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SOCIOLOGIA, EXTENSÃO E COMUNICAÇÃO RURAL AULA 3 Prof. Alexsandro Ribeiro 2 CONVERSA INICIAL Como escreveu o poeta inglês John Donne, nenhum homem é uma ilha. Vivemos em sociedade, e a sociedade é reproduzida em função dos nossos costumes, das nossas línguas e da forma como pensamos. O indivíduo precisa se organizar com outros indivíduos e formar um coletivo. O campo, como espaço de vivência, de tradição e de identidades, é um espaço de agrupamentos e de união por excelência. O meio rural, no imaginário popular, é um espaço de vivência em comunidade, seja entre os indivíduos que atuam em uma mesma fazenda ou em áreas de grande porte, seja pela comunidade que se consolida nas pequenas cidades, que tendem a fortalecer os laços sociais. De forma mais burocratizada ou mais orgânica, percebemos no meio rural a importância da organização tanto como forma de perpetuar a cultura, como também uma forma de atuar socialmente. Nesta etapa, vamos abordar algumas dessas formas de agrupamento predominantes no campo. Confira a seguir os temas que abordaremos: • Cenário organizacional comunitário; • Associativismo; • Cooperativismo; • Movimentos sociais no campo; • Movimento sindical rural. TEMA 1 – CENÁRIO ORGANIZACIONAL COMUNITÁRIO À exceção de grandes produtores, a história da agricultura no país é resultante de um processo de associativismo e de colaborativismo em comunidade. A vida no campo estabelece determinadas características culturais e sociais que pressionam para uma identidade específica, distinta daquela urbana. E isso, a considerar alguns teóricos, caracteriza as linhas de definição de comunidade. Mas para isso, vamos nos aprofundar em alguns conceitos sociológicos sobre o tema. Lembra do Durkheim, um dos pais da sociologia? Pois bem, ele certamente pode nos ajudar a iniciar o debate com a análise sobre o indivíduo e a sociedade. A forma de organização social está relacionada às dinâmicas dos indivíduos e suas conexões com os demais partícipes da sociedade. Durkheim 3 (1999) vai observar muito essas relações de solidariedade entre estes indivíduos, levando em consideração suas lógicas e percepções de pertencimento a grupos, e à identidade dos seus locais dentro de uma sociedade. Na sua obra, podemos destacar que fica bem evidente quando ele se debruça sobre a divisão social do trabalho, que é uma forma de analisar a conexão entre os indivíduos, e como estes vivem em sociedade. Para o sociólogo, na medida em que temos uma menor divisão de trabalho, maior será o grau de coesão social, ou seja, de vínculo entre esses indivíduos. Ou seja, nas sociedades mecânicas, a coesão social é maior, na medida em que os indivíduos percebem os laços sociais mais fortes, bem como o seu papel dentro de uma dinâmica mais engessada. Esse é um aspecto que fica evidente quando olhamos a sociedade rural predominante ao longo dos séculos no Brasil, cujo poder da tradição é forte, e a vida em comunidade (religiosa, familiar etc.) é essencial para a manutenção do status social. Na sociedade orgânica, essa coesão fica mais difusa e precisa ser reforçada com base em estratégias sociais, por ação de instituições, como é o caso da Previdência Social, que atua nessa perspectiva de laços sociais, em que cada indivíduo contribui para o funcionamento do sistema para os beneficiários da atualidade, e conta com as contribuições dos futuros usuários do sistema para recebimento dos benefícios lá na frente. Essa lógica dos laços e vínculos da previdência ingressam no conceito de laços de participação orgânica (Paugam, 2018), em que a segurança dos indivíduos está em jogo no processo social. A comunidade ingressa nessa perspectiva de coesão social, sendo que seu conceito pode estar vinculado a duas perspectivas: a de vínculos pela localidade; e a de vínculos sociais por perfil e interesses. Para Silva e Hespanhol (2016), a comunidade por localidade é aquela em que não se percebe uma dinâmica de relações de proximidade entre os indivíduos, ou ainda de alinhamento de perfis de interesses e demandas. Nesse aspecto, uma comunidade rural estaria consolidada no compartilhamento do espaço, sem que as pessoas que integram essa comunidade se conheçam (podendo ainda estabelecer uma relação de inimizade). Assim, neste viés de uma comunidade resumida pelo compartilhamento de espaço, as pessoas “que abrangem uma determinada comunidade rural podem ser muito diferentes em suas características e bastante individualistas em muitas de suas atividades” (Silva e Hespanhol, 2016). 4 Já na perspectiva de comunidade que leve em conta as afinidades (que é a vertente mais aplicada), as dinâmicas de intencionalidade e de relacionamento são fundamentais. Assim, temos várias comunidades que vão se organizando com base em tipos distintos de conexão ou de laços. Uma delas é a familiar, que pode ser identificada pelos laços de consanguinidade, ou ainda de vínculo de parentesco. Ferdinand Tönnies (1947) aponta três gêneros de organização de comunidades. Uma delas, indicada acima, é a família pelo gênero do parentesco, que se consolida com base em laços de sangue e de vínculo familiar. O segundo dialoga com a perspectiva anterior que indicávamos relativas ao espaço. Ou seja, é o gênero de vizinhança, cujos laços não precisam necessariamente consolidar afinidades. E o terceiro gênero é o da amizade, preponderante nos laços relativos ao comportamento, às escolhas do indivíduo em termos de vínculos sociais. Para Silva e Hespanhol (2016), podemos perceber a conjunção das três perspectivas para observar a comunidade no meio rural, “sendo mais significativo o sentimento de pertencimento ao território e as relações de reciprocidades, em virtude de se vivenciar, de maneira mais intensa, os mesmos costumes, tradições e crenças”. Assim, se o mundo urbano se organiza pela diferença, que caracteriza a individualidade, e também pelo estado de mutação constante, o espaço rural, por sua vez, se caracteriza por elementos opostos, tradições, costumes clássicos e concretos, bem como o vínculo ao local, ou seja, isso que Silva e Hespanhol (2016) destacaram como sentimento de pertença e identidade territorial e à comunidade. Para cada tipo de pertença a uma comunidade, podemos destacar formas distintas de participação. Com base em uma categorização indicada por Silva e Hespanhol (2016), podemos identificar ao menos oito formas de participação de comunidades. A primeira é pela participação individual ou familiar, que de forma reativa atua na sociedade cumprindo obrigações estabelecidas pelo poder público. Um segundo tipo de participação é o social, pela qual, de forma também reativa, o indivíduo pode atuar em função de reivindicações coletivas. Uma terceira é a forma de participação social organizada. Um pouco similar à participação social, esta se diferencia pela forma de reivindicação, com caráter conjuntural para um caráter estrutural, e com medida proativa. A participação comunitária pode ser reativa ou proativa, e com base nela o indivíduo desempenha ação em função dos agrupamentos estabelecidos por tipos distintos de vínculos territoriais ou sociais, e busca a defesa ou 5 representação de interesses dos membros deste mesmo grupo. Silva e Hespanhol (2016) ainda destacam a participação institucional, que, de forma reativa, desempenha ação não vinculada diretamente à sociedade, mas entre instituições, como consultas e convocações. Os indivíduos, tendo em vista a institucionalização dos seus laços sociais, podem também desempenhar participação de forma reativa pelo tipo organizada da sociedade civil. Nesse tipo de participação, o grupo social é coeso na medida em que compartilha interesses e intencionalidades, uma vez que institucionaliza a sua conexão em comunidade em funçãode um grupo, e muitas vezes em função da burocracia estatal (como associações, Ongs etc.). Uma outra forma de participação é a política, em que, de forma proativa, o indivíduo desempenha papel dentro do cenário político institucional. Por fim, Silva e Hespanhol (2016) destacam ainda a forma cívica ou cidadã, pela qual o indivíduo atua de forma proativa no cenário social e político e reivindica uma cidadania crítica junto às políticas públicas. TEMA 2 – ASSOCIATIVISMO Uma das formas de comunidade, como vimos no tópico anterior, é o associativismo, ou seja, o agrupamento de indivíduos organizados por propósitos comuns. Etimologicamente, o termo vem do latim associare, relativo ao ato de reunir-se ou juntar-se a colaboradores ou companheiros. O associativismo está vinculado à proposta de engrandecimento em conjunto, ou seja, a partir de todos os integrantes do grupo. Na sociedade rural, isso se dá na medida em que interesses e forças são reunidas para o bem comum dos membros de uma comunidade. Logicamente, não somente por conta das intenções, mas sim por meio de uma estrutura burocrática formal. Como afirma Damásio (2014, p. 8), nesta abordagem documental e institucional, o associativismo se relaciona “relacionado à utilização de métodos e técnicas específicas de trabalho capazes de estimular a confiança, exercitar a ajuda mútua entre os participantes, estimular a parceria, fortalecer o capital humano, melhorar a qualidade de vida”. De forma ainda mais definida, o Senar (2019) especifica a associação formalizada como uma organização de direito privado, cujo patrimônio é consolidado pelos próprios integrantes da associação ou ainda auxiliados por doações etc. Reforça ainda a finalidade não lucrativa, ou seja, sem fins econômicos, ao menos lucrativos aos integrantes. 6 Os aspectos legais da forma de organização em associações constam no Código Civil brasileiro (Brasil, 2002), e dentre as características e princípios que circulam nas associações, podemos destacar a adesão voluntária e livre dos seus membros, a possibilidade da gestão democrática e participação econômica dos seus sócios, a independência governamental, a possibilidade de estabelecer um espaço de interação, que seja organizada em função de interesses comuns, e que seja sem fins lucrativos (Senar, 2019, p. 32). Já os objetivos de uma associação dialogam em parte com seus princípios. Se temos uma participação voluntária, um patrimônio que é social e uma postura de benefício mútuo entre os seus integrantes, logicamente que a proposta seria de finalidade a fortalecer a ligação entre seus membros, a depender da finalidade (mesmo que sem fins lucrativos), pode auxiliar no fortalecimento dos integrantes junto ao mercado (e aqui podemos pensar nas associações que representam os produtores e que dialogam com o mercado ou demais instituições de sociedade para benefício dos seus membros). Como uma entidade que agrupa forças dos indivíduos, também pode atuar de forma a pressionar o setor econômico para benefícios que permitam redução de custos, como valores de investimento para seus membros, ou ainda projetos de incentivo à inovação. Dessa forma, percebe-se que o fortalecimento dos indivíduos com base na coletividade é a principal proposta de uma associação, que permite a ampliação das forças e da voz na pressão por direitos, pelos interesses internos e pela representatividade diante da esfera pública. Assim, pela perspectiva do cenário rural, a integração em uma sociedade é uma “escolha consciente de buscar caminhos próprios que atendam suas necessidades, interesses e objetivos comuns” (Senar, 2011, p. 8). Conforme destaca Beserra (2011), as associações no meio rural tendem a se consolidar como uma forma de independências aos produtores, sobretudo diante de um cenário de concentração de terras e de oligopolização na agropecuária, em que grandes conglomerados de empresas ou grandes latifundiários concentram não apenas grande parcela do mercado, mas também reduzem a competitividade dos pequenos produtores. É importante reforçar que a associação não é excludente a outras formas de organização social ou institucional. Ou seja, no meio rural, é um dos canais de agregação social que tendem a coexistir com outras dimensões associativas 7 com a “função de socialização, participação e representação e cujos objetivos estão diretamente relacionados à satisfação das necessidades sociais numa dada realidade local” (Beserra, 2011, p.42). A questão central é que a associação permite o engajamento do produtor levando em conta a identidade de comunidade com outros associados para atuação no seu espaço ou ainda para representatividade social em função de interesses privados, como é o caso de associações que atuam na defesa dos interesses de produtores frente ao cenário econômico ou ainda política, com aprovações de legislações que beneficiem os produtores. Retomando as orientações da legislação nacional, a associação, portanto, tende a ser orientada levando-se em conta a representatividade (ou seja, pela associação para interesse e defesa das pautas comuns) ou ainda para a relação de defesa destes interesses, sem gerar atividades econômicas diretas. Diferente de outros tipos de organizações burocráticas, as associações não têm um número específico para instituição. Contudo, recomenda-se que seja formada por ao menos dez integrantes distintos para garantir representatividade, e a ocupação de cargos eletivos como diretoria e conselho fiscal (Kassaoka, 2017). Um número maior garante ainda uma possibilidade de revitalização desses cargos eletivos sem repetição de membros. Baseando-se no pressuposto de que os integrantes atuam de forma comum e representando os interesses mútuos, uma das abordagens estruturais é que as associações sejam passíveis de autogestão. Nesse aspecto, a gestão deve ser igualitária, inclusiva e permitir a transparência e fiscalização dos integrantes, sobretudo pela soberania das assembleias gerais. Dessa forma, a autogestão é democrática, não apresenta níveis de hierarquia (um voto tem o mesmo valor que outro) e autoridade, sendo não “baseada não em decisões individuais ou de um grupo fechado, mas por meio de tomada de decisões coletivas, uma vez que todos os seus integrantes possuem direitos iguais, como votar e ser votado” (Kassaoka, 2017). Pensando na sua administração coletiva e inclusiva, a estrutura de uma associação pressupõe ao menos três instâncias ou órgãos (Kassaoka, 2017). A primeira (e soberana) é a assembleia geral, que é o órgão de deliberação e de decisão da associação. Por meio dela, todos os indivíduos que integram a associação, e que estejam em dia com as obrigações estatutárias, podem atuar de forma igualitária e operar voz e voto, a partir do princípio democrático. A 8 segunda instância é a da diretoria, definida a partir da assembleia entre os membros. A diretoria pode desempenhar funções administrativas e de orientação das ações definidas a partir das assembleias. Por fim, temos o conselho fiscal, que é um órgão que atua de forma a acompanhar as atividades da diretoria, e de apresentar seus relatórios de fiscalização das atividades e dos recursos à assembleia. TEMA 3 – COOPERATIVISMO Mais que a associação, a cooperativa consolidou-se como a principal ferramenta de atuação comercial dos pequenos, médios e até grandes produtores. Só para se ter a ideia do tamanho e a força das cooperativas no setor agropecuário, uma lista das cem maiores empresas do setor tem nada menos que 20 cooperativas, algumas delas, com a Coamo, cooperativa de grãos e outros produtos, com receita de R$ 18,6 bilhões em 2021 (Gioia, 2022). Dados do cooperativismo brasileiro, organizado pelo Sistema Organização das Cooperativas Brasileiras, indica que em 2021 o país contava com 1,1 mil cooperativas no ramoagropecuário, reunindo no total mais de um milhão de cooperados, e fomentando cerca de 240 mil empregos, e reunindo R$ 230 bilhões em ativos. Uma cooperativa pode atuar em mais de um segmento dentro do ramo. Considerando isso, o anuário destaca que o “o mais comum é o de insumos e bens de fornecimento em que 65% das instituições exercem suas atividades. Seguido pelos produtos não industrializados de origem vegetal (58%) e pelos produtos não industrializados de origem animal (34%)” (Coop, 2022). Se no associativismo a lógica era o aglutinamento de pessoas para fins comuns, sem pensar nas questões financeiras, e percebendo a paridade de participação, na cooperativa essa proposta se ajusta para outras finalidades. Assim, a lógica da união das forças é para benefício direto, e na maioria dos casos, pecuniário. Dessa forma, o foco é a inclusão dos produtos “e serviços de seus cooperados no mercado, em condições mais vantajosas do que eles teriam isoladamente. Desse modo, a cooperativa pode ser entendida como uma “empresa” que presta serviços aos seus cooperados” (Cardoso, 2014, p.11). Um mercado que seja mais atraente em diversos aspectos é o que se busca na cooperativa. Reunir esforços para alcançar melhores mercados, menores custos de insumos, conseguir recursos para equipamentos para beneficiamento de produtos e aumento dos lucros, dentre outras propostas. Isso, claro, 9 considerando o setor agropecuário. Mas é importante destacar que a cooperativa não é apenas para o mercado agro, mas engloba várias outras finalidades. Ainda podemos encontrar cooperativas de consumo, que são os grupos de consumidores que se agregam a uma instituição para compras coletivas com maiores descontos. Existem as cooperativas de habitação, que permitem reunião de pessoas ou instituições para aquisição de materiais com melhores preços, e também acesso a linhas de créditos; podemos destacar ainda as cooperativas de créditos, que oferecem empréstimos e linhas de acesso a financiamento com juros menores, uma vez que o foco é o cooperado, e não o lucro de acionistas etc. O mesmo Código Civil que orienta as formas burocráticas do associativismo também delimita as regras das cooperativas, estabelecendo critérios como distribuição de resultados de forma proporcional ao grau ou investimento dos cooperados, capacidade de reunir produtores ou pessoas com capacidade produtiva e com demandas distintas (na associação, há um maior alinhamento em termos de perfil). De forma mais específica, uma outra lei aprofunda as regras e características de funcionamento das cooperativas no país. Sancionada em 1971, a Lei n. 5.764 define a Política Nacional de Cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas. Em seu art. 6º, a lei categoria as sociedades cooperativas em três ordens. A primeira são as cooperativas singulares, que são aquelas que reúnem ao menos 20 pessoas físicas na mesma atividade econômica. A segunda são as cooperativas centrais ou federações de cooperativas, que são resultantes da reunião de três cooperativas singulares, e com isso pode ampliar a abrangência e espaço de atuação. E por fim, dentre o tripé da tipificação, ainda existem as confederações de cooperativas, que são formadas no mínimo por três federações, podendo agregar as mesmas ou diferentes modalidades (Brasil, 1971). As cooperativas rurais, portanto, reúnem “produtores rurais ou agropastoris e de pesca, que trabalham de forma solidária na realização das várias etapas da cadeia produtiva” (Cardoso, 2014, p. 15) que vai desde a parte inicial do planejamento até a destinação da produção. A compra de sementes e demais insumos para a colheita, as estruturas de armazenamento e de maquinário de processamento; as estruturas e demais sistemas de 10 industrialização; os custos e os equipamentos para processamento e registros; bem como a venda para o mercado estão entre as atividades desenvolvidas pela cooperativa. Segundo a Senar (2019), dentre as vantagens de ser cooperado está o fato de que o cooperado é dono da cooperativa, a gestão se mantém democrática, da mesma forma como nas associações, as cooperativas permitem uma amplificação das vendas, e permite também melhores condições diante da comunidade produtiva. Outro aspecto é que podem ingressar não apenas pessoas físicas, mas também pessoas jurídicas; assim, empresas podem ser cooperadas. TEMA 4 – MOVIMENTO SOCIAL RURAL Para além das associações e cooperativas, uma forma de organização com potencial aglutinador e de defesa de bandeiras sociais são os movimentos sociais rurais. Diferente das outras duas formas de agrupamento que indicamos anteriormente, os movimentos sociais se distanciam por vários aspectos relativos à sua estrutura burocrática (ou não burocrática), pelos objetivos centrais, e pela sua durabilidade. É fundamental localizar que os movimentos sociais no Brasil, de uma forma geral, são fenômenos sociais identificados ao longo do século XX, com maior incidência nas últimas décadas do século, sobretudo fomentados pelos movimentos em defesa da redemocratização, como o movimento pelas Diretas Já. Mas e o que são movimentos sociais? Segundo Maria da Glória Gohn (1997), são “ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários de conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo político de força social na sociedade civil”. Como uma forma de termômetro da sociedade, os movimentos sociais indicam as demandas que estavam em latência, e que assumem papel de engajamento e de mobilização de uma parcela da população. Assim, podem ser instrumentos de orientação de políticas públicas. Assim, na atualidade, “apresentam um ideário civilizatório que coloca como horizonte a construção de uma sociedade democrática” (Gohn, 2011). No caso rural, as demandas passaram ao largo das ações do Estado, sobretudo considerando uma das 11 principais bandeiras da maior parte dos movimentos sociais, o da reforma agrária. O que caracteriza um movimento social rural é a sua pauta focada no cenário do espaço do campo, com impacto na cultura e desenvolvimento econômico e social no espaço rural. Observando o ambiente rural ao longo do século XX, Mocelin (2018) aponta duas organizações rurais com forte atuação nas décadas de 1950 e 1960 como fundamentais para o marco histórico das lutas sociais no campo. Uma delas já indicamos anteriormente, que são as Ligas Camponesas, vinculadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). A outra é a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). As duas surgem dentro de grupos políticos de esquerda. Nesta primeira etapa do movimento no campo no século passado, além da reforma agrária, destacava-se como bandeira a busca por representatividade institucional dos trabalhadores do campo, com garantia de legislação ou direitos que representassem a segurança dos trabalhadores do campo. Vale destacar que até a constituição do sistema sindical dividido entre entidades de representação dos trabalhadores distintamente das que representavam os patrões, os sindicados em alguns setores eram mistos, ou seja, defendiam apenas os interesses das elites que dominavam as instituições (Rossi, 2013). Assim, como fortalecimento das instituições sindicais do campo, as pautas foram se expandindo não apenas para os produtores independentes, mas também pela luta dos direitos dos trabalhadores assalariados da área rural. Também focado nos pequenos produtores, na agricultura familiar e na luta pela terra, destaca-se a participação das pastorais e da Igreja Católica, sobretudo ao longo da Ditadura Militar. O fortalecimento de movimentos civis contra a repressão militar e pela liberdade na década de 1970, e o consequente enfraquecimentodo governo da Ditadura Militar fomentariam o aumento de entidades que aglutinariam as vozes do campo por políticas públicas e por terra. É a partir desta década, com a revitalização da esfera pública e a participação popular nos debates nacionais, que surgem as principais organizações sociais do campo, começando pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que surge como resultado dos movimentos de base da igreja. A CPT foi fundada em um encontro da Comissão Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em Goiânia, em 1975, e surge como resposta ao quadro de fragilidade social que os trabalhadores do campo vivenciavam à época, 12 sobretudo na região amazônica, com trabalho análogo à escravidão, e expulsão das terras por parte de grileiros. Saiba mais CPT – Comissão Pastoral da Terra. Massacres no campo. CPT, S.d., Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2023. Recentralizando a pauta da Reforma agrária, em 1984 (em meio à criação do Partido dos Trabalhadores e a retomada dos partidos de esquerda), surge em quase todos os estados brasileiros o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O movimento surge com a pauta da reforma agrária como condicionante para a democracia, e se organiza a partir do tripé: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária, lutar por uma sociedade mais justa e fraterna. Como um movimento social, foi ajustando as bandeiras e pautas, ampliando as temáticas da inclusão do campo para a educação, para as pautas identitárias e de gênero, dentre outras. Saiba mais MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Disponível em: . Acesso em: 21 jun. 2023. Para Mocelin (2018), observando não apenas o surgimento e início da atuação do MST, mas percebendo as quase cinco décadas de atuação do movimento social, sobretudo diante dos governos petistas do início do milênio, é possível perceber uma dupla constatação desse histórico, que se constitui em um paradoxo. De um lado, percebe-se a fundamental importância do movimento como um agende de articulação dos trabalhadores do campo, buscando evidenciar a forma como uma parcela da população rural vive à margem da atenção política e social. Por outro lado, reforça Mocelin (2018), como uma organização política, “não apresenta uma solução em relação aos mecanismos de tomada de decisão das agências estatais. Na prática, sua ação acaba por eleger como interlocutor o Estado, sem criar alternativas de gestão pública”. Apesar de aglutinar a maior parte das atenções quando o assunto é a pauta do campo, o MST não resume as pautas e movimentos do campo. Podemos ainda destacar na atualidade os movimentos pela agricultura familiar e pelo fortalecimento de políticas de benefício para pequenos produtores; movimento pelas mulheres no campo, que busca evidenciar o papel das 13 mulheres e sua centralidade para a produção rural; o movimento dos trabalhadores e moradores da área rural em locais atingidos pelas inundações de áreas decorrentes das formações de barragens, em grande parte para a construção de usinas hidrelétricas, ou seja, o Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), dentre outros. TEMA 5 – MOVIMENTO SINDICAL RURAL Se a reforma agrária encontra nos movimentos sociais como o MST uma arena de representatividade, se os produtores rurais encontram nas associações e cooperativas organizações burocráticas para organizar e potencializar suas demandas e participação no mercado para fins lucrativos, os trabalhadores assalariados ou produtores de subsistências encontram no meio sindical uma forma de terem suas pautas e vozes representadas socialmente. De forma geral, da mesma forma como os movimentos sociais, o movimento sindical surge no Brasil de forma mais consolidada ao longo do século XX, sobretudo no momento de redemocratização. Podemos categorizar o movimento sindical levando em conta algumas etapas temporais, vinculadas ao cenário de avanço social e econômico nacional (Ribeiro, 2016). A primeira etapa é a do sindicalismo anarquista, em que ideias de mobilização por direitos são iniciados a partir de pequenos grupos ou a partir de focos de debates influenciados sobretudo pelos imigrantes europeus, como os italianos, já acostumados à mobilização no campo. Esse momento do sindicalismo está localizado no fim do século XIX e início do século XX, quando o fomento à industrialização pressiona para a urbanização e criação de algumas fábricas no país. Aqui temos a constituição da figura do operário, que de forma assalariada atua no meio urbano. Organizados, este operariado começa a constituir o movimento sindical no país. Logo, sob influência dos partidos de esquerda formados sob a esteira da Revolução Russa, no início do século passado, entramos no quadro do movimento sindical partidário (Ribeiro, 2016). Na década de 1930, o governo varguista daria início a uma política de institucionalização das entidades sindicais. Isso se consolidaria em mecanismos que controle dos movimentos dos trabalhadores, que promoveu uma despolitização dos sindicatos, tornando-os redutos de pressão do estado, ou seja, como organizações cooptadas pelo governo. Neste momento temos a etapa de repressão do movimento sindical, que vai se fortalecer a partir do 14 controle da Ditadura Militar, com a perseguição aos militantes comunistas e coibir toda forma de manifestação contrária ao governo. Com a fragilização do governo ditatorial, o movimento sindical se reorganizará em um Novo Sindicalismo, que se consolida pela expansão e profissionalização dos sindicatos, sobretudo a partir dos grandes movimentos grevistas do ABC Paulista na década de 1970. Apesar do histórico de lutas pelos trabalhadores ser desde o começo do século passado, no meio rural, podemos demarcar a partir do Novo Sindicalismo as formas de organizações sindicais mais fortes no campo. Isso pelo quadro de modernização da agricultura no país. O fomento à mecanização e o uso intensivo de defensivos e insumos modernos no campo acentuaram a centralização dos latifundiários e a redução das áreas e participação dos pequenos produtores no mercado. Isso se dá tanto pela dificuldade em se tornar competitivo no mercado, quanto pela pressão para a compra das pequenas áreas para agrupamento às grandes áreas produtivas. É importante destacar que isso não apenas acentuou o êxodo rural, como também subverteu os pequenos produtores em um mercado que deita as regras do que deve ser produzido e a partir de um ritmo acelerado de produção. Segundo Figueiredo (1984), essa tecnificação ocasionou a “subordinação do pequeno produtor à agroindústria ou cooperativa, levando à perda da autonomia do produtor e à sua definição como um quase-proletário”. É neste momento de modernização que temos a consolidação do movimento sindical rural, sobretudo organizados a partir da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Com pautas que dialogam com as defesas dos principais movimentos sociais do campo, a estrutura sindical rural tende a perder sua visibilidade em âmbito nacional, atuando ou em parceria com os movimentos, ou de forma pontual, em negociações de acordos e convenções coletivas com as entidades sindicais patronais para setores específicos. FINALIZANDO No meio rural, a lógica de que a união é representativa encontra eco na história brasileira. Desde pequenos grupos de interesses reunidos em associações como forma de organização social local, até grandes cooperativas com receitas bilionárias e atuação forte no mercado internacional, as formas de organização rurais estão presentes na vida do campo em várias camadas da vida social. Fundamental é perceber como cada entidade está relacionada à sua finalidade, e como cada uma delas colabora para consolidação do meio rural. 15 REFERÊNCIASBESERRA, M. 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