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AVM – DOCÊNCIA NO ENSINO MÉDIO E FUNDAMENTAL TRABALHO DE CONCLUSÃO DO MÓDULO “FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO” ALUNA: MARIA DE FÁTIMA DELGADO LOPES MATR.: K222251 Descartes: O Racionalismo para um Novo Mundo Analisando toda a obra de Descartes e seu contexto histórico, tem-se a impressão de que ele partiu do mesmo lugar donde parou Montaigne, um pensador renascentista que colocou em dúvida tudo o que o Homem parecia saber até então. O ceticismo deste soava intolerável a Descartes. Se Montaigne empreendeu uma primeira luta contra a superstição e o preconceito, sem oferecer saída possível, Descartes retoma-a, levando-a até o fim, superando seu antecessor, procurando finalmente salvar esse Homem perdido. Com ele então, a dúvida será não só ultrapassada, mas utilizada como instrumento para a recuperação da certeza perdida. De que forma conseguirá isso? Transformando-a no método da Razão. A primeira grande obra de Descartes, as Regras para a Direção do Espírito, escrita após vários anos de viagens, experimentos e pensamentos, trará a primeira manifestação de certeza de seu autor: frente à multiplicidade dos estudos, das descobertas e das inovações científicas e à prolixidade das experiências que vão sendo alcançadas, o Homem deve manter-se íntegro para emitir “juízos sólidos e verdadeiros sobre tudo o que se lhe depara”[footnoteRef:1]. Assim é que na Regra I, ele deixa transparecer que todas as ciências são uma coisa só, ou seja, são a “Sabedoria Universal” de que o Homem tem conhecimento através de seu bom senso. Não deve haver a preocupação em aprendê-las todas em sua variedade, mas apreendê-las em sua unidade, atingir a verdade das coisas, com o Intelecto bem orientado. Não lhe importa ainda, como importava ao homem sem rumo, dar conta do todo infinito. Agora deseja uma modesta lógica que consiste em “lidar unicamente com aqueles objetos para cujo conhecimento certo e indubitável os nossos espíritos parecem ser suficientes.”[footnoteRef:2] Na Regra II, Descartes busca assim as certezas ínfimas, irredutíveis, noções simples por onde é preciso começar. Ele está lançando os fundamentos de uma ciência nova, que parte das ideias, das definições e não das coisas, dos sentidos e que segue a ordem do espírito, da razão e não a da matéria. Nesta rejeição de tudo o que é apenas provável e a confiança naquilo apenas de que não se pode duvidar, ele estabelece a primazia da Aritmética e da Geometria, como ciências simples, não sujeitas a erros, pois se ocupam daquilo que é puro, não corruptível pelos sentidos e não passível de dúvida entre quem se dispuser a estudá-las: “consistem inteiramente em consequências a deduzir racionalmente.”[footnoteRef:3] Essa dedução é o que Descartes classifica como uma via do conhecimento das coisas que não nos expõe aos erros dos sentidos, o que ocorre com a experiência. A dedução ou ilação pura de uma coisa a partir de outra é assim, certa e precisa porque “não erra”. Pode mesmo não ser feita, mas nunca “mal feita pelo entendimento ainda o menos racional.”[footnoteRef:4] Descartes acredita portanto, sobretudo na razão, no bom senso, que ele admite que é a coisa mais bem partilhada do mundo[footnoteRef:5]. E acredita também num mundo matemático, calculável como o mundo mecanicista, porque este não apresenta erros, à maneira dos cálculos aritméticos e algébricos. Não importa o que vemos, sentimos, tocamos, mais vale o que intuímos, à maneira dos axiomas matemáticos e que nos conduzem por uma dedução certa e precisa. Na Regra III, portanto, exclui qualquer forma de probabilidades, opiniões, suspeições. Intuição aqui não é desconfiança, pelo contrário, seu sentido em Descartes é o de clareza e evidência, verdade incontestável. Só há conhecimento e ciência a partir dela ou a partir daquilo que possamos deduzir com certeza. Ele menospreza a credulidade através da autoridade, da imitação da maioria, da possibilidade quase certa de hipóteses, que são vazias, desprovidas de verificação, pois não provém de um “conceito da mente pura e atenta, sem dúvida possível, que nasce apenas da luz da razão.”[footnoteRef:6] A intuição é direta e certeira, imprime nosso intelecto sem que tenha que passar pelos sentidos, é puramente intelectual e por que não dizer, espiritual, dada à orientação de inatismo que Descartes lhe confere, quando admite que foram na mente humana colocadas pela natureza antes que fossem “por nós abafadas, devido à leitura ou à audição quotidianas de tantos erros” Essa Natureza que nos pôs tais ideias é tão matematizável que permitiu que os homens chegassem “a conhecer as ideias verdadeiras da Filosofia e da Matemática, sem terem ainda podido alcançar perfeitamente estas mesmas ciências”[footnoteRef:7] A intuição não chega ao conhecimento, no entanto, sem o auxílio da dedução, que é a forma que Descartes encontra para dar continuidade ao movimento do pensamento: “eis o único modo de sabermos que o último elo de uma cadeia está ligado ao primeiro, mesmo que não aprendamos intuitivamente num só e mesmo olhar o conjunto dos elos intermédios, de que depende a ligação”[footnoteRef:8]; já que é impossível apreender tudo de uma só vez, a dedução se encarrega de avançar, é nisso em que difere da intuição, que é estática, evidência atual. Na dedução, o pensamento opera também pela memória. [1: Descartes, R.Regras para a Direção do Espírito, p.11, Edições 70, Lisboa, s/d.] [2: idem, p.14.] [3: idem, p.17] [4: idem, p.16] [5: Descartes, R. O Discurso do Método, p.29, Col. Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1991.] [6: Descartes, Regras, p.20] [7: idem, p.27] [8: idem, p.21] Na Regra IV, Descartes vai falar da ciência que propõe para o conhecimento de todas as outras, afinal: é a Mathesis Universalis. Esta engloba todas as outras e lhes é comum, fornece regras e o método da intuição e da dedução para alcançar a verdade em todas as ciências, conhecer-lhes a natureza, seus efeitos, calculá-las. Nesse momento, Descartes ainda está perpetuando o trabalho de Montaigne: por enquanto não construiu nada, apenas criticou e desmontou a física e a lógica aristotélicas. Àquelas que se baseavam nos dados dos sentidos, nas observações da natureza em sua variabilidade de formas, cores, qualidades, forças, Descartes vem opor a lógica das quantidades, das grandezas calculáveis, do movimento mecânico e uma física das ideias claras que elimina do real o dado sensível. Que mundo estranho será esse então, contraposto àquele mundo perfeito onde tudo tinha seu lugar? Descartes apenas coloca nesse mundo ”extensão e movimento”[footnoteRef:9], ou o que dá no mesmo, matéria e movimento. Matéria informe e infinita e movimento idem, sem finalidade, sem explicação. Às mentes cabem interpretá-lo, conhecê-lo, calculando-o. Continuamos na incerteza de nada ter seu lugar certo, de não haver centro nem orientação. Só há o intelecto, as certezas indubitáveis do espírito, não são necessários os sentidos se não há o que sentir, se tudo pode ser falso. Tudo está no espírito, nada mais fora dele. Porém, como Koiré explica, essa vitória do espírito é uma vitória trágica, que eliminou o homem e Deus[footnoteRef:10]. Como retorná-los será a tarefa que Descartes se proporá após mais um período de investigações e que culmina no Discurso do Método. [9: Koiré, op.cit., p.67] [10: idem, p.68] Esta obra que hoje conhecemos era, na verdade, o prefácio de um volume de ensaios científicos de Descartes, uma pequena introdução ao relato de experiências do autor. Se Descartes já tinha sua lógica e sua física, faltava-lhe arrematá-las com a solução da dúvida inicial: uma metafísica, necessária também para fundamentar as bases dessa nova ciência mecanicista e dessa lógica nova baseada na razão. Pressionado também por suas inquietações religiosas e políticas, Descartes se via chamado a responder a muitas objeções à sua obra que não viam esse lugar da razão limitado pela situação humana e divina. Um mundo que despreza os sentidos, cujas imagens e influências nos afastam da verdade e nos fazem cairem erro precisa urgentemente de uma metafísica que o explique, pois é um mundo separado da realidade. Ao contrário do mundo aristotélico, das percepções e dos sentidos do senso comum, que acaba por pressupor uma metafísica das qualidades, do humano e do divino, a física cartesiana só pode se erigir embasando-se primeiramente numa metafísica. Por isso, embora tardiamente em sua obra, Descartes desfere o golpe certeiro em todo o ceticismo, quando, explicando a primazia do espírito, chegou à sua primeira verdade: eu penso. Esse espírito que há, que é razão, iluminação que tem intuições, ou mesmo que seja enganado pelos sentidos, é alguma ação que só se dá porque alguém aí está ou para pensar ou para se enganar: eu. Logo, se eu penso, eu existo. Portanto, penso e sou, ainda que seja razão, intelecto, espírito somente, porém já penso, duvido, me engano. Se isso acontece, sou imperfeito e finito e tenho consciência disso, pois cheguei a admitir que posso duvidar e me enganar. Portanto, como ter ideia da imperfeição e da finitude se não tivesse antes da perfeição e da infinitude, de um Ser infinitamente perfeito, ou seja, de Deus? Logo, chegamos a um ponto definitivo: não preciso ser matéria, ou ter algum sentido no mundo, mas apenas um ser que pensa, que tem uma idéia clara de si e de Deus. A partir daí, vai esboçando o mundo, traçando-o dedutivamente lugar por lugar, ser por ser, cujas ideias colocadas em mim por um ser perfeito, não podem ser falsas, devem verdadeiramente existir. Portanto, voltam todas as minhas certezas, a começar pela minha própria: eu sou e sou um ser que pensa, sou razão, sou intelecto. No dizer de Koiré: “o fato de eu ter podido compreender-me no meu ser e na minha essência sem nada conhecer ainda do mundo-extensão, demonstra-me que o meu eu, ou a minha alma, não depende do mundo-extensão. Não sou extenso em mim mesmo. Tenho um corpo, mas não sou um corpo.”[footnoteRef:11] [11: idem, p.90] Nas Meditações, Descartes explicitará toda essa divisão alma-corpo que coloca com a dedução de todas as coisas do mundo a partir das ideias de meu intelecto. Resolve assim, plenamente o problema das superstições, do pensamento mágico que dominava o Renascimento; a matéria agora é inerte, desprovida de sentimento, de alma, de qualidades, de forças ocultas. O poder da alma de pensar, se significar, reside no divino, que é perfeição e foi somente concedido aos espíritos humanos. Mesmo o corpo humano é máquina, assim como o dos animais, sendo que estes são desprovidos de alma. Separa-se totalmente a física da metafísica, que explica e justifica a primeira. O homem encontra seu lugar e está livre para se lançar ao cálculo da natureza, para conhecê-lo, pois só o que tem o divino, a alma, é seu próprio pensamento, por isso não corre mais o risco de ofender uma sagrada ordem universal da Natureza. Ela se lhe coloca para o conhecimento, a descoberta e o engrandecimento de seu espírito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: DESCARTES, R. O Discurso do Método, Col. Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1991 _________ Regras para a Direção do Espírito. Edições 70, Lisboa, s/d KOIRÉ, A. Considerações sobre Descartes, Editorial Presença, Lisboa, 1986.