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<p>1</p><p>INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS</p><p>Aula 2</p><p>Profª Paula Leticia</p><p>2</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>Em conteúdos anteriores, falamos sobre o contexto da criação do livro A</p><p>interpretação dos sonhos, a visão das neurociências sobre o sonhar nos dias</p><p>atuais e a visão psicanalítica sobre os sonhos, acrescentando o umbigo do</p><p>sonho e a importância da interpretação dos sonhos na psicanálise.</p><p>Nesta etapa, desenvolveremos os conceitos da primeira tópica,</p><p>inconsciente, pré-consciente, consciência, recalque e figuração. Em capítulos</p><p>posteriores, trataremos do famoso sonho de Freud sobre a injeção de Irma,</p><p>além de investigarmos a função do sonho, os sonhos de angústia e os afetos</p><p>nos sonhos. Pesquisaremos, também, sobre os símbolos e o desejo no sonho.</p><p>Por fim, não menos importante, os sonhos a partir de 1915.</p><p>O objetivo desta etapa é introduzir a primeira tópica e a criação do</p><p>inconsciente freudiano, bem como percorrer os conceitos que fundam o</p><p>aparelho psíquico que são a base para a interpretação dos sonhos.</p><p>TEMA 1 – PRIMEIRA TÓPICA E A CRIAÇÃO DO INCONSCIENTE FREUDIANO</p><p>No ano de 1885, Sigmund Freud foi para Paris para trabalhar com Jean-</p><p>Martin Charcot, e naquela cidade passou 19 semanas estudando as histéricas</p><p>com a técnica da hipnose. Porém, no livro Estudos sobre a histeria, declarou</p><p>ser um péssimo hipnotizador.</p><p>“As experiências hipnóticas, aliás, especialmente a sugestão pós-</p><p>hipnótica, demonstram de modo tangível a existência e a maneira de operar do</p><p>inconsciente psíquico, antes mesmo da época da psicanálise” (Freud, 1915, p.</p><p>104).</p><p>A partir dessas vivências ao lado de Charcot, Freud começou a</p><p>interrogar o sofrimento das histéricas e a formular hipóteses. Abriu-se um</p><p>campo de investigação cientifica com um problema empírico, no qual uma série</p><p>de fenômenos são sintomas dos resultados do sofrimento psíquico. Ele</p><p>organizou esses sintomas por meio de um aparelho psíquico.</p><p>Conhecida como primeira tópica ou teoria topográfica, ela sugestiona a</p><p>ideia de lugar na mente para o inconsciente. Tópica vem do grego topos, que</p><p>significa lugar.</p><p>A medicina da época estava buscando a causa orgânica para a histeria,</p><p>mas Freud vê um corpo pulsional e somente em 1915 vai escrever sobre as</p><p>3</p><p>pulsões. Porém, esse conhecimento estava com ele desde o início. O</p><p>psicanalista precisou criar um aparelho para falar sobre o sofrimento das</p><p>neuroses, do qual nasceu a primeira tópica (inconsciente, pré-consciente e</p><p>consciente) e organizaria a teoria das pulsões sexuais e de autoconservação.</p><p>O inconsciente contém todo tipo de paixões. O homem instintivo se</p><p>revela por meio dos sonhos, no qual aparece o homem no todo, desde sua</p><p>nudez até suas misérias inatas. “Ao suspender o exercício de sua vontade, ele</p><p>se transforma em brinquedo de todas as suas paixões das quais no seu estado</p><p>de vigília, a consciência, o senso de honra e o medo nos defendem” (Freud, p.</p><p>103).</p><p>O termo inconsciente começou a ser estudado e pensado muito antes de</p><p>Freud. Plon e Roudinescou (1998) informam que:</p><p>Conceitualmente empregado em língua inglesa pela primeira vez em</p><p>1751 (com a significação de inconsciência), pelo jurista escocês</p><p>Henry Home Kames (1696-1782), o termo inconsciente foi depois</p><p>vulgarizado na Alemanha*, no período romântico, e definido como um</p><p>reservatório de imagens mentais e uma fonte de paixões cujo</p><p>conteúdo escapa à consciência. (Plon; Roudinescou, 1998, p. 375)</p><p>Somente em 1878 o termo inconsciente passou a fazer parte dos</p><p>dicionários franceses. Freud não foi o inventor da palavra inconsciente como</p><p>muitos acreditam, mas foi ele quem, de fato, tirou o inconsciente do status de</p><p>“supraconsciência” e “subconsciente”, a qual se tornou uma instância em que a</p><p>consciência não tem acesso, mas que se revela a ela por intermédio do sonho,</p><p>dos lapsos, dos jogos de palavras, dos atos falhos etc. Freud recebeu</p><p>influência de René Descartes com o dualismo entre o corpo e a mente, em que</p><p>a mente se torna lugar da razão em contraste com o universo da desrazão. A</p><p>psiquiatria dinâmica e a filosofia alemã também influenciaram na concepção</p><p>inédita do inconsciente com os autores</p><p>[...] Wilhelm von Schelling (1775-1854) até Friedrich Nietzsche (1844-</p><p>1900), passando por Arthur Schopenhauer (1788- 1860). A filosofia</p><p>alemã levou em conta uma visão do inconsciente oposta à do</p><p>racionalismo e sem uma relação direta com o ponto de vista</p><p>terapêutico da psiquiatria dinâmica. (Plon; Roudinescou, 1998, p.</p><p>375)</p><p>Em 1896, na carta enviada a Wilhelm Fliess, Freud contou ao amigo que</p><p>pela primeira vez surgia a formação do aparelho psíquico, formulado como</p><p>consciente, pré-consciente e inconsciente. Em 1915, Freud admitiu que:</p><p>4</p><p>[...] esses dois (ou três) sistemas psíquicos, a psicanálise distanciou-</p><p>se mais um passo da psicologia descritiva da consciência, atribuindo-</p><p>se uma nova colocação de problemas e um novo conteúdo. Até então</p><p>ela se diferenciava da psicologia sobretudo pela concepção dinâmica</p><p>dos processos anímicos; agora pretende considerar igualmente a</p><p>topologia da psique. (p. 110)</p><p>De uma forma bastante sutil, Freud criticou a filosofia e a teoria de</p><p>Theodor Lipps, afirmando que o inconsciente é meramente o oposto da</p><p>consciência e, para Lipps, a tese é que “tudo que existe no psíquico existe de</p><p>forma inconsciente; em parte, também na forma consciente” (Lipps, [S.d.], p.</p><p>668).</p><p>Freud afirmava que o sonho é onde o inconsciente se apresenta por</p><p>meio de duas formas: o inconsciente e o pré-consciente. O primeiro é incapaz</p><p>de chegar à consciência e o último consegue levar suas excitações a alcançar</p><p>a consciência.</p><p>O inconsciente é uma parte que compõe a subjetividade do sujeito, mas</p><p>não está acessível facilmente, tem algo que resiste para que os desejos</p><p>apareçam. Os representantes das pulsões precisam passar pelas barreiras da</p><p>censura no pré-consciente e também na consciência.</p><p>No inconsciente são encontradas as representações mais arcaicas,</p><p>experiências que marcaram e constituíram a subjetividade e o psiquismo, com</p><p>traços mnêmicos e ligados às moções pulsionais (desejos). Essas</p><p>representações vão se ligando uma à outra, não por sentidos semelhantes,</p><p>mas por vivências do sujeito.</p><p>Um instinto não pode jamais se tornar objeto da consciência, apenas</p><p>a ideia que o representa. Mas também no inconsciente ele não pode</p><p>ser representado senão pela a ideia. Se o instinto não se prendesse a</p><p>uma ideia não aparecesse como um estado afetivo, nada poderíamos</p><p>saber sobre ele. (p. 115)</p><p>A regulação desse sistema inconsciente é o princípio do prazer, que é</p><p>marcado pela busca de satisfação pulsional e realização de desejo. Freud</p><p>(1917) aponta que “são sujeitos ao princípio de prazer; seu destino depende</p><p>apenas de uma intensidade e de cumprirem ou não as exigências da regulação</p><p>de prazer e desprazer” (Freud, 1917, p. 128).</p><p>Os processos do sistema inconsciente são atemporais, não são</p><p>ordenados temporalmente. Não leva em conta também a realidade externa que</p><p>é substituída pela psíquica. Esses processos são regidos pelo princípio do</p><p>prazer. Freud (1917) resume as características do processo inconsciente:</p><p>5</p><p>Ausência de contradição, processo primário (mobilidade dos</p><p>investimentos), atemporalidade e substituições da realidade psíquica</p><p>externa pela psíquica são as características que podemos esperar</p><p>encontrar nos processos do sistema inconscientes. (Freud, 1917, p.</p><p>128)</p><p>Como pode se tornar conhecido o inconsciente? Apenas nas condições</p><p>de sonhos, atos falhos, chistes e das neuroses.</p><p>O inconsciente é algo vivo e capaz de desenvolvimento, e se engana</p><p>quem acredita que ele é algo rudimentar e acabado e está em constante</p><p>movimento. Pode ter uma relação de cooperação com o sistema pré-</p><p>consciente.</p><p>O pré-consciente pode contestar a representação que vem do</p><p>inconsciente e fazer o processo de recalque.</p><p>TEMA</p><p>2 – PRÉ –CONSCIENTE E CONSCIENTE</p><p>De uma forma direta, Freud declarou que a consciência “nada mais é do</p><p>que um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas” (Freud,</p><p>2019, p. 669). O caminho do desejo inconsciente até o sonho é pela ligação</p><p>com os restos diurnos em que vai se infiltrando por meio do pré-consciente</p><p>para tentar chegar na consciência. “Este caminho, normalmente seguido pelos</p><p>processos de pensamentos, esbarra com a censura que opera entre o Pcs e o</p><p>Cs e com os estados de sono” (Freud, 2019, p. 203).</p><p>A partir de então, o processo onírico empreende um caminho</p><p>regressivo que se encontra aberto pelo estado de sono e também</p><p>pela atração exercida por grupos mnêmicos que existem apenas</p><p>como investimento visuais e não sob a forma mais elaborada</p><p>propiciada pelos sistemas Pcs/Cs. Nesse percurso regressivo, o</p><p>processo onírico adquire figurabilidade. (Freud, 2019, p. 203)</p><p>A primeira parte é construída pelas cenas de fantasia do inconsciente ao</p><p>pré-consciente. Já na segunda parte, ele vai do pré-consciente de volta às</p><p>percepções. Nesse processo, ele se livra da censura e conquista a</p><p>consciência.</p><p>Uma das características da consciência é ser suscetível à excitação e é</p><p>incapaz de preservar traços de modificações, isto é, sem memória.</p><p>No período de vigília, a consciência recebe muitas excitações que vêm</p><p>das extremidades do aparelho psíquico, do sistema perceptivo, gerando prazer</p><p>e desprazer em razão das mudanças internas.</p><p>6</p><p>Os desejos pré-conscientes não se misturam com o desejo inconsciente</p><p>(recalcado) nem com os restos diurnos, mesmo que se associem na formação</p><p>dos sonhos.</p><p>A consciência é regida pelo princípio de realidade, mas não é soberano,</p><p>pois depende do princípio de prazer, que é o princípio fundamental de</p><p>regulação do aparelho psíquico.</p><p>TEMA 3 – DESLOCAMENTO E CONDENSAÇÃO</p><p>É com base no conteúdo latente do sonho ou no pensamento onírico</p><p>que se desenvolve a solução dos sonhos e, por intermédio do conteúdo</p><p>manifesto, a narrativa do sonho. O paciente, ao contar o sonho, já passou</p><p>pelas barreiras da censura. Freud aponta que o conteúdo do sonho é fornecido</p><p>em forma pictografia (rébus). “Nós nos enganaríamos se lêssemos esses</p><p>signos segundo seu valor como imagem à minha frente um enigma e não</p><p>conforme sua relação semiótica” (Freud, 2019, p. 318). Em resumo, a</p><p>composição e os elementos do rébus não fazem sentido por si só, mas, se</p><p>cada imagem for transformada em palavra, pode se formar uma frase. “As</p><p>palavras que assim se formam deixam de ser sem sentido e podem resultar</p><p>numa bela e significativa frase poética” (Freud, 2019, p. 319).</p><p>Garcia-Roza (2004) aponta que a condensação opera de três maneiras:</p><p>Primeiro, omitindo determinado elemento dos pensamentos latentes;</p><p>segundo permitindo que apenas um fragmento do conteúdo latente</p><p>apareça no sonho manifesto; terceiro, combinando vários elementos</p><p>do conteúdo latente que possuem algo em comum num único</p><p>elemento do conteúdo manifesto. (Garcia-Roza, 2004, p. 93)</p><p>Na condensação, encontram-se pontos nodais que são pontos de</p><p>cruzamento de vários pensamentos latentes. Um exemplo claro da</p><p>condensação é quando há uma superposição de imagem, em que uma pessoa</p><p>no sonho manifesto está representando várias pessoas ao mesmo tempo.</p><p>É possível observar a condensação no chiste, esquecimentos de</p><p>palavras. Freud exemplifica a condensação com as palavras:</p><p>Famili ar</p><p>+ Milionär</p><p>____________</p><p>Familionär</p><p>7</p><p>A condensação atua sobre as duas palavras, uma desaparece em</p><p>função da segunda, menos resistente e unifica as duas na construção do chiste</p><p>na palavra familiar.</p><p>O trabalho do sonho também conta com o mecanismo de deslocamento.</p><p>Esse é feito da censura onírica, que dificulta ou impossibilita rastrear o caminho</p><p>que leva ao pensamento latente no sonho manifesto. O deslocamento se</p><p>reveste de um estranhamento, criado pela trama de representações. Freud</p><p>orienta que a fala onírica é composta por várias lembranças.</p><p>As palavras são conservadas sem alteração ou levemente deslocada</p><p>na expressão; muitas vezes fala onírica é composta de diversas</p><p>lembranças de falas; as palavras permanecem iguais, sentido pode</p><p>ser outro ou vários outros. Não raramente, a fala onírica serve como</p><p>mera alusão a um evento em que a fala lembrada ocorreu. (Freud,</p><p>2019, p. 346)</p><p>“O deslocamento do sonho é um dos principais recursos para obter a</p><p>deformação do sonho”, diz Freud, o que influencia a deformação é a censura,</p><p>da defesa endopsíquica.</p><p>De um lado, o trabalho do sonho manifesta conteúdos com alto valor</p><p>psíquico e, do outro, por meio da sobredeterminação, criando novos elementos</p><p>inferiores, que conseguem passar pela barreira da censura e o conteúdo chega</p><p>ao sonho. Mediante isso, ocorreu uma transferência e deslocamento das</p><p>intensidades psíquicas dos elementos. Isso é o deslocamento do sonho.</p><p>“Deslocamento e condensação do sonho são os dois mestres artesãos cuja</p><p>atividade podemos atribuir essencialmente à forma do sonho” (Freud, 2019, p.</p><p>350).</p><p>Existe uma única maneira de o conteúdo latente chegar ao sonho: é</p><p>escapando da censura da resistência.</p><p>Para motivar o leitor a aplicar os conteúdos aprendidos até aqui, será</p><p>apresentado o relato de um pequeno sonhador, uma criança de 3 anos.</p><p>Um menino que ainda não completou quatro anos de idade conta: E</p><p>ele viu uma grande tigela guarnecida, na qual havia um grande</p><p>pedaço de carne assada. De repente, o pedaço havia sido comido</p><p>inteiramente – sem ter sido cortado. Ele não viu a pessoa que comeu.</p><p>(Freud, 2019, p 309)</p><p>Analise:</p><p>Há alguns dias, o menino tinha passado por uma dieta restritiva,</p><p>alimentando-se só de leite e, na noite do sonho, ficou de castigo e não pôde</p><p>jantar. O castigo de ficar sem comer já era recorrente: no episódio anterior,</p><p>8</p><p>suportou com bravura a fome, pois sabia que nada receberia se pedisse. A</p><p>educação mostra seus efeitos no sonho e na deformação onírica.</p><p>Quem deseja uma refeição farta é o bravo garotinho, que nega sua fome</p><p>e evita anunciá-la aos cuidadores. A imagem de quem comeu permanece</p><p>encoberta.</p><p>Uma criança de 3 a 4 anos que recebe o castigo de ficar sem o jantar,</p><p>estando com fome, no mínimo apresenta um sentimento de desamparo e ódio</p><p>aos pais.</p><p>Na nota de rodapé, Freud aponta que o grande, exagerado no sonho</p><p>pode indicar a característica da infância. O maior desejo da criança é crescer e</p><p>receber tudo que os adultos têm.</p><p>3.1 Conteúdo latente</p><p>A Interpretação dos sonhos é a maneira como a psicanálise busca</p><p>significação ao conteúdo latente do sonho, revelando o desejo inconsciente.</p><p>O sonhador tem um saber que não lhe é acessível de forma imediata,</p><p>pois está no inconsciente. Na consciência, existe um primeiro registro, que é</p><p>substituído pelo segundo registro do inconsciente. Esses registros podem ser</p><p>nomeados como conteúdo manifesto do sonho (consciente) e pensamento</p><p>latente do sonho (inconsciente). “Aquilo que o sonhador tem acesso é conteúdo</p><p>manifesto, isto é, ao sonho sonhado e recordado por ele ao despertar” (Garcia-</p><p>Roza, 2004, p. 81). Esse é o substituto distorcido do inconsciente, que são os</p><p>pensamentos latentes. Os pensamentos latentes são a matéria prima dos</p><p>sonhos manifestos.</p><p>Basta observar que nossa teoria não se baseia na apreciação do</p><p>conteúdo onírico manifesto; diz respeito, isto sim, ao conteúdo de</p><p>pensamentos que descobrimos por trás do sonho, mediante o</p><p>trabalho interpretativo. Devemos contrapor o conteúdo onírico</p><p>manifesto ao conteúdo onírico latente. (Freud, 2019, p. 168)</p><p>O conteúdo latente é um conjunto de significações com produção do</p><p>inconsciente por meio dos sonhos. Ele é transformado de imagem para</p><p>discurso. Freud aponta que os conteúdos latentes são deformados, a ponto de</p><p>se tornar o contrário, como um meio de dissimulação.</p><p>Quantos mais nos aprofundamos na análise dos sonhos, mais</p><p>frequentemente deparamos com as vivencias infantis, que no</p><p>conteúdo latente do sonho têm o papel de fonte onírica. (Freud, 2019,</p><p>p. 234)</p><p>9</p><p>O conteúdo latente é a reprodução do recalcado por intermédio das</p><p>imagens infantis.</p><p>3.2 Conteúdo manifesto</p><p>O conteúdo manifesto é o que se apresenta ao sonhador e pode ser</p><p>contado pelo sonhador. Quando se tem acesso somente ao conteúdo</p><p>manifesto, parece que está relacionada somente às situações do dia a dia, mas</p><p>quando ele passa pela análise, encontra-se outra fonte dos sonhos, outra</p><p>vivência. Todos os sonhos têm uma ligação com as vivências do dia</p><p>transcorrido. Freud dá uma dica valiosa para os analistas: “Tendo</p><p>conhecimento disso, posso começar a interpretação do sonho; investigando</p><p>primeiro a vivência que instigou o sonho; em muitos casos esse é o caminho</p><p>mais rápido” (Freud, 2019, p. 199).</p><p>O que sonhamos deve ser reconhecido como algo significativo. “O sonho</p><p>jamais se ocupa de miudezas; não permitindo que algo trivial perturbe o sono”</p><p>(Freud, 2019, p. 219). O conteúdo do sonho sofre influência direta das</p><p>vivências infantis.</p><p>TEMA 4 – RECALQUE E REPRESSÃO</p><p>Segundo Freud (1917,) o recalque é a pedra angular da teoria</p><p>psicanalítica.</p><p>Como nasceu o conceito do recalque? Quando Freud começou a tratar</p><p>os neuróticos, ele apostou que existia uma lembrança traumática esquecida</p><p>pelo sujeito. Essa lembrança se tornou causa do adoecimento neurótico.</p><p>A representação está ligada à lembrança, implica um desejo</p><p>inconsciente e se torna incompatível pela intensidade que ele carrega e a</p><p>direção que ele toma, criando-se o trauma. Ele se defende da experiência com</p><p>o recalque.</p><p>A repressão não impede a representação de o instinto prosseguir</p><p>existindo no inconsciente, de continuar se organizando, formando</p><p>derivados e estabelecendo conexão. Na realidade, a repressão</p><p>perturba apenas a relação com um sistema psíquico, o do</p><p>inconsciente. (Freud, 1917, p. 87)</p><p>O analista estimula continuamente o paciente a reproduzir o material</p><p>reprimido (recalcado) por meio da associação livre, atos falhos, chistes,</p><p>10</p><p>sonhos, os quais, por causa da deformação, podem passar pela censura do</p><p>inconsciente. Mas aqui precisamos de muito cuidado, pois existe algum motivo</p><p>de a censura ter trabalhado sobre aquele desejo.</p><p>De modo geral não podemos dizer até onde tem que ir o</p><p>distanciamento e deformação do reprimido para que a resistência do</p><p>consciente seja removida. Aí recorre um sutil só pensamento, cuja</p><p>ação nos escapa, mas cujo efeito nos permite inferir que a questão é</p><p>parar antes que o investimento do inconsciente atinja uma</p><p>determinada intensidade, além da qual ele procederia rumo à</p><p>satisfação. (Freud, 1917, p. 89)</p><p>A lembrança recalcada faz o seu retorno por meio das formações do</p><p>inconsciente e das formações substitutivas. Sabemos igualmente que o</p><p>recalque deixa sintomas.</p><p>TEMA 5 – A FIGURAÇÃO DO SONHO</p><p>Garcia-Roza (2004) alerta que é difícil escapar de ver o sonho como um</p><p>simples resíduo do pensamento. Mas o sonho não tem a mesma potência</p><p>lógica que se encontra no pensamento consciente. O sonho é capaz de</p><p>transformar os pensamentos oníricos em atos.</p><p>O que está em jogo na consideração à figurabilidade é a seleção dos</p><p>pensamentos capazes de serem expressos em imagem, o que tem</p><p>como consequência um sacrifício das relações lógicas que são pura e</p><p>simplesmente eliminadas ou que são substituídas por relação entre</p><p>imagens que procuram traduzir, à sua maneira, essas relações</p><p>lógicas. (Garcia-Roza, 2004, p. 104)</p><p>O trabalho do sonho modifica pensamentos e palavras em imagem e</p><p>imagens sensoriais. Os pensamentos têm como fonte as impressões. Nesse</p><p>caminho se faz um triplo registro.</p><p>Primeiramente, num registro temporal, implicando um retorno a</p><p>estágios anteriores; segundo, num registro tópico, implicando uma</p><p>mudança de sistema psíquicos (do pré-consciente / consciente para o</p><p>inconsciente); finalmente, num registro formal, passando para o modo</p><p>de expressão de um nível inferior do ponto de vista da complexidade.</p><p>(Garcia-Roza, 2004, p. 103)</p><p>A transformação de pensamento em imagem é realizada pelo trabalho</p><p>do sonho e o trabalho da interpretação é devolver a imagem ao discurso</p><p>simbólico.</p><p>Os conteúdos latentes têm como fonte dos sonhos as experiências da</p><p>infância, e isso vale para todos os humanos. Freud afirma:</p><p>11</p><p>Naturalmente minha coleção possui um rico estoque desse tipo de</p><p>sonho de pacientes, cuja análise nos leva a impressão da infância</p><p>obscura ou não mais lembrada, muitas vezes dos três primeiros anos</p><p>de vida. Mas não devemos tirar deles conclusões sobre o sonho em</p><p>geral, pois, em regra, trata-se de pessoas neuróticas, especialmente</p><p>histéricas, e o papel que cabe a essas cenas infantis nos sonhos</p><p>podem ser determinado pela natureza de neurose, não pela do</p><p>sonho. No entanto, na interpretação de meus próprios sonhos - que</p><p>realizo não por causa de sintomas patológicos graves – ,ocorre-me</p><p>com a mesma frequência que, inesperadamente, deparo com uma</p><p>cena infantil no conteúdo latente do sonho e que toda uma série de</p><p>sonhos desemboca em vias que partem de uma vivência da infância.</p><p>(Freud, 2019, p. 240-241)</p><p>Para encerrar, será apresentado um caso clínico do Freud, em que a</p><p>influência das experiências infantis fica muito evidente no sonho.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Uma paciente teve o seguinte sonho: ela está num quarto grande,</p><p>onde há vários tipos de máquinas, mais ou menos como ela imagina</p><p>uma oficina ortopédica. Ela fica sabendo que eu não tenho tempo e</p><p>que precisará fazer o tratamento com outros cinco ao mesmo tempo.</p><p>Ela se recusa, porém, e não quer deitar naquilo que parece ser a</p><p>cama que lhe foi atribuída. Ela fica num canto e espera e espera até</p><p>que eu diga que não é verdade. Entrementes, os outros riem dela,</p><p>dizem que está de brincadeira. – Ao mesmo tempo, é como se ela</p><p>estivesse desenhando muitos quadrados pequenos. (Freud, 2019, p.</p><p>236)</p><p>Análise do sonho:</p><p>A primeira parte do conteúdo do sonho se liga ao tratamento e à</p><p>transferência amorosa para Freud. A imagem da cama com grades ao lado e o</p><p>berço fazem referência a uma cena infantil. O conteúdo da oficina ortopédica</p><p>remete a uma palestra de Freud e compara o tratamento analítico a um</p><p>procedimento ortopédico.</p><p>No início do tratamento, Freud informa à paciente que terá pouco tempo</p><p>para ela, mas que, depois, dedicaria uma hora inteira a ela. Nesse ponto, Freud</p><p>consegue perceber que a fala dele despertou nela uma característica da</p><p>criança histérica. "Elas são insaciáveis em seu desejo de amor”.</p><p>O número cinco do sonho remete aos seus cinco irmãos, pois ela era a</p><p>caçula e a preferida do pai e, mesmo assim a atenção que o pai lhe oferecia</p><p>não era o suficiente.</p><p>A parte do sonho que ela espera que Freud lhe diga a verdade é</p><p>fundamentada na vivência em uma situação com o marido. Nesse caso, ele</p><p>debocha dela por questionar se o alfaiate pagar novamente, caso perdesse o</p><p>dinheiro que ela o entregou. Ele, ironicamente, responde que sim. Ela não</p><p>12</p><p>entende o deboche dele e lhe pergunta várias vezes, até que ele confirma que</p><p>não é verdade.</p><p>O conteúdo latente do sonho: ela teria que pagar o dobro se eu lhe</p><p>dedicasse o dobro de tempo? Freud nomeia o pensamento onírico como</p><p>avarento e sujo. Assim como a criança que molha a cama, a falta de higiene é</p><p>trocada pela avareza.</p><p>O ficar no canto e não querer se deitar é uma deformação onírica que</p><p>pode ser remetida à criança que permanece de castigo por sujar a cama, sob a</p><p>ameaça de que o pai não a amaria mais.</p><p>Os quadrados aludem à tarefa de matemática de sua sobrinha, que a</p><p>soma resulta em 15. Aqui, fica a possibilidade de Freud ter lhe oferecido 15</p><p>minutos de sessão.</p><p>FINALIZANDO</p><p>Como mencionamos anteriormente, o objetivo foi introduzir a primeira</p><p>tópica, desenvolvendo o conceito de inconsciente freudiano e todo o aparato do</p><p>aparelho psíquico, pois essa foi a grande descoberta de Freud. O</p><p>desenvolvimento do aparelho e seu funcionamento possibilita</p><p>entender a</p><p>formação do sonho.</p><p>Esperamos que tenham aproveitado até aqui para conhecer um pouco</p><p>mais sobre os sonhos e sua formação e convidamos a todos a continuar</p><p>acompanhando os conteúdos para saber como os nodais da psicanálise podem</p><p>ser trilhadas pelos caminhos dos sonhos.</p><p>13</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>FREUD, S. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Companhias das Letras,</p><p>2019.</p><p>GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Rio de</p><p>Janeiro: Jorge Zahar, 1995. v. 1, v. 2 e v. 3.</p><p>LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. 4. ed. São</p><p>Paulo: Martins Fontes, 2001.</p><p>Lima, A. P. O modelo estrutural de Freud e o cérebro: uma proposta de</p><p>integração entre a psicanálise e a neurofisiologia. São Paulo: Archives of Clinical</p><p>Psychiatry, Scielo, 2010</p><p>PLON, M.; ROUDINESCO, E. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro:</p><p>Zahar, 1998.</p>