p>provavelmente, ela seguiria. Fui recebida com entusiasmo e curiosidade</p><p>expressa em muitas perguntas. Como em um “jogo de buscar</p><p>confiança”, eles quiseram saber sobre minha idade, meu trabalho, minha</p><p>residência, meus filhos, enfim: queriam saber quem era aquela pessoa</p><p>que começava a partilhar com eles aquele espaço.</p><p>Durante as duas primeiras semanas, vivemos um período</p><p>exploratório e os encontros foram permitindo que ficássemos mais à</p><p>vontade em nossos diálogos. Naquela ocasião, limitei-me a conversar e</p><p>observar a rotina da sala de aula e da escola. Não fazia anotações</p><p>imediatamente, nem gravava os diálogos. Isso poderia atrapalhar nosso</p><p>conhecimento mútuo. Acompanhava a turma onde ela estivesse – na</p><p>merenda, no ensaio da dança para festa junina, nos jogos no pátio...</p><p>Esse período foi também o momento em que a professora foi</p><p>definindo o meu papel de pesquisadora e aceitando a minha participação</p><p>em sala de aula.</p><p>Considerei de grande importância essa definição por</p><p>parte da professora, uma vez que, às vezes, sentia que ela me</p><p>identificava como orientadora ou supervisora de seu trabalho. Houve</p><p>momentos em que essas questões foram sendo esclarecidas e</p><p>alcançamos a compreensão dialogada, tornando-se a professora uma</p><p>importante interlocutora em todas as fases da pesquisa. Nossas</p><p>conversas informais eram fontes de aspectos significativos para a</p><p>análise que fazíamos daquela realidade.</p><p>Após a fase exploratória (duas semanas), informei à turma que</p><p>haveria necessidade de fazer anotações e gravar as conversas para que</p><p>nada do que era dito fosse perdido. Passamos a usar o gravador,</p><p>anotando também outros aspectos significativos para compreensão</p><p>daquela realidade, ou seja, foram registrados os gestos, as expressões</p><p>não verbais, os aspectos visuais que compunham o cenário da sala de</p><p>aula, os acontecimentos transcorridos fora do ambiente da sala..., tudo</p><p>foi sendo registrado no diário de campo.[67]</p><p>Inicialmente, a utilização do gravador gerou muita curiosidade,</p><p>chegando mesmo a alterar um pouco a dinâmica da aula. Combinamos,</p><p>então, que iríamos reservar os últimos minutos da aula para ouvir a</p><p>gravação. Nessa atividade reconhecíamos as diferentes vozes, nós nos</p><p>divertíamos com as diferenças entre elas, especialmente quando alguma</p><p>música havia sido gravada. Assim, se no início chamou a atenção das</p><p>crianças, gradativamente o gravador foi sendo aceito como material de</p><p>uso comum, não gerando mais desatenção.</p><p>O período de observação estendeu-se de maio a setembro de 1994,</p><p>com meu comparecimento à escola duas vezes por semana,</p><p>acompanhando o dia letivo (quatro horas), perfazendo um total de 100</p><p>horas de observações. Em todo esse percurso, procurei dialogar com o</p><p>cotidiano, vivendo com os alunos e com a professora as situações que</p><p>me apontavam as enunciações. Como “fundo perceptivo” para as</p><p>observações, havia uma história, a minha trajetória, e os pressupostos</p><p>teóricos, como mediadores na leitura das interações estabelecidas</p><p>naquele contexto. Essa combinatória foi me conduzindo ao</p><p>diálogo/encontro com a palavra, num movimento que podemos</p><p>representar através do pensamento de Bakhtin (1992a, p. 17):</p><p>Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da</p><p>palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade</p><p>mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo</p><p>discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do</p><p>exterior. A palavra vai à palavra.</p><p>A palavra abre o caminho para o diálogo. Palavra indo à palavra.</p><p>Nas relações dialógicas, elas se entrelaçam, as vozes e histórias se</p><p>entrecruzam, tecendo o cotidiano. Nas histórias revela-se o cotidiano da</p><p>escola, e nesse cotidiano, os alunos, a professora, a classe especial...</p><p>Palavra viva</p><p>Palavra com temperatura</p><p>Que se produz</p><p>Muda</p><p>Feita de luz mais que de vento, palavra (...)</p><p>Chico Buarque</p><p>O cotidiano de uma classe especial: “A palavra vai à palavra”</p><p>Organizados em temas,[68] determinados pelos elementos verbais e</p><p>não verbais (gestos, olhares, silêncio), os diálogos dos alunos e com os</p><p>alunos apontaram as propriedades da palavra como material semiótico</p><p>essencial na constituição da consciência: ela é signo social; ela está</p><p>presente em todos os atos de compreensão e de interpretação; ela é</p><p>ponte entre mim e o outro (Bakhtin 1992a).</p><p>Tomando como base as relações dialógicas, entendemos a criança</p><p>como sujeito da palavra e de suas ações no mundo. Com os alunos foi</p><p>possível desvendar os múltiplos sentidos construídos com base nas</p><p>interações sociais entre eles, a professora, a pesquisadora, e outros</p><p>interlocutores no dia a dia dos nossos encontros. Dessas interações</p><p>destacamos alguns diálogos.[69]</p><p>Colocando-se bem próxima ao gravador, ficando entre mim e a</p><p>professora, Alessandra olhava para tudo com a curiosidade de quem</p><p>quer participar da história. Tinha olhos que, por si só, pareciam rir e</p><p>chorar. Ela inicia o diálogo:</p><p>– Nós vamos passar de ano?</p><p>– Pra que ano? 94, 95, 96... (professora)</p><p>– Não! É... é pra primeira série.</p><p>– Ah!... para primeira série! (pausa) Vai depender de todos nós aqui. Só no final do</p><p>ano é que a gente vai saber. Não pode faltar muito, igual você gosta de faltar.</p><p>Quantos dias você ficou sem vir na escola? (professora)</p><p>– Muito (pausa). É que minha mãe trabalha, meu... pai trabalha... trabalha.</p><p>– E quantos dias você não vem à escola? (professora)</p><p>– Três... três dias. (fala bastante gaga)</p><p>– Três dias!... Já pensou, três dias sem vir à escola. Quanta coisa você deixou de</p><p>saber sem vir à escola. Já pensou? (pausa). E você ficou fazendo o que em casa</p><p>estes três dias? (professora)</p><p>– Eu... eu... fiquei estudando, no livro da minha irmã, a Gisele. Eu... eu... eu...</p><p>fiquei estudando.</p><p>– A Gisele também faltou três dias? (professora)</p><p>– É... meu pai trabalha. Minha mãe trabalha (como que se desculpando). Eles</p><p>trabalha muito!</p><p>– E qual é o problema do pai trabalhar, da mãe trabalhar, e, você vir para a escola?</p><p>Por que é que não pode? (pesquisadora)</p><p>– Eu, eu, eu, não sei vir sozinha pra escola.</p><p>– Ah! Você não sabe vir sozinha. São eles que trazem você. Eles não estão trazendo</p><p>porque vão trabalhar? (pesquisadora)</p><p>– Quem trazia era uma outra pessoa. (professora comenta com a pesquisadora)</p><p>– Meus tios não ajudam a minha mãe.</p><p>– Não? (pesquisadora)</p><p>– Ninguém traz para a escola. Só meu pai e minha mãe.</p><p>– Aí, quando não tem nem... o pai, nem... nem a mãe. (pesquisadora) (pausa)</p><p>– Fi,fi,fi, fica trancada.</p><p>– Ah! Fica em casa? (pesquisadora não entende a palavra trancada)</p><p>– Trancada.</p><p>– Trancada? (surpresa) Você fica trancada em casa? Como? Como é que isso?</p><p>(pesquisadora)</p><p>– A, a, a, a, a minha mãe fala, fala, ff. fala assim, fala assim: é... “fica trancada...</p><p>Eu vou trabalhar, depois eu volto. Eu vou com... com... eu vou trazer biscoito pra</p><p>vocês”.</p><p>– Dentro de casa? Você fica trancada? Fica sozinha? (pesquisadora)</p><p>– Não, com meus irmãos.</p><p>– Quantos são? (pesquisadora)</p><p>– São quatro. Três meninas e um menino.</p><p>– Três meninas e um menino. Trancados vocês fazem o quê? (pesquisadora)</p><p>– É, é, é, é comida. Eu e minha irmã faz.</p><p>– E você sabe fazer o quê? (pesquisadora)</p><p>– Fazer arroz, feijão.</p><p>Trancada na vida... trancada na escola... Alessandra procurou</p><p>mostrar o que a escola parece não ver, nem ouvir. Com a linguagem,</p><p>dificultada pela gagueira, ela expressava o seu trancamento. Como</p><p>outras tantas crianças, ela busca ações para subverter aspectos perversos</p><p>de nossas relações sociais. Questiona. Explica. Justifica. Surpreende.</p><p>Revela a necessidade de sentimentos que contrastam com a realidade.</p><p>Fala da necessidade de uma sociedade mais solidária e mais justa, que</p><p>garanta os direitos dos cidadãos e respeite suas diferenças. Seu texto é</p><p>determinado pelas relações com o espaço social mais amplo. Como</p><p>assinala Bakhtin (1992a), “um signo não existe apenas como parte de</p><p>uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra” (p. 32). Sua voz</p><p>aponta também para a necessidade de que sejam revistas as formas</p><p>como são avaliadas as crianças que “fracassam” na escola e</p><p>consequentemente as práticas que representam o fracasso da própria</p><p>escola.[70] Ouvir o que narram as crianças possibilita entendermos as</p><p>práticas instituídas na escola.</p><p>Sobre a avaliação a que são submetidas as crianças que “fracassam</p><p>na escola”, Leontiev (1977)[71] nos diz que as medições que se obtêm</p><p>com os testes apenas dão uma ideia superficial do nível de</p><p>desenvolvimento intelectual, pois não revelam a natureza do atraso nem</p><p>permitem interpretá-lo em absoluto: apenas dão a ilusão de uma</p><p>explicação da causa do atraso. Questionando o valor da utilização de</p><p>tais instrumentos, ele indaga: “podem conduzir à diminuição do número</p><p>de crianças classificadas como mentalmente subdesenvolvidas, ou</p><p>determinam talvez o resultado oposto?” Em quase resposta, também</p><p>perguntamos: por que a escola não encontra outro caminho para ajudar</p><p>crianças como Alessandra? Por que a escola insiste em não conhecer a</p><p>história de vida dos seus alunos? Por que não reconhece</p><p>a positividade</p><p>das diferenças apresentadas nas experiências singulares das crianças? E</p><p>a educação especial, por que mantém o processo de inclusão desses</p><p>alunos nas classes especiais?</p><p>Levar em conta os diálogos presentes na cotidiano da escola é</p><p>caminho para entendermos alunos e professores como sujeitos da e na</p><p>história. “Passar de ano ou passar o ano?”, tema apresentado tantas</p><p>vezes na pergunta feita pelos alunos: – “nós vamos passar de ano?” e na</p><p>resposta constrangida da professora: – “pra que ano? 94, 95, 96...”,</p><p>revela o desejo dos alunos e da professora de romperem com um tempo</p><p>que lhes parece aprisionador e que se repete sempre igual. Mudar;</p><p>construir uma outra história de vida. Suas reflexões falam das</p><p>contradições entre a permanência em classe especial, o caráter</p><p>transitório das vivências cotidianas que nos fazem correr no tempo para</p><p>não perdermos os rumos da história. Contradições que levam a</p><p>professora a dizer:</p><p>(...) porque uma coisa que eu acho meio estranho... (pausa) a criança fica muito</p><p>tempo com um professor. Tem criança que está comigo há cinco anos, enquanto ela</p><p>tem experiência de casa que, quando o aluno “passa de ano”, muda de professor.</p><p>Eles estão comigo há cinco anos: então não passam de ano.</p><p>Embora os alunos da classe especial não estejam organizados em</p><p>série, a colocação nesse espaço representa um controle, uma série, uma</p><p>espécie de poder exercido sobre eles, uma forma de organização para</p><p>localizar determinado grupo de indivíduos que a ela pertencem e que se</p><p>caracterizam porque nela permanecem. Na classe especial nem se passa</p><p>de ano, nem se repete o ano – nela ou se fica, ou se sai.[72] Nessas</p><p>ações, a construção do sentido de prêmio e de castigo, presentes na</p><p>condição de “passar” ou “não passar de ano”, também fica evidenciada.</p><p>Marcelo, observando a repreensão da professora a um colega, diz:</p><p>– Senão, o Tiago não vai passar de ano? Não vai passar?</p><p>– Vai passar para 1995, não é? (professora)</p><p>– Vou para outra sala.</p><p>– Ah, eu também quero ir para outra sala. (professora)</p><p>– Não!!! (turma)</p><p>Nosso diálogo com essa realidade permite-nos indagar: que</p><p>significado tem assumido para os alunos o tempo vivido em classe</p><p>especial? Ou ainda: com outra sistematização, a escola não poderia</p><p>garantir um novo tempo para esses e outros alunos?</p><p>Contando fatos, relatando suas experiências, narrando histórias do</p><p>seu tempo, os alunos traziam para a sala de aula aspectos significativos</p><p>do cotidiano.[73] As crianças apresentavam a elaboração de</p><p>conhecimentos, por intermédio das interações dialógicas da mediação</p><p>das palavras da professora ou do companheiro mais experiente. A</p><p>linguagem organiza o pensamento e as ações no espaço discursivo da</p><p>sala de aula.</p><p>Vejamos como isso se apresenta no diálogo sobre o horário de</p><p>transmissão de um dos jogos da Copa do Mundo:</p><p>As crianças faziam comentários sobre o jogo, quando Tiago</p><p>argumentou:</p><p>– Mas, tia..., eles lá..., eles almoçam de tarde.</p><p>– É, eles almoçam de tarde. (Marcos)</p><p>– De tarde?... Não, de noite.</p><p>– Como é mesmo? O que você falou? Os jogadores almoçam de noite?</p><p>(professora)</p><p>– É, eu vi eles almoçam de noite.</p><p>– Como assim? Em vez deles tomarem café de tarde, eles almoçam? É assim?</p><p>(professora)</p><p>– Não! (Marcos)</p><p>– Então, como é que vocês sabem que eles almoçam de noite? (professora)</p><p>– Não, não. Eles não tomam café e almoçam não, que isto é falta de educação. Eles</p><p>tomam café quando acorda, depois faz... ah, faz qualquer coisa e, depois, quando</p><p>vem, quase uma e meia aí eles jantam... jantam? (pergunta-se Marcos reavaliando</p><p>sua resposta)</p><p>– Eles não moram em casa não.</p><p>– Então, eles tomam café e depois jantam? (professora)</p><p>– Não! Isto é falta de educação. Toda hora, toda hora bebendo café. (Marcos)</p><p>– Ah, então eles levantam, tomam café e depois? (professora)</p><p>– Depois voltam, almoçam, uma e meia.</p><p>– E depois? (professora)</p><p>– Trabalham. (Priscila)</p><p>– Ah, depois do almoço eles vão jogar. (professora)</p><p>– É. (turma)</p><p>– É depois do jogo, eles jantam? (professora)</p><p>– É. (turma)</p><p>– É... Por que na hora que a gente estava vendo o jogo de noite, lá estava claro?</p><p>Tava de noite lá no hora do jogo? (professora)</p><p>– É. Lá tava azul. (Bárbara sabia o nome e o número de todos os jogadores)</p><p>– Tava de noite? (Como que perguntando para si mesmo)</p><p>– Tava. (Érica)</p><p>– Estava de noite? (professora)</p><p>– Érica, deixa de ser mentirosa.</p><p>– Depois escureceu. (Érica)</p><p>– É isto mesmo, lá estava em outro horário. Quando aqui eram oito horas, lá eram</p><p>quatro da tarde. Aqui já era noite, mas lá ainda estava claro. Onde é o jogo? Aonde</p><p>eles estão jogando? Qual o país da Copa? (professora)</p><p>– Estados Unidos. Meu primo foi para os Estados Unidos. (Érica)</p><p>– Hum... ele está nos Estados Unidos. Então, lá, se aqui são duas horas, lá são dez</p><p>horas da manhã. (professora)</p><p>Nesse diálogo, o processo interativo de aprendizagem revela que “o</p><p>aprendizado é uma das principais fontes de conceitos da criança em</p><p>idade escolar, e é também uma poderosa força que direciona o seu</p><p>desenvolvimento, determinando o destino de todo o seu</p><p>desenvolvimento mental” (Vygotsky 1979, p. 74). Portanto,</p><p>aprendizagem, ensino e desenvolvimento, embora processos distintos,</p><p>interagem dialeticamente. No aprendizado dessa classe especial, a</p><p>interação com a professora e a dos alunos entre si mostraram-se</p><p>fundamentais para que os conhecimentos fossem trabalhados no nível</p><p>do desenvolvimento potencial, ou seja, as interações propiciavam</p><p>acesso aos conhecimentos em processo de maturação, impulsionando a</p><p>sua construção. Com a ajuda da professora, os alunos continuavam suas</p><p>elaborações, apoiando-se em fatos cotidianos. Suas respostas eram</p><p>caminhos que indicavam a maneira pela qual se apropriavam de</p><p>conhecimentos. Essa relação apontou também a importância da</p><p>heterogeneidade para a aprendizagem.</p><p>Nas relações dialógicas, as palavras podem ter muitos significados</p><p>e múltiplos sentidos, em diferentes contextos sociais, pois “todas as</p><p>frases que dizemos na vida real possuem algum tipo de subtexto, um</p><p>pensamento oculto por trás delas” (Vygotsky 1979, p. 128). Para</p><p>entendermos a linguagem do outro, é necessário compreender que</p><p>existem muitos sentidos, valores construídos culturalmente, tão bem</p><p>representados no contexto da sala de aula. Vejamos, por exemplo, este</p><p>diálogo entre alunos e professora:</p><p>Tiago dizia à professora que deveria ser o primeiro a ir ao quadro</p><p>porque era “maior” que Marcos. O diálogo prossegue:</p><p>– “Tem certeza que você é o maior?”</p><p>Tiago fica em silêncio.</p><p>– Eu sou o menor, o menor. (Marcos fala bem ressaltado)</p><p>– É? Você é pequenininho? Tem maior e menor. Você é menor? (professora com a</p><p>intenção de ensinar os conceitos “maior” e “menor”)</p><p>– Não. Mas, na casa da minha mãe, quando eu estou soltando pipa, o moleque me</p><p>chama: “Ô menor! Não quer pipa não?” Eu não gosto, porque esse não é meu</p><p>nome. O meu nome é... (Marcos diz o seu nome completo)</p><p>As palavras que animavam a sala de aula reiteram que o significado</p><p>é parte inalienável da palavra e pertence tanto ao domínio da linguagem</p><p>quanto ao do pensamento. O pensamento, por sua vez, é gerado pela</p><p>motivação, isto é, por nossos desejos e necessidades, interesses e</p><p>emoções (Vygotsky 1979). Portanto, não podemos ignorar a natureza</p><p>social e dialógica do enunciado, pois, se assim o fizermos, estaremos</p><p>apagando a profunda ligação que existe entre a linguagem e a vida. Em</p><p>sala de aula, quando os diálogos não correspondem a uma necessidade</p><p>vivida pelos alunos, muito frequentemente observamos que eles tentam</p><p>subverter a situação e buscam aproximar escola e vida; procuram abrir</p><p>espaço de sentido, abrir espaço para a interlocução, revelando a</p><p>apreensão de significados. Nessa dimensão, a criança narra, escreve o</p><p>que pensa, faz críticas à realidade, constrói conhecimentos</p><p>relacionando-os com as situações reais da vida, faz leitura de mundo. A</p><p>ação de conhecer se dá no confronto de ideias, na cooperação, como</p><p>aponta esta interação:</p><p>Diante da solicitação da professora para que recortassem letrinhas</p><p>de jornal, Érica tira da mochila um recorte de jornal falando sobre o</p><p>acontecimento que mobilizava o país:</p><p>o longo período de escravidão, a opressão a que foi</p><p>submetida expressiva parte da população brasileira, e ainda as</p><p>migrações, o colonialismo e o imperialismo, inicialmente europeu e</p><p>mais tarde americano, forjaram condições que, sem dúvida, deixaram</p><p>marcas diferenciadas no processo de socialização de adultos e crianças.</p><p>[7]</p><p>O que de mais importante aprendemos com Ariès diz respeito não</p><p>aos aspectos específicos da infância no Ancien Régime, mas à própria</p><p>condição e natureza histórica e social do ser criança. Essa descoberta</p><p>trouxe, então, como agora, uma relevante contribuição para a pesquisa</p><p>de caráter histórico sobre a infância. Do campo da história, como do</p><p>campo da antropologia, advinha uma certeza: a necessidade de estudos</p><p>e pesquisas que aprofundassem o conhecimento da criança brasileira.</p><p>Bernard Charlot, intelectual marxista que denunciaria anos mais</p><p>tarde como a escola havia sido colocada em leilão, publicava, nos</p><p>mesmos anos 70, A mistificação pedagógica,[8] em que discutia a ideia</p><p>de infância no pensamento pedagógico comum, entre os filósofos e nos</p><p>sistemas pedagógicos. Por seu olhar crítico, por seu agudo</p><p>questionamento à significação ideológica da ideia de infância, Charlot</p><p>me incitou a compreender, ainda em 1979, que</p><p>os dois aspectos do sentimento de infância – “paparicação” e “moralização” – são</p><p>aparentemente contraditórios mas, na verdade, se completam na concepção de</p><p>infância enquanto essência infantil. A visão de criança baseada em uma concepção</p><p>de natureza infantil, e não na análise da condição infantil, mascara a significação</p><p>social da infância. (Kramer 1982, p. 20)</p><p>Além disso, partilhei e partilho da noção de que a dependência da</p><p>criança diante do adulto é um fato social e não natural.</p><p>Entretanto, o sentido dessa dependência varia de acordo com a classe social. O</p><p>exercício de atividade financeira rentável por parte da criança não tem o mesmo</p><p>significado em todas as classes. Para o adulto que vive da venda do seu trabalho, a</p><p>ausência de atividade profissional da criança significa perda de ganho direto. As</p><p>aspirações educacionais aumentam à proporção em que ele acredita que a</p><p>escolaridade poderá representar maiores ganhos... Contrariamente, o crescimento</p><p>infantil é, para aquele cuja atividade consiste em explorar o capital, uma espécie de</p><p>capitalização. A educação tem valor de investimento a médio ou longo prazo, e</p><p>considera-se que a atuação da criança contribuirá futuramente para aumentar o</p><p>capital familiar. (Idem, p. 23)</p><p>Tal significação econômica da infância está na base do valor</p><p>atribuído à criança nos vários domínios da realidade social. A criança</p><p>não é, pois, valorizada de maneira uniforme; as relações entre crianças e</p><p>adultos são heterogêneas bem como é diverso o valor com que as</p><p>crianças são encaradas numa ou noutra classe. Tratar da criança em</p><p>abstrato, sem levar em conta as diferentes condições de vida, é</p><p>dissimular a significação social da infância. O pensamento pedagógico,</p><p>ao fazer essa dissimulação, deixa de lado a desigualdade social real</p><p>existente entre as populações, inclusive as infantis.</p><p>Se Ariès forneceu, então, parâmetros de pesquisa – articulando</p><p>infância, história e sociedade – que fundamentaram minha posição</p><p>contrária à miniaturização da criança, Charlot favoreceu a crítica à</p><p>naturalização da criança e consolidou a análise de caráter histórico,</p><p>ideológico e cultural. Assim, contra a ideia de criança-ser-da-natureza</p><p>(quanto menor a criança mais ela se assemelha e se aproxima de um</p><p>bichinho?), foi possível delinear uma imagem de criança tomada com</p><p>base em suas condições concretas de existência, social, cultural e</p><p>historicamente determinada.</p><p>Por outro lado, a aparente contradição entre a singularidade</p><p>(focalizada por Ariès) e a totalidade (enfatizada por Charlot, naquele</p><p>momento), tema que eu só teria condições de encarar e aprofundar</p><p>teoricamente dez anos depois,[9] já se anunciava aqui, se bem que de</p><p>maneira embrionária. Mas eu não sabia, naquela ocasião, que o</p><p>enfrentamento dessa temática me permitiria romper de novo e encontrar,</p><p>com Walter Benjamin, as pistas de uma antropologia filosófica capaz de</p><p>compreender o ser humano, e consequentemente a infância, na sua</p><p>dimensão micro, sem abdicar da totalidade. Só que, antes de falar desse</p><p>encontro, preciso, ainda que de forma breve, discutir outros marcos</p><p>teóricos e áreas do conhecimento que vêm contribuindo, desde então,</p><p>para uma visão de infância na sua doce, tênue e forte complexidade.</p><p>Marcas e marcos teóricos – O campo dos estudos da infância em</p><p>constituição</p><p>Analisando a origem dos debates sobre visões de infância e</p><p>educação, podemos perceber a influência da produção francesa no</p><p>delineamento de uma concepção de infância concreta, historicamente</p><p>situada. Além disso, embora as obras de Ariès e Charlot se configurem</p><p>em referência significativa para essa nova compreensão da infância, a</p><p>meu ver, outros campos teóricos e outros autores desempenharam papel</p><p>fundamental. Assim é que também da sociologia de tradição francesa se</p><p>originou uma reflexão que, possibilitando a crítica à ação reprodutora</p><p>da escola, ampliou o questionamento quanto ao caráter ideológico do</p><p>conceito de infância presente na pedagogia, em especial na sociedade</p><p>capitalista. Refiro-me aqui aos trabalhos de Bourdieu, Passeron,</p><p>Baudelot, Establet e, particularmente, ao interessante estudo de Luc</p><p>Boltanski que nem chegou a ser publicado entre nós.[10]</p><p>Mas esse processo foi inegavelmente marcado pela ruptura que se</p><p>manifestou no âmbito da psicologia, seja a provocada pela psicanálise</p><p>(Guattari, Donzelot), seja a que foi gerada por uma psicologia</p><p>fundamentada na história e na sociologia (Vygotsky, Leontiev, Luria).</p><p>De dentro da psicologia a que a pedagogia se curvava, dobrava-se,</p><p>submetia-se, operou-se, pois, um rompimento conceitual de grande</p><p>importância. A visão idealizada de infância, com a qual a pedagogia</p><p>lidara até então, não poderia ficar incólume (será que não? espero que</p><p>não!). A (re)leitura da psicanálise, por um lado, e o acesso ao referencial</p><p>da psicologia sócio-histórica, por outro, traziam a possibilidade de</p><p>compreender como o sujeito individual era/é tecido pelas tramas do</p><p>contexto, sendo ao mesmo tempo ativo e criativo nesse processo. Dito</p><p>de outra maneira, trata-se, então, de entender como os signos da cultura</p><p>– a linguagem – não só marcam, mas também constituem a consciência</p><p>e a inconsciência.[11]</p><p>Ora, em que pesem as seduções exercidas pela psicanálise e o</p><p>reducionismo de sua dimensão epistemológica à prática terapêutica, e</p><p>em que pesem também a difusão aligeirada da perspectiva sócio-</p><p>histórica e a absorção quase mágica feita pelos sistemas de ensino,</p><p>pode-se dizer que essas duas linhas teóricas trazem uma contribuição</p><p>imensa ao delineamento de uma concepção de infância concreta e</p><p>historicamente situada, gerando, em decorrência, inúmeras</p><p>possibilidades bastante férteis de investigação. Enfrentando</p><p>dicotomizações e ilusões de uma suposta verdade única, esboça-se</p><p>assim um campo teórico em que o conhecimento provisório, dinâmico,</p><p>flexível, em processo de constituição, ocupa o lugar de certezas positiva</p><p>e instrumentalmente formuladas. Um conhecimento que não apenas</p><p>evolui, mas revolui, que indaga de seu próprio processo de construção, e</p><p>que vai semeando – no caso deste trabalho – uma concepção de infância</p><p>que não é mera natureza biológica, etapa idealizada de desenvolvimento</p><p>psicológico ou semente de uma ambígua sociedade futura. E, nesse</p><p>campo, indubitavelmente, os estudos da epistemologia das ciências</p><p>humanas (Japiassu, Foucault) e sua arguta análise crítica das relações</p><p>entre saber e poder colocam em destaque a centralidade da linguagem</p><p>para a compreensão da condição e da dimensão humanas. Os estudos da</p><p>linguagem desempenham, então, um papel crucial: de Lacan a Bakhtin,</p><p>passando por Barthes e Foucault, as várias abordagens teórico-</p><p>metodológicas da linguagem constituem, pois, referenciais de interesse</p><p>para aqueles que investigam a sociedade contemporânea e a infância nas</p><p>suas várias facetas.</p><p>Além desses, do campo</p><p>– Recorte! ... O Senna! Eu tenho o retrato do Senna!</p><p>– É Senna! ... Ayrton, Ayrton Senna do Brasil (Tiago imita a forma como se fala na</p><p>televisão)</p><p>– Mas, eu tenho o Senna. (Érica insiste em chamar a atenção da professora)</p><p>– Então, mostra. Mostra o que você tem na pasta. (professora)</p><p>– Olha o Senna aí. É pra fazer um álbum.</p><p>– Para guardar pra sempre. (Bárbara)</p><p>– Ele morreu dentro do carro, né? Mas, ele foi para Bolonha. Tá escrito aqui:</p><p>Bolonha (apontando o texto).</p><p>– Para onde ele foi? (professora)</p><p>– Bolonha, Bolonha. Ele foi para o hospital em Bolonha, Bo..., Bolonha.</p><p>– É , ele foi para o hospital Bolonha. É porque ele ficou gordo. Bolonha, Bolonha.</p><p>(Marcos como que falando para si mesmo)</p><p>– (sorrindo) Era o nome dele... do hospital, Bolonha.</p><p>– Era Bo-lo-nha. (Marcos)</p><p>– É. Ele foi para o hospital em Bolonha, na Itália. Bolonha é uma cidade da Itália.</p><p>(professora)</p><p>Esses e outros diálogos permitiram apreender, na fala dos alunos, a</p><p>forma pela qual vão construindo conhecimentos, definindo papéis,</p><p>lugares e valores sociais. Com isso, refletimos sobre a necessidade de</p><p>fazermos da sala de aula um espaço que, contrário à visão monológica,</p><p>autoritária ou paternalista, venha a impulsionar o desenvolvimento da</p><p>autonomia e do senso crítico dos alunos. Respeitando o espaço de fala</p><p>dos alunos, seja no ensino especial, seja no ensino regular, poderemos</p><p>percebê-los como seres interativos, envolvidos nos processos históricos</p><p>e socialmente determinados e, portanto, humanizantes.</p><p>Da classe especial: Palavras ao cotidiano</p><p>Na medida em que entendemos a educação especial como prática</p><p>de construção social do conhecimento, ela foi sendo concebida pela</p><p>linguagem. Mergulhando no cotidiano da classe especial, nós nos</p><p>tornamos parte dele, quer conversando, quer indagando, quer ouvindo,</p><p>quer compartilhando tanto espaço, palavras, sentimentos quanto</p><p>emoções. Por meio da linguagem, abordamos e apreendemos valores</p><p>históricos e socialmente constituídos, refletidos e refratados nos dizeres</p><p>e no jogo de forças das relações sociais.</p><p>No percurso pela história e com a linguagem, afastamo-nos das</p><p>configurações deterministas, condicionadas aos padrões de</p><p>normalidade, e buscamos a constituição da subjetividade de indivíduos</p><p>que têm voz, têm um papel social e que apreendem significados por</p><p>meio da sua inserção num mundo definido culturalmente. Assim,</p><p>compreendemos que o seu desenvolvimento é um processo dialético</p><p>complexo, caracterizado pelo entrelace da sua constituição biológica e</p><p>as suas interações sociais. Desse modo, foi possível falar do aluno</p><p>considerado deficiente mental por meio de seus processos de</p><p>singularização, aspectos que se aproximam muito mais de uma certa</p><p>plenitude do que de suas possíveis “faltas”.</p><p>Na sala de aula, o processo dialógico apontou a construção do</p><p>conhecimento como um processo interativo, permeado pelo discurso</p><p>entre os alunos e destes com a professora. Nos diálogos, as enunciações</p><p>apareciam como elos entre o conteúdo a ser transmitido e as relações</p><p>que os alunos mantêm com a vida. Isso indica a relevante significação</p><p>do diálogo nos processos de aprendizagem, remetendo à necessidade de</p><p>assinalarmos que para o aluno não podem ser reservados os espaços</p><p>isolados, seja no ambiente familiar, seja na escola, seja na comunidade.</p><p>Nesses espaços os sujeitos se constituem por suas diferenças e no</p><p>contato com grupos heterogêneos. Portanto (aqui cabe mais uma</p><p>questão), por que homogeneizar suas interações reunindo-os em espaços</p><p>específicos?</p><p>Sem deixar de considerar a importância do atendimento especial,</p><p>sempre que for estritamente necessário, acreditamos que muitos alunos</p><p>das classes especiais poderiam se beneficiar com a sua inclusão no</p><p>ensino regular, fato que deveria possibilitar um repensar sobre muitas</p><p>concepções que fundamentam as práticas desenvolvidas pela escola, em</p><p>especial sobre: desenvolvimento, aprendizagem, normalidade,</p><p>inteligência e avaliação. As relações dialógicas com a classe especial</p><p>permitem repensarmos a escola.</p><p>No cotidiano da classe especial, identificamos relações</p><p>discriminadoras, estigmatizantes, representadas no espaço que, embora</p><p>se constitua em lugar de aprendizagem de muitas crianças, inclui e</p><p>exclui os problemas para os quais a escola parece não ter encontrado</p><p>outra saída. Espaço de exclusão que, tendo os alunos como alvos</p><p>principais, não deixa de fora os profissionais envolvidos nesse trabalho</p><p>– um espaço que tende a incluir todas as diferenças que a escola não</p><p>consegue ter em seus processos “normais”.</p><p>Os diálogos dos alunos assinalam a consciência da discriminação</p><p>que sofrem por estar incluídos em uma classe especial, revelando</p><p>também a busca de estratégias para negar a relação de pertinência</p><p>àquele contexto. Desse modo, as crianças nos convidam a refletir sobre</p><p>as implicações da educação especial. Elas nos contam histórias que,</p><p>certamente, extrapolam histórias individuais. A polifonia de suas vozes</p><p>indica o grau de responsabilidade da sociedade não apenas quanto ao</p><p>surgimento de patologias, mas também quanto à facilidade com que</p><p>exclui e marca as diferenças. A sala de aula é o espaço onde se</p><p>apresentam as relações com o contexto mais amplo.</p><p>Outros significados podem ser dados à educação do portador de</p><p>deficiência se o contexto da escola estiver estruturado de forma mais</p><p>articulada. Isso significa compreendê-la como instituição onde as</p><p>relações não sejam pensadas de forma fragmentada, como sistemas</p><p>isolados. Muitos conhecimentos tidos como específicos da educação</p><p>especial podem contribuir para a estruturação de práticas pedagógicas</p><p>destinadas a todas as crianças. Diante das dificuldades que hoje são</p><p>enfrentadas no contexto educacional, não é possível mantermos na</p><p>escola grupos isolados. Soluções para uma integração têm que ser</p><p>pensadas de forma coletiva, o que significa dizer que o diálogo deve ser</p><p>implementado permanentemente, se o que queremos é a compreensão</p><p>dos processos vividos pelos alunos. As práticas do ensino especial e do</p><p>ensino regular devem ser pensadas conjuntamente; envolvendo alunos,</p><p>pais, professores, diretores... enfim, todos aqueles que compartilham</p><p>daquele espaço social. Assim, a “integração” do aluno pode ser</p><p>compreendida de forma ampla, num questionamento às práticas</p><p>desenvolvidas pela escola, que acreditamos podem ser também</p><p>transformadoras da realidade que vivemos.</p><p>NOTAS</p><p>[1] Professora da Faculdade de Educação da Uerj e do Departamento de Educação da PUC-</p><p>Rio.</p><p>[2] Este esforço teórico resultou no artigo de Horta, J.S.B. e Kramer, S. “A idéia de infância</p><p>na pedagogia contemporânea”. In: Revista de Educação AEC, ano 7, n. 30, 1978.</p><p>[3] Trata-se da dissertação de mestrado “História e política da educação pré-escolar no</p><p>Brasil: Uma crítica ao conceito de educação compensatória”, PUC-Rio, 1981, publicada,</p><p>em 1982, pela Achiamé, como A política do pré-escolar no Brasil: A arte do disfarce. Para</p><p>uma revisão da influência atual da abordagem da privação cultural, ver este livro pela</p><p>Cortez, São Paulo, 1992 (4ª edição ampliada) e Kramer, S. “Currículo da educação infantil</p><p>e a formação dos profissionais de creche e pré-escola: Questões teóricas e polêmicas”. In:</p><p>Por uma política de formação do profissional da educação infantil, Brasília,</p><p>MEC/SEF/Coedi, 1994, pp. 16-31.</p><p>[4] Ver, entre outros, Jobim e Souza, S. e Kramer, S., Educação ou tutela: A criança de 0 a 6</p><p>anos. São Paulo, Loyola, 1985.</p><p>[5] A publicação na França de História social da criança e da família (L’énfant et la vie</p><p>familiale sous l’Ancien Régime) data de 1973. Quanto às pesquisas posteriores, pode-se</p><p>citar L’homme devant la mort, de 1977, e Histoire de la Vie Privée (História da Vida</p><p>Privada), de 1986.</p><p>[6] Ver sobre isso Narodowski 1994, em particular, pp. 28-30.</p><p>[7] Esta reflexão pode ser encontrada em Kramer, S. 1982, op. cit., pp. 17-20.</p><p>[8] La mystication pédagogique publicada, pela primeira vez, também na França, em 1976.</p><p>[9] Refiro-me à pesquisa sobre linguagem e educação, publicada em Por entre pedras: Arma</p><p>e sonho na escola, São Paulo, Ática, 1993, em que abordei as dicotomias</p><p>enfrentadas pelas</p><p>ciências humanas e sociais e por várias instâncias de prática social, tais como a educação.</p><p>[10] Trata-se do estudo de Boltanski, L. Puericultura y moral de clase. Barcelona, Laia, 1974.</p><p>[11] Agradeço essa expressão “linguagem constituindo a consciência e a inconsciência” a</p><p>Márcia Souto Maior Mourão Sá, que tem sido minha interlocutora na análise dessa</p><p>questão.</p><p>[12] O resultado deste trabalho está apresentado em Kramer, S. 1993, op. cit.</p><p>[13] Lehmann, H.T. “Remarques sur l’idée d’enfance dans la pensée de Walter Benjamin”. In:</p><p>Wisman, H. Walter Benjamin et Paris, Paris, Les Éditions du Cerf, 1986, pp. 75-83.</p><p>[14] Citado, a propósito do pensamento de Benjamin, por Rouanet, S.P. Édipo e o anjo:</p><p>Itinerários freudianos em Walter Benjamin, Rio de Janeiro, Tempo Universitário, 1981, p.</p><p>89.</p><p>[15] Ver, sobre isso, Agamben, G. Enfance et histoire: Destruction de l’experience et origine</p><p>de l’histoire. Paris, Payot, 1989.</p><p>[16] Ver, a esse respeito, Muricy, K. “Benjamin: Política e paixão”. In: Os sentidos da paixão.</p><p>São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 497-508.</p><p>[17] Este parágrafo traz uma reflexão que faz Agamben, G. Enfance et histoire, op. cit., pp.</p><p>67-68. A tradução, adaptando o texto, é feita por mim.</p><p>[18] Trabalho apresentado no encontro “Criança dos 0 a 6 anos. Que perspectivas?”,</p><p>promovido pelo Unicef, realizado de 21 a 25 de novembro de 1994, em Praia, Cabo Verde.</p><p>[19] Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio.</p><p>[20] Doutoranda do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da PUC-Rio.</p><p>[21] Com relação às práticas inadequadas de leitura na escola, ver Lajolo (1982) e Silva</p><p>(1986).</p><p>[22] Texto baseado na Dissertação de Mestrado intitulada “No campo da linguagem, a</p><p>linguagem do campo – O que falam de escola e saber as crianças da área rural?”.</p><p>Departamento de Educação, PUC-Rio, 1995.</p><p>[23] Professora do curso de especialização em educação infantil da PUC-Rio e da Faculdade</p><p>de Educação da Uerj.</p><p>[24] O município de São José do Vale do Rio Preto, emancipado em 1987, fica a 170 km do</p><p>centro do Rio de Janeiro; não tem apelo turístico e é basicamente granjeiro e produtor de</p><p>chuchu. Tem 283 km2, com características típicas da região serrana do estado do Rio.</p><p>Possui 15 mil habitantes, dos quais 80% moram na zona rural. Ainda hoje as atividades que</p><p>exigem maior qualificação de mão de obra se ressentem do baixo nível de escolaridade da</p><p>região (Leite 1995).</p><p>[25] Magnani, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço. São Paulo, Brasiliense, pp. 120-169.</p><p>Magnani desenvolve especialmente a noção de “pedaço” como uma categoria que</p><p>circunscreve não só o espaço físico mas também as relações sociais – é o circuito das</p><p>relações e as relações em si.</p><p>[26] Ver: Antuniasse, M.H. Trabalhador infantil e escolarização no meio rural. Rio de</p><p>Janeiro, Zahar, 1983; Martins, J.S. O massacre dos inocentes: A criança sem infância no</p><p>Brasil. São Paulo, Hucitec, 1991; Werthein, J. e Bordenave, J.D. Educação rural do</p><p>terceiro mundo – Experiências e novas alternativas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985;</p><p>Therrien, J. e Damasceno, M.N. (orgs.). Educação e escola no campo. Campinas, Papirus,</p><p>1993.</p><p>[27] Konder, Leandro. Bartolomeu – A vida gloriosa e os feitos memoráveis de Bartolomeu</p><p>da Pogúncia, o maior anão do mundo. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1995, p. 110.</p><p>[28] Faça-família é a atividade de colocar as vogais após uma dada consoante. Por exemplo:</p><p>faça a família do “d” – da, de, di, do, du. Foi comum as crianças usarem como “nome” da</p><p>atividade a ordem dada para sua execução (numere, dever de trissílaba etc.).</p><p>[29] Konder, Leandro. Op. cit., p. 111.</p><p>[30] Brandão, Zaia. “A teoria como hipótese”. Universidade e educação. Coletânea CBE,</p><p>Campinas, Papirus, 1992.</p><p>[31] Sobre isso há reflexões em Kramer 1993 e em Jobim e Souza 1994.</p><p>[32] Graduada em matemática (modalidade informática) – Ufrj; mestranda em Educação –</p><p>PUC-Rio.</p><p>[33] Para maiores detalhes sobre a proposta de utilização da linguagem Logo, ver Papert, S.</p><p>Logo: Computadores e educação. São Paulo, Brasiliense, 1985.</p><p>[34] Sistemas que integram vídeo, desenhos animados, imagens estáticas, texto e som de</p><p>forma interativa e não linear.</p><p>[35] Collis, B. “Research Windows”. The computing teacher. Eugene, International Society of</p><p>Technology in Education, ago./set./1988.</p><p>[36] A respeito da vida e obra de Walter Benjamin, ver Konder 1988.</p><p>[37] Trecho retirado do ensaio sobre “O narrador” no qual, baseado em considerações sobre a</p><p>obra de Nikolai Leskov – escritor russo –, Benjamin ressalta a perda da arte de narrar no</p><p>mundo moderno e, portanto, a perda da experiência coletiva, da memória e da cultura.</p><p>[38] Todorov escreve o prefácio de Estética da criação verbal (Bakhtin 1992b), obra com</p><p>trabalhos que Bakhtin não publicou em vida.</p><p>[39] Bakhtin trata de linguística, linguagem, literatura, psicologia, psicolinguística,</p><p>psicanálise, epistemologia, semiótica e de cultura popular na Idade Média.</p><p>[40] Os textos escritos-desenhados por Pedro foram feitos no computador que tem em casa,</p><p>no seu quinto ano de vida. Estão transcritos no mesmo formato em que foram feitos –</p><p>mesmos erros, mesmo tipo de letra.</p><p>[41] Texto baseado na dissertação de Mestrado em Educação intitulada “A polifonia de</p><p>Bakthin nas vozes infantis – O reatar dos laços” Universidade do Estado do Rio de Janeiro,</p><p>1955.</p><p>[42] Integrante da equipe do Programa de Ensino Fundamental (Educação Infantil e</p><p>Alfabetização) da SME/RJ e professora da Faculdade de Educação da Uerj.</p><p>[43] Os nomes das crianças foram alterados.</p><p>[44] Em especial, no texto “O narrador” (1985).</p><p>[45] Segundo Baratz (apud Kramer 1992), a abordagem da privação cultural sedimenta o</p><p>racismo institucional, posto que justifica o fracasso escolar a deficits cognitivos e</p><p>linguísticos, “supondo que alguns meios são melhores do que outros” (p. 39).</p><p>[46] Documentos que pertencem à secretaria da escola, nos quais podem ser encontrados a</p><p>filiação, o endereço, a profissão dos pais, a renda mensal familiar e outros dados.</p><p>[47] Kalil, V. e Macé. O sapo Batista. São Paulo, Melhoramentos, 1981. Essa história fala de</p><p>profissões.</p><p>[48] A concentração do trabalho masculino recaiu nas seguintes atividades: cozinheiro,</p><p>pedreiro e porteiro. E a maior ênfase do trabalho feminino ocorreu na atividade de</p><p>empregada doméstica. A metade das responsáveis (aproximadamente) realiza essa tarefa.</p><p>[49] O aluno declarou que faria shows de graça para as crianças dos orfanatos depois que</p><p>ficasse famoso.</p><p>[50] Miner, L. e Yne, P. Aninha e João. São Paulo, Ática, 1978. Esse livro fala de um casal de</p><p>irmãos que enfrenta problemas em casa e na escola, por desejar realizar tarefas e</p><p>brincadeiras que culturalmente não condizem com seus sexos.</p><p>[51] (leia-se: deveria ser).</p><p>[52] As meninas brincam de pular elástico. Duas delas, uma em cada ponta, mantêm o</p><p>elástico esticado e seguro em suas pernas. As outras meninas, então dentro desse espaço</p><p>entre uma e outra das pontas, se entrelaçam no elástico e saem dele de diversas formas e</p><p>aumentando o grau de dificuldade. É como se fosse a brincadeira da cama de gato, só que,</p><p>em vez das mãos, as pernas. Em vez do barbante, o elástico.</p><p>[53] Pique-tá (pique-pega), pique-bandeira, pique-ajuda, pique-cola (pique-cola americana e</p><p>pique-cola três vezes), pique-gelo (igual pique-cola), pique-esconde, pique-alto (onde não é</p><p>pego quem fica no alto), pique-parede (onde não é pego quem permanece junto à parede) e</p><p>o pique-lateral.</p><p>[54] Texto baseado na dissertação de mestrado intitulada “Nas relações dialógicas: O</p><p>cotidiano de uma classe especial”, UERJ, Faculdade de Educação, 1955.</p><p>[55] Professora do Curso de Estudos Adicionais no Instituto de Educação Gov. Roberto</p><p>Silveira e psicóloga educacional na SME de Duque de Caxias, RJ.</p><p>[56] O termo “portadores de necessidades educativas especiais” é atualmente usado para</p><p>definir a clientela da educação especial, incluindo os deficientes mentais, sensoriais, físicos</p><p>e portadores de condutas típicas.</p><p>[57] Os alunos levemente retardados são em geral aptos para classes</p><p>especiais em escola</p><p>comum. Têm capacidade para se alfabetizar, sendo, por essa razão, também denominados</p><p>“educáveis”. Sobre definições e classificações dos níveis de deficiência mental, ver</p><p>Mazzotta, M. Educação escolar comum ou especial?. São Paulo, Pioneiras, 1987.</p><p>Considero, nesta pesquisa, tais definições restritivas na compreensão dos processos de</p><p>constituição do sujeito.</p><p>[58] Jannuzzi, G. A luta pela educação do deficiente mental no Brasil. São Paulo, Cortez,</p><p>1985.</p><p>[59] Lobo, L.F. “Deficiência: Prevenção, diagnóstico e estigma”. In: Rodrigues, H.B.C. et alii</p><p>(org.). Grupos e instituições em análise. Rio de Janeiro, Rosa dos Ventos, 1992, pp. 113-</p><p>126.</p><p>[60] Bueno, J.G. “Educação especial brasileira, a integração e segregação do aluno</p><p>deficiente”. Tese de doutorado, PUC/SP, 1991.</p><p>[61] Esta é uma expressão frequentemente usada como referência aos especialistas da</p><p>educação especial.</p><p>[62] Nestas equipes estão lotados profissionais da educação com formação na área</p><p>pedagógica e na área de saúde. Alguns municípios do estado do Rio de Janeiro não</p><p>possuem essas equipes.</p><p>[63] Ferreira, A.B.H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,</p><p>1993.</p><p>[64] “Etesp” é o nome utilizado como referência para a equipe de técnicos da educação</p><p>especial.</p><p>[65] Optei por apresentar os alunos, autores de muitas histórias, por seus nomes, por haver</p><p>sentido um grande desejo por parte das crianças de serem reconhecidas pelos próprios</p><p>nomes. É significativo considerarmos a importância desse fato para o objetivo desta</p><p>pesquisa. Ressalto também que o estigma que essas crianças carregam passa geralmente</p><p>pela perda da referência de seus nomes, substituídos por palavras carregadas de sentido</p><p>discriminatório e preconceituoso.</p><p>[66] São considerados alunos com “condutas típicas” aqueles portadores de “síndromes e</p><p>quadros psicológicos, neurológicos ou psiquiátricos que ocasionam atrasos no</p><p>desenvolvimento e prejuízos no relacionamento social, em grau que requeira atendimento</p><p>especializado” – MEC/Secretaria de educação especial. “Política de educação especial”.</p><p>1994.</p><p>[67] Todas as entrevistas e todos os diálogos gravados foram transcritos na íntegra.</p><p>[68] Por meio dos diálogos, foram desenvolvidos nove temas, com os seguintes títulos:</p><p>“Trancada”, “Doente ou diferente?”, “O disfarce”, “Passar de ano ou passar o ano?”, “O</p><p>jogo da copa do mundo”, “Os recortes”, “Um sonho: Ler”, “O livro”, “Em cartaz: A</p><p>disciplina”.</p><p>[69] Nos diálogos é mantida a forma pela qual as crianças e seus interlocutores expressam</p><p>seus pensamentos.</p><p>[70] Ver Patto 1991.</p><p>[71] Leontiev, A.R. “Os princípios do desenvolvimento mental e o problema do atraso</p><p>mental”. In: Psicologia e pedagogia. Lisboa, Estampa, 1977, pp. 99-119.</p><p>[72] Sobre este tema ver também Machado, A.M. Crianças de classe especial: Efeitos do</p><p>encontro da saúde com a educação. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1994.</p><p>[73] O fato de os alunos estarem em grupo facilitava muito as interações, as trocas. A</p><p>professora estava sempre estimulando as trocas entre eles.</p><p>BIBLIOGRAFIA GERAL</p><p>ABRAMOVICZ, A. A menina repetente. Campinas, Papirus, 1995.</p><p>ALGEBAILE, Maria Angélica Pampolha. “A polifonia de Bakhtin nas vozes infantis – O reatar</p><p>dos laços”. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, UERJ, Faculdade de Educação,</p><p>1995.</p><p>ANDRADE, Cyrce J. “Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar: O brincar na creche”.</p><p>In: Oliveira, Zilma M.R. (org.). Educação Infantil: Muitos olhares. São Paulo, Cortez,</p><p>1994, pp. 69-105.</p><p>ARANHA, M.L.A.R. Desenvolvimento infantil na creche. São Paulo, Loyola, 1993.</p><p>ARFOUILLOUX, J.C. 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Jacques. “The difficulty of being a child in french-speaking countries”. In:</p><p>BROUGHTON, J.M. Critical theories of psychological development. Nova York e</p><p>Londres, Plenum Express, 1987.</p><p>VYGOTSKY, Lev S. Pensamento e linguagem. Lisboa, Edições Antídoto, 1979.</p><p>________. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1984.</p><p>________. Obras completas: Fundamentos de defectologia. Havana, Editorial Pueblo e</p><p>Educación, 1989, vol. 5.</p><p>________. La imaginación y el arte en la infancia (ensayo psicológico). Madri, Akal, 1990.</p><p>WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador – Escola, resistência e reprodução social. Porto</p><p>Alegre, Artes Médicas, 1991.</p><p>WOLLIN, Richard. Walter Benjamin: An aesthetic of redemption. Nova York, Columbia</p><p>University Press, 1982.</p><p>YUNES, Eliana. “Infância e infâncias: As representações da criança na literatura”. Tese de</p><p>doutorado. Rio de Janeiro, PUC, Departamento de Letras, 1986.</p><p>SOBRE AS AUTORAS</p><p>Letícia Nogueira, graduada em matemática (modalidade: informática), é mestre</p><p>em educação e em informática pela PUC-Rio.</p><p>Maria Angélica Pampolha Algebaile é integrante da equipe do Programa de</p><p>Ensino Fundamental (Educação infantil e alfabetização) da SME/RJ.</p><p>Mariangela da Silva Monteiro é professora do curso de estudos adicionais no</p><p>Instituto de Educação Gov. Roberto Silveira e psicóloga educacional na SME de</p><p>Duque de Caxias.</p><p>Maria Isabel Leite (org.) é pedagoga, mestre em educação pela PUC-Rio, doutora</p><p>em educação pela Unicamp, com pós-doutorado em arte-educação pela</p><p>Roehampton University, na área de educação museal. É professora titular da pós-</p><p>graduação em educação e do curso de artes visuais da Unesc, onde coordena o</p><p>Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação Estética (Gedest), além de</p><p>atuar no Museu da Infância. Tem várias publicações sobre educação estética e</p><p>infância.</p><p>Maria Luiza M.B. Oswald é doutora em educação (PUC-Rio), professora do</p><p>Departamento de Educação e do curso de especialização em educação infantil</p><p>Perspectivas em Creches e Pré-escolas dessa universidade e, também, da</p><p>Faculdade de Educação da Uerj.</p><p>Solange Jobim e Souza é doutora em educação pela PUC-Rio, professora da</p><p>Faculdade de Educação da Uerj e do Departamento de Psicologia da PUC-Rio.</p><p>Sonia Kramer é doutora em educação pela PUC-Rio e pós-doutora pela New York</p><p>University. Professora da PUC-Rio, onde coordena o curso de especialização em</p><p>educação infantil, o grupo de pesquisa Infância, Formação e Cultura e o Programa</p><p>de Intervenção, Formação e Avaliação. Publicou, entre outros: Infância, educação</p><p>e direitos humanos; Por entre as pedras: Arma e sonho na escola; Educação</p><p>infantil: Gestão e formação; Alfabetização, leitura e escrita: Formação de</p><p>professores em curso e Educação infantil: Retratos de um desafio.</p><p>OUTROS LIVROS DAS AUTORAS</p><p>ARTE, INFÂNCIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: AUTORIA E TRANSGRESSÃO</p><p>Luciana Ostetto e Maria Isabel Leite</p><p>CURRÍCULO: POLÍTICAS E PRÁTICAS – E-BOOK</p><p>Antonio Flavio Barbosa Moreira (org.)</p><p>EDUCAÇÃO E ARTE: AS LINGUAGENS ARTÍSTICAS NA FORMAÇÃO HUMANA</p><p>Celdon Fritzen e Janine Moreira (orgs.)</p><p>EDUCAÇÃO INFANTIL: ENFOQUES EM DIÁLOGO</p><p>Sonia Kramer e Eloisa Candal Rocha (orgs.)</p><p>EDUCAÇÃO INFANTIL: FORMAÇÃO E RESPONSABILIDADE</p><p>Sonia Kramer, M.F. Nunes e M.C. Carvalho (orgs.)</p><p>INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL</p><p>Sonia Kramer e Maria Isabel Leite (orgs.)</p><p>INFÂNCIA E LINGUAGEM: BAKHTIN, VYGOTSKY E BENJAMIN</p><p>Solange Jobim e Souza</p><p>INFÂNCIA E PRODUÇÃO CULTURAL – E-BOOK</p><p>Sonia Kramer e Maria Isabel Leite (orgs.)</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3801</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4129</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3682</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3981</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4068</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3772</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=3555</p><p>http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4386</p><p>Siga-nos nas redes sociais:</p><p>>> >> >> >></p><p>Acesse também nosso catálogo on-line</p><p>http://www.facebook.com/PapirusEditora</p><p>http://www.twitter.com/PapirusEditora</p><p>http://papiruseditora.blogspot.com.br/</p><p>http://www.youtube.com/editorapapirus</p><p>http://issuu.com/papiruseditora</p><p>Capa: Fernando Cornacchia</p><p>Foto de capa: Rennato Testa</p><p>Copidesque: Lúcia Helena Lahoz Morelli</p><p>Revisão: Marília Marcello Braida e Simone Ligabo</p><p>ePUB</p><p>Coordenação: Ana Carolina Freitas</p><p>Produção: DPG Editora</p><p>Revisão: Edimara Lisboa</p><p>eISBN 978-85-449-0075-8</p><p>Exceto no caso de citações, a grafia deste livro está atualizada segundo o Acordo</p><p>Ortográfico da Língua Portuguesa adotado no Brasil a partir de 2009.</p><p>Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610/98. Editora afiliada</p><p>à Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos (ABDR).</p><p>DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:</p><p>© M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. – Papirus Editora</p><p>editora@papirus.com.br | www.papirus.com.br</p><p>mailto:%20editora@papirus.com.br</p><p>http://www.papirus.com.br/</p><p>INFÂNCIA: FIOS E DESAFIOS DA PESQUISA</p><p>SUMÁRIO</p><p>APRESENTAÇÃO</p><p>1. PESQUISANDO INFÂNCIA E EDUCAÇÃO: UM ENCONTRO COM WALTER BENJAMIN</p><p>2. RESSIGNIFICANDO A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO: UMA CONTRIBUIÇÃO CRÍTICA À PESQUISA DA INFÂNCIA</p><p>3. INFÂNCIA E HISTÓRIA: LEITURA E ESCRITA COMO PRÁTICAS DE NARRATIVA</p><p>4. O QUE FALAM DE ESCOLA E SABER AS CRIANÇAS DA ÁREA RURAL? UM DESAFIO DA PESQUISA NO CAMPO</p><p>5. A CRIANÇA E O COMPUTADOR: TRILHANDO CAMINHOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO NA MODERNIDADE</p><p>6. ENTRELAÇAMENTO DE VOZES INFANTIS: UMA PESQUISA FEITA NA ESCOLA PÚBLICA</p><p>7. CRIANÇAS E LINGUAGEM</p><p>NUM CONTEXTO ESPECIAL: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO</p><p>NOTAS</p><p>BIBLIOGRAFIA GERAL</p><p>SOBRE AS AUTORAS</p><p>OUTROS LIVROS DAS AUTORAS</p><p>REDES SOCIAIS</p><p>CRÉDITOS</p><p>da antropologia viriam e têm vindo ainda</p><p>elementos essenciais: enfatizando a dimensão da cultura, a necessidade</p><p>de pesquisar a diversidade e a importância de estranhar o familiar e de</p><p>compreender o outro nos seus próprios termos, a antropologia trouxe</p><p>contribuições teóricas radicais para a reflexão sobre a educação em</p><p>geral e os estudos da infância em particular. Já a pesquisa de cunho</p><p>etnográfico tem fornecido subsídios concretos quanto a estratégias e</p><p>procedimentos metodológicos, influenciando estudos do cotidiano</p><p>escolar, da prática pedagógica e das interações entre os seus atores –</p><p>crianças e adultos. Assim, a antropologia, aliada à sociologia e à</p><p>história, e a prática da pesquisa etnográfica, cuidadoso exercício de</p><p>encontro com o outro e, portanto, consigo mesmo, combinam um</p><p>meticuloso mergulho crítico no trabalho de campo com um severo e</p><p>constante questionamento quanto ao próprio processo de pesquisar.</p><p>Indagando-se, portanto, sobre o que torna humano o ser humano, a</p><p>antropologia traz a questão da diversidade à ordem do dia. Diversidade</p><p>e pluralidade que constituem, como não canso de afirmar, a nossa</p><p>singularidade, como seres humanos que somos, embora em séculos e</p><p>séculos de convivência com o diferente, parece termos melhor sabido</p><p>aperfeiçoar as formas sutis ou explícitas de tentar eliminar as</p><p>diferenças...</p><p>Enfim, da história à psicologia, da sociologia à antropologia, da</p><p>linguística à psicanálise, da filosofia aos estudos da linguagem, muitas</p><p>polêmicas e inúmeros desafios vêm à tona nesse percurso de se</p><p>pensar/repensar a criança. E a pedagogia? Aqui, sem dúvida, Paulo</p><p>Freire e Célestin Freinet são marcos fundamentais se se trata de</p><p>considerar adultos e crianças como cidadãos, criadores de e criados na</p><p>cultura, produtores da e produzidos na história, feitos de e na</p><p>linguagem. Sociedade em transformação, história e cultura,</p><p>alfabetização, leitura e consciência são, para esses dois educadores,</p><p>mais do que conceitos, dimensões de uma práxis viva, crítica, criativa.</p><p>E essa sua práxis fornece também alimentos importantes na constituição</p><p>de um conceito de infância despedagogizado e desnaturalizado, capaz</p><p>de fermentar e fomentar uma prática de pesquisas em que ela – a</p><p>criança – jamais seja tida como objeto.</p><p>Diante dessa multiplicidade de áreas do conhecimento em face da</p><p>diversidade de linhas teóricas no interior de cada área, percebemos,</p><p>então, que a infância é um campo temático de natureza interdisciplinar.</p><p>E essa consciência se difunde cada vez mais entre aqueles que pensam a</p><p>criança, atuam com ela, desenvolvem pesquisa e/ou implementam</p><p>políticas públicas e que vão se situando, deslocando, movendo,</p><p>buscando, encontrando e desencontrando. O campo não é uniforme nem</p><p>unânime, felizmente. Diversas são as possibilidades de leitura e</p><p>apropriação das teorias; diversas são as portas de entrada, as formas de</p><p>abordagem, os posicionamentos, os temas de interesse, as estratégias</p><p>adotadas. Mas o fato é que aquele ser paparicado ou moralizado,</p><p>miniatura do homem, sementinha a desabrochar cresceu como estatuto</p><p>teórico.</p><p>No Brasil, a infância é hoje tematizada em várias áreas de</p><p>conhecimento e é motivo de mobilização de diversos segmentos da</p><p>sociedade civil que, reconhecendo as crianças como cidadãs, lutam para</p><p>que os direitos sociais afirmados na letra da Constituição de 1988 –</p><p>entre eles o direito à educação – se tornem fato. Sabemos hoje que,</p><p>enquanto estamos analisando as alternativas de pesquisa qualitativa da</p><p>infância, a situação das crianças é gravíssima: há cerca de 60 milhões de</p><p>brasileiros na faixa etária de 0 a 17 anos; seis de cada dez crianças com</p><p>menos de um ano vivem em casas sem saneamento básico; mais de 15%</p><p>de crianças e adolescentes pertencem a famílias com renda per capita</p><p>de até meio salário mínimo. Em 1990, sete milhões e meio de crianças e</p><p>adolescentes de 10 a 17 anos trabalhavam! (Jesus 1996, p. 34). Em que</p><p>pese a grave situação de vida das populações infantis, de 1980 para cá,</p><p>inegavelmente a questão da infância se difundiu, diversificou, ganhou</p><p>em seriedade, em projetos de ação e de investigação. O esforço de</p><p>conhecer as crianças brasileiras tem mobilizado o estudo, a reflexão e o</p><p>trabalho concreto de muitos pesquisadores nos últimos 20 anos.</p><p>Ora, inventariar essas pesquisas, ou mesmo pretender relacionar as</p><p>linhas de investigação que vêm sendo desenvolvidas no que se refere à</p><p>infância, escapa – e muito – dos limites deste texto. Não posso, no</p><p>entanto, deixar de mencionar certos trabalhos que são referência básica</p><p>entre nós, particularmente no âmbito da pesquisa qualitativa. E eu o</p><p>faço sabendo que corro o risco de omitir equipes e pesquisadores</p><p>importantes. Corro esse risco, com a certeza de que muitas</p><p>possibilidades de estudo vêm se desenvolvendo no Brasil. Do ângulo da</p><p>história da infância, da antropologia, da psicologia, da análise política,</p><p>da filosofia; recorrendo à literatura e à poesia, a biografias e memórias,</p><p>à iconografia, à história oral, ao cinema, busca-se forjar outro olhar à</p><p>infância, outro olhar da criança e não sobre ela. Temas e termos vêm</p><p>sendo escritos e reescritos neste texto em elaboração: a criança na</p><p>história do Brasil (Mott 1979; Civiletti 1981); as brincadeiras infantis</p><p>numa perspectiva histórica e cultural (Kishimoto 1988, 1993, 1994;</p><p>França 1988); infância e cultura (Medeiros 1986; Mariz 1985; Dauster</p><p>1992; Mata e Dauster 1993; Gouveia 1993; Jordão 1979; Sawaya 1992);</p><p>políticas públicas e análise institucional (Campos 1989, Campos,</p><p>Rosemberg e Ferreira 1989; Campos et alii 1994; Gragnani 1986;</p><p>Haddad 1992; Machado 1992; Rosemberg et alii 1988, 1993); políticas</p><p>públicas em perspectiva histórica (Kishimoto 1988; Kuhlmann Jr. 1991;</p><p>Faria 1993); interações sociais e a busca de nova compreensão para o</p><p>desenvolvimento infantil (Smolka 1988, 1991; Smolka e Góes 1993;</p><p>Góes 1992, 1993; Oliveira 1988, 1992, 1995; Oliveira e Rossetti-</p><p>Ferreira 1993; Gonçalves 1994; Andrade 1994); a criança na literatura</p><p>(Yunes 1986; Pires 1994). E, ainda: análises políticas sobre concepção</p><p>de infância (Gómez 1994); sobre conceito de infância, ideário</p><p>pedagógico e poder (Narodowski, 1994); poder, gênero e fracasso</p><p>escolar (Abramowicz, 1995); análise da infância à luz de Benjamin,</p><p>Bakhtin e Vygotsky em busca de um novo paradigma teórico para a</p><p>psicologia – de Solange Jobim e Souza (1994), parceira e interlocutora</p><p>também neste livro – e tantos outros, baseados em perspectivas de</p><p>análise tão interessantes e trabalhos de campo tão diversos, que nos</p><p>permitem destacar a necessidade de que seja realizado amplo e</p><p>consistente estado da arte das pesquisas da infância no Brasil, para</p><p>mapear a área, traçar um panorama das principais tendências teórico-</p><p>metodológicas de investigação, discutir resultados e apontar tanto os</p><p>avanços e conquistas quanto as (muitas) lacunas ainda existentes.</p><p>Mas, assim como diversos autores e pensadores vêm</p><p>desenvolvendo, ao longo de anos de trabalho, estudos de natureza</p><p>conceitual e/ou pesquisas empíricas, na minha trajetória essa busca</p><p>culminou num encontro: a oportunidade de estudar o marxismo numa</p><p>perspectiva filosófica e de aprofundar a análise de referenciais</p><p>filosóficos para a educação possibilitou-me conhecer a teoria crítica da</p><p>cultura e Walter Benjamin.[12] Com a convicção de que seu arcabouço</p><p>teórico-metodológico não fornece o único nem o melhor meio de</p><p>compreender a criança, mas com a clareza de que sua teoria é/foi</p><p>fundamental no meu percurso de professora, mãe, mulher, pesquisadora,</p><p>tenho o propósito de, no próximo item, explorar as contribuições de</p><p>Walter Benjamin para uma visão crítica da infância, em particular no</p><p>que diz respeito à pesquisa em educação.</p><p>Fios e desafios da pesquisa – História, linguagem e</p><p>descontinuidade da infância em Walter Benjamin</p><p>Estudar a infância exige, como vimos, consciência interdisciplinar,</p><p>mas exige também o entendimento de que a interdisciplinaridade, longe</p><p>de significar justaposição de perspectivas teóricas diversas, só pode ser</p><p>gerada se as ciências humanas e sociais se tornarem dialéticas, tomando</p><p>o</p><p>sujeito social – neste caso, a criança – no âmago da vida social e da</p><p>pesquisa. Por outro lado, a procura de novos marcos teóricos tem</p><p>suscitado a ênfase tanto de abordagens amplas que, apoiando-se na</p><p>história, na sociologia, na filosofia, na economia ou na política, visam</p><p>compreender as relações entre infância e Estado, conjuntura e políticas</p><p>públicas de atendimento etc., quanto de enfoques calcados na</p><p>psicologia, na antropologia e na linguística que objetivam compreender</p><p>as crianças na sua especificidade. Vale destacar que está subjacente a</p><p>este texto – e a todos os trabalhos que compõem este livro – a convicção</p><p>de que é preciso cunhar uma base teórica de compreensão da infância e</p><p>das populações infantis que dê conta ao mesmo tempo da sua</p><p>singularidade e da sua relação com a historicidade, com a totalidade da</p><p>vida social. Sem cair no relativismo ou no psicologismo, sem incorrer</p><p>no historicismo ou no sociologismo, precisamos de uma perspectiva</p><p>interdisciplinar capaz de considerar singularidade e totalidade,</p><p>ampliando ainda o próprio espaço da interdisciplinaridade para além das</p><p>áreas do conhecimento científico e nela incorporando as dimensões</p><p>estética e ética da vida humana, ou seja, reconhecendo como cruciais os</p><p>valores, afetos, paixões, desejos dos atores – crianças e adultos. A teoria</p><p>crítica da cultura e da modernidade, expressa em especial na obra de</p><p>Walter Benjamin, configura-se como uma importante contribuição para</p><p>enfrentar esses desafios.</p><p>Nesse enfrentamento, aos poucos, a compreensão da natureza</p><p>social, histórica e cultural da infância e a busca de entendimento crítico</p><p>de sua condição na sociedade contemporânea vão sendo bordadas,</p><p>tecidas. E nesse processo, como em toda ação de conhecer,</p><p>provisoriedade e descontinuidade são a marca. Ao lado de estudos</p><p>recentes, retornamos a (e retomamos) lúcidas e agudas reflexões de</p><p>intelectuais do início do século XX que pensavam e repensavam a</p><p>modernidade: dos filósofos e cientistas sociais da Escola de Frankfurt a</p><p>Walter Benjamin, que tinham no marxismo e na psicanálise seu</p><p>referencial teórico básico, de Gramsci aos pensadores italianos</p><p>herdeiros de sua obra (Calvino e, em especial, Pier Paolo Pasolini), da</p><p>produção intensa de cineastas, poetas, escritores, cunha-se uma outra</p><p>ótica da infância e da juventude, pensada com base em uma crítica da</p><p>cultura e da sociedade moderna. A criança filhote do homem, ser em</p><p>maturação, cidadão do futuro, esperança de uma humanidade que não</p><p>tem mais esperança é desalojada por uma criança parte da humanidade,</p><p>que é fruto de sua tradição cultural, mas que é também capaz de recriá-</p><p>la, refundá-la; criança que reconta e ressignifica uma história de</p><p>barbárie, refazendo essa história partindo dos despojos de sua mixórdia</p><p>cultural, do lixo, dos detritos, trapos, farrapos, da ruína. E aqui, a arte,</p><p>em geral, e o cinema e a literatura em particular, ajudam a constituir</p><p>esse outro modo de olhar a infância, revelando o seu próprio olhar e</p><p>como ela pensa, sente e imagina o mundo; ajudam, ainda, a encontrar</p><p>uma outra maneira de falar da infância, falando de outro modo das</p><p>crianças. Ouvindo-as sobretudo. Assim, se história, sociedade e cultura</p><p>foram se delineando como categorias centrais para se (re)conceber a</p><p>infância, a própria infância passa agora a ocupar o lugar central em uma</p><p>concepção de história que se vê e se quer crítica. Fica instaurada, assim,</p><p>uma outra ruptura conceitual no entendimento da infância de nítidas</p><p>repercussões para a prática de pesquisa. Nessa ruptura, e para esse</p><p>entendimento, a linguagem vai desempenhar um papel central.</p><p>Mas por que Walter Benjamin e como tratar do tema da infância</p><p>para esse pensador sem reduzir a abrangência de sua obra? Uma</p><p>alternativa pode ser a de abordar as várias possibilidades de análise dos</p><p>seus escritos, em particular a sua dimensão filosófica (na âmbito de uma</p><p>filosofia da história), a dimensão política (no âmbito da questão do</p><p>fascismo, importante no momento em que seus textos foram escritos</p><p>assim como agora) e a dimensão cultural (no âmbito de uma visão da</p><p>infância que ultrapassa o enfoque do indivíduo). Em todas elas, cabe</p><p>destacar que “a idéia de infância se encontra no centro da concepção</p><p>benjaminiana da memória histórica” (Lehmann 1986, p. 83), pois, para</p><p>Benjamin, o objeto da história origina-se da reunião (1) do século</p><p>capitalista-industrial que ele tão sensivelmente estuda no seu Trabalho</p><p>das passagens; (2) da possibilidade de conhecimento, que atinge o</p><p>sujeito da mesma forma que um relâmpago, como um sonho que se</p><p>compreende ao acordar; e (3) entre os dois, o terreno que participa dos</p><p>dois – a infância, considerada como um coletivo, como a chave para a</p><p>compreensão de uma época por meio da sua face criança. Nesse sentido,</p><p>as crianças tornam-se alegre motivo do despertar da coletividade porque</p><p>os ancestrais se despertam no historiador que conhece...; tudo o que puderam fazer</p><p>na experiência se torna elemento constitutivo consciente do saber humano. Mas,</p><p>inversamente, a consciência histórica do historiador depende igualmente de sua</p><p>lembrança da infância. (Lehmann, 1986, p. 75)[13]</p><p>Assim, se em “Rua de mão única”, “Infância berlinense” ou em</p><p>“Imagens do Pensamento” é do menino Walter que Benjamin fala, é</p><p>também de uma era, de um momento da história, de uma sociedade.</p><p>Reminiscência ou rememoração da história da humanidade,</p><p>reminiscência ou rememoração de um momento de sua própria história</p><p>e de uma circunstância em que presente, passado e futuro se encontram</p><p>entrecruzados, pois “cada época sonha não somente a seguinte, mas ao</p><p>sonhá-la força-a a despertar...”.[14]</p><p>Ao lado dessa dimensão filosófica ou histórica da concepção de</p><p>infância de Benjamin, pode-se mencionar também a ênfase que ele dá</p><p>aos aspectos de ordem política, em especial ao uso e à manipulação</p><p>fascista dos jovens vistos como o futuro da nação. É nesse sentido que</p><p>nosso autor aborda as questões da geração que viveu uma das</p><p>experiências mais desumanas da história, como ele diz referindo-se à</p><p>Primeira Guerra Mundial, sofrendo ele próprio, mais tarde, os horrores</p><p>do nazismo. Uma geração que se consumiu no próprio mito da</p><p>juventude, inclinando-se para o narcisismo e a vaidade, para a</p><p>renovação individual, sem considerar as necessárias transformações</p><p>sociais. Em “A vida dos estudantes”, Benjamin (1984a) desmitifica a</p><p>juventude, sendo ele mesmo ainda um jovem, enquanto, ao mesmo</p><p>tempo, critica o aburguesamento da universidade, a falta de espírito de</p><p>risco e da procura de um saber desinteressado; denuncia, além disso,</p><p>como o caráter burocrático prepondera sobre a pesquisa e como a</p><p>universidade não deixa as pessoas amadurecerem, mas joga os jovens</p><p>verdes na vida, para serem logo úteis. Por outro lado, em “Experiência e</p><p>pobreza”, Benjamin (1987) fala do que significou o choque da guerra</p><p>para a sua geração, no momento em que a juventude estava no alvo da</p><p>propaganda fascista, e faz uma crítica que é um verdadeiro processo</p><p>aberto contra a cultura dos pais.</p><p>Percebe-se, dessa forma, que a dimensão filosófica bem como a</p><p>política estão calcadas na história e se voltam à cultura. Nos seus textos,</p><p>Benjamin revela um profundo e sensível conhecimento sobre a criança</p><p>como indivíduo social e fala de como ela vê o mundo com seus próprios</p><p>olhos; não toma a criança de maneira romântica ou ingênua, mas</p><p>entende-a na história, inserida numa classe social, parte da cultura e</p><p>produzindo cultura. Ao analisar o brinquedo, por exemplo, ele diz que</p><p>as crianças “fazem história a partir do lixo da história”, o que as</p><p>aproxima dos inúteis, dos inadaptados e dos marginalizados (Benjamin</p><p>1984a, p. 14). Interessadas em jogos e bonecas, fascinadas por contos</p><p>de fada, querendo sobretudo aprender e criar, as crianças estão mais</p><p>próximas do artista, do colecionador e do mago, do que qualquer</p><p>pedagogo bem-intencionado, que chama de filisteu... Por outro lado,</p><p>preocupado com a criança do povo, e comentando a tensão entre a</p><p>totalidade e a singularidade, ele vai dizer que</p><p>faltam ainda os pressupostos para uma antropologia dialético-materialista</p><p>da</p><p>criança proletária. Essa antropologia não seria outra coisa senão um confronto com</p><p>a psicologia da criança, cuja posição teria então de ser substituída por minuciosos</p><p>protocolos... a respeito das experiências que foram realizadas. (Idem, p. 91)</p><p>Além disso, vale dizer que a abordagem benjaminiana da infância</p><p>configura um questionamento à forma filosófica: para Kátia Muricy</p><p>(1986), vários trechos de Benjamin, incluídos em “Rua de mão única”,</p><p>“Infância berlinense”, “Sobre as cidades” etc., parecem autobiográficos,</p><p>o que significa que seriam unidos pela subjetividade do autor. Mas</p><p>exatamente isso é que não são. Não são recordações da infância nem</p><p>observações de um viajante. O que Benjamin pretende é a sua própria</p><p>diluição como autor, e que uma objetividade seja possível no interior da</p><p>descontinuidade que a prática da montagem estabelece (Wollin 1982).</p><p>Essa objetividade é que iria garantir o acesso ao singular da coisa,</p><p>enquanto esse singular apareceria na linguagem. O sujeito que escreve</p><p>só existe, portanto, na medida em que está nessa língua e é isso o que</p><p>assegura a objetividade. A questão crucial que se coloca é a de que, por</p><p>meio da rememoração do nosso passado, do passado de qualquer</p><p>indivíduo, o que aparece não é mais o eu atual (esse escritor), mas a</p><p>perda através do tempo que só o sujeito, abrindo mão da subjetividade,</p><p>da temporalidade e do espaço de sua vida, mobilizaria. O que fica</p><p>diluído, portanto, não é o sujeito que compõe o texto, mas a identidade</p><p>através do tempo, do objeto, do espaço. E é nesse sentido que na</p><p>objetividade que aparece pode ser fundada a experiência coletiva. A</p><p>subjetividade é permeada por algo muito mais expressivo do que ela;</p><p>um algo que permite que, num indivíduo, toda uma época possa</p><p>aparecer: a linguagem.</p><p>Mas agora, em vez de discutir sobre linguagem ou sobre o conceito</p><p>de infância em Benjamin, penso ser mais coerente com a sua abordagem</p><p>ouvir o que ele fala de criança. E o faço recortando e costurando cenas e</p><p>argumentos de seus textos, ensaios e fragmentos, procurando delinear,</p><p>com base nessa leitura, eixos – iniciais e provisórios – norteadores de</p><p>uma outra ótica da infância e de uma outra prática de pesquisa.</p><p>Eixos norteadores de uma outra ótica da infância –</p><p>(re)lendo Walter Benjamin</p><p>• Não infantilização da criança, criadora de cultura, colecionadora, rastreadora</p><p>CRIANÇA DESORDEIRA. Cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e cada</p><p>borboleta capturada já é para ela princípio de uma coleção, e tudo que ela possui,</p><p>em geral, constitui para ela uma coleção única. Nela essa paixão mostra sua</p><p>verdadeira face, o rigoroso olhar índio, que, nos antiquários, pesquisadores,</p><p>bibliômanos, só continua ainda a arder turvado e maníaco. Mal entra na vida, ela é</p><p>caçador. Caça os espíritos cujo rastro fareja nas coisas; entre espíritos e coisas ela</p><p>gasta anos, nos quais seu campo de visão permanece livre de seres humanos. Para</p><p>ela tudo se passa como em sonhos: ela não conhece nada de permanente; tudo lhe</p><p>acontece, pensa ela, vai-lhe de encontro, atropela-a. Seus sonhos de nômade são</p><p>horas na floresta do sonho. De lá ela arrasta a presa para casa, para limpá-la, fixá-</p><p>la, desenfeitiçá-la. Suas gavetas têm de tornar-se casa de armas e zoológico, museu</p><p>criminal e cripta. “Arrumar” significaria aniquilar... (Benjamin 1987, p. 39)</p><p>• Desnaturalização da criança, desnaturalização do ser humano, relação crítica</p><p>com a tradição</p><p>LIVROS. Era na biblioteca do colégio que tomava emprestado os meus prediletos.</p><p>Nas séries mais atrasadas eram repartidos. O professor dizia meu nome, e então o</p><p>livro abria caminho por sobre os bancos; um colega o metia na mão do outro, ou</p><p>então o livro oscilava por sobre as cabeças até me alcançar, a mim que me havia</p><p>manifestado. Em suas folhas estavam grudadas marcas dos dedos dos que as</p><p>haviam manuseado.... o novo já se imiscuía ao velho de um modo muito denso e</p><p>incessante.. A suave atmosfera desses livros, que perpassava aquelas paragens,</p><p>cativava meu coração que se mantinha fiel àqueles tomos tão manuseados, com</p><p>sangue e perigo. (Idem, p. 113)</p><p>• Subversão da ordem, pois a criança desvela as contradições e revela outra</p><p>maneira de se enxergar o real</p><p>CAÇANDO BORBOLETAS. Salvo viagens ocasionais no verão, instalávamo-nos</p><p>anualmente, antes de eu ir para a escola, em casas de veraneio... o ar no qual se</p><p>movimentava então aquela borboleta está hoje impregnado por uma palavra que,</p><p>há dezenas de anos, nunca mais ouvi nem pronunciei. Ela conservou o insondável</p><p>com que as palavras da infância fazem frente aos adultos. O longo estado de</p><p>silêncio as transfigurou. (Idem, pp. 80-82)</p><p>• Crítica à pedagogização da infância – Crítica aos pedagogos</p><p>CANTEIRO DE OBRA. Elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos –</p><p>material educativo, brinquedos ou livros – que fossem apropriados para crianças é</p><p>tolice. Desde o Iluminismo essa é uma das mais bolorentas especulações dos</p><p>pedagogos. Seu enrabichamento pela psicologia impede-os de reconhecer que a</p><p>Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercício infantis. E</p><p>dos mais apropriados. Ou seja, as crianças são inclinadas de modo especial a</p><p>procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a atividade</p><p>sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo que surge na</p><p>construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria.</p><p>Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta</p><p>exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras</p><p>dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que</p><p>com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. (Idem, p.</p><p>18)</p><p>• Dominação é antieducação</p><p>A CAMINHO DO PLANETÁRIO. Quem, porém, confiaria em um mestre-escola</p><p>que declarasse a dominação das crianças pelos adultos como o sentido da</p><p>educação? Não é a educação, antes de tudo, a indispensável ordenação da relação</p><p>entre as gerações e, portanto, se se quer falar de dominação, a dominação das</p><p>relações entre gerações, e não das crianças? E assim também a técnica não é a</p><p>dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade. Os</p><p>homens como espécie estão, decerto, há milênios, no fim de sua evolução; mas a</p><p>humanidade</p><p>como espécie está no começo. (Idem, p. 69)</p><p>• Denúncia da didatização, crítica ao autoritarismo</p><p>A ESCRIVANINHA... Era com prazer que revia velhos cadernos, dotados agora de</p><p>um valor especial, que era o de eu tê-los resgatado do domínio do professor, que</p><p>teria direito sobre eles. Agora deixava o olhar recair sobre as correções ali</p><p>registradas em tinta vermelha, e um prazer sereno me tomava. Pois, assim como os</p><p>nomes dos mortos gravados nas sepulturas já não podem ser úteis ou prejudiciais,</p><p>ali estavam notas que haviam entregado todo seu poder a outras mais antigas. Com</p><p>outro espírito e com a consciência mais tranqüila eu podia perder horas na</p><p>escrivaninha tratando dos cadernos e dos livros escolares... (Idem, pp. 119-120)</p><p>• Criança, conhecimento e história</p><p>O JOGO DAS LETRAS. Nunca podemos recuperar totalmente o que foi</p><p>esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão</p><p>destrutivo que, no exato momento forçosamente deixaríamos de compreender</p><p>nossa saudade... Seja como for, para cada pessoa há coisas que lhe despertam</p><p>hábitos mais duradouros que todos os demais... E porque, no que me diz respeito,</p><p>elas foram a leitura e a escrita, de todas as coisas com que me envolvi em meus</p><p>primeiros anos de vida, nada desperta em mim mais saudades que o jogo das letras.</p><p>A saudade que em mim desperta o jogo das letras prova como foi parte integrante</p><p>de minha infância. O que busco nele na verdade, é ela mesma: a infância por</p><p>inteiro, tal qual a sabia manipular a mão que empurrava as letras no filete, onde se</p><p>ordenavam como uma palavra. A mão pode ainda sonhar com essa manipulação,</p><p>mas nunca mais poderá despertar para realizá-la de fato. Assim, posso sonhar como</p><p>no passado aprendi a andar. Mas isso de nada adianta. Hoje sei</p><p>andar; porém,</p><p>nunca mais poderei tornar a aprendê-lo. (Idem, pp. 104-105)</p><p>• Reconhecimento do adultocentrismo, contra o autoritarismo de idade</p><p>O CORCUNDINHA. “Sem jeito mandou lembranças” era o que sempre me dizia</p><p>quando eu quebrava ou deixava cair alguma coisa. E agora entendo do que falava.</p><p>Falava do corcundinha que me havia olhado. Aquele que é olhado pelo</p><p>corcundinha não sabe prestar atenção. Nem a si mesmo nem ao corcundinha.</p><p>Encontra-se sobressaltado em frente a uma pilha de cacos... (Idem, pp. 141-142)</p><p>• Reconhecimento da especificidade da infância</p><p>CRIANÇA ANDANDO DE CARROSSEL. Começa a música e num solavanco</p><p>gira a criança, afastando-se da mãe. Primeiro, ela tem medo de deixar a mãe. Mas,</p><p>em seguida, nota como ela própria é fiel. Ocupa o trono, como fiel senhor, sobre</p><p>um mundo que lhe pertence. Na tangente, árvores e nativos formam alas. Então,</p><p>em oriente, emerge novamente a mãe. Em seguida, sai da floresta virgem um cimo,</p><p>tal como a criança já o viu há milênios, tal como o viu pela primeira vez,</p><p>justamente, no carrossel... (Idem, pp. 38-39)</p><p>• Eixo maior, que costura e incorpora todos os outros – História, linguagem,</p><p>descontinuidade</p><p>ESCAVANDO E RECORDANDO. A língua tem indicado inequivocamente que a</p><p>memória não é um instrumento para exploração do passado; é, antes, o meio. É o</p><p>meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas</p><p>cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado</p><p>soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer</p><p>voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como</p><p>se revolve o solo. Pois “fatos” nada são além de camadas que apenas à exploração</p><p>mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. Ou seja, as imagens</p><p>que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades</p><p>nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do</p><p>colecionador. E certamente é útil avançar em escavações segundo planos. Mas é</p><p>igualmente indispensável a enxadada cautelosa e tateante na terra escura. E se</p><p>ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe</p><p>assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho. (Idem, pp. 239-</p><p>240)</p><p>Assim, infância remete à fantasia, à imaginação, à criação, ao sonho</p><p>coletivo, à história presente, passada e futura. Próxima dos mágicos e</p><p>loucos, contraposta à racionalidade instrumental, a criança monta com</p><p>cada peça, cada pedrinha que encontra, cada retalho, pau, bloco.</p><p>Mônada e mosaico, constelação e relâmpago. Em Benjamin, o</p><p>conhecimento se dá com assombro, como triunfo, como fulguração. Sua</p><p>linguagem cinematográfica, contra uma visão desarmada, que sacrifica</p><p>a totalidade, e contra uma visão filosófica, que abdica da singularidade,</p><p>permite entender que o fragmento contém o todo condensado e que na</p><p>ruína se encontra a possibilidade da reconstrução.</p><p>Feitas essas reflexões e esboçados esses eixos, creio que fica</p><p>esclarecido por que Benjamin e sua obra desempenham papel tão</p><p>importante na minha trajetória e busca. Posso dizer que ele oferece a</p><p>possibilidade teórico-prática de entrecruzamento das perspectivas</p><p>• histórica, de um lado pelo seu interesse pela história dos</p><p>brinquedos, dos livros infantis, das miniaturas, da</p><p>fotografia, da arte, e, de outro, pela rememoração, tarefa</p><p>do historiador e ato de ressignificação na linguagem;</p><p>• filosófica, por um lado, ao entender a infância como</p><p>categoria central no estudo humano, infância do homem,</p><p>[15] por outro, ao questionar a forma da linguagem da</p><p>filosofia, reivindicando para ela a forma artística;</p><p>• psicológica, por entender que esse sujeito da linguagem</p><p>faz, pensa, sonha, constrói, desconstrói, imagina, fantasia,</p><p>deseja, chora, ama, destrói, muda...;</p><p>• política, por sua posição contra o fascismo, por sua crítica</p><p>à desigualdade, por seu projeto de discutir a busca da</p><p>felicidade no interior de uma reflexão de filosofia política;</p><p>[16]</p><p>• cultural, por fazer a crítica da cultura e da modernidade,</p><p>propondo que seja estabelecida uma outra relação com a</p><p>tradição;</p><p>• antropológica, por ter uma visão aguda das diferenças, por</p><p>seu apreço à pluralidade, por não sacrificar o singular em</p><p>nome da totalidade; por visar, enfim, a uma antropologia</p><p>dialético-materialista da criança;</p><p>• artística, pelo resgate da dimensão do belo, por ser sensível</p><p>à necessidade de se renovar o velho – e não apenas de</p><p>conservar o novo – e por advogar para a filosofia a forma</p><p>da arte;</p><p>• ética, pela relação nova que estabelece com os valores, por</p><p>sua atração pelos rastros e pela experiência passada, por</p><p>valorizar a produção de autores tão díspares quanto Kafka</p><p>e Brecht, Proust e Bergson, Scholem e Adorno.</p><p>E como esse entrecruzamento de perspectivas se dá? Na linguagem,</p><p>condição da humanidade do homem, pois só o ser humano pode ser in-</p><p>fans (etimologicamente, em latim, aquele que não fala). Então, ao</p><p>contrário dos animais, o homem – como tem uma infância, ou seja, não</p><p>foi sempre falante – aparece como aquele que precisa, para falar, se</p><p>constituir como sujeito da linguagem e deve dizer eu. Nessa</p><p>descontinuidade é que se funda a historicidade do ser humano. Se há</p><p>uma história, se o homem é um ser histórico, é só porque existe uma</p><p>infância do homem, é porque ele deve se apropriar da linguagem. Se</p><p>assim não fosse, o homem seria natureza e não história, e se confundiria</p><p>com a besta.[17]</p><p>Pesquisar a infância com esse olhar significa pesquisar a própria</p><p>condição humana, a história do homem. Aqui, vale lembrar o menino de</p><p>O Tambor, filme de Volker Schlondorff. Com seu tambor, ele, menino</p><p>que não fala, denuncia o nazismo, a traição, a perseguição, a condição</p><p>desigual da mulher, a situação desumana vivida na Europa. Vale lembrar</p><p>também a menina de Cria Cuervos, filme de Carlos Saura, menina que</p><p>acorda o futuro e sonha o passado, sofre, se entristece, perde a mãe,</p><p>tudo distante do que ingenuamente se pensa da situação e do olhar</p><p>infantis. Desvelando o real, subvertendo a aparente ordem natural das</p><p>coisas, ele, o menino, ela, a menina, falam não só do seu mundo e da</p><p>sua ótica de crianças, mas falam também do mundo adulto, da</p><p>sociedade contemporânea, da vida atual. Imbuir-se desse olhar infantil</p><p>crítico, que vira pelo avesso a costura do mundo, é, talvez, aprender</p><p>com as crianças e não se deixar infantilizar. Afinal, infantilização e</p><p>dependência não são projetos da sociedade moderna? E que papel essa</p><p>sociedade reserva aos jovens? Conhecer a infância não significa, assim,</p><p>uma das possibilidades para que o ser humano continue sendo sujeito</p><p>crítico da história que o produz?</p><p>2</p><p>RESSIGNIFICANDO A PSICOLOGIA DO</p><p>DESENVOLVIMENTO: UMA CONTRIBUIÇÃO</p><p>CRÍTICA À PESQUISA DA INFÂNCIA[18]</p><p>Solange Jobim e Souza[19]</p><p>Sabemos muito bem que a vida não descreve um</p><p>movimento ascendente. Haverá sempre mais viço no</p><p>rosto de uma criança.</p><p>François Truffaut</p><p>Introdução</p><p>A psicologia do desenvolvimento tem se destacado, no âmbito das</p><p>ciências psicológicas, como uma área que autoriza e legitima a</p><p>construção de teorias e conceitos sobre os aspectos evolutivos</p><p>(cognitivos, afetivo-emocionais, psicomotores, sociais etc.) da infância</p><p>e da adolescência. No que diz respeito a uma compreensão consensual</p><p>entre os psicólogos, a psicologia do desenvolvimento distingue-se como</p><p>disciplina acadêmica que faz parte das ciências do comportamento, e</p><p>que pretende, objetivamente, observar e medir as mudanças exibidas</p><p>pelos indivíduos ao longo de sua trajetória de vida. Essa posição</p><p>consensual assegura que a psicologia do desenvolvimento funciona a</p><p>reboque dos avanços do conhecimento especializado, da sofisticação de</p><p>seus métodos e técnicas e da precisão de suas medidas (Broughton</p><p>1987). Assim, sustentando seus avanços em virtude de suas descobertas</p><p>específicas, suas inovações metodológicas e suas clarificações</p><p>terminológicas, transmite a ideia de que o seu progressivo processo de</p><p>construção é independente de motivos políticos e ideológicos. Ao se</p><p>utilizar da aplicação rigorosa de métodos de experimentação,</p><p>pretende</p><p>garantir sua neutralidade ética e a privacidade de seus sujeitos.</p><p>Admitindo que seu principal objetivo é a explicação dos fatos do</p><p>desenvolvimento humano, parte do pressuposto de que estes não são</p><p>entidades produzidas socialmente, mas sim decorrências de fatos</p><p>naturais.</p><p>A busca de objetividade e neutralidade não é, contudo, uma</p><p>característica exclusiva da psicologia do desenvolvimento. As ciências</p><p>humanas e sociais, ao longo do seu processo de constituição nas</p><p>sociedades modernas, vêm enfrentando os seguintes dilemas: como</p><p>conciliar o caráter ideológico desse campo do saber com o</p><p>conhecimento objetivo da verdade? É possível eliminar as ideologias do</p><p>processo de conhecimento científico-social? Ao lado dessas indagações,</p><p>constatamos que as ciências humanas quanto mais “científicas” se</p><p>tornam menos humanas se revelam e, à medida que se fazem humanas,</p><p>perdem seu caráter científico (Japiassu 1982; Jobim e Souza 1994).</p><p>Com base nessas inquietações torna-se, portanto, urgente analisar as</p><p>consequências do ingresso da psicologia do desenvolvimento na era da</p><p>positividade, pois esse fato vai mudar profundamente a imagem da</p><p>infância e o modo pelo qual a compreendemos e traçamos objetivos</p><p>para o seu “vir a ser” no mundo.</p><p>Em primeiro lugar, é fundamental compreendermos a psicologia do</p><p>desenvolvimento como instituição social que tem uma estrutura</p><p>profissional e uma presença pública. A despeito de todo o seu esforço</p><p>em garantir uma neutralidade político-ideológica, está</p><p>irremediavelmente marcada pela sociedade em que se insere e reflete</p><p>todas as suas contradições, tanto em sua organização interna quanto em</p><p>suas práticas. Em outras palavras, na medida em que a psicologia do</p><p>desenvolvimento segmenta, classifica, ordena e coordena as fases do</p><p>nosso crescimento e define o que é e o que não é crescimento, ela</p><p>engendra um discurso desenvolvimentista que estipula as formas e</p><p>possibilidades com base nas quais o curso da vida humana pode fazer</p><p>sentido (Broughton 1987).</p><p>Nessa perspectiva de análise, surge uma questão instigante, qual</p><p>seja: mais do que observar e descrever cientificamente o</p><p>desenvolvimento humano, a psicologia do desenvolvimento formula os</p><p>ideais para o desenvolvimento, providencia os meios para realizá-los e,</p><p>mais do que tudo isso, acaba por desenvolver as crianças, os</p><p>adolescentes e nós mesmos – adultos –, com base em determinados</p><p>enquadramentos, participando de nossa formação como sujeitos e como</p><p>objetos (idem). Enfim, se, por um lado, a psicologia do</p><p>desenvolvimento pretende compreender e iluminar fatos desconhecidos</p><p>sobre o desenvolvimento da criança e do adolescente, por outro, ao</p><p>investir nessa direção, acaba por se tornar propriamente estruturadora da</p><p>experiência da criança, ou seja, os comportamentos cognitivos, afetivos,</p><p>psicomotores, psicossociais etc., passam a ser moldados por</p><p>determinadas características descritivas, além de emergirem cada vez</p><p>mais cedo na vida da criança. Isso significa afirmar que os estudos e</p><p>pesquisas psicológicos têm consequências constitutivas sobre o sujeito</p><p>em formação, ou seja, sua função interpretativa permite a produção e o</p><p>consumo de conceitos pelo conjunto da sociedade. Esses conceitos vão</p><p>sendo construídos e reconstruídos no interior das teorias, passando a</p><p>interferir diretamente no comportamento de crianças e adolescentes,</p><p>modelando formas de ser e agir de acordo com as expectativas criadas,</p><p>tendo por base interesses culturais, políticos e econômicos do contexto</p><p>social mais amplo. O poder, nas sociedades complexas contemporâneas,</p><p>não se faz tão somente pelo controle dos meios de produção, mas</p><p>também pelo controle da produção de sentidos.</p><p>É evidente que a psicologia do desenvolvimento não exerce essas</p><p>influências de forma espontânea e autônoma. Como instituição,</p><p>discurso, teoria e prática, ela emerge como resposta às representações,</p><p>às imaginações e aos desejos dos indivíduos e da coletividade em cuja</p><p>formação ela desempenha um papel decisivo (Broughton 1987; Harris</p><p>1987; Vonèche 1987). Cada sujeito social – leigo ou profissional –</p><p>participa na constituição do saber psicológico que será tomado como</p><p>padrão normativo do desenvolvimento humano.</p><p>A perspectiva do progresso: O desenvolvimento humano</p><p>concebido como etapas ou estágios</p><p>Segundo Castro (1990), a problematização sobre o</p><p>desenvolvimento humano pode ser vista por meio de dois enfoques</p><p>distintos: o “biológico-evolucionista” e o “pedagógico-normativo”. O</p><p>enfoque biológico-evolucionista, originário das ciências da natureza e</p><p>da medicina, atribui à maturação uma importância preponderante. As</p><p>teorias de Freud e Piaget constituem exemplos que se enquadram no</p><p>paradigma evolucionista, em que os atributos e funções psicológicos são</p><p>passíveis de mudanças em uma sequenciação hierarquizada.</p><p>O processo de maturação na área social é, contudo, profundamente</p><p>diferente do processo de maturação no domínio biológico. Vonèche</p><p>(1987) exemplifica chamando atenção para o seguinte fato: observar</p><p>uma fruta amadurecendo é uma mera observação que pode ser descrita</p><p>quase que perfeitamente. Contudo, considerar um indivíduo imaturo ou</p><p>não é um julgamento de valor. Assim, fundindo o domínio biológico</p><p>com a área social, a abordagem evolucionista da psicologia do</p><p>desenvolvimento transforma uma norma em fato, favorecendo o</p><p>processo de naturalização dos julgamentos de valor. O efeito negativo</p><p>de tal abordagem é legitimar cientificamente um grande número de</p><p>julgamentos de valor, tomando-os como fatos naturais e objetivos do</p><p>desenvolvimento humano. A ciência é uma metáfora, um sistema de</p><p>crenças em que, como na magia, a coerência interna tornou-se o</p><p>substituto da verdade (Buck-Morss 1987).</p><p>O enfoque pedagógico-normativo prioriza o processo de</p><p>socialização, destacando o tempo que transcorre da infância à vida</p><p>adulta como trajetória de capacitação dos sujeitos à vida social e</p><p>“produtiva”. Sob esse aspecto, as etapas do desenvolvimento</p><p>aproximam-se, nitidamente, da sequência de dispositivos institucionais</p><p>de credenciamento à vida adulta (Castro 1990). Desse modo, a noção de</p><p>desenvolvimento psicológico passa a guiar e enquadrar a noção de</p><p>normatividade pedagógica, ou seja, a psicologia do desenvolvimento</p><p>constitui-se a serviço da produção de um saber que deve fornecer</p><p>critérios para o sistema educacional agrupar as crianças segundo a</p><p>evolução de suas capacidades cognitivas e aptidões específicas. Nesse</p><p>sentido, as intervenções pedagógicas legitimam-se tendo por base o</p><p>conhecimento produzido no interior das diferentes teorias do</p><p>desenvolvimento, as quais, em sua grande maioria, defendem a</p><p>evolução progressiva e por etapas das capacidades da criança.</p><p>Uma das aplicações mais frequentes da perspectiva construtivista</p><p>de Piaget à educação tem sido a utilização de várias de suas tarefas de</p><p>investigação como conteúdos escolares. Com isso pretende-se ensinar</p><p>às crianças as respostas que indicam a existência de certa noção ou</p><p>conceito, confundindo o resultado da ação com o conceito em si. Essa</p><p>utilização da teoria de Piaget teve como consequência a inclusão nos</p><p>currículos escolares das tarefas piagetianas clássicas, utilizadas para</p><p>avaliar as noções de conservação, de classificação, de seriação etc.,</p><p>como se se tratassem de situações didáticas. Assim, a expectativa gerada</p><p>nos educadores é de que seria possível acelerar o desenvolvimento</p><p>cognitivo das crianças ensinando-lhes as respostas corretas às situações-</p><p>problema apresentadas pelos testes piagetianos (Jobim e Souza e</p><p>Kramer 1991).</p><p>Buck-Morss (1987) vai além, nessa discussão, e observa que o</p><p>formalismo abstrato que Piaget enfocou no pensamento emergiu</p><p>historicamente nas culturas urbanas comerciais, tornando-se a estrutura</p><p>lógica dominante, tendo seu apogeu no capitalismo ocidental industrial.</p><p>Quer dizer, com o surgimento do trabalho assalariado, produção e troca</p><p>adquiriram valores abstratos e fizeram da linguagem matemática a</p><p>expressão, por excelência, tanto das relações sociais de produção, como</p><p>das relações de mercado. Isso nos permite afirmar que, no campo da</p><p>psicologia, a</p>