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O livro de Oscar Cirino oferece a oportunidade
de refletir sobre as razões e as conseqüências da
mutação histórica no estatuto da infância e de
avaliar todos os seus paradoxos, principalmente,
na sociedade brasileira.
Ao ler esta obra, rica de referências bibliográfi-
cas, pareceu-me que a difusão da psicanálise foi
um elemento que, sem dúvida, contribuiu para
essa mudança de perspectiva sobre a época da in-
fância. Certamente, não mais olhamos as crianças
da mesma maneira a partir do momento em que
fazemos uma análise.
Há aí, entretanto, um ligeiro mal-entendido:
uma vez que a psicanálise do adulto não nos ensi-
na nada sobre a infância; o que ela permite é cons-
truir o infantil que constitui o núcleo da neurose.
Bernard Nominé
Psicanálise
e
Psiquiatria
com
crianças
–
desenvolvim
ento
ou
estrutura
O
scar
C
irino
Psicanálise e Psiquiatria com
crianças: desenvolvimento ou estru-
tura é, antes de tudo, um livro im-
prescindível para os que se dedi-
cam ao trabalho com crianças,
quer pela intensidade da experiên-
cia que Oscar Cirino transmite ao
leitor, quer pelo fino trato de
questões que atravessam a prática
com criança nos diversos campos
do saber. Visitando a filosofia, a
educação, o campo psicossocial,
jurídico, a psiquiatria, com o ri-
gor de pesquisador exigente e
com a escuta de psicanalista ex-
periente, o autor possibilita um
percurso por temas e problemas
que estão sempre na ordem do
dia quando se trata de crianças.
Orientado por perguntas nas-
cidas de sua prática e de sua cons-
tante interlocução com diferentes
profissionais; Oscar Cirino vai te-
cendo o texto com habilidade e in-
teligência notáveis. As transfor-
mações socioculturais do século
XXI produzirão mudanças no es-
tatuto da infância? Essas mudan-
ças implicariam no seu próprio
desaparecimento? Do que são res-
ponsáveis as crianças? Psicana-
listas concordam com a idéia de
um desenvolvimento psíquico? A
oposição de Lacan aos conceitos
de desenvolvimento e evolução
implicaria na negação do tempo?
Discutindo desvios, Oscar re-
tifica questões cruciais como a
concepção de que a psicanálise se
constituiria em um tratamento
onde se faria uma pesquisa histó-
rica de acontecimentos passados –
sendo o analisante levado a lem-
brar-se e a falar da infância – sus-
tentando que a psicanálise não é
uma teoria sobre a infância, mas
sobre o inconsciente e o gozo.
Tânia Ferreira
9 7 8 8 5 7 5 2 6 0 3 6 4
ISBN 978-85-7526-036-4
www.autenticaeditora.com.br
0800 2831322
Psicanálise
crianças
Oscar Cirino
e Psiquiatria com
desenvolvimento
ou estrutura
Oscar Cirino nasceu em São
Paulo (SP) e formou-se em Filosofia
pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), e em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Mestre em Filosofia
pela UFMG, é psicanalista, exer-
cendo clínica com crianças há vinte
anos, sendo que, durante dezessete,
trabalhou em uma instituição públi-
ca de assistência à saúde mental de
crianças e adolescentes - Centro Psi-
copedagógico da Fundação Hospita-
lar do Estado de Minas Gerais - onde
foi preceptor da Residência em Psi-
quiatria da Infância e Adolescência,
no período de 1992 a 1998.
Atualmente é professor do Curso
de Especialização em Saúde Mental
da Escola de Saúde de Minas Gerais
e coordenador do Curso de Especia-
lização em Saúde Mental-Clínica do
Unicentro Newton Paiva. É tam-
bém coordenador do Núcleo de Ensi-
no e Pesquisa do Centro Mineiro de
Toxicomania.
Foi co-editor da Revista de Psi-
quiatria e Psicanálise com Crianças
& Adolescentes e é co-autor e co-
organizador de Psicóticos e ado-
lescentes: por que se drogam
tanto? (2000).
residência em psiquiatria
CPP - FHEMIG
Infância e Adolescência
S˝LVIA RIVERES
Psicanálise e Psiquiatria com crianças
Desenvolvimento ou estrutura
Oscar Cirino
Belo Horizonte
2001
Psicanálise e Psiquiatria com crianças
Desenvolvimento ou estrutura
Capa
Jairo Alvarenga Fonseca
Editoração eletrônica
Waldênia Alvarenga Santos Ataide
Revisão de textos
Erick Ramalho
Editora responsável
Rejane Dias
2001
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja
por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica,
sem a autorização prévia da editora.
Autêntica Editora
Rua Januária, 437 – Floresta
31110-060 – Belo Horizonte – MG
PABX: (55 31) 3423 3022
Televendas 0800-2831322
www.autenticaeditora.com.br
e-mail: autentica@autenticaeditora.com.br
Copyright © 2001 by Oscar Cirino
C578p Cirino, Oscar
Psicanálise e Psiquiatria com crianças : desen-
volvimento ou estrutura/Oscar Cirino. – Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
160p.
ISBN 85-7526-024-3
1. Psicanálise. 2. Psiquiatria infantil. I. Título.
CDU
159.964.2
616.89 (053.2)
O que assim encontramos nada tem de microscópio,
tal como não há necessidade de instrumentos
especiais para reconhecer que a folha
tem os traços de estrutura da planta de que é destacada.
LACAN, Escritos, p. 627
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento,
o Coronel Aureliano Buendia havia de recordar aquela
tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.
GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
 Para
Marcella e Adriano
PPPPPREFÁCIOREFÁCIOREFÁCIOREFÁCIOREFÁCIO.............................................................................................................
AAAAAPRESENTAÇÃOPRESENTAÇÃOPRESENTAÇÃOPRESENTAÇÃOPRESENTAÇÃO..................................................................................................
INVENÇÃO E DESAPARECIMENTO DA INFÂNCIA.............................................
Uma época desprezível marcada pela maldade: Santo Agostinho.............
Uma época importante marcada pela inocência: Rousseau........................
A criança é o pai do homem............................................................................
O cultivo da infância no Brasil.......................................................................
A criança como sujeito de direitos..................................................................
De que são responsáveis as crianças?............................................................
Desaparecimento da infância?........................................................................
A PSICANÁLISE, A INFÂNCIA E O INFANTIL......................................................
Sujeito, eu, indivíduo.......................................................................................
A criança e “a pessoa grande”........................................................................
A infância e o infantil......................................................................................
PSICANÁLISE, PSIQUIATRIA E SAÚDE MENTAL INFANTIL.................................
Retardamento e delinqüência.........................................................................
Higiene, saúde mental e atenção psicossocial...............................................
O fim da clínica?...............................................................................................
Demência precocíssima e esquizofrenia infantil...........................................
O caso Dick: psicanálise e psicoses na infância.............................................
Da neuropsiquiatria à psicopedagogia..........................................................
Os poderes da palavra.....................................................................................
DESENVOLVIMENTO OU ESTRUTURA.................................................................
A teoria dos estádios........................................................................................
Lacan e o estádio do espelho...........................................................................
Desenvolvimento ou história..........................................................................
O gato faz “au-au”...........................................................................................
O tempo lógico..................................................................................................“medidas espe-
cíficas de proteção” dispostas no artigo 101, cuja gestão – importante
destacar – não é da órbita judicial, mas dos Conselhos Tutelares. A capa-
cidade jurídica para assumir, de fato, a responsabilidade individual por
seus atos começa aos doze anos.
Assim, em razão de sua conduta, uma criança pode, por exemplo,
ser encaminhada aos pais ou responsáveis; receber orientação, apoio e
acompanhamento temporários; ser matriculada e ter freqüência obriga-
tória em estabelecimento oficial de ensino fundamental; ser requisitada
para fazer tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime
hospitalar ou ambulatorial.
Se do ponto de vista penal, a criança é inimputável, no âmbito do
Direito Civil, ela é considerada “absolutamente incapaz de exercer pes-
soalmente os atos da vida civil” (CC, art. 5). Ou seja, ela não pode ven-
der um imóvel, decidir e celebrar um matrimônio, viajar desacompa-
nhada ou sem autorização etc. Sua assinatura não vale nada e seu
compromisso com sua palavra é, na maioria das vezes, colocado em dú-
vida. Assim, a criança tem direitos, mas não pode exercê-los diretamen-
te, devendo ser representada pelos adultos – pais, tutores – aos quais per-
tence a competência e o dever de protegê-los.13
A justificativa para essa “incapacidade absoluta” é dada pela ida-
de, que não permitiria à criança atingir o discernimento para distinguir o
13 Heloísa Barboza estabelece um confronto entre o ECA (1990) e as normas do Código
Civil (1916) voltadas para as crianças e os adolescentes. Ela conclui que “o Estatuto
não só derrogou o Código Civil nas disposições em que se verifica incompatibilida-
de entre ambos, como também impõe um novo critério interpretativo, consentâneo
com o ordenamento institucional sintetizado no artigo 227 da CF/88”. (Ver BARBO-
ZA, 2000, p. 117). Trata-se do artigo da Constituição que estabelece os deveres da
família, da sociedade e do Estado para com as crianças e adolescentes.
40
que pode ou não fazer, o que lhe é conveniente ou prejudicial. Acredita-
se que ela seria facilmente influenciável. Sem dúvida, estabelece-se uma
identificação entre sua condição de “pessoa em desenvolvimento” e essa
incapacidade.
Alguns, pautando-se na Convenção Internacional dos Direitos da Crian-
ça, interpretam que a criança é fundamentalmente capaz – com incapa-
cidades lógicas advindas de sua idade – e não uma pessoa incapaz que
progressivamente viria a adquirir capacidades (FIORINI, 1999, p. 20).
Outros consideram que a condição peculiar de desenvolvimento não
pode ser definida apenas a partir do que a criança não sabe, não tem
condições e não é capaz:
Cada fase do desenvolvimento deve ser reconhecida como revesti-
da de singularidade e de completude relativa, ou seja, a criança e o
adolescente não são seres inacabados, a caminho de uma plenitu-
de a ser consumada na idade adulta, enquanto portadora de res-
ponsabilidades pessoais, cívicas e produtivas plenas. Cada etapa
é, à sua maneira, um período de plenitude que deve ser compre-
endido e acatado pelo mundo adulto, ou seja, pela família, pela
sociedade e pelo Estado. (COSTA, apud. PEREIRA, T. 2000, p. 18)
De toda maneira, tanto para efeitos penais quanto civis, a criança
não pode ser considerada responsável por seus atos, o que, no entanto,
não a absolve, de forma alguma, das conseqüências desses atos.
Essa representação jurídica da criança – como pessoa em desenvol-
vimento, que não pode ser responsabilizada por seus atos e palavras –
tem repercussões na clínica psicanalítica, dando lugar a práticas em que
se avaliza que o outro diga “pela” ou “sobre” a criança. As anamneses;
as terapias que se fundamentam no que o outro queixa da criança e não
naquilo que verdadeiramente a incomoda; a idéia de que o sintoma da
criança é um “mero reflexo” dos pais são alguns exemplos dessa afirma-
ção (ver FERREIRA, 1999, p. 24).
 De que, afinal, são responsáveis as crianças?
 Para a psicanálise, não se trata de implantar nas crianças o senti-
mento de que é preciso submeter-se a certas regras, no estilo “não se
pode ou não se deve fazer isso”. Nesse caso, responsabilizar seria culpa-
bilizar, e isso, do ponto de vista psicanalítico, não é necessário, porque
os sujeitos já chegam culpabilizados aos consultórios.
 É preciso não esquecer que, em Totem e tabu (1913), Freud definiu a
sociedade, o fundamento do laço social, exatamente, a partir de um mito:
o do crime primordial na origem da lei. Esse mito enuncia: “todos cul-
páveis”. Ou seja, o assassinato do pai primordial nos deixa uma herança
41
coletiva: a culpa. Propriamente falando, ela é o pathos da responsabili-
dade, a patologia essencial do sujeito, que se expressa cotidianamente
no “sinto-me responsável por não sei o quê”. Por essa íntima relação
com a responsabilidade, a culpa acaba constituindo-se em uma pré-con-
dição da prática analítica (ver MILLER, 1999, p. 23-24).
Não se trata de culpabilizar, tampouco de desculpabilizar as crian-
ças – as desculpas, como sabemos, na maioria das vezes não funcionam.
Em psicanálise, quando falamos de responsabilidade, devemos pensar
no que Freud indica para Dora, quando a leva a perceber que ela partici-
pa das coisas das quais se queixa. Assim, no campo analítico, a respon-
sabilidade começa com uma desestabilização da adaptação à realidade
que o sintoma e o fantasma buscam. Ao visar o contrário da adaptação,
a responsabilidade em psicanálise tem um sentido oposto à responsabi-
lidade legal; trata-se, antes, de uma responsabilidade face à estrutura,
ou seja, o consentimento à determinação da cadeia significante e ao ob-
jeto que causa o sujeito. Por isso, se a criança, como qualquer sujeito, não
puder responder pelo que diz e pelo que faz não existe nenhuma possi-
bilidade para a prática analítica. A conhecida máxima de Lacan, em “A
ciência e a verdade”: “Por nossa posição de sujeitos somos sempre res-
ponsáveis” (1998 [1966], p. 873) suscita a relação entre o determinismo
significante e a liberdade, que não se confunde com o livre-arbítrio, mas
com o consentimento do sujeito ao que o causa.14
Marie-Hélène Brousse propõe, no lugar de uma definição da res-
ponsabilidade em termos de impotência, uma definição em termos de
eleição, de escolha:
Uma eleição, isto é, uma decisão do desejo. Disso é responsável o
sujeito, da decisão do desejo inconsciente, o que implica na res-
ponsabilidade – tanto por seus atos como por suas palavras, por
seus sintomas como por seus fantasmas – mas fora do campo do
super-eu, isto é, da culpa e do gozo da culpa. Dessa forma, o
sujeito se faz herói de seu destino, no sentido em que Lacan
define um herói: aquele que não pode ser traído, que não há
maneira de traí-lo, precisamente por sua responsabilidade ab-
soluta. (BROUSSE, 1994, p. 75)
Em um breve escrito, Contribuições para uma discussão acerca do suicí-
dio (1910), Freud sugere, de maneira feliz, que a tarefa daqueles que li-
dam com as crianças é a de fazê-las ter vontade de viver, de despertá-las
14 Ver, a esse respeito, por exemplo, SOUZA, Neusa. Determinismo e responsabilida-
de. In: FREIRE, Ana et al. A ciência e a verdade: um comentário. Rio de Janeiro: Revin-
ter, 1996, p. 60-65.
42
para o mundo, não as deixando ao sabor do destino, mas, sim, responsa-
bilizando-as pela invenção de suas próprias vidas e de sua sociedade.
DESAPARECIMENTO DA INFÂNCIA?
Se a infância não é uma categoria natural, ontológica, mas uma cons-
trução histórica e social, certamente podemos nos perguntar se as trans-
formações socioculturais do século XXI, já anunciadas ao final do século
XX, produzirão mudanças no estatuto da infância? Essa mudanças im-
plicariam no seu próprio desaparecimento? Enquanto um ideal da cul-
tura, paradigma de um tempo feliz, estaria a infância perdendo sua po-
sição para a adolescência, que, pelo apelo da “força e beleza da
juventude”, estaria fazendo para ela confluir tanto as crianças quanto os
adultos e os idosos?
Relembremos que a tese de Ariès articula a invenção da infância com
uma nova realidade socioeconômicae cultural – ascensão do capitalis-
mo, do individualismo moderno e das sociedades industriais – e com
uma nova visão da família – um núcleo restrito formado pelo pai, a mãe
e os filhos unidos por sentimentos íntimos. Além disso, as propostas
educativas e científicas dos “especialistas em crianças” tiveram impor-
tância decisiva na construção da infância como período diferenciado, es-
sencial ao futuro da vida de um homem e de sua nação.
Sabemos que uma das maneiras de se caracterizar a contempora-
neidade, em termos socioeconômicos, é falar em um mundo globaliza-
do, movido pela lógica do mercado e pela sociedade de consumo.
Sumariamente, este último termo designa uma nova formação social que
se solidificou no final do século XX, na qual a lógica dominante já não é
mais determinada pela produção de objetos, serviços e bens materiais e
culturais, mas por seu consumo acelerado. Em suma, o mercado é a lei
dessa sociedade.
 Este novo estado de coisas decorre de um capitalismo multinacio-
nal, em sua face neoliberal, e representa uma reorganização abrangente
que inclui todas os setores da vida em sociedade, desde a produção tec-
nológica e a informatização da vida cotidiana até os processos que regu-
lam o laço social.
Nessa sociedade de consumo – marcada pela sedução e multiplica-
ção de objetos – os homens não se cercam prioritariamente de outros
homens, mas sim de informações e bens (celulares, computadores, car-
ros, objetos virtuais...), que se tornam rapidamente obsoletos. Promete-
se que na relação com esses objetos de consumo, esses gadgets, produzidos
43
graças ao discurso da ciência, o sujeito encontrará a satisfação. Além
disso, dá-se a garantia de que se ela não for obtida, teremos o nosso
“dinheiro de volta”.
Esse gozo prometido, e não alcançável por estrutura, leva efetiva-
mente à decepção, tristeza e nostalgia do encontro falsamente prometi-
do. Por isso, a sociedade, regida por essa lógica, produz sujeitos insaciá-
veis, vorazes, em sua demanda de consumo. Independente da idade,
todos são consumidores e acreditam serem únicos e especiais por adqui-
rirem determinado objeto, a “minha marca”. Paradoxalmente, no entan-
to, todos são exatamente iguais na sua diferença fabricada pelas “mar-
cas” da publicidade – discurso específico do mercado.
Aqueles que não têm acesso a esses diferentes objetos de consumo
são segregados, fazendo proliferar o grupo dos “sem”: sem terra, sem
teto, sem celular, sem carro...(ver QUINET, 1999, p. 14). Antevendo essa
situação, Lacan vai utilizar, em 1967, a expressão “a criança generaliza-
da” (l´enfant généralisé), para se referir a essa posição de objeto a que
todos estamos submetidos pelos progressos do discurso da ciência e do
capitalismo (ver LACAN, 1987b, p. 159). Perguntar se a cultura do consu-
mo consiste em uma nova “forma de totalitarismo” torna-se, portanto,
algo inteiramente pertinente nesse novo milênio (CASTRO, 1999, p. 18).
Por outro lado, o ideal da família nuclear, heterossexual, monógama,
patriarcal encontra-se ameaçado, pois o núcleo se quebrou em muitos
pedaços. Formas heterogêneas de organização da família ganham visi-
bilidade, geradas pelo enfraquecimento da instituição do casamento, por
sucessivas separações e recasamentos. Entram em cena os namorados
do pai e da mãe, os meio-irmãos, os solteiros com filhos, os solteiros com
filhos que moram com os pais...
A ordem jurídica acompanha essas transformações, como, por exem-
plo, no caso do Brasil, em que a Constituição de 1988 desencadeou uma
reforma no Direito de Família a partir da mudança de três eixos básicos:
homens e mulheres são iguais perante a lei; o Estado reconhece outras for-
mas de família para além daquela constituída pelo casamento; os filhos
passam a ser reconhecidos, como dissemos anteriormente, advindos ou
não de um casamento e fora dele (ver PEREIRA, R. 2000, p. 579).
Em todas essas transformações na organização da família, talvez
apenas a mãe tenha garantido e ampliado sua importância. De acordo
com as investigações psicossociais, ao aumentar sua participação na ren-
da da família, além de cuidar da educação dos filhos e das tarefas do-
mésticas, ela passou “de dona-de-casa para dona-da-casa”. Em outras
palavras, o pai se enfraqueceu novamente.
44
A ciência passa também a desempenhar papel decisivo na fragmen-
tação da célula familiar. As técnicas de fecundação in vitro e de “barriga
de aluguel”, os exames de DNA que possibilitam a certeza da paterni-
dade, acabam colocando em questão um adágio latino milenar, mater
semper certa est, pater numquam – a mãe é sempre certa, o pai nunca (ver
TOSI, 2000, p. 660).
Já os filhos convivem cada vez menos com os pais ou outros adul-
tos, usufruindo mais da convivência com seus pares ou da companhia
das telas da TV, do computador, dos jogos eletrônicos e de outros gadgets
lançados no mercado. A Internet possibilita a extensão crescente do ci-
berespaço, tornando acessível uma massa de novos signos e de novos
efeitos de sentido. Nesse espaço virtual estabelecem-se outras redes sim-
bólicas de troca, que fazem da “autoridade” e “experiência” dos pais e
professores algo menos absoluto.
De todo modo, independente da natureza de seus laços, a família é
– segundo a mais ampla e completa pesquisa realizada sobre o tema no
Brasil – a instituição social mais presente na vida dos brasileiros, ultrapas-
sando o trabalho, a religião, a escola etc. (ver Caderno Especial Família,
Folha de São Paulo, 20-09-98).
Podemos pensar, com Lacan (1969), que a instituição familiar persis-
te não por assegurar a vida da espécie, a partir da “satisfação das necessi-
dades”; o que garante a sobrevivência da família é a sua função de trans-
missão subjetiva, que implica a “relação com um desejo que não seja
anônimo”, ou seja, com um desejo possível de ser interrogado (ver LACAN,
1986, p. 13-14). Os casos de adoção demonstram bem que os laços natu-
rais, consangüíneos não são o aspecto primordial dessa instituição social.
Assim, se o ponto de partida é o real – um organismo com uma
diferença sexual anatômica (macho-fêmea) – é na estrutura da lingua-
gem que esse real tem de inscrever-se, a partir de combinatórias simbó-
licas, em um sistema de parentesco expresso pela língua (pai do pai,
avô...). Em suma, a família é o lugar do Outro simbólico, anterior e
preeminente ao sujeito.
Para a psicanálise, não se pode reduzir a família a um sistema de
imagens ou representações imaginárias – a variedade de formas que ela
historicamente pode adquirir. Nela, alguns elementos são estruturais, in-
variáveis, pois ela é a instituição que faz valer, para o ser falante, a função
simbólica da castração, o impossível de inserir no campo da linguagem.
Já em Os complexos familiares (1938), Lacan apontava que “a família
desempenha papel primordial na transmissão da cultura”. Ela é a insti-
tuição que “prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos,
45
na aquisição da língua acertadamente chamada materna.” (LACAN, 1987a,
p.13). Em seu ensino posterior (1967), ele substitui a idéia de uma re-
pressão dos instintos pela função reguladora do gozo. Assim, a família
como “toda formação humana tem por essência, e não por acidente, de
refrear o gozo” (LACAN, 1987b, p. 153). A família é também o lugar do
Outro da Lei. Lei de um único artigo: a proibição do incesto. Para ambos
os sexos, está proibido o gozo supremo, que seria poder gozar do corpo
da mãe, num encontro sexual.
 Nesse sentido, segundo Esthela Solano, a família pode ser con-
siderada como uma pequena máquina: entramos nela com um certo
gozo, que se pode imaginar mítico e originário, e dela saímos com
uma moderação de gozo, que recebe, no ensino de Lacan, o nome de
castração. É pelo exercício dessa função, que aquele que advém na
sua condição de ser vivo enquanto produto sexual, será admitido em
um lugar simbólico, que lhe assinala um laço de parentesco, uma
posição nas gerações e uma identidade civil. Desse produto do sexu-
al, a família tem a tarefa de fazer advir um sujeito desejante (verSO-
LANO-SUÁREZ, 1992, p. 12).
Em síntese, podemos dizer que, para a psicanálise, família é, antes
de tudo, formada pelo Nome-do-Pai (ou pelos Nomes-do-Pai), pelo de-
sejo da mãe e pelos objetos.
Se, entretanto, aceitamos os pressupostos que dão suporte à tese de
Ariès sobre a invenção da infância, estaríamos diante das condições – uma
nova realidade socioeconômica e uma nova visão da família – para pen-
sarmos um outro estatuto para a infância ou, até mesmo, no seu desapa-
recimento?
Alguns autores sugerem que sim. Célio Garcia indica que, depois
da consideração da criança como sujeito de direitos, alguns sinais já pre-
nunciam que novos rótulos podem ser atribuídos a ela, como “sujeito da
informação” ou “sujeito para a mídia”. Na sociedade, gerida pela lógica
do mercado, a criança é, antes de tudo, como qualquer um, um consumi-
dor (ver GARCIA, 2000, p.2). Consumidor de todos os tipos de produtos,
inclusive, de técnicas contra o stress e de antidepressivos...
O livro Infância e adolescência na cultura do consumo (1999) apresenta
pesquisas nesse sentido e sua organizadora comenta:
Crianças e adolescentes já não são mais os mesmos. Transformam-
se para assumir posições inusitadas: de congêneres supostamen-
te considerados inocentes e inaptos, as crianças e os adolescentes
tornam-se os convivas que requisitam sua participação na reali-
dade orgiástica do consumo e dos prazeres...(CASTRO, 1999, p. 12)
46
Contardo Calligaris observa que, nas últimas décadas, tanto as crian-
ças quanto os adultos querem, cada vez mais, parecer adolescentes. Co-
meçando mais cedo e prolongando-se ao máximo, a adolescência con-
quista espaços, tornando-se a estética e a cultura hegemônicas, tomando
“o lugar da infância” no ideário ocidental.
 Se a imagem da infância encantada, feliz e despreocupada satis-
faz e consola os adultos, trazendo esperança de continuidade, eles, ge-
ralmente, no entanto, não gostariam de voltar a ser crianças. Já a ado-
lescência facilita o processo de reconhecimento, oferecendo uma
imagem plausível, menos utópica e mais narcisista. Os adultos podem
querer voltar a ser adolescentes, pois seus corpos, em suas formas e
prazeres, são mais parecidos – sexo, dinheiro e poder e não mais carri-
nhos e bonecas. Ao mesmo tempo, os adolescentes conservam a “má-
gica da infância”, pois são ou deveriam ser felizes, ao terem hipoteti-
camente suspensas as obrigações e dificuldades da vida adulta. Enfim,
eles seriam “adultos de férias”, gozando, felizes, sem impedimento ou
quase (ver CALLIGARIS, 2000, p. 68-74). Lançou-se, inclusive, o neologis-
mo “adultescência”, que exprime, com charme lingüístico e pertinên-
cia, a permanência dos valores adolescentes na vida adulta (ver Folha
de São Paulo 20/09/98).
 A adolescência satisfaz também a um dos símbolos da contempo-
raneidade: a liberdade de escolher. Pelo fato de ser o momento da possi-
bilidade (e da necessidade) de preparar e fazer escolhas, a adolescência
é valorizada como imagem e garantia dessa liberdade, tempo de acesso
aberto a uma diversidade de identidades possíveis. Por isso, tantos adul-
tos e idosos – com suas plásticas, seus regimes e Viagras – sonham com a
eterna beleza e vigor do corpo, querendo “para sempre ser jovens”.
Por sua vez, essa idealização e essa imagem romântica da adoles-
cência desconsideram outra expressão corrente – “a juventude tem que
passar” – do mesmo modo que se espera o fim de uma tormenta. De
fato, o sujeito encontra motivos, justamente nesse período da vida, para
ficar atormentado, chegando muitas vezes a tentar suicídio, a fazer
uso excessivo de drogas, a viver a experiência de desencadeamento de
uma psicose ou a lidar precocemente com a paternidade ou a materni-
dade: ”o corpo transforma-se, colocando-se em questão o imaginário
do sujeito, as exigências do Outro diversificam-se, obrigando a um po-
sicionamento no mundo, e desfaz-se a ligação com os pais da infância,
com os modelos identificatórios, exigindo novas relações com os ou-
tros” (ALBERTI, 1996, p. 2).
47
Freud prefere o termo “puberdade” para se referir a esse momento
de confronto entre a possibilidade de realização do ato sexual e o caráter
traumático da sexualidade. Em outras palavras, o momento da matura-
ção do organismo – que torna a relação sexual possível – é também o
momento em que ela se revela como impossível para os seres falantes.
Trata-se, em suma, do despertar do sujeito aos encontros e desencontros
que marcam as relações (ver COTTET, 1996, p. 7-20). O filme American Pie
(1999), de Paul Weitz, apresenta de forma bem humorada as inquieta-
ções e angústias de um grupo de adolescentes na expectativa e nas sur-
presas da “primeira vez”.
Ao mesmo tempo, as crianças teriam começado a perder sua especi-
ficidade estética. Existe o apelo a uma erotização precoce do seu corpo,
incentivando-as a rebolar na “boquinha da garrafa”, a se maquiarem e a
se vestirem de modo sensual. Só que, diferentemente da Idade Média,
seus trajes não lembram adultos em miniatura, mas a camuflagem de
adolescentes:
Caminhe pela rua 125 em Nova York: sem falta você encontrará,
por exemplo, garotos de quatro anos de calças cargo ridiculamen-
te largas, mantidas abaixo do cós para mostrar três dedos de cueca,
chapéu de beisebol virado para trás, ou então, no inverno, capuz
por cima da cabeça. Em suma, a caricatura dos membros de uma
gangue. Eles não estão vestidos nem de crianças nem de adultos.
Eles estão de adolescentes. O adolescente que eles imitam é o ide-
al dos adultos que os vestem. (CALLIGARIS, 2000, p.72)
 São essas as razões e os argumentos que tornam plausível a hipóte-
se do processo de desaparecimento da infância, ainda que, como veremos
no próximo capítulo, o infantil não deixe de ser a característica essencial
e incurável da sexualidade humana.
48
49
... ao que se articula na pergunta cujo endereçamento
parece ser regular, para não dizer obrigatório, em toda
infância que se preza: “De quem você gosta mais, do
papai ou da mamãe?” [...] pois essa pergunta,
onde a criança nunca deixa de concretizar a repulsa que
sente pelo infantilismo dos pais, é precisamente
aquela com que essas verdadeiras crianças que são os
pais [...] pretendem mascarar o mistério de
sua união ou sua desunião, conforme o caso, ou seja,
daquilo que seu rebento sabe muito bem ser todo o
problema, e que se formula como tal.
(LACAN, Escritos, p. 585)
 Uma idéia se difundiu e se impôs no imaginário social e no próprio
meio psicanalítico, desde a novidade introduzida pelo pensamento freu-
diano: a psicanálise teria tudo a ver com a infância, pois, a partir de algo
ligado à ordem sexual, os primeiros meses ou anos seriam determinan-
tes para a vida psíquica posterior do ser humano. Ela se constituiria,
então, em um tratamento onde se faria uma pesquisa historicista de acon-
tecimentos passados, objetivando preencher as lacunas fatuais do que
teria sido esquecido ou recalcado. Por isso, o analisante seria, inevita-
velmente, conduzido a lembrar-se e a falar de sua infância.
A teoria freudiana foi fundamental para destacar a existência da
sexualidade infantil e do saber que as crianças elaboram, concedendo-
lhes estatuto diferente de um simples objeto de investigação. Precisa-
mos, no entanto, repensar essa concepção que associa de maneira inso-
fismável infância e psicanálise.
É importante lembrarmos, inicialmente, que a psicanálise não se
constitui em uma teoria sobre a infância, mas sobre o inconsciente e o
gozo. É preciso também considerar que se a distinção entre a criança e o
A psicanálise, a infância e o infantil
50
adulto tem algum interesse para a psicanálise; ela se estabelece a par-
tir de parâmetros diferentes do crescimento ou da puberdade, uma
vez que o seu foco é tanto um sujeito que não tem idade – o sujeito do
inconsciente – quanto uma satisfação paradoxal que não se desenvol-
ve – o gozo. Enfim, teremos, ainda, que explicitar a diferença entre a
“infância” e o “infantil”.
 Já podemos, contudo, indicar que a clínica da infância se faz a partirda perspectiva do desenvolvimento, enquanto a clínica do infantil freudia-
no se faz na vertente da divisão do sujeito entre o significante e o real do
gozo. De todo modo, as questões relacionadas ao estatuto do desenvol-
vimento, da história e da estrutura em psicanálise, bem como à ruptura
ou continuidade entre a criança e o adulto, não são simples. Por isso,
elas voltarão a ser abordadas nos próximos capítulos.
SUJEITO, EU, INDIVÍDUO
Lacan nos ensina que devemos distinguir “severamente” o sujeito
que interessa à psicanálise – o sujeito do inconsciente, o sujeito do signi-
ficante – tanto do “indivíduo biológico quanto de qualquer evolução
psicológica classificável como objeto de compreensão” (LACAN, 1998 [1966],
p. 890). Essa diferenciação – entre “sujeito”, “indivíduo”, “eu” e “pessoa”
– é fundamental para conseguirmos uma definição psicanalítica da crian-
ça ou do infantil a partir de coordenadas estruturais e não cronológicas
(ver VALAS, 1991, p. 141).
Antes de realizarmos rápido percurso por essas noções, é bom lem-
brar que uma palavra não é um conceito. Um conceito é uma denomina-
ção e uma definição; é um nome dotado de um sentido capaz de inter-
pretar as experiências e observações, sendo que sua importância é medida
por seu valor operatório, ou seja, pelo papel que desempenha na dire-
ção das experiências que permite interpretar. No entanto, diferentemente
do discurso da ciência, os conceitos não bastam ao discurso analítico, o
qual, para operar, depende também do desejo do psicanalista.
Freud, ao introduzir o conceito de inconsciente, des-centra o sujeito
e subverte a concepção de subjetividade dominante nos séculos XVII e
XVIII, que encontra na psicologia clássica, proposta pela filosofia carte-
siana, sua principal referência teórica. Descartes, como sabemos, realiza
sua indagação sobre o sujeito na ordem do pensamento, ou seja, o pen-
samento é o critério fundamental do existir: “penso, logo existo”. Como
um centro absoluto, com sua consciência clara e adequada a si mesmo, o
sujeito se estabelece como o fundamento do conhecimento e da ação.
51
O discurso freudiano desloca e retira as bases desse centro, formu-
lando a subjetividade como palco de um conflito. No entanto, o conceito
de sujeito não faz parte do seu vocabulário teórico. Ele é específico do
ensino de Lacan e, apesar de não ser um dos “quatro conceitos funda-
mentais da psicanálise”, ocupa posição importante em sua proposta de
“retorno a Freud”.
A partir de 1950, Lacan estabelece uma diferença essencial: a distin-
ção entre o “sujeito” (je) e o “eu” (moi). Em suma, o sujeito não é o eu.
O eu é uma função que se constitui na dimensão do imaginário. Ele
se forma por intermédio da imagem do outro, antecipando uma unida-
de, em um momento em que o indivíduo ainda não conquistou sua ma-
turidade neurofisiológica. Daí o seu poder de fascinação e também seu
caráter ilusório, ficcional. Ficção que confere ao eu uma função de desco-
nhecimento, fazendo obstáculo a que o sujeito reconheça seu desejo, que
se manifesta nas formações do inconsciente – sonhos, chistes, lapsos,
atos falhos... Formações que apresentam uma vertente significante, de
mensagem. Por isso, o sujeito do inconsciente, que se manifesta nessas
formações, é relativo a uma outra cena – a ordem simbólica (Outro) – que
precede logicamente ao sujeito e rompe sua relação de perfeita adequa-
ção e coincidência consigo mesmo. Ele é ex-cêntrico e sua verdade não
coincide com as certezas do eu (ver o item “Lacan e o estádio do espelho,
no capítulo 4 deste livro).
O sujeito de Lacan é, portanto, o sujeito do inconsciente e, segundo
ele, essa distinção encontra-se já em Freud, que “efetivamente escreveu
Das Ich [eu] und das Es [isso] para manter essa distinção fundamental entre
o verdadeiro sujeito do inconsciente e o eu, este constituído em seu núcleo
por uma série de identificações alienantes...” (LACAN, 1998 [1955], p. 418).
Ainda que o tratamento analítico exerça poderosos efeitos sobre o eu, sa-
bemos que é sobre o sujeito e o gozo que ele primordialmente opera.
Dizemos, então, “sujeito” do inconsciente e não “eu” do inconscien-
te. Para o “eu” que fala, o sujeito do inconsciente é um “ele” e não um
“eu”. Essa foi a saída que Lacan encontrou para escapar do problema
freudiano de pensar o inconsciente em termos de uma segunda consciên-
cia: “Como devemos chegar a um conhecimento do inconsciente? Certa-
mente, só o conhecemos como algo consciente, depois que ele sofreu
uma transformação ou tradução para algo consciente” (FREUD, 1980
[1915], p. 191).
Afirmar o inconsciente como sujeito é dar-se os meios de falar
do inconsciente com o inconsciente, sem contradizer o seu caráter
52
fundamentalmente elíptico e surpreendente: o sujeito é esse “ele” de
que fala o “eu”, quando se quer designar como inconsciente. Em outras
palavras, o sujeito é a própria divisão entre esse “eu” e esse “ele”.
 Daí, não podermos, de modo algum, confundi-lo com o indivíduo,
que, por definição, é uma unidade distinta e indivisível, cujo organismo
se desenvolve pelos processos de maturação e de adaptação ao meio
(ver LACAN, 1985 [1954-55], p. 16).
Em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano”(1960b), Lacan vai propor a célebre definição do sujeito a partir
da articulação significante, ou seja, como aquilo que é representado por um
significante para outro significante (LACAN, 1998, p. 819). A aparente com-
plexidade dessa definição explica-se por seu caráter tautológico, pois con-
tém, em si mesma, o termo significante. No entanto, essa tautologia mostra-
se fecunda, pois possibilita a introdução de uma concepção inteiramente
nova. Esse sujeito – correlato à estrutura do inconsciente como linguagem e
não como um reservatório de lembranças e pulsões – não é causa, mas
efeito de linguagem. “O efeito de linguagem é a causa introduzida no
sujeito. Por esse efeito, ele não é causa dele mesmo, mas traz em si o ger-
me da causa que o cinde. Pois sua causa é o significante sem o qual não
haveria nenhum sujeito no real” (LACAN, 1998 [1964], p. 849). Em outras
palavras, o sujeito é uma resposta do real ao encontro do significante.
Como ser essencialmente falante (parlêtre) – ser que fala, ser que
sustenta seu ser pelo fato de falar –, veiculado de significante em signi-
ficante e reconhecido apenas no intervalo entre eles, o sujeito não tem,
então, nada em comum com a consciência, pois corresponde à inscrição
de uma falta. Ele só é reconhecido na cadeia significante, quando nela se
produzem tropeços, dissimetrias, que assinalam exatamente que está aí,
presente, algo que só pode contar quando falta.
Trata-se, portanto, de uma definição anti-substancialista do sujeito.
O substancialismo constitui uma doutrina que explica a diferença entre
os seres, com base em suas propriedades intrínsecas, consideradas em si
mesmas. Por exemplo, dizer-se que o homem é um animal racional. Já a
definição lacaniana pressupõe um critério de superfície, relacional, em
que cada elemento remete ao outro, sendo necessário no mínimo dois
significantes para que o sujeito possa se constituir.
Pela ação da estrutura da linguagem, o sujeito sofre um déficit de
seu gozo, de seu ser de gozo: assim se constitui a chamada falta-a-ser.
Esta não desfaz a presença, uma vez que cada elemento adquire sua
identidade de forma frustrada, clivada, transportada para fora de si
mesma. Por isso, o sujeito sem substância tem por propriedade não estar
53
onde é procurado, e, em contrapartida, ser encontrado onde não está.
Ele sempre falta à sua própria imagem e à sua própria identidade (ver
MILLER, 1988, p. 8-11).
Sabemos que nem tudo é significante na experiência. Há um real
que, sem subtrair as leis da linguagem, subverte o aspecto dialetizável
do sujeito do inconsciente. O objeto a, ao ser colocado como pura pre-
sença (e não como falta-a-ser) no ponto éxtimo do sujeito – ou seja, in-
cluído na cadeia significante e, ao mesmo tempo, excluído dela – recusa-
se a fazer série ou relação com os outros.Sua função específica é
complementar a referência negativa ao sujeito. Em outras palavras, o
objeto a, como consistência lógica, está apto a encarnar o que falta ao
sujeito. Ele é o semblante de ser que a falta-a-ser subjetiva convoca.
 Os elementos simbólicos não têm, portanto, designação extrínseca
nem significação intrínseca, mas sentido de posição. Esse resulta sem-
pre da articulação entre os elementos significantes, sendo que um reme-
te ao outro, o que introduz uma estrutura, que é de cadeia. “Na ordem
simbólica, todo elemento vale como oposto a um outro” (LACAN, 1985
[1955-56], p. 17). É levando em conta esse critério posicional, tópico, que
o lugar do Outro, enquanto sistema simbólico, determina a posição do
sujeito desde sua aparição.
O pai e a mãe deixam, então – como dissemos no primeiro capítulo –
de ser meros semelhantes com os quais o sujeito se relaciona numa di-
mensão de rivalidade ou de amor, para se tornarem lugares na estrutu-
ra. Precisamos opor, portanto, a essa dimensão da alteridade imaginária
uma outra, na qual o sujeito se constitui a partir de uma ordem anterior
e exterior a ele, e da qual depende, ainda que pretenda dominá-la. De
fato, trata-se de uma ilusão acreditarmos que conhecemos a língua que
falamos porque a compreendemos. O saber da língua excede, em muito,
o conhecimento que dela temos.
Assim, o pai pode surgir sob as formas buscadas no imaginário –
pai bondoso, omisso, ameaçador, caseiro, passeador, seguro... –, confun-
dindo-se com o outro da rivalidade. Porém, por seu lugar no discurso da
mãe, sua evocação, enquanto Nome-do-Pai, impede a confusão com as
relações puramente fenomênicas entre pai, mãe e filho. Esse Outro simbó-
lico que, inicialmente, se constitui como uma ordem vazia de representa-
ções, torna-se uma lei. O significante do Nome-do-Pai é tomado nessa
ordem formal como o elemento organizador e articulador dessa lei.
No Seminário 2 (1954-1955), Lacan dirá que “o jogo do símbolo repre-
senta e organiza, em si mesmo, independentemente das particularidades
de seu suporte humano, este algo que se chama um sujeito. O sujeito
54
humano não fomenta este jogo [...]. Ele próprio é um elemento nesta
cadeia que, logo que é desenrolada, se organiza segundo leis“. (LACAN,
1985, p. 243). Em outras palavras, o sujeito é um sujeito apenas em virtu-
de dessa sujeição ao campo do Outro.
Com isso, podemos relembrar um outro sentido da palavra “sujei-
to”, que é o de súdito, de sujeição significante ao “isso fala dele” (como
testemunha o automatismo mental) – fala antes que ele fale ou mesmo
que grite. Essa noção de sujeito permite incorporar a idéia de anteriori-
dade, do ex-sistir, antes do aparecimento do indivíduo como organis-
mo. Enfim, como diz Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967, precisa-
mos “limpar este sujeito do subjetivo. Um sujeito não supõe nada, é
suposto. Suposto, ensinamos nós, pelo significante que o representa para
outro significante” (LACAN, 1996, p. 7).
A CRIANÇA E “A PESSOA GRANDE”
Consideremos a noção de pessoa, lembrando que o Estatuto da Criança
e do Adolescente estabelece que criança é uma “pessoa em desenvolvi-
mento”. Na acepção jurídica a idéia de pessoa está ligada à de perso-
nalidade, que exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e con-
trair obrigações.
O vocábulo “pessoa” provém do latim persona que, adaptado à lin-
guagem teatral, designa máscara. Persona advém do verbo personare, que
significa ecoar, de forma que a máscara é uma persona que faz ressoar,
mais intensamente, a voz da pessoa por ela ocultada. Mais tarde, a pala-
vra passou a indicar o próprio homem que representava o papel (ver
DINIZ, 2000, p. 97, nota 1).
Patrick Valas observa que a noção de pessoa manteve-se ao longo
do ensino de Lacan (VALAS,1991,p. 142). Alguns comentários de outros
psicanalistas lacanianos – como Guy Clastres (1991) e Éric Laurent
(1995) – enfatizam que Lacan prefere a expressão “a pessoa grande”
(grande personne) – utilizada, por exemplo, no Discours de clôture de la
journée sur l`enfance aliénée (1967) – e não o termo “adulto”, para con-
trapor à criança.
De fato, se Lacan, muitas vezes, fala da criança, ele, raramente, faz
uso do termo “adulto”1, e, quando o faz, é quase sempre de maneira
irônica, perguntando, por exemplo, “quando falamos do ser adulto a
1 Eis algumas referências nos Escritos (1998) ao contraponto entre a criança e o adul-
to: p. 92-93, p. 244-245, p. 268, p. 444, p. 866.
55
que referência estamo-nos referindo? Onde está o modelo do ser adul-
to?” (LACAN,1988 [1959-60], p. 37).
 A pessoa – em desenvolvimento ou não, grande ou pequena – não
passa, portanto, de uma personagem, uma máscara, que é, como o indi-
víduo, um falso-ser (ver LACAN, 1998 [1960a], p. 678).
O “eu” remete, como dissemos, a uma relação dual com o seme-
lhante, a uma função imaginária; já a “pessoa” com sua “personalida-
de” – ou seja, com suas condutas codificadas, fixas, sempre iguais, inde-
pendente do contexto – correlaciona-se a um modo de gozo do sujeito:
“Sua definição leva em conta, ao mesmo tempo em que mascara, a divi-
são do sujeito entre o significante e o real do gozo” (VALAS,1991, p. 142).
Assim, sem desconsiderar que existe uma “unidade da psicanáli-
se” – não há diferenças no dispositivo analítico para uma criança ou
um adulto, pois a criança é um “analisante por inteiro” (ver LEFORT,
1991, p. 11-12) – podemos pensar a distinção entre a criança e o adulto,
como “tipos de pessoa”, diferença vigente tanto para a prática analíti-
ca como para a significação social. Essa diferença pode ser considera-
da em torno de quatro pontos: o significante, o gozo, a história e o ato
(ver VALAS, 1991, p. 145-146).
Assim, a criança é um ser falante, dividido pelo significante, existindo,
contudo, uma escala diferencial de tipos de criança, uma sucessão temporal
que vai da criança que fala até a criança que já aprendeu a escrita.
Em termos de gozo, a criança não dispõe do ato sexual, devendo se
contentar com o gozo puramente masturbatório, que assume diferentes
maneiras – como veremos a seguir – a partir da disposição perverso-
polimorfa, destacada por Freud.
No nível da história, a chamada “experiência de vida” também se
estabelece como traço distintivo. Encontramos a noção de aprendizado –
de poder aprender a saber – mesmo que esse saber suplementar seja
diferente do saber inconsciente.
Quanto ao ato, constatamos, como dissemos no capítulo anterior,
que a criança não dispõe dos meios econômicos e jurídicos para susten-
tar seus atos.
Já Eric Laurent sugere que uma forma de distinguir a criança da “pes-
soa grande” encontra-se no modo de o sujeito posicionar-se com relação
ao seu gozo. Assim, criança seria aquele que não pode se responsabilizar
por seu gozo, mantendo-se inocente, ignorando-o ou tornando-se sua ví-
tima (ver LAURENT, 1995, p. 31-33). Em outras palavras, o sujeito não tem a
idade do seu organismo, mas a de seu gozo (ver SAURET, 1998, p. 25).
56
 A INFÂNCIA E O INFANTIL
 Pretendo agora explicitar porque os psicanalistas estabelecem dis-
tinção entre a infância e o infantil, postulando, por exemplo, que “o infan-
til ultrapassa a infância”, que existe um “intervalo abissal” entre ambos
ou ainda que “o infantil não é a experiência de criança”.2 Não podemos
também esquecer que o próprio Freud buscou diferenciá-los ao apre-
sentar o caso de um jovem adulto – o “homem dos lobos” – como para-
digma da neurose infantil e não o caso de uma criança de 5 anos, o peque-
no Hans (1909).
Constatamos, por um lado, que, na maioria dos textos de Freud,
“infantil” é empregado como adjetivo para caracterizar várias noções –
sexualidade infantil, amnésia infantil, cena infantil, organização genital
infantil, exibicionismo infantil, teoria infantil etc. – que reenviam a algo
que se teria passado no período da infância. Por outro, “infantil” como
substantivo remete a outros conceitos e a uma lógica própria às articula-
ções do campo analítico – “o infantil é a estrutura”, “o infantil e a pul-
são”, “o infantil e ogozo” etc. A diversidade, riqueza e complexidade
das relações estabelecidas com a noção contribuem, por sua vez, para
dificultar a sua apreensão.
De todo modo, alguns chegam a considerar que foi “o desloca-
mento do registro da infância para o infantil” o que permitiu a Freud
“inventar a psicanálise” (BIRMAN, 1997, p. 9-10). Esse salto se deu no
processo de substituição da teoria da sedução pela da fantasia, o que
pressupôs a elaboração de uma doutrina da realidade psíquica basea-
da no inconsciente.
De fato, a partir da escuta de seus primeiros pacientes histéricos no
final do século XIX, Freud – ainda influenciado pelo paradigma da evolu-
ção3 – é levado a elaborar a teoria da sedução, que encontra a etiologia
das neuroses dos adultos em experiências sexuais traumáticas ocorridas
durante a infância. Eis como o próprio Freud descreve, em seu Estudo
Autobiográfico (1925), o que denomina de um “erro”, que poderia ser
“fatal” para a psicanálise:
2 Uma indicação bibliográfica recente sobre o tema, é o livro A criança e o infantil em
psicanálise de Silvia Zornig, lançado no final de 2000, pela editora Escuta.
3 O livro A influência de Darwin sobre Freud (1990), da historiadora da ciência Lucille
Ritvo, revela o impacto do método e das idéias de Darwin sobre Freud. A autora
marcada, no entanto, pela tradição norte-americana de degradação da psicanálise,
tenta mostrar como Freud, influenciado por essas idéias, transformou a psicologia
em uma disciplina biologicamente enraizada: a psicanálise.
57
Antes de avançar na questão da sexualidade infantil, devo menci-
onar um erro no qual incidi por algum tempo e que bem poderia
ter tido conseqüências fatais para todo o meu trabalho. Sob a
influência do método técnico [sugestão] que empreguei naque-
la época, a maioria dos meus pacientes reproduzia de sua infân-
cia cenas nas quais eram sexualmente seduzidos por algum adul-
to. Com pacientes do sexo feminino o papel sedutor era quase
sempre atribuído ao pai delas. Eu acreditava nessas histórias e,
em conseqüência, supunha que havia descoberto as raízes da neu-
rose subseqüente nessas experiências de sedução sexual na in-
fância. Minha confiança foi fortalecida por alguns casos nos quais
as relações dessa natureza com um pai, tio ou irmão mais velho
haviam continuado até uma idade em que se devia confiar na
lembrança. (1980 [1925], p. 47, grifo meu)
No entanto, dúvidas, hesitações e fracassos clínicos levaram Freud
a abandonar a teoria da sedução. Em setembro de 1897, ele expõe sua
descrença a Fliess no famoso “segredo”: “não acredito mais em minha
neurótica” (ver MASSON, 1986, p. 265, grifo meu).
Freud foi obrigado a reconhecer que as cenas de sedução não teri-
am necessariamente ocorrido, o que o levou à conclusão de que “os sin-
tomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos re-
ais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante à
neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade
material” (1980 [1925], p. 48). Essas fantasias eram constituídas de cenas
que se destinavam “a encobrir a atividade auto-erótica dos primeiros
anos de infância, embelezá-la e elevá-la a um plano mais alto [...] detrás
das fantasias, toda a gama da vida sexual da criança vinha à luz ” (FREUD,
1980 [1914], p. 28).
Assim, tanto a infância quanto a sexualidade continuavam forte-
mente presentes e efetivas na nova hipótese sobre a etiologia das neuro-
ses, só que em um contexto totalmente diferente: não mais a realidade
dos fatos de infância, mas a realidade psíquica constituída pelos desejos
inconscientes e pelas fantasias a eles vinculadas.
 Nessa ruptura modifica-se a significação da infância, pois ela se
deslocou do registro genético e cronológico para o da lógica do inconscien-
te. “Foi aqui que se constituiu propriamente o conceito de infantil, mar-
cando sua diferença com a noção evolutiva de infância. Existiria assim
um infantil no psiquismo que seria irredutível a qualquer dimensão cro-
nológica e evolutiva [...]” (BIRMAN, 1997, p. 19).
Uma outra maneira de pensarmos essa diferença é constatar a peque-
na importância que Freud concedeu à sua relação direta com as crianças –
58
observações e escuta – no processo de elaboração de determinadas teses
de sua teoria.
 Por um lado, não podemos esquecer que, durante quase dez anos
(1886-1896), Freud exerceu pediatria no Instituto Kassowitz de Viena;
que se relacionou com os próprios filhos e que analisou, além de Hans,
algumas outras crianças, cujos casos não considerou dignos de publi-
cação (ver SAURET, 1992, p. 33-42). Ele também encorajou seus alunos e
amigos, durante os anos iniciais do século XX, a observar diretamente
as crianças, a fim de obter provas da solidez de suas idéias sobre a
sexualidade infantil.
Paradoxalmente, no entanto, no final do relato do caso Hans (1909),
ele afirma: “Falando francamente, não aprendi nada de novo com essa
análise, nada que eu não tivesse sido capaz de descobrir [...] em outros
pacientes analisados numa idade mais avançada ” (1980 [1909], p. 152).
Posteriormente, em 1914, ele volta a restringir a importância do contato
com as crianças, dizendo que “ a convicção da existência e da importân-
cia da sexualidade infantil só pode ser obtida, pelo método da análise,
partindo-se dos sintomas e peculiaridades dos neuróticos e acompanhan-
do-os até suas fontes últimas, cuja descoberta então explica o que há
nelas de explicável e permite que se modifique o que há de modificá-
vel”. (1980 [1914], p. 28). Assim, a certeza sobre a sexualidade infantil
foi obtida a partir do dispositivo analítico, e não das observações sobre
as crianças, que valeram apenas como verificação das teses.
Portanto, suas conclusões teóricas sobre a sexualidade infantil esti-
veram, desde o começo, na dependência dos ditos dos seus analisantes
adultos. A sexualidade infantil não é então uma experiência pura de gozo
vivida pelas crianças. Ela não está desatrelada dos efeitos do significante,
pois é o que restou desse gozo ao longo do processo de reconstrução
simbólica realizada em análise. Em outros termos, “a sexualidade in-
fantil é o encontro traumático com o sexual visto retroativamente a
partir dos efeitos do recalque, em particular o sintoma neurótico”
(BARROS, 1995, p. 80-81).
Mas, afinal, de que maneira Freud descreveu o infantil como caráter
essencial e incurável da sexualidade humana, desmascarando não só a
ideologia da inocência das crianças, mas a de qualquer ser falante, já que
a criança – que ele é ou terá sido – é, antes de tudo, inconfessável? Por que
tanto o recalcamento quanto a amnésia precisam silenciar o infantil?
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud, buscando
esclarecer a natureza da pulsão sexual, vai interrogar a vida sexual da
59
criança. No ensaio, propriamente dedicado a ela, afirma que a criança
está predisposta a se tornar “perversa polimorfa” por suas pulsões parciais
que a impulsionam a gostar de chupar, de se exibir, de ficar olhando, a ter
uma atividade anal e uma atividade sadomasoquista... Além disso, a
criança encontra poucas resistências em se satisfazer dessas diferentes for-
mas, já que, nela, as “barreiras psíquicas” – vergonha, repugnância, mora-
lidade – não se opõem aos excessos ou transgressões sexuais.
Essas pulsões são independentes, anárquicas, pois não se situam e
nem se organizam em torno de uma parte específica do corpo, como,
por exemplo, a zona genital. Aliás, ao buscar a satisfação em partes do
próprio corpo ou do corpo do outro, essas pulsões estão longe de terem
o genital como fim. Trata-se de um traço de perversão que se diferencia
da estrutura perversa, pois a criança não se submete, como o perverso, a
argumentos ou objetos fixos, a condições absolutas para o gozo. Ela cir-
cula, é “poli”.
A característica mais nítida da atividade sexual da criança é que
ela, primordialmente, se dirige para o próprio corpo como objeto de sa-
tisfação e não para uma outra pessoa. Essa solidão desfrutável a partir
da paixão por esse paradoxalprimeiro parceiro – o próprio corpo – e a
irrupção do gozo masturbatório conferem à criança uma ilusão de auto-
suficiência: ela acredita que possui as potencialidades de sua própria
determinação. Podemos entender essa posição como forma de reação à
sua dependência radical ao Outro. Ela depende do outro não só para
sobreviver, em função de sua realidade biológica extremamente frágil;
depende também do Outro, com sua anterioridade lógica e desejo, para
torná-la humana, desejante.
A pulsão sexual é ainda responsável pela emergência da demanda
de saber das crianças, suscitada por questões urgentes da vida cotidiana
como, por exemplo, a chegada de um novo irmão ou o temor de que isso
aconteça: “De onde vêm os bebês? O que meus pais fazem um com o
outro para terem bebês? O que são as relações sexuais?” De maneira mais
direta, a criança busca saber de onde ela vem e o que representa para seus
pais. Enfim, ela quer saber como e por que sua existência relaciona-se
com o fato de que seu pai fez de uma mulher a causa de seu desejo.
Se a reprodução e a vida aparecem como questões é porque no
inconsciente não há registro da relação sexual: ela “não existe”. Isso
não quer dizer que não ocorra copulação entre os seres humanos, mas
sim que os seres falantes não se reconhecem como sexuados, como
homem e mulher, a partir do chamado ato sexual. Diferente do discur-
so biológico que concebe a reprodução como a união entre um óvulo e
60
um espermatozoíde – escrita genética da relação sexual – o discurso
analítico pressupõe que o real do sexo produz impasses para os seres
falantes, uma vez que, no campo da linguagem, o masculino e o femi-
nino estão sujeitos à lógicas distintas – eles não se complementam em
uma união. Em outros termos, tanto a diferença sexual quanto a rela-
ção sexual não estão inscritas no inconsciente, o que torna a reprodu-
ção algo misterioso, enigmático.
Mais uma vez assumindo posição ativa, as crianças investigam e
produzem com perspicácia “teorias sexuais” – produções de saber que
visam ao gozo e que estabelecem relações dialéticas com ele. Apesar de
“equívocos grotescos”, esses “filhos teóricos” possuem um “fragmento
de verdade” em função de sua origem – os componentes da pulsão se-
xual (ver FREUD, 1980 [1905], p.202 e 1980 [1908], p. 218, 221, 224 e 225).4
Assim, a teoria oral-anal da criança gerada num beijo e parida como
excremento numa evacuação, a concepção sádica-anal do coito são lei-
turas e significações ligadas ao objeto da pulsão dominante.
Essa produção de saber sobre o gozo é também uma forma de gozo.
Freud observou que “é freqüente que a essas investigações se associe
uma atividade masturbatória “ ou que o pênis da criança ficou excitado
“no momento em que ela principiou a refletir sobre a origem dos bebês”
(1980 [1908], p. 223-224 e 227). O saber é, portanto, também nesse mo-
mento, o exercício de um gozo: curiosidade sexual-excitação sexual.
Freud considera que essas teorias são a matriz da futura neurose do
adulto e por isso conhecê-las é indispensável “para uma compreensão
das próprias neuroses, já que nestas ainda atuam as teorias infantis, exer-
cendo uma decisiva influência sobre a forma assumida pelos sintomas”
(1980 [1908], p. 215). Antes da reelaboração que sofrem na puberdade,
essas teorias também podem ser entendidas – conforme sugere Geneviève
Morel – como “um outro nome do fantasma na infância” (1990, p. 35).
A autoridade e o saber “pedagógico” dos adultos entram em confli-
to com esse saber elaborado pelas crianças a partir das pulsões sexuais,
produzindo nelas uma “clivagem psíquica”, que fará com que as teorias
infantis formem o “conjunto das opiniões recalcadas e inconscientes”
(ver FREUD, 1980 [1908], p.217). Poderíamos dizer que a produção de
4 Em 1910, Freud acrescenta um complemento às teorias sexuais infantis com Leonardo
da Vinci e uma lembrança da sua infância. Nessa lembrança de infância, Freud lê, entre
outras coisas, uma crença inconsciente na existência do pênis materno, que determi-
nará a homossexualidade platônica de Leonardo. Nesse estudo, ele também aponta
os três destinos possíveis do impulso ao saber depois do período de latência: a inibi-
ção neurótica, a compulsão de pensar e a sublimação (ver 1980 [1910], v.XI).
61
saber faz “passar” o gozo ao inconsciente, uma das maneiras de enten-
der a definição que Rosine e Robert Lefort dão do infantil: “o infantil é a
estrutura, isto é, o efeito do significante na constituição do sujeito do
inconsciente” (LEFORT, sd, p. 3).
Nesse movimento de “clivagem psíquica” e recalcamento das teorias
sexuais infantis se formaria, segundo Freud, “o complexo nuclear de
uma neurose”(ver 1980 [1908], p. 217). Essa expressão deve ser entendi-
da em uma acepção mais ampla do que aquela que assume posterior-
mente, quando Freud caracteriza o complexo de Édipo como “comple-
xo nuclear” da neurose (ver, por ex.,1980 [1910], v. XI, p. 154).
O Édipo, aliás, gera controvérsias sobre a relação, em Freud, entre
“o infantil” e a “neurose infantil”. Para Geneviève Morel, por exem-
plo, o “complexo nuclear” de que fala Freud nas Teorias sexuais das
crianças (1908) é o que ele batizará mais tarde de “neurose infantil”
(ver 1990, p. 36). Já Michel Héraud estabelece uma distinção entre as
duas noções, definindo o infantil como “o nome mítico de uma via de
entrada no inconsciente”, enquanto a neurose infantil se inscreve em
uma temporalidade que só tem sentido se referida ao complexo de Édi-
po (ver HÉRAUD, sd, p. 25-26). Marie-Jean Sauret, por sua vez, definirá o
“infantil” como “a exploração inicial das relações do sujeito ao Outro
[...] até a crise (neurose infantil) que a conclui, antes da dissolução do
complexo de Édipo” (1992, p. 325).
De todo modo, um aspecto deixa Freud intrigado: como um “fato
fundamental” e indiscutível – a existência de dois sexos – não é considera-
do como “ponto de partida” das investigações sexuais das crianças? (Ver
1980 [1908], p. 215). Essa diferença não desperta curiosidade: dela elas
nada querem saber. Aliás, chegam mesmo a elaborar uma teoria – “todos
têm pênis” ou a mulher fálica – que confirma o “ponto cego” desses pes-
quisadores. O eixo dessa teoria é o privilégio – produzido a partir do gozo
masturbatório – concedido a uma zona erógena específica do corpo: o
pênis ou o clitóris (considerado como um pênis que ainda vai crescer).
No “momento crítico” de descobrir a existência da vagina e do pa-
pel do pai no ato sexual e na procriação, “a criança perplexa e impotente
é obrigada a interromper sua investigação. O obstáculo que impede que
ela descubra a existência de uma cavidade que acolhe o pênis é a sua
própria teoria de que a mãe possui um pênis, como um homem” (FREUD,
1980 [1908], p. 221-222). Nesse aspecto a teoria adquire função de desco-
nhecimento: seu saber visa a desmentir (Verleugnung) a verdade da cas-
tração – limite das teorias sexuais infantis. Em outros termos, o comple-
xo de castração assinala o ponto em que essas teorias fracassam.
62
Em A organização genital infantil (1923), Freud busca “reparar uma ne-
gligência” com relação à sua teoria da sexualidade. Trata-se da tese do falo
como limite para o campo do infantil. Ele constata que a característica prin-
cipal da organização infantil “não é uma primazia dos órgãos genitais, mas
uma primazia do falo” (FREUD, 1980 [1923], p.180). O interesse por essa parte
do corpo, rica em sensações, leva a criança a empreender novas investiga-
ções que a conduzem a descobrir que “o pênis não é um bem comum a
todas as criaturas que a ela se assemelham” (ibidem, p. 181).
Essa falta percebida na própria mãe – uma mulher digna de respeito
– leva a criança a questionar a tese da universalidade do pênis que a sus-
tentava narcisicamente. A criança constata que “a falta de um pênis” é
“resultado da castração” e “se defronta com a tarefa de chegar a um acor-
do com a castração em relação a si própria” (FREUD, 1980 [1923], p. 182).
Estabelece-se, desse modo, que a posição diante da castração – do
impossível de se inserirno campo da linguagem – diferencia a organiza-
ção genital infantil da organização genital do adulto.
A descoberta da vagina, da feminilidade e do papel do pai na rela-
ção sexual, a partir do complexo de castração, introduz, de acordo com
os sexos, diferenças de posição com relação ao Édipo.
De fato, Freud pensa a castração, privilegiando a perspectiva anatômi-
ca, ainda que em suas conseqüências e não pela observação direta. Por isso,
Lacan, em A significação do falo (1958), observa que a problemática freudiana
com relação ao falo é marcada em termos de ter ou não ter: “Aí se assina a
conjunção do desejo, dado que o significante fálico é sua marca, com a ame-
aça ou nostalgia de sua falta-a-ter” (LACAN, 1998 [1958], p. 701).
 A problemática fálica, enquanto medida para os dois sexos, pode
ser assim resumida: de um lado, temos o significante fálico que marca
para sempre o desejo e, de outro, a repartição entre os sexos se faz a
partir do ter – ameaça sobre o ter do menino ou então nostalgia da falta-
a-ter para a menina. A inveja do pênis (Penisneid) aponta para a nostalgia
de algo que nunca foi possuído; inversamente, para o menino, que tem o
pênis, aparece a ameaça permanente de perdê-lo.
Assim, o menino desiste de sua posição edipiana – ligada ao amor
incestuoso pela mãe, em função da ameaça de castração – e a menina,
em simetria inversa, entra no complexo de castração a partir do momen-
to em que descobre que sua mãe não tem o pênis. Ela volta-se para o pai
com a esperança de que ele lhe dê o falo. Temos, então: menino – saída
do Édipo pela castração; menina – entrada no Édipo pela castração.
63
No escrito citado anteriormente e em outros produzidos nessa épo-
ca,5 Lacan introduz uma novidade na concepção freudiana. Ele mantém
a idéia do falo como “instrumento de medida” para os dois sexos, mas
acrescenta a noção do ser. A problemática se torna, então, “ser ou ter o
falo” e a diferença dos sexos se estabelece a partir da maneira como o
sujeito se refere a essa possibilidade (“não ter e ser”, “ter e não ser”,
“fazer semblante que se tem quando não se tem”). Já a partir dos anos
70, com as “fórmulas da sexuação”, Lacan abordará essa diferença atra-
vés de uma perspectiva lógica, que postula a “função fálica” como uni-
versal e introduz o conceito de “não-toda” fálica para caracterizar a fe-
minilidade. Feminilidade que não encontra sua essência na castração ou
no gozo fálico: trata-se de um Outro gozo (sobre esse percurso na obra
de Lacan, ver MOREL,1995, p. 44-64).
De todo modo, como dissemos, a castração só ganha efetividade
para a criança quando ela reconhece a castração da mãe e, conseqüente-
mente, o desejo do Outro: “o que o Outro quer de mim, além daquilo
que me demanda?” A partir de sua posição de objeto, essa pergunta, no
entanto, pode encontrar como resposta os caprichos e a vontade de gozo
do Outro. Nesse sentido, Sauret vai definir o infantil “como os traços do
gozo do Outro”, algo que aponta para um “mais além do princípio do
prazer” e que faz objeção ao saber inconsciente.
Anibal Leserre afirma que o infantil pode ser chamado de diferen-
tes maneiras, como, por exemplo, “núcleo do real” ou “o que foi excluí-
do do simbólico, o recalque originário”. Todas essas maneiras implicam
“no questionamento da igualdade entre infantil, criança e pessoa, situan-
do a equivalência entre infantil, recalcado e sexualidade” (ver 1994,
p. 145-146).
Joel Birman, por sua vez, considera que o sujeito é “infantil por vo-
cação”, uma vez que o infantil revela a sua posição de desamparo frente
à “exigência de trabalho da pulsão”. Ele sistematiza da seguinte maneira
a elaboração freudiana sobre o infantil:
Dos primórdios da investigação psicanalítica até os anos de 1915
e 1920, o infantil se identificava com o registro da sexualidade,
isto é, com o campo do desejo e com o que era regulado pelo
princípio do prazer. Após os anos 1920, em contrapartida, o in-
fantil passa a ser circunscrito como o que não pode ser erotizado
e como o que é regulado por um além do princípio do prazer. Vale
5 Ver, por exemplo, A direção do tratamento e os princípios do seu poder(1958); Diretrizes
para um Congresso sobre a sexualidade feminina (1960).
64
dizer, o infantil passa a ser identificado com o real da angústia e
com o trauma, com aquilo capaz de lançar o sujeito no desampa-
ro e de promover o seu esfacelamento. (BIRMAN, 1997, p. 24)
Freud constatou que era “impossível não reconhecer que a disposi-
ção para as perversões de toda espécie é uma característica humana geral
e fundamental” (FREUD, 1980 [1905], p. 196). Fazer falar essa condição per-
versamente polimorfa, fazer falar o infantil – esse traço de perversão no
fantasma – é, de certa maneira, uma das razões da experiência analítica.
65
... a criança o diz; cabe a nós escutá-la
sem nos apegarmos a um saber que poderia produzir
fechamento, que produz fechamento; cabe a nós nos
tornarmos disponíveis, fazer tábula rasa de um
discurso prematuro – o nosso, ou o dos pais – e não ser
mais que uma voz para deixar lugar à criança como
analisante por inteiro.
 (LEFORT, 1991, p. 12)
Diferentes autores, como Leo Kanner, Julian de Ajuriaguerra e Paul
Bercherie, são unânimes: no início do século XX, não havia nada que
pudesse ser chamado de psiquiatria infantil. Embora alguns conside-
rem que suas raízes encontrem-se nas experiências pedagógicas, reali-
zadas séculos atrás, com deficientes mentais e sensoriais (surdos-mu-
dos, cegos), a clínica psiquiátrica da criança – enquanto clínica específica
com conceitos e métodos próprios – só se estabeleceu a partir da década
de 30 (ver KANNER, 1971, p. 27; AJURIAGUERRA, 1980, p. 3-5 e BERCHERIE,
1983, p. 100). Portanto, a clínica psiquiátrica da criança constitui-se de-
pois do advento da psicanálise, enquanto a clínica psiquiátrica do adul-
to é essencialmente pré-psicanalítica.
Durante décadas, pediatras e psiquiatras infantis consideraram a
teoria psicanalítica importante para a sua formação, ainda que essa pro-
ximidade implicasse, muitas vezes, na desconsideração da radicalidade
da descoberta freudiana, assimilada como um complemento ao saber
psiquiátrico. Marcados especialmente pelas perspectivas da Ego psycho-
logy de Anna Freud (1895-1982) e do objeto dividido de Melaine Klein
(1882-1960), alguns pediatras e psiquiatras infantis desenvolveram con-
ceitos e hipóteses psicanalíticas principalmente no campo do autismo e
das psicoses infantis. Podemos citar, por exemplo, René Spitz (1887-1974),
Margareth Mahler (1897-1985) e Donnald Winnicott (1896-1971). Entre
Psicanálise, psiquiatria
e saúde mental infantil
66
os franceses, encontramos René Diatkine, Serge Lebovici e, recebendo
influência do ensino de Lacan (até os anos 60): Françoise Dolto (1908-
1988) e Maud Mannoni. Já, no Brasil, o momento de formação da psi-
quiatria infantil está basicamente centrado nas décadas de 50-60, a partir
da influência da psiquiatria francesa e da chamada “psicodinâmica”
divulgadas por Stanislau Krynski, que é quem prefacia, em 1969, a
tradução brasileira do livro de M. Klein, A psicanálise da criança (1932)
(ver ASSUMPÇÃO, 1995, p. 148).
Atualmente, no entanto, a relação dos psiquiatras infantis com a
psicanálise mudou radicalmente. A disputa no campo da atenção à saú-
de mental da criança é intensa: há uma série de especialistas – neurolo-
gistas, pediatras, psicólogos, psicopedagogos, psicanalistas, fonoaudió-
logos – e o psiquiatra infantil é, de certo modo, “discriminado” pelas
famílias a partir da relação, presente no imaginário social, entre psiquia-
tria e loucura. Nesse contexto, a psiquiatria infantil busca, cada vez mais,
se estabelecer como especialidade médica independente, encontrando
na concepção psiquiátrica americana a sua principal referência. Difunde-
se então a defesa das neurociências e das pesquisas diagnósticas e tera-
pêuticas, bem como os critérios classificatórios (DSM-IV e CID-10), a fim
de se respaldar “cientificamente” a disciplina. Essa lógica de uma “clí-
nica da medicação” concedeespaço apenas para as teorias comporta-
mentais e cognitivas, excluindo-se a psicanálise como “ultrapassada e
ineficaz” (Sobre a atualidade das relações entre a psicanálise e a psiquia-
tria, ver QUINET (org.), 2001).
Neste capítulo, retomaremos, principalmente, as diferentes análi-
ses de Kanner, Ajurriaguerra e Bercherie sobre a história da formação do
saber psiquiátrico sobre a criança. Buscaremos verificar a relação que
estabelecem entre a psiquiatria infantil e a psicanálise e a forma como
elas se inserem no campo da saúde mental infantil.
Abordar a história de uma disciplina como a psiquiatria infantil
não é, como veremos, algo simples. Por um lado, ela se situa como um
saber que não pode desconsiderar os aspectos genéticos, neurológicos e
somáticos de um ser biologicamente imaturo e, por outro, não pode des-
conhecer os fenômenos psíquicos, bem como os aspectos sociais e cultu-
rais que envolvem a criança. Trata-se, portanto, de um saber médico que
se vê obrigado a defrontar-se com uma série de questões colocadas pe-
las chamadas “ciências humanas”. Para Lacan, essa expressão sugere “a
própria voz da servidão”. Segundo ele, “não há ciência do homem por-
que o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito”. O homem da
ciência só serviria para designar o psicólogo “que descobriu meios de se
67
perpetuar nos préstimos que oferece à tecnocracia” (1998 [1966] p. 859,
ver item da “neuropsiquiatria à psicopedagogia”). Além disso, em psi-
canálise, a relação entre o sujeito e o objeto se dá forma inteiramente
singular – o sujeito e o objeto não partilham qualquer identificação e o
objeto é situado como causa do sujeito.
Já a partir da reflexão epistemológica, a exigência de uma neutrali-
dade científica absoluta, resultante da perspectiva positivista, não se
sustenta no campo das ditas “ciências do homem”. Essa neutralidade é
o correlato de uma representação do objeto da ciência como da ordem do
absoluto. Em outros termos, esse objeto é definido como uma essência
fechada em si mesma, que se mantém como uma invariante ao longo do
tempo sem sofrer a incidência da história e dos diferentes códigos de
linguagem. Ora, nesse campo, onde o sujeito e o seu objeto se identifi-
cam em diferentes níveis, essa pretensa neutralidade é impossível, pois
a constituição de seus objetos teóricos é necessariamente marcada pela
problemática dos valores: as escolhas teóricas cruciais do cientista reve-
lam seus compromissos éticos e políticos.
Foi a introdução da investigação filosófica no campo da história
das ciências que permitiu a crítica rigorosa dos postulados da perspec-
tiva positivista. O objeto da ciência perdeu a aura de uma essência
transcendental, passando a ser definido por coordenadas sustentadas
pela história e pelas “potencialidades lingüísticas”, que funcionam
como condições de possibilidade de qualquer discurso científico (ver
BIRMAN, 1988).
Nesse sentido, a definição do objeto da psiquiatria infantil como “a
criança que sofre de transtornos mentais ou de dificuldades psicológi-
cas” – proposta, por exemplo por Didier-Jacques Duché – mostra-se pou-
co consistente e muito genérica (ver DUCHÉ, 1971, p. 5).
Para Ajuriaguerra (1911-1993) e Marcelli, a psiquiatria da criança,
ainda mais que a do adulto, constituiu-se empiricamente a partir da práti-
ca e não de uma elaboração teórica. A reflexão e a tentativa de compreen-
são clínica só teriam surgido secundariamente, levando os psiquiatras
infantis a utilizarem “fontes teóricas bem diversas”, na busca de tornar
mais rigoroso seu exercício profissional. Por sua vez, a extensão e multi-
plicidade desses referenciais teóricos – que vão desde as teorias genéti-
cas, etológicas, sistêmicas e da comunicação, passando pela psicologia
da aprendizagem e pela psicanálise até os novos conhecimentos neuro-
fisiológicos – formam um “mosaico conceitual” que aponta para a difícil
questão da delimitação do objeto da psiquiatria infantil. O texto citado
por Ajuriaguerra e Marcelli é preciso com relação a isso:
68
não é o mesmo olhar que dirigem para a criança Freud, Piaget,
Wallon e muitos outros. Não são os mesmos fatos os que vêem
nem os mesmos comportamentos os que descrevem. A maneira
pela qual estudam seu objeto, tanto pelo método quanto pela
referência teórica, dá a esse objeto, em todos os casos, uma
significação diferente, às vezes mesmo oposta. (CONSTANT, apud
AJURIAGUERRA e MARCELLI, 1986, p. 16)
RETARDAMENTO E DELINQÜÊNCIA
Leo Kanner (1894-1981), no primeiro capítulo do seu manual de
Psiquiatria Infantil (1935) – que Paul Bercherie considera a principal obra
de referência da especialidade –, traça um esboço histórico do nascimento
da psiquiatria infantil, considerando que acontecimentos de diferentes
ordens teriam contribuído para que as crianças fossem incluídas no do-
mínio do saber e da prática psiquiátricos (ver KANNER, 1971, p. 29-38).
Seu estudo das quatro décadas (1900-1940) que, segundo ele, pre-
param a inserção da psiquiatria infantil no campo do “conhecimento
científico”, privilegia as referências aos Estados Unidos com dados pre-
cisos e minuciosos, enquanto que as informações sobre outros países são
raras e vagas.
Uma possível justificativa para essa ênfase pode ser encontrada no
percurso profissional de Kanner. Apesar de ser austríaco e de ter estuda-
do medicina na Universidade de Berlim, ele desenvolveu sua carreira
nos EUA. Em 1927, chegou ao John Hopkins Hospital de Baltimore para
trabalhar com Adolph Meyer – um dos fundadores da chamada psiquia-
tria dinâmica americana – que lhe confiou, em 1930, o serviço de psiquia-
tria infantil anexo ao serviço universitário de pediatria. Não tendo ne-
nhuma formação específica nesse campo, começou a estudar a literatura
mundial (sabia cerca de seis línguas) até publicar o seu manual. No en-
tanto, só teve acesso à cátedra de psiquiatria infantil em 1955, depois de
já ter descrito, em 1943, o quadro que o tornou conhecido mundialmente
– o autismo infantil precoce.
O primeiro decênio (1900-1910) assinalaria o aparecimento de “ten-
dências culturais” favoráveis à abordagem psiquiátrica das crianças.
Kanner destaca quatro pontos: a introdução da psicometria – método de
avaliação da famosa idade mental, através do teste de desenvolvimento da
inteligência criado pelos franceses Alfred Binet (1857-1911) e Théodore
Simon (1873-1961); o advento da psiquiatria dinâmica (que, influenciada
pela psicanálise, passou a valorizar a história do paciente no entendimen-
to dos quadros, lançando luzes sobre o período da infância); a instalação
69
dos tribunais de menores e a criação do movimento de Higiene mental,
que trataremos, com mais detalhes, a seguir.
Na segunda década (1910-1920), Kanner enfatiza principalmente a
criação de diferentes instituições públicas voltadas para a assistência de
crianças delinqüentes, abandonadas e retardadas. Foram essas experiên-
cias que possibilitaram ao educador austríaco August Aichhorn publi-
car Juventude abandonada (1925), livro que foi prefaciado por Freud (ver
1980, [1925], vol.XIX).1
O terceiro decênio se caracterizaria pela instalação de um grande
número de “clínicas de orientação infantil” – no final da década de 30,
havia cerca de quinhentas Child-Guidance Clinics nos E.U.A. Cada clíni-
ca contava com equipes multiprofissionais formadas por psiquiatras, psi-
cólogos e assistentes sociais, que “estimulavam” os pais, as escolas e
outras instituições a enviar-lhes as crianças de “conduta estranha ou
desorientada”. Para Kanner, essas clínicas contribuíram, de modo efi-
caz, para o tratamento e a interpretação dos problemas infantis, pois
estabeleciam relações entre as condutas das crianças e as atitudes (su-
perproteção, perfeccionismo, hostilidade) dos pais e professores. For-
jou-se, então, um “novo conceito”: a terapêutica da atitude. Além disso,
intensificaram-se os contatos entre professores e médicos, família e es-
cola, que, em conjunto, tentavam encontrar a melhor estratégia para li-
dar com as “crianças difíceis”. Esse foi, sem dúvida, ummodelo que
teve, posteriormente, repercussão no Brasil, encontrando talvez sua prin-
cipal expressão nas chamadas “clínicas da LBA”.
O quarto decênio (1930-1940) assinalaria o processo de sistematiza-
ção das técnicas psicoterápicas, em especial das terapêuticas através de
brinquedos e jogos, interpretados de acordo com as orientações de Anna
Freud. Desde então, as crianças foram engajadas diretamente nos trata-
mentos, buscando-se modificar o seu comportamento e não mais ape-
nas as atitudes de suas famílias e professores.
Uma indicação do psiquiatra espanhol Alonso Fernández parece-
nos bastante pertinente para a compreensão da ênfase dada por Kanner
– em sua análise histórica da constituição do saber psiquiátrico sobre a
criança – a certas práticas exteriores a esse saber, como, por exemplo, os
tribunais de menores. A. Fernández considera que, enquanto na Europa
a psiquiatria infantil “brotou” no campo da deficiência mental, nos Estados
1 Existe uma outra tradução do prefácio de Freud, realizada, por Eduardo Vidal, a
partir do texto em alemão (ver Letra Freudiana, n. 23. A criança e o saber. Rio de
Janeiro: Revinter, 1999, p. 2-5).
70
Unidos os primeiros estudos e atividades terapêuticas da especialidade
centraram-se nos transtornos de conduta, em especial na “delinqüência
infantil” (ver FERNÁNDEZ, 1979, p. 795). No Brasil, ou pelo menos em Mi-
nas Gerais, a emergência da psiquiatria infantil é marcada tanto pela
importância dada à questão do retardamento, tal como na Europa, quanto
pela preocupação com a delinqüência, tal como nos E.U.A. (ver CIRINO,
1992, p. 46-79).
Nesse sentido, vamos nos estender um pouco mais na análise de
Kanner sobre a instalação dos tribunais de menores e sobre o movimento
de Higiene mental nos EUA. De acordo com ele, até o final do século XIX,
a justiça americana não estabelecia diferenças entre os adultos e as crian-
ças que transgredissem as leis. A modificação dessa prática teria ocorri-
do na primeira década do século XX, como resultado de diversas pres-
sões sociais, especialmente a exercida pelas organizações filantrópicas.
Com os tribunais de menores, as crianças delinqüentes passaram a ser
abordadas de forma diferente dos adultos, através de uma atmosfera
menos formal do julgamento e do uso de salas e horários especiais.
Além da condenação ou da absolvição, estabelecidas a partir da
gravidade da transgressão e da culpabilidade, uma terceira possibilida-
de foi introduzida a partir desses tribunais: o regime de liberdade vigiada.
O juiz considerava que a criança necessitava ser guiada e colocada sob a
atenção de um “agente de vigilância” que se encarregaria de cuidar, pro-
por atividades recreativas e protegê-la da atitude equivocada dos pais,
como também da “vingança do bando” ao qual pertencia.
A multiplicação desses tribunais conduziu, por sua vez, os juízes
a se interrogarem sobre as razões que levavam as crianças a comete-
rem diferentes delitos. Essa curiosidade impulsionou-os a consulta-
rem psiquiatras e psicólogos que, desse modo, “viram-se obrigados a
se ocuparem diretamente da conduta infantil e de suas motivações”
(KANNER, 1971, p. 32).
Esse processo de inserção dos profissionais “psi” nos tribunais de
menores é analisado, com perspicácia, pelo sociólogo francês Jacques
Donzelot, em A polícia das famílias (1977), especialmente no capítulo “O
complexo tutelar” (ver 1980, p. 91-152). Segundo ele, o nascimento da
psiquiatria infantil deve ser compreendido a partir da “procura de uma
convergência entre os apetites profiláticos dos psiquiatras e as exigências
disciplinares dos aparelhos sociais”. Assim, a psiquiatria infantil não
está, inicialmente, “ligada à descoberta de um objeto próprio, de uma
patologia mental especificamente infantil”, mas, sim, à necessidade da
psiquiatria de “designar um possível objeto de intervenção para uma
71
prática que não pretende mais limitar-se a gerir os reclusos, mas sim
presidir à inclusão social” (DONZELOT, 1980, p. 120-121).
HIGIENE, SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Em consonância com essa perspectiva, nasce também nos EUA, no
início do século XX, o movimento de Higiene Mental. Os grandes pro-
gressos em determinadas áreas da medicina (especialmente, a bacterio-
logia), possibilitando intervenções preventivas, fomentaram a idéia de
que a doença mental podia igualmente ser objeto de medidas profiláti-
cas. Se era possível tomar medidas para evitar a varíola e a tuberculose,
também se poderia encontrar uma “maneira de prevenir a insanidade e
o crime”. Assim, à higiene corporal e à higiene pública somava-se, ago-
ra, a higiene mental.
A “vigilância à saúde” possibilitava um amplo campo de interven-
ção – não restrito aos médicos – que ia desde a mudança de hábitos
relativos ao trato do corpo, às condições de reprodução, à educação dos
filhos, às práticas recreativas até a transformação dos espaços (cidade,
moradia, escola, fábricas...). Assim, as práticas empíricas das pessoas no
cuidado de sua saúde deveriam ser substituídas pelo saber higienista e
da eugenia2, que estabelecia relações entre a hereditariedade e o meio,
visando aperfeiçoar a espécie humana.
A prevenção da insanidade e da delinqüência – lema do movimen-
to de Higiene mental – conduziu à concepção de que o melhor ponto de
partida era a observação dos primeiros sinais de desvio da conduta apa-
recidos na infância – “idade de ouro” para a higiene mental. Porém,
quais eram esses sinais? E quais eram as medidas preventivas e terapêu-
ticas que convinha adotar? Os psiquiatras, incitados a responder essas
questões, constataram, segundo Kanner, que não sabiam quase nada
sobre o significado das perturbações da conduta infantil, tratadas basi-
camente, até então, com procedimentos punitivos. Para ele, essa constata-
ção teve “conseqüência importante no desenvolvimento da psiquiatria
2 A palavra “eugenia” relaciona-se a um “conjunto de métodos que visam melhorar
o patrimônio genético de certos organismos vivos”. Foi utilizada pelo inglês Fran-
cis Galton, em fins do século XIX, sendo a primeira manifestação da genética liga-
da ao darwinismo. Preocupados em coibir a degenerescência humana, os eugenistas
vão propor desde a eliminação física dos indivíduos inferiormente dotados biopsi-
cologicamente até a idéia de esterilização e do incentivo à reprodução entre indiví-
duos superiormente constituídos. Como mostram VEIGA e FARIA (1999), a eugenia
é o domínio da “articulação entre os campos biológico, político e social marcando
efetivamente as intervenções que as elites fizeram na sociedade” (p. 36).
72
moderna; foi o começo do esforço sério, científico, para estudar, com-
preender e atender os transtornos pessoais que sofriam ou apresenta-
vam os jovens seres humanos” (1971, p. 33).
Os primeiros estudiosos dos problemas infantis concentraram, en-
tão, suas investigações nas desordens mais evidentes, buscando reme-
diá-las principalmente através do acolhimento em ambientes melho-
res, mais saudáveis. Investiu-se no aperfeiçoamento da assistência
pública, visando aos “delinqüentes declarados”, aos “visivelmente re-
tardados” e às crianças abandonadas e maltratadas.
Esse movimento de pedagogização da população teve repercussões
em nosso país com a fundação, em 1923, da Liga Brasileira de Higiene
Mental (LBHM), pelo psiquiatra Gustavo Riedel.3 Em suas ações, os
membros da LBHM visavam “à prevenção, à eugenia e à educação dos
indivíduos” (COSTA, 1980, p. 28). Seu alvo de cuidados não era, portanto,
o doente, mas o indivíduo saudável, que poderia ter uma vida psicoló-
gica ainda mais equilibrada, correndo menores riscos de enlouquecer.
As propostas teóricas e práticas da LBHM para a infância são anali-
sadas por Alfredo Schechtman (1981) em estudo específico sobre a cons-
tituição da psiquiatria infantil no Brasil. Já a presença e difusão das idéias
psicanalíticas – em especial a teoria da sexualidade – entre os membros
da LBHM é estudada por Sílvia Nunes, que mostra como a psicanálise
foi valorizada enquanto “uma auxiliar pedagógica de grandeUm preconceito?...............................................................................................
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Sumário
12
REFERÊNCIAS: A CRIANÇA NOS ESCRITOS (LACAN).......................................
Referências diretas............................................................................................
Referências indiretas........................................................................................
A CLÍNICA PSIQUIÁTRICA DA CRIANÇA: ESTUDO HISTÓRICO.........................
Paul Bercherie
O retardamento, único transtorno mental infantil........................................
A loucura (do adulto) na criança....................................................................
Nascimento de uma clínica pedo-psiquiátrica..............................................
Quadro teórico e metodologia clínica............................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................
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139
145
13
Prefácio
Desde os trabalhos de Philippe Ariès, sabemos que a infância é um
conceito essencialmente socioeconômico. A infância não foi sempre re-
conhecida como tal e se essa época da vida é atualmente tão valorizada,
isso se deve a inúmeros fatores, entre os quais é preciso destacar as exi-
gências de escolarização nos meios burgueses. A infância é, portanto,
tão mais reconhecida quanto o meio é rico e culto. Por isso, não há um
estatuto unívoco da infância para todo o planeta e podemos nos pergun-
tar qual é o real alcance dos famosos Direitos da Criança que se queria ver
aplicados em todos os lugares do mundo.
O livro de Oscar Cirino oferece a oportunidade de refletir sobre as
razões e as conseqüências dessa mutação histórica no estatuto da in-
fância e de avaliar todos os seus paradoxos, principalmente, na socie-
dade brasileira.
Ao ler esta obra, rica de referências bibliográficas, pareceu-me que
a difusão da psicanálise foi um elemento que, sem dúvida, contribuiu
para essa mudança de perspectiva sobre a época da infância. Isso é
evidente na prática médica; é incontestável, por exemplo, que a psiquia-
tria infantil provém diretamente do saber elaborado pelas diferentes
teorias psicanalíticas.
Mas, de maneira mais geral, na vida cotidiana, nos lugares onde se
pratica a psicanálise, os adultos tomaram consciência da importância de
sua infância; certamente, não mais olhamos as crianças da mesma ma-
neira a partir do momento em que fazemos uma análise.
Há aí, entretanto, um ligeiro mal-entendido, uma vez que a psica-
nálise do adulto não nos ensina nada sobre a infância; o que ela permite
é construir o infantil, que constitui o núcleo da neurose. Quanto à prática
da psicanálise com crianças, é preciso deixar claro que, na medida em
que saiba resistir à tendência educativa, ela se esforça sobretudo para
dar a palavra ao sujeito que não se reduz a ser a criança-objeto do Outro.
14
Quer se dirija a uma criança ou a uma pessoa grande, a psicanálise
acolhe a fala de um sujeito, ou seja, de alguém que não se encaixa em
nenhum quadro de saber universal. É por isso também que a aplicação
do saber psicanalítico, em uma política da saúde mental, tem poucas chan-
ces de ser eficaz. No entanto, face aos problemas da sociedade, os psica-
nalistas estão condenados ao silêncio?
Bernard Nominé
15
Todos os que convivem ou trabalham com crianças são cotidiana-
mente confrontados com questões relacionadas ao desenvolvimento, à
evolução e à história. Quanto tempo devo deixar o bebê mamar? Por
que ele ainda não engatinha? Será que não está demorando a falar? É
normal ela continuar se masturbando? Esse egoísmo, impaciência e alie-
nação vão passar? Ele vai se chamar Jorge em homenagem ao escritor
argentino... Ela é organizada como a avó ou teimosa como o pai...
De fato, são diversas as possibilidades evolutivas da criança: a ma-
turação neurológica, o desenvolvimento sensório-motor, os hábitos ali-
mentares e de higiene, o desenvolvimento cognitivo, os processos de
adaptação escolar e social. O próprio Estatuto da criança e do adolescente –
que os reconhece como sujeitos de plenos direitos – postula sua “condi-
ção peculiar” de “pessoas em desenvolvimento”. Assim, aos diferentes
fenômenos ocorridos no organismo agregam-se características psicoló-
gicas e comportamentais, o chamado “desenvolvimento emocional ou
afetivo”. Favorece-se, desse modo, a uma confusão conceitual, pois, quan-
do se fala do desenvolvimento da criança, misturam-se e sobrepõem-se
noções provenientes de lógicas distintas – a do ser vivo, a do ser falante
e a do ser social.
Marcado pela insígnia do desenvolvimento, o período da infância é
também considerado, sem dificuldades, como determinante na vida de
qualquer indivíduo. Tudo que nele acontece adquire papel fundamental
na formação não só do futuro adulto – para o qual, confessemos, não é
fácil encontrar um modelo ou tipo ideal –, mas do próprio desenvolvi-
mento humano.
A difusão da psicanálise também contribuiu para fortalecer a impor-
tância da infância, principalmente dos seus acontecimentos sexuais, que
se constituíram em fatores causais das neuroses. Propagaram-se seduções,
traumas e complexos, bem como as fases do chamado desenvolvimento
Apresentação
16
psicossexual, cujo estágio final – sua apoteose – seria a relação genital,
momento em que o sujeito estabeleceria uma relação “madura” com o
objeto. Confunde-se, portanto, o sujeito com o eu e define-se o objeto
como sendo primordialmente de satisfação.
Por outro lado, a concepção de que a criança não é apenas um “adulto
em potência” – ou seja, o adulto seria o fim e o sentido último do seu
desenvolvimento –, mas um ser com existência e características próprias,
encontra antecedentes no pensamento de Rousseau e no movimento ro-
mântico, fortalecendo-se, a partir do final do século XIX, com o discurso
científico da psicologia da criança e do seu desenvolvimento. Aliás, essa
é outra idéia pouco questionada: a divisão da existência humana em
períodos ou fases – infância, adolescência, maturidade e velhice – e a
crença de que é possível saber o que acontece ou deveria acontecer em
cada um deles.
No entanto, nunca podemos esquecer que a psicanálise não se cons-
titui em uma teoria sobre a infância, mas sobre o inconsciente e o gozo.
Para ela, o que importa não é a realidade dos fatos da infância, mas a
realidade psíquica constituída pelos desejos inconscientes e fantasias a
eles vinculadas. Por não ser uma psicologia evolutiva, a distinção entre
a criança e o adulto, para a psicanálise, só tem algum interesse a partir
de parâmetros diferentes do crescimento ou da maturidade. Isso porque
seu foco é tanto um sujeito que não tem idade – o sujeito do inconsciente
– quanto uma satisfação paradoxal que não se desenvolve – o gozo.
Podemos dizer que o processo maturativo do organismo humano
sofre, portanto, a presença de um sujeito – de alguém que subjetiva e dá
sentido a esses fenômenos – conduzindo ao fato de que, inevitavelmen-
te, seu desenvolvimento ordene-se na dialética da demanda de amor e
da experiência do desejo.
Daí a importância de se explicitar a diferença entre uma clínica da
infância que se faz a partir da perspectiva genética do desenvolvimento
psicológico e a clínica do infantil freudiano que se faz na vertente estrutu-
ral da divisão do sujeito entre o significante e o real do gozo.
Sabemos que foi possível construir com trechos seletos da obra de
Freud – sem considerar a lógica que o conduz – uma interpretação gené-
tica do seu pensamento, tornando-o uma psicologia evolutiva. Foi pre-
ciso o “retorno a Freud”, proposto por Lacan, para que se pudesse efetivar
uma crítica contundente à essa leitura e à noção de desenvolvimento em
psicanálise – noção que havia assumido feição normalizadora e até mora-
lista, relacionada ao acesso à fase genital e à capacidade de amar. Lacan
mostrouvalor”,
pois através dela se poderia corrigir as predisposições mórbidas da in-
fância e evitar futuros desvios. A educação infantil, referenciada na psi-
canálise, tornou-se, então, uma “pedra fundamental dos programas de
regeneração social” (NUNES, 1988, p. 111).
Nesse contexto, o tripé “higiene mental, higiene corporal e tra-
balho” se constituirá, em grande parte das propostas educativas, na
principal estratégia de formação das crianças (ver VEIGA & FARIA, 1999,
p. 34-41).
O psiquiatra e psicanalista belga Roger Wartel, tentando realizar
“uma arqueologia da saúde mental”, mostra como o movimento de
Higiene mental é, por seus objetivos e métodos, a matriz histórica do
que se chamará, no final de 1940, de “promoção da Saúde Mental”. A
substituição da higiene – identificada aos preceitos eugênicos da psi-
quiatria alemã – pela saúde pode ter relação com a vitória da ideologia
3 O estudo de Jurandir F. Costa sobre a História da psiquiatria no Brasil (1ed., 1976)
mostrou, de forma irrefutável, a influência que a Liga exerceu no controle da socie-
dade brasileira, nas décadas de 20 a 40.
73
americana. Com esse lema buscava-se considerar os problemas a partir
de uma perspectiva centrada na saúde, em um conjunto de aspectos
positivos (prevenção e educação), ao invés de se propor práticas volta-
das para a doença e os aspectos curativos e reabilitadores. Enfim, objeti-
vava-se estudar os fatores e meios que viabilizariam a inserção harmo-
niosa do indivíduo no ambiente.
A “busca de suspeitos” de doença mental ou de distúrbios emocio-
nais foi feita prioritariamente por questionários distribuídos à popula-
ção (screening), e seu resultado indicava possíveis candidatos ao trata-
mento psiquiátrico. Segundo Jurandir Freire Costa, uma importante
questão teórica emerge com essa proposta:
Em primeiro lugar, a Psiquiatria viu-se constrangida a aceitar que
a doença mental era uma doença do psiquismo e não do soma.
Em segundo lugar, não podendo recorrer, de modo exclusivo, ao
método das Ciências Naturais para explicar seu novo objeto, [ela]
foi obrigada a buscar em teorias e disciplinas não médicas as ba-
ses de sua nova prática. (COSTA, apud AMARANTE, 1995, p. 39)
A sociologia e a psicologia behaviorista foram as disciplinas que
tiveram seus conceitos absorvidos pela psiquiatria, contribuindo para
definir o indivíduo como a famosa “unidade biopsicossocial”. Assim,
as diferenças entre lógicas diversas – como a do organismo, a do psi-
quismo e a da sociedade – foram inteiramente desconsideradas em fa-
vor de uma suposta totalidade indivisível,4 nutrindo a concepção de
determinadas equipes multiprofissionais, onde o saber do médico se
somaria ao do psicólogo e ao da assistente social, produzindo como
resultado da operação, o indivíduo.
De todo modo, mesmo com essa repartição do saber, muitos ainda
consideram que quem está mais capacitado para efetuar essa soma é o
psiquiatra, que “é o profissional de saúde mental que melhor pode inte-
grar os achados médico-biológicos e as contribuições da psicologia, da
psicanálise e das demais ciências humanas” (FILHO, 1995, p. 9). De fato, o
que, na maioria das vezes, se produz nessas equipes são efeitos de ob-
jetivação e fragmentação dos sujeitos, o que acaba impossibilitando a
4 Jurandir F. Costa explicita a contradição teórica advinda da captura, pela psiquia-
tria, dos conceitos da sociologia e da psicologia behaviorista. Para a sociologia, a
prevenção é possível, pois ela opera uma distinção entre “sintoma e etiologia”. Já
para o behaviorismo, essa distinção não é pertinente: a doença mental só existe
quando o comportamento desviante acontece. Agir terapeuticamente sobre esse
comportamento não significa, portanto, prevenir, mas sim curar. Ver COSTA, apud
AMARANTE, 1995, p. 39-40.
74
consideração da particularidade de cada caso.5 Visando a evitar esse
risco, Carlo Viganò propõe a “construção do caso clínico” como uma
nova referência para o trabalho em equipe (ver 1999, p. 50-59).
Em suma, tanto a Higiene quanto a Saúde mental são dispositivos políti-
cos marcados por questões relacionadas à exclusão, à segregação e à margi-
nalização de certos grupos sociais (ver WARTEL, 1997-98, p. 102-109). A saúde
mental seria, antes de tudo, uma questão de ordem pública (ver MILLER, 1999,
p. 20-31).6 E, enquanto relacionada à saúde pública, suas instituições e políti-
cas assistenciais estão, cada vez mais, limitadas e submetidas a medidas, ín-
dices, cifras e sondagens cientificamente demonstráveis. Nesse quadro neo-
utilitarista, o único bem autenticamente reconhecido será a melhor relação
quantidade/qualidade/preço: “o resto é retórica” (ver LAURENT, 1997-98).
Em termos mais rigorosos, a saúde mental teria muito pouco a ver com
o mental e com a saúde, mantendo antes relação com o Outro do controle e
com o silêncio, uma vez que a definição mais clássica da saúde é o “silêncio
dos órgãos”. É preciso, então, distinguir o mental não só do físico, mas tam-
bém do psíquico, entendido como algo que possui lógica própria.
A mente não é, portanto, privilégio dos homens. Os animais tam-
bém a possuem e é ela – entendida enquanto visão, audição, olfato, me-
mória... – que lhes permite viver em seu ambiente. Ela é um órgão ne-
cessário à adaptação do organismo ao mundo, enfim, é um órgão útil à
vida. Assim, uma mosca pode gozar de perfeita saúde mental quando
seu organismo está em harmonia e equilíbrio com a sua realidade.
Já o homem, enquanto ser falante, aborda o mundo pelo social e seu
ambiente não tem nada de natural, pois está estruturado pela lingua-
gem e é pleno de direitos e deveres. Nele, a ordem psíquica deve ser
distinta da ordem mental. A lógica do inconsciente, estruturado como
linguagem, não se confunde com a mens, do famoso adágio latino mens
sana in corpore sano. Se a saúde é o silêncio dos órgãos, o inconsciente,
por nunca se calar, impede qualquer ideal de equilíbrio e harmonia en-
tre o corpo e a mente (ver MILLER, 1999, p.27-28).7
5 Ana C. Figueiredo analisa questões teóricas e práticas presentes no trabalho em
equipe interdisciplinar em Vastas confusões e atendimentos imperfeitos (1997), p. 57-
97. O prefácio à edição brasileira e a introdução do livro de Alfredo Jerusalinsky
(1999) também discutem a problemática do trabalho em equipe.
6 Um contraponto interessante às idéias de Miller é realizado por Ana Marta Lobos-
que em “Saúde mental, psicanálise e cultura” (1997), p. 39-45.
7 Figueiredo (1997) estabelece uma oposição entre o mental e o psíquico, consideran-
do que o primeiro porta uma significação mais associada ao orgânico, e o segundo
a algo designado como subjetivo. (ver p. 85-90).
75
De fato, a noção de saúde mental não possui um sentido unívoco. Para
alguns, ela opõe-se à psiquiatria tradicional, representado a superação da
ordem médica, através da distribuição dos cuidados psiquiátricos en-
tre outros profissionais. Para outros, ela supõe um complexo e sutil
dispositivo capilar de controle social. Há ainda os que entendem a saúde
mental como “o conjunto de práticas clínicas, políticas e técnicas vin-
culadas ao campo de saberes intitulados de psiquiatria e psicanálise
na tradição acadêmica. O que está em questão [nesse campo] é a pro-
blemática do sujeito nas suas articulações com o social” (BIRMAN &
BEZERRA, 1994, p. 153). Há, por fim, os que acreditam que o campo da
saúde mental pode ser “o campo efetivo das diferenças com respeito
às normas” sociais (ver LAURENT, 1999c, p. 18).
É preciso também considerar que no Brasil – sem desconhecer a ine-
gável relação que as instituições de saúde mental mantém com a ordem
pública – foi em nome da saúde mental que uma série de experiências trans-
formadoras da cultura e da assistência psiquiátricas foram realizadas.8
Como no movimento de higiene mental, a “educação para a saú-
de” na infância é considerada a “pedra de toque” de muitos progra-
mas de saúde mental. Ela se daria através da transmissão de conheci-
mentos psicológicos à criança, seja diretamente pelos profissionais de
saúde, sejaindiretamente pela família, escola e instituições afins. Essa
instrução psicológica pode variar de acordo com o que cada profissio-
nal considera a “boa psicologia”: teoria cognitiva, rogeriana, compor-
tamental, psicanalítica...
Em artigo oportuno, Jurandir F. Costa demonstra como a transmis-
são de conhecimentos psicológicos (seja de que teoria for) apenas au-
menta o vocabulário (stress, depressão, Édipo, baixa auto-estima...) que
os indivíduos possuem para expressar suas sensações e angústias, não
contribuindo para a “promoção da saúde mental”, mas sim para a re-
produção de normas sociais (ver COSTA, 1984, p. 63-78).
Anna Freud, que, como sabemos, tinha fortes pretensões educati-
vas e exerceu influência notável sobre toda uma geração de psicanalis-
tas e educadores, escreveu, há mais de quarenta anos, um texto que pa-
rece conclusivo quanto ao tema da prevenção:
8 No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (1978) foi tanto um
dos principais atores da Reforma Psiquiátrica como também um dos focos para a
criação do Movimento da Luta Antimanicomial (ver AMARANTE, 1995, p. 113-
115). Para uma análise das relações entre a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antima-
nicomial, ver VILLELA, 1998.
76
Não obstante numerosos progressos parciais, a educação psica-
nalítica não conseguiu tornar-se a arma preventiva que devia
constituir-se. É verdade que as crianças que cresceram sob sua
influência foram, sob vários aspectos, diferentes das gerações an-
teriores, mas não foram, por isso, liberadas de angústias e conflitos
e, por conseguinte, menos expostas que outras a afecções neuróti-
cas ou outras doenças mentais; surpresa que não teria razão de ser,
caso certos autores, em vez de terem se deixado levar pelo oti-
mismo e entusiasmo com respeito à ação preventiva, tivessem
observado a estrita aplicação dos princípios psicanalíticos. Segun-
do estes princípios, não existe, no conjunto, prevenção da neuro-
se. (ANNA FREUD, apud COSTA, 1984, p. 67)
 No caso da saúde mental infantil,9 encontramos, como dissemos, um
território ainda mais amplo e multireferenciado, habitado por distintas
disciplinas (pediatria, psicologia, pedagogia, assistência social, neurolo-
gia, psiquiatria infantil, direito ...) e instituições (escolas, escolas especiais,
centros psicopedagógicos, hospitais, conselhos tutelares, varas da infân-
cia...) com encargos sociais diversificados, objetos e objetivos muitas ve-
zes divergentes. Essas diferentes lógicas – sanitária, tutelar, educacional,
jurídica... – buscam, em geral, dar conta de “grupos de crianças” mais ou
menos identificáveis: as com dificuldades de aprendizagem, as agressi-
vas e hiperativas, as maltratadas, as abandonadas e as delinqüentes...
Em meados da década de 80, uma série de instituições – que an-
tes seriam identificadas como de assistência psiquiátrica ou de saúde
mental – passaram, no Brasil, a ser nomeadas Centros ou Núcleos de
Atenção Psicossocial – CAPS, NAPS (ver, a esse respeito, por exem-
plo, GOLDEBERG, 1994 ou FILHO, N. In: QUINET (org.), 2001, p. 159-164). O
que quer designar essa nova denominação? Estaria ela em continuidade
com os pressupostos da higiene e da saúde mental?
De fato, essas instituições são a concretização de mudanças essen-
ciais na assistência ao chamado portador de sofrimento psíquico, que se
torna também um “usuário”. O desafio de superar o paradigma asilar
(que é bem mais amplo do que as paredes do hospital) inspirou-se, prin-
cipalmente, nas idéias de Franco Basaglia (1924-1980) e da psiquiatria
democrática italiana.
A experiência italiana confrontou-se tanto com o hospital psiquiá-
trico quanto com o modelo das comunidades terapêuticas inglesas e com
a política de setor francesa, ainda que tenha conservado das duas últimas
9 Paulo Ribeiro realizou uma pesquisa de Pós-doutorado no Instituto de Psiqui-
atria da UFRJ, intitulada História da Saúde Mental Infantil no Brasil: um estudo
multidisciplinar.
77
experiências, o princípio de democratização das relações institucionais
e a idéia de territorialidade (ver AMARANTE, 1995, p. 28-55).
Constatou-se a necessidade de uma denúncia civil das práticas
simbólicas e concretas de violência institucional, e, acima de tudo, a
não restrição dessas denúncias a um problema dos “técnicos em saúde
mental”. Daí a constituição de um movimento político, que se aliou a
outras forças sociais, sindicais e políticas. Não se poderia, portanto,
transformar a assistência sem reinventar o território das relações entre
cidadania e justiça.
A análise histórica e crítica do modo como a sociedade se relaciona
com o sofrimento e a diferença, bem como o combate político do movi-
mento italiano efetivamente desvinculam as suas propostas dos movi-
mentos anteriores de higiene e de promoção da saúde mental.
Duas noções dariam identidade ao campo da atenção psicossocial. A
primeira noção é a de “atenção”, que substituiria o modelo “clínico”,
estabelecendo uma nova dimensão ao tipo de “cuidado” prestado ao
“adoecer psíquico“, pois não visa exclusivamente à remissão do sinto-
ma psicopatológico. A segunda noção, “psicossocial”, é fruto da pers-
pectiva de que essa atenção deve lidar com as duas dimensões – a psí-
quica e a social – “numa tentativa incessante de vê-las de modo mais
complexo, de reintegrá-las uma à outra e de conceber o sujeito como uno”
(ver VENANCIO et al, 1997, p. VII-VIII, grifo nosso). A dimensão psíquica
envolveria a questão da subjetividade e da criatividade, enquanto a di-
mensão social conceberia a família ou o trabalho de forma menos exclu-
dente, passando também a incluir o lazer enquanto aspecto social.
De fato, o campo da atenção psicossocial é marcado por uma diver-
sidade de linhas teóricas, de objetos, e de formas de atendimento10. Se
essa diversidade advém de uma inegável riqueza de experiências, ela
também aponta – como reconhece o italiano Benedetto Saraceno, um
dos mais importantes representantes da Associação Mundial de Reabili-
tação Psicossocial11 – para o perigo de “uma prática à espera de teoria“.
Segundo ele, são dois os riscos gerados por essa situação, que deve neces-
sariamente ser provisória: a retomada de antigos modelos de referência
10 Os mais de cinqüenta trabalhos reunidos no livro O campo da atenção psicossocial
(1997) são, de fato, bem heterogêneos, tratando desde questões éticas, políticas e
de organização de serviços até pesquisas, oficinas, expressões artísticas, psicanáli-
se, relatos de experiência etc.
11 Por iniciativa do Capítulo Brasileiro da Word Association for Psychosocial Rehabilita-
tion realizou-se, em 1995, o I Encontro de Reabilitação Psicossocial, que deu ori-
gem à coletânea Reabilitação Psicossocial no Brasil (1996).
78
(no caso, o modelo clínico) ou a adoção de uma ideologia e não de uma
teoria de referência (ver 1996, p. 151-152).
O FIM DA CLÍNICA?
Essa perspectiva – que quer tornar-se “um novo paradigma” – co-
loca, portanto, o modelo clínico em questão: “as práticas terapêuticas
que nos últimos 100 anos derivam dos modelos da clínica são altamente
insatisfatórias...” (SARACENO, 1996, p. 150). Partindo da etimologia da pa-
lavra clínica, Saraceno reconhece a busca por um outro termo:
A clínica é a arte de olhar, observar e tratar o paciente que está na
cama. Esta etimologia é muito simbólica, pois estamos tentando
distribuir leitos em uma clínica sem leitos. Mas a clínica é, por
definição, uma clínica com leitos, etimologicamente. O paciente
está inclinado e o médico está acima. Esta é uma visão hipocráti-
co-médica muito antiga, de que o paciente assistido, o paciente
sem poder, doente, inclinado em seu “clinos” com o profissional
que o atende [...] me chama a atenção a necessidade de uma mu-
dança de termos; não me agrada mais a palavra clínica (ibidem,
p. 152, grifo nosso)
 Um outro italiano – cujas idéias também encontram ressonância
no Brasil e, em especial, em Minas Gerais – o psiquiatra e psicanalista
lacaniano Carlo Viganò, em confronto explícito com essas idéias, enfa-
tiza a importância de se reencontrara dimensão clínica (ver VIGANÒ,
1999, p. 50-59). Essa dimensão constituiria “a própria dimensão do ho-
mem” e dela provém a possibilidade de se evitar ”uma nova cronici-
dade”. Ou seja, “tendo-se eliminado o significante doença, cria-se o
tratamento do usuário, por toda a vida, num regime de assistência so-
cial” (ibidem, p. 50).
Para ele, a clínica é “o ensinamento que se faz no leito, diante do
corpo do paciente, com a presença do sujeito. É um ensino que não é
teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a partir do universal
do saber, mas do particular do sujeito.” (ibidem, p. 51). Por isso, a clínica
psicanalítica, contra a pretensão de todo discurso global, que acaba pro-
duzindo segregação, vai sempre privilegiar o modo particular com que
cada sujeito lida com o desejo e o gozo.12
Viganò certamente inspirou-se na Abertura da secção clínica (1977), quan-
do Lacan, em Vincennes, enfatiza a relação entre a clínica, o dizer e o real:
12 Sobre a relação entre a clínica e a reforma psiquiátrica brasileira, ver a parte II –
Reforma e Sujeito – do livro Psicanálise e Psiquiatria, organizado por Antônio Quinet.
79
A clínica está sempre ligada à cama – se vai ver alguém deitado.
E não se encontrou nada melhor que fazer-se deitar àqueles que
se oferecem à psicanálise, com a esperança de se sacar disso um
benefício, cujo resultado não é certo de antemão, precisa-se dizê-
lo. É evidente que o homem não pensa do mesmo modo deitado
ou de pé, não seria senão pelo fato de que em posição deitada faz
muitas coisas, em particular o amor, e o amor o arrasta a toda
sorte de declarações. Na posição deitada o homem tem a ilusão
de dizer alguma coisa que seja do dizer, isto é, que importe no
real. (LACAN, 1998 [1977], p. 4)
Por último, seria importante interrogar o termo “social” que subsu-
me uma variedade de concepções, seja adjetivando diferentes práticas e
saberes – assistente social, educador social, psicologia ou psiquiatria
social... – seja, mais recentemente, constituindo-se em foco de aborda-
gem clínica, a clínica do social.13 Nessa perspectiva, uma série de fenôme-
nos como a evasão escolar, a violência juvenil, o consumo de drogas, a
gravidez em adolescentes, as crianças de/na rua, são entendidos como
sintomas sociais. O que não impede, entretanto, de se interrogar a di-
mensão do sujeito implicada nesses sintomas de mal-estar social.
“A ascenção do social” é o título do prefácio que Gilles Deleuze (1925-
1995) escreve para o já citado livro de Donzelot, A polícia das famílias (1977).
Ele não se interessa pelo adjetivo que qualifica o conjunto dos fenômenos
que são objeto da sociologia, mas, sim, pelo substantivo, social:
O social tem por referência um setor particular em que se classifi-
cam problemas na verdade bastante diversos, casos especiais, ins-
tituições específicas, todo um pessoal qualificado (assistentes “so-
ciais”, trabalhadores “sociais”). Fala-se de chagas sociais, do
alcoolismo à droga; de programas sociais; da repopulação ao con-
trole da natalidade; de desadaptações ou adaptações sociais (do
pré-delinqüente, do indivíduo com distúrbios de caráter ou do de-
ficiente, até os diversos tipos de promoção). (DELEUZE, 1980, p. 1)
Esse setor particular, que cada vez adquire maior importância, tem
uma gênese recente, formando-se a partir dos séculos XVIII-XIX, sem se
confundir com os aspectos econômicos ou judiciários. Ele constitui-se,
antes, em um domínio híbrido, sobretudo entre o público e o privado, o
que provoca novas relações entre o Estado e a família, entre o Direito e a
Medicina, entre a riqueza e a pobreza; a cidade e o campo....
13 Ver, por exemplo, os livros que recebem o mesmo título – Clínica do social. Um foi
produzido por um grupo de psicanalistas, entre eles Contardo Calligaris e Juran-
dir F. Costa (São Paulo: Escuta, 1991) e o outro, por Célio Garcia (Belo Horizonte:
UFMG, 1997).
80
Em entrevistas realizadas com diferentes profissionais de saúde
mental, a psiquiatra e psicanalista Ana C. Figueiredo constata a “hi-
pervalorização da palavra social” como também a forte presença da
velha dicotomia entre o indivíduo psicológico versus a realidade social.
O social é ainda tomado como uma entidade reificada, uma condição
que o sujeito não conseguiria transpor. Assim, as faltas e interrupções
nos tratamentos, a ausência de demanda, a pobreza miserável, as trá-
gicas histórias de vida seriam formas das “determinações do social” se
manifestarem, impedindo qualquer possibilidade de tratamento. Mui-
tos pensam então que o psicanalista “não teria nada a fazer”, restando
a ele apenas outras formas de atuação: Aconselhamento? Propor psi-
coterapia de apoio? Suportar a “miséria do mundo”? Esvaziar a condi-
ção social do sujeito?
Não é nada disso que a ética da psicanálise propõe, não é essa a
pretensão do discurso analítico, enquanto possibilidade de laço social. A
miséria ou morte da psicanálise ainda não aconteceram, pois o sujeito
sempre pode ainda querer contar e recontar suas “histórias de vida”,
perceber onde se situa e buscar novos rumos:
A tarefa do psicanalista consiste, mais do que nunca, em ofere-
cer ao sujeito uma possibilidade de tematizar, ressignificar e
elaborar sua “miséria”, até onde for possível para tomar uma
outra posição frente a toda desgraça cotidiana da qual até cer-
to ponto não fazemos parte. Tarefa impossível? Para Freud sem-
pre foi, juntamente com educar e governar. [Além disso] ele
também afirmava a miséria banal como parte da condição hu-
mana que jamais será erradicada pela psicanálise. (FIGUEIREDO,
1997, p. 94)
DEMÊNCIA PRECOCÍSSIMA E ESQUIZOFRENIA INFANTIL
Os psiquiatras europeus J. de Ajuriaguerra e D. Marcelli também
consideram, como Kanner, que as origens da psiquiatria infantil são
marcadas pela heterogeneidade dos primeiros intervenientes, heteroge-
neidade que pode, segundo eles, ser reduzida a duas fontes. De um lado,
um ramo saído da educação: os primeiros esforços daquilo que viria a
ser a psiquiatria infantil tinham como objeto as crianças consideradas
“ineducáveis” (criança cega, surda-muda ou débil). De outro, um ramo
saído da psiquiatria e da psicopatologia do adulto: inicialmente os pri-
meiros psiquiatras infantis preocuparam-se, sobretudo, em encontrar na
criança os quadros nosográficos conhecidos na psiquiatria de adultos
(ver AJURIAGUERRA & MARCELLI, 1986, p. 15).
81
Nesse sentido, Bercherie destaca a forte influência exercida pelo
conceito de demência precoce14 proposto por Kraepelin (1856-1926). No
vasto campo da idiotia – que, até quase o final do século XIX, era consi-
derado o único problema mental infantil – a distinção entre as formas
congênitas e as formas adquiridas nos primeiros anos de vida conduziu
à nomeação das demências infantis.
Em 1906, o italiano Sante de Sanctis lança a noção de demência preco-
císsima15 e Heller, no mesmo ano, faz dela uma descrição autônoma:
Trata-se do aparecimento, a partir de 3-4 anos, em crianças que,
até então, se desenvolviam normalmente, de um estado de mo-
rosidade e indiferença, com negativismo, oposição, distúrbios
afetivos (cólera, ansiedade), seguidos de uma desagregação da
linguagem e de diversos distúrbios motores característicos: agi-
tação, esteriotipias, maneirismos, catatonia, impulsões.[...]. Em
seguida, a criança cai, rapidamente, em uma completa “idio-
tia”, não mais se alimenta de maneira autônoma, torna-se in-
continente, perde o uso da linguagem. Heller observa, no en-
tanto, a persistência de uma certa capacidade de atenção e,
sobretudo, a conservação de uma fisionomia inteligente, o que
diferencia nitidamente essas crianças dos verdadeiros retarda-
dos (BERCHERIE, 1983, p. 105-106)
Em 1911, no mesmo ano em que Freud publica o caso Schreber,
E.Bleuler (1857-1939) publica sua obra fundamental sobre a esquizo-
frenia – conceito que nasce do entrecruzamento da psiquiatria com a
psicanálise16 – renomeando o quadro proposto por Kraepelin, por não
concordar com a evolução inexorável para a demência.
Essa noção é transposta, já em 1926, parao campo da infância pelo
alemão A.Homburger (1873-1930), que utiliza a expressão “esquizo-
frenia infantil”, contribuindo para reforçar a idéia da existência de psi-
coses na criança. É, portanto, desse período que nos chega “a noção
14 O adjetivo “precoce” gera polêmica: ele pode tanto se referir à idade prematura
em que a doençairrompe como também à rapidez com que ela conduz à deterio-
ração, levando a uma incapacitação socioeducacional grave.
15 O próprio Lacan, em seu período psiquiátrico, utilizou-se do termo “demência
precocíssima”, em um caso apresentado na Société Médico-Psychologique, em 1933,
com H.Claude e G.Heuyer (ver TENDLARZ, 1997, p. 13).
16 Mesmo supondo uma base orgânica para os fenômenos da esquizofrenia, Bleuler
é freudiano, pois busca um sentido para esses fenômenos à luz dos mecanismos
das formações do inconsciente. Em suma, ele introduz a causalidade psíquica na
psiquiatria. Apesar disso, Freud considerava a esquizofrenia um “mau termo no-
sográfico”, chegando a propor outro – a parafrenia. Lacan também não é muito
simpático ao termo. Ver, a esse respeito, QUINET, 1999, p. 81-83.
82
moderna de psicose infantil, e os problemas a ela relacionados”. (ver
BERCHERIE, 1983, p. 106)
O CASO DICK: PSICANÁLISE E PSICOSES NA INFÂNCIA
Melaine Klein, em 1930, discute o diagnóstico do caso Dick, que é con-
siderado, por muitos, como o primeiro caso de psicose na infância tratado
pela psicanálise. Lacan comentará este caso no Seminário 1 (1953-1954), des-
tacando a importância da posição de M. Klein, ao introduzir a verbalização
no tratamento: “Ela ousa lhe falar, falar a um ser que não lhe endereça ne-
nhum chamado”. Por outro lado, vai criticar a exacerbação do registro ima-
ginário nas suas interpretações, dizendo que ela “chapou” a simbolização
do mito edipiano em Dick, guiada pela idéia de que há uma deficiência na
formação de símbolos na psicose (ver LACAN, 1986, p. 98-106).
Dick era um menino de 4 anos, que quase não tinha interesses, não
brincava, e não mantinha contato. Na maior parte do tempo articulava
sons ininteligíveis e repetia constantemente certos ruídos. Quando fala-
va, utilizava incorretamente seu escasso vocabulário. Retomemos o que
diz M. Klein :::::
O Dr. Forsyth diagnosticara demência precoce, e pensou que
valia a pena tentar a análise [...] Tratava-se de um caso caracte-
rizado por uma ausência quase total de afetividade e ansieda-
de, grande afastamento da realidade e falta de acessibilidade,
bem como de rapport emocional, conduta negativa alternando
com indícios de obediência automática, indiferença à dor, per-
severação – sintomas todos característicos da demência preco-
ce. Além disso, este diagnóstico estava também confirmado pelo
fato de que se pôde excluir com certeza a presença de qualquer
enfermidade orgânica [...]
Contra o diagnóstico de demência precoce, havia o fato de que o
traço fundamental no caso Dick era uma inibição de desenvolvimento,
e não uma regressão. Outrossim, a demência precoce é muito pouco
freqüente na primeira infância, tanto que muitos psiquiatras são
de opinião que ela não existe de modo algum nesse período.
Do ponto de vista da psiquiatria clínica, não quero propor um
diagnóstico, porém a minha experiência geral no campo da aná-
lise infantil permite-me fazer algumas observações de caráter
genérico sobre as psicoses das crianças. Cheguei à conclusão de
que a esquizofrenia infantil é muito mais freqüente do que se su-
põe. (KLEIN, 1981, p. 309-310, grifo nosso)
Segundo M. Klein, a principal razão para essa defasagem é que a
esquizofrenia nas crianças é menos evidente do que nos adultos:
83
 Os traços característicos dessa enfermidade são menos notáveis
nas crianças porque, em menor grau, são naturais no desenvolvi-
mento das crianças normais. Sintomas tais como o acentuado afas-
tamento da realidade, [...] a incapacidade de concentrar-se em
qualquer ocupação, o comportamento tolo e a conversa sem sen-
tido, não nos chamam a atenção quando observamos as crianças,
pois não as julgamos com os mesmos critérios com que julgaría-
mos os adultos. Excessiva motilidade, bem como movimentos es-
teriotipados nas crianças, são sumamente comuns e diferem só
em grau da hipercinesia e esteriotipia dos esquizofrênicos. A obe-
diência automática tem que chamar, realmente, muita atenção,
para que os pais a considerem algo diferente da simples obediên-
cia das crianças “dóceis”. O comportamento negativista é consi-
derado, amiúde, como “travessura”... (KLEIN, 1981, p. 310)
M. Klein propõe, então, que o conceito de esquizofrenia e de psico-
se em geral, tal como ocorrem na infância, deve ser ampliado. De modo
otimista, ela acredita que “uma das tarefas fundamentais da análise in-
fantil consiste em descobrir e curar as psicoses infantis” (ibidem, p. 311).
Desse modo, com o conhecimento adquirido, teríamos, segundo ela, uma
valiosa contribuição para a nossa compreensão da estrutura das psico-
ses nos adultos.
A partir dessa ampliação do termo, M. Klein vai justificar o diag-
nóstico de esquizofrenia para Dick, ainda que com alguma ressalva:
“É verdade que ela diferia da esquizofrenia típica infantil porque o
transtorno era, neste caso, uma inibição do desenvolvimento, enquanto na
maioria dos casos se trata de uma regressão, depois que a criança supe-
rou com êxito certa etapa do seu desenvolvimento.” (ibidem, p. 311,
grifo nosso)
Não estaríamos, antes, diante de um “distúrbio autístico do contato
afetivo”, tal como Kanner o nomeou em 1943? De fato, nesse ano, Kanner
passa a considerar o autismo não apenas como um sintoma da esquizo-
frenia, mas como uma síndrome complexa e autônoma. Ele introduziu
esse termo – posteriormente denominado de “autismo infantil precoce” –
para nomear os casos de retraimento em crianças bem pequenas, obser-
vando que “o autismo extremo, os traços obsessivos, a estereotipia e a
ecolalia combinados estabelecem o quadro global em relação a certos
fenômenos tipicamente esquizofrênicos [...] Mas apesar das semelhanças
notáveis, em muitos aspectos, este estado difere de todas as outras for-
mas conhecidas de esquizofrenia na criança.” Segundo ele,
mesmo nos casos mais precoces conhecidos de entrada na es-
quizofrenia, o que inclui a demência precocíssima de De Sanctis
84
e a demência infantil de Heller, as primeiras manifestações ob-
serváveis foram precedidas por dois anos, pelo menos, de de-
senvolvimento normal, e os estudos de caso insistem especifi-
camente na mudança mais ou menos gradual do comportamento
do paciente. Todas as crianças de nosso grupo mostraram, des-
de o começo da vida, um fechamento extremo, não reagindo a
nada do que proviesse do mundo exterior. (1997 [1943], p. 167)
DA NEUROPSIQUIATRIA À PSICOPEDAGOGIA
A perspectiva de se pensar a criança a partir do adulto ocorreu tam-
bém com relação à assistência psiquiátrica, como demonstrou o sociólo-
go francês Robert Castel. Estudando os projetos de reforma na psiquia-
tria pública européia, especialmente a partir de 1945, ele declarou-se
“chocado” ao constatar a ausência quase absoluta de reflexões sobre a
infância. Tudo se passou, segundo ele, como se, até há alguns anos, os
problemas da infância tivessem sido tratados como uma “conseqüên-
cia” da assistência pensada para os adultos.
Na tentativa de compreender essa “descoberta tardia” da infância
na psiquiatria pública, Castel tece considerações históricas e políticas
em torno da construção do sistema asilar. Este teria correspondido a exi-
gências administrativas, jurídicas e médicas, ligadas à necessidade de
se exercer tutela sobre as pessoas reputadas irresponsáveis, perigosas, e
que ainda não tinham cometido delitos, não podendo, portanto, ser con-
troladas pelo aparelho judiciário.
As crianças, por sua vez, não representam os mesmos problemas,
porque estão sujeitas basicamente à tutela da família, que assume a
maioria dos problemas de responsabilidade civil ou penal e de assistên-
cia material. Se as crianças encontraram lugar no asilo foi, segundo Cas-
tel, em razão de carênciaseconômicas das famílias, ou da gravidade de
suas perturbações e deficiências, que ultrapassavam as possibilidades
de um encargo familiar (como no caso dos retardados profundos). De
toda forma, as alas de crianças em hospitais psiquiátricos não tinham
nada de particular, com exceção das “condições de albergamento” que
ali eram ainda piores.
Em estudo sobre o “primeiro pavilhão-escola” para crianças anor-
mais, inaugurado em 1903, no Hospício Nacional de Alienados (Rio de
Janeiro), Lilia Lobo observa que não foram apenas razões escolares ou
filantrópicas que justificaram a sua criação, mas razões econômicas rela-
cionadas à utilização da mão-de-obra dos pais e parentes das crianças
idiotas ou imbecis, que, ocupados com elas, estavam impedidos de tra-
balhar (ver 1999, p. 27).
85
Pelo fato de abrigar preferencialmente “idiotas” ou retardados, es-
ses lugares, para deles cuidar, tiveram que inovar, produzir saber, uma
vez que se confrontavam com um tipo de dificuldade diferente da doen-
ça mental: “um retardado de desenvolvimento requer um aprendizado
e não um tratamento” (ver CASTEL, 1987, p. 51-53). Desse modo, em 1845,
por sugestão do educador E. Séguin – aluno de J. Itard, conhecido por
sua tentativa de reeducação do “selvagem de Aveyron”17 – abriu-se no
Hospital Bicêtre de Paris uma “escola especial” para crianças deficitárias
e foi aí que se elaboraram as primeiras noções de psicopedagogia e se
constituiu a primeira equipe médico-pedagógica, a partir da colabora-
ção entre Esquirol e Séguin (ver AJURIAGUERRA, 1980, p. 3). Séguin aper-
feiçoou os métodos de “educação fisiológica” dos retardados, funda-
mentados na educação dos sentidos, base das funções intelectuais. Assim,
quando a assistência ultrapassava a simples proteção e amparo, a espe-
cificidade do tratamento da infância requeria, de acordo com Castel,
instituições de tipo mais pedagógico do que médico.
Esse movimento acentuou-se, no final do século XIX, com a pro-
mulgação em vários países da lei da assistência escolar pública obriga-
tória. Constatou-se, então, que muitos alunos, por mais que fossem
ensinados, não aprendiam. As medidas punitivas, insistências ou pro-
messas, por sua vez, não modificavam o processo em quase nada. Essa
situação levou a que as autoridades escolares de Paris, preocupadas
com os gastos de impostos, buscassem esclarecer o fracasso escolar. O
psicólogo e fisiologista Alfred Binet e o médico Théodore Simon18 – já
citados neste capítulo – foram convidados a pesquisar o problema. Eles
examinaram milhares de crianças de diferentes idades, aplicando ba-
terias de tarefas de complexidade diversa, estabelecendo, em 1905, a
primeira escala de desenvolvimento da inteligência, que passou a ser-
vir como critério de admissão e de triagem para as classes especiais.
Eis um bom exemplo da idéia de Lacan sobre a função tecnocrática da
psicologia, que, através de suas diversas medições, assegura a seleção
e orientação de cada indivíduo, exercendo função de controle social
inseparável da gestão das multidões, prevista no projeto de racionali-
zação da vida cotidiana nas sociedades industriais.
17 Para maiores detalhes sobre o caso, ver, por exemplo, PESSOTTI (1984), p. 35-66.
Uma análise interessante do trabalho de Itard com o “Selvagem de Aveyron” é
realizada por Mannoni em A criança, sua “doença” e os outros (1980), p. 202-205.
18 Théodore Simon esteve em Belo Horizonte, na década de 30, proferindo cursos de
aperfeiçoamento para os professores do Estado (ver CIRINO, 1992, p. 50).
86
A multiplicação do número de crianças que necessitava de educa-
ção especial exigiu a criação de instituições derivadas do sistema esco-
lar e não do sistema psiquiátrico. Na França, encontramos: classes es-
peciais (a partir de 1909), internatos médico-pedagógicos (a partir de
1935), grupos de ação psicopedagógicos (a partir de 1970). Os chama-
dos Centros Médico-Psicopedagógicos (C.M.P.P.) desenvolveram-se es-
pecialmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial, constituin-
do-se em importantes focos de difusão da psicanálise entre os que
trabalhavam com crianças.
Os psicanalistas foram assim envolvidos, como apontou Anna Freud,
com os ideais da prevenção. O psiquiatra e psicanalista inglês John Bowlby
(1907-1990) foi um dos que mais se destacou nesse desvio. Em 1940,
começou a publicar trabalhos sobre a criança, sua mãe e seu ambiente,
opondo-se à perspectiva puramente psíquica da escola kleiniana ao atri-
buir grande importância à realidade social. Em documento divulgado
pela Organização Mundial de Saúde, ele defende a idéia de que uma
das principais causas da doença mental era um “defeito na materna-
gem” das crianças. A mãe torna-se, então, alvo das investidas profiláti-
cas dos psicanalistas. Assim, “o gênero literário” do tipo ”Conselho às
mães”, antes limitado aos pediatras, renovou-se, consideravelmente, com
as contribuições dos psicanalistas que – de Winnicott a Bettelheim pas-
sando pelos alunos de Anna Freud e de Melaine Klein – escreveram vá-
rios guias de orientação (ver LAURENT, 1997-98, p. 88).
Todas essas instituições de orientação e cuidados contavam com
presença médica mais ou menos forte, sendo que a maioria funcionava
com profissionais de formação pedagógica. Além dessas ligações estrei-
tas com a educação, a assistência psiquiátrica da criança se deu através
de outros serviços desconectados dos hospitais psiquiátricos, tais como
as instituições de origem filantrópica ou religiosa, os centros de consul-
tas infantis ou os serviços universitários.
A tese de Castel é que os promotores da psiquiatria pública na Eu-
ropa estavam desvinculados, por sua prática, desses importantes e dife-
rentes “circuitos de inovações a respeito da infância”. Por isso, nos pro-
jetos de reforma, eles simplesmente desconsideraram ou abordaram de
forma geral, sem especificidade, a questão da assistência psiquiátrica à
infância e à adolescência, pensando-a a partir da psiquiatria de adultos.
Em Minas Gerais, a história da mais antiga e importante institui-
ção de saúde mental infantil do Estado exemplifica, com precisão, es-
sas idéias de Castel. O Centro Psicopedagógico da Fundação Hospita-
lar do Estado foi criado em 1980, como resultado da fusão do Hospital
87
de Neuropsiquiatria Infantil (1947) com a Unidade Psicopedagógica
(1975) – uma instituição médica e a outra basicamente pedagógica. Nes-
sa fusão, resultante de críticas veiculadas publicamente à assistência
prestada pelo antigo Hospital – que “em nada se diferenciava dos hos-
pitais para adultos” – o psicopedagógico se sobrepôs ao neuropsiquiá-
trico, como também uma pedagoga, antiga diretora da Unidade, passou
a dirigir a “nova” instituição (ver CIRINO, 1992, p. 63-79)
OS PODERES DA PALAVRA
Se a análise de Ajuriaguerra e Marcelli já não faz tantas referências,
como a de Kanner, a práticas exteriores ao saber psiquiátrico, o estudo
histórico de Paul Bercherie – publicado neste livro – é basicamente concei-
tual. Metodologicamente, sua pesquisa se volta para a análise dos dife-
rentes conceitos e noções presentes nos tratados de psiquiatria e psicopa-
tologia, bem como nas teorias psicológicas e doutrinas pedagógicas.
Bercherie lê os textos de Pinel, Esquirol, Séguin, Morel, Sante de Sanctis,
Meyer, Gesell, Kanner, entre outros, buscando esclarecer a gênese e o de-
senvolvimento de conceitos – como, por exemplo, de idiotia, estupidez,
demência precocíssima, esquizofrenia infantil, síndrome autística preco-
ce – que irão estruturando, a partir do século XIX, a clínica com crianças.
A análise desses trabalhos permitiu a ele delimitar três grandes perío-
dos na história da clínica psiquiátrica da criança.
O primeiro período cobre os setenta e cinco anos iniciais do século XIX
e consagra-se à discussão do retardamento mental, tal como estabelecido, a
partir da observação de adultos, por Esquirol, sob o nome de idiotia. Os
casamentos consangüíneos e os desregramentos morais (onanismo, pede-
rastia, alcoolismo, promiscuidade) estariam entre as causas do quadro.
 Nãose acreditava que as crianças pudessem enlouquecer. A
afirmação de Griesinger, em seu Tratado de 1845, sintetiza bem a con-
cepção mais geral da época:
[A loucura sistemática é excepcional na criança, pois] o eu nesta
idade não está ainda formado de maneira estável para apresen-
tar uma perversão durável e radical; assim, as diversas doenças
produzem nas crianças verdadeiras interrupções no desenvol-
vimento, que atingem a inteligência em todas as suas faculdades.
(apud BERCHERIE, 1983, p. 102)
O grau de irreversibilidade do retardamento mental era, por sua vez,
objeto de discussões e controvérsias. Duas concepções se opõem a esse
respeito: a dos médicos (Pinel, Esquirol), para os quais o déficit é global,
definitivo e o prognóstico inteiramente negativo; e a dos educadores de
88
idiotas (Séguin e Delasiauve), que consideram o déficit parcial (falta de aten-
ção, de concentração e, sobretudo, de vontade), e o prognóstico positivo, se
fossem utilizados métodos educacionais especiais. Abre-se, assim – como já
dissemos – o caminho para a criação de instituições especializadas para
crianças “anormais”19, noção com a qual se restringe a abrangência da idio-
tia, ocupando com maior refinamento o lugar desta. Temos, então, um des-
lizamento semântico: dos “idiotas” para os “anormais”.
O segundo período vai de 1880 até o primeiro terço do século XX e se
caracteriza pela tentativa dos psiquiatras de encontrar, na criança, as
síndromes mentais descritas nos adultos. A clínica psiquiátrica da crian-
ça seria “o decalque da clínica e da nosologia elaboradas com os adul-
tos” – lembremos da “demência precocíssima”. Portanto, as crianças são
apenas um objeto de curiosidade dos psiquiatras, ainda não constituin-
do um verdadeiro campo autônomo de prática e investigação.
Como nos lembra Bercherie, o que determina as questões, procedi-
mentos e observações dos clínicos é a concepção que eles têm da infância,
do desenvolvimento da criança e do seu papel na formação do adulto.
Assim, durante esses dois primeiros períodos, a criança é essencialmente
concebida como um “adulto em potência”, ou seja, o adulto é o fim e o
sentido último de seu desenvolvimento.
Já no terceiro período, que começa na década de 1930 e se estende até
nossos dias, concebe-se a infância como tendo uma ordem própria de
existência e racionalidade. E, sobretudo, inverte-se a perspectiva: agora
a criança é que esclarece o devir do adulto. Lembremos as expectativas
otimistas de M. Klein de que o tratamento e “cura” das psicoses infantis
traria valiosas contribuições para a compreensão da estrutura das psico-
ses nos adultos.
Uma das características desse novo período é a influência domi-
nante que as idéias psicanalíticas exercem sobre a clínica psicopatológi-
ca infantil, passando a ampliá-la e estruturá-la. Fato incontestável que é
– de forma mais ou menos explícita – aceito por autores como Ajuria-
guerra, Frans Alexander (1968), L. Kanner e M. Mannoni (1982).
A colaboração estreita com os pediatras é outra característica do
período. Daí, a denominação pedo-psiquiatria.20 Várias manifestações pa-
tológicas da clínica pediátrica, até então dispersas, passam a ser pensadas
19 Publicou-se na França, em 1999, o curso “Les anormaux” proferido por M. Fou-
cault, no Collège de France (1974-1975). Será preciso lê-lo.
20 A posição de D. Winnicott é bem clara: a melhor preparação para o psiquiatra
infantil é a pediatria. Ver Treinamento para psiquiatria de crianças. In: O ambiente
e os processos de maturação, p. 175-183.
89
sob o modelo da histeria, como formas de conversão ou de expressão
substitutiva das dificuldades que a criança encontra na sua vida relacio-
nal. Como em nenhuma outra parte, o modelo psicossomático floresce.
 A riqueza desse novo campo clínico destaca, além das doenças psi-
cossomáticas, os distúrbios do comportamento ou de conduta e a per-
turbação do desenvolvimento das funções elementares (motricidade,
sono, funções esfincterianas, fala...).
O que fez da clínica psiquiátrica da criança um todo relativamente
homogêneo foi, de acordo com Bercherie, a integração das noções psica-
nalíticas nos países de língua inglesa. E o que permitiu tal incorporação
foi, principalmente, o espírito funcionalista americano, com sua postura
pragmática na terapêutica e com a concepção de que o psiquismo (no
caso, a mente) é uma função – função de mediação entre o organismo e o
meio – tendo em vista a tarefa de adaptação ao ambiente. Trata-se da
idéia mesma de saúde mental, tal como foi anteriormente discutida.
É dessa apropriação da psicanálise pela psiquiatria funcionalista
americana, incentivada sobretudo por Adolf Meyer (1866-1950), de onde
provêm os conceitos que estruturam o imenso campo recentemente con-
quistado pela clínica pedo-psiquiátrica: a noção de patologia das gran-
des funções, com sua expressão nos transtornos de conduta. Esses últimos
são, inclusive, considerados como contendo em si “a origem e o destino
da psiquiatria infantil como especialidade” (OSÓRIO, 1975, p. 59). Com
toda a sua amplitude e imprecisão, esses transtornos alimentam discus-
sões entre os psiquiatras infantis. Há os que, vinculando-os ao processo
evolutivo da criança, consideram a noção em sentido amplo, abrangendo
desde a conduta alimentar até o sono, a motricidade, a linguagem...(ver,
por exemplo, OSÓRIO, 1975). Outros, seguindo a proposta da CID-10, li-
mitam os transtornos de conduta à chamada área da sociabilidade, ca-
racterizando-os pelo “padrão repetitivo e persistente de conduta anti-
social, agressiva e desafiadora” (CID-10, 1993, p. 260).
O pano de fundo sobre o qual se delineia essa psicopatologia da
criança são os trabalhos, também de inspiração funcionalista e behavio-
rista, de A. Gesell (1880-1961) sobre o desenvolvimento psicológico da
criança. Seus dados minuciosos e escalas comparativas é que permiti-
ram, por exemplo, que Kanner pudesse sublinhar a notável precocidade
da recusa relacional nos casos de autismo.
 Daí o princípio que, em algum momento, já escutamos: para apren-
der psicopatologia infantil é preciso antes conhecer o desenvolvimen-
to “normal”. Proposta inversa à perspectiva defendida pelo epistemó-
logo francês G. Canguilhem (1904-1998), em seu importante trabalho
90
sobre O normal e o patológico (1966), no qual afirma que a anormalidade
foi a condição de possibilidade da normalidade. Ou seja, a transgres-
são seria necessária para a instauração e manutenção da norma. Por
isso, “não há nenhum paradoxo em dizer que o anormal, que logica-
mente é o segundo, é existencialmente o primeiro.” (CANGUILHEM, 1978,
p. 216). Nessa perspectiva, o conhecimento sobre a criança, seu desen-
volvimento e sua pedagogia só teria se tornado possível graças à apro-
priação das resistências do idiota, do débil mental e, mais tarde no
início do século XX, da criança com dificuldades de aprendizagem (ver
LOBO, 1999, p. 25-26).
Apesar de escritos por um psiquiatra europeu, não é difícil encon-
trar nos Manuais de Psiquiatria ou de Psicopatologia infantil de Ajuriaguer-
ra, a marca dessa influência genética e funcionalista. No primeiro capí-
tulo do seu Manual de Psiquiatria Infantil, ele afirma:
a característica da pedopsiquiatria é ser uma psicopatologia gené-
tica que se ocupa do desenvolvimento e dos seus distúrbios e que,
conhecendo a gênese das funções e sua evolução no tempo, dá-se
conta do valor das possibilidades da criança em cada etapa de
sua evolução e tende a compreender as diversas fases desta crono-
logia em função do relacionamento organismo-meio. (ver 1980,
p. 5, grifo nosso)
Por isso, a segunda parte de seu Manual de Psiquiatria – que é a parte
essencialmente psicopatológica – intitula-se “as funções e seus distúr-
bios”, tendo, por exemplo, como capítulos: “o sono e seus distúrbios”,
“a esfera oroalimentar (sua organização e seus distúrbios)”, “a organi-
zação do controle esfincteriano e seus distúrbios” etc.
Por outro lado, a estreita relação da clínica pedo-psiquiátrica
com a psicologia do desenvolvimentoe com as psicoterapias ditas
de base analítica evidencia-se, por exemplo, nos trabalhos de Mar-
garet Mahler, Frances Tustin, Françoise Dolto ou Donald Winnicott.
Como sabemos, essas psicoterapias se definem pelo negativo: não
tem o mesmo setting (freqüência e duração das sessões, divã, paga-
mento) e nem a mesma qualidade da transferência e da interpreta-
ção (ver FIGUEIREDO, 1998, p. 91), Já para os lacanianos, a psicanálise
não pode servir para adjetivar a psicoterapia, pois ela é uma só. Ou
seja, não existe psicoterapia de base analítica: trata-se de psicanáli-
se ou de psicoterapia.21
21 Ver, por exemplo, a esse respeito, FORBES, Jorge (org.). Psicanálise ou Psicoterapia.
São Paulo: Papirus, 1997.
91
A psiquiatra e psicanalista eclética Raquel Soifer é também influen-
ciada por essa conjunção, ao escrever, no inicio da década de 80, uma
obra intitulada Psiquiatria Infantil Operativa, composta de dois volumes:
um, de psicologia evolutiva e o outro, de psicopatologia. Referindo-se a
diferentes autores, como Freud, M. Klein (e seus discípulos ingleses),
Anna Freud, A. Gesell ou Arminda Aberastury, o volume sobre a psico-
logia evolutiva é dividido em nove capítulos intitulados “psicodinamis-
mos entre ...”. As mais estreitas faixas etárias são, então, estudadas e
correlacionadas em seus aspectos maturativos e libidinais: do nascimento
aos seis meses, de seis meses a um ano, de um ano a um ano e meio e,
assim, sucessivamente até os treze anos de idade.
Além de fundamentar-se na psicologia evolutiva, a psicopatolo-
gia infantil deve também apoiar-se, segundo ela, na semiologia infan-
to-juvenil, que recebe a seguinte definição: “a observação sem precon-
ceito, detalhada e minuciosa de cada conduta da criança...sua atitude,
movimentos corporais, habilidade psicomotora, brinquedos, desenhos
[...] a observação deve ser transmitida mediante uma descrição clara, a
mais completa possível, e na ordem cronológica de aparecimento” (ver
v.2, p. 41, grifo nosso).
 Seu exame psicopatológico também verifica os mecanismos de defesa
utilizados, segundo a ordem de aparecimento no desenvolvimento evolu-
tivo. Na parte intitulada “psicopatologia dos sintomas psíquicos mais
habituais na infância e adolescência”, Soifer aponta para um grande
polimorfismo sintomatológico, dividindo a exposição em áreas “tradicio-
nalmente reconhecidas”: psicopatologia do sono, dos transtornos da ali-
mentação e da conduta, esta última englobando uma gama imensa de
sintomas, desde cefaléia, tiques, agressividade, até masturbação.
Nesse momento parece-me oportuno lembrar de Hervé Beauchesne
que, em sua História da Psicopatologia (1989), assinala a extensão e frag-
mentação do campo da psicopatologia nas últimas décadas. Assim, a uma
psicopatologia da infância soma-se uma psicopatologia do bebê, do ado-
lescente, do idoso ou uma psicopatologia do casal, da família, do trabalho,
enfim, múltiplas possibilidades.
Essa fragmentação também ocorre na nosografia – as “descrições
clínicas a-teóricas, a-históricas e a-doutrinárias” dos manuais de classi-
ficação, tipo DSM-IV e CID-10. Para a criança, por exemplo, encontra-
mos mais de quinze categorias diagnósticas (que ainda se subdividem
em várias outras) distribuídas por dois blocos: o dos transtornos do de-
senvolvimento psicológico (F-80-89) e o dos transtornos emocionais e de
92
comportamento com início usualmente ocorrendo na infância e adoles-
cência (F90-98).
Com esses diagnósticos descritivos, vistos como totalmente comu-
nicáveis e empiricamente verificáveis, busca-se preencher a ausência de
signos patognomônicos e a carência de exames de laboratório em psi-
quiatria. O caminho é o da medicalização da psiquiatria, a fim de afastá-la
de vez das influências filosóficas (Jaspers, fenomenologia, existencialis-
mo, marxismo) e psicanalíticas (em especial, Lacan). Por outro lado, in-
centiva-se a pretensão de se fundar uma ciência da mente através do
formalismo lógico-matemático aplicado às ciências do cérebro. O sonho
do cognitivismo seria mecanizar o psíquico, assemelhando-o a uma
máquina lógica (ver LEITE, 1998).
De fato, constatamos o desmembramento das categorias que ori-
entam a clínica psicanalítica (neurose, psicose e perversão) em prol de
novos contínuos sindrômicos. Quadros que são reordenados pela clí-
nica da medicação, onde, muitas vezes, o diagnóstico é, paradoxal-
mente, definido pelo tratamento, a partir da busca da “resposta-pa-
drão” à administração de uma substância química. Seguindo essa
lógica, os psiquiatras infantis voltam a se aproximar da “psiquiatria
animal” do final do século XIX, colocando radicalmente em questão a
hipótese otimista de Bercherie.
 Para ele, a clínica psiquiátrica da criança poderia exercer um “papel
de guia” e uma função de abertura para todo o conjunto da clínica, graças
à possibilidade que ela teve de se estruturar – a partir dos aportes da
psicanálise, da pediatria e da psicologia do desenvolvimento – sobre ba-
ses e procedimentos independentes dos modelos médicos, fortemente
presentes na constituição da clínica psiquiátrica do adulto (ver BERCHERIE,
1983, p. 113).
De todo modo, além da inconsistência epistemológica dessa ideolo-
gia de um “cérebro sem sujeito” presente na perspectiva psiquiátrica
atual, um psicanalista incomoda-se principalmente com as conseqüên-
cias terapêuticas desse modelo: o único agente de transformação possí-
vel seria o recurso aos psicofármacos, no máximo associados ao condicio-
namento do comportamento ou do pensamento. Posição que exclui toda
e qualquer responsabilidade do sujeito pelos seus sintomas – cujo único
sentido passa a ser o de uma disfunção neuronal – e que contradiz fron-
talmente a ética da psicanálise, desarticulada dos ideais e do bem-estar:
“Por nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis. Que chamem
a isso como quiserem, terrorismo” (LACAN, 1998 [1966], p. 873).
93
Certamente a psicanálise não é para todos, mas para todos ela pode
lembrar que o sujeito depende da palavra – ser falante, ser falado, fales-
ser. Ao reconhecer os poderes da palavra, ela concede espaço para o
sujeito e, portanto, para a verdade, propondo uma alternativa ao peso
angustiante do determinismo científico. Sem desconhecer um outro de-
terminismo – o da cadeia significante – ela mantém espaço para o con-
sentimento do sujeito, cuja liberdade não deve ser entendida como eva-
são ou livre-arbítrio, mas como assentimento a isso que o determina.
Em outros termos, a liberdade requer do sujeito seu assentimento a
esse sistema de leis, a esse imperativo que o pressiona a assumir a sua
própria causalidade (ver LACAN, 1998 [1966], p.879). Trata-se, então, de
fazer advir a articulação da causalidade psíquica com o consentimen-
to do sujeito.
94
95
Como não lamentar que o interesse votado à criança
pela análise desenvolvimentista não se detenha no
momento, na aurora mesma do uso da fala, em que a
criança que designa por um “au-au” aquilo que, em
alguns casos, houve quem se empenhasse em chamar
unicamente pelo nome de “cão”, transpõe esse “au-au”
para quase qualquer coisa – e como não lamentar que
ela não se detenha, além disso, no momento posterior
em que ela declara que o gato faz “au-au” e o cachorro
faz “miau”, mostrando com seus soluços, quando
alguém pretende corrigir sua brincadeira, que, afinal,
essa brincadeira não é gratuita?
 (LACAN, Escritos, p. 715)
A psicanálise pode ser considerada uma teoria do desenvolvimen-
to, como sugerem os já citados Kanner, Ajuriaguerra, Raquel Soifer ou
Françoise Dolto e outros1? Ela também se constitui em uma psicologia
evolutiva? Afinal, os psicanalistas concordam com a idéia de um desen-
volvimento psíquico?
Inicialmente, podemos destacar que a noção de “fase” ou “estádio”
não é estranha à teoria psicanalítica, que – como a biologia evolucionista
e a psicologia do desenvolvimento – buscou diferenciar etapas, perío-
dos ou momentos da vida. Em Freud, encontramos algumas referências
cronológicas (por exemplo, o aparecimento do complexo de Édipo entre
os3 e os 5 anos), bem como “fases do desenvolvimento libidinal”. Melaine
Klein apresenta os “primeiros estádios do conflito edípico e da formação
Desenvolvimento ou estrutura
1 Todo um capítulo de Psicanálise e pediatria (1971) é dedicado, por Françoise Dolto, à
“evolução dos instintos”. Muitos tratados ou livros de psiquiatria infantil apresentam
a psicanálise como uma psicologia evolutiva. Um exemplo, entre vários, encontra-se
no livro Evolução psíquica da criança (1975) do psiquiatra infantil Luiz Carlos Osório.
96
do superego”2 e o próprio Lacan faz referência a um “estádio do espe-
lho”. No entanto, essa semelhança da psicanálise com a perspectiva evo-
lucionista depara-se com limites bem precisos, que esperamos fiquem
bem delineados neste capítulo, a partir de algumas discussões sobre as
concepções de tempo, história e estrutura em Freud e Lacan.
A TEORIA DOS ESTÁDIOS
A psicologia genética – cujos principais representantes são Jean
Piaget (1896-1980) e Henri Wallon (1879-1962) – propõe, como era de se
esperar, “estádios de desenvolvimento” e é, principalmente por sua in-
fluência que se costuma relacionar, em uma suposta evolução psíquica
da criança, o desenvolvimento cognitivo com os desenvolvimentos psi-
comotor e “emocional” ou “afetivo”.
Esses “estádios do desenvolvimento” diferenciam-se das “escalas
de desenvolvimento” – propostas, por exemplo, por Charlotte Bühler e
Arnold Gesell (1880-1961). Enquanto estas últimas são descritivas e es-
tabeleceu uma ordem cronológica, que permite medir o nível de desenvol-
vimento atingido, os “estádios” são operacionais e buscam definir ní-
veis funcionais, ou seja, eles não obedecem a uma cronologia, mas, sim,
a uma ordem de sucessão das aquisições. Piaget e Wallon “apresentaram o
desenvolvimento psíquico como uma construção progressiva, que se pro-
duz pela interação entre o indivíduo e seu meio. Sua concepção é a de
uma verdadeira gênese do psiquismo, contrariamente à concepção do de-
senvolvimento como sendo uma realização progressiva de funções pre-
determinadas” (AJURIAGUERRA,1980, p. 23, ver nota 15).
 Em função de uma certa leitura e apropriação do texto de Freud,
realizada principalmente por partidários da Ego Psychology (em especial,
Anna Freud, Bruno Bettelheim e René Spitz), a psicanálise foi assimilada
a uma psicologia evolutiva ou genética. Tanto eles quanto os teóricos da
relação de objeto (K. Abraham, M. Klein, D. Winnicott, M. Balint) vão pro-
por a existência de um estágio final do desenvolvimento psicossexual –
sua apoteose – momento no qual o sujeito chega a uma relação “madura”
com o objeto, o estádio genital ou do amor objetal. Acredita-se no “encon-
tro” entre o sujeito e o objeto, sujeito que se confunde com o eu e objeto que
é definido, antes de mais nada, como de satisfação. Foi preciso o “retorno a
Freud”, proposto por Lacan, para que se pudesse restaurar a “lâmina
2 Esse é o título de um dos capítulos do livro de Melaine Klein, A psicanálise da criança
(1932), p. 174- 202.
97
cortante” da verdade do pensamento freudiano, possibilitando uma críti-
ca contundente a essa perspectiva desenvolvimentista na psicanálise.
No entanto, como foi possível aos partidários do geneticismo e da
relação de objeto propor essa interpretação das idéias de Freud? Seu
texto daria margem para tal leitura?
É preciso reconhecer que se pode construir “com trechos seletos da
obra de Freud” (LACAN, 1998 [1953], p. 264) – sem considerar a lógica
que o conduz – uma interpretação do seu pensamento no sentido da
perspectiva genética. Assim, por exemplo3, em um fragmento de “O in-
teresse científico da psicanálise” (1913) – ao qual fizemos breve alusão
no capítulo 1 – Freud afirma4:
O procedimento psicanalítico não pode eliminar um sintoma até
haver traçado a origem e a evolução desse sintoma. Assim, desde
o início, a psicanálise dirigiu-se no sentido de delinear processos
de desenvolvimento. Começou por descobrir a gênese dos sinto-
mas neuróticos e foi levada, à medida que o tempo passava, a
voltar sua atenção para outras estruturas psíquicas e a construir
uma psicologia genética que também se lhes aplicasse.
A psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos
adultos à vida mental das crianças e teve que levar a sério o velho
ditado que diz que a criança é o pai do homem. Delineou a conti-
nuidade entre a mente infantil e a mente adulta e observou tam-
bém as transformações e os remanejamentos que ocorrem no pro-
cesso. (FREUD, 1980 [1913], p. 218)
De fato, a referência principal que viabilizou a perspectiva de um
desenvolvimento em psicanálise relaciona-se à teoria da libido. Foi em
torno dela que se elaborou a proposta de um “desenvolvimento da orga-
nização sexual”5 ou de um “desenvolvimento psicossexual”6, bem como
3 Ver também “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911),
quando Freud trata das relações entre o princípio do prazer e o princípio de realidade,
dizendo que suas considerações são de “psicologia genética“ (ver 1980 [1911], p. 282)
4 Nesse mesmo ano de 1913, em Totem e tabu, Freud estabelece comparação entre as
fases do desenvolvimento da visão humana do universo e as fases do desenvolvi-
mento libidinal. Assim, a fase animista corresponde à fase narcisista, a fase religio-
sa corresponde à fase da escolha de objeto e a fase científica correlaciona-se à fase
da maturidade. Ver ESB, 1980 [1913], vol XIII, p. 113.
5 Em 1915, Freud acrescenta toda uma seção, no segundo dos três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, que ele intitula de “As fases de desenvolvimento da organi-
zação sexual”. Ver 1980 [1905], p. 203-206.
6 Essa expressão aparece várias vezes em Freud. Ver, por exemplo, “desenvolvimento
psicossexual de Hans” (v.X, p.120), “desenvolvimento psicossexual de Leonardo”
(vol.XI, p. 110).
98
as noções de fixação e regressão, que favoreceram uma apreensão cronoló-
gica da realidade psíquica.
A esse respeito, encontramos fragmento exemplar, em livro da dé-
cada de 70, escrito por um psiquiatra infantil brasileiro:
Evolução psíquica da criança lembra a todos o desenvolvimento
emocional do indivíduo ao longo de uma série de etapas – fase
oral, anal, fálica etc. [...] Chamando, agora, o avanço do exército
de evolução, as brigadas de retaguarda de pontos de fixação e a reti-
rada das tropas de regressão, teríamos configurada a situação que
ocorre quando, em determinado momento de sua evolução psi-
cológica, a criança retrocede (regride) a uma etapa pregressa de
seu desenvolvimento, onde se achará mais segura (ponto de fixa-
ção), por não encontrar condições para superar o obstáculo emo-
cional que se lhe antepôs.
Através dos últimos conceitos enunciados, podemos chegar à ca-
racterização do que é normal ou patológico na evolução psíquica
do indivíduo: tanto mais será ela normal quanto menos “regres-
sões” ocorrerem, quanto melhor for o contato com o princípio da
realidade e quanto maior for o equilíbrio entre os impulsos agres-
sivos e libidinosos, e vice-versa. (OSÓRIO, 1975, p. 12)
Freud utiliza o termo latino libido para se referir à manifestação da pul-
são sexual no psiquismo.7 Enquanto dimensão fundamental da pulsão, a
libido liga-se aos objetos e pode se deslocar em seus investimentos,
mudando tanto de objeto (auto-erótico, narcísico, homossexual, hete-
rossexual) e de objetivo (sexual ou não-sexual, como a sublimação). Além
disso, ela diversifica-se quanto à sua fonte de excitação, que pode se
encontrar em todo processo funcional do corpo, ainda que se intensifi-
que em certas zonas erógenas: oral, anal, uretro-genital. Essa descrição da
libido, como diversificada em zonas erógenas, favoreceu à idéia de uma
organização “evolucionista” da sexualidade, a teoria dos estádios. Reto-
memos o que Freud apresenta, em 1923, em ítem denominado exata-
mente de “O desenvolvimento da libido”:
A princípio, os instintos [pulsões] componentes individuais es-
forçam-se por obter satisfação independentemente uns dos ou-
tros, mas, no decorrer do desenvolvimento, se tornam cadavez
mais convergentes e concentrados. A primeira fase (pré-genital)
de organização a ser discernida é a oral, na qual em conformida-
de com os interesses predominantes do bebê, a zona oral desem-
penha o papel principal. Ela é seguida pela organização anal-sádica,
7 Para um histórico da gênese do conceito de libido em Freud, ver, por exemplo, Dois
verbetes de enciclopédia (1923a), ESB, v.XVIII, p. 308-312.
99
em que a zona anal e o instinto [pulsão] componente do sadis-
mo são particularmente proeminentes [...]. A fase terceira e final
da organização é aquela em que a maioria dos instintos [pul-
sões] componentes converge para o primado das zonas genitais.
Via de regra, essa evolução é atravessada rápida e moderada-
mente, mas certas partes individuais dos instintos [pulsões] per-
manecem atrás, nas fases prodrômicas [preliminares] do pro-
cesso, e dão assim surgimento a fixações da libido, importantes
como predisposições constituintes para irrupções subseqüentes
de impulsos reprimidos [recalcados] e que se encontram em re-
lação definitiva com o desenvolvimento posterior das neuroses
e perversões. (FREUD, 1980 [1923a], p. 297-298)
 Em “A organização genital infantil” (1923b), Freud delimita uma
terceira fase, subseqüente às duas organizações pré-genitais (oral, anal).
Essa fase, que, segundo ele, já merece ser descrita como genital – como
aquilo que se caracterizaria pela dominância imaginária do atributo fá-
lico e pelo gozo masturbatório (ver LACAN, 1998 [1958b], p. 693) – dife-
rencia-se, no entanto, da “organização final da maturidade sexual”, pois
reconhece apenas – como mostramos no segundo capítulo – um único
órgão genital, o masculino. Trata-se, então, de uma primazia do falo e
não dos órgãos genitais e, por isso, Freud denomina esse estádio de “fase
fálica” (ver 1980 [1905], p. 205, nota 1 e 1980 [1923b], p. 179-184). Essa
fase seria sucedida pelo período de latência, até que na puberdade, quan-
do a reprodução se torna possível, organizaria-se o estádio último do
desenvolvimento psicossexual, a etapa genital.
G. Guillerault considera que há, em Freud, uma perspectiva que
acentua a temática do desenvolvimento, tornando-se efetiva a partir da
conjugação de “duas idéias complementares”. A primeira relaciona-se à
finalidade do desenvolvimento psicossexual: atingir a organização ge-
nital, que ordenaria as correntes pulsionais, que, de outro modo, perma-
neceriam independentes. A segunda idéia consiste na identificação e di-
ferenciação das etapas que permitem o acesso a esse fim.
essa perspectiva de um desenvolvimento é verdadeiramente, para
Freud, o que vem agenciar, ordenar a compreensão e a operativi-
dade de sua prática. É nela, de fato, que funda sua compreensão
fina da patologia, é dela que faz a moldura segura de sua inter-
pretação do sintoma e da neurose. E o que vem instalar, confir-
mar essa concepção da psicopatologia (como patologia psicosse-
xual) é o tandem das duas noções conjugadas de fixação e de
regressão, que vêm complementar a entrada em jogo do desen-
volvimento, desta vez em seus desfuncionamentos patológicos.
(GUILLERAULT, 1996, p. 121)
100
Por outro lado, Guillerault observa que Freud, cada vez que tenta
encaixar seu pensamento na “moldura de um desenvolvimento”, é obri-
gado a alargá-la. Em outras palavras, ele reconhece a inadequação ex-
plicativa desse esquema, sendo conduzido, de modificação em modifi-
cação, à tentativa de um equilíbrio final por meio do dualismo “pulsão
de vida – pulsão de morte”. Esse desfecho exprime bem, segundo o au-
tor, o que há de “problemático” na própria perspectiva do desenvolvi-
mento, na medida em que ela não pode ser congruente com o desejo em
ação no aparelho psíquico. Assim, a própria noção de “fixação” eviden-
ciaria o aspecto contraditório da expressão “desenvolvimento libidinal”,
uma vez que ela “corresponde antes de tudo ao que resiste intrinseca-
mente no desenrolar do suposto “programa” e que manifesta a dimen-
são do inconsciente. Como poderia um desenvolvimento por si só expli-
car o inconsciente?” (ver ibidem, 1996, p. 123).
De fato, o próprio Freud, nos anos 30, reconhece uma mudança de
posição com relação às fases da organização libidinal. Com isso, pode-
mos pensar – já influenciados pela perspectiva de Lacan – que a teoriza-
ção freudiana não concede caráter absoluto à questão cronológica e evo-
lutiva, submetendo-a a uma ordenação lógica – auto-erotismo,
constituição do eu, complexo de Édipo, dissolução do complexo. Assim,
mesmo se Freud fornece referenciais cronológicos ligados às etapas vi-
tais – infância, latência, puberdade – estes não se estabelecem como um
desenvolvimento contínuo:
Nossa atitude para com as fases da organização da libido modi-
ficou-se um pouco, de um modo geral. Ao passo que, anterior-
mente, enfatizávamos principalmente a forma como cada fase
transcorria antes da fase seguinte, nossa atenção, agora, dirige-se
aos fatos que nos mostram quanto de cada fase anterior persiste
junto a configurações subseqüentes, e depois delas, e obtém uma
representação permanente na economia libidinal e no caráter da
pessoa. (FREUD, 1980 [1933], p. 125)
No entanto, a dimensão do desenvolvimento continuou a ser, de-
pois de Freud, objeto de investigação e de reflexão no meio psicanalíti-
co. A teoria dos estádios foi reformulada por seus alunos e gerou efeitos
significativos no modo de se apreender o pensamento freudiano e de se
praticar a psicanálise. Assim, em 1913, Sandor Ferenczi (1873-1933) di-
ferenciou um estádio psíquico primário, caracterizado por uma atividade
ligada ao princípio de prazer e compartilhado pelas crianças, pelos ani-
mais e “primitivos” e um estádio psíquico secundário, o do homem normal
em estado de vigília (ver 1992, p. 39-54).
101
Foram, no entanto, as idéias de Karl Abraham (1877-1925) que
produziram maiores conseqüências na difusão da perspectiva evolutiva
em psicanálise. Em 1924, além de insistir na “conformidade” entre o
desenvolvimento psicossexual e o orgânico – relacionando os estádios
libidinais à embriologia – Abraham buscou estabelecer uma “história
do desenvolvimento do amor objetal”. Ele propôs o seguinte quadro, a
fim de facilitar uma visão de conjunto das etapas da organização sexual
– que ele subdivide ainda mais – e dos estádios do desenvolvimento do
amor objetal (ver 1993, p. 320):
Etapas do desenvolvimento
do amor objetal
Amor objetal (pós-ambivalente)
Amor objetal excluindo os órgãos genitais
Amor parcial
 Amor parcial e incorporação
Narcisismo. Incorporação total do objeto
 Auto-erotismo (sem objeto)
Etapas da organização
da libido
VI. Etapa genital definitiva
V. Etapa genital precoce (fálica)
V. Etapa sádico-anal tardia
III. Etapa sádico-anal precoce
II. Etapa oral tardia
(canibalesca)
I. Etapa oral precoce (sucção)
8 Sobre a teoria do desenvolvimento em Melaine Klein, ver, por exemplo, PETOT
(1991), p. 136-153.
Recebendo herança de Abraham, Melaine Klein vai contribuir para
historiar o complexo de Édipo ao discordar da datação freudiana, fazendo-o
retroceder ao primeiro ano de vida, a partir do advento, já na fase oral,
de um supereu precoce8:
Através de toda minha descrição do complexo de Édipo, tenho
procurado demonstrar a interdependência de certos aspectos pre-
dominantes do desenvolvimento. A evolução sexual da criança está
inextricavelmente unida com suas relações de objeto, e com todas
as emoções que, desde o início, moldam sua atitude com a mãe e o
pai. A ansiedade, a culpabilidade e os sentimentos depressivos são
elementos intrínsecos da vida emocional da criança e, por isso, pe-
netram nas primeiras relações da criança com seus objetos [...]. Par-
tindo dessas figuras introjetadas [...] desenvolve-se o superego que,
por sua vez, influi na relação com ambos os progenitores e em todo
desenvolvimento sexual. (KLEIN, 1981 [1945], p. 488)
102
Principalmente depois de começar a estudar “as relações arcaicas da
criança com a mãe”, M. Klein introduziu a idéia de posição (depressiva e
esquizo-paranóide), para designaruma modalidade de relação de ob-
jeto, buscando superar os impasses suscitados pela idéia de estádio ou
fase. Assim, enquanto esta última palavra indica uma duração exata,
pois pressupõe um começo, um fim e uma superação definitiva do es-
tado descrito, a palavra posição mostraria que o estado (esquizóide,
paranóide, depressivo) intervém em um dado momento do desenvol-
vimento, mas pode também ser reativado ou repetido em outras épo-
cas da vida do sujeito.
De todo modo, do ponto de vista evolutivo, M. Klein define a pas-
sagem da posição esquizo-paranóide para a posição depressiva como a marca
fundamental, em todo sujeito, da transição de um estado arcaico de psi-
cose para um estado de funcionamento normal.
LACAN E O ESTÁDIO DO ESPELHO
Curiosamente, o mais ferrenho crítico da perspectiva desenvolvimen-
tista, estabelece o “primeiro pivô” de sua intervenção na teoria psicanalí-
tica, em 1936, com trabalho dedicado a um estádio do desenvolvimento
da criança: “O estádio do espelho. Teoria de um momento estruturante e
genético da constituição da realidade, concebido em relação com a expe-
riência e a doutrina psicanalítica” (ver LACAN, 1998 [1966a], p. 71, nota 4).
Esse artigo, como sabemos, nunca foi publicado, sendo que, apenas em
1949, aparece nova versão intitulada: “O estádio do espelho como forma-
dor da função do eu [je]...” (LACAN, 1998, p. 96-103).
Em 1931, Henri Wallon havia descrito um experimento que permi-
tia diferenciar o filhote do homem de seu parente animal mais próximo,
o chimpanzé. A criança de seis meses distinguia-se do animal da mesma
idade, porque ficava fascinada com seu reflexo no espelho e o assumia
jubilosamente como sua própria imagem, enquanto o chimpanzé manti-
nha-se indiferente ao perceber a sua imagem.9
Lacan retoma o “teste de Wallon” e transforma essa experiência
psicológica em uma teoria sobre a natureza propriamente imaginária da
função do eu no sujeito. Portanto, esse acontecimento – que se pode situar
9 O artigo de Wallon intitula-se “Comment se développe chez l´enfant la notion de
corps propre”. Célio Garcia observa que, para o psicólogo, a experiência do espe-
lho evidencia que a criança descobriu a solução que permitiu a ela superar uma
deficiência em seu conhecimento. Para Wallon, o espelho seria sinal de uma etapa
na história positiva de uma aquisição contínua. Ver GARCIA, 1993, p. 19-27.
103
em um momento específico da vida da criança (entre os seis e os dezoito
meses) – interessa a ele, principalmente como ilustração do caráter
conflitivo de toda relação dual e não como um momento do desenvolvi-
mento ou uma etapa da maturação psicológica. Em outras palavras, para
Lacan importa pouco saber quando exatamente se constitui o eu.
O estádio do espelho deve ser compreendido como o processo de
formação do eu através da identificação do sujeito infans com a própria
“imagem especular”, com a Gestalt visual de seu corpo. A chave desse
fenômeno encontra-se no “desamparo original” do filhote do homem
após o seu nascimento. Sua prematuração fisiológica, a falta de controle
motor, bem como a dependência da amamentação estabelecem essa iden-
tificação com a imagem da unidade corporal como uma “encruzilhada
estrutural” (1998 [1948], p. 116), onde o infante “precipita-se da insufi-
ciência para a antecipação” (1998 [1949], p. 100), forjando uma sensação
imaginária de domínio do corpo.
Ao reconhecer sua própria imagem como um todo no espelho, a
criança é levada a confrontar-se com seu “corpo fragmentado”, ameaça-
do de despedaçamento. O estádio do espelho suscita então uma rivali-
dade, um “ciúme primordial” entre a criança e a sua imagem, porque a
completude da imagem ameaça o infante com a fragmentação. Para re-
solver essa tensão agressiva, o sujeito se identifica, em momento de júbi-
lo, com a imagem e é essa identificação primária com o semelhante o
que constitui a “função do eu”.
O estádio do espelho demonstra também – como sugerimos no capítu-
lo 2 – que a formação do “eu“, a partir da captação da imagem do outro,
conduz ao “desconhecimento” dos determinantes simbólicos (Outro). As-
sim, se o “eu” é uma função que se constitui na ordem do imaginário, isso
não impede a incidência, desde o início, da “matriz simbólica” nessa díade:
É que o Outro...[se expõe] até mesmo na relação especular em seu
momento mais puro: no gesto pelo qual a criança diante do espe-
lho, voltando-se para aquele que a segura, apela com o olhar para
o testemunho que decanta, por confirmá-lo, o reconhecimento da
imagem, da assunção jubilatória em que por certo ela já estava.
(LACAN, 1998 [1960a], p. 685)
Ponto de referência constante em toda obra de Lacan, o estádio do
espelho é retomado e reelaborado em diferentes contextos.10 Assim, no
10 Nos Escritos, por exemplo, Lacan retoma o “estádio do espelho” em diferentes
trabalhos. Sobre essas referências ver capítulo 5 deste livro.
104
início da década de 50, Lacan o considerava como privilegiado para
demonstrar “a mais precoce formação do ego”, atribuindo-lhe um “du-
plo valor”: “Em primeiro lugar tem um valor histórico, porque marca
uma virada decisiva no desenvolvimento mental da criança. Em se-
gundo lugar, ele representa uma relação libidinal essencial com a ima-
gem do corpo.” (LACAN, 1999 [1951], p. 9). À medida em que reelabora
o conceito, Lacan enfatiza cada vez mais o “valor estrutural” em detri-
mento do “valor histórico”. Em 1956, por exemplo, no Seminário 4, ele
pergunta: “O que é o estádio do espelho? É o momento em que a crian-
ça reconhece sua própria imagem. Mas o estádio do espelho está bem
longe de apenas conotar um fenômeno que se apresenta no desenvol-
vimento da criança. Ele ilustra o caráter conflitivo da relação dual”
(LACAN, 1995 [1956-57], p. 15).
DESENVOLVIMENTO OU HISTÓRIA
Principalmente a partir dos anos 5011, Lacan vai adotar posição ex-
tremamente crítica com relação à leitura evolutiva de Freud e à noção de
desenvolvimento em psicanálise, noção que havia assumido feição nor-
malizadora e até moralista, relacionada ao acesso à fase genital e à capa-
cidade de amar. Em diferentes passagens dos Escritos, ele denuncia as
“exigências do misterioso genital love” (1998 [1953], p. 264), o fardo pro-
duzido pelo “orgasmo perfeito” ou pela “normalidade delirante da re-
lação genital” (1998 [1958a], p. 613) ou o “desconhecimento da impor-
tância essencial do desejo, que se ilustra por um tratamento de contenção
imaginária, baseado no moralismo delirante dos ideais da pretensa rela-
ção de objeto?” (1998 [1959], p. 723-724).
Lacan rechaça totalmente essa idéia da relação “madura” com o
objeto, a relação genital. Para ele, a síntese final da sexualidade não exis-
te nem é possível, pois o sujeito está irremediavelmente dividido e a
metonímia do desejo não pode ser detida. Além disso, o “famoso objeto
genital” – adequado, harmonioso, plenamente satisfatório – é, antes de
tudo, um objeto “reencontrado”:
11 Dylan Evans considera que Lacan, em seus primeiros trabalhos, parece aceitar a
leitura evolutiva de Freud, pelo menos com relação à ordem genética dos três
“complexos familiares” – desmame, intrusão, Édipo – (LACAN, 1987 [1938], p.
17-61) e às defesas do eu. Até 1950, ele teria inclusive levado a sério conceitos
genéticos, como os de “fixação objetal” e de “estagnação do desenvolvimento”
(LACAN, 1998 [1950], p. 150). Ver EVANS, 1997, p. 65. Já J-Alain Miller considera
que Lacan, mesmo no artigo sobre “Os complexos familiares”, faz uma chamada
ao estruturalismo, ao colocar em cena a noção de “complexo”, que desempenha-
ria o papel de “quase uma estrutura”, ver MILLER, 1988, p. 15.
105
É surpreendente ver que, no momento em que faz a teoria da evo-
lução instintual tal como esta se origina das primeiras experiências
psicanalíticas, Freud nos indica que o objeto é apreendido pela via
de uma busca do objeto perdido. Este objeto, que corresponde a
um estágio avançado da maturação dos instintos, é um objeto
reencontrado, o objeto reencontrado do primeiro desmame, o
objeto que foi inicialmente o ponto deque era possível entender o discurso freudiano de maneira
17
radicalmente diversa, livrando-o de sua aderência biológica ou de uma
compreensão demasiado realista ou psicologizante.
Neste livro, discutiremos questões relacionadas ao estatuto do tem-
po, da história, do desenvolvimento e da estrutura em psicanálise, bem
como à ruptura ou continuidade entre a criança e o adulto.
No primeiro capítulo, recorreremos às análises de alguns historia-
dores, filósofos, psicanalistas e juristas, que, a partir de diferentes pers-
pectivas, se dedicaram a pensar a infância na civilização ocidental e,
mais particularmente, na sociedade brasileira.
No segundo capítulo, repensaremos a concepção que associa de
maneira insofismável infância e psicanálise, delimitando diferenças en-
tre a “infância” e o “infantil”.
O terceiro capítulo estabelece inter-relações históricas e conceituais
entre as teorias e práticas da psicanálise e da psiquiatria infantil no cam-
po da saúde mental e da atenção psicossocial.
O último capítulo discute – principalmente a partir do ensino de
Lacan – as idéias de “estádio” ou “fase” e a concepção linear do tempo
presente na perspectiva genética do desenvolvimento psíquico. A opo-
sição de Lacan aos conceitos de desenvolvimento e evolução não impli-
ca na negação ou desconsideração do tempo e das mudanças e transfor-
mações subjetivas. Trata-se antes de uma ordenação lógica e não de
seqüências cronológicas. Assim, analisaremos as noções de história, de
tempo lógico, de retroação (après-coup) e antecipação, bem como a noção
de estrutura e sua relação com o sujeito.
Se a perspectiva estrutural nos impossibilita de defender que a
criança – enquanto um conceito historicamente produzido – existe
no inconsciente, isso não implica em abandoná-la, pois ela pode ocu-
par tanto o lugar de falo – enquanto significante privilegiado do de-
sejo – como também de objeto a. A especificidade da relação do ana-
lista com a criança não deve, portanto, ser dissolvida, pois ela tem
possibilitado avanços na teoria e na clínica psicanalítica, ainda que
também tenha favorecido a riscos e desvios, pois os analistas, muitas
vezes, substituíram o silêncio da criança por suas próprias produ-
ções “delirantes” ou educativas.
Trata-se, antes de tudo, de reconhecê-la como um sujeito, um anali-
sante integral. Além disso – como já sugeria Freud – os que lidam com as
crianças têm a tarefa de fazê-las ter vontade de viver, de despertá-las
para o mundo, não as deixando ao sabor do destino, mas, sim, responsa-
bilizando-as pela invenção de suas próprias vidas e de sua sociedade.
18
Neste livro, encontram-se também publicados dois trabalhos de
colegas estrangeiros. O primeiro é um importante instrumento de inves-
tigação para os interessados no estudo da criança no ensino de Lacan.
Trata-se da adaptação, para a edição brasileira dos Escritos, da pesquisa –
“o significante criança nos Escritos” – desenvolvida por Anibal Leserre,
que, de maneira afetuosa, acolheu nosso pedido para adaptá-la e publi-
cá-la. O segundo é a tradução de um artigo de Paul Bercherie no qual ele
realiza um estudo histórico sobre a clínica psiquiátrica da criança, de-
monstrando que ela – diferentemente da clínica psiquiátrica do adulto –
constituiu-se, propriamente, depois do advento da psicanálise.
É hora de registrar, mais uma vez, que vários se escondem atrás do
nome de um autor. Gostaria de expressar-lhes minha gratidão, enuncian-
do o nome de alguns: Margareth Diniz e Tânia Ferreira, pela idéia do
livro; Dôra Apocalypse, pela leitura atenta; colegas da Residência em
Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Centro Psicopedagógico
da FHEMIG, em especial a Cláudio Costa; Elisa Alvarenga, pelas suges-
tões ao segundo capítulo; Ângela Diniz e Fernando Grossi, pelo entusias-
mo; Anibal Leserre e Paul Bercherie, pela autorização para a publicação
de seus trabalhos. É importante destacar ainda o apoio de Formações
Clínicas do Campo Lacaniano-BH.
Belo Horizonte, 21 de julho de 2001.
19
Em 1994, importante revista de circulação nacional anuncia em capa
o tema da matéria principal: “A infância de um vencedor – Como viveu
até a adolescência o próximo presidente do Brasil”. São contados deta-
lhes históricos e pitorescos sobre a infância e adolescência de Lula, Leo-
nel Brizola, Fernando Henrique, Orestes Quércia e Esperidião Amin, os
cinco candidatos melhor colocados para a eleição presidencial da época.
Ao leitor lançam-se as seguintes questões: “Seria diferente a infância de
alguém que, um dia, será presidente de seu país? Revelará ele desde
cedo uma estrela na testa? Ou, ao contrário, é uma infância como as
outras?” (Veja, 17/08/94, edição 1353).
Essa reportagem curiosa, em um veículo de comunicação de massa,
expõe algumas idéias atualmente inquestionáveis. A primeira é a de que
a existência humana, desde a concepção até a morte, está dividida em
períodos – infância, adolescência, maturidade e velhice –, sendo que se-
ria possível saber o que acontece ou deveria acontecer em cada um de-
les. A segunda é a de que a infância é uma fase determinante na vida de
Eu não tenho saco. Eu tenho assim essa lembrança de
festa de aniversário da minha infância... Maravilhosas.
Mas eu acho que hoje tudo é demais. Tudo é over. Você
não precisa chamar um palhaço, um mágico, um pula-
pula, gastar cinco ou seis mil reais.
Acho legal organizar as festas das crianças.
Acho legal as crianças ficarem juntas. Acho legal essa
coisa das crianças se encontrarem e tal.
Mas, eu acho demais. É over, over demais.
(Entrevista anônima, CASTRO (org.), 1999, p.180)
Invenção e desaparecimento da infância
20
qualquer indivíduo, situada entre o nascimento e a adolescência, e mar-
cada por importante desenvolvimento físico, intelectual e emocional.
Por outro lado, apesar de destacar o valor da infância na vida de “um
futuro presidente”, a reportagem já deixa vislumbrar, paradoxalmente,
certa diminuição da importância concedida a essa fase da existência.
Neste capítulo, recorreremos às análises de alguns historiadores,
filósofos, psicanalistas e juristas, que, a partir de diferentes perspecti-
vas, se dedicaram a pensar algumas questões sobre a infância. Buscare-
mos demonstrar que a representação atual da infância é fruto de uma in-
venção histórica e social, e que, por essa mesma razão, é possível que ela
venha a assumir outro estatuto ou desaparecer.
Essa perspectiva distancia-se, portanto, da idéia de pensarmos a
infância como uma etapa natural da vida, biologicamente situável, que
nos leva a acreditar na existência de uma essência ou natureza infantil. A
justificativa mais imediata para se invocar essa natureza infantil é a imatu-
ridade biológica. No entanto, às condições objetivas do desenvolvimento
físico da criança vinculam-se também freqüentemente características psi-
cológicas e comportamentais, tornando-a prisioneira de uma “dupla ar-
madilha da naturalidade”. Por um lado, a idéia de criança, tal como a
concebemos, nos é natural no sentido de auto-evidente. Por outro, as ca-
racterísticas que compõem essa representação são atribuídas a uma natu-
reza própria à condição biológica da criança (ver SILVA, 1985, p. 15-20).
Não há dúvida de que o organismo humano sempre se desenvol-
veu, desde a concepção até a idade adulta, atravessando um período
inicial de extraordinária prematuridade, que requer cuidados e prote-
ção constante dos adultos, a fim de assegurar a sobrevivência da espé-
cie: a criança sempre foi a cria do homem em todas as sociedades e cul-
turas. No entanto, essa idéia ou visão da criança e dos cuidados a ela
dedicados não foram sempre os mesmos, constituindo-se em produção
relativamente recente.
 Philippe Ariès, em livro já clássico na análise das representações
históricas da criança – L‘enfant et la vie familiale sous l‘Ancien Régime (1960)1
– demonstra como a definição de criança se modificou de acordo com
1 No Brasil, o livro foi traduzido em versão abreviada, com o título História social da
família e da criança.A edição brasileiraligação das primeiras satis-
fações da criança. (LACAN, 1995 [1956-57], p. 13)
Já o geneticismo – em completo contra-senso com o pensamento de
Freud – “pretende se basear numa ordem das emergências formais do
sujeito”, buscando “fundamentar os fenômenos analíticos nos momen-
tos de desenvolvimento implicados e a se nutrir da chamada observa-
ção direta da criança”. A partir de concepção linear do tempo, o geneti-
cismo pressupõe uma ordem natural do desenvolvimento sexual, não
considerando a articulação simbólica da sexualidade humana ao igno-
rar a diferença fundamental entre as pulsões e os instintos (ver LACAN,
1998 [1958a], p. 609-611).
Lacan mostrou que era possível entender o discurso freudiano de
maneira radicalmente diversa, livrando-o de suas aderências biológicas
e de uma compreensão demasiado realista ou psicologizante. Ele des-
creve a leitura geneticista como uma “mitologia da maturação dos ins-
tintos” (LACAN, 1998 [1953] p. 264). Defende que as diversas “etapas” ou
“fases” analisadas por Freud não são fenômenos biologicamente obser-
váveis que se desenrolam naturalmente – como as etapas do desenvol-
vimento sensório-motor –, mas, sim, “estruturas manifestamente mais
complexas” (LACAN, 1998 [1958a], p. 610). Considera também que as fases
pré-genitais não são momentos do desenvolvimento da criança estabele-
cidos cronologicamente, mas estruturas essencialmente atemporais, que
são “ordenadas na retroação do Édipo” (LACAN, 1998 [1957-58], p. 561).
Em outras palavras, existe um ordenamento simbólico do corpo, opera-
do pelo Outro. Como indica A. Jerusalinsky :
o fato de que a orelha seja tratada de forma diferente do que a
vagina, ou o pênis do que o nariz, não se deve a algo da ordem do
Real, deve-se sim à significação que para os pais tenham as res-
pectivas partes do corpo de seu filho; porque se o pênis e o nariz
significassem o mesmo, seu tratamento efetivo e imaginário seria
o mesmo. (JERUSALINSKY, 1999, p. 28)
No ensino de Lacan, a conhecida oposição entre a estrutura e o desen-
volvimento – que, para a psicanalista argentina Elsa Coriat, como veremos,
se tornou um “preconceito” – encontra um antecedente, segundo J-Alain
Miller, no par história-desenvolvimento (ver 1993, p. 7-8). Essa primeira
106
oposição foi enunciada, por exemplo, em “Função e campo da fala e da
linguagem” (1953). No campo da linguagem – onde não há um processo
igual para todos, um processo objetivo como a maturação – o desenvol-
vimento cede lugar à história. Ou seja, o processo de maturação do or-
ganismo humano inclui um sujeito, alguém que subjetiva, que dá senti-
do ao ocorrido, fazendo com que o mesmo fato objetivo possa receber
distintos sentidos:
O que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é
sua história – ou seja, nós o ajudamos a perfazer a historização
atual dos fatos que já determinaram em sua existência um certo
número de “reviravoltas” históricas. Mas, se eles tiveram esse
papel, já foi como fatos históricos, isto é, como reconhecidos num
certo sentido ou censurados numa certa ordem.
 Assim, toda fixação numa pretensa fase instintual é, antes de mais
nada, um estigma histórico: página de vergonha que se esquece
ou se anula, ou página de glória que constrange [...]
Dito de maneira sucinta, os estados instintuais já estão, ao serem
vividos, organizados como subjetividade. (LACAN, 1998 [1953], p. 263)
Essa mesma distinção entre a história e o desenvolvimento é ainda reto-
mada por Lacan, treze anos depois, em “A ciência e a verdade” (1966b):
“na psicanálise, a história é uma dimensão diferente da do desenvolvi-
mento – e é uma aberração tentar reduzi-la a este. A história só se desenro-
la como um contratempo do desenvolvimento.” (LACAN, 1998, p. 890).
O psicanalista seria então uma espécie de historiador que buscaria
reconstruir as lacunas factuais do passado esquecido ou recalcado do
sujeito? Não haveria o risco de se sair do impasse biologizante ou psico-
logizante e cair na armadilha do historicismo? Como entender a noção
de história em psicanálise?
No Seminário 1 (1953-54), Lacan esclarece que para ele a “história”
não é simplesmente uma seqüência de acontecimentos passados, mas
“a síntese presente do passado”, ou seja, o modo como o analisante co-
munica esses acontecimentos em análise. “A história não é o passado. A
história é o passado na medida em que é historiado no presente – histo-
riado no presente porque foi vivido no passado” (LACAN, 1986 [1953-54],
p. 21). Assim, a história, em psicanálise, não pode ser confundida com o
passado e nem com o vivido, pois, no campo da experiência analítica, a
transferência conduz à produção de uma história renovada, “recons-
truída” pelo sujeito, onde o que conta não é tanto o que ele rememora
sobre os acontecimentos importantes de sua existência, mas o que ele dis-
so reconstrói: “ se trata menos de lembrar do que reescrever a história”
107
(LACAN, ibidem, p. 23). Enfim, a pergunta sobre o que significa a própria
história retira a efetividade da proposta de qualquer roteiro ou percurso
pré-estabelecido.
No caso da escuta de uma criança em análise, percebe-se que ela se
interroga menos sobre o seu vivido do que sobre o seu destino, o que,
segundo Sylvie Le Poulichet, se poderia formular assim: “qual é o meu
lugar na história? Onde sou reconhecido?” (1996, p. 18). Por isso, essa
narrativa não pode ser revelada independentemente da presença do
desejo, que não se confunde com o presente, mas que faz ressoar juntos
“passado, presente, futuro, [como que] entrelaçados pelo fio do desejo
que os une” (FREUD, 1980 [1908], p. 153).
Essa reconstrução 12 é, segundo Lacan, central, por exemplo, no caso
do Homem dos Lobos – relato em que Freud apresenta significativa pre-
ocupação em estabelecer a cronologia dos eventos relacionados a essa
“história de uma neurose infantil”, buscando comprovar a “realidade”
da cena primária13. No entanto, o mais importante do caso não é a suces-
são dos acontecimentos, mas a evidência do funcionamento do après-
coup, da produção de sentido a posteriori14 (“só-depois”), que domina o
simples encadeamento dos fatos passados.
J-Alain Miller propõe discussão interessante sobre quem realiza esse
processo de construção, ao comentar um dos últimos textos de Freud,
justamente intitulado de “Construções em análise” (1937). Miller obser-
va diferenças entre as posições de Freud e Lacan com relação ao traba-
lho de construção:
Freud faz da construção uma atividade do analista que responde
à atividade de se lembrar do paciente. Ele responde assim à per-
gunta misteriosa: “E o que faz o analista durante esse tempo?”
Pois bem, o analista constrói. [...] Lacan vai repartir as coisas de
outra maneira: ele põe do lado do analisante não apenas a reme-
moração, mas também a construção, então toda a tarefa está do
lado do analisante, e o que cabe ao analista é o ato, não a tarefa, é
12 No Seminário I, Lacan utiliza o termo reconstruction (reconstrução) para se referir ao
que Freud propõe em “Construções em análise”. Ver 1975, p. 19.
13 Um exemplo da preocupação de Freud com a cronologia dos eventos neste caso
encontra-se na nota de rodapé que acrescenta ao relato, em 1923. Nessa nota, ele
fornece detalhes sobre as datas e determinados acontecimentos da vida e da análi-
se de Serguei Pankejeff. Ver 1980 [1918], p. 150.
14 Uma discussão sobre a tradução do substantivo nachträglichkeit e do adjetivo
nachträglich utilizados por Freud é realizada por HANNS, 1996, p. 80-88. O subs-
tantivo é geralmente traduzido por a posteriori, “ação diferida” e “ação retardada”
e o adjetivo por “posteriormente” ou a posteriori.
108
a autorização simbólica de proceder à tarefa analisante. Segundo
Lacan, o analista terá o ato, e o analisante a tarefa.
O ato analítico consiste em autorizar simbolicamente a tarefa
analisante. É responder à pergunta de Freud colocando o ana-
lista no lugar daquele que garante a validade do exercício ana-
lítico. (MILLER, 1996, p. 102)
A idéia da retroação, do après-coup, de um saber em movimento,que se retifica e se modifica, é utilizada por Lacan para pensar as fases
pré-genitais, concebidas – como dissemos – não como fatos reais crono-
logicamente anteriores à fase genital, mas como formas de demanda res-
situadas a partir do complexo de castração:
É em torno desse complexo de castração e, se posso dizer, voltan-
do a partir desse ponto, que devemos pôr à prova novamente
tudo o que pôde, de alguma forma, ser descoberto a partir desse
ponto limite. Quer se trate [...] daquilo que se articulou, nos dife-
rentes desenvolvimentos possíveis, em torno da noção de objeto,
de sua decomposição e seu aprofundamento[...] tudo isso pode
ser ressituado numa justa perspectiva se recapturarmos a partir
do quê isso efetivamente divergiu – este ponto, até um certo grau
insustentável por seu paradoxo, que é o complexo de castração.
(LACAN, 1992 [1960-61] p. 227)
Ao enunciar em termos de demanda e desejo, aquilo que a “visão
naturalista”, biológica, das diversas etapas da organização libidinal re-
duzia a uma “maturação dos instintos”15, Lacan repensa essas fases a
partir da relação com o Outro: “é na dialética da demanda de amor e da
experiência do desejo que se ordena o desenvolvimento” (LACAN, 1998
[1958b], p. 700). Assim, toda demanda, pelo fato de ser fala, tende a se
estruturar suscitando do outro uma resposta invertida: por exemplo, a
demanda de ser alimentado com a demanda de se deixar alimentar. Por
outro lado, toda demanda é marcada por uma ambivalência, pois o su-
jeito também não quer que ela seja satisfeita, a fim de resguardar algo
que se encontra num mais-além e que persiste como resto na relação
entre a necessidade e a demanda – o desejo.
Nas fases pré-genitais a satisfação da demanda eclipsa o desejo:
situação motivada pela distinção e discordância entre o que constitui
15 Elsa Coriat considera que os psicanalistas não levam em conta a diferença estabe-
lecida pela neuropediatria entre maturação e desenvolvimento. A maturação con-
sidera de que maneira transcorre a evolução biologicamente herdada, enquanto
que o desenvolvimento é um conceito mais amplo, que inclui os efeitos aconteci-
dos a posteriori, o adquirido, os efeitos da interação do organismo com o meio. Ver
1999, p. 23.
109
o objeto da demanda – na fase oral, a demanda do sujeito de ser ali-
mentado e na fase anal, a demanda de satisfação do Outro – e aquilo
que, no Outro, está no lugar do desejo. Já na fase genital, “o desejo se
apresenta como desejo”: “não se trata mais da sexualização de alguma
outra função, mas da própria função sexual”. (LACAN, 1992 [1960-61],
p. 227. Ver também p. 201-209).
 A partir de seu trabalho com crianças com problemas graves – sín-
drome de Down, autismo, cegueira congênita... –, A. Jerusalinsky preo-
cupou-se com a relação entre desenvolvimento e psicanálise, chegando
a algumas conclusões, dentre as quais destacamos três: o desenvolvi-
mento do bebê humano não opera por simples automatismo biológico;
seu corpo não se organiza por suas funções musculares ou fisiológicas,
mas, sim, pelas marcas simbólicas que o afetam; o que marca o ritmo do
desenvolvimento é o desejo do Outro que opera sobre a criança através
de seu discurso. Portanto, o maturativo se mantém simplesmente como
limite, mas não como causa (ver 1999, p. 28-29).
O GATO FAZ “AU-AU”
A complexa relação entre a emergência cronológica dos fenômenos
e a lógica da estrutura é também ilustrada pela questão da aquisição da
linguagem.16
Os psicolingüistas estabeleceram uma ordem natural do desenvolvi-
mento da linguagem, na qual o infante progride ao longo de uma seqüên-
cia de etapas predeterminadas: balbucio, aquisição de fonemas, de pala-
vras isoladas até a construção de orações de complexidade crescente.
Lacan não se interessa por essa seqüência progressiva, mas pelo
modo como a linguagem posiciona o sujeito em uma ordem simbólica.
Para ele, a criança tem uma apreensão do “simbolismo da linguagem”
muito antes de poder falar, e, por isso, a suposta aprendizagem da lin-
guagem não se realiza “do mais simples ao mais complexo”. Por estar,
desde o início, imersa em um “banho de linguagem”, a criança tem um
manejo antecipado de formas gramaticais extremamente elaboradas:
“[ela], desde suas primeiras manifestações de linguagem, serve-se da
sintaxe e das partículas de acordo com nuances que os postulados da
16 A partir da relação fundamental entre os processos de ensino-aprendizagem – en-
tendidos não apenas como transmissão de significados – e a questão da linguagem
e da fala, Leny Mrech pensa o vínculo entre a psicanálise e a educação, conside-
rando que o papel da primeira no campo educacional é o de resgatar a escuta da
linguagem e da fala do aluno. Ver MRECH, 1997, p. 71-73.
110
“gênese” mental só deveriam permitir-lhe atingir no auge de uma car-
reira de metafísico” (LACAN, 1998 [1950], p. 144).
A questão sobre como se produz essa “apreensão inicial” do simbó-
lico é quase impossível de teorizar, uma vez que não se trata da aquisi-
ção gradual de um significante depois do outro, mas da entrada, em
termos de “tudo ou nada”, em um universo de significantes. Um signi-
ficante é um significante apenas em virtude de sua relação com outros
significantes – por isso é impossível adquiri-lo de modo isolado.
A transição ao simbólico é sempre, segundo Lacan, uma criação ex
nihilo, uma descontinuidade radical e não uma evolução gradual. Aliás,
Lacan não deixa de advertir seus alunos para que “desconfiem do pen-
samento que se chama evolucionismo”. Ele mostra-lhes “a necessidade
de um ponto de criação ex nihilo do qual nasce o que é histórico na pul-
são. No começo era o Verbo, o que quer dizer, o significante. Sem o signi-
ficante no começo é impossível articular a pulsão como histórica. E isso
basta para introduzir a dimensão do ex nihilo na estrutura do campo
analítico.” (Lacan, 1988 [1959-60], p. 261)
Essa afirmação de Lacan sobre o criacionismo da estrutura, a cria-
ção ex nihilo à qual não se pode acompanhar, contrasta com a proposta
de Piaget – que se autodenomima “construtivista” – de traçar a gênese
empírica do sujeito do conhecimento, partindo de uma entidade bioló-
gica, o organismo. Esse sujeito epistêmico – definido pelas estruturas
lógicas do pensamento hipotético-dedutivo – teria como precursor um
sujeito da ação no contexto da inteligência sensório-motora, concebida
como cronologicamente anterior e independente da linguagem.
O sujeito piagetiano não é, portanto, o sujeito do significante, mas o
prolongamento e desenvolvimento de uma suposta organização bioló-
gica prévia não submetida à ordem simbólica – situação impensável para
Lacan (ver BASTOS, 1996, p. 55-59).
Em “A ciência e verdade”, Lacan observa que Piaget se interessa
pelo sujeito e não pelo homem, mas o fato de “psicologizar” o sujeito
conduz ao seu desconhecimento e exclusão17. Por isso, a pesquisa dele
se reduz a um exercício de lógica, onde o “adulto cientista” – destituído
tanto de desejo quanto de sua singularidade de sujeito – se interpõe en-
tre Piaget e a criança, impedindo que apreenda algo sobre a infância, pois
só busca egocêntricamente a confirmação dos seus pressupostos : ”[...] ele
nada nos traz sobre a criança, pouco sobre seu desenvolvimento, uma
17 Sobre a relação entre “a psicanálise e Piaget”, ver também JERUSALINSKY, 1999,
p. 75-84.
111
vez que lhe falta o essencial, e, da lógica que ela demonstra – refiro-me à
criança de Piaget – em sua resposta a enunciados cuja série constitui o
teste, nada além da série que regeu sua enunciação para fins de teste, ou
seja, a do cientista, ... (LACAN, 1998 [1966b], p. 874)
“O gato faz au-au, o cachorro faz miau-miau”.
 Eis como a criança soletra os poderes do
 discurso e inaugura o pensamento. (LACAN, Escritos, p. 905)
O termo estrutura – antes de se estabelecer como um conceito rigo-
roso e sistemático a partir do ensino de Lacan – é confundido em mui-
tos textos psicanalíticos com uma noção que participa do mesmo eixo
paradigmático ou contexto semântico, a noção de organização18. Freudutiliza, como vimos, as expressões “organização genital, libidinal,
psicossexual”, ainda que, para ele, o estruturalismo não se apresentas-
se como questão no horizonte teórico de sua obra. René Spitz propõe
os “organizadores do psiquismo” e Serge Lebovici pensa na “organi-
zação das instâncias psíquicas”.
O conceito de organização encontra-se presente em diferentes disci-
plinas como a biologia, a psicologia, a sociologia, a ciência política ou a
economia. Ele se refere a uma combinação de elementos autônomos,
positivos e semelhantes que constituem um tipo, graças à harmonia de
certos traços recorrentes e que são caracterizados por sua função (ver
CHAUI, 1984, p. 159-177).
Como sinônimo de organização a estrutura conota a idéia de equilí-
brio. Torna-se um termo vago que serve para indicar que o todo regula a
relação entre as partes. Ou seja, um determinado objeto ou fenômeno é
apreendido como fazendo parte de uma totalidade, que é de onde pro-
vém o seu sentido, a sua função e valor.
Em posição contrária ao atomismo associacionista – presente na
noção de organização – o estruturalismo considera que a estrutura é
constituída por um sistema de relações cujos elementos não são entida-
des positivas, fixas e preexistentes, mas unidades diacríticas, isto é, ne-
gativas, relativas, opositivas. Assim, a estrutura indica não apenas a
anterioridade e prevalência do todo sobre as partes, mas também destaca
a não-substancialidade das partes. Ou seja, as partes se inserem na totali-
dade de acordo com critérios de ordem e valor definidos pela lei que constitui
o conjunto: cada elemento depende dos outros e só pode ser o que é na e
18 Marilene Chauí também cita as noções de totalidade, organismo e gestalt, que fre-
qüentemente são confundidas com o conceito de estrutura (ver 1984, p. 162-163).
112
pela sua relação com eles. Enfim, diferentemente da idéia de organiza-
ção, o conceito de estrutura em psicanálise implica não só em um forma-
lismo lógico-matemático, mas também na sua inscrição inconsciente.
Foi o trabalho de Lacan que permitiu, como sabemos, o estabeleci-
mento sistemático do conceito de estrutura em psicanálise. De maneira
instigante, ele apropriou-se dos instrumentos conceituais da “tríade”
formada pelos lingüistas F. Saussure (1857-1913) e R. Jakobson (1896-
1982) e pelo antropólogo Lévi-Strauss (1908-)19 para formular a doutrina
do inconsciente estruturado como linguagem. O estruturalismo, que ser-
viu de referência para Lacan, não foi, portanto, aquele que se tornou
“moda” na França, em meados dos anos 60.
Lacan estabelece a concepção de um inconsciente que não é uma
reserva de imagens ou pulsões, uma realidade preexistente, enfim, uma
substância. O inconsciente é antes marcado por uma “vacuidade”, um
“vazio” cuja matriz teórica, para se pensar sua existência e o seu funcio-
namento, encontra-se no modelo da linguagem. Aliás, dizer que “o in-
consciente está estruturado como linguagem” é uma tautologia, pois “es-
tar estruturado” e “ser como linguagem” significam o mesmo para Lacan.
Esse conceito de estrutura não implica na oposição entre a profundida-
de e a superfície: o inconsciente está na superfície definida pela articulação
significante, pelos “efeitos que a combinatória pura e simples do significan-
te determina na realidade em que se produz” (LACAN, 1998 [1960a], p. 655).
A hipótese estruturalista é, como dissemos, anti-substancialista: a
diferença entre os elementos não se estabelece através de suas proprie-
dades intrínsecas, mas a partir da relação entre as posições que eles ocu-
pam. Essas diferenças se estabelecem sem “entidades positivas” – o que
há são oposições sem substância. O binarismo jakobsoniano levou essa
concepção ao extremo: tudo pode ser formulado a partir de uma oposi-
ção de dois, de um vocabulário reduzido ao mais e ao menos. A “herança
direta” dessa estrutura binária encontra-se, de forma exemplar, na pers-
pectiva de que “o mínimo de significantes é dois”.
Em conferência elucidativa, J-Alain Miller estabeleceu algumas ca-
racterísticas do estruturalismo que, segundo ele, são necessárias para a
apreensão da experiência analítica proposta por Lacan (ver 1988, p. 5-23).
Primeira. Se aceitamos que na língua, como afirma Saussure, só há
diferenças e nos interessamos pela combinação dos elementos, estamos
19 Além da influência da lingüística e da antropologia estrutural, Lacan também re-
cebeu influências do estruturalismo em matemática, especialmente do trabalho de
Nicolas Bourbaki.
113
diante da necessidade de que um elemento remeta ao outro. Somos, as-
sim, introduzidos a uma concepção de “cadeia”.
Segunda. A definição dos elementos, uns em relação aos outros, su-
põe seu conjunto, conjunto de definições correlativas. Desse modo, a
idéia de cadeia significante, de tesouro de significantes está inteiramen-
te em consonância com a hipótese estruturalista.
Terceira. Uma vez que não se pode captar um desses elementos sem
remetê-lo ao outro, é possível deduzir, desse binarismo, a função do
Outro. Opera-se uma divisão, uma cisão, na medida em que a definição
de todo Um está fora de si mesma, está no Outro. É o que Lacan, da
forma mais simples, escreverá S1, S2...
Quarta. Por ser anti-substancilista, a hipótese estruturalista produz,
por si mesma, uma falta-a-ser generalizada. Por isso, a presença se torna
problemática. Lacan, segundo Miller, recuperará esse elemento de pre-
sença com o objeto “pequeno a”, que se encontra, precisamente, fora da
estrutura da linguagem. O objeto “pequeno a” fará parte da estrutura
dos discursos – lembremos dos quatro discursos – estrutura que recupe-
ra justamente o que não está na linguagem, delimitando o campo do
gozo, sobre o qual Lacan se voltará a partir do final dos anos 60.
Além de desvanecer a presença, essa falta-a-ser indica que a lei não
é a identidade, mas a falta de identidade. O fato de que cada elemento
encontre sua identidade fora, exilado de si mesmo, permite introduzir a
problemática da identificação.
Quinta. A hipótese estruturalista introduz uma tópica, a partir do
momento em que o fundamental são as relações. Uma relação implica
lugares, e como os elementos não são positivos – isto é, não têm proprie-
dades intrínsecas –, seus aspectos essenciais se devem ao lugar que ocu-
pam na rede das relações. Um elemento não transforma apenas suas
propriedades quando ocupa outro lugar, adquire antes propriedades
totalmente novas, correspondentes a esse lugar. Lacan foi fiel a essa orien-
tação durante todo seu ensino. Desde a compreensão do Édipo, no Semi-
nário 4 (1956-57) – como uma estrutura composta por quatro termos: a
mãe, o falo, a criança e o pai – até a produção, no Seminário XVII (1969-
70), dos “quatro discursos”, obtidos pelas permutações entre os elementos
(S,S1, S2, a) e os lugares (agente, outro, produção, verdade).
Se todas essas características influenciaram Lacan, uma ruptura de-
cisiva vai ocorrer com relação ao sujeito. Para os estruturalistas, há uma
radical incompatibilidade entre a estrutura e o sujeito, uma vez que a
noção de estrutura foi proposta exatamente para retirar a subjetividade
(consciência) do campo da produção de sentido nas ciências humanas.
114
Visava-se à elaboração de um saber anônimo, sem sujeito. Já Lacan pro-
pôs um estatuto de sujeito compatível com a idéia de estrutura, posição
que fez com que Jakobson e Lévi-Strauss o considerassem “encantador,
mas incompreensível” (MILLER, 1988, p. 15).
Essa questão foi explicitamente proposta em “Subversão do sujeito
e dialética do desejo..” (1960b): “Uma vez reconhecida a estrutura da
linguagem no inconsciente, que tipo de sujeito podemos conceder-lhe?”
(LACAN, 1998, p. 814) Trata-se de um sujeito, que – como mostramos no
capítulo 2 – não é causa, mas efeito da cadeia significante. Esse sujeito
que é veiculado de significante em significante, reconhecido apenas no
intervalo entre eles, não tem, então, nada em comum com a consciência,
pois corresponde à inscrição de uma falta.
Essa concepção de um sujeito dependentedo significante, descen-
trado, não idêntico a si mesmo é, segundo Lacan, um princípio teórico
fundamental para que, em psicanálise, se distinga “o inconsciente do
instinto ou do instintivo – do arcaico ou do primevo, numa ilusão de-
nunciada por Claude Lévi-Strauss – ou então do genético de um preten-
so desenvolvimento” (1998 [1964], p.845).
A “ilusão do arcaico” explicita-se no pressuposto evolucionista de
que há uma seqüência temporal que leva do inferior ao superior. Existi-
riam, então, semelhanças e continuidade entre a criança e o adulto, sen-
do que a criança prefiguraria o adulto que a realizaria plenamente. A
criança seria o adulto em embrião, não tendo especificidade alguma, já
que esta só poderia aparecer na forma acabada e completa do adulto.
Contra essa perspectiva, o estruturalismo sai em busca do outro em
sua alteridade radical, em sua diferença qualitativa: com isso, o mundo da
criança será mostrado como completo e coerente em si mesmo, e não mais
como um estágio subdesenvolvido ou imaturo da realidade do adulto.
Para Lacan, todas as tentativas de “encarnar” o sujeito do inconsciente
no “primitivo” ou na “criança” foram sempre fecundas de erros: “Pois
esse homem será então ali o primitivo, o que falseará tudo do princípio
primário, assim como a criança representará o subdesenvolvimento, o
que irá mascarar a verdade do que se passa de original durante a infân-
cia” (1998 [1966b], p. 873).
O TEMPO LÓGICO
A oposição de Lacan aos conceitos de desenvolvimento e evolu-
ção implicaria na negação do tempo? Criticar a perspectiva desenvol-
vimentista conduz à desconsideração das mudanças e transformações
115
subjetivas? Enfim, existe identidade entre o critério desenvolvimentista
e o critério temporal?
Já em “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada” (1945),
Lacan demonstra que certos cálculos lógicos incluem uma inevitável
referência ao tempo. Não se trata, entretanto, do tempo marcado nos
ponteiros do relógio, mas do produto de certas articulações lógicas.
O fato de que o tempo lógico não seja objetivo não significa que ele
se reduza a um simples sentimento subjetivo. Ao contrário, tal como
sugere o adjetivo “lógico”, trata-se de uma perspectiva que se pode for-
mular com rigor, considerando-se três modulações: instante do olhar, tem-
po para compreender, momento de concluir.
Através de um sofisma (o problema dos três presos), Lacan demons-
tra que esses três momentos não são construídos em termos de unidades
cronométricas objetivas, mas sim como uma lógica intersubjetiva basea-
da na tensão entre a hesitação e a urgência, entre aguardar e precipitar.
Trata-se de um outro tempo, no qual a ação de um se ordena pela do
outro: “o tempo intersubjetivo que estrutura a ação humana” (LACAN,
1998 [1953], p. 288).
O fato de que os elementos sejam solidários na estrutura não elimi-
na a contingência ou a variedade do encontro do sujeito com esses ele-
mentos. Sabemos, por exemplo, que há algo de estrutural no encontro
do sujeito com a sexo – será sempre um mal encontro – no entanto, não
podemos deduzir o momento ou a forma como isso se dará; há aí algo
de indeterminado. As mudanças de posição ocorrem, portanto, no en-
quadre do tempo, mas não graças a ele.
Ao se interessar pela lingüística de Saussure, Lacan se apropria da
distinção entre o eixo diacrônico (histórico, temporal) e o eixo sincrônico
(atemporal) da linguagem. O enunciado freudiano de que o inconsciente
não se ordena temporalmente, de que seus processos são atemporais
(ver FREUD, 1980 [1915], p.214), teria levado Lacan a dar ênfase ao eixo
sincrônico, atemporal, em sua abordagem do inconsciente estruturado
como linguagem20 (ver MILLER, 1993, p.9).
Assim, quando ele emprega a palavra “tempo” é preciso entendê-la
mais como um estado relativamente estável do que como um momento
fugaz. Por exemplo, no Seminário 5 (1957-58), ao se referir aos “três tem-
pos do Édipo”, Lacan apresenta ordenamentos que se baseiam em prio-
ridades lógicas e não em seqüências cronológicas.
20 Já no Seminário 11(1964), Lacan caracteriza o inconsciente em termos de uma “pul-
sação temporal” de abertura e fechamento (ver, por exemplo, 1985, p. 136-137).
116
A estrutura de linguagem do inconsciente faz com que o tempo possa
atuar não só em seqüência linear, mas também em sentido inverso por
retroação e antecipação – outra importante inovação de Lacan com relação
à abordagem do tempo.
No grafo do desejo, o eixo horizontal indica o aspecto diacrônico da
linguagem, que se encontra com o outro eixo em um ponto de estrutura:
o ponto de cruz ou “de basta”:
Assim, os termos iniciais de uma frase só adquirem “plena significa-
ção”, retroativamente, quando o último termo é enunciado. Se a retroação
se refere ao modo como o presente (último termo) afeta o passado (ter-
mos iniciais) – como vimos, por exemplo, através da resignificação das
fases pré-genitais pela castração – a antecipação designa o modo como o
futuro afeta o presente: os primeiros termos de uma oração se ordenam
antecipando as palavras que se seguirão. O futuro anterior (“ele terá sido”;
“agora eu era herói”; “a gente agora já não tinha medo”) ilustra gramati-
calmente esse processo “pelo qual o sujeito transforma-se naquilo que
era, como antes...” (LACAN, 1998 [1960b], p. 823). Trata-se de um agora
que não é presente, mas sim futuro; que lança, portanto, o presente, o ser,
ao era, do passado indefinido21. No estádio do espelho, por exemplo, o eu
se constitui na base da antecipação de uma imagem da unidade corporal.
21 A Jerusalinsky realiza uma interessante análise da música João e Maria, de Chico
Buarque e Sivuca, afirmando que o “dizer da infância” conjuga-se no futuro ante-
rior. Ver 1999, p. 43-44.
117
Esse mesmo aspecto também desempenha papel importante no proces-
so do tempo lógico: chega-se ao “momento de concluir” com a pressa,
antecipando uma certeza futura (ver LACAN, 1998 [1945], p. 209)
Desse ponto de basta, encontrem a função diacrônica na frase, na
medida em que só ela fecha sua significação com seu último termo,
sendo cada termo antecipado na construção dos outros e, inver-
samente, selando-lhes o sentido por seu efeito retroativo.
Mas a estrutura sincrônica é mais oculta, e é ela que nos leva à
origem. É a metáfora como aquilo em que se constitui a atribuição
primária, aquela que promulga o “cachorro faz miau, o gato faz
au-au” com que a criança, de um só golpe, desvinculando a coisa
de seu grito, eleva o signo à função do significante e eleva a reali-
dade à sofística da significação, e através do desprezo pela verossi-
milhança, descortina a diversidade das objetivações a serem veri-
ficadas de uma mesma coisa. (LACAN, 1998 [1960b], p. 820)
 UM PRECONCEITO?
Especialista no trabalho clínico com bebês e crianças pequenas, a
psicanalista argentina Elsa Coriat considera que existe um “preconcei-
to” – no sentido proposto pelo epistemólogo francês G. Bachelard (1884-
1962)22 – dos lacanianos com relação à noção de desenvolvimento e às
pesquisas genéticas (ver 1999, p. 11).
Concordando com as críticas ao evolucionismo de muitos pós-freudia-
nos – as crianças iam passando por diferentes estágios em função do desen-
volvimento de uma maturação predeterminada pela biologia, sem qual-
quer consideração pela incidência do Outro – ela discorda da conclusão de
“um certo setor do lacanismo” de que “o sujeito é sempre idêntico a si mes-
mo” como também “as leis que regem sua estrutura tanto no tempo da
infância quanto no da vida adulta”. Coriat parte da seguinte premissa:
a estrutura da linguagem, na qual nasce e morre cada sujeito, é
atemporal; mas não é assim sua instalação em cada sujeito. Ao
longo do tempo, vão se sucedendo implicações do sujeito na es-
trutura que são qualitativamente diferentes.
Tratam-se de tempos lógicos, evidentemente, mas não sei até
que ponto resulta óbvio para todos que é impossível que se des-
dobre um tempo lógico sem um tempo real, quer dizer, sem esse
tempo ao qual nos referimos simbolicamente medindo-o em ter-
mos cronológicos.22 Preconceito é a denominação dada aos conhecimentos usuais, ao que se crê saber.
Coriat retira essa concepção do livro de Bachelard, A formação do espírito científico (1938).
118
Os tempos lógicos são os mesmos para a constituição de qual-
quer sujeito, enquanto que os tempos cronológicos são diferen-
tes; porém, em aspectos centrais, estas diferenças estão situadas
dentro de certa margem temporal. Por exemplo: não é arbitrário
nem casual, não é um deslize de Lacan, que ele situe o estádio do
espelho entre os seis e os 18 meses. (CORIAT, 1997, p. 278)
Para defender sua posição e seu interesse pelas perguntas acerca da
origem, ela recorre a uma citação de “A direção do tratamento...” (1958a),
onde Lacan considera a validade das “pesquisas genéticas e da observa-
ção direta das crianças” (1998, p.618). Comenta:
Aqueles que consideram que as pesquisas genéticas não têm ca-
bimento no campo da Psicanálise, desconhecem a quantidade de
tempo e de páginas que Lacan lhes dedicou, não só em O estádio
do espelho ou no seminário As relações de objeto, mas também na
construção do gráfico de Subversão ou no seminário Os quatro con-
ceitos (para mencionar somente alguns dos textos que nos resul-
tam fundamentais. (ibidem, p. 279)
Partindo dessa perspectiva, Coriat persiste na investigação sobre os
bebês e sobre os “tempos em que são construídos os alicerces do apare-
lho psíquico”, encontrando razões para se perguntar sobre a “gênese do
sujeito” ou da “estrutura”, bem como sobre a “inscrição” ou “instala-
ção” da estrutura em cada sujeito.
Como pensar em termos temporais essa relação entre “a estrutura e
o sujeito”23? Para Lacan, trata-se de uma “submissão do sujeito ao signi-
ficante” (1998 [1960b], p. 821), do “tempo lógico de uma travessia [des-
se] sujeito em sua relação com o significante”. Ele não pensa, portanto,
na “etapa de algum desenvolvimento, aceitável ou não como psíquico
(onde a criança sempre tem as costas largas para lhe aplicarem a inten-
são pedagógica)” (1998 [1963], p. 781).
J-A. Miller afirma que “não devemos permitir que a idéia de apren-
dizado nos cegue diante do fato de que a estrutura da linguagem preexis-
te à entrada do sujeito nessa estrutura, seja qual for o aprendizado, a crian-
ça não modifica essa estrutura, tem que se submeter a ela” (1987, p. 20).
Para Marie-Jean Sauret, é preciso considerar o momento em que o
sujeito se encontra quanto à sua exploração da estrutura, mas que isso
não se dá em termos cronológicos:
23 “A estrutura e o sujeito” é o tema que Lacan desenvolve, na parte I, do texto “Ob-
servação sobre o relatório de Daniel Lagache” (1960). Ver Escritos, p. 653-663.
119
É um fato ainda que a exploração da estrutura leva um tempo
real – aquele que faz crer no desenvolvimento cronológico, quan-
do, na verdade, se trata de um tempo para compreender o que
resulta do instante de ver constituído pelo confronto com o gozo.
Isolemos um único momento de concluir: aquele em que o sujeito
comparece ao encontro fixado pela estrutura com o parceiro se-
xual – encontro que ele pode evitar. (SAURET, 1998, p. 23)
O trecho de “A direção do tratamento...”, retomado por Coriat, in-
seri-se na parte em que Lacan discute a transferência, criticando exata-
mente a apropriação desse conceito pelos teóricos do geneticismo e das
relações de objeto. Segundo ele, a observação da criança só será válida
se ordenada pelo discurso analítico e não por um “recurso ao ser como
um dado do real”, que faz com que “os meios da fala decaíam de sua
eminência verídica” (1998, p. 618). Além disso, em outras passagens dos
Escritos24, Lacan é bastante crítico com a busca de provas empíricas na
psicanálise. Em “A subversão do sujeito”, ao apontar para a desconside-
ração do desejo em uma prática que caiu numa “banalidade educativa”,
ele critica a psicanálise que “nutre-se da observação da criança e do in-
fantilismo das observações” e sugere que “poupemos seus relatóricos,
tantos quantos são, todos tão edificantes” (ver 1998, p. 825-826).
Anibal Leserre desenvolve a partir das oposições, em Lacan, entre
história-desenvolvimento e estrutura-desenvolvimento, o seguinte es-
quema de trabalho para pensar a clínica com crianças (1993, p. 105):
Estrutura Desenvolvimento
(linguagem) (corpo)
(Sincronia – Corte vertical) (Diacronia – Corte horizontal)
Concluiríamos, portanto, que o sujeito aparece como invariante na
estrutura, enquanto a criança varia de acordo com os diversos temas do
desenvolvimento. De fato, a perspectiva estruturalista conduz à impos-
sibilidade de defender que a criança existe no inconsciente, pois é ela
uma denominação cronológica, fruto – como vimos no primeiro capítu-
lo – da produção de diferentes saberes historicamente inscritos. Nesse
sentido, a abordagem de Lacan tem, segundo Miller, a “vocação de dis-
solver a criança”, o que não implica em abandoná-la (ver 1993, p. 9).
Se até a publicação dos Escritos (1966), a criança aparece, principal-
mente, como ocupando o lugar do falo – enquanto significante privilegiado
24 Sobre as referências de Lacan, nos Escritos, ao tema da observação das crianças,
ver o capítulo 5 deste livro.
120
25 O três textos são: “Proposição de 9 de outubro de1967”, “Discurso de encerramento
das Jornadas sobre as psicoses na criança (1967) e “Duas notas sobre a criança” (1969).
do desejo na vertente estrutural da linguagem – em pelo menos três tex-
tos, publicados no final da década de 6025 , essa posição fálica da criança
é reexaminada em função do destaque adquirido pelo objeto a como real
(ver LAURENT, 1995, p. 21-33).
Essa perspectiva da criança como objeto a – objeto que escapa à
estrutura da linguagem, pois não faz série com os significantes – conduz
à necessidade de se pensar a criança no campo do gozo, tarefa que será
preciso avançar.
121
As obras bem escritas são as únicas que
passarão à posteridade. A quantidade de conhecimentos,
a singularidade dos fatos e inclusive a novidade dos
descobrimentos não são garantia segura de
imortalidade. As coisas estão fora do homem,
o estilo é o homem.
 (BUFFON, Discours sur le style, 1753)
Essa pesquisa se inspirou diretamente no trabalho realizado pelo psi-
canalista argentino Anibal Leserre, publicado em Un niño no es un hombre
(1994, p. 199-203). Trata-se de uma lista de referências à palavra “criança”
e às noções ou conceitos conexos presentes nos Escritos (1966) de Lacan.
Elas estão divididas em dois grandes campos: as referências diretas ou
explícitas e as referências indiretas ou implícitas.
No primeiro campo, são indicadas as páginas da edição brasileira
(Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998), onde se encontra a palavra “crian-
ça”, ainda que como alusão ou alegoria. As referências são apresenta-
das seguindo a ordem dos Escritos, pelo título de cada trabalho. Algu-
mas vezes, citamos páginas da edição brasileira, onde a palavra não se
encontra, sendo substituída, por exemplo, por menino, filho etc., em ra-
zão de melhor tradução. Nesses casos, apresentamos o trecho da edi-
ção francesa (Paris: Seuil, 1966), onde aparece a palavra enfant com sua
respectiva página.
No campo das referências indiretas, encontram-se indicações de te-
máticas ligadas à criança de diferentes maneiras. Esses diversos temas
são agrupados com títulos sugestivos que indicam possíveis conexões e
relações com o ensino de Lacan.
Utilizamos, além das edições francesa e brasileira, a 16a edição es-
panhola (Siglo Veintiuno eds., 2 vols).
Referências
A criança nos Escritos (Lacan)
122
Essas referências não pretendem ser exaustivas e o leitor, colocando
algo de si, pode estabelecer outros encontros.
I- REFERÊNCIAS DIRETAS
O seminário sobre “A carta roubada” (1956)
p. 51, 57, 62 (l‘enfant prodige, p. 57), 63 (l‘enfant, p. 58).
De nossos antecedentes (1966)
p. 74.
Para-além do “Princípio de realidade” (1936)
p. 92, 93 (pour l‘enfant, p. 90), 94.
O estádio do espelho como formador da função do eu (je) tal como
nos é revelada na experiência psicanalítica (1949)
p. 96.A agressividade em psicanálise (1948)
p. 105, 107, 108, 114, 115, 116, 117.
Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (1951)
p. 134, 135, 138, 144.
Formulações sobre a causalidade psíquica (1946)
p.181, 182, 183, 188, 189.
Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953)
p. 241 (le conflit de leurs maîtres déchire comme des enfants dans le divorce
de leurs parents, p. 241), 243, 244, 245, 263, 268, 277, 279, 300, 316 (les
bons enfants, p. 315), 320.
Variantes do tratamento-padrão (1955)
p. 326 (nota 2, l´enfant perdu, p. 324), 350 (couple mère-enfant, p. 348).
A coisa freudiana ou o sentido do retorno a Freud (1955)
p. 435 (l´enfant, p. 433).
A psicanálise e seu ensino (1957)
p. 444, 449 (l‘enfant, p. 448), 457.
Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956
p. 480, 487 (les chers enfants, p. 483).
A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957)
p. 496, 523 (de l‘enfant, p. 519).
De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose
(1957-1958)
p. 551, 558, 560, 561, 570 (la place de l´enfant, p. 563), 572, 573 (dessin de
l´enfant, p. 566), 585, 586, 588.
123
A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958)
p. 600, 609, 618, 623, 626 (un enfant sage, p. 619), 634.
Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: psicanálise e estru-
tura da personalidade (1960)
p. 659, 661, 685.
A significação do falo (1958)
p. 692, 700.
À memória de Ernest Jones: sobre sua teoria do simbolismo (1959)
p. 715.
Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina (1962)
p. 739 (l‘enfant à venir, p. 730).
Juventude de Gide (1958)
p. 760 (cet-enfant là, p. 749), 761 (pour aller de la mère à l‘enfant, p. 750),
762 (l‘enfant entendit, p.751), 763, 764 (l‘enfant Gide, p. 752), 765 (l‘enfant
désiré, p.754 ), 767 (l‘enfant disgracié, p. 756).
Kant com Sade (1963)
p. 781.
Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano
(1960)
p. 820, 826, 829.
Do “Trieb” de Freud e do desejo do psicanalista (1964)
p. 866.
A ciência e a verdade (1966)
p. 873, 874, 890.
A metáfora do sujeito (1961)
p. 891.
II– REFERÊNCIAS INDIRETAS
Analogias, comparações
p. 23, 62, 241-242, 245, 326, 426, 480, 487, 554.
Complexo de Édipo (só pode ser parcial)
p. 102, 122, 136, 183-185, 433, 551, 557, 560, 585, 693, 695, 759, 827, 866.
Criança. Outro. Necessidade-demanda-desejo
p. 634, 661-662, 685, 697, 717, 723-724, 826, 828.
Desenvolvimento – Geneticismo
p. 92, 121-122, 138, 142, 144, 188, 263-264, 267, 549, 574, 577, 609-611,
618, 676, 685-686, 700, 712, 715, 723, 734, 737, 740, 781, 818, 845, 873-
876, 890.
124
Desejos infantis – Desejo da criança
p. 432, 572.
Educação – Aprendizagem – Pedagogia
p. 134, 430, 437, 496, 500, 550, 596, 781, 826, 848.
Estádio do espelho
p. 70-71, 73-74, 96-103, 114-116, 143, 182, 185-188, 221, 400, 429, 524,
549, 559, 574-575, 577, 606, 682-683, 685, 718, 731, 823, 832.
Estrutura de parentesco – Infância – História – Grupo familiar- Dívi-
da simbólica
p. 88, 92-93, 107, 115, 134, 220, 260-261, 276, 279, 319, 355 (homem dos
ratos), 434- 436, 448-449, 452, 471, 508, 527, 570, 575, 585, 601-602 (ho-
mem dos ratos), 659- 660, 670, 692, 695, 720, 750, 759-760, 762-764,
826, 873, 875-876, 890-891.
Falo, fase fálica
p. 74, 527, 549, 559, 561, 571-572, 577, 620, 693, 696, 699-700, 710, 717,
723-724, 730, 866, 874, 890.
Identificação
p. 92-94, 108, 115, 118, 134, 142, 189, 279, 620, 624.
Imago
p. 92, 97-99, 107-108, 110, 112, 117, 179, 182-183, 186, 189-190, 192-193,
221, 731.
Infans/ Recém-nascido
p. 97, 117, 138, 143, 220, 429, 446, 500, 845.
Jogo – Fort-Da!
p. 51, 57, 108, 188, 277, 320, 582, 600, 715, 874.
Lugar da criança / Nome-do-Pai
p. 570, 582, 585-586, 730, 738, 827, 866, 888.
Mãe – Criança
p. 350, 558, 572, 577, 584-585, 624, 634, 661, 693, 697, 700, 724, 734, 760,
765-766, 802, 827-828, 892.
Observação da criança
p.114, 138, 182, 524, 609, 618, 658, 826.
Patterns
p. 400, 610
Pequeno Hans
p. 245, 523-524, 573.
Prematuração específica do nascimento. Miséria vital
p. 92, 100, 115, 138, 187-188, 347, 558, 715, 732.
125
Psicanálise-Crianças (prática-técnica-tratamento)
p.105, 230, 243-244, 279-280, 335-336, 355, 426, 434, 436, 444, 471, 487,
586, 600, 622- 623, 698, 826, 829, 866.
Realidade da criança
p. 144, 183-184, 276, 508.
Relação de objeto
p. 560, 617-618, 623.
Sexualidade infantil
p. 94, 245, 523, 551, 585, 738, 890.
Subjetividade da criança (subjetividade do analista)
p. 263-264, 316.
Transitivismo infantil (Charlotte Bühler)
p. 101, 114, 181-182.
Agostinho, sto
p. 117, 182, 470, 501, 855, 879, 888.
Anna Freud
p. 101, 103, 143, 337-338, 422, 610, 730.
August Aichhorn
p. 135, 144.
Donnald Winnicott
p. 618, 652.
Henri Wallon
p. 115, 186
Jean Piaget
p. 658, 874.
Melaine Klein – experiência kleiniana
p. 74-75, 112, 118, 138, 347, 449, 561, 620, 643, 674, 695, 700, 710, 738,
761, 862.
Melitta Schmideberg
p. 137, 398, 605, 607, 652.
A CLÍNICA PSIQUIÁTRICA DA CRIANÇA
Estudo histórico
Paul Bercherie*
Psiquiatra francês, autor dos livros Genèse des concepts freudiens. Paris: Navarin, 1983
e Os fundamentos da clínica. História e estrutura do saber psiquiátrico (1980). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
Artigo publicado originalmente em Ornicar? n. 26-27, Paris: Navarin, 1983, p. 100-
114. A primeira versão em português apareceu nos Fascículos Fhemig, n.7. Belo Hori-
zonte: Fhemig, 1992, p.20-38. Tradução: Oscar Cirino, Revisão::::: Elisa Alvarenga.
128
129
CCCCCreio que não podemos nos desinteressar pela história da psi-
quiatria e, em particular, pela história da clínica psiquiátrica. A psi-
canálise pode obter inúmeros ensinamentos desse longo processo,
tanto para se situar e conhecer suas raízes quanto pelo valor que
para ela pode ter o conhecimento dos fracassos, sucessos, proble-
mas e métodos da clínica. Desde essa perspectiva, o campo particu-
lar da clínica da criança é, no mínimo, tão fecundo, para ser exami-
nado, quanto qualquer outro.
A história da clínica psiquiátrica da criança coloca um certo núme-
ro de questões particulares, das quais a mais simples poderia ser expres-
sa da seguinte maneira: por um lado, trata-se de um campo de observa-
ção quase tão antigo quanto o da psiquiatria do adulto; por outro,
podemos considerar que uma clinica específica da criança, com concei-
tos próprios, só se estabeleceu realmente a partir da década de 1930.
Ora, essa é a época que me parece indicar o rápido declínio, e logo a
extinção, da observação clínica na psiquiatria clássica, a do adulto – re-
meto-os, a esse respeito, à totalidade do meu estudo sobre a história da
clínica psiquiátrica1. A que se pode atribuir, então, esse atraso particular,
essa autonomia histórica da clínica infantil?
Antes de tentar responder a essa questão e aos problemas que
ela recobre, vou propor-lhes uma análise dos trabalhos consagrados,
desde o início do século XIX, ao que só se chamará “psiquiatria in-
fantil” a partir do século XX. A análise desses trabalhos permite
destacar a existência de três grandes períodos na estruturação dessa
clínica da criança.
1 Bercherie refere-se ao seu livro Os fundamentos da clínica, publicado originalmente
em 1980 (NT).
130
O RETARDAMENTO, ÚNICO TRANSTORNO MENTAL INFANTIL
O primeiro período cobre os três primeiros quartos do século XIX.
Ele é exclusivamente consagrado à discussão da noção de retardamento
mental, tal como constituída por Esquirol já antes de 1820, sob o nome de
idiotia. Não se trata, aliás, de uma noção elaborada a partir de uma obser-
vação da criança, mas de um conceito que marca um momento capital da
formação da psiquiatria do adulto. De fato, Pinel havia descrito, em seu
Tratado da Mania, o idiotismo, definindo-o como uma obliteração das fa-
culdades intelectuais e afetivas do conjunto da atividade mental, ficando
o sujeito reduzido a uma existência vegetativa, com alguns resquícios de
manifestações psicológicas: devaneios, sons semi-articulados, crises de agi-
tação. Este estado podia ser adquirido eportanto curável, ou congênito e
irreversível; Pinel o diferencia da demência, abolição do pensamento no
sentido condillaquiano2 do juízo, com as faculdades mentais só se mani-
festando na incoerência e na desordem. Ele o diferenciava também do
delírio geral maníaco e do delírio parcial melancólico.
Esquirol não modifica o espírito dessa nosologia sindrômica, que
descreve estados mentais, quadros de apreensão imediata, cujo conceito
se constrói em torno do traço mais central, mais evidente, das manifes-
tações patológicas. Contudo, ele separa o idiotismo adquirido, curável,
do idiotismo congênito, que, para ele, será a idiotia; o idiotismo adquiri-
do tornar-se-á a forma aguda da demência, antes que Georget lhe conce-
da autonomia como estupidez.
Quanto à idiotia, citemos Esquirol:
[Não se trata] de uma doença, [mas] de um estado no qual as
faculdades intelectuais nunca se manifestam, ou não puderam
desenvolver-se o bastante, para que o idiota pudesse adquirir os
conhecimentos relativos à educação que recebem os indivíduos
de sua idade, situados nas mesmas condições que ele. A idiotia
começa com a vida ou na idade que precede o desenvolvimento
integral das faculdades intelectuais e afetivas; os idiotas são o
que devem ser durante todo o desenrolar de suas vidas; neles
tudo evidencia uma organização imperfeita ou atrasada no seu
desenvolvimento. Não se concebe a possibilidade de modificar
esse estado. Nada poderia dar, mesmo que apenas por alguns
instantes, mais razão ou mais inteligência aos infelizes idiotas.
2 Trata-se das idéias do pensador francês Etienne Condillac (1715-1780), que desenvol-
veu uma filosofia marcada em grande parte pelo empirismo de Locke, criticando o
racionalismo e inatismo da filosofia cartesiana. Sua obra exerceu grande influência
no pensamento francês do século XIX, sobretudo no campo da psicologia (NT).
131
Veremos como este último ponto será objeto de importantes discus-
sões, mais tarde nesse mesmo século, com os educadores de idiotas como
Séguin ou Delasiauve. A opinião pessimista de Esquirol se sustenta em
suas concepções patogênicas: “os órgãos, nos diz ele, nunca foram
suficientemente adequados, para os que são atingidos pela idiotia pu-
dessem raciocinar corretamente”, e a idiotia teria origem nos vícios de
conformação da cabeça ou dos órgãos cerebrais.
Mas o que é preciso sobretudo enfatizar é o passo capital que se dá
na divisão do que vai, ainda algum tempo, permanecer como um gêne-
ro unitário, a Loucura, a alienação mental compreendida como um todo
empírico. Como diz Georget, primeiro grande aluno de Esquirol, na sua
obra de 1820: “não se deveria fazer da idiotia um tipo de delírio; um
defeito original do desenvolvimento não é, propriamente falando, uma
doença... Os idiotas devem ser classificados entre os monstros: eles ver-
dadeiramente o são do ponto de vista intelectual”. Assim, uma divisão
se introduz entre a loucura propriamente dita, a loucura do adulto que
até então apresentava uma aparência normal – adulto no sentido bioló-
gico, mas também psicológico – e uma doença congênita ou adquirida
precocemente na infância, certamente observada de preferência nos ado-
lescentes e nos adultos, na qual se pode reconhecer o primeiro conceito
de uma psiquiatria da criança, o único, em todo caso, que a moderna
psiquiatria da criança conserva dessa época.
Desde Esquirol, a descrição clínica da idiotia é complexa e diversi-
ficada. É ele quem distingue diferentes graus na afecção, entre o idiota
propriamente dito, o retardado profundo, reduzido a uma vida vegeta-
tiva, e o imbecil, que possui uma vida psíquica grosseira e uma lingua-
gem elementar; ele isola uma primeira variedade clínica, o cretinismo
mixodematoso, já descrito por Fodéré em seu tratado de 1791. Por outro
lado, é preciso assinalar que podemos reconhecer sem dificuldades, em
numerosas descrições dessa época, o que aprendemos a distinguir do
retardamento como psicoses infantis. A idiotia de Esquirol é uma descri-
ção objetiva, de estilo behaviorista, e não um conceito etiopatogênico. O
idiota é aquele que não pode adquirir os conhecimentos, que normal-
mente se adquire pela educação; o que o diferencia do demente é que
este “é um rico que ficou pobre, (ao passo que) o idiota sempre esteve no
infortúnio e na miséria”, evidentemente, do ponto de vista intelectual.
Os autores desse período, aliás, não acreditam na existência da lou-
cura propriamente dita na criança. Citam-se alguns casos excepcionais,
mas Griesinger resume bem a concepção mais geral, quando afirma, no
seu Tratado de 1845: “o eu nesta idade não está ainda formado de maneira
132
estável para apresentar uma perversão durável e radical; assim, as di-
versas doenças produzem nas crianças verdadeiras interrupções no de-
senvolvimento, que atingem a inteligência em todas as suas faculda-
des”. A loucura da criança é pois, essencialmente, nesse primeiro período,
a idiotia, com a noção que se agrega a ela dos transtornos epilépticos, já
bem estudados desde esse momento.
O que vai ser, pelo contrário, objeto de discussões importantes, é o
grau de irreversibilidade do retardamento mental. Duas concepções se
opõem a esse respeito: primeiramente a oficial, de Pinel e Esquirol, para
os quais o déficit é global e definitivo e o prognóstico inteiramente nega-
tivo. Em seguida, a dos educadores de idiotas, particularmente Séguin e
Delasiauve: o déficit lhes parece, a maior parte do tempo, parcial (falta
de atenção, de concentração e, especialmente, de vontade), comprome-
tendo o conjunto do desenvolvimento mental, quando a educação se
limita às suas modalidades tradicionais, mas vislumbrando grandes
possibilidades, quando se recorre a métodos especiais. O ponto de parti-
da desses métodos são as tentativas de Itard com a criança, que ele cha-
mou de Victor, e que ficou célebre como o Selvagem de Aveyron.
Capturada em 1799, a criança selvagem é levada a Paris e submeti-
da à perícia por Pinel, que a considera como uma idiota e a designa como
incurável; depois, ela é confiada a Itard, que tenta educá-la, persuadido
de que se trata de uma criança normal, embora privada do conjunto dos
conhecimentos sociais e, em particular, da linguagem, devido a seu iso-
lamento profundo. A tentativa de Itard vai ser um semi-fracasso; poste-
riormente se considerará que a criança era efetivamente uma idiota, o
que, aliás, parece exato, se leva-se em conta a nomenclatura do século.
Para nós, ela apresenta múltiplos traços que a aproximam de uma crian-
ça autista, mas até a década de 1930, a noção global de idiotia recobre
esse tipo de caso. De qualquer forma, se Victor era realmente um idiota,
Itard obteve resultados surpreendentes com seus métodos tomados de
empréstimo à educação das crianças surdas-mudas.
Séguin, seu aluno, retomará e desenvolverá seus métodos, fundan-
do uma tradição muito fecunda, que dá origem à educação especial,
prosseguida na França por Delasiauve, Bourneville e seus alunos. O pró-
prio Séguin funda, nos EUA, todo o sistema de instituições especializa-
das para crianças anormais, e, através de Maria Montessori, inspirará o
que se chama de a nova pedagogia. O problema, colocado pela seleção
das crianças retardadas e sua orientação nas classes especiais, conduzi-
rá, por outro lado, Binet e Simon a inventar seu famoso teste, nos pri-
meiros anos do século XX.
133
A LOUCURA (DO ADULTO) NA CRIANÇA
O segundo período começa, na realidade, na segunda metade do século
XIX, mas só se manifesta no final da década de 1880, com a publicação da
primeira geração de tratados de psiquiatria infantil nas línguas france-
sa, alemã e inglesa; ele cobre ainda o primeiro terço do século XX. Carac-
teriza-se pela constituição de uma clínica psiquiátrica da criança que é,
essencialmente, o decalque da clínica e da nosologia elaboradas no adulto
durante o período correspondente. É a época em que, de fato, se consti-
tui a clínica clássica em psiquiatria do adulto, na direção de uma muta-
ção impressa à abordagem clínica por Falret e seu aluno Morel.A princípio e antes de qualquer coisa, a clínica torna-se diacrônica:
já não se trata mais de descrever estados, mas doenças, estabelecendo-se
um ciclo de quadros clínicos ao longo de uma evolução temporal regra-
da; seu modelo é a paralisia geral com suas fases delirante, maníaca,
demencial e estuporosa terminal. Em seguida, a clínica se quer etiopato-
gênica, isto é, cada grupo de entidades clínico-evolutivas deve poder
apoiar-se sobre uma constelação de causas e de mecanismos patológicos
típicos. Trata-se de uma concepção essencialmente médica e somática
dos transtornos mentais, concebidos como doenças do cérebro.
É nesse quadro conceitual que Morel, inspirando-se em Baillarger,
vai opor as doenças mentais adquiridas – cujas causas patológicas pro-
vêm da rubrica correspondente na medicina do corpo – às doenças men-
tais constitucionais, que se enraízam em um terreno psicológico particu-
lar, uma degenerescência mental hereditária ou adquirida precocemente
na existência. Como exemplo do primeiro grupo, as psicoses alcoólicas,
os transtornos mentais das doenças infecciosas oferecem o paradigma
do que os alemães chamarão psicoses exógenas. O segundo grupo, mais
original e que terá repercussão mais importante na conceitualização clíni-
ca, compreende a maior parte das doenças mentais seguindo o modelo da
idiotia, que constitui, aliás, a quarta e última classe das degenerescências
psíquicas de Morel. A analogia fundamenta-se no fundo “constitucio-
nal” dos transtornos em questão: sempre se soube que os transtornos
caracteriais do doente, com seus sonoros acidentes mentais, se enraízam
claramente aí; pode-se, pois, também compreender essa tara como de-
feito ou insuficiência do desenvolvimento de certas faculdades mentais.
Origina-se assim o termo e a noção de desequilíbrio, e o conceito mais
moderno de desarmonia evolutiva poderia dele se aproximar; trata-se,
portanto, de uma extensão da noção de retardamento, aplicada a partes
e não à globalidade do psiquismo, como aliás, Séguin ou Delasiauve
haviam começado a fazer.
134
Os conceitos originários de Morel vão, em todo caso, dirigir a atenção
para a infância dos alienados e, igualmente, para a existência, na criança, de
uma patologia mental. Os primeiros trabalhos foram publicados pouco
depois: citemos, em especial, o célebre capítulo do grande Tratado de
Maudsley em 1867. No final do século, aparecem os tratados franceses
de Moreau de Tours filho (1888) e de Manheimer (1899), o tratado ale-
mão de Emminghaus (1887); o tratado inglês de Ireland (1898) perma-
nece ainda, quase exclusivamente, limitado à idiotia; o autor dedica ape-
nas um capítulo à loucura na criança, que ele considera “sempre
acompanhada, ou mascarada, pela idiotia”. Mas o que caracteriza todos
esses trabalhos é que eles sempre buscam encontrar na criança, ao lado
do retardamento, as síndromes mentais descritas no adulto, que variam,
aliás, de acordo com as referências nosológicas dos autores: excitação e
mania, depressão e melancolia, obsessões e fobias, alucinações e delírio,
loucura moral, isto é, perversão, e também neurose no sentido antigo do
termo: histeria, epilepsia, coréia, tiques. No plano patogênico, esses trans-
tornos são compreendidos, seja como manifestações de tipo tóxico-in-
feccioso, seja como a marca de um desequilíbrio degenerativo, que ex-
plica a grande maioria deles e que justifica a eclosão de transtornos
mentais importantes por causas morais, isto é, psicológicas, aparente-
mente de pequeno alcance. Também é a época em que, ao lado dos esta-
dos tóxicos, aparece uma rúbrica etiológica especial, o esgotamento, ao
qual se vinculam a fadiga escolar e o onanismo, temas de inúmeros es-
tudos sobre a patologia mental do adolescente.
Mas, de qualquer maneira, em um primeiro tempo, a psiquiatria
infantil – deixando de lado o retardamento mental – é antes um objeto
de curiosidade e um campo complementar da clínica e da teoria psiquiá-
tricas do adulto, do que um verdadeiro campo autônomo de investiga-
ção. É só na virada do novo século, com a importação de conceitos origi-
nários da nosologia kraepeliniana, que a pedo-psiquiatria vai poder
dispor de noções com um valor heurístico seguro, no plano da investi-
gação clínica. A segunda geração dos tratados de psiquiatria infantil, pu-
blicados entre os anos 1910 e 1925, é o resultado disso: citemos em alemão
Strohmayer (1910) e Homburger (1926), em italiano Sante de Sanctis (1925);
a língua francesa não é, observemos, muito representativa nos trabalhos
dessa época, enquanto que no campo do retardamento mental, ao con-
trário, os trabalhos são numerosos em torno de Bourneville e do teste de
Binet e Simon.
O que os trabalhos dessa época retomam de Kraepelin, antes de
tudo, são as modalidades gerais de sua nosologia: por exemplo, a noção
135
de personalidades psicopáticas, em seu sentido amplo, alemão, que re-
cobre o conjunto dos transtornos constitucionais e reativos (grosso modo,
para nós, as neuroses, as psicopatias, no sentido moderno restrito e a
paranóia); é também a concepção das grandes afecções endógenas: epi-
lepsia, psicose maníaco-depressiva e demência precoce. É, precisamen-
te, esse último conceito que vai exercer uma influência notável sobre a
pedo-psiquiatria.
De fato, no campo de retardamento, aparece a idéia de distinguir das
formas congênitas da concepção clássica, certas formas adquiridas nos
primeiros anos, isto é, verdadeiras demências infantis, das quais Esquirol,
aliás, já suspeitava da existência. Entre essas novas rubricas etiológicas do
retardamento, progressivamente vai destacar-se uma entidade particular,
que coloca um importante problema conceitual: o que Sante de Sanctis
denomina, desde 1906, como “demência precocíssima”, da qual Heller,
no mesmo ano, faz uma descrição autônoma. Trata-se do aparecimento, a
partir dos 3-4 anos, em crianças que, até então, haviam tido um desenvol-
vimento normal, de um estado de morosidade e indiferença, com negati-
vismo, oposição, transtornos afetivos (cólera, ansiedade), seguidos de uma
desagregação da linguagem e de diversos transtornos motores bastante
característicos: agitação, estereotipias, maneirismo, catatonia, impulsões.
O parentesco de tal quadro com a hebefreno-catatonia parece evidente e
Heller suspeita da existência de episódios alucinatórios e delirantes. A
criança cai em seguida, bastante rapidamente, em uma completa “idio-
tia”, não mais se alimenta de maneira autônoma, torna-se incontinente,
perde o uso da linguagem. No entanto, Heller destaca a persistência de
uma certa capacidade de atenção e de focalização e, sobretudo, a con-
servação de uma fisionomia inteligente, que diferencia nitidamente es-
sas crianças dos verdadeiros retardados.
O que era ainda apenas um problema etiológico, aliás debatido com
insistência, vai tornar-se um problema clinico capital, depois da publica-
ção, em 1911, da obra fundamental de Bleuler sobre a esquizofrenia. Bleuler,
com efeito, suspende a hipoteca demencial que pesava sobre a compreen-
são da síndrome esquizofrênica, ainda que diferenciada das demências
orgânicas, desde suas origens kraepelinianas. O primeiro autor que ha-
via falado de esquizofrenia infantil parece ter sido Homburger, em seu
tratado de 1926, já citado, e não o americano Potter, habitualmente credi-
tado da paternidade dessa expressão, e que só a empregará oito anos mais
tarde. Em todo caso, a idéia da existência de psicoses autísticas e disso-
ciativas na criança – distintas tanto do retardamento mental como das
diversas manifestações de tipo caracterial e constitucional – começa a se
136
impor e a chamar a atenção de um número crescente de observadores. É
desse período que nos chega a noção moderna de psicose infantil e os
problemas a ela relacionados. Notemos, aliás, que a existência de formas
mistas, nas quais a esquizofrenia aparece sobre um terreno de oligofrenia,
já tinha sido evocada por muitos autores, sob o modelo da hebefrenia
“transplantada” do adolescente, descrito por Kraepellin.
 NASCIMENTO DE UMA CLÍNICAPEDO-PSIQUIÁTRICA
O terceiro período começa na década de 1930 e continua desenvol-
vendo-se atualmente. Ele coloca imediatamente um problema difícil,
porque não é evidente que se trate, ainda, de uma clínica psiquiátrica da
criança. Não é a toa, aliás, que esse período começa no momento em que
desaparece a pesquisa clinica na psiquiatria do adulto e que a investiga-
ção psicopatológica é, com certeza, adotada pela psicanálise. De fato, o
que caracteriza esse novo período é a influência dominante que as idéias
psicanalíticas exercem sobre a clínica infantil, idéias que vão, a partir de
então, estruturar em grande parte seu percurso. A descoberta de que
toda manifestação psicopatológica é o resultado de um conflito psíquico
e que esse conflito, em sua expressão atual no adulto, repete a história
infantil do sujeito, adquire no quadro da clínica infantil uma ressonân-
cia muito própria, pois é de uma situação conflitiva atual, ou pelo me-
nos recente, que dependem, então, as perturbações psicológicas.
Por outro lado, várias manifestações patológicas, até ai dispersas
aos quatro cantos na clínica pediátrica, podem, a partir de então, serem
pensadas com o modelo da histeria, como formas de conversão ou de
expressão substitutiva das dificuldades que a criança encontra na sua
vida interior e em suas relações com o meio. O modelo psicossomático
floresce de maneira rápida e esclarecedora na psiquiatria infantil, como
em nenhuma outra parte. Essa nova etapa caracteriza-se, aliás, pela co-
laboração com os pediatras, bem ilustrada pelo termo pedo-psiquiatria.
Surge, assim, uma clínica nova, muito rica. Ao lado da retomada de
certas categorias do período precedente (neuroses e psicoses da crian-
ça), e mesmo da reinterpretação da herança da primeira etapa (manifes-
tações caracteriais e psicóticas dos verdadeiros retardados), um imenso
campo se destaca:
– doenças psicossomáticas propriamente ditas,
– transtornos do comportamento e manifestações afetivas patológicas,
– perturbação do desenvolvimento das funções elementares: motri-
cidade, sono, funções esfincterianas, fala etc.
137
Muitas dessas aquisições da clínica psiquiátrica da criança recor-
tam noções anteriores menos fecundas, como os chamados transtornos
constitucionais da etapa precedente: falar de constituição perversa na
criança, a propósito do roubo, não é a mesma coisa que perceber a crian-
ça ladra como manifestando um tipo de comportamento que tem um
valor expressivo e simbólico particular, ao lado da mentira ou da fuga,
mas também da anorexia, da enurese ou da gagueira. É preciso notar,
aliás, que, para os transtornos de expressão somática, as novas aquisi-
ções se fazem, freqüentemente, em favor de um contra-senso histórico
que ganha seu valor de interpretação retroativa. A medicina do século
XIX descrevia muitas neuroses de órgãos, isto é, perturbações somáticas
funcionais de um órgão ou de uma função, sobre a base de uma disfun-
ção do sistema nervoso local: trata-se, aparentemente, de uma concep-
ção puramente somática. Meio século mais tarde, a palavra neurose –
tendo conhecido, através da obra freudiana, uma mutação capital – pas-
sa a significar: transtorno psicogênico. Tudo o que anteriormente era
chamado neurose torna-se, então, suspeito de psicogenia para aqueles
que perderam o sentido original do termo. Assim foi para a asma, os
tiques etc.; às vezes, o contra-senso torna-se evidente e desorienta a in-
vestigação, como no caso da epilepsia.
A integração das noções psicanalíticas vai acontecer de duas ma-
neiras: por justaposição, na Europa, onde os grandes tratados dos anos
30 – os de Pichon (1936) e de Robin (1939) na França, o de Tramer na
Alemanha – são, a esse respeito, bem característicos. Mas é essencial-
mente em língua inglesa que uma concepção de conjunto vai se destacar
e fazer da clínica psiquiátrica da criança um todo relativamente homo-
gêneo: o tratado de Kanner, cuja primeira edição é de 1935, e que conti-
nua sendo a principal obra de referência nesse campo, é o testemunho
disso. O que vai permitir tal integração são as concepções psicológicas
dominantes nos EUA. Desde o início do século, no conjunto do campo
psicológico, incluindo a psicopatologia, foram as concepções funciona-
listas que permitiram uma penetração tão fácil e rápida, ou melhor, uma
incorporação tão confortável das teses psicanalíticas.
O funcionalismo americano é mais um pensamento do que um corpo
doutrinário, uma abordagem intimamente inscrita na vida americana,
como notaram todos aqueles que fizeram seu estudo histórico; a prova
disso é sua facilidade em assimilar todo sistema de idéias de origem dife-
rente, da psicanálise à teoria da gestalt, passando pelo pavlovismo; isso
também é comprovado por sua força de contágio sobre os imigrantes,
mesmo os já formados. Adolf Meyer, cuja formação é a de um psiquiatra
138
suíço, aluno como Bleuler de Forel, funda a escola psiquiátrica america-
na e lhe insufla o espírito funcionalista, adquirido nos EUA em contato
com William James e Dewey. O que caracteriza o funcionalismo, em sua
oposição ao elementismo dominante na psicologia européia do século
XIX – que permaneceu fundamentalmente associacionista – é a idéia de
que o organismo é um todo espírito-corpo, e que esse todo está engajado
numa tarefa permanente e vital de adaptação ao meio ambiente. Nesse
quadro, o psiquismo é uma função, função útil de mediação entre o meio
ambiente e as necessidades do organismo; é preciso então se dedicar
não ao estudo de elementos separados do conjunto e que perdem assim
seu sentido (representações, afetos, atos voluntários, percepções etc.),
mas determinar a função de tal ou qual atividade psicológica. É do funcio-
nalismo que se originou o behaviorismo, que é apenas uma espécie de
psicologia aplicada.
É com esse mesmo espírito que Meyer engaja-se em uma polêmica
com as concepções organicistas de Kraepelin e os diagnósticos destrui-
dores que a elas estavam ligados. Parecia-lhe que a doença mental devia
ser compreendida, não como o aspecto mental de uma lesão cerebral,
mas como uma conduta que tem uma função e um sentido em relação à
história do doente, à sua trajetória passada, à sua situação presente, às
suas capacidades psicológicas, estado somático e cerebral incluídos. Aliás,
é como pragmático, antes de tudo preocupado com a terapêutica, que
ele abordava esses problemas. Entendemos que Meyer esteja entre os
ouvintes de Freud, durante suas conferências americanas de 1909, e que
seja um dos membros fundadores da Associação Americana de Psicaná-
lise, apesar da ambigüidade de seu suporte crítico. É ele também que
permite a Kanner abrir, sob sua égide, o primeiro serviço de psiquiatria
infantil e que prefaciará a primeira edição de seu tratado. Compreende-
mos, agora, de onde vêm os conceitos que estruturam o campo recen-
temente conquistado da clínica pedo-psiquiátrica: a noção de patologia
das grandes funções, com sua expressão nos transtornos do comporta-
mento. Em um plano secundário, os conceitos explicativos representam,
por um lado, o papel dos conflitos emocionais no desenvolvimento, e
por outro, os fatores constitucionais e o impacto dos transtornos da per-
sonalidade “que emanam das doenças físicas”, como diz Kanner.
O pano de fundo sobre o qual se delineia esta psicopatologia é,
aliás, constituído pelos trabalhos de Gesell, de inspiração funcionalista
e behaviorista, sobre o desenvolvimento psicológico da criança. A imen-
sa massa de material de observação, que Gesell reúne através de pesqui-
sa sistemática, permite aos clínicos dispor de uma escala comparativa fle-
xível, mas precisa, no exame das crianças. A descrição feita por Kanner,
139
em 1943, da síndrome autística precoce – que, a partir de então, recebe o
seu nome – é um exemplo do valor heurístico de tal procedimento: é a
partir dos preciosos dados de Gesell que ele pôde sublinhar a notável
precocidade da perda relacional neste tipo de casos, diferenciando-os
das esquizofrenias infantis mais tardias. Isso explicaria também aau-
sência de adaptação postural dessas crianças quando são tomadas nos
braços, colocadas na cama, enfim, apalpadas pelo adulto.
Desde essa época, a progressão da clínica psicopatológica da crian-
ça efetuou-se essencialmente através dos estudos dos psicanalistas e
podemos dizer que ela é, cada vez menos, separável dos esforços psi-
coterápicos a ela consagrados. Isso é o que dá conta da estruturação
muito particular da clínica pedo-psiquiátrica: enquanto que a clínica
psiquiátrica do adulto é originalmente pré-psicanalítica e permanece
profundamente marcada pelo espírito médico que a constituiu, a clínica
da criança, notemos, só pôde construir-se sobre bases bem diferentes.
Somente assim ela pôde integrar os caracteres particulares da patolo-
gia que constitui seu campo: sua estreita ligação com o desenvolvi-
mento psicológico da criança, de um lado, sua labilidade, de outro,
isto é, a grande mutabilidade que conserva a criança na sua estrutura
mental. A segunda característica está ligada à primeira e explica o fra-
casso dos métodos clássicos na clínica infantil: aí é impossível definir
trajetórias típicas, estruturas fixas, cuja evolução estaria já inscrita nos
dados de início, com exceção, talvez, para a patologia mais grave, a
primeira a ser bem descrita. Esse quadro conceitual clássico, de inspi-
ração médica, não deixa, aliás, de colocar problemas no que diz respeito
ao adulto. Isso já foi desenvolvido por mim em outro trabalho.3
QUADRO TEÓRICO E METODOLOGIA CLÍNICA
Se lançamos, agora, um olhar de conjunto sobre esse longo processo
histórico e sobre os três períodos bem diferentes que recobre, logo se
destaca algo que não está claramente inscrito na idéia de uma clínica: a
importância das concepções, das teorias psicológicas (no sentido am-
plo) nas quais se inscreve a clínica psiquiátrica da criança no decorrer de
seu desenvolvimento. O que determina as questões, procedimentos e
observações dos clínicos, é o olhar que eles lançam sobre a infância, a
concepção que têm de seu desenvolvimento e de seu papel na formação
do adulto. Durante os dois primeiros períodos, a criança é essencial-
mente concebida como um adulto “em potência”, no sentido aristotélico:
3 Bercherie novamente refere-se ao livro Os fundamentos da clínica (NT).
140
o adulto não é somente o fim de seu desenvolvimento, mas também seu
único conteúdo e seu sentido último. A psicologia da criança só começa
realmente a existir como campo autônomo no final do século XIX, com
os trabalhos pioneiros de Taine e de Darwin, e depois com as obras de
Perez, de Preyer e de Sully. Antes dessa época, é nas doutrinas pedagó-
gicas que é preciso procurar as concepções clássicas sobre a infância. A
esse respeito, o final do século XVIII vê retirar-se a hipoteca cristã da
natureza tendencialmente má do homem, que seria a verdade da criança
antes de qualquer adestramento educativo. Perdendo seu dinamismo, de
forma generalizada, essa concepção pedagógica dá lugar às teses origi-
nárias do humanismo, marcadas pela crença na natureza fundamental-
mente boa e infinitamente aperfeiçoável do homem. No entanto, uma
certa tensão reina entre os herdeiros de Rabelais – que reúnem empiris-
tas e teóricos do progresso – e os de Montaigne, onde encontramos os
filósofos aprioristas ou partidários do inatismo:
– os primeiros confiam sempre no conhecimento, nas “humanida-
des”, para transmitir à criança a civilização que dela fará um ho-
mem, um homem sempre melhor. Assim Comenius fala de “fá-
bricas de humanidade”, a propósito das escolas;
– os segundos, dos quais Rousseau é a figura de proa, esperam mais
da experiência, com a qual a criança vai se confrontar, o floresci-
mento natural de que é susceptível. O educador dirige habilmen-
te dos bastidores esse encontro com a vida.
Mas por trás dessa oposição superficial, as duas teses têm em co-
mum a idéia de que um homem se faz. Como diz Herbart, “o educador é
diante da criança o representante do homem que ela será mais tarde”; é
ele que deve fazer com que “o homem se torne verdadeiramente ho-
mem” (Comenius). Seu otimismo, sua fé na perfectibilidade humana
está, de fato, a serviço de seu adultomorfismo, bem perceptível no estilo
decididamente cognitivo, que tem a ver com a teoria do desenvolvimen-
to. De fato, o homem está aí já presente desde a infância nas “faculdades
mentais” que vão lhe permitir tornar-se o que ele estava destinado a ser.
Para isso, ele só necessita de uma certa dose de informação, para falar em
uma linguagem moderna, seja essa informação pensada em termos de
saber ou em termos de experiência.
É esta a idéia que, enfim, autoriza tanto o otimismo de Itard como o
pessimismo de Pinel, pois esse último pensa que, justamente, as facul-
dades mentais foram atingidas em Victor, tornando-se incapazes de uti-
lizar a experiência para fazer da criança selvagem um homem civiliza-
do. Suas concepções são iguais: apenas um problema de diagnóstico os
141
separa, e Pinel, melhor informado, estabelece-o corretamente. Quando
Séguin defende a educabilidade dos idiotas, pensa que é menos o intelec-
to que está afetado neles – isto é a faculdade de perceber e de conceber –
do que a vontade, e que, portanto, se o educador pode substituir seu pró-
prio querer (ele mesmo, aliás, não deixa de fazê-lo), obterá grandes
progressos do idiota, com a condição de dar-lhe mastigado, de alguma
maneira, o trabalho.
Na medida em que o século XIX vai chegando ao fim, o desenvolvi-
mento psicológico da criança é concebido de maneira cada vez mais psi-
cofisiológica: é da integridade de seus órgãos cerebrais que depende o
surgimento de suas faculdades mentais, sempre pensadas em termos
sensório-motores e reflexológicos. Isso é o que vai justificar a primeira
clínica psiquiátrica da criança: o cérebro da criança é susceptível de da-
nos homólogos aos do adulto e, portanto, de manifestações “somato-
psíquicas” da mesma ordem.
Ao contrário, o que vai permitir a formação da clínica pedopsiquiá-
trica moderna é a constituição de uma verdadeira psicologia da criança
e de seu desenvolvimento. Não somente a infância tem sua ordem pró-
pria de existência e de racionalidade, mas é sobretudo ela que esclarece,
a partir de então, o devir do adulto. Fundada sobre uma ampla base em-
pírica, mas também sobre uma conceitualização elaborada, oriunda da
psicanálise, essa nova orientação psicológica serve de pano de fundo à
pesquisa clínica em psiquiatria infantil, há mais de meio século. Evoca-
mos, há pouco, o papel dos trabalhos de Gesell na descoberta de Kanner.
Para permanecer nesse campo tão rico das psicoses infantis, a estreita re-
lação da clínica com a psicologia do desenvolvimento, como também com
a psicoterapia, é evidente em Margaret Mahler e em Frances Tustin, assim
como em Winnicott ou Françoise Dolto. Isso é o que me faz dizer que não
se trata mais ai, propriamente falando, de clínica psiquiátrica, isto é, de
clínica pura, disciplina inteiramente fundada sobre a observação e a des-
crição dos estados patológicos, tal como ela pôde funcionar ao longo
dos cento e trinta anos da história da psiquiatria clássica, a do adulto.
Como dar conta, então, dessa disparidade entre a constituição da
clínica psicopatológica do adulto e a da criança? É aqui que o desen-
volvimento histórico da clínica infantil vai nos permitir esclarecer uma
condição secreta, de algum modo oculta, de toda clínica, porque ela vem
nos interrogar, no que diz respeito ao adulto, sobre o pano de fundo psico-
lógico que também poderia guiar o clínico. A resposta é evidente, e ela foi
claramente formulada pelo único grande epistemólogo que conheceu a clí-
nica psiquiátrica, Karl Jaspers; é mesmo este problema que o guia ao longo
142
de todo seu grande tratado, monumento da clínica alemã em sua última
fase. O que Jaspers enfatiza é que, em psicopatologia, todo o procedimento
do clínico é guiado pelo que ele chama de “relações de compreensão”, ou
seja, pelo esforço de representar o vivido do doente em seus estados sincrô-
nicos (compreensão estáticareproduziu integralmente apenas as partes I
(O sentimento da infância) e III (A família), eliminando capítulos da parte II (A
vida escolástica) e suprimindo totalmente a parte IV (Do externato ao internato).
L´Ancien Régime, do título original, refere-se à denominação dada à monarquia de
direito divino, principalmente da França dos séculos XVII e XVIII.
21
parâmetros ideológicos. Nessa obra, em que analisa diferentes objetos,
como pinturas, diários, testamentos, tapeçarias, esculturas funerárias e
vitrais produzidos na Europa, principalmente no período anterior aos
ideais da Revolução Francesa, Ariès utiliza a expressão “sentimento da
infância” para designar “a consciência da particularidade infantil, essa
particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto” (ARIÈS,
1981, p. 156). Inicia-se assim o processo de “sacralização da infância”,
período miticamente feliz – livre de obrigações e responsabilidades –
que fez das crianças objeto de contemplação e agrado, herdeiras dos
anseios e da insatisfação dos adultos.
Esse “sentimento”, que começa a surgir a partir do século XVI, não
se confunde com a afeição que se podia ter pelas crianças em geral ou
por alguma criança em especial. Se ele não existia anteriormente, isso
não quer dizer que as crianças fossem desprezadas ou negligenciadas,
mas, sim, que não se tinha consciência de uma série de características
intelectuais, comportamentais e emocionais que passaram, então, a ser
consideradas como inerentes, naturais às crianças.
Na Idade Média, com suas sociedades agrárias, não se concedia lu-
gar particular à criança. A infância era um período de transição rapida-
mente superado e sem importância. Sua duração reduzia-se à fase mais
frágil da criança, que, quando adquiria algum desembaraço físico, torna-
va-se uma espécie de companhia natural dos adultos, partilhando seus
trabalhos, jogos e festas. Sua socialização não era assegurada nem con-
trolada pela família – constituída, nessa época, por consangüinidade
extensa –, pois logo afastava-se dos pais, indo aprender as coisas que de-
via saber, ajudando outros adultos a fazê-las. Seus trajes não as diferen-
ciavam, nem os seus divertimentos. Por isso, se a arte medieval não repre-
sentava a criança com expressão particular, limitando-se a reproduzir um
adulto em miniatura (algo semelhante a um anão), não era por incompe-
tência ou falta de habilidade dos artistas, mas, sim, porque, nesse momen-
to, a infância era insignificante.
Sabemos que no sistema feudal quase não havia mobilidade social,
uma vez que o destino de cada homem estava praticamente traçado a
partir de sua posição na hierarquia (vassalo ou senhor). Assim, cada
criança vinda ao mundo ocupava lugar definido numa rede social bem
articulada e estabelecida pela tradição. Com a ascensão do capitalismo e
dos ideais da burguesia, os valores individuais adquirem importância:
espera-se que qualquer um possa construir seu lugar e destino. O indi-
víduo, com sua liberdade, direitos e deveres, passa a ocupar o centro da
cena, despertando interesse por tudo o que se relaciona com ele: sua
22
saúde, capacidade de trabalho, sua moral, seu desenvolvimento e, con-
seqüentemente, sua infância – invenção do individualismo moderno.
Ao abandonar a antiga divisão social entre o clero, a nobreza e o
terceiro estado, a Revolução Francesa vai encontrar na ciência a defini-
ção do novo cidadão: ”a discriminação do cidadão livre, maior, respon-
sável, crê encontrar uma base sólida na oposição entre adulto e criança.
A partir disso, a criança é oferecida pés e mãos atados aos especialistas
da ciência e da educação “ (SAURET, 1998, p. 13).
 A emergência do “sentimento da infância” – contemporânea à afir-
mação da família como um núcleo restrito de pais e filhos unidos por
sentimentos íntimos – é o que possibilita, portanto, que a criança passe a
ser pensada como o “homem de amanhã”, sendo destacada e recortada
como objeto de teorização e de práticas educacionais, higiênicas e cien-
tíficas. É essa perspectiva que possibilitará o desenvolvimento, em mo-
mentos diferentes, da pedagogia, da pediatria, da puericultura, da psi-
cologia do desenvolvimento, e de uma série de “especialistas”, que
legitimados por uma posição de autoridade pelo saber científico, fala-
rão e, de fato, construirão a infância.
Uma infância que requer “especialistas” não é, certamente, uma
infância qualquer, mas, sim, uma que supostamente necessita de
um séquito de “conhecedores” para lhe revelar sua “verdade”.
Assim, a noção de infância na modernidade se articula dentro de
uma política de verdades, amparada pela autoridade do saber de
seus porta-vozes. (CASTRO, 1999, p. 24)
A proposta educativa – que faz com que a escola ganhe a importân-
cia de continuação do lar – visa a produzir “adultos convenientes” aos
ideais da sociedade que eles constituem. “O projeto é claro: trata-se de
harmonizar a criança para preparar o adulto, a fim de moldá-lo aos ideais
da burguesia em ascensão”. Assim, para o psicanalista Guy Clastres, “a
promoção do significante ‘educação’ faz aparecer o [significante] da crian-
ça”, atrelando, portanto, a criança à normatividade e à moralidade (ver
CLASTRES, 1991, p. 137-138).
Nesse sentido, será interessante nos determos em dois pensadores
que marcaram profundamente a concepção de criança e de educação
na civilização ocidental: Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau2.
2 Uma importante referência sobre “possível encontro” entre a filosofia e a infância
encontra-se no livro Filosofia e Infância, organizado por Walter Kohan e David Ken-
nedy. A preocupação sistemática – e não referências esporádicas ou aforísticas –
dos filósofos com a infância é, segundo os autores, bem recente.
23
Apesar das marcantes diferenças de suas idéias, gestadas em contextos
históricos distintos, podemos aproximá-los em pelo menos dois pontos:
1) ambos produziram suas teorias de modo intimamente ligado às suas
experiências de vida; 2) cada um, à sua maneira, buscou uma comu-
nhão, uma relação perfeita, sem falta, ou com Deus ou com a Natureza.
UMA ÉPOCA DESPREZÍVEL MARCADA
PELA MALDADE: SANTO AGOSTINHO
Santo Agostinho (354-430) marca o apogeu do pensamento patrísti-
co, que é, de forma genérica, a filosofia cristã dos primeiros séculos. Em-
bora essencialmente baseado em verdades de fé (verdades reveladas), o
Cristianismo teve a necessidade de justificar-se diante da razão humana,
mostrando, desde o início, sua credibilidade e coerência internas.
A patrística traduz a busca da síntese entre a religião cristã e a filoso-
fia grega clássica – a qual ela combate por seu paganismo, mas da qual
necessita dos recursos conceituais. Agostinho realiza esse trabalho com
afinco, no momento em que o Cristianismo se consolida como religião de
importância social e política, e a Igreja se afirma como instituição.
Nos anos 397/398, Santo Agostinho, com cerca de 45 anos, relata,
no livro I de suas Confissões – memórias que são um diálogo consigo
mesmo diante de Deus – detalhes sobre sua infância.
Apesar de não se lembrar do período da amamentação e dos pri-
meiros sorrisos, ele reconhece que já nessa época trazia consigo a marca
do pecado original: a alma das crianças não é inocente. Essa idéia é com-
provada por suas observações:
Vi e observei [uma criança] cheia de inveja, que ainda não falava e já
olhava pálida, de rosto colérico, para [seu irmãozinho]. Quem não é
testemunha do que afirmo? Diz-se até que as mães e as amas procu-
ram esconjurar este defeito, não sei com que práticas supersticiosas.
Mas, enfim, será inocente a criança quando não tolera junto de si, na
mesma fonte fecunda do leite, o companheiro destituído de auxílio
e só com esse alimento para sustentar a vida? Indulgentemente se
permitem estas más inclinações, não porque sejam ninharias sem
importância, mas porque hão de desaparecer com o andar dos anos.
(AGOSTINHO, 1984, p. 14-15)
Lacan considera que “Agostinho antecipou-se à psicanálise”, ao
detectar, na relação entre a criança e seu irmão de leite, uma “agressi-ou fenomenológica) e em seu desenvolvimen-
to, ou melhor, em seu engendramento diacrônico (compreensão genética).
É sobre essa base, partilhada finalmente por todos os autores da época, que
Jaspers operará a distinção entre a patologia constitucional compreensível
e a patologia não compreensível, que corresponde aos casos de etiologia
orgânica e às grandes psicoses ditas “endógenas”.
Mas o que sobretudo nos interessa é o que ele assim desvela do
procedimento clínico e de suas bases: um fator subjetivo guia, de fato,
essa atitude que se pretende objetiva. Esse fator está, aliás, presente na
própria delimitação do campo a observar, uma vez que a distinção do
normal e do patológico é originária e prévia à investigação clínica. Mas
ele, em seguida, continua a estruturar o procedimento de diferenciação
e de classificação: o observador utiliza ai, sem cessar, o que poderíamos
chamar esquematicamente sua intuição psicológica, seu conhecimento
espontâneo, pessoal, dos fenômenos mentais, e é só isso que lhe permite
compreender e classificar o que o doente diz, experimenta e diz experi-
mentar; é só isso que lhe permite também não compreender, para seguir
Jaspers, e fazer dessa não-compreensão um índice epistemologicamente
pertinente. É a síndrome de influência, o automatismo mental, que ser-
ve a Jaspers de modelo do não-compreensível; é, aliás, essa mesma con-
cepção que guia Clérambault, quando ele opõe as psicoses com base no
automatismo às psicoses passionais, simples desvios de um processo
normal, isto é, banal.
Se nos voltamos agora para a criança, tudo se esclarece: o que impe-
dia que a clínica psicopatológica da criança se constituísse – antes que
uma psicologia, digamos suficiente, da criança aparecesse – era a ausên-
cia de toda compreensão do observador adulto, de toda medida comum4
entre o adulto e a criança. O que é normal, e o que é patológico? A essa
questão fundamental, só podíamos responder em casos extremos. E
como recortar e classificar o que é patológico, quando não se tem qual-
quer idéia do que se recorta e de como tomá-lo? A partir dessa pers-
pectiva, a clínica psiquiátrica da criança se encontra em uma posição
vizinha da psiquiatria animal, na medida em que a linguagem, ainda
quando presente, é freqüentemente inoperante para transmitir as
4 Em francês: commune mesure (NT)
143
vivências subjetivas, e que, de qualquer maneira, o observador tem gran-
de dificuldade em se representar, sem uma formação prévia, os estados
de consciência da criança; no melhor dos casos, esses últimos permane-
cem mais como construções do que como apreensões diretas. Além do
mais, como vimos, a maior parte da clínica psicopatológica da criança se
apresenta sob a máscara dos transtornos somáticos ou funcionais.
Tudo isso explica o recurso a categorias importadas sem crítica da
clínica do adulto. Ao contrário, a clínica moderna da criança, tal como se
estruturou há meio século sobre bases autônomas, oferece atualmente à
psicopatologia um modelo de abordagem e de conceitualização bem
separados dos paradigmas médicos – que continuam marcando a clíni-
ca do adulto – e fortemente impregnados dos métodos psicanalíticos.
Não há nada surpreendente no fato de que ela desempenhe, desde en-
tão, um papel de guia e que exerça uma função de abertura para o con-
junto da clínica.
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O livro de Oscar Cirino oferece a oportunidade
de refletir sobre as razões e as conseqüências da
mutação histórica no estatuto da infância e de
avaliar todos os seus paradoxos, principalmente,
na sociedade brasileira.
Ao ler esta obra, rica de referências bibliográfi-
cas, pareceu-me que a difusão da psicanálise foi
um elemento que, sem dúvida, contribuiu para
essa mudança de perspectiva sobre a época da in-
fância. Certamente, não mais olhamos as crianças
da mesma maneira a partir do momento em que
fazemos uma análise.
Há aí, entretanto, um ligeiro mal-entendido:
uma vez que a psicanálise do adulto não nos ensi-
na nada sobre a infância; o que ela permite é cons-
truir o infantil que constitui o núcleo da neurose.
Bernard Nominé
Psicanálise
e
Psiquiatria
com
crianças
–
desenvolvim
ento
ou
estrutura
O
scar
C
irino
Psicanálise e Psiquiatria com
crianças: desenvolvimento ou estru-
tura é, antes de tudo, um livro im-
prescindível para os que se dedi-
cam ao trabalho com crianças,
quer pela intensidade da experiên-
cia que Oscar Cirino transmite ao
leitor, quer pelo fino trato de
questões que atravessam a prática
com criança nos diversos campos
do saber. Visitando a filosofia, a
educação, o campo psicossocial,
jurídico, a psiquiatria, com o ri-
gor de pesquisador exigente e
com a escuta de psicanalista ex-
periente, o autor possibilita um
percurso por temas e problemas
que estão sempre na ordem do
dia quando se trata de crianças.
Orientado por perguntas nas-
cidas de sua prática e de sua cons-
tante interlocução com diferentes
profissionais; Oscar Cirino vai te-
cendo o texto com habilidade e in-
teligência notáveis. As transfor-
mações socioculturais do século
XXI produzirão mudanças no es-
tatuto da infância? Essas mudan-
ças implicariam no seu próprio
desaparecimento? Do que são res-
ponsáveis as crianças? Psicana-
listas concordam com a idéia de
um desenvolvimento psíquico? A
oposição de Lacan aos conceitos
de desenvolvimento e evolução
implicaria na negação do tempo?
Discutindo desvios, Oscar re-
tifica questõescruciais como a
concepção de que a psicanálise se
constituiria em um tratamento
onde se faria uma pesquisa histó-
rica de acontecimentos passados –
sendo o analisante levado a lem-
brar-se e a falar da infância – sus-
tentando que a psicanálise não é
uma teoria sobre a infância, mas
sobre o inconsciente e o gozo.
Tânia Ferreira
9 7 8 8 5 7 5 2 6 0 3 6 4
ISBN 978-85-7526-036-4
www.autenticaeditora.com.br
0800 2831322
Psicanálise
crianças
Oscar Cirino
e Psiquiatria com
desenvolvimento
ou estrutura
Oscar Cirino nasceu em São
Paulo (SP) e formou-se em Filosofia
pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), e em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Mestre em Filosofia
pela UFMG, é psicanalista, exer-
cendo clínica com crianças há vinte
anos, sendo que, durante dezessete,
trabalhou em uma instituição públi-
ca de assistência à saúde mental de
crianças e adolescentes - Centro Psi-
copedagógico da Fundação Hospita-
lar do Estado de Minas Gerais - onde
foi preceptor da Residência em Psi-
quiatria da Infância e Adolescência,
no período de 1992 a 1998.
Atualmente é professor do Curso
de Especialização em Saúde Mental
da Escola de Saúde de Minas Gerais
e coordenador do Curso de Especia-
lização em Saúde Mental-Clínica do
Unicentro Newton Paiva. É tam-
bém coordenador do Núcleo de Ensi-
no e Pesquisa do Centro Mineiro de
Toxicomania.
Foi co-editor da Revista de Psi-
quiatria e Psicanálise com Crianças
& Adolescentes e é co-autor e co-
organizador de Psicóticos e ado-
lescentes: por que se drogam
tanto? (2000).
residência em psiquiatria
CPP - FHEMIG
Infância e Adolescência
S˝LVIA RIVERESvidade original”, agressividade presente em toda “situação de absor-
ção especular”, isto é, em toda relação dual entre o eu e o semelhante
(LACAN, 1998 [1948], p. 117).
24
No capítulo VIII (“Como aprendi a falar”), Agostinho discute a ma-
neira como o infante aprende a interpretar as palavras e os sinais, ex-
pondo a tese de que a criança é impulsionada a aprender a linguagem
pela vontade imperiosa de que conheçam as suas necessidades.
Os gritos, gemidos e movimentos dos membros, na medida em que
eram insuficientes para “exteriorizar tudo o que desejava”, suscitavam
as palavras daqueles que rodeavam Agostinho:
Retinha tudo na memória quando pronunciavam o nome de al-
guma coisa, e quando, segundo essa palavra, moviam o corpo
para ela. Via e notava que davam ao objeto, quando o queriam
designar, um nome que eles pronunciavam. Esse querer era-me
revelado pelos movimentos do corpo [...]. Por esse processo reti-
nha pouco a pouco as palavras convenientemente dispostas em
várias frases freqüentemente ouvidas como sinais de objetos.
Domando a boca segundo aqueles sinais, exprimia por eles as
minhas vontades.
Assim principiei a comunicar-me com as pessoas que me rodea-
vam, e entrei mais profundamente na sociedade tempestuosa dos
homens, sob a autoridade de meus pais e a obediência dos mais
velhos. (AGOSTINHO, 1984, p. 16-17)
Anuncia-se, então, o final da infância, quando ele já não era mais “um
bebê que não falava, mas um menino que principiava a balbuciar algumas
palavras” (AGOSTINHO, 1984, p. 15). No curso da vida, a infância é, segundo
ele, sucedida pela puerícia, palavra de origem latina que, durante muito
tempo, serviu para designar o período entre a infância e a adolescência.
A partir dessa e de outras referências, o psicanalista Anibal Leserre
considera que Lacan faz uma “inclusão implícita” de Santo Agostinho,
no seguinte parágrafo de “A psicanálise e seu ensino” (1957):
E, com efeito, aquilo a que a descoberta de Freud nos conduz é a
imensidão da ordem em que ingressamos, na qual, por assim di-
zer, nascemos uma segunda vez, saindo justamente do estado de-
nominado infans, sem fala, ou seja, a ordem simbólica constituída
pela linguagem, e o momento do discurso universal concreto e
de todos os sulcos abertos por ele nessa hora, onde foi preciso
nos alojarmos. (LACAN, 1998, p. 446)
Assim, se, para Santo Agostinho, no particular do homem está o
universal, Deus; para a psicanálise, no particular daquele que fala está
outro universal, a linguagem (ver LESERRE, 1994, p. 21-28).
Deus deve ser buscado no próprio interior de cada homem. Por isso,
Agostinho “envergonha-se” do período em que não fala, pois esse não
25
suscita lembranças. Só depois que começou a “balbuciar algumas pala-
vras”, é que pôde conservar algumas recordações: a paixão pelos jogos e
divertimentos, a indisposição para os estudos, apesar do fascínio pela
Eneida de Virgílio, os castigos aplicados pelos professores. Recorda-se
também dos pequenos furtos e crueldades, bem como de sua ira, quan-
do era derrotado pelos colegas, e de seu orgulho, quando vencia.
Desse modo, Santo Agostinho tenta demonstrar que as crianças são
eminentemente pecadoras, e se, na Bíblia (Mt 19, 14), Jesus as abençoa e
diz que é delas o reino dos céus, Deus está, segundo ele, apenas louvan-
do “na estatura das crianças o símbolo da humildade “ (AGOSTINHO, 1984,
p. 25). Ou seja, Deus submete-se à humilhação, não apenas por adotar o
aspecto humano, mas por assumir a condição de criança, colocando-se
num nível inferior ao do próprio Adão.
Portanto, o pensamento de Santo Agostinho, que, durante séculos, exer-
cerá influência sobre a tradição cristã e sobre a pedagogia, postula tanto a
idéia de que a infância – concebida como o período em que não se fala – é
uma época desprezível quanto a perspectiva de que a maldade seria a ver-
dade da criança antes de qualquer adestramento educativo e moral.
UMA ÉPOCA IMPORTANTE
MARCADA PELA INOCÊNCIA: ROUSSEAU
Essa concepção agostiniana da infância será radicalmente confron-
tada apenas no final do século XVIII, por Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778), pensador que, apesar de herdeiro da tradição cartesiana, raciona-
lista, colocará o sentimento – cuja sede é o coração ou a consciência moral
– no centro de sua visão de homem. Em outras palavras, para Rousseau
o eu sensível tem supremacia sobre o cogito racional, do mesmo modo que
o senso íntimo sobre a universalidade lógica. Além disso, como precur-
sor do Romantismo, ele não pensará a natureza como um sistema de leis
e entidades de caráter matemático, mas como a fonte de todo bem e de
todo valor, enfatizando que o sentimento místico de comunhão com a
Natureza é inseparável do sentimento de interioridade pessoal. Será a
partir desses pressupostos que se poderá anunciar um “novo homem”,
definitivamente reconciliado com a Terra, ou, em termos lacanianos, to-
talmente livre da dependência ao significante.3
3 Colette Soler, em artigo sobre Rousseau, chama esse procedimento de “foraclusão
metódica” em analogia à dúvida metódica de Descartes. Ver “Rousseau, o símbolo”.
In: A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998, p. 29-62.
26
No tempo de Pascal (1623-1662), quando se fala da infância, é para
dizer que “uma criança não é um homem” (LACAN,1988 [1959-60], p. 36)4
ou que ela é apenas uma representação alegórica dele, um ser temporário
– tanto porque sua vida seria provavelmente breve quanto pelo que ela
poderia vir a ser posteriormente. Já com Rousseau, a partir de seu livro
Emílio ou Da Educação (1762), estabelece-se uma nova perspectiva: “a
infância tem maneiras de ver, de pensar e de sentir que lhe são próprias”
(ROUSSEAU, 1999, p. 86). Além disso, ela é tão perfeita e importante quan-
to a idade adulta: “Cada idade, cada estado da vida tem sua perfeição
conveniente, o tipo de maturidade que lhe é própria. Ouvimos falar
muitas vezes de um homem feito, mas consideremos uma criança feita:
o espetáculo será mais novo para nós, e talvez não venha a ser menos
agradável” (ROUSSEAU,1999, p. 192).
As fases de formação na vida poderiam, seguindo a proposta de Rous-
seau, ser divididas do seguinte modo: “a idade de natureza” – o bebê
(infans); “a idade de natureza” – de 2 a 12 anos (puer); “a idade de força” –
de 12 a 15 anos; “a idade de razão e das paixões” – de 15 a 20 anos e “a
idade de sabedoria e do casamento” – de 20 a 25 anos. Para ele, a segunda
fase da vida é “aquela onde acaba propriamente a infância, pois as pala-
vras infans e puer não são sinônimas. A primeira está contida na segunda e
significa quem não pode falar...” (ROUSSEAU, 1999, p. 65). No entanto, ele es-
clarece que, seguindo o costume da língua francesa, continua a se servir
da palavra infans para designar uma fase que já possui outro nome.
Rousseau entende a natureza humana como maleável e mutante.
A criança pode ser educada e não apenas instruída. O homem se faz,
pode ser aperfeiçoado, e por isso seu manual para educadores, escrito
sob a forma de romance – Emílio – traça as linhas gerais que deveriam
ser seguidas com o objetivo de se produzir um adulto bom. Mais exa-
tamente ele trata dos princípios para evitar que a criança se torne má,
já que, ao contrário de Santo Agostinho, ele crê na bondade natural do
homem: ”não há perversidade original no coração humano. Não se
encontra nele um só vício de que não possamos dizer como e por onde
entrou” (ROUSSEAU, 1999, p. 90).
Como conseqüência, para Rousseau, a educação deve visar a duas
metas: o desenvolvimento das potencialidades naturais da criança e seu
4 Além dessa referência no Seminário 7 (1959-1960), Lacan já havia nas “Formulações
sobre a causalidade psíquica” (1946) recorrido à idéia de que “a criança não é um
homem” (ver 1998, p. 188). Anibal Leserre analisa essas citações de Lacan no artigo
“Dos referencias al niño en Lacan”. In: Psicoanálisis con niños, 1995, p. 35-43.
27
afastamento dos males sociais. Ela deve ser progressiva. A cada etapa da
vida da criança, novas lições, mas não apenas novos conteúdos, tambémnovos procedimentos para lidar com ela e sua natureza em formação. A
primeira etapa, por exemplo, deve ser inteiramente dedicada ao aperfei-
çoamento dos órgãos dos sentidos, pois as necessidades iniciais da crian-
ça são principalmente físicas. Incapaz de abstrações, o educando deve ser
orientado para conhecer o mundo através do contato com as próprias coi-
sas: os livros só podem fazer mal, com exceção do Robinson Crusoé, que
relata as experiências de um homem livre em contato com a natureza.
Essas indicações de Rousseau nos são bem familiares, pois, afinal,
ele fez escola e no Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, estuda-
ram J. Pestalozzi (1746-1827, seu discípulo direto), E. Claparède (1873-
1940), J. Piaget (1896-1980) e alguém bem próximo de nós, Helena Anti-
poff (1892-1974).
A importância dessa obra de Rousseau é expressa da seguinte ma-
neira por Renato Janine Ribeiro:
pouco livro de filosofia terá sido tão inaugural quanto o Emílio. O
interesse que despertou pelas crianças foi tal que... desde então, a
infância deixou de ser vista como uma época marcada só pela
carência de razão, para se entender como senhora de uma per-
cepção, de um sentimento positivo e próprio. A pedagogia e a
psicologia atuais devem muito a Rousseau. (RIBEIRO, 1992)
Já o professor da Universidade de Genebra, Alain Grosrichard, pro-
põe uma interessante leitura do texto do filósofo suíço. Recorrendo ao
livro IV do Emílio que, segundo ele, explicita bem “o que é uma criança
para Rousseau”, Grosrichard atem-se ao momento em que se vai colo-
car o problema da educação sexual de Emílio, já com 18 anos. Esse mo-
mento, requerido pela Natureza, é, para Rousseau, o de um “segundo
nascimento”: nascemos uma primeira vez para a espécie, e uma segun-
da vez para o sexo. Antes desse segundo nascimento, diferente do pro-
posto, como notamos anteriormente, por Lacan, o pequeno homem é, de
certa forma, assexuado, como um anjo: “até a idade [de se casar] as crian-
ças dos dois sexos nada têm de aparente que as distinga; mesmo rosto,
mesmo aspecto, mesma cor, mesma voz, tudo é igual; as meninas são
crianças, os meninos são crianças; o mesmo nome basta para seres tão
semelhantes” (ROUSSEAU,1999, p. 271).
Grosrichard comenta que, através deste significante “criança”, es-
tabelece-se a posição de Rousseau, adotada por todo século XIX, a sa-
ber, o lado naturalmente assexuado da criança, a ausência de toda a
28
sexualidade infantil. Será preciso esperar Freud para que essa pers-
pectiva se modifique.
A CRIANÇA É O PAI DO HOMEM
“A criança é o pai do homem” cantava com otimismo o poeta ro-
mântico inglês William Wordsworth (1770-1850), concedendo espaço e
valor inéditos à infância na civilização ocidental. Ela adquire a função
simbólica de ser o solo fértil e sensual, que abastecerá o crescimento de
um ser sublimemente humano: a criança torna-se a fonte de toda exce-
lência humana posterior e a perfeição só contemplará o adulto que con-
seguir preservar sua experiência infantil.5
 Durante o período romântico – os anos transcorridos desde a Re-
volução Francesa até as Revoluções de 1848 – artistas, poetas e filósofos
estabelecem como seu tema central o crescimento e o desenvolvimento
humano, em um universo de processo e mudança. Esse movimento in-
clui, entre outros, além de Wordsworth, Schiller – Cartas sobre a educação
estética do homem (1795) – e Goethe, com seu Fausto (1831).
Para o Romantismo, as crianças e os artistas são figuras modelares,
capazes de provocar a regeneração e a redenção da raça humana, a par-
tir de sua imaginação criativa, espontaneidade, liberdade dos precon-
ceitos sociais e do uso da sensibilidade como sustentáculo para o pensa-
mento. Com isso, o mundo da infância, as recordações e anseios infantis
se tornarão a fonte de inspiração e de exploração dos artistas – seres da
melhor qualidade e vitalidade – pois souberam conservar as aptidões
da infância, adquirindo o intelecto e a consciência moral do adulto.
Em “O interesse científico da psicanálise” (1913), Freud cita
Wordsworth, dizendo que a psicanálise “teve de levar a sério o velho
ditado que diz que a criança é o pai do homem”, ao ser “obrigada a
atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida das crianças”
(1980 [1913], p. 218). Por isso, ele foi levado a construir uma “psico-
logia genética” e a propor a “continuidade entre a mente infantil e a
mente adulta”.
Já Lacan utiliza-se da fórmula de Wordsworth no Seminário 7 (1959-
1960), afirmando que não é suficiente valorizar as lembranças e os ideais
infantis – a “idéia da criança que há no homem” – para estabelecer “o
benefício e a novidade da experiência analítica”. Em outras palavras,
5 Estudo rigoroso e interessante sobre a relação entre o Romantismo e a infância é
realizado por Judith Plotz, no artigo “Romantismo, infância e os paradoxos do
desenvolvimento humano”. In: Filosofia e Infância, op.cit., p. 161-205.
29
Lacan não define o pensamento inconsciente como a permanência da
criança no homem.
Perguntando “onde está o modelo do ser adulto”, ele considera que
é preciso “reinterrogar a dura aresta do pensamento de Freud” e que a
referência fundamental da experiência analítica não é dada em termos
de gênese ou desenvolvimento, mas de “tensão” e “oposição” entre pro-
cesso primário e processo secundário, entre princípio do prazer e princí-
pio de realidade (ver LACAN, 1988 [1959-60], p. 36-37).6 Esse contraponto
entre as perspectivas desenvolvimentista e estrutural será retomado nos
próximos capítulos.
 O CULTIVO DA INFÂNCIA NO BRASIL
Uma análise histórica e crítica sobre o “cultivo da infância” no Brasil
encontra-se em Ordem médica e norma familiar (1979)7, livro que busca ex-
plicitar como o saber médico, em sua vertente higienista, produziu nor-
mas educativas e terapêuticas para as famílias brasileiras. Jurandir F. Costa
analisa uma série de romances, teses de medicina, estudos pedagógicos e
históricos, constatando que, apenas a partir de meados do século XIX, a
criança passou a ser valorizada de forma diferenciada, uma vez que man-
tivemos, por muito tempo, uma estrutura rural e escravocrata.
O capítulo V, intitulado “Adultos e Crianças”, demonstra como até
esse período a criança permaneceu prisioneira do inexpressivo papel
reservado aos filhos durante o Brasil Colônia. “Nem sempre o neném foi
“majestade” na família. Durante muito tempo seu trono foi ocupado
pelo pai [...] ao pai, ao adulto, os louros; ao filho, à criança, as batatas!”
(COSTA, 1979, p. 155).
6 Lacan refere-se também à fórmula de Wordsworth no Seminário 17 (1969-1970), no
qual em concordância com a proposta de um “para além do complexo de Édipo” e
com a análise da lição “Do mito à estrutura”, ele diz que “a psicanálise nos de-
monstra que a criança é o pai do homem” (ver LACAN, 1992, p. 117). Uma análise
dessas duas referências de Lacan a Wordsworth encontra-se em LESERRE, Anibal.
“Dos referencias al niño en Lacan”, art.cit., p. 35-43.
7 Segundo Maria Luiza Marcílio, a historiografia brasileira, até fins da década de
1980, pouco se ocupou da criança e mesmo da família. O estudo desses novos
objetos teria sido possível a partir da utilização dos recursos da Demografia Histó-
rica e da chamada “História Nova”. A parte II (Brasil) de seu livro História social da
criança abandonada (1998) é uma excelente referência. Outra indicação é a coletânea
História da criança no Brasil (1991), que apresenta pesquisas, desde o período colo-
nial até a República de 1930, sobre diferentes aspectos envolvendo as crianças em
nosso país. A organizadora do livro constata que “a história da criança fez-se à
sombra daquela dos adultos”. Ver PRIORE, Mary del (org.). História da criança no
Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.
30
Na sociedade colonial, a criança era ignorada em função da impor-
tância concedida ao valor da propriedade, ao saber tradicional e à ética
religiosa. Ela se encontrava distante desses três ideais: não tinha nenhu-
ma posse e, se tivesse, seria incapaz de preservá-la; não tinha vivido o
bastante paraentender o passado e nem responsabilidade suficiente para
respeitar a experiência; e, além disso, não tinha sua vida concreta e ma-
terial valorizada pelo catolicismo, que – voltado para a imortalidade e a
vida sobrenatural – considerava-a apenas a partir de sua função espiri-
tual, signo de pureza e inocência. O “anjinho”, como queria Rousseau,
era a representação dominante da criança, reforçada especialmente pela
criança morta. Em resumo, por oposição ao adulto, a criança era perce-
bida negativamente, sendo tratada como um “adulto incompetente”.
No período colonial a representação social e religiosa da criança
monopolizava o sentido de sua vida. Os papéis culturais de “fi-
lho incapaz” e de “anjinho” superpunham-se e obscureciam sua
condição de etapa biológico-moral no desenvolvimento do adul-
to. A vida infantil persistia cindida da vida dos mais velhos, como
se seu cerne pertencesse a uma segunda natureza humana. Natu-
reza imprecisa, expectante, que se mantinha em estado larvar até
o despertar da puberdade. Entre o adulto e a criança as ligações
existentes eram a da propriedade e da religião. Fora disso, um
fosso os separava. A ‘’alteridade” e a descontinuidade entre um e
outro eram radicais. (COSTA, 1979, p. 162)
Os elos que ligaram a geração dos adultos à das crianças só se estabe-
leceram a partir da emergência da representação da criança como “matriz
físico-emocional do adulto”. As noções de evolução, diferenciação e grada-
ção, heterogeneidade e continuidade, permitiram que a família pudesse “ver
na criança e no adulto o mesmo e o outro”. A partir daí “os papéis invertem-
se: a criança passa a determinar a função e o valor do filho” (ibidem, p. 162).
É importante destacar que a evolução torna-se o paradigma teórico
dominante na segunda metade do século XIX. A teoria de Charles Darwin
(1809-1882) propunha que a luta pela vida e a seleção natural seriam os
mecanismos essenciais da evolução dos seres vivos.
Partindo de uma suposta relação de continuidade entre o animal e
o homem, Darwin inscrevia o homem como mais uma espécie na ordem
da natureza, rompendo radicalmente com as concepções religiosas e di-
vinas sobre a sua origem. Essa teoria, de acordo com Freud, seria res-
ponsável pelo “golpe biológico no narcisismo do homem”, colocando um
fim à sua presunção de superioridade:
O homem não é um ser diferente dos animais, ou superior a
eles; ele próprio tem ascendência animal, relacionando-se mais
31
estreitamente com algumas espécies, e mais distanciadamente
com outras. As [aquisições] que posteriormente fez não conse-
guiram apagar as evidências, tanto na sua estrutura física quanto
nas suas aptidões mentais, da analogia do homem com os ani-
mais. (FREUD, 1980 [1917], p. 175)
Para garantir seu aperfeiçoamento, etapas superiores de humani-
zação, a espécie humana teria passado por um longo processo evoluti-
vo, desde os seus primórdios no reino animal. Esse percurso apontaria,
portanto, para a infância da humanidade, que só teria sido superada pos-
teriormente, depois dos processos de seleção natural e adaptação.
Uma das intenções de Darwin era investigar as relações entre os
elementos da natureza e os da cultura, entre as etapas de transformação
pelas quais o recém-nascido – que é tão parecido aos animais – se con-
verte em um adulto e se integra socialmente. Ele chegou até a publicar,
em 1877, um relato sobre o desenvolvimento do seu próprio filho – A
Biographic Sketch of An Infant – onde estudava suas emoções, sua capaci-
dade de reação e de comunicação, buscando relacioná-las com manifes-
tações análogas no mundo animal (ver CIACCIA, 1997, p. 25).
A teoria da evolução das espécies ultrapassou em muito o registro
da ordem biológica, constituindo-se em um dos signos reveladores do
novo horizonte delineado pela modernidade. A partir de então, além da
natureza, a cultura e a sociedade são também atravessadas pelo tempo e
marcadas em seu ser pela história.
O alcance dessa perspectiva foi tão amplo que obrigou a uma revi-
são em todos os pressupostos teóricos das disciplinas que tinham algu-
ma relação com o homem, favorecendo o nascimento de disciplinas como
a antropologia, a sociologia, a psicologia comparada e a psicologia evo-
lutiva. A problemática da infância ganha novo impulso com essa inscri-
ção do ser do homem na ordem da história e do tempo.
No Brasil, os médicos higienistas também são influenciados pelas
idéias de Darwin e reagem com vigor contra o alto índice de mortalida-
de infantil. A criança morta deixou de ser o “vetor da esperança religiosa
dos pais”, para se tornar um atestado da incompetência, imprudência e
ignorância de quem cuidava dela: parteiras, escravas, enfim, os próprios
pais que a elas entregavam seus filhos.
O saber médico confrontou-se, então, aos valores sociais e religiosos,
dominados por uma mentalidade pré-científica. Como representante do
saber científico, o médico tornou-se o sacerdote do corpo e da saúde, com
a tarefa de definir o que era “bom” ou “mau” para os indivíduos, suas
famílias e a população.
32
Buscando as razões da irresponsabilidade da família colonial com a
vida das crianças, os higienistas se depararam com o aluguel de escravas
como amas de leite, com o papel da mulher como mera guardiã do patri-
mônio do marido, e, principalmente, com o papel do pai-proprietário,
pivô de toda família. A organização da família colonial era, portanto,
funesta à infância e deveria sofrer transformações.
A nova família contaria com participação mais justa e eqüitativa en-
tre homens e mulheres. Ressituado no quadro familiar dentro de limites
precisos, o pai se responsabilizaria pela proteção material dos filhos. A
mãe, por sua vez, ganharia um papel autônomo no interior da casa, como
iniciadora da educação infantil. E os filhos deveriam ser criados para amar
e servir à “humanidade” e à nação e não apenas ao pai. Assim, “a nova
criança reclamava um casal que, ao invés de comportar-se como proprie-
tário, aceitasse, prioritariamente ser tutor. Tutor de filhos cujo verdadeiro
proprietário era a nação, o país” (COSTA, 1979, p. 170).
A idéia da nocividade do meio familiar foi o grande trunfo que os
higienistas utilizaram para se apropriarem medicamente da infância.
Sua intervenção revelaria os segredos da vida e da saúde infantil, pres-
crevendo a boa norma de comportamento familiar dos adultos, visando
à proteção da saúde de toda população.
Para os higienistas, a criança era uma entidade físico-moral amorfa,
espécie de cera mole, que seria moldada a partir de pequenos hábitos
exercidos cotidianamente pela disciplina física (costumes alimentares,
ginástica, controle da masturbação...), pela disciplina intelectual e mo-
ral, que visava uma regulação autônoma e automática do “espírito das
crianças” através do remorso e do amor-próprio ferido, mais do que dos
castigos corporais.
A renovação da sociedade brasileira, após a chegada da Corte (1808),
incrementou a demanda de escolarização, especialmente a partir da se-
gunda metade do século, quando houve uma melhoria geral do sistema
de transportes, viabilizando o envio dos filhos das famílias rurais para
diferentes estabelecimentos escolares. Coube a eles difundir o “cultivo
da infância” através do valor do hábito, que gravava, nas crianças, con-
vicções e interesses muitas vezes opostos aos de seus pais. Essa foi uma
tática utilizada amplamente pelo higienismo: apropriar-se das crianças,
separando-as dos pais, e, em seguida, devolvê-las às famílias converti-
das em “soldados da saúde”.
Em suma, no Brasil, a representação da criança como um ser com
características físicas, comportamentais e morais particulares ocorreu
somente a partir do século XIX, em função do conjunto de interesses
33
médico-estatais e das transformações econômico-sociais que se interpu-
seram entre a família e a criança.
A CRIANÇA COMO SUJEITO DE DIREITOS
No Brasil República, a distinção entre a criança rica e a criança po-
bre ficou bem delineada. A primeira foi alvo de atenções e das políticas
da família e da educação,com o objetivo de prepará-la para dirigir a
Sociedade. A segunda, virtualmente inserida nas “classes perigosas” e
estigmatizada como “menor”, deveria ser objeto de controle especial, de
educação elementar e profissionalizante, visando prepará-la para o
mundo do trabalho (ver MARCÍLIO, 1998, p. 224-228).
Uma das maneiras de se exercer esse controle sobre a infância de-
samparada e delinqüente foi a promulgação, em 1927, do Código de
Menores – primeira legislação específica para a infância no Brasil. Mais
de cinqüenta anos depois, este conjunto de leis ganhará outra versão
em 1979, com o novo Código de Menores, que, entre outras coisas, deter-
minava que o Poder Público criasse as instituições de assistência e pro-
teção ao menor. Momento do aparecimento, em diferentes estados da
federação, das tristes FEBEM. De responsabilidade dos governos esta-
duais, mas sob a supervisão das “políticas” gerais estabelecidas pela
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), esses estabele-
cimentos foram concebidos como centros especializados destinados à
triagem e observação dos menores, bem como à sua permanência. A
maior parte dessas instituições, no entanto, já existia há anos, tendo
sido apenas repassadas para os governos estaduais. O que ocorre com
as FEBEM é a intensificação do processo de criminalização da pobre-
za, a partir de internações – que constituíam verdadeiras privações de
liberdade com tempo indeterminado – por motivos de falta ou carên-
cia de recursos materiais.
A exclusão e segregação realizadas a partir da categoria menor é
analisada pelo jurista Emílio Méndez, um dos maiores especialistas na
promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, na América
Latina.8 De acordo com ele, desde suas origens, “as leis de menores nas-
cem vinculadas a um dilema crucial. Satisfazer simultaneamente o dis-
curso da piedade assistencial junto com as exigências mais urgentes de
ordem e controle social” (MÉNDEZ, 1998, p. 23).
8 O livro Infância e Cidadania na América Latina (1998), de Emílio Méndez, é uma
indicação indispensável para se compreender as transformações nas legislações
sobre a infância no Brasil e na América Latina.
34
Teríamos, então, dois tipos de infância. Uma, incluída na cobertura
das políticas sociais básicas, seria formada por crianças e adolescentes,
controladas e socializadas pela família e pela escola. A outra, excluída
das famílias e das políticas sociais, constituiria o contingente dos meno-
res, alvo de um controle sociopenal diferenciado, realizado a partir da
criação de uma nova instância: o tribunal de menores (ver MÉNDEZ, 1998,
p. 24 e 86). No terceiro capítulo, analisaremos a importância desses tri-
bunais para a constituição do saber psiquiátrico sobre a criança.
Emílio Méndez considera que as legislações de menores foram impreg-
nadas pelos princípios da doutrina da situação irregular, praticamente hege-
mônica em nosso continente, pelo menos até a década de 80. Trata-se de
uma doutrina arbitrária que, embora vagamente formulada, permite que
os juízes, com competência penal e tutelar, possam declarar em situação irre-
gular (e por conseguinte objeto explícito de intervenção estatal) a criança e o
adolescente que enfrentem dificuldades – nunca taxativamente definidas,
pois iam desde a carência material até o abandono moral. Assim, crianças e
adolescentes abandonados, vítimas de abusos ou maus-tratos e supostos
infratores da lei penal, quando pertencentes aos setores mais débeis da so-
ciedade, se constituem em alvos potenciais dessa definição. Em suma:
A essência desta doutrina se resume na criação de um marco jurí-
dico que legitime uma intervenção estatal discricional sobre esta
espécie de produto residual da categoria infância, constituída pelo
mundo dos menores. A não-distinção entre abandonados e delin-
qüentes é a pedra angular desse magna jurídico. Nesse sentido, a
extensão do uso da doutrina da situação irregular torna-se inver-
samente proporcional à extensão e à qualidade das políticas sociais
básicas. (MÉNDEZ, 1998, p. 88)
A definição do menor como criança em situação irregular exorciza,
portanto, as deficiências das políticas sociais, apontando “soluções” de
natureza individual que privilegiam a institucionalização ou a adoção.
Dessa maneira, o número de menores – atualmente de meninos de/na
rua9 – pode diminuir ou aumentar de acordo com o maior cuidado ou
descuido no campo das políticas sociais básicas.
Durante décadas, no entanto, o Estado brasileiro não assumiu, de
fato, a responsabilidade pela assistência da infância pobre, foco prioritário
de práticas de caridade individual e filantrópicas. Limitava-se às funções
de estudo e de controle da assistência ao menor, bem como da repressão
9 Ver, por exemplo, a esse respeito o livro de FERREIRA, Tânia. Os meninos e a rua:
uma interpelação à psicanálise, Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
35
aos desviantes, através da criação de órgãos públicos especializados,
como o Departamento Nacional da Criança (1919) ou o Serviço Nacio-
nal de Menores (1941).
Foi só nos anos 60 que o Estado se tornou o grande interventor e
o principal responsável pela proteção e pela assistência à infância
abandonada e em situação de risco no Brasil. Essa nova postura foi,
sem dúvida, influenciada pela Declaração Universal dos Direitos da Criança
(1959) – que faz série com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e
dos Direitos da Mulher – proclamada pela Organização das Nações Uni-
das (ONU).10 Dentre esses direitos destacam-se: o direito à vida e à
saúde; à liberdade, respeito, dignidade; à convivência familiar e co-
munitária; à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer; à profissionali-
zação e à proteção no trabalho. Todas as crianças ganham, então, o sta-
tus de sujeito de direitos, cabendo ao Estado protetor atuar para garantir
essa nova posição.
Pressionado pela Declaração, o governo militar cria, em 1964, a já
citada FUNABEM, que introduziu, nos assuntos da assistência à infância
no Brasil, a perspectiva do Estado do bem-estar social (Welfare State). No
entanto, nesse momento de ditadura militar, o dever de proteger e garan-
tir o bem-estar das crianças mistura-se à Lei de Segurança Nacional.
Com o restabelecimento do Estado de direito e o agravamento da
pobreza e violência urbanas, as reações começam a surgir, sobretudo na
década de 80, resultando em movimentos como a Pastoral do Menor (pos-
teriormente Pastoral da Criança) e na presença ativa de organizações não-
governamentais, nacionais e internacionais, denunciando o desrespeito
constante aos direitos das crianças.
A intensa mobilização, que envolveu movimentos sociais, políticas
públicas e mundo jurídico, culminou, em 1990, com a aprovação do Es-
tatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cujos destinatários já não eram
mais os menores, mas todas as crianças e adolescentes, sem distinção. Incor-
porando os princípios da nova Constituição do Brasil (1988), o Estatuto
deixou integralmente sem efeito as leis que dispunham sobre a política
nacional do bem-estar do menor e sobre o Código de Menores, rompen-
do com a tradição latino-americana, ao substituir a chamada doutrina
da situação irregular pela doutrina da proteção integral.
10 É importante esclarecer, como sugere Tânia Pereira, que os direitos estabelecidos
em Declarações são princípios que não representam obrigações para os Estados.
Refletem uma afirmação de caráter meramente moral, não encerrando obrigações
específicas.
36
Essa doutrina foi defendida na Convenção Internacional dos Direitos
da Criança (1989), organizada pela ONU, constituindo-se em “verdadeiro
divisor de águas na história da condição jurídica da infância” (MÉNDEZ, 1998,
p. 31). Reconhecendo como antecedente direto a Declaração Universal dos
Direitos da Criança, a doutrina da proteção integral estabelece um “novo
paradigma” no campo dos direitos da infância e da adolescência: “do
menor como objeto da compaixão-repressão à infância-adolescência como
sujeito pleno de direitos” (ver MÉNDEZ, op. cit, cap. 4).
Objeto dequem ou do quê? Objeto da mãe, dos pais, das políticas
públicas, dos juizes, das FEBEM, dos educadores, enfim, de vários outros
sujeitos e instituições que, com boas ou más intenções, se dispunham a
protegê-los, tutelá-los ou castigá-los.
A adoção da doutrina da proteção integral veio reafirmar o princí-
pio do melhor interesse da criança, que, em essência, significa que quando
ocorrem conflitos, como, por exemplo, no caso da dissolução de um
casamento, os interesses da criança sobrepõem-se aos de outras pesso-
as ou instituições.11
Ao serem reconhecidos como “sujeitos de direitos civis, humanos e
sociais garantidos na Constituição e nas leis” (art.15 do Estatuto), tanto
a criança quanto o adolescente encontram instrumento legal para ga-
rantir sua participação e cidadania. Definidos e diferenciados a partir
de perspectiva cronológica, a criança – até doze anos de idade incom-
pletos – e o adolescente – entre doze e dezoito anos (art.2) – são também
considerados em sua “condição peculiar” de “pessoas em desenvolvi-
mento” (ver, por exemplo, arts. 6, 15, 71). Eles têm, portanto, plenos di-
reitos, mas com a peculiaridade de serem “pessoas em desenvolvimen-
to”, o que lhes confere direitos especiais.12
Além do direito à liberdade de expressão e opinião (inciso II do art.
16), a palavra da criança passa a ser valorizada em decisões que envol-
vem sua vida, como, por exemplo, a colocação em família substituta –
mediante guarda, tutela ou adoção. Assim, o parágrafo primeiro do
art. 28 estabelece: “Sempre que possível, a criança ou o adolescente de-
verá ser previamente ouvido e sua opinião devidamente considerada”.
11 Uma referência bibliográfica fundamental sobre esse princípio é o livro O melhor
interesse da criança: um debate interdisciplinar, coordenado por Tânia da S. Pereira.
12 Uma discussão sobre a relação entre as normas de direito comum (ou regular), como
o Código Civil, por exemplo, e as normas de direito especial (ou singular), como o
ECA, é desenvolvida por Heloísa Barboza. Em suma, podemos entender que o
direito especial das crianças e adolescentes constitui-se de regras próprias, não
opostas às regras gerais, mas delas distintas.
37
A “fala da criança” torna-se, portanto, uma das provas essenciais na
instrução dos processos que envolvem seus interesses. Para o exercício
desse direito perante Juizes e Tribunais é preciso criar condições objetivas
como, por exemplo, “adaptar os procedimentos com vistas a garantir a
manifestação autêntica da vontade da criança” (para outros procedimen-
tos, ver PEREIRA,T. 2000, p. 30-31). Expondo suas opiniões e dúvidas, a
criança pode tornar-se presença ativa no processo.
Outro aspecto digno de nota no Estatuto é o direito inquestionável
da criança à filiação (art. 27), que deixa de ser um produto natural do
casamento. Estabelece-se a plena igualdade entre os filhos, não sendo
relevantes as condições em que foram gerados, nem o estado civil de
seus genitores – casados, não casados, companheiros... – durante a con-
cepção. Assim, não se pode mais, no campo jurídico, adjetivar os filhos
como legítimos ou ilegítimos, naturais, espúrios ou adotivos. Em suma,
toda criança tem direito a um nome próprio, que faça referência à sua
origem biológica e à sua história.
Além disso, ao reconhecer a perspectiva da família substituta – nome
dado às famílias não biológicas – o Estatuto avança no entendimento do
papel social do pai e da mãe, desvinculando-os da ordem natural e ge-
nética. Ou seja, a paternidade e a maternidade, enquanto funções, po-
dem ser exercidas a despeito dos laços consangüíneos (ver PEREIRA, R.,
2000, p. 575-586).
Os juristas e especialistas destacam ainda quatro pontos dentre as
muitas inovações que o Estatuto apresenta: a) a municipalização da po-
lítica de atenção direta; b) a eliminação de formas coercitivas de interna-
ção, por motivos relativos ao desamparo social; c) participação paritária
e deliberativa do governo-sociedade civil, assegurada pela existência de
Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos níveis federal, esta-
dual e municipal; d) hierarquização da função judicial, transferindo aos
conselhos tutelares, de atuação exclusiva no âmbito municipal, tudo o
que for relativo à atenção de casos não vinculados ao âmbito da infração
penal nem a decisões relevantes passíveis de produzir alterações impor-
tantes na condição jurídica da criança ou do adolescente.
À luz do Direito, o ECA representa um avanço sociojurídico sem
precedentes na história, outorgando não só à família e ao Estado a obri-
gação de proteger, com prioridade absoluta, as crianças e os adolescentes.
Trata-se de um dever de toda a sociedade. Contudo, sem desconsiderar
a importância da dimensão jurídica no processo de luta para melhorar
as condições de vida das crianças brasileiras, temos de admitir que, dez
38
anos depois de promulgado o Estatuto, vários direitos das crianças e
dos adolescentes são violados cotidianamente em nosso país.
Não é preciso muito esforço para constatarmos a exploração do
trabalho infantil, os altos índices de desnutrição, de abandono e de
prostituição, as ações violentas dos pais e da polícia, a delinqüência
juvenil etc. Por outro lado, além de objeto de diferentes tipos de abuso
– sexual, de autoridade, de violência física e social – as crianças, quan-
do conseguem ser incluídas nas instituições educacionais ou de saúde,
são ainda objeto de diferentes avaliações, seleções, classificações e
orientações. Trata-se, em suma, de novas formas de exclusão e de se-
gregação, que impedem sua consideração “de pleno direito em um dis-
curso” (ver LAURENT, 1999a, p. 101-103).
A fim de que o Estatuto não seja reduzido a um “formalismo abstra-
to”, é necessário que o governo e a sociedade civil se empenhem decidi-
damente em estabelecer “comunidades de discurso”, fortalecendo in-
tercâmbios entre diferentes experiências.
Por outro lado, o apelo ao universal, ao regime do “todos iguais”, à
uniformização – presente nas Declarações da ONU e no Estatuto – pro-
duzem tensões e dificuldades para os envolvidos com a clínica psicana-
lítica, para sempre destinada a ser uma ciência do particular, visando à
produção de um saber próprio e não a conformação às normas ou aos
ideais. Assim, tratar o sujeito a partir de referências gerais, sejam elas
quais forem – crianças, mulheres, homossexuais, toxicômanos – acaba
por reforçar os efeitos segregativos, uma vez que “não há comunidade
sem exclusão”.
As leis têm limites, estando impossibilitadas de regular a relação
particular de cada um com o gozo. Por isso, é possível destacar um
paradoxo presente no discurso do Estatuto: ao mesmo tempo em que
se concede a palavra à criança, segrega-se a particularidade dessa pa-
lavra (ver DUARTE, 1999, p. 82). Em outros termos, a definição do sujei-
to – a partir do seu ser social como cidadão – pressupõe um ajuste,
uma concordância entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enuncia-
ção, o que dificulta a possibilidade de reconhecer um “sujeito dividi-
do” como propõe a psicanálise, aspecto que desenvolveremos no próxi-
mo capítulo.
Nesse sentido, também é possível começar a entender porque os
psicanalistas não deixam de apontar o fracasso das “práticas que se de-
claram as mais humanistas e se articulam em nome do universal” (cit.
por LAURENT, 1999b, p. 7).
39
DE QUE SÃO RESPONSÁVEIS AS CRIANÇAS?
São cada vez mais freqüentes, no Brasil, as discussões sobre a dimi-
nuição da maioridade penal – atualmente são inimputáveis os menores
de 18 anos. Discute-se também, entre outros aspectos, a faixa etária mais
adequada para se tirar carteira de habilitação, para se fazer uso de bebida
alcóolica, para assistir a determinados espetáculos etc. Em geral, essas
discussões têm como foco os adolescentes e não as crianças, como se, de
fato, estas últimas se caracterizassem por sua falta de responsabilidade
frente à lei, social e jurídica.
O art. 105 do Estatuto estabelece que ao ato infracional (crime ou
contravenção) praticado por criança corresponderão às

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