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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rhyne, Janie Arte e Gestalt: padrões que convergem / Janie Rhyne [tradução Maria de Betânia Paes Norgren]. - São Paulo: Summus, 2000. Título original: The Gestalt art experience. Bibliografia. ISBN 85-323-0633-0 1. Arte - Psicologia 2. Gestalt (Psicologia) 3. Gestalt-terapia 4. Terapia artística I. Título Arte e Gestalt 99-0602 Índices para catálogo sistemático: 1. Arte e Gestalt: Aspectos psicológicos 701.15 2. Gestalt e arte: Aspectos psicológicos 701.15 Padrões que convergem JANIE RHYNE BDR EDITORA Compre em lugar de fotocopiar. Cada real que você dá por um livro recompensa seus autores e os convida a produzir mais sobre o tema; incentiva seus editores a encomendar, traduzir e publicar outras obras sobre assunto; e paga aos livreiros por estocar e levar até você livros para a sua informação e o seu entretenimento. Cada real que você dá pela fotocópia não autorizada de um livro o crime summus e ajuda a matar a produção intelectual de seu país. editorialDo original em língua inglesa THE GESTALT ART EXPERIENCE Patterns that connect Copyright 1996 by Magnolia Street Publishers SUMÁRIO Direitos desta tradução adquiridos por Summus Editorial Tradução: Maria de Betânia Paes Norgren Capa: Nelson Mielnik/Sylvia Mielnik Editoração: Acqua Estúdio Gráfico Apresentação à edição brasileira 9 Introdução à nova edição americana - Janie Rhyne 13 Metade do século XX 13 Escolhendo a vida 16 A era hippie 19 Grupo de treinamento experiencial 21 Os anos ativistas 21 Experiência gestáltica de arte 22 Associação Americana de Arteterapia 23 Prefácio - Joen Fagan 25 Summus Editorial Apresentação Joseph Downing 29 Departamento editorial: Introdução Janie Rhyne 31 Rua Itapicuru, 613 - andar 05006-000 - São Paulo - SP Parte 1 Fone: (11) 3872-3322 Fax: (11) 3872-7476 A Experiência de Arte em Processos Terapêuticos de http://www.summus.com.br Crescimento 35 e-mail: summus@summus.com.br Atendimento ao consumidor: 1. o que é experiência gestáltica de arte? 37 Summus Editorial Uma estrutura gestáltica 37 Fone: (11) 3865-9890 Experiência gestáltica de arte 39 Vendas por atacado: Meu imaginário particular 44 Fone: (11) 3873-8638 Fax: (11) 3873-7085 e-mail: vendas@summus.com.br 2. Experiências terapêuticas com arte 53 Ensinando e aprendendo com crianças 53 Impresso no BrasilTranspondo algumas lacunas 60 8. Vivendo com os outros 197 Espaço para ser você mesmo 197 Também/e 65 Nós e eles 72 Dividindo espaço 207 Fantasia no espaço 212 Riachos da vida 76 3. Crescendo com a experiência de arte 90 Parte 4 Usando a fantasia para encontrar a realidade 90 Usando a Experiência Gestáltica de Arte com os Outros 217 Pessoas em processo 99 9. Grupos de experiência gestáltica de arte 219 Suposições 219 Parte 2 Pacientes externos e outros 224 Experiência com Arte para o Contato e a Comunicação 123 Grupos em andamento 231 125 Sugestões a dirigentes de grupo 235 4. Tornando-se consciente (aware) e dando atenção Todos em processo 125 10. Trabalhando juntos 243 Funcionando plenamente 126 Fazendo um mundo 243 Imagens sombrias 129 Dez mundos 244 Percepções pessoais 132 Um mundo que explodiu 248 Memórias sensoriais 134 Construindo um mundo 255 5. Enviando e recebendo mensagens 139 Apêndice: Materiais 257 Visualizando o todo 139 Papel 257 Estilos de vida e de arte 141 Pastel seco, giz de cera 259 Conteúdo 142 Canetas hidrocor 260 Meio e expressão 144 Tinta para mural 260 Tinta nanquim 261 Parte 3 Colas 261 Usando a Experiência Gestáltica de Arte para si Mesmo 149 Pincéis 261 Argila 262 6. Fazendo o que vem naturalmente 151 Tesouras 262 Fazendo suas marcas 151 Estiletes 262 Diretrizes 154 Arames 262 Comece onde você está 156 Vários recipientes 262 Usando a linguagem da arte 159 Rabiscando 161 Posfácio - Janie Rhyne 264 Símbolos 164 Transições 264 Animando a você mesmo 168 Procurando e encontrando tempo sozinha 265 Cibernética na arteterapia 267 7. Conhecendo-se melhor 176 Tributo 272 Invadindo sua própria privacidade 176 Movendo-se com sua direção 178 Bibliografia das publicações de Janie Rhyne 275 Criando sua própria imagem 180 Você no curso da sua vida 187 Bibliografia 277A EDIÇÃO BRASILEIRA Tive o privilégio de conhecer Janie Rhyne pessoalmente em 1978, na IX Conferência da Associação Americana de Arteterapia, em Los An- geles. Impressionou-me sua forma provocativa, inteligente, ao mesmo tempo que charmosa e cativante de apresentar suas idéias. Na época eu estava no meio de um mestrado em arteterapia na Universidade da Ca- lifórnia, Sacramento, onde encontrei uma orientação analítica predomi- nantemente diagnóstica que não me entusiasmou. Ao vê-la e ouvi-la falar nessa conferência me encantei. Era o que eu estava procurando! Eu já conhecera a abordagem da Gestalt-terapia alguns anos an- tes como cliente, no início da década de 1970, sentindo-me fascinada pela sua proposta existencial e pelo seu impacto mobilizador e trans- formador. Havia vivenciado a qualidade profundamente reveladora do mergulho na emoção e na experiência direta proporcionados pelos experimentos propostos, assim como a qualidade da presença envol- vida, genuína e mais horizontal da relação terapêutica. Comparada às sessões de terapia mais convencionais que eu havia experienciado, a Gestalt-terapia me parecera absolutamente revolucionária e inovado- ra. Havia também estudado arteterapia em Israel com o prof. Peretz Hesse, por intermédio de quem tive os primeiros contatos com os fun- damentos básicos da fenomenologia, abordagem que provocara uma ruptura na epistemologia científica tradicional. Com ele estudei a postura fenomenológica em arteterapia, e o método, ex- tremamente criterioso, de abordar a delicada questão das interpreta- ções e atribuições de significado. 9Assim, ao conhecer Janie Rhyne, senti que havia encontrado al- pela sua compreensão da abordagem gestáltica, ela acreditava que o guém que integrava com maestria dois referenciais terapêuticos, que ele realmente quis dizer foi "come to your senses in order to get epistemológicos e filosóficos pelos quais eu me havia apaixonado. to your mind" ou seja, chege aos seus sentidos para chegar ao men- Não tive muita oportunidade de conversar com ela naquela conferên- tal, integre as sensações com o pensamento. cia, mas procurei ler tudo o que escrevera até aquele momento, e, E em A experiência gestáltica de arte, como bem aponta Joseph empolgada com seu trabalho, escrevi ao Instituto de Terapias Ex- Downing no Prefácio, ela alcança essa integração com uma inteireza pressivas da Universidade de Lousville, Kentucky, onde ela estava exemplar. Janie vai entrelaçando com incrível honestidade e compe- ensinando, perguntando-lhe sobre a possibilidade de aprender com tência memórias pessoais, relatos de suas experiências com arte e ex- ela o que me parecia fascinante: a integração da Gestalt-terapia com pressão, relatos de casos, comentários sobre seus processos internos a arteterapia. como facilitadora e terapeuta dos processos individuais e grupais de Generosamente ela me ofereceu não só uma bolsa de estudos seus clientes, com suas percepções, fantasias e considerações teóricas para os cursos intensivos de pós-mestrado em arteterapia, que estaria sobre esses processos, sem dar maior destaque a nenhuma das partes inaugurando no verão de 1979 com as outras duas professoras do Ins- desse todo em particular, mas fluindo de um componente ao outro, tituto, Vija Lusebrink e Sandra G. Kagin, como também o sofá de sua atenta à Gestalt total dessa interação. Apesar de este livro ter sido es- casa para pernoitar, caso eu quisesse ir lá por alguns dias apenas para crito em 1973 no estilo solto e sem maiores preocupações pedagógi- conversarmos. Fiz com ela, neste programa, dois cursos teórico- cas de estruturação conceitual que caracterizavam a época, ao vivenciais "Formas de Comunicação Expressiva" e "Desenhos como cuidadosamente, para a revisão desta edição em português, surpreen- Construtos Pessoais" um desdobramento de sua tese de doutorado deu-me perceber quão atual ele é, e quanto dos fundamentos básicos de 1977, configurada como uma rigorósa pesquisa empírica sobre a da abordagem que Janie desenvolveu posteriormente como Artetera- compreensão de formas visuais de expressão. Este mês de cursos pia gestáltica já estão firmemente implantados e presentes nesta obra: intensivos foi sem dúvida uma experiência absolutamente decisiva, o respeito e a genuína curiosidade pela singularidade de cada um, a enriquecedora e formadora em minha vida. Sua forma de relacionar- postura fenomenológica e não-interpretativa na leitura dos traba- se com questões intelectuais caracterizava-se por ser sempre muito lhos produzidos, a importância de observar e relacionar-se tanto com criativa, sagazmente crítica, questionadora, independente e cheia de a linguagem das formas quanto com a linguagem simbólica, e tanto sabedoria. Líamos dois a três artigos e capítulos densos de uma dia com o processo quanto com as reflexões posteriores sobre este pro- para o outro, muitas vezes até altas horas da noite, preparando-nos cesso, a ênfase nos princípios da Psicologia da Gestalt de procurar para discuti-los em suas aulas com prazer e entusiasmo. perceber a configuração total das partes que constituem um todo ao Uma das impressões mais fortes que me ficou dela é a de alguém em vez de cada parte isoladamente, a crença no poder da atividade que teve a coragem de desafiar padrões preestabelecidos e ousou vi- expressiva de ser tanto um processo integrador como fonte de apren- venciar de forma plena aventuras e experiências das mais diversas na dizado sobre si mesmo. vida, o que ela tão bem relata neste livro. Conversando com ela infor- Janie participou ativamente dos congressos anuais da Associação malmente ao sabor de um copo de vinho nas noites de Louisville, es- Americana de Arteterapia AATA, e de várias de suas comissões (de cutávamos fascinadas suas experiências em pequenas aldeias na educação, de pesquisa etc.), recebendo em 1980 o título de Membro Espanha e no México, em comunidades experimentais de artistas, no Honorário Vitalício da Associação. Seu espírito sagaz e inquieto a famoso bairro de Haigh-Ashbury em São Francisco, nos conturbados fazia estar sempre buscando novas fronteiras. Em 1993, na XXIV Con- meios universitários da década de 1960, e também em Esalen, onde ferência Anual da AATA, com oitenta anos, apresentou o que antevia conheceu e trabalhou com Fritz Perls. Aliás, comentando a famosa como novas perspectivas para a arteterapia, trazendo contribuições frase atribuída a Fritz "[...] lose your mind in order to get to your sen- dos campos da filosofia, da psicologia, da história da arte, da biolo- ses" i.e., "perca a cabeça, a lógica, o racional para chegar aos seus gia, da antropologia e até da paleontologia e da cibernética (Luse- sentidos", Janie costumava dizer que pelo contato que teve com ele e brink, 1995). 10 11Soube de sua morte por uma página em sua homenagem que foi publicada logo a seguir no boletim Newsletter da AATA. Nesta página, Celia Thompson-Taupin, gestalt-terapeuta e arteterapeuta que teve in- tenso contato com Janie durante vários anos, a descreve com palavras que imediatamente me fizeram sorrir e lembrar: ela era assim mesmo! Eis o que Celia escreveu: INTRODUÇÃO À NOVA EDIÇÃO AMERICANA Janie tinha segurança interna suficiente para achar diferenças interes- santes em vez de Nenhum conceito intelectual ou po- lítico obscureciam para ela a realidade especial de cada pessoa. Ela era alérgica a generalizações. De suas idéias e sua obra ficaram com certeza muitos frutos e se- mentes. Uma delas veio comigo para o Brasil, e, desenvolvendo-se em São Paulo, resultou no curso de especialização em arteterapia (curso de abordagem gestáltica), do Instituto Sedes Sapientiae, hoje com dez anos. Assim, é com especial emoção que escrevo esta Apre- Quase um quarto de século se passou desde a primeira edição de sentação. Arte e gestalt: padrões que convergem. Nesse período, houve muitas mudanças na nossa cultura, na prática da arteterapia e no como faço Selma Cornai ATR., Ph.D. o que faço. Por isso esta nova edição. texto original não foi altera- Psicóloga, Gestalt-terapeuta e arteterapeuta; membro do. Contudo, acrescentamos seções extensas no início e no final um profissional credenciado da AATA Associação Americana Prefácio e um Posfácio. No Prefácio, escrevi sobre as transformações de Arteterapia; fundadora e professora do curso de pessoais e culturais que ocorreram nas décadas de 1950 e 60, vistas à especialização em arteterapia do Instituto Sedes Sapientiae. luz da compreensão tardia da década de 1990. Escrevendo este Pre- fácio sobre minha jornada pessoal, voltei inicialmente ao final dos anos 60 e terminei com como a Experiência Gestáltica de Arte tor- nou-se central na minha vida. Acrescentei como descobri que era uma arteterapeuta, diferindo de algum modo na prática, mas tendo muito em comum com outros profissionais filiados à Associação America- na de Arteterapia (AATA). Tenho sido um membro ativo da AATA desde 1969, colaborando com muitos amigos e colegas dessa associa- ção e enriquecendo-me com esses contatos. O Posfácio relata as novas diretrizes na minha vida e no meu tra- balho, que se iniciam no começo da década de 1970. Lusebrink, V. "Janie Rhyne, em A Tribute to Janie Rhyne 1913-1995, Ph.D., METADE DO SÉCULO ART., HLM". Arte Therapy, Journal of the American Art Therapy Association, vol. 12, n° 2, 1995. Thompson-Taupin, C. "Janie Rhyne, Ph.D., ATR., HLM Life Celebration". Pode parecer que essas poderiam estar muito bem or- AATA Newsletter, abril, 1995. ganizadas de forma linear, mas evidentemente não estão. Apesar de as 12 13datas do que aconteceu poderem ser colocadas nos moldes de um ca- nho a muitos de vocês. Talvez você fosse muito jovem para conhe- lendário, os padrões de encadeamento das idéias, experiências e awa- cer esses anos experiencialmente talvez nem fosse nascido! Ou, reness* não se ajustam tão claramente. Nos meus sonhos, assim como talvez, também tenha estado lá não necessariamente no mesmo nos seus, o tempo não é seqüencial, nem é, necessariamente, relativo tempo e lugar e suas experiências não sejam muito diferentes das ao presente. Algumas vezes, mesmo quando estamos plenamente acor- minhas e das dos outros cujas histórias são contadas neste livro. dados, sentindo, pensando e agindo como se estivéssemos no "aqui e Mas pode ser que seus construtos reflitam um sistema de valores agora", há uma percepção de que essa realidade física e cronológica completamente estranho ao meu. Isso deve ser esperado e estimu- mascara a awareness de uma realidade mais profunda na qual tempo lado; sem a individualidade, nós, Homo sapiens, jamais teríamos e espaço não são definitivos. É difícil expressar esse conceito em pa- criado a civilização infinitamente complexa na qual, bem ou mal, lavras. Ele é mais bem expresso e comunicado pelas diversas lingua- estamos inseridos. gens de arte: artes visuais, dança, música e poesia. A imagética não é Quando tentamos nos situar na nossa história de meados do sé- restrita ao sentido mais mundano de "aqui e agora". Mensagens em culo XX, compreendida em termos de décadas, não podemos separá- imagens pessoais são comunicadas em configurações de tempo e es- la totalmente. Se começarmos com a década de 1950, precisamos paço que contestam a organização linear das "onde e quando" ou "causa e efeito". nos referir à de 40, quando tentávamos encontrar a saída para a De- pressão de 30. novo plano de administração econômica de Roose- No entanto, é também pela linguagem verbal que a espécie hu- velt buscava aliviar o desemprego e a fome, mas grandes mudanças mana pode comunicar não só fatos e figuras, mas também narrativas vieram com a nossa participação na Segunda Guerra Mundial. e Podemos e devemos nos comprometer com o discurso ver- bal. Embora sejamos todos indivíduos, não estamos isolados e não Pagando um preço trágico em vidas humanas, o fim dos anos 40 con- duziu à prosperidade dos anos 50. Os veteranos retornaram, as mu- temos de estar. Precisamos conhecer uns aos outros, reconhecer o que lheres deixaram seus empregos de tempo de guerra, voltaram a ser temos em comum assim como o que nos diferencia. No nosso discur- donas de casa e instalou-se o conservadorismo. A taxa de nascimen- so, não somente aprendemos e ensinamos, mas compreendemos que tos cresceu, o número de divórcios a família nuclear era fazemos parte de uma configuração que sempre se transforma. Muito a ideal. As crianças cresciam com mais dinheiro do que liberdade, dessa compreensão é expressa não-verbalmente, mas precisamos da linguagem simbólica das palavras para nos ajudar a dar sentido às educadas para sustentar a "retidão" dos valores conservadores. Ao redor, havia os beatniks, que não eram realmente rebeldes, apenas nossas experiências e crenças. É importante que escutemos as histó- rias que contamos uns aos outros. fora dos padrões, e muitas pessoas estavam em processo psicanalíti- co. Próximo ao final da década, a "perversidade polimorfa" era um O que escrevo aqui é a minha história, de acordo com minhas termo comum para descrever pessoas, e especialmente os jovens percepções sobre as idéias e os fatos da minha vida pessoal e pro- fissional. Relato os fatos que ocorreram em meados do século XX que se tornavam ousados. Mas não eram só os jovens. Garry Wills numa edição especial de aniversário da Newsweek (3 de janeiro assim como os percebi por meu sistema de construtos. Algumas coi- 1994, p. 40), escreveu: sas que conto, ocorreram num contexto cultural que pode ser estra- Os anos 60 separaram os tempos. Só a Guerra Civil e as duas Guerras Mundiais dividiram tão claramente nossa história em * Awareness é um dos conceitos fundamentais da Gestalt-terapia, que se tornou Antes e Depois. E os anos 60 foram ainda mais divisórios do que comum entre os profissionais de gestalt e, por isso, optamos por não traduzi-lo Se- gundo Gary Yontef, em Gestalt-terapia fenomenológica clínica, p. 213, "Awareness a Segunda Guerra Mundial, que uniu as pessoas para o esforço é uma forma de experienciar. É o processo de estar em contato vigilante com o even- de guerra. A década de 1960 separou as pessoas maridos das to de maior importância no campo com total suporte sensoriomotor, mulheres, crianças dos pais, estudantes dos professores, cidadãos emocional, cognitivo e energético". Trata-se de uma consciência não só cognitiva, do seu governo. A autoridade foi fortalecida na Segunda Guerra mas também afetiva e sensorial, uma consciência (N. do E.) Mundial. E foi desafiada nos anos 60. 14 15ESCOLHENDO A VIDA quase nada, vários hectares de terra cultivável, abandonada há muito Desafiei a autoridade dos anos 50 colocando em ação meu res- tempo por fazendeiros. A construção de uma represa no rio para uma sentimento latente às limitações dos valores conservadores da hidrelétrica impediu que os barcos pudessem transportar tanto a pro- família ao conformismo e à aceitação das convenções sociais como dução quanto as pessoas para dentro e para fora do seu vale. Mora- o melhor modelo para o que eu fazia ou mesmo para o que eu pen- mos nas várias construções antigas que lá estavam. Uma vez por sava e sonhava ser. Minha ruptura deu-se no início dos anos 50, mês, tirávamos um dia inteiro para "atravessar as montanhas" e com- quando eu estava com 40 anos. "Adolescência tardia", diziam a fa- prar o que não podíamos produzir ou plantar. De um modo geral, mília e os amigos, preocupados e querendo saber por que eu parecia porém, realmente sobrevivíamos da terra. Pomares de árvores frutí- estar desistindo de tanto e para quê? Um amigo especial, um judeu feras continuavam produzindo, assim como o bosque de nogueiras; mais idoso, compositor e pianista, a quem chamavam "Poofie", dei- desse modo nos tornamos produtores de alimento. "Simplicidade" era o lema nenhum telefone, rádio ou televisão; água corrente so- xara sua mulher ariana em Viena para protegê-la, assim como a si mente de um canal que vinha de um riacho da montanha; banheiro próprio, do nazismo de Hitler. Ele entendeu quando lhe contei que fora; fogão de lenha para cozinhar e aquecer. Nosso objetivo era coo- não estava procurando por felicidade ou mesmo por liberdade; sim- plesmente queria ter a minha experiência de vida. Ele sabia, também, peração e ajuda mútua para que cada pessoa tivesse tempo livre para "ser artista". Algumas pessoas escreviam livros, poesias e filosofia; o que eu queria dizer quando tentava pôr em palavras a necessidade Jack e eu pintávamos. Eu me divertia com isso; até tive uma galeria da arte ser uma parte natural da minha vida nem para ser alar- "além da montanha". Jack tornou-se um "artista reconhecido", mas deada, nem para ser desculpada. A arte de Poofie, compor músicas, numa cidade distante. Ele passava cada vez mais tempo lá. Após dois estava na sua mente o tempo todo; onde quer que ele morasse, esse anos, ele deixou a comunidade e a mim. Fiquei sozinha diante de senso de continuidade estava nele. Eu queria algo assim para mim. uma decisão que não queria tomar. Viajei, voltei, desci e subi, a Pessoas, muitos homens e algumas mulheres, libertaram-se como eu Costa Oeste, entre a "Fazenda" e as cidades. No meu coração e na fiz. Encontrei muitos outros companheiros de jornada, da mesma minha mente, queria tempo e tempo sozinha para pintar, mas queria faixa etária, em comunidades de estrangeiros no México, na Espanha a comunidade também. ano era 1964, eu sabia que as rupturas cul- e no Para alguns "ser um artista" era "Criati- turais pelo país estavam levando muitos dos rebeldes para a Califór- vidade" era o lema: para outros, o objetivo era ser um artista reco- nia. Eu queria participar ativamente desse movimento. Acreditava Jack, meu segundo marido, era um homem muito criativo e que tinha algo a oferecer. Mudei-me para São Francisco. Só parcial- queria muito ser reconhecido como pintor. Minha filha e meu filho mente admitia que havia me mudado para trabalhar com pessoas em adolescentes também aspiravam realizar-se artisticamente no tea- "relações de ajuda". tro e em salas de concerto. Durante cinco anos nós quatro vivemos Admitir que queria ajudar outras pessoas significava reconhecer juntos como uma família, improvisando nossos próprios valores en- o quanto eu mesma precisava de ajuda. Encontrei isso no "San Fran- quanto íamos adiante. Estes anos foram cheios de experimentos e cisco Venture". No livro Turning on (1969, p. 238), Rasa Gustaittis deslumbramentos, o que fazíamos algumas vezes parecia loucura. descreve Venture como: Todavia, nossa experiência como indivíduos e como um sistema fa- miliar era para valer. Quanto a mim, aprendi o que significava estar- Uma comunidade frouxamente entrelaçada, formando uma rede de grupos de encontros contínuos. É uma comunidade religiosa, Quando meus filhos saíram em busca de seus próprios caminhos porque seus líderes têm em mente que o encontro entre o Eu/Tu como adultos, Jack e eu nos interessamos em entrar para uma "co- conduz a questões normalmente chamadas de espirituais. Exceto munidade intencional". Juntamo-nos a outras pessoas no oeste do isso, religião não é muito discutida e trabalhos teológicos são Nós a chamávamos de "Fazenda" porque compramos, por evitados. 16 17Entrei para a Venture como participante em grupos de encontro A ERA HIPPIE contínuos e fui convidada a ser co-terapeuta em outros. Comecei a co-dirigir grupos de "Experiência de Arte" com o psicólogo Miles Durante a "Era Hippie", muitos de nós morávamos e trabalhá- Vinch, que, às vezes, se prolongavam por meses. Nesse mesmo perío- vamos em Haight-Ashbury. lugar, o tempo, a cultura eram, cada do, co-dirigi outros grupos, que se prolongaram por dezoito semanas. um, uma configuração de padrões em constante mudança aparente- Meu co-terapeuta era John Levy, um quaker, como mente fortuita, algumas vezes caótica, em geral como uma gravura de eu, e um homem maravilhoso que me ajudou a encontrar o caminho M. C. Esher - ambígua, incongruente, de dimensões contraditórias. que eu estava procurando. Rasa descreve um grupo dirigido por John Ainda assim, havia um padrão no nosso modo de vida, e aqueles de e por mim, denominado "Escolhendo a vida". Ela escreveu que a nós que eram "pessoas em processo" sentiam o ritmo e os liames que maioria dos participantes era: nos ligavam a um altruísmo silente. Isso era, em grande parte, expres- e comunicado em forma de arte; murais nas calçadas, paredes pin- [...] de classe média [...] atraídos e estimulados pelos hippies, tadas, esculturas improvisadas podiam aparecer em quase todo lugar. mas para quem estes eram loucos demais. Mesmo que desejas- Todo tipo de pessoa pintava; alguns faziam arte "psicodélica" em "es- sem se tornar hippies, não saberiam como fazê-lo. Então, Ventu- tados alterados", outros simplesmente arte decorativa, e outros, ainda, re tornou-se um pequeno passo nessa direção. (p. 238) para catarse. Havia música nos parques, luzes psicodélicas em salões, nas ruas; em qualquer lugar ouvíamos tocar tambores, guitarras e Muitos dos participantes dos grupos de Venture eram de "clas- flautas. Ainda sinto saudade do arranhar das guitarras, da batida dos se média", mas Rasa estava enganada com relação a quantos de nós tambores e do trinado das flautas. era também "hip". Não somente em Venture, mas também em ou- Ainda sinto saudade também do modo simples como arte e em- tros grupos sociais e profissionais, muitas pessoas não apenas se patia estavam ligadas. Uma noite, numa das salas do fundo da Clíni- voltavam para o movimento hippie, como se associaram a ele. ca Gratuita, onde as pessoas sofrendo os efeitos de uma "viagem Haight-Ashbury, antes da metade dos anos 60, era um bairro calmo ruim" com LSD podiam se sentir seguras, e onde eu ia somente para e bem-integrado da cidade; muitos alguns afro- escutar e confortar, dei-me conta de que a mulher sentada no chão, do americanos e uma mistura geral de caucasianos, que poderiam ser outro lado da sala, era Joan Baez. Em baixa, cheia, não destina- divididos em trabalhadores e classe média, mas esse não era um da ao palco, não esperando aplausos, simplesmente sentava-se no problema. Havia muitos parques e grandes casas vitorianas antigas, canto escuro e cantava. Os "maus viajantes" não sabiam quem ela só parcialmente modernizadas. A comida era barata nos pequenos era, mas ouviam-na e se A Clínica Psiquiátrica Lan- cafés, muitos deles orientais. Os aluguéis eram baixos. O antigo dis- gley Porter também tinha uma sala escura, aberta dia e noite, onde os trito comercial, composto em sua maioria por proprietários de seus "maus viajantes" podiam ficar até "voltar à terra". A polícia com fre- próprios negócios, era perto o suficiente para se ir a pé. Um lugar qüência trazia para este lugar pessoas da rua, temporariamente fora de agradável, aberto o suficiente para aceitar ou apenas ignorar, por si, em vez de colocá-las na cadeia. Eu tinha materiais artísticos Al- algum tempo, as mudanças que aconteciam quando não só os hip- gumas vezes os "viajantes" podiam desenhar e conversar, enquanto pies mas todos os tipos de pessoas iam e vinham. Traficantes de eu olhava e ouvia; outras vezes, eles emergiam de seus estados alte- drogas e a polícia entravam e saíam. No parque havia comícios por rados exaustos, mas serenos. Os voluntários da Clínica Gratuita fica- uma infinidade de causas, e com isso organizadores, assistentes so- vam lá, geralmente cuidando de um problema mais comum - pés ciais, psicólogos e doutores... e todo tipo de terapeutas. Um subco- inflamados. Muitos dos hippies, em especial os mais jovens, insis- mitê do Senado veio avaliar, mas não ficou muito tempo. Outras tiam em andar descalços - liberdade maravilhosa no campo e na pessoas mais flexíveis, com uma orientação mais sociológica, não praia, mas nas ruas das cidades havia cacos de vidro, fragmentos de recuaram; ficaram por lá, fundando centros de apoio e oferecendo ajuda clínica e psicológica. metal e muitos germes. Portanto, havia muitos pés infeccionados. médico tratava-os sem repreendê-los muito sobre serem sensatos e 18 19usarem sapatos. Eles não queriam ser sensatos. Queriam rebelar-se GRUPO DE TREINAMENTO EXPERIENCIAL contra as restrições, andar livres e soltos. E na Off-Ramp, "fora das drogas", as sessões de psicodrama, o psicodrama era feito com a maior seriedade. Quando lá estive, aos 50 Os grupos de Experiência Gestáltica de Arte ainda continuavam cheios de participantes dispostos, mas as suas expectativas e objeti- anos, era sempre escolhida para representar o papel de "mãe", na maioria das vezes a Tornei-me boa vos também eram mais direcionados. Embora quisessem a Embora os membros de Haight-Ashbury parecessem agrupados cia artística" pela experiência em si, muitos deles consideravam-na aleatoriamente, durante alguns anos formamos uma entidade livre, uma parte do seu treinamento com "profissionais em relações de um tipo de tribo sem tradições, criando padrões à medida que prosse- ajuda". Compreendi que meu papel também estava mudando, de "guia" guíamos. Críticos do "cenário das drogas" geralmente não escreviam na busca de autoconhecimento para o de educadora e supervisora de sobre atividades comunitárias que não utilizavam drogas. Por certo, terapeutas. No final dos anos 60, eu havia acumulado muitas horas de exten- muitos hippies assaram seus biscoitos de chocolate com marijuana SO e intenso treinamento supervisionado para minha atuação como te- mas também torravam farinha de aveia doada para misturar com pas- rapeuta, necessárias para atuar como docente sênior do Instituto sas, nozes e sementes de girassol para ser distribuído gratuitamente Gestáltico de São Francisco. Também dedicava, no mínimo, seis horas como granola para o café da manhã. Eles também assavam pão e co- zinhavam panelas imensas de ensopado vegetariano, distribuido gra- por semana trabalhando como coordenadora de grupo no São Francis- tuitamente para as pessoas que pediam à noite nas esquinas. Havia Venture. Venture também exigia participação integral e extensa em alimentação para o corpo físico, mesmo para aqueles que estivessem dinâmicas de grupo, antes de permitir que uma pessoa assumisse o procurando transcendência no campo metafísico. Não importava em papel de dirigente de grupo. Assim, passei a maioria dos meus fins de que viagem a pessoa estivesse, o velho ditado que alimento é vital semana em contextos grupais: muitos tipos de processo, dos confronta- tivos jogos Synanon a aprazíveis workshops junguianos de interpreta- para manter corpo e a mente sãos era uma necessidade básica, cui- dada ao menos em parte por algumas pessoas que simplesmente co- ção de sonhos. Também sobrevivi à participação em maratonas: vestida zinhavam refeições para os outros. ou nua, 48 horas sem dormir gastas em "resolução de conflitos" ou Nossa comunidade de meados dos anos 60 com sua nutrição, edu- "awareness sexual" era exaustivo. Aprendi muito sobre mim e sobre os cação, arte, música, altruísmo e procura espiritual não era ideal. Seu outros e preenchi minha cota de perspectivas de orientação para gru- modelo empírico tinha as bordas falhas, mais improvisadas que plane- pos. Era tempo de mudança para mim também. jadas. Contudo, apesar dessa configuração não ter limites definidos, parecíamos ter um senso de como as partes mutáveis se relacionavam. ANOS ATIVISTAS Os acontecimentos, as aparências e os sons eram familiares para nós. Mas o início dos anos 70 trouxe mudanças. As pinturas nas cal- Garry Wills encerra seu comentário sobre os anos 60 com estas çadas e nas paredes tornaram-se mais "grafitadas", mais ousadas, mais diretas, com motivos políticos. Os sons da música de rua, fundo palavras: "Os anos 60 também não foram 'bons velhos não há 'bons velhos tempos'. Mas muito do que é bom à nossa volta teve da vida diária, tornaram-se cada vez mais inaudíveis, à medida que sua origem nesse período perturbado e perturbador". (Newsweek, os recém-chegados bandos de motociclistas aceleravam suas máqui- 1994, p. 41). Acredito que isso seja verdade para muitos dos nossos nas, que os impulsionavam para a frente em linha reta, intensa e es- cura. Outros movimentos, menos ameaçadores, direcionados e mais padrões culturais e para muitas pessoas que conheci naquela época e conheço agora. No curso da minha vida, muito do que é bom, tanto correntes surgiam. "Verão do Amor" foi sendo gradualmente subs- tituído por uma atmosfera que pleiteava ativismo social e a marcha pessoal quanto profissionalmente, "teve sua origem" nos anos 60. pela paz. A juventude florida agora carregava bandeiras em vez de Não me filiei a nenhum movimento político, embora aplaudisse suas flores. realizações mesmo que me assustasse com algumas das suas ações. Minhas experiências dos anos 60 foram mais com a "juventude flori- 20 21da", seus pais e outros, cujas rebeliões eram mais desorientadas do que direcionadas a uma "causa" Em algum momento maioria era profissionais em treinamento e colegas. Os desenhos não durante esse período, eu soube com certeza que queria me tornar uma foram feitos como ilustrações para o livro; o trabalho de arte foi cria- terapeuta e educadora e centrar minha vida exercendo essa profissão. do em grupo e em sessões individuais, nas quais eu era a facilitado- Desde então, meu "ativismo" tem sido em direção a esse objetivo. ra, professora, mentora, terapeuta qualquer que seja o título que se Muito do meu treinamento foi em programas de psicologia hu- considere mais apropriado. Claro que as pessoas deram sua permis- manista, mais especificamente em Esalen, aprendendo com Fritz são escrita para a publicação; mas deram muito mais do que A Perls o seu modo de fazer Gestalt-terapia. Com colegas de treina- publicação é realmente uma configuração de partes que interagem. mento e prática, aprendi, em numerosos workshops experienciais, Dentro dela, sou uma parte do todo, mas nem sempre a figura; algu- variações sobre o tema da orientação humanística em relação ao mas vezes, simplesmente estou em algum lugar do fundo; a vida de como trabalhar com alunos e clientes. Fui uma das três fundadoras outra pessoa está em primeiro plano. E é assim que deve ser. Nesta do Instituto de Gestalt de São Orgulho-me Os versão atualizada de Arte e gestalt: padrões que convergem nada do workshops de "Experiência de Arte" que começaram em Venture original foi mudado. Houve acréscimos - no início e no final -, mas continuaram como workshops de "Experiência gestáltica de arte". o que escrevemos há 25 anos foi reimpresso como havia sido antes. Também coordenei esses workshops no meu em Haight- Uma coisa não havia na nossa Gestalt naquele tempo, embora tenha Ashbury e no Instituto de Gestalt de São Comecei a dar feito parte da minha vida desde então, e acredito ser uma boa hora para fazer uma atualização a respeito antes de prosseguir. cursos com essa abordagem em toda a Costa Oeste, em seguida na Costa Leste e depois no sul dos Estados Unidos. Estava ativamente envolvida em dirigir workshops no Canadá, Alemanha, ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE ARTETERAPIA Bélgica, Suécia e Noruega, aprendendo, viajando e estando com todo tipo de pessoa. Trabalhei também em clínicas e hospitais psi- quiátricos, adaptando a abordagem gestáltica às necessidades dos Frequentemente sou apresentada como "uma das fundadoras da pacientes e funcionários. Associação Americana de Arteterapia". Isso não é verdade. Na reali- A minha base continuava sendo o norte da embora no dade eu não sabia que essa organização estava em formação até ela já final dos anos 60 eu tivesse mudado para um lugar 60 milhas ao sul, estar fundada. Não sabia que a profissão de arteterapeuta existia en- quando Haight e mesmo São Francisco me pareceram um pouco ativos quanto escrevia Arte e gestalt: padrões que convergem. O Prefácio de demais. Arte e Gestalt: padrões que convergem foi escrito na minha Joen Fagan refere-se à arteterapia mais como um trabalho adjunto à casa pré-fabricada e estúdio pendurados no alto de um morro, mas o psicanálise e era nesse contexto que eu pensava em seus profissio- livro é principalmente sobre as pessoas, os grupos e os acontecimentos nais. Encontrei muitos terapeutas ocupacionais entre os profissionais em São Francisco: em Venture, em Haight e no Instituto de Era dos quadros de funcionários das instituições em que dei cursos de mais tranqüilo nesse novo local, mas amigos, colegas e clientes tam- treinamento, e colaborei com psiquiatras e psicólogos que usavam bém iam para lá e esse tempo é rico nas minhas lembranças. arte em seus próprios atendimentos. Algumas dessas pessoas taram meus workshops. Mas esta era a extensão da minha familiari- dade com a área até receber uma carta da Associação Americana de GESTÁLTICA DE ARTE Arteterapia (AATA) convidando-me a tornar-me um membro e ofere- cendo incluir-me na condição de "Arteterapeuta Registrada". Aceitei convite e encomendei imediatamente todos os números atrasados Embora como autora do livro eu tenha escrito bastante a meu res- peito, a sua riqueza vem da colaboração de muitas outras pessoas. Os do American Journal of Art Therapy e do anterior Bulletin of Art The- seus trabalhos de arte e a expressão verbal de suas emoções e pensa- rapy (até 1961), ambos publicados e editados por Elinor Ulman. mentos dão vida a ele. Algumas dessas pessoas eram clientes, mas a Acrescentei essas publicações à minha bibliografia, mas era muito tarde para incluir referências no texto. Enquanto meu livro estava no 22 23prelo, tornei-me um membro ativo da AATA e o sou até hoje; mas essa é uma outra história, longa demais para esta Introdução. Contudo, não resisto à tentação de contar a história do meu primeiro, e ativo, con- tato com a diversidade na AATA pelo espírito entusiástico de Elinor Ulman. Visitei-a no seu apartamento em Washington, DC, por três dias, que nunca esquecerei. Como duas senhoras idosas, trocamos re- PREFÁCIO ceitas de patê de frango, bebemos gim-tônica e só então passamos à questão mais séria: discutir arte e terapia. Ela, com sua postura psicanalítica, e eu com minha orientação humanística e gestáltica, tínhamos tantos pontos de vista diferentes que conversamos noites adentro. E A nossa amizade desde então, e até a sua morte, sempre incluiu discussão, risadas e respeito. Encerro esta Introdução com uma homenagem à honestidade, cortesia e integridade de Elinor Ulman, e com um sorriso cúmplice de apreço por seu estranho, e lin- damente expresso, reconhecimento dos absurdos da vida. Janie Rhyne, 1994 Quando pensamos em comunicação seja com outras pessoas, seja com nós mesmos, normalmente pensamos em palavras: faladas, escritas, brotando em nossa cabeça. Esses são os meios, parece, pelos quais as mensagens realmente importantes são enviadas. A fim de fa- cilitar a comunicação, tanto com os outros quanto conosco, a terapia confiou tradicionalmente nas palavras. paciente fala, o terapeuta escuta, o terapeuta fala... Entretanto, Freud deu sua maior contribuição tanto para a teoria da personalidade quanto para a terapia prestando atenção às outras mensagens, além das mensagens verbais óbvias e diretas. Focalizan- do sonhos, imagens, alucinações e lapsos verbais - todas mensagens anteriormente rejeitadas pela ciência como sem sentido ou insignifi- cantes ele iniciou uma nova linguagem com poder mais profundo para ajudar a entender a personalidade. Ainda que o seu tratamento fosse denominado de "a cura pela fala", ele insistia com seus pacien- tes para que também relatassem as imagens dos seus sonhos, as quais ele declarava ser "a estrada real para o inconsciente". Também usou a nova linguagem para entender as pessoas criativas e fez longas aná- lises das imagens produzidas por grandes artistas, como Da Vinci e Michelangelo nas suas pinturas e esculturas. Parece que faltaria um pequeno passo para Freud pedir a seus clientes que se expressassem de forma gráfica, tal como de forma verbal, passo esse, contudo, que ele nunca deu; continuou a estudar as imagens em seus esforços para entender a personalidade, mas a usar as palavras para auxiliar mudan- na personalidade. 24 25Assim, seguindo Freud, outros terapeutas fizeram pouco ou ne- testemunhamos o desenvolvimento e a facilitação de formas alternati- nhum esforço para usar a arte ou outras técnicas não-verbais para fa- vas de comunicação por uma pessoa que está familiarizada com a va- cilitar o Mesmo os poucos terapeutas, como Naumberg, riedade de materiais e pode escolher formas apropriadas de auxiliar a que estimulavam os pacientes a expressar-se em vários materiais ar- tísticos, em geral ainda viam a arte como valiosa para auxiliar o tera- expressão e provocar o crescimento. A arteterapia, como apresentada aqui, pode ser usada com pes- peuta a entender os problemas ou o progresso do paciente ou para a soas normais, cujo desejo principal é explorar novas formas de ex- catarse generalizada, por exemplo, quando uma criança que é rígida pressão e prazer, assim como com pessoas com distúrbios graves, ou que suprime a sua raiva pode, em ludoterapia, ser encorajada a usar pintura a dedo para "soltar e sujar". para quem todos os canais usuais de comunicação estão bloqueados. Idade, formação ou nível de habilidade artística não apresentam bar- Por outro lado, o ensino de arte - às vezes uma parte da terapia reiras ou limitações. Mesmo uma leitura superficial deste livro reve- ocupacional, às vezes rotulada de arteterapia começou a surgir nos lará os numerosos valores da arteterapia. Uma lista parcial inclui: hospitais psiquiátricos nas décadas de 1940 e 50. Os primeiros arte- facilitação da fantasia; aguçamento da percepção visual; reconheci- terapeutas eram geralmente pessoas com formação em arte, cuja fun- mento dos estados emocionais; desenvolvimento de formas alternati- ção era proporcionar instruções técnicas rudimentares aos pacientes. vas de expressão; quebra de padrões rígidos; dizer coisas proibidas; Isso servia para acalmá-los, estimulando-os a copiar paisagens, figu- aumento do autoconhecimento; reconhecimento e resolução das an- ras religiosas etc.; para passar o tempo; ou para permitir que expres- siedades e dos descontentamentos rotineiros; novas formas de ex- sassem suas emoções de forma presumivelmente não ameaçadora. Se o paciente produzisse algo significativo ou pessoal, o trabalho plorar o tempo, o espaço e a comunidade; exploração das novas relações; a satisfação de expandir suas habilidades e o pra- seria encaminhado para o seu terapeuta ou médico responsável, que, zer de brincar. provavelmente, faria alguma anotação a respeito; com raras ex- Finalmente, abordagens e técnicas da arteterapia são somente isso era tudo. À medida que os arteterapeutas ganhavam experiência e sofistica- parte do que está sendo apresentado. Janie Rhyne também apresenta a si própria, de forma direta, honesta, porém não inoportuna. A des- ção, começaram a tentar usar a arte de modo a produzir crescimento crição dos seus esforços para usar e integrar suas experiências e co- genuíno. Enquanto isso acontecia na última década, muitos terapeutas nhecimento, para mesclar o seu treinamento em arte com a prática interessavam-se cada vez mais pela expressão artística. Esse interes- terapêutica, para reintegrar a Psicologia da Gestalt (que, afinal, come- se se deveu, em grande parte, ao movimento humanista e às várias abordagens terapêuticas a ele diretamente associadas. A Gestalt-tera- çou como uma teoria de percepção visual) com abordagem mais tera- pia, especialmente, estimulava os terapeutas a estarem atentos aos mé- pêutica da Gestalt-terapia, são exemplos de como escutar a si próprio, como experimentar, persistir e encontrar o próprio esti- todos não-verbais de expressão e compreensão. Perls, ele próprio um lo. Fica claro que suas contribuições para a arteterapia não podem, de pintor, geralmente usava artistas e dançarinos nos seus workshops de modo algum, separar-se das suas habilidades como pessoa. treinamento profissional, a fim de proporcionar experiências expres- Não posso imaginar ninguém terapeuta, artista, arteterapeuta, sivas aos seus participantes. Além disso, artistas criativos e perfor- assistente social, pessoa lendo este livro sem encontrar nele algo de máticos envolveram-se com o movimento de desenvolvimento do valor. potencial humano, e terapeutas tornaram-se cada vez mais apreciado- res das aplicações das várias abordagens artísticas para a realização Joen Fagan, humana. dra. e professora em psicologia e diretora da Clínica de Treinamento A arteterapia pôde, finalmente, reivindicar ser uma disciplina da Faculdade Estadual da Geórgia; também atende em clínica particular, própria e genuína com características tanto de arte quanto de terapia, trabalhando com indivíduos e famílias. Seu interesse entusiástico mas formando também sua própria Gestalt e com sua própria identida- na área de pesquisas inovadoras, especialmente na área de de. Com este livro, a arteterapia amadurece, ultrapassando os limites clareza de percepção e comunicação, contribui para a de se ater às habilidades ou produtos artísticos ou, ao contrário, de usar criatividade de seus alunos e colegas. arte simplesmente a serviço do entendimento da personalidade. Agora, 26 27APRESENTAÇÃO Arte e gestalt: padrões que convergem é um importante acrés- cimo para a crescente literatura da Gestalt-terapia. Com uma leitura otimista e animadora das potencialidades da vida, este rico volume baseia-se no exame sensível e seguro feito pela autora da sua própria vida e desenvolvimento profissional, associado às experiências de in- teração com as várias pessoas com que trabalhou. Durante o tempo em que tive a sorte de conhecer Janie Rhyne, apreciei e valorizei sua habilidade consistente em criar para si uma vida razoável e ordenada, mesmo nos ambientes mais tumultuados. Como na sua vida, também neste livro a sua generosidade equilibrada ajusta o seu talento profis- sional às nossas necessidades, produzindo clareza e ordem, sem pe- dantismo ou obsessão. Os seus escritos iluminam o que é obscuro, nos processos pessoais, de forma que ela sempre obtém de mim uma reação de aprovação, um mudo: "Claro, tinha de ser desse jeito!". Minha primeira experiência com arteterapia há vinte anos não me levou ao aplauso. Parecia diversão, sim; mas terapia, não. foco do procedimento artístico estava no produto, não no processo. Nós três paciente, artista e terapeuta olhávamos para o resultado final, o pro- duto, geralmente uma expressão amadora, sem graça, e fazíamos in- terpretações superficiais, que imaginávamos estar de acordo com a tradição de Freud. Espero que agora possamos ser desculpados por não termos percebido que a nossa psicoterapia tradicional era tão sem conteúdo e ineficaz quanto a nossa arteterapia. Na época, o artetera- peuta era um terapeuta subserviente, um ser inferior, que funcionava como empregado do nobre psiquiatra-psicoterapeuta. Atualmente, Janie Rhyne é, por direito, uma -terapeuta sênior, completamen- 29te madura, que enfoca o processo total da terapia com uma competên- cia que, particularmente, invejo. Ela orquestra e dirige o indivíduo e o grupo visando consumar o processo total de interação consigo pró- prio, com o exterior, com o social, por meio dos materiais escolhidos para usar. Suas discussões sobre a escolha dos materiais, a preparação des- tes para atender às necessidades de cada situação e a absoluta exigên- INTRODUÇÃO cia para adaptar os fatores ambientais à personalidade individual contêm as diretrizes mais claras que já li para ir ao encontro das ne- cessidades da pessoa que está sendo guiada: "Minha melhor maneira de ensinar e fazer terapia é estar tão relaxada, consciente e alerta quan- to possível, para receber dicas...". Um conselho excelente para qual- quer tipo de relacionamento terapêutico ou educativo! Aprender a usar o olho, com tanta competência quanto o ouvido para receber as dicas que se manifestam nas Gestalten configuradas no momento, é Essa habilidade, talvez, seja mais bem ensinada por alguém experiente nas modalidades visuais, por um artista plástico. Certamente, na mi- nha experiência, Janie Rhyne é proeminente nessa habilidade comple- xa. Cabe a ela um crédito adicional: neste volume ela conseguiu, com Arte e gestalt: padrões que convergem descreve como usar ma- sucesso, converter sua experiência visual na palavra escrita. teriais artísticos para descobrir e explorar qualidades pessoais únicas Livros podem ser escritos das entranhas, do coração, da mente ou em si e nos outros. Estimula você a ampliar seu âmbito de percepção da Livros de sucesso têm de expressar no mínimo um desses criando formas com os materiais de arte e aprendendo a entender as centros; livros de competência especial, no mínimo, dois. Sinto que mensagens visuais dessas formas. este volume é uma expressão harmoniosa de todos os quatro centros Este livro sugere estruturas e técnicas que podem ser usadas na da personalidade. Nesse equilíbrio singular repousa a força central terapia, em grupos de desenvolvimento pessoal ou individual. Tenho tanto da autora como de seu livro; esse equilíbrio recomenda o livro usado arte terapeuticamente tanto no contexto terapêutico com indi- além dos limites, seja do mundo das terapias adjuntas, seja do mundo víduos com distúrbios quanto em salas de aula com estudantes de dos profissionais interessados em Gestalt-terapia. todas as idades. Também tenho usado arte com indivíduos com fun- Em tempos de mudanças velozes, cresce em nós a necessidade de cionamento absolutamente normal, e com grupos e pessoas que bus- buscar e alcançar nosso centro. Janie Rhyne encontrou o seu centro, por cavam meios de atualizar melhor o seu potencial. Descrevo essas meio do qual ela pôde sentir o potencial central de todos nós. Ela ousa experiências para estimular você o indivíduo que almeja mais "vislumbrar o que pode ser". Ela apresenta um método para alcançá-lo. awareness e percepção a experimentar por si mesmo a experiência Recomendo a você, a autora, sua visão e o seu método. artística; ofereço meios para você começar, seja você terapeuta, assis- tente, professor, estudante ou cliente. Joseph Downing, Este livro está dividido em quatro partes. A Parte I delineia a base dr. em psiquiatra, atua em clínica particular em Palo Alto, Califórnia e é presidente do Treinamento Arica na América. Por muitos teórica para a experiência gestáltica de arte; descreve também o uso anos, foi diretor de um programa estadual de saúde mental. Ao seu que fiz da arte enquanto crescia e o crescimento que compartilhei conhecimento médico, acrescentou, posteriormente, treinamento extensivo com os outros por intermédio dos materiais artísticos. em métodos de terapia gestáltica, com especial ênfase no funcionamento A Parte II discute o papel da experiência de arte em tornar as pes- físico saudável. Recentemente ingressou no Programa de Treinamento soas capazes de criar imagens visuais que expressem memórias repri- Arica, que enfoca a evolução da consciência por métodos derivados de midas, percepções e padrões de vida; essas expressões se tornam, disciplinas ocidentais e orientais e da psicologia então, referentes que podem facilitar a comunicação entre a consciên- cia de nossa interioridade e a consciência do que nos é externo. 30 31A Parte III sugere projetos para a exploração individual das pró- Em nossa cultura moderna há muito contra o que nos rebelar e fi- prias percepções, atitudes, padrões de vida e as possibilidades futuras. camos perplexos com a complexidade dos nossos problemas e possi- A Parte IV descreve experiências grupais de arte. Dou algumas bilidades. O que você ou eu podemos fazer? Podemos começar daqui sugestões aos dirigentes de grupo e descrevo algumas experiências onde estamos: podemos nos aceitar como somos e nosso mundo dinâmicas nas quais os materiais de arte servem para elicitar expres- como ele é; podemos usar quaisquer recursos que tenhamos para sões da realidade do nosso drama humano. atualizar as melhores possibilidades ao nosso dispor. Edward C. Na última década, concentrei minha energia na condução do que Whitmont descreve o que possivelmente acontece quando chamo de grupos de experiência de arte. Dirigi centenas de sessões nos Estados Unidos e algumas na Europa. Os participantes desses [...] as aspirações de alguém são tão grandes e intransigentes grupos vinham de uma ampla variedade de níveis cultural e educa- que, na realidade, de fato nada ou só muito pouco pode ser al- cional: adolescentes dos guetos, equipes de instituições cançado. Realizar aqui e agora requer a renúncia da infinidade tricas, usuários de drogas de uma clínica gratuita, donas de casa de muitas possibilidades da Grande Visão intuitiva em favor de de comunidades da periferia, pacientes em psicoterapia, membros de alguns aspectos finitos e limitados que, pela concentração e pelo grupos religiosos, artistas, professores, clérigos, assistentes sociais, trabalho, podem se concretizar. Esse problema foi apresentado a estudantes, enfermeiras e terapeutas. É sobre essas experiências de um jovem paciente no seguinte sonho: "Eu queria tomar um ôni- arte que escrevo. bus, mas não tinha dinheiro trocado para pagar os 15 centavos da Este livro e o meu trabalho estão baseados em alguns pressu- passagem e não queria trocar uma nota de 5 dólares. Conseqüen- postos. Acredito que a experiência de criar arte contribui para a cla- temente, fui posto para fora do ônibus". Se o ego falha em dar reza de insight, quer o criador seja um artista experiente ou um sua energia para as tarefas aparentemente pequenas e limitadas amador sincero. Acredito que a experiência de perceber a nossa porque quer lidar apenas com as grandes idéias, então ele não própria imagem visual e a dos outros contribui para ampliar o âm- pode prosseguir, perde o ônibus e a personalidade não está pron- bito de compreensão, seja o observador um profissional de ajuda ou ta para a nova fase um leigo. Acredito que muitos de nós passamos nossa vida numa escravi- Proponho que troquemos as notas inteiras que não estão sendo dão desconfortável e ressentida, tentando, sem muito ânimo, aceitar usadas pelos trocados de que necessitamos para começar a alcançar as exigências de nossas famílias, nossa posição, nossa cultura. Nos- nossos objetivos. Afirmo o valor das tarefas aparentemente pequenas SOS temores nos mantêm imobilizados; temos medo até de questionar, dos atos simples. quanto mais de desafiar o sistema de valores que nos é imposto pela A maioria de nós deseja usar o melhor de si na vida, ainda que a sociedade; tememos a solidão da autonomia. Somente quando confia- maioria não use o seu potencial para criar o tipo de vida que deseja. mos em nossas percepções individuais e agimos é que podemos nos Deixamos de fazer as pequenas coisas que poderiam favorecer nossas aperceber do nosso potencial único. aspirações, pouco nos importando com nossos desejos, dizendo para Cada um de nós é responsável por escolher e tomar atitudes indi- nós mesmos que eles não são tão importantes assim. Desse modo, é viduais contra aquilo que nos desvitaliza e a favor do que nos estimu- claro, negamos nossa importância individual. la. Podemos pensar que ter uma postura ativa em pequenas coisas não Neste livro, sugiro uma variedade de maneiras de enriquecer fará certamente diferença. Continuamos, pois, a permitir que os outros nossas vidas. Se você escolher explorar alguma delas, saiba antes de façam o nosso mundo para nós, e então queixamo-nos de que não gos- tudo que você pode se encontrar de um modo como nunca fez antes. tamos dele ou da nossa vida. Podemos nos resignar e o que deixamos que nos imponham ou podemos começar o processo de au- Saiba que este não é um jogo de salão. Você pode encontrar alegria, tonomia criativa reconhecendo nossos direitos e responsabilidades in- dividuais como parceiros na construção do mundo. 1. Edward C. Whitmont, The Symbolic Quest, Nova York, G. Putnam's Sons, 1969, pp. 281-2. 32 33êxtase, grande alívio. Pode divertir-se. Pode também entrar em con- tato com o medo, a agonia e a feiúra. Esse é um modo de baixo risco PARTE 1 para entrar em áreas de alto risco. Por favor, acredite que falo sério quando lhe peço para aceitar sua responsabilidade em honrar seus próprios sentimentos e os dos outros; de dar-se conta do perigo de impor a você e aos outros a carga de pressões por demais destrutivas. A EXPERIENCIA DE ARTE EM Destruição é algumas vezes desejável e necessária, mas quando, onde e o que destruir é com uma escolha crucial; não é PROCESSOS algo feito casual e irresponsavelmente. Esta é uma crônica sinuosa de uma viagem psicológica comigo e DE CRESCIMENTO com os outros. Não é um tratado científico provando o valor da arte- terapia, mas centenas de pessoas estão convencidas, assim como eu, de que essas experiências artísticas são reveladoras e estimulantes. As suas descobertas e as minhas mostram o tipo de tesouro encontrado, acessível a todos que quiserem desfrutar, aprender e crescer pela par- ticipação nas experiências gestálticas de arte. Janie Rhyne 34eve É GESTÁLTICA DE ARTE? ESTRUTURA GESTÁLTICA A palavra Gestalt é alemã e não tem um equivalente exato em português. Forma, figura, padrão, estrutura e configuração são tradu- ções possíveis, mas nenhuma é bem correta, assim adotamos gestalt a usamos em vários contextos. Emprego a palavra no contexto da experiência da arte. Há a Psi- cologia da Gestalt e a Gestalt-terapia, e há o modo gestáltico de per- ceber a si mesmo e aos outros - um modo de ser, de agir e de integrar a experiência. As premissas da filosofia da Gestalt mais relevantes para a experiência artística parecem tão naturais e tão consistentes com minhas atitudes, que acho difícil distinguir entre o que são os princípios da gestalt e o que é minha compreensão pessoal de como nos tornamos e somos seres humanos. Crianças saudáveis são naturalmente gestaltistas - vivem no presente; dão completa atenção ao que estão fazendo; fazem o que querem fazer; confiam nos dados de sua própria experiência; e, até que sejam ensinadas, em contrário, sabem o que sabem com simpli- cidade direta e exatidão. À maioria de nós não é permitido crescer naturalmente, aprender pela experimentação, ampliar o nosso conhecimento sem perder nos- sa sabedoria ingênua: somos coagidos por pais, professores e nossa cultura a nos conformarmos com os padrões aceitos de como deve- mos sentir, pensar e agir. Com graus variáveis de obstinação, resisti- 37mos e então, gradualmente, nos afastamos de nossa sensibilidade in- mais do que um acontecimento. Somos ativos no processo, indivi- dividual e aceitamos as idéias de nossos educadores sobre como uma dualmente responsáveis por encontrar nossos vários caminhos de re- pessoa deve ser. Durante esse processo, somos forçados a negar criação de nós mesmos. Nenhum caminho é o caminho. muito do que sabemos ser verdade sobre nossa própria natureza. Que- Para mim, escolho uma variedade de caminhos; entretanto o remos aprovação e aceitação. A maioria de nós, no momento em que mais eficiente é usar materiais de arte para fazer imagens que me somos considerados adultos e maduros, já esqueceu como ser si permitam redescobrir não somente algo da sabedoria simples e ingê- mesmo. Lembramo-nos de como ser nós mesmos parecia ser apenas nua da criança que fui, mas prover-me com fantasias visuais que o suficiente para sentirmos medo disso. Nosso temor nos mantém em evoquem associações, ressonâncias e insights que estão ao meu dis- tal estado de tensão ou entorpecimento que passamos grande parte por se eu apenas me der um tempo para percebê-los. Se fizer um da nossa vida representando, em vez de viver, e usando grande parte de desenho de minhas fantasias, posso vê-las, posso ler minhas mensa- nossa energia negando nosso medo de conhecer a nós mesmos e aos gens, posso aprender; posso integrar minha infância passada com o outros, profunda e completamente. meu presente e com visões de meu futuro. Penso em meus desenhos Gestaltistas oferecem meios para ultrapassar este muro de temor expressivos como fontes de aprendizado que me servem de forma procuramos formas de reconhecer o que escondemos - e integrar parecida como meus sonhos o fazem. Estes são distintos dos sonhos nossas partes alienadas à nossa personalidade total. Trabalhamos para que experiencio durante o sono, mas semelhantes no sentido de que transpor as barreiras que separam nosso eu verdadeiro dos papéis arti- os dois tipos de imagética podem abrir caminho não só aos meus ficiais que representamos. Fazer isso não é fácil, uma vez que assumi- sentimentos reprimidos quando criança, mas também ao reconheci- mos esses papéis (provavelmente durante a infância) para defesa, mento atual do que preciso e quero agora. Eles mostram de que elogios, atenção, evitação ou poder. forma eu, como pessoa madura, posso reunir todas essas realizações Talvez quando crianças soubéssemos que estávamos apenas fin- num padrão de minha própria gestalt, na qual cada parte está relacio- gindo agir de uma determinada forma para obter aquilo que preci- nada com a configuração total do que sou passado, presente, futu- sávamos ou quiséssemos, mas quando o fingimento teve sucesso, TO e como eu e meu meio estamos sempre mudando e sempre continuamos a fazer aquele jogo até nós mesmos nos enganarmos na interagindo. crença de que nossa farsa era genuína. Agora somos adultos, supostamente maduros e funcionando ade- quadamente, mas com uma suspeita secreta de que não somos o que GESTÁLTICA DE ARTE parecemos ser; de que, se não formos cuidadosos, outras pessoas verão através do nosso jogo; ou pior, que nós mesmos perceberemos Ultimamente, o termo gestalt vem sendo aplicado a tantas for- como é banal e ordinário o espetáculo que encenamos. mas de atividade que parece ter-se tornado uma espécie de senha má- Quando alguma situação na vida expõe as nossas dúvidas secre- gica para levar algumas pessoas à popularidade. Estou contente que a tas, temos alternativas: podemos cometer suicídio; encontrar uma abordagem gestáltica seja amplamente aceita agora; sinto quando é outra auto-ilusão; podemos continuar os mesmos jogos enfadonhos, vendida por um curandeiro viajante que usa a sua fórmula como uma sabendo que estamos mortos; ou podemos começar a procura corajo- panacéia barata para comprar, fácil de tomar, com garantia de curar sa para encontrar em nós mesmos o que é genuíno. Podemos apren- qualquer coisa. Rejeito essa apresentação não apenas porque é falsa, der a desistir do fingimento e a crescer na realidade. mas também porque a fórmula patenteada, e pronta para venda, alar- Algumas pessoas dizem que mudar do eu-impostor para o eu- deada, afasta muitas pessoas verdadeiramente pensantes de verem e autêntico pode acontecer rápida e completamente em algumas situa- conhecerem por si mesmas a substância genuína da Psicologia da ções. Talvez, mas tenho dúvidas. Gestalt e da Gestalt-terapia. Para mim e para as pessoas com quem partilho essa experiência Agora devo definir simplesmente o que quero dizer por expe- de desaprender e crescer novamente, acho que este é um processo riência gestáltica da arte. Essa combinação de palavras se tornou sig- 38 39nificativa para mim; escolhi as três para descrever um processo que faça sentido para além das fronteiras de qualquer definição verbal. tipo de expressão. E, então, esqueceu que um dia soube como dese- nhar livremente e experienciou seu deleite, raiva, e todos os tipos de Mas também preciso usar as palavras para dar sentido, cada pala- ritmos de vida sem autocrítica. Se assim for, pense nos tipos de coi- vra é um símbolo para muitas idéias pessoais e culturais. Com fre- quando nos comunicamos verbalmente, tomamos por certo sas que você ainda faz sem se autocriticar - dançar, cantar, arrumar os móveis, escolher roupas e todas as outras formas de expressar o que cada um de nós está usando as mesmas palavras-símbolo para seu "eu" pessoal. E pense nos seus sonhos, tanto durante o sono quan- representar exatamente as mesmas idéias. Conseqüentemente, com to durante o dia, tecendo suas fantasias. Todos eles são eventos que o nos comunicamos de forma incorreta e somos pegos em envolvem pessoalmente e que você pode observar enquanto ocorrem. armadilhas semânticas que escondem o que queremos dizer por trás de usos Então é assim que uso a palavra experiência: sonhando, sentin- do, pensando, agindo, expressando; apercebendo-me ao mesmo tem- Deixe-me definir o que quero dizer com experiência gestáltica de po de que sou a pessoa que está fazendo tudo isso. arte discutindo cada palavra separadamente. A palavra experiência Como estou usando a palavra arte? Recorro ao Webster's nova- vem primeiro assim como o experienciar vem primeiro em qualquer mente e encontro "habilidade humana de fazer coisas; criatividade do processo de homem, distinta do mundo da natureza". Experiência, diz o Webster's, é "o ato de vivenciar um evento ou Fazer coisas é natural ao homem; talvez nos tenhamos tornado eventos; envolvimento pessoal em ou observação de eventos enquan- humanos ao fazer coisas. Como nossos ancestrais primitivos, faze- to eles ocorrem". Cada vez que você e eu desenhamos, pintamos ou mos nossos abrigos, comida, roupas e transporte. Como o povo das modelamos, estamos vivenciando ativamente um evento: nosso pró- cavernas, usamos muito do nosso tempo e energia suprindo-nos com prio evento experiencial. Cada linha que você traça é unicamente sua; com mais ou menos, dessas coisas de acordo com nossas as que eu desenho são individualmente minhas; cada um de nós está cias e percepções do que são as nossas necessidades básicas. modo envolvido num acontecimento pessoal. À medida que as linhas e for- como a satisfação das nossas necessidades - físicas, culturais e psi- mas emergem de nossa atividade, podemos observar como estamos cológicas - envolve desde as necessidades diretas de sobrevivência formando um registro gráfico visível de alguma coisa ou sensação aos desejos luxuriosos, é muito complexo para ser discutido aqui. que percebemos. Tendo registrado essa percepção, cada um de nós Muito simplesmente, todas as culturas e os indivíduos nelas inseri- tem uma realidade tangível para usar como preferir. Você pode dene- dos têm necessidades que vão além das de sobrevivência; essas ne- grir o seu desenho com: "Ora, não está muito bom. Eu nunca soube cessidades adicionais são, com chamadas de "desejos". desenhar mesmo". Você pode negar sua expressão com: "aquele de- Não faço uma distinção clara entre necessitar e querer, porque, quan- senho não significa nada para mim". Você pode renegar a forma que fez com: "isso apenas saiu desse jeito. Não tive nada a ver com isso. do quero muito alguma coisa, presumo que tenho necessidade dela. Não é como eu vejo e sinto". Estou presumindo, portanto, que seres humanos tanto precisam quanto querem fazer coisas - fazer arte. Esse desejo é uma parte Mas o seu desenho tem muito a ver com você - com a forma rente de nossa humanidade. Usamos esse desejo de formas diversas, como você vê, sente, pensa e com o jeito que você percebe. Quando com vários graus de facilidade e para vários fins, mas todos fazemos você faz uma atividade artística, está se experienciando; o que você isso de uma forma ou de outra. Acredito que queremos e necessita- produz é despersonalizado, mas vem de um você muito personaliza- mos disso se quisermos alcançar nossa humanidade mais completa. do. Suas expressões artísticas pessoais merecem sua atenção. Talvez você jamais tenha considerado uma atividade artística Há aqueles que discordam e dizem: "Você acredita nisso apenas por- que quer. Você precisa de algum tipo de idealismo, por isso coloca como uma experiência real - de qualquer forma, não desde que você sua fé no impulso criativo básico do homem. Você não pode provar era criança, e talvez você não se lembre de ter rabiscado linhas e pin- isso!". Ouço seus argumentos - às vezes presunçosamente, pensando tado em qualquer superfície à mão. Aquela foi uma experiência real, que sei mais, às vezes com tristeza, temendo que estejam certos. Con- mas talvez você tenha sido punido ou persuadido a parar com esse tudo, até que alguns dos que aderem ao "se você não pode medir, não 40 41pode acreditar" possam vir com uma resposta melhor, confiarei em minhas próprias percepções e observações. Da Pré-história até hoje, que eu estava desenvolvendo. Treinando e trabalhando com Perls e ou- temos feito coisas que não existiam antes; temos unido coisas e tros gestaltistas, aprendi mais sobre como faziam o que faziam: eles idéias, apresentando uma síntese; temos criado símbolos e comunica- estavam encontrando meios para facilitar o crescimento terapêutico, do significados. mostrando às pessoas como liberar os sentimentos que estavam escon- didos dentro de si mesmas, ou tornar explícito o que estava implícito. Não sei por que fazemos isso; só sei que fazemos. Então, parto daquela hipótese e acho excitante explorar como podemos perceber e Percebi que estava fazendo isso também - usando o material artís- criar e comunicar melhor por meio das formas que fazemos. Então, tico como uma ponte entre as realidades interna e externa, estimulando por arte, entendo as formas que emergem de nossa experiência cria- as pessoas a criarem suas próprias formas de arte visual e a usá-las tiva individual. como mensagens que enviavam a si próprias. Tornadas visíveis, as Originalmente, usei a palavra gestalt para relacionar minha orien- mensagens podem ser percebidas por seus criadores. Já que remetente e destinatário são a mesma pessoa, vale a pena apostar nas chances de tação na experiência de arte às hipóteses dos psicólogos da gestalt. Descobri a Psicologia da Gestalt após anos de trabalho de arte percepção desta gestalt, isto é, da totalidade desta configuração. O parentesco entre as teorias de percepção da gestalt e sua apli- anos que envolveram muita experimentação, exploração e confiança em minhas próprias percepções. Minha descoberta das teorias da Psi- cação na experiência de arte é óbvio para mim. O psicólogo fala de cologia da Gestalt foi muito excitante porque pude criar uma ponte perceber totalidades configuradas como mais do que a soma das par- teórica entre o que eu conhecia dos meus processos de fazer arte e o tes que compõem aquele todo. O artista sabe que é a relação das que percebia nos processos de arte e de vida de outras pessoas. partes na totalidade de qualquer forma de arte que cria um efeito sig- Sabia que várias escolas de psicoterapia haviam usado a arte nificativo; olhar para cada parte em separado dá uma impressão com- como um método auxiliar para diagnóstico, para expressão do assim pletamente diferente da percepção da configuração total. O psicólogo chamado material inconsciente, para liberação emocional e como te- da gestalt diz que tendemos a ver formas, linhas e cores semelhantes rapia ocupacional. Até conhecer a Psicologia da Gestalt, eu não havia como se fizessem parte de um só grupo, percebendo-as criando um encontrado apoio para minha crença de que o conhecimento da arte grupo visual e, formando uma figura cuja percep- poderia ser um modo de atuar primário, direto, consciente, que fre- ção destaca-se de um fundo menos figural à nossa awareness. Tende- qüentemente integra fantasia e realidade na atualidade de forma mos a perceber continuidade em linhas e formas mesmo quando há diata e falhas no material visual real que vemos; naturalmente procuramos Basicamente, a "Psicologia da Gestalt originou-se como uma fazer das partes um todo. Sentimo-nos frustrados quando vemos coi- teoria de percepção que incluía as inter-relações entre a forma do ob- sas que parecem incompletas. Quando olhamos para uma forma que jeto e os processos daquele que percebe... O pensamento gestáltico é quase um círculo, tendemos a perceber um círculo completo isto é, enfatizava 'insights fechamento, características de figura- nossas percepções tendem a completar a forma, criando, fundo, fluidez dos processos perceptivos e aquele que percebe como temente, o fechamento dela. participante ativo nas suas percepções e não como mais um passivo Esses princípios da percepção da gestalt se tornam facilmente recipiente das qualidades da forma". compreensíveis quando experienciamos sua aplicação no processo de criar nossas próprias formas de arte. Experiencialmente podemos per- Até encontrar Fritz Perls em 1965, eu não sabia que ele havia apli- ceber de imediato que um número de formas coloridas vistas como cado alguns conceitos da Psicologia da Gestalt na formulação de uma prática de Gestalt-terapia de forma paralela às minhas próprias aplica- partes não relacionadas entre si têm pouco efeito; se as colocarmos ções das teorias da Psicologia da Gestalt no tipo de experiência de arte juntas em uma composição integrada, vemos um todo que é obvia- mente maior que a soma das partes. Do mesmo modo, quando repre- sentamos imagens com meios gráficos, naturalmente criamos figuras 1. Joen Fagan e Lee Shepherd (eds.) Gestalt Therapy Now, Palo Alto, Califór- e fundos. Ao usar materiais de arte, descobrimos também nossa pró- nia, Science and Behaviour Books, 1970, p. 3. pria tendência de completar o todo e de efetuar o fechamento das par- 42 43tes incompletas de um todo. Também tomamos consciência dos pa- Como uma garotinha magra, pálida, sardenta, míope e sonhado- drões de uma configuração. Reconhecemos que somos visualmente ra, eu vivia em pelo menos dois níveis, ambos bastante reais. Como seletivos, pois percebemos algumas formas com maior clareza do que a filha mais velha de uma família grande e intensa, tinha responsabi- outras. Na experiência de arte, adquirimos insights de como percebe- lidades que exigiam mais maturidade do que eu era capaz, mas, ape- mos geralmente e de como nossas percepções são influenciadas por sar disso, assumia o papel de e era elogiada por ser uma nossas personalidades individuais. irmã mais velha boa, amável e compreensiva - pelo menos na maior A forma como percebemos visualmente está diretamente rela- parte do tempo. Aquela era a minha imagem exterior, como acho que cionada à forma como pensamos e sentimos; a correlação torna-se a maioria das pessoas me via, e como eu podia agir abertamente com aparente quando representamos nossas percepções com materiais ar- orgulho e alguma confiança. tísticos. As figuras centrais que representamos emergem de um fun- Eu também tinha orgulho da minha vida interior, mas mantinha do difuso e nos dão pistas do que é central em nossa vida. A forma secreta essa minha parte reprimida. No meu mundo interior, eu não como usamos linhas, formas e cores em relação umas às outras e ao era filha, irmã ou mãe de ninguém, e não era nem boa nem amável espaço em que as colocamos indica-nos algo sobre como organiza- nem compreensiva. mos os padrões de nossa vida. A estrutura ou a falta dela em nossas A boa garotinha que eu aparentava ser tinha aulas de arte com a formas está relacionada ao nosso comportamento nas situações em srta. Helen e pintava algumas gravuras bonitas para pendurar na pa- que vivemos. rede. A srta. Helen ensinou-me como copiar pinturas de outras pes- Compreender como usamos nossa percepção visual para criar soas e como fazer agradáveis naturezas-mortas e paisagens. Gostei de formas de arte, pode dar-nos novos insights sobre como usar nossa trabalhar com os materiais e apesar da crescente desconfiança de que percepção para criar vidas mais integradas. copiar era como trapacear, ainda me sentia virtuosa e satisfeita por Assim, gestalt, como uso aqui, significa a habilidade para perce- minhas pinturas serem emolduradas e admiradas. Aceitei, gratificada, ber configurações totais - perceber sua personalidade como uma to- a declaração de minha família de que eu era talentosa e provavelmen- talidade das muitas partes que, juntas, formam a realidade que você é. te seria uma artista quando crescesse. De alguma forma, "ser uma ar- A experiência gestáltica de arte, então, é o seu eu pessoal comple- fez-me parecer correto que eu tivesse toda uma vida secreta que XO fazendo formas de arte, envolvendo-se com as formas que você não se ajustava ao meu comportamento no mundo real. está criando como fenômenos, observando o que você faz, e, possivel- A srta. Helen teria desaprovado se tivesse visto o que eu fazia mente, espera percebendo por meio de suas produções gráficas não sorrateiramente com o pouco de instrução artística que ela me dera. apenas como você é agora, mas também modos alternativos que estão Meu eu interior desenhava figuras também, mas estas não eram có- disponíveis para que você possa se tornar a pessoa que gostaria de ser. pias de algo que eu já tivesse visto pendurado na parede de alguém, É assim que descrevo o trabalho que faço agora. Quando come- e certamente não eram bonitas ou agradáveis. Ninguém jamais viu cei a realizar essa atividade como criança, não a chamava de trabalho aqueles desenhos, exceto eu; rasgava-os assim que os fazia, mas e não a nomeava. Apenas fazia o que vinha naturalmente. ainda me lembro de alguns deles. Com eram desenhos diabólicos: escuros, entrelaçados, monstros assassinos na forma de parreiras e de árvores; sorrateiros gatos cinzentos balançando suas MEV IMAGINÁRIO PARTICULAR longas e malignas caudas, enquanto o sangue escorria de suas bocas; uma imagem da garotinha do outro lado da rua, que eu odiava, com- Comecei usando de modo consciente a linguagem artística para pletamente nua e fortemente atada a um grande bloco de gelo. Eu es- expressar graficamente sentimentos que eu sabia não serem aceitá- tremecia quando desenhava aquilo, saboreando como ela sofreria até veis para as pessoas ao meu redor e, definitivamente, que não eram morrer congelada. compatíveis com a imagem que eu apresentava ao mundo. Não que- Em minha vida interior eu não era apenas má - cruel, ressentida, ria que ninguém, exceto eu, visse o que eu estava fazendo. vingativa -, era louca também; louca como o mergulhão, o pássaro 44 45cuja risada histérica e desesperada eu ouvia à noite entre os pinhei- ros. Nunca vi o mergulhão, mas poderia desenhá-lo como ele me soava. Desenhava árvores escuras e selvagens com galhos pontiagu- dos emaranhados formando uma gaiola para um pássaro que era uma vaga forma branca tentando escapar, gritando enlouquecido por liberdade. Desenhava coisas exoticamente belas também; flores que eu ja- mais vira, exceto com os olhos da minha mente; dramáticas monta- nhas desertas em cores de terra seca e quente. Desenhei-me como um homem cavalgando num cavalo branco por areias escaldantes e ondu- lantes. Destruí esses desenhos também, mas adorava a excitação de fazê-los e seu conteúdo extravagante. Não estava sempre ocupada com fantasias mórbidas e exóticas. Às vezes, me divertia mesmo. Seja ou não considerado, cheguei a uma idade em que me apercebi de que sexo era uma realidade e algo em que estava bastante interessada. Recordo-me vividamente de uma tarde quente de verão, quando tinha cerca de doze anos de idade. Meu avô me pagava dez centavos a hora para tomar conta de seu es- critório enquanto ele fazia serviços fora. Sentei à sua escrivaninha e encontrei papel amarelo e lápis coloridos em suas gavetas e compar- timentos. Vi que poderia usar os lápis vermelhos nas folhas amarelas Figura 1. "Eu já havia para fazer tons de carne. Comecei desenhando pessoas exuberantes e cometido meus pecados." sensuais - homens e mulheres nus. Tive mais ousadia. Coloquei sexo em meu desenho. Minha informação era restrita, mas minha imagina- Apesar, ou talvez por causa dos meus pecados secretos de arte, ção corria solta. Estava desenhando tudo o que podia fantasiar sobre cresci razoavelmente sã e parti para a faculdade a fim de aprender orgias sexuais. como ser uma artista de verdade. Lá, deparei com aprendizados que Adorei cada minuto de minha sensualidade latejante. Estava re- não esperava. Nas aulas de artes eu era uma negação. Minha insistên- presentando o que boas meninas não deveriam nem pensar. Eu me di- cia obstinada em querer pintar o que sentia não impressionou os pro- verti com minha perversidade até que o relógio me disse que estava fessores, e tive de lutar muito para obter notas decentes. Em ciências na hora de meu avô voltar. Muito ordenadamente, rasguei minhas fo- até que passei bem; física, biologia, sociologia e especialmente psi- lhas sinistras em pedacinhos e queimei-os na lareira junto com o lixo cologia me fascinaram. Percebi que estava fazendo mais cursos em das cestas de papel usado. Quando vovô chegou, eu estava sentada psicologia do que em arte, e estava lendo mais livros que tratavam de comportadamente em sua poltrona. Ele se ofereceu para me comprar pessoas do que de arte. Quando estudava história da arte, sentia-me um milkshake de chocolate, então andamos uma quadra até a loja, e acanhadamente mais interessada no artista como pessoa do que em sentei-me recatadamente ao seu lado no banco giratório e sorvi o seus quadros como peças de museu. Ao terminar a faculdade, sem ter quido por um canudo amassado. Vovô adorava milkshake de choco- planejado conscientemente, já havia direcionado meu interesse ge- late; eu detestava, mas nunca lhe disse isso. Eu era uma boa garotinha nuíno para a psicologia da arte. Mas continuei pintando e encontrei e educada demais para dizer não aos mais velhos. Além do mais, já satisfações mais profundas à medida que desenvolvia meu próprio es- havia cometido meus pecados naquele dia. (ver Figura 1). Graduei-me em arte. Estava surpresa por descobrir que também obtido um certificado de professora em ciências gerais e em psi- 46 47cologia, bem como em arte. O que fazer com isso? Como pôr em prá- poucos, comecei a ver os diferentes aspectos de mim como partes da tica minha idéia de que arte e pessoas poderiam ser companheiras minha totalidade; comecei a integrar minha identidade pessoal para mais próximas? incluir ambas, a criança e a mulher que sou. Mesmo depois de casada, continuei como aluna da graduação, Para mim, a psicoterapia funcionou de várias formas Ao acercando-me do objetivo ainda mal-definido de retirar a arte do do- longo das três sessões semanais, meu tema era a minha necessidade de mínio do esotérico e trazê-la para a realidade da vida diária. Ensinei me expressar e viver da maneira mais natural para mim. Ao tentar me desenho na universidade e estimulei a expressão pela arte num grupo ajustar a um modelo cultural, havia negado minha individualidade. Ao de crianças pré-escolares. Um ano depois, meu marido e eu recebe- negar minhas fantasias sombrias, também havia negado a mim mesma mos bolsas para estudar na Alemanha, na Universidade de Heidel- acesso à excitação e à alegria de viver plenamente, que também era berg. Queria escrever minha tese comparando a arte controlada pelo uma parte essencial de mim. terapeuta constantemente encorajava e Estado na Alemanha e a arte livre da França. Era 1937, e os nazistas apoiava o meu uso da arte. não estavam dispostos a deixar uma jovem impetuosa bisbilhotar en- A mulher que sou agora não é tão diferente da criança que era quanto usavam a arte como propaganda. Deixamos a Alemanha pre- então. Ainda preciso de alguma vida secreta, apesar de não chamá-la cipitadamente, por sugestão de um oficial de baixa patente, porém mais de pecado. Um dia estou cansada e aborrecida; e tenho pensa- com um uniforme oficial que causava impacto. Um mês confuso em mentos amargos. A beleza da luz do sol, das árvores e dos pássaros Paris confirmou minha percepção de que estava participando de um me incomodam. Não quero beleza quando me sinto tão feia. Sinto-me jogo sério que não tinha sequer começado a entender. Após sete sombria e quero ver sombriamente. As samambaias estão brotando, meses caóticos na Europa, fiquei contente ao ver a Estátua da Liber- num verde brilhante, mas quero vê-las sombriamente; quero ver ape- dade novamente. Tomei a firme decisão de me estabelecer no papel nas a trepadeira venenosa vermelho-escura renascendo depois de tê- de dona de casa suburbana. la destruído tão brutalmente. Há pessoas aqui que eu amo e que me Tomar a decisão foi uma coisa; viver o papel de esposa e mãe amam; quero que elas partam. modelo era outra. Disse a mim mesma: "É hora de você se tornar ma- Às vezes, sou feia, sombria, venenosa e alienada (ver Figura 2). dura e sensata! Desista das fantasias e da sua arte e concentre-se em E, honestamente, não consigo, nesse momento, sentir-me diferente ser prática!". Meu conselho soou bem, mas não funcionou. Durante de como me sinto. Poderia fingir; poderia sorrir para as pessoas dezessete anos de casamento, lutei para esconder a garotinha sensível e dizer como o tempo está bonito, como os pássaros cantam lindo e escondida atrás da minha máscara de estabilidade obstinada. Mas elogiar o jardim. Provavelmente não enganaria meus amigos e cer- meu eu sensível, que pensei ter trancado em lugar seguro, não fica- tamente não me enganaria. Quando ajo como uma dama enquanto va quieto; continuava clamando por liberdade. Podia ouvi-lo, sabia me sinto uma megera, não acredito em mim de modo algum. que era uma parte de mim, mas não sabia como responder à minha Então, em vez de agir com fingimento, fico sozinha e tento um própria interior. Então a minha parte adulta levou-me a um psi- pouco de terapia caseira. Pego um pedaço de argila - um bem grande coterapeuta. - e jogo no chão com força. Faço todas as formas parecerem como me Quando entrei no consultório do psiquiatra, disse trêmula e orgu- sinto - feia, dura, brava. Bato na argila algum tempo e entro no meu lhosamente: "Ouça, preciso de ajuda! Acho que sou bem sã, mas tenho mau-humor. Agora faço a forma da minha cabeça e cavo um buraco vários tipos de emoções que para os outros parecem loucas. Não te- no alto. Sinto-me melhor. Cavo mais. Digo para mim mesma: "Aha! nho certeza se acredito em psicanálise, mas estou confusa o bastante Minha cabeça está novamente cheia de preocupações inúteis. Tempo para tentar qualquer coisa". Serei sempre grata por sua calma e di- de parar de computar minhas obrigações futuras. Hora de limpar vertida respondendo: "Psicanálise não é uma religião; você não tem de minha cabeça". Nenhum milagre aconteceu; não resolvi nenhum pro- encará-la com fé. Se funcionar para você é o suficiente. Sente-se". blema importante. Simplesmente, descobri que minha feiúra estava na Com a orientação perspicaz de meu psiquiatra, minha parte crian- minha própria cabeça, não fora, entre meus amigos, à luz do sol. "Não ça e minha parte adulta começaram o processo de se escutar. Aos preciso jogar a minha raiva neles quando eles não são o meu alvo! 48 49Figura 2. vezes, sou feia". Figura 3. "Eu volto ao contato". Melhor cavocar minha figura de argila do que fazê-lo nos meus ami- parede; algumas vezes, quando me sinto desvitalizada, recorro a ela gos, quando eles não têm as respostas de que preciso. Hoje é o mo- para revitalizar-me. mento de recolher-me e reconhecer aquilo que é somente meu." Pinto sonhos exóticos, enigmáticos e angustiantes também al- Após meu tempo de recolhimento em minha própria experiência guns dos quais sinto-me ainda encabulada demais para partilhar, e de arte, volto a entrar em contato com meus amigos (ver Figura 3). outros que quero elucidar por mim mesma. Na maior parte das vezes, Tendo expressado meus sentimentos negativos na argila, agora re- posso discriminar entre o que quero expressar particularmente com laxo e aceito o que é positivo em nosso mundo de relações inter- arte e aquilo que quero explicitamente expressar aos outros. pessoais. Quando eu era criança, confiava nas percepções das minhas ne- Meu uso da arte em minha vida particular não é sempre para ali- cessidades porque era ingênua. Agora confio porque estou amadu- viar sentimentos de raiva ou de feiúra. Algumas vezes quero apenas recida pela vida. O amadurecimento não ocorreu sem esforço ou usar a arte para expressar emoções que não podem ser expressas em sofrimento. Durante minha psicoterapia, reconheci que era preciso palavras por exemplo, um êxtase estonteante que não pode ser ex- accitar-me como sou e continuar a partir disso; o mergulhão preso nas plicado coerentemente a mais ninguém. Uma noite, depois de uma aquele que desenhei quando criança, estava aparecendo nova- tarde superestimulante, estava sozinha e parecia prestes a explodir de mente em minhas pinturas. Não podia mais negar minha empatia com alegria. Então, passei muitas horas pintando um turbilhão colorido ele; sentia-me presa numa armadilha e sabia que tinha de encontrar brilhante de excitação. Agora essa pintura está pendurada na minha uma saída daquelas árvores escuras e selvagens de autonegação. Com 50 51remorso e tristeza, consegui o divórcio e, com muitas trepidações, fiz 2 duas malas, peguei os dois cachorros e minhas crianças uma delas eu - e voltei à faculdade novamente. Uma vez mais, meus estudos in- cluíram não somente arte, mas também pessoas antropologia cultu- ral. Recebi meu título de mestre em artes vinte anos depois do diploma TERAPÊUTICAS de bacharel. As crianças e eu fomos viver numa comunidade de ar- tistas no México. Num relacionamento muito próximo, de quase dez COM ARTE anos, com um segundo marido, que era um artista dedicado, aprendi diretamente muito mais sobre artistas como pessoas. Por causa das minhas explorações, descobri, pela experiência real, como posso facilitar o uso de meios de arte para as pessoas para sua própria expressão, comunicação, contato e solução de problemas. Apesar da minha exploração ser experimental e pragmática, é baseada na crença de que todos nós, a menos que sejamos psíquica ou fisica- mente muito incapacitados, somos intrinsecamente criativos; que so- mos como deuses e criamos a nós e a nossas comunidades a partir do ENSINANDO APRENDENDO COM CRIANÇAS que está ao nosso dispor. Muito mais está disponível além do que nos- sas mentes prosaicas ousam admitir. Temos muitos modos alternativos Da mesma forma que me recuso a descrever experiências de de ser e de nos comportar. Estamos envolvidos na evolução cultural, talvez revolução, e cada um de nós é responsável por sua parte na pessoas como "relato de caso", reluto em me autodenominar artete- nossa evolução total como seres humanos. Minha parte é pequena, rapeuta; prefiro dizer que sou uma pessoa cujo viver inclui estar com assim como a sua, mas todas as nossas pequenas partes, juntas, fazem outros como amiga, professora, estudante e, algumas vezes, terapeu- a configuração, e o todo é maior do que a soma. Essa filosofia é a base e que todos esses relacionamentos estão continuamente mudando; da maneira como vivo e trabalho; a filosofia está morta a menos que isto é, a relação de "quem está fazendo o que a quem" permanece seja vivida. ambígua. Comecei a aceitar essa idéia profissionalmente quando ini- o ensino de arte e ciência numa pequena escola particular que tinha poucos professores. As nove crianças da minha classe tinham sido agrupadas princi- palmente porque nenhuma delas parecia se encaixar em nenhum outro lugar. Em minhas tentativas de ensiná-las, comecei a aprender como usar a arte terapeuticamente com os outros. Todas elas tinham problemas suficientemente graves para serem rotuladas como desajustadas em escolas públicas, mas não o suficien- para que fossem encaminhadas a instituições especializadas. Suas idades variavam de dez a quinze anos, seus QIS, de 70 a 160; algumas estavam em terapia particular, outras não. Não havia nenhum psicó- logo escolar. Nessa época, eu era jovem inexperiente, idealista e entusiasma- da com meu primeiro emprego, que foi obtido graças àquele certifica- do de professora que dizia que eu era competente para ensinar ciências 53 52gerais e arte, e também era formada em psicologia. Não estava total- a falar muito cedo. Mandado para uma escola maternal particular aos mente preparada, mas agi como uma terapeuta porque a situação pedia dois anos de idade, aprendeu a ler quando tinha quatro anos. Ele uma abordagem terapêutica. Usei a arte como um veículo porque es- aprendia tudo mais rápido do que seus colegas. Era elogiado, testa- tava à vontade com esse meio e porque descobri que funcionava. do, empurrado e exibido por seus orgulhosos pais. De repente, aos Funcionou mais para alguns dos alunos do que para outros: todas nove anos, Bob parou de falar; primeiro com seu pai, depois com sua as crianças gostavam de usar materiais de arte; a maioria fez suas pró- mãe, e finalmente Bob não falava com mais ninguém. Quando exa- prias descobertas; algumas poucas trabalhavam com displicência e mes e posteriormente testes mostraram que não havia incapacidade contentavam-se em pintar sem maior interesse. Louise, cuja ficha física, Bob foi enviado a um psiquiatra. Ele estava em terapia duran- indicava um QI de "160", não estava interessada em muita coisa, ex- todo o tempo que minha classe, mas eu não sabia nada ceto em sexo e em criar problemas para outras pessoas; ela era dessa parte de sua vida e seus pais e seu terapeuta não sabiam na- precocemente competente em ambas as áreas. Com ela da sobre o trabalho artístico que Bob fazia. Seus pais não se interes- encurralava Tom, que era vários anos mais novo, vários centímetros savam por seus desenhos e não prestavam atenção neles. Mas eu sim, mais baixo e muito mais inocente do que ela; eu o salvava de suas pro- queria que o terapeuta de Bob os visse também. Porém seus pais es- vocações e dos seus engodos, embora não soubesse se ele apreciava sempre na defensiva em relação à idéia de ele ser um "pacien- ou se ressentia da minha interferência. Na metade do ano, a mãe de não queriam interferir no trabalho de seu médico, e não queriam Louise levou-a embora para Miami Beach e ela nunca mais voltou. que eu tampouco o fizesse; por isso não me disseram o nome de seu Antes de partir, ela aproveitou uma experiência artística; persuadiu psiquiatra ou algo mais depois de nossa primeira conversa. Entendi a Tom a derramar um copo de tinta vermelho-vivo em um galão de mensagem: eu era apenas uma jovem professora de arte, devia colo- branco-puro e então gargalhou triunfantemente, enquanto eu, irritada, car-me no meu lugar, ensinar arte a Bob, mantê-lo ocupado, e não os resistia a meu impulso de afogá-la no líquido rosa-pálido. Não senti incomodar com minhas tolices ingênuas sobre a importância dos seus pena ao ver Louise partir; QI alto ou não, ela parecia necessitar de algo desenhos. diferente daquilo que o pequeno grupo e eu poderíamos oferecer. Assim, voltei minha atenção diretamente a Bob, enquanto ele se Com três das crianças, entretanto, a atividade artística se tornou concentrava em seus desenhos. Bob era um garoto bonito, saudável, o foco principal dos momentos que passávamos juntos. Cada uma de claros olhos azuis e um sorriso gentil. Sentou-se só nu- delas tinha atitudes e necessidades diferentes, mas compartilhavam ma mesa pequena, colocou um papel branco liso à sua frente, usou um interesse fascinante em usar materiais de arte, de forma que des- lápis apontados e canetas de ponta fina mergulhadas em tinta preta e pendi muito tempo e energia inventando maneiras para que usassem desenhou máquinas! Nada mais - sempre máquinas com detalhes me- esse meio de expressão e observando como se beneficiavam com ticulosa e finamente delineados. Quando as outras crianças eram ba- abordagens diferentes. Bob, Mike e Matilda não podiam verbalizar o rulhentas ou faziam propostas a ele, ele as mantinha a distância com que necessitavam, e eu não tinha ninguém para me aconselhar. As seu olhar firme e seu sorriso sereno. Para mim, a sobriedade de seu crianças e eu apenas fizemos o melhor possível, e todos aprendemos olhar estava sempre dizendo: "Não chegue muito perto. Estou obser- muito no processo. vando você. Não chegue muito perto". Assim, eu mantinha distância respeito à sólida e defendida parede de silêncio que Bob tinha construído ao seu redor. No entanto, achava que ele gostava quando BOB olhava seus desenhos desde que não tentasse Fi- nalmente, reuni coragem suficiente para comentar a complexidade do Um garoto de doze anos de idade me ensinou, não-verbalmente, mecanismo de seus engenhos e até para fazer perguntas. Eu estava que se eu não respeitasse o seu direito de ficar em silêncio, não faria realmente fascinada, então podia perguntar com interesse verdadeiro: contato comigo de modo algum. Os pais de Bob me contaram algo "Vejo que sua máquina funciona com engrenagens e que a força é sobre sua história. Tinha sido uma criança precoce, tendo aprendido transferida daqui para lá pelo movimento das pequenas engrenagens 54 55com as grandes e, então, deste cabo para as rodas; mas não sei que servadora, contou-me que ele havia contraído a "Doença de São Vito" parte é esta". "Este é um distribuidor", respondeu Bob. Ele falou sem e estava deixando-a louca; ela o amava muito, mas não sabia o que esforço. Após alguns meses, explicou outras partes dos seus desenhos. fazer com ele. Eu também não sabia, durante aquelas primeiras sema- Esqueci a mecânica que ele me ensinou, mas jamais esquecerei nas. Mike era alto, desajeitado e vivia em constante movimento, in- minha alegria silenciosa quando o tom de sua expressou alguma terrompendo toda e qualquer atividade indiscriminadamente. Ele vida, ainda que suas palavras falassem apenas das estruturas e fun- gostava de pintar, então eu o deixava fazê-lo, não importando o que ções das máquinas. Nunca falamos de Bob como uma pessoa. Quan- as outras crianças estivessem fazendo. Sua concentração era intensa do meus comentários e perguntas se aproximavam de alguma forma do desde que estivesse esparramando cores brilhantes numa folha de pessoal, ele me lançava seu olhar fixo e duro, e eu ficava quieta papel, jamais definindo quaisquer formas, sempre pincelando cores como ele. No fim do ano, Bob foi transferido para uma outra escola brilhantes em movimento. Eu pensava: "Tudo bem, Mike está absor- particular; muitos anos depois, seus pais que nada contavam, me dis- to em alguma coisa sua e está deixando as outras crianças livres para seram: "Ele vai indo bastante bem". fazerem as delas". Mas Mike movia-se tão rápido que logo se cansa- "De que jeito indo bem?" Imaginei, mas não perguntei. Conse- va de pintar apenas suas próprias folhas de papel, e começava a pin- gui mais indagações do que respostas no meu relacionamento com tar tudo ao seu redor - as mesas, as cadeiras, o trabalho de outras Bob e seus pais. Estes pareciam ter bocas como as das tartarugas sel- crianças e seus rostos. Toda vez que ele fazia isso, era um pandemô- vagens; podia fantasiá-los mordendo forte e se recusando a largar. nio de gritos, lágrimas e brigas. Tentei argumentar com Mike. Ele me Eles eram intransigentes também, e eu não conhecia um meio de che- respondia com promessas solenes de que ficaria em seu lugar, mas gar até eles. Será que Bob sentia isso em relação a eles também? Du- assim que começava a pintar, tudo recomeçava. rante os anos em que se recusara a falar, o que estaria pensando? Que No desespero, decidi dar-lhe todo o espaço que quisesse. Com- complexidade de pensamentos-sentimento estaria expressando em prei um grande rolo de papel de embrulho e preguei-o numa parede seu intenso envolvimento com máquinas? Seria coincidência seu alta da sala. Dei a ele grandes pincéis de pintar parede e uma lata de pai ser um engenheiro ambicioso e proeminente? Teria Bob mostra- tinta barata, de pintar cartazes, e deixei-o sozinho. Tudo o que eu do seu mundo de máquinas para seu terapeuta, ou teria ele guardado fazia era observar quando ele havia terminado de cobrir a extensão as engrenagens, rodas e cabos para si, quando estava a sós? Ao de 1,20 m X 9,00 m do papel e pedir sua ajuda para desenrolar mais menos ele me deixou vê-los. Penso que ele confiou em mim para re- papel e pregá-lo na parede. Mike pingou e esparramou tinta; ele e o ceber suas mensagens simbólicas porque, em vez de forçá-lo a se chão estavam uma bagunça, mas ao menos ele permaneceu em seu comportar de acordo com um critério padronizado de desempenho, próprio lugar. Gradualmente, começou a discriminar entre espalhar eu o respeitei o suficiente para deixá-lo usar os meios de expressão e usá-la para criar formas. Durante os primeiros meses daquele artística do seu próprio jeito. Nem tentei forçá-lo a falar até que esti- primeiro ano, Mike aprendeu a pintar murais. Mais para o fim do vesse pronto. ano, ele se juntou ao grupo com maior e, às vezes, até as- sumia uma liderança responsável. Foi ele quem sugeriu que toda a MIKE classe, junta, fizesse um mural e propôs o tema "A História do Mundo", o que achei muito expressivo da necessidade de grandes espaços de Mike. mural foi feito usando a parede toda, com a par- A quietude e o silêncio de Bob tinham atraído minha atenção. ticipação de todas as crianças. Um outro garoto chamou minha atenção por sua contínua movimen- O incrível foi a mudança na atitude de Mike. Tendo sido sua a tação e barulho. idéia, queria a pintura feita de forma "certa"; então, tomou a chefia Mike tinha treze anos quando o conheci. Por causa de uma longa dizendo aos outros para obedecer a um projeto global, dizendo-lhes, doença superada quatro anos antes, ele fora mantido em casa sob a vi- com algum desdém, que certas áreas estavam reservadas para deter- gilância de seus aparentemente dedicados pais. Sua mãe, calada e ob- minados temas. "Você não pode pintar um dinossauro ao lado de um 56 57avião!" Ele tinha desenvolvido um certo conhecimento básico sobre com uma face impassível, voltava a se sentar. "Puxa", eu pensava, a mistura de cores e ajudou a ensinar aos outros sobre como não che- "talvez não haja jeito de eu estimular Matilda. Talvez ela esteja bem gar a um marrom turvo quando você quer um púrpura brilhante. como está." A mudança gradual na forma de Mike trabalhar com pessoas e Mas um dia, estávamos tendo uma aula sobre respiração. Eu es- materiais surgiu depois de ter-lhe sido permitido concretizar suas tava contando às crianças sobre os cílios em seu aparelho respiratório, necessidades não reconhecidas de livre expressão. Ele não podia que filtravam o pó do ar que elas respiravam. A maioria das crianças usar palavras para descrever suas frustrações; suas respostas ver- entendeu a idéia geral, mas estavam mais interessadas na palavra cilia bais eram dóceis e penitentes: "Sim, serei bom. Sim, eu sei que não (cílios, em inglês), que eles imediatamente transformaram em sillier devia bagunçar as pinturas dos outros". Sua era baixa e fraca; (bobão, em inglês) e começaram a criar todo tipo de trocadilhos en- seu corpo e sua expressão artística gritavam desesperadamente: graçados. Matilda não entendeu a idéia da brincadeira e continuou "Eu preciso de tempo, de espaço e de ação! Dê-me liberdade para séria. Ela perguntou: "Tenho mesmo pequenos pêlos dentro de mim trabalhar do meu próprio jeito!". Quando reconheci e aceitei a que varrem o pó?". Então, é claro, as outras crianças, com sua pe- mensagem verdadeira de Mike, fui capaz de atender ao que preci- culiar crueldade infantil, fizeram de Matilda o alvo de suas piadas, re- sava; então ele compassou seu ritmo para responder às necessida- petindo: "Bobona! Bobona! Bobona!". Pela primeira vez, realmente des de seu corpo. compreendi Matilda; ela estava intrigada com a idéia daqueles peque- Não sei se Mike consegue manter sua concentração na vida adul- nos pêlos dentro dela. Essa foi a primeira pista que recebi de que ela ta, mas ao menos aprendeu a direcionar suas energias mantendo-as podia expressar curiosidade real. Então ignorei as outras crianças, vigorosamente dentro de limites aceitáveis e construtivos. anotei a grafia correta, e disse a Matilda que procurasse a palavra na enciclopédia, que lesse o que encontrasse lá e, então, que contasse aos outros o que havia encontrado. Ela obedeceu com um sorriso, mas MATILDA ficou desanimada porque nem as palavras na enciclopédia, nem os diagramas da passagem nasal e traquéia, faziam sentido para ela. Es- A terceira criança a se beneficiar da atividade artística não fez tava desapontada e quase em lágrimas; queria entender, mas as pala- nada, a princípio, para atrair minha atenção; de fato, ela quase nunca vras e os diagramas lhe eram muito abstratos. Subitamente tive uma fazia qualquer coisa a não ser quando era forçada. Sua aparência, inspiração: "Ouça", disse, "se puser o dedo dentro do nariz e tocar modos e reações eram incrivelmente sem vida. Ela parecia desapare- com muito cuidado, poderá sentir alguns cílios." Ela fez isso e arrega- cer nas paredes salpicadas de cinza. Após algum tempo, conscienti- lou os olhos. "Agora talvez você possa fazer um desenho de como são zei-me de que minha política de deixar as crianças encontrarem os seus cílios dentro do nariz." Ela fez isso e aconteceu muito mais do seu próprio caminho estava funcionando ao contrário com Matilda; que eu podia prever. Suas primeiras linhas eram pêlos ao pé da letra; quanto mais eu encorajava a iniciativa individual, mais ela apenas desenhou tipos diferentes de cílios: "Este cílio está cansado de varrer permanecia sentada. Finalmente, relutante e impacientemente, deci- e foi dormir; este é o maior de todos e pode varrer melhor", e assim di iniciar projetos para ela. Sua ficha informava: "Idade: 14 anos; QI: por diante. Matilda estava radiante; eu estava encantada e deixei-a de- 70; dificuldade para ler". Eu nunca havia tido contato próximo com senhar todos os seus cílios. Algum tempo depois, ela passou a dese- uma criança tão passiva quanto Matilda; não sabia como despertar nhar figuras de palito "bobonas". "Este é Mike sendo 'bobão'; Isto é nela algum tipo de interesse por alguma coisa. Pensei que talvez pu- como pareço quando sou 'bobona'." A essa altura ela estava realmen- desse ajudá-la a aprender a ler. Tínhamos uma enciclopédia para se divertindo e produzindo todo tipo de figuras-palito com um sen- crianças, escrita de forma simples, então cada vez que Matilda mos- de humor brincalhão. trava interesse por alguma coisa que ocorria, eu sugeria que ela lesse As outras crianças estavam tanto invejosas quanto entretidas. Ma- sobre isso na enciclopédia. Dócil, bem-comportada e desinteressada, tilda era o centro das atenções e se comprazia em ser notada. Após o ela olhava as palavras, olhava as figuras, estudava a impressão, e ocorrido, continuou a desenhar figuras-palito adicionando-lhes todo 58 59tipo de enfeites. Quando o grupo pintou o mural "A História do fazer enquanto aprendiam a conviver com seus ferimentos físicos e Mundo", Matilda foi escolhida para desenhar a maioria das figuras. Os psíquicos. pais de Matilda vieram, por ocasião do dia de visita, para conhecer o A grande sala era ensolarada e bem equipada; os homens, vestidos mural terminado. Beiravam os sessenta anos e eram tão quietos e re- com pijamas azuis e roupões, eram silenciosamente respeitosos; as en- servados quanto ela; não falaram muito, mas seu prazer e orgulho fi- fermeiras eram amáveis e prestativas; e todos nós evitávamos reconhe- caram óbvios quando viram as pequenas figuras destacadas de Matilda cer o horror de que estes homens estariam inválidos para sempre. Pelo em áreas estratégicas da "História do Mundo". menos, era assim que me parecia. Via-os somente poucas horas por se- A leitura de Matilda melhorou bastante, desde que o material mana e demorei um pouco a entender que a maioria deles via a arte fosse relacionado a algo que ela pudesse experienciar diretamente. com pavor e ficava envergonhada quando eu me oferecia para ajudá- Podia aprender melhor novas idéias quando conseguíamos encontrar los a fazer o que quisessem com os materiais de arte. Seus sorrisos tí- um modo de ela tomar contato com a idéia por meio dos seus senti- midos e a polida anuência a todas as minhas sugestões, deixavam-me dos. Dados abstratos não faziam sentido para Matilda, mas seus de- frustrada. Queria que fizessem alguma coisa que realmente tivessem senhos sim. Como ela os havia feito com suas próprias mãos, eles lhe vontade de fazer; eles, por sua vez, queriam que eu lhes dissesse o que eram reais; ela conseguia incorporar o aprendizado junto com suas vi- eu desejava que fizessem! Não estávamos chegando a lugar algum até sualizações. que um homenzarrão, sentado numa cadeira de rodas, com as pernas Minha experiência com Matilda salientou aquilo que havia de seu pijama enroladas onde suas pernas deveriam ter estado, disse aprendido anteriormente - que a minha melhor maneira de ensinar e com olhar zangado e grave: "Bem, eu sei o que quero fazer. Quero fazer terapia era estar tão relaxada, alerta e consciente quanto fazer algo bonito para minha mulher". Essa afirmação apresentou-me vel para poder receber "dicas" das próprias crianças. Esqueço esse Cliff e quebrou o impasse de inibição entre os homens e o material de aprendizado às vezes e tento impacientemente enquadrar indivíduos arte. Nenhum deles se sentiu com coragem suficiente para tentar uma em padrões teóricos. Quando o faço, tanto as pessoas como eu nos pintura livre, e eu não gostava da idéia de vê-los produzindo monóto- sentimos desconfortáveis com os resultados. nos objetos moldados; então partimos para a pintura em tecido. Com Quando isso acontece, paro de tentar controlar como posso enqua- um mínimo de instrução, metros de tecido liso, vidros de tintas com drar o paciente em um fato; lembro-me de como o crescimento de Ma- cores vivas e pincéis, os homens puderam pintar seguindo seu próprio tilda, a partir de uma aparente falta de identidade para uma identidade gosto. Alguns fizeram padrões audaciosos, outros pintaram tímidos de- pessoal, começou quando ela fez contato com uns pequenos pêlos cha- senhos florais; dois homens jogaram o jogo-da-velha com a tinta no te- mados "bobões"; quando me lembro disso, sei que não consigo plane- cido. As enfermeiras passaram a ferro os metros de tecido para fazer jar nenhum método controlado que possa rivalizar com aqueles que com que as cores ficassem à prova d'água; os companheiros do jogo- podem ocorrer espontaneamente numa relação real da vida. da-velha mandaram fazer camisas iguais, com o seu tecido, para vestir quando deixassem o hospital e cada um seguisse o seu caminho. Eu estava contente com a maneira como os homens se divertiam TRANSPONDO ALGUMAS LACUNAS com o material; estava aliviada porque haviam esquecido o seu pavor pela ARTE ao fazerem algo que era agradável e útil ao mesmo tempo; Intercalado com os meus dias caóticos na escolinha pobre, onde estava feliz em vê-los rir juntos dos seus esforços e dos seus erros. as crianças e eu batalhávamos com o material de arte e com pro- blemas de crescimento, eu ia ao centro de reabilitação de um grande hospital naval e atendia, como terapeuta ocupacional, homens que ha- CLIFF viam ficado paraplégicos. Ali, tudo parecia estar organizado, e todos pareciam saber exatamente que papel desempenhar em direção ao ob- Ninguém ria de Cliff; esse homem era sério e queria fazer "algo jetivo comum de proporcionar àqueles homens algo interessante para bonito". E o fez. Fez um jogo americano completo - toalhas indivi- 61 60duais com guardanapos combinando; cortou o tecido caprichosamen- sávamos abertamente uns com os outros sobre os nossos problemas. te e puxou fios para fazer franjas; e em cada peça pintou flores de Nas aulas noturnas, homens e mulheres usavam a pintura como fuga cor-de-rosa surgindo em meio a galhos escuros. Não é fácil pin- em vez de usá-la como um modo de entrar em contato com a rea- tar formas tão delicadas em tecido rústico, mas Cliff era muito persis- lidade. Alguns até traziam postais com fotografias que desejavam co- tente em suas pinceladas gentis. Ele nunca sorria. Não era mais um piar! Eu queria gritar: "Mas a experiência de arte precisa vir de você, rapaz - seu rosto era vincado por marcas de dor -, mas, após ter ter- não de uma pequena fotografia brilhante!". Mas eu não gritava; na- minado a última toalha e os jogos terem sido passados a ferro capri- quele tempo, ainda era muito educada. Diplomaticamente montava chosamente, seus olhos e a maneira como alisava o tecido com suas arranjos vivos de vasos, flores, frutas e cabaças; insistia com firmeza mãos mostravam sua satisfação em ter feito algo que valia a pena dar que se não quisessem expressar sua realidade interna em forma de para a sua mulher. arte, poderiam pintar suas percepções de realidade externa. Definiti- Apesar de estar satisfeita com a maneira como os homens usavam vamente, recusava-me a ajudá-los a copiar a pintura de alguma outra materiais de arte, nunca senti como se conhecesse qualquer um deles pessoa. como pessoa, a não ser Cliff. Não sabia nada, nem mesmo sobre a sua Os alunos gostavam das sessões; alguns fizeram pinturas sa- vida pregressa ou futura, mas enquanto ele estava na sala de arte, tisfatórias. As aulas tiveram sucesso em dar-lhes um meio para ex- quando falávamos sobre como pintar flores de crescendo de ga- pressar o gosto pessoal em composições, formas e cores, e eles se lhos retorcidos, sabia que estávamos falando mais do que sobre o de- congratulavam mutuamente. Fiquei genuinamente contente e satis- senho que ele pintava em um pedaço de tecido. feita por estar contribuindo para uma necessidade real naquele cen- Também sabia, mesmo com Cliff, que estávamos evitando falar tro comunitário. diretamente do fato de que aquele homem forte nunca mais se sus- Entretanto, minhas próprias necessidades estavam sendo soterra- tentaria sobre seus próprios pés. Talvez fosse uma atitude sábia não das sob camadas de fingimento. Eu era uma professora de arte com- falar desse fato cruel comigo; eu estava lá especificamente para ofe- petente e pintava razoavelmente bem, mas queria mais do que isso recer distração; talvez Cliff e os outros homens tivessem outras vál- da experiência artística. Queria mais para as outras pessoas também; vulas de escape para expressar a dura realidade de suas perdas. queria que soubessem, por experiência própria, que podemos usar a Mesmo assim, sentia que estávamos todos encobrindo e fingindo uma arte para chegar mais perto da realidade. Não queria que temessem boa parte do tempo. a realidade; acima de tudo, queria vencer meus próprios medos de en- Como eu usava a arte para liberar minha própria raiva e dor, e carar a realidade. Mas temia me expor, então andava em volta deles também para criar formas divertidas, eu me sentiria melhor se algum encorajando-os com um sorriso quando, na verdade, sentia vontade dos homens, em algum momento, tivesse usado os materiais para ex- de chorar. pressar qualquer ressentimento bloqueado que, presumia eu, certa- mente deveriam estar sentindo. Entretanto, nunca lhes sugeri isso. Sabia que meu papel naquela vasta organização hospitalar fora esta- WILLIAM belecido por homens que eu nunca via pessoalmente, cujas atitudes eu questionava, porém obedecia. Então percebi que um homem nunca pintava as naturezas-mor- Num elegante centro de arte de um bairro abastado, onde dava tas que arrumava. Conhecia-o socialmente e sabia que era físico; co- aula de arte duas noites por semana, eu tinha os mesmos sentimentos mo eu, tinha trinta e poucos anos de idade, mas só agora percebo incômodos de que estávamos evitando, por um acordo implícito, como parecia velho e emaciado. Vi, também, que todas as suas pin- qualquer coisa que pudesse ameaçar nossa crença de que "Deus está turas eram abstrações coloridas, com pouquíssimas formas apenas no céu - tudo está bem no mundo". Nada estava bem no meu mundo cores claras se misturando, fundindo-se e se separando em fluidos - disso eu tinha certeza. Também conhecia muitos dos meus alunos, caminhos luminosos. Perguntou-me como fazer veladuras, e contou- e alguns deles tinham uma vida particular confusa. Mas não conver- me em palavras que sentimentos queria expressar. E então, quase se 62 63desculpando, confidenciou-me que tinha câncer terminal e queria fazia, que parecia alheio à algazarra e à tagarelice da sala. Penso que pintar a essência da aceitação do término de sua vida neste mundo e atingiu um tal estado de ser em que conseguiu conservar sua fraca a fé de que sua força vital estaria fluindo para alguma outra dimen- energia física de forma a poder descobrir o quanto podia expressar o são desconhecida. Sua fé pertencia somente a ele, eu não poderia que Frank Baron denomina de vitalidade psicológica. Por meio do atingi-la, exceto por suas pinturas; com suas pinturas, como uma corpo frágil de William, emergia a energia triunfante com a qual sin- ponte entre nós, podíamos falar sem reservas. Falamos sobre vida, tetizava, em cores, clara e vividamente, seu processo e sua filosofia; morte, medo e sobre a realidade disso tudo; também falamos sobre não quero dizer com isso que suas pinturas fossem obras de arte, ou beleza, fé e esperança. que William professasse qualquer filosofia abrangente da verdade; Com William, naqueles últimos, e poucos meses de vida, read- quero dizer que ele expressava o seu cessar de lutar pelas coisas ter- quiri parte da minha fé no potencial humano de aceitar o que é preci- renas que todos fazíamos estardalhaço para adquirir; ele o fez com ser aceito com coragem e sem amargor. A mente perspicaz de compostura, sem evitar sua realidade e sem impô-la a ninguém William havia sido usada na área de pesquisa em biofísica; agora ele Frank Baron descreve o estado mental e emocional que, acredi- usava a experiência artística para criar belas imagens de suas desco- to, William tenha atingido: bertas e explorações espirituais. Sua mulher contou-me, após sua morte, que ele havia pintado em Quando tal simplicidade em meio à complexidade é atingida, casa às vezes durante horas, sempre guardando as pinturas num armá- penso que dois efeitos novos e importantíssimos passam a exis- rio, nunca olhando para elas de novo, imediatamente absorto a fazer tir na experiência individual. Um deles é o sentimento de que se uma outra. Ela me trouxe algumas para que eu as visse; elas variavam é livre e de que a vida e seu resultado estão em nossas mãos. apenas um pouco entre si; todas estavam serenamente integradas. outro é uma nova experiência da passagem do tempo e um senso Para mim, o conteúdo das pinturas de William falava de uma rea- profundo de participação relaxada no momento presente. Tudo lidade que poucos de nós podemos vivenciar calma e aceitação da experiência é conseqüentemente duradouro no momento exa- quase impessoal. Apesar da rápida desintegração do seu corpo físico, to da sua ocorrência, e a vida deixa de ser o percurso entre o nas- ele usou sua capacidade orgânica, e talvez algumas outras que não co- cimento e a morte, e se torna, em vez disso, uma experiência nhecemos muito bem, para preservar, em forma física concreta, uma plenamente percebida de transformação, na qual cada simples es- série de pinturas que registravam a sua reconciliação da vida e da tado é tão válido e necessário quanto todos os morte. Para mim, suas pinturas coloridas e suaves representavam uma realidade transcendente. Eu estava grata de ter sido capaz de ajudá-lo TAMBÉM/E a usar a arte para si mesmo. Era difícil expressar em palavras minha gratidão a William pelo "Cada simples estado é tão válido. quanto todos os demais", diz que aprendi com ele. Como poderia dizer a um homem que estava Frank Baron. Quando me sinto como uma só comigo mesma, aceito morrendo: "Você está me ensinando muito sobre como viver". Como essa verdade para mim e para os outros. Mas prefiro alguns estados a poderia dizer: "Nesta sala cheia de pessoas tentando ruidosamente outros; desde que comecei a dar aulas de arte, venho seguindo minhas competir umas com as outras com um palavreado sofisticado e cinti- preferências e fazendo escolhas quanto à maneira como quero viver. lante e com produções inteligentes, apenas a sua voz baixa e suas pin- Minhas escolhas pessoais afetam a vida dos outros turas ordenadas me estimulam". Entretanto, talvez William soubesse algumas vezes eles se opuseram às minhas escolhas e, outras, eu me o que eu queria dizer e entendesse que sua presença acalmava os res- opus às deles. Inevitavelmente, não podemos sempre chegar a um sentimentos e irritações insignificantes com as quais estava perdendo acordo satisfatório. tanto tempo e energia. William não desperdiçou seu tempo limitado e sua energia; vivia cada momento enquanto pintava, aparentemente tão absorto no que 1. Frank Baron, Creativity and Personal Freedom, ed. rev. Van Nostrand Rei- Nova York (1968), pp. 5-6. 64 65Em minha vocação, centrada na arte, aprendi muito com aquela grita descompromissadamente, "ou isto ou aquilo: ou terapia ou professora querida - a experiência. Tolamente ou não, escolhi mudar educação ou crescimento pessoal", como se qualquer dessas atitudes, de área quanto à minha formação e atuação. Não percorri um cami- objetivos e valores pudessem ser separados um do outro! A nho direto e estreito de lá para cá. Ensinando arte aos outros, aprendi cia artística é para o crescimento pessoal e para a educação e para o o quanto precisava ser ensinada; dos anos em que vivi em comunida- aumento de consciência e para a percepção e para a criatividade e des fora dos Estados Unidos, formadas exclusivamente por artistas, para senso de uma identidade pessoal e para muito mais - e todas aprendi o quanto queria viver com todo tipo de pessoas; dos anos em estas são partes intrínsecas do processo terapêutico global. que vivi em comunidades intencionais, descobri que queria mais A totalidade do processo terapêutico fica ameaçada pela divisão tempo para ficar sozinha; da desistência do contato mais próximo dicotômica dos participantes nas categorias de ou "sãos" ou "doen- com a arte e com as pessoas, soube que precisava voltar à esfera es- tes"; o terapeuta que complacentemente sentado vê as expressões ar- timulante, exasperante e desafiadora da relação com outros pela ex- de seus pacientes apenas como sintomáticas desta ou daquela periência da arte. Assim, ziguezagueando por alguns caminhos que descrição classificatória de neurose ou psicose está alimentando o levavam a lugar nenhum e vagando por alguns outros que se alarga- dragão da síndrome do "ou/ou" com filé-mignon. vam em vistas panorâmicas, cobri um território extenso. Cresci; do fi- Conheço muitos terapeutas; conheço muitos termos de diagnós- lhote de pássaro que pensava: "Deve haver um modo de fazer as ticos e posso aplicá-los às pessoas com uma razoável porcentagem histórias da vida terem um final feliz; se ao menos pudesse descobrir de exatidão. Conheço-me, vejo meu trabalho artístico; se não me co- o caminho!", até o velho pássaro valentão que sou agora e pensa: nhecesse, se visse meus desenhos com o olhar frio do diagnóstico, "Sim! Há muitas maneiras de viver plenamente, se pudermos aceitá- poderia condenar-me a alguns prognósticos psicopatológico de dar las como parte de uma configuração total em vez de vê-las como es- calafrios. tados singulares, com 'limites Felizmente, muitos terapeutas não se sentem intimidados pelo Ainda estou explorando; ainda continuo a queimar pontes e dragão do "ou/ou"; podemos aceitar a nós mesmos e àqueles de quem construir balsas; continuo sendo uma "pessoa em processo" como somos terapeutas, a todos nós como pessoas em processo. Evidente- algumas outras, cujas explorações serão apresentadas nos próximos mente, em fases diferentes de processos. Alguns de nós precisam de capítulos. Espero continuar por muitos anos ainda nesse processo de mais assistência do que outros; todos nós passamos por fases em que estar sempre à procura de respostas mais completas; espero conti- não estamos funcionando plenamente; nenhum de nós é invulnerável; nuar na companhia de pessoas que experimentam e se arriscam, que nenhum de nós está livre de inseguranças e medos. Portanto, apren- algumas vezes se metem em confusões na tentativa de encontrar demos, apoiamos, desafiamos e crescemos juntos. maneiras inovadoras de serem humanos mais plenamente funcio- Não nos desumanizamos ao negar nossa humanidade comum. nantes. Preciso e dou boas-vindas a essas companhias, porque, fe- Sabemos que todos vemos a nós mesmos, ao outro e ao mundo com lizmente, recuso-me a envelhecer aceitando padrões conformistas, um olhar individual; percebemos tanto subjetiva quanto objetivamen- que considero inibidores do crescimento pessoal - meu e de outros. Apenas computadores podem ser totalmente objetivos; as pessoas Na minha cruzada obstinada, algumas vezes, não consigo distinguir que negam sua subjetividade estão praticando o jogo perigoso do "faz os moinhos dos dragões e, eventualmente, meto-me em situações de conta que sou um robô sabe-tudo. Tudo que você tem de fazer é ridículas. apertar o botão certo, que lhe darei a resposta correta". Neste exato momento, meu entusiasmo está voltado a uma con- O dragão do "ou/ou" é uma construção robótica; pode ser des- tenda contra o que considero ser um verdadeiro dragão na prática de mantelado e reduzido a algo sem poder se nós, pessoa a pessoa, puder- usar arte terapeuticamente. Chamo esse dragão de "síndrome do 'ou/ mos aceitar que estamos todos em lugares diferentes na estrada da vejo-o bloqueando a estrada que poderia nos levar a um cami- descoberta e reconhecermos que podemos todos aprender novas dire- nho verdadeiramente útil do uso mais eficiente da grande variedade uns com os outros. de meios artísticos, se pudermos abater essa criatura de casca grossa Na experiência artística, em especial, o criador das formas per- 66 67cebe e expressa nuances tão sutis que nunca poderão ser encaixadas tanto não confio nas minhas percepções. Na maioria das vezes, no en- em divisões teóricas classificatórias estreitas e apertadas. tanto, quando um paciente e eu estamos buscando juntos, podemos Mais especificamente, nos meus contatos e comunicações com descobrir não apenas a negatividade revelada nas formas de arte, mas as pessoas que compartilharam suas formas de arte comigo, tive in- também alguma awareness do que é potencialmente positivo. sights que me ajudaram na minha própria arte e trabalho. A paciência Atualmente, quando pessoas chegam a mim procurando uma de Bob, a energia de Mike, a humildade de Matilda, a coragem de experiência terapêutica de arte, sejam elas encaminhadas por seus Cliff e a aceitação silenciosa de William foram qualidades individuais psicoterapeutas ou venham por si mesmas, normalmente me sinto re- com as quais pude me conectar tanto para lhes facilitar a busca de si laxada e confiante de que posso lhes oferecer materiais e métodos mesmos como a minha busca por mim mesma. que as ajudarão a entrar em contato com suas próprias necessidades Cada um fez seu próprio trabalho e eu fiz o meu; cada um deles e com maneiras de encontrar suas próprias respostas. Algumas vezes se dispôs a expressar suas necessidades internas, e eu me dispus a acei- isso não funciona tão diretamente; então, o cliente e eu precisamos tar o que cada um me mostrava como uma mensagem válida da sua explorar vários tipos de abordagem e meios alternativos. Quando en- personalidade singular. Para encontrarmos caminhos terapêuticos cons- caramos o desafio e caminhamos juntos, a experiência torna-se exci- trutivos, ambos, eles e eu, tivemos de investir no processo. tante e produtora de crescimento para ambos. Reporto-me a situações de anos atrás, vividas nas escolas parti- Houve vezes em que trabalhei com pessoas que não podiam ou culares, porque foi lá que aprendi como a arte pode ser usada terapeu- não queriam cooperar com minhas sugestões, e tampouco tinham ticamente; ali, o conceito do "ou/ou" foi inteiramente trocado pelo idéias construtivas por si mesmas. Nessas situações, ponho de lado conceito mais flexível "e/também". Por necessidade, eu era tanto pro- minha formação de arteterapeuta gestáltica e recorro a toda a minha ex- fessora quanto terapeuta para as crianças; por outro lado, muitas delas periência de vida. Investindo como uma pessoa total num esforço com eram professoras e terapeutas para mim. No processo, todos aprende- outra normalmente traz algum tipo de resposta positiva; mas houve mos bastante. vezes em que saí desgastada da batalha e sem nenhuma certeza de que Esse aprendizado me foi muito útil. Agora, quando sou ameaça- meu comportamento não-ortodoxo tenha beneficiado o paciente. da pela síndrome do "ou/ou", dou um tempo e tento aplicar o "e/tam- bém". Normalmente, consigo encontrar meu caminho em meio a PENNY dicotomias aparentemente antagônicas. Sou tanto professora quanto terapeuta na experiência gestáltica de arte. Quando estou com alguém nesse duplo papel, lidero e também sou Meu trabalho com Penny, realizado há três anos, durou vários liderada; a pessoa com quem estou trabalhando é tanto minha guia quan- meses e foi altamente não-ortodoxo. Apesar de acreditar que a ajudei to também é guiada por mim. Sobretudo, tanto a outra pessoa quanto a se recuperar de uma fase psicótica severa, não tenho certeza de eu precisamos buscar e honrar a singularidade de cada uma de nós. como, e até que ponto, o fiz, porque houve muitas complicações além Sigo a minha convicção de que cada uma de nós está expressando sua daquelas com que lidamos diretamente em sua arteterapia. fraqueza e também sua força - suas necessidades e seus recursos. Em Seu médico me procurou a pedido de Penny e me colocou a par minha interpretação da arte do cliente, estou convencida de que preci- da situação e de sua urgência: Penny tinha dezessete anos e parecia vê-la tanto por minha percepção como também, tanto quanto pos- estar decidida a morrer. Um ano antes ela havia tomado LSD pela pri- sível, empatizando com a percepção do cliente. Preciso confiar que o meira vez e, sob sua influência, havia calmamente saltado para o es- criador daquela forma de arte é potencialmente capaz de fazer uma paço vazio do telhado de uma construção. Agora, depois de meses no auto-interpretação que é mais completa do que a minha interpretação hospital, estava confinada a uma cadeira de rodas e a viver com seus da sua personalidade. Algumas vezes, o paciente não tem consciência desesperados pais. Eles culpavam o LSD e os amigos da universida- do seu próprio potencial, então preciso me apoiar nas minhas próprias de onde Penny havia sido uma estudante de arte; estavam determina- interpretações. Outras vezes, não tenho empatia.com o paciente, por- dos a mantê-la em casa, e ela estava igualmente determinada a ser 69 68independente, mesmo sabendo que não poderia jamais andar nova- (quem sabe? - ela pode realmente funcionar!), mas estimulo pessoas mente. Conversei com o médico dela e com dois da meia dúzia de cheias de raiva, frustradas contra si mesmas, contra os outros e con- psicoterapeutas que eram chamados toda vez que Penny cometia ou- Ira mundo em geral a dar vazão à sua raiva em materiais, ao invés tros atos autodestrutivos. Eles corroboraram minha opinião de que de fazê-lo contra pessoas. havia muito mais do que o efeito da droga e que o desejo de Penny É claro que esse tipo de explosão emocional deveria ser permiti- de usar arteterapia era possivelmente um modo de ajudá-la. Ao me- da somente quando a pessoa envolvida fosse suficientemente estável nos valia a pena tentar. a ponto de poder discriminar entre "estou esmagando na fantasia a Durante vários meses, em meio a todo tipo de crises imprevisí- imagem da minha mulher em argila" e esmagar minha mulher veis, Penny e eu nos encontrávamos por quatro horas semanais em real em casa". Ninguém jamais agiu violentamente contra outra pes- sessões individuais. Eu fornecia o material de arte e ela o aceitava avi- soa no meu e, até onde sei, ninguém saiu de lá com essa inten- damente, mas nunca os usou em minha presença, e não me deixava ver Não obstante, se tenho dúvidas quanto à capacidade de alguém o que havia produzido até que o tivesse reduzido a ruínas. Disse que de definir seus próprios limites de atuação catártica, tendo a fechar as fazia desenhos e os rasgava em pedaços, e que não gostava de traba- chaminés e a abaixar um pouco o fogo até ter a certeza de que sabe- lhar com argila porque esta endurecia e era difícil para ela destruir. mos quanto calor o forno pode liberar sem explodir. Comprei quilos de plasticina, que Penny podia espremer em formas Quando escrevo "sabemos", quero dizer paciente-cliente-parti- mutáveis enquanto falava comigo. Seus movimentos manuais eram cipante e eu". A atividade artística precisa ser usada pela pessoa à me- tão frenéticos quanto sua fala, acompanhando seu fluxo de consciên- dida que suas necessidades apontem a experiência com arte como um cia, sobre planos de se tornar uma artista auto-suficiente quando alcan- válido para crescimento positivo em educação, reabilitação e te- a maioridade ou quando convencesse seus pais a deixá-la morar rapia. E igualmente estou convencida de que minha maior contribuição fora de casa. Era cada vez mais óbvio que Penny precisava muito ao processo de ser professora e terapeuta de outra pessoa está em rece- mais do que a simples separação dos pais, apesar de tê-la conseguido ber essa pessoa como um ser único, que vive sua realidade da forma quando se machucou novamente e precisou ser hospitalizada, ao que que escolheu, em resposta aos problemas e padrões inerentes à sua pró- se seguiu um longo período em que esteve em terapia no hospital e, pria situação, altamente individualizada. eventualmente, com o seu retorno à escola de arte. Minha respons-abilidade (habilidade de responder) para com cada Penny precisava mais do que de arteterapia, o que percebi logo pessoa, portanto, é o melhor recurso que posso trazer para qualquer re- que comecei a vê-la. O que eu podia oferecer era uma espécie de vál- lacionamento. Posso adaptar e generalizar melhor a linguagem artísti- vula de escape provisória para sua energia destrutiva. Enquanto me ca e os métodos de uso do material de arte com os indivíduos quando contava racionalmente sobre seus planos de ação construtiva, sua re- sou guiada por suas necessidades reais; para que isso aconteça, a ex- lação com o material artístico era criar formas com o objetivo de des- periência de arte precisa ser uma relação Eu-Tu, incluindo o cliente truí-las. Não creio que Penny conscientemente soubesse o que estava como um agente ativo que sabe, com certo nível de awareness o que fazendo, mas estou convencida de que estava usando a atividade ele necessita. Minha parte na relação terapêutica é a de facilitar o awa- artística tanto como catarse quanto como um modo de expressar dire- reness do participante, de modo que ele possa, então, encontrar o me- tamente sua necessidade de destruir todos os empecilhos que a impe- modo de trabalhar para o seu crescimento pessoal por intermédio diam de conseguir o que queria. da arte. Acho que essa forma de uso destrutivo do material de arte é Algumas vezes, as pessoas escolhem caminhos estranhos: os de- muito valiosa mesmo para outros, com distúrbios muito menores que senhos e a boca fechada de Bob; o esparramar desenfreado de Mike; os de Penny. Usando o material conscientemente, com de as figuras "bobonas" de Matilde; os belos brotos de flor de maçã de forma humorística, podem criar efígies de seus inimigos e destruí-los Cliff; as fusões de cores e luz de William e as formas criadas e des- com alegria diabólica. Dizem que artistas vudus causam morte real a truídas de Penny foram todos modos escolhidos individualmente de outros. Não estimulo a magia vudu em sessões de experiência de arte expressar suas necessidades e esforços para satisfazê-las. Em cada 70 71caso, a pessoa encontrou um meio que parecia o melhor à sua perso- de nós alugaram a casa pensando em muito espaço para ateliês e fan- nalidade naquele momento e lugar. tasiando longas e calmas noites, passadas em reflexões pessoais no Assim, o que é estranho para uma pessoa, é natural para outra, e aconchego das pequenas lareiras, com os querubins brancos no teto quando cada um de nós consegue reconhecer a maneira do outro como lembrando-nos um tempo agradável e gracioso de viver. Bem, as coi- a expressão genuína de uma personalidade complexa total, ambos po- sas não aconteceram exatamente assim; não havíamos previsto o demos crescer, aprender, tornar-nos mais conscientes e descobrir "verão do amor" e a "juventude florida" que não apenas vinham até maneiras de atualizar os potenciais humanos únicos muito além dos nossa porta, mas também subiam as escadas e entravam no meu ate- limites que impomos a nós e impomos aos outros quando nos encon- liê no quarto andar. Subindo aqueles quatro andares, vieram drogas, tramos ameaçados por fantasias assustadoras. gás lacrimogêneo, hippies, ajudantes, militantes, ministros religiosos, gurus, terapeutas, garotos doidões e cidadãos estáveis de vinte anos, ELES barbados e enfeitados com colares, assumindo solenemente a respon- sabilidade de trazer qualquer ordem que pudessem àquele caos, colo- Uma das áreas em que a fantasia e a realidade se misturam numa rido mas enlouquecedor. realidade composta frustrante e algumas vezes assustadora é no con- Antes desse fenômeno, os grupos de experiência com arte do meu flito entre pais conservadores e filhos "hippies". Envolvi-me nessa não haviam sido monótonos e previsíveis, mas haviam seguido área há alguns anos e ainda me vejo com no papel de inter- padrões de consistência em que podíamos confiar. Os participantes mediária entre gerações. Certa vez, senti-me como um pigmeu parado principalmente brancos de classe média e de meia-idade que em meio àquele abismo, estendendo braços de um quilômetro de com- compartilhavam alguns valores considerados corretos. Quando Haight primento a um jovem cabeludo de um lado e a um homem de meia- Ashbury deixaram de ser apenas ruas para se tornarem o centro de idade, com a barba bem-feita, de outro. Em minha fantasia, minha uma experiência social sem precedentes, os grupos de experiência com arte se tornaram algo mais. Chegaram tipos diferentes de pessoas - tremia e gemia enquanto eu implorava: "Vamos lá, rapazes! Parem de tipos muito diferentes. Num grupo, cerca de uma dúzia de pessoas se prestar tanta atenção em seus cabelos e atentem para o que têm de ver- dadeiramente diferente e verdadeiramente comum!". Minha fala esta- sentava em círculo, enquanto criava trabalhos de arte individuais e compartilhava abertamente entre si seus pensamentos e va entrecortada porque eu ria e chorava ao mesmo tempo. Um homem de sessenta anos, que trabalhava no Instituto Nacional de Eu tinha a ilusão de que estava só nesse tão alardeado abismo; Saúde Mental com o problema do abuso de drogas, sentava-se com as entretanto, muitas pessoas de diversas idades e culturas estão nesse pernas cruzadas no chão lambuzado de tinta. Ele interpretou sua pintu- espaço. Apesar de a literatura popular apresentar uma imagem de gru- pos de jovens radicais de um lado e grupos de pessoas maduras e con- ra para uma garota de dezesseis anos, enrolada num sari de cortina, bri- com óleo perfumado, que o ouvia atentamente, e depois falou servadoras, de outro, separados por uma terra de ninguém, esse quadro é muito simplista. Acho que muitas pessoas, tanto as conser- dos seus próprios desenhos psicodélicos. Um jovem de dezoito anos, de cabelos escuros, encaracolados até os ombros, encorajou uma ma- vadoras quanto as radicais, preferem aceitá-lo porque assim têm uma de 72 anos a tirar os sapatos e a movimentar o corpo ao ritmo do desculpa para evitar alargar sua percepção de modo a poder perceber seu pincel; ele segurou sua mão e ambos riram quando ela descobriu que estão participando de um filme bastante complexo, para o qual nenhum roteiro foi escrito. Estamos todos juntos nisso; estamos es- que podia sincronizar o movimento dos dedos do seu pé com os dele. Todo tipo de coisas incomuns acontecia às pessoas incomuns que crevendo os roteiros de nossas próprias vidas, estamos dirigindo nos- vinham aos grupos; com pessoas que dificilmente podiam sas cenas individuais e estamos fazendo isso num campo onde não há lugar para abismo ou território neutro. entender o vocabulário uma das outras pintavam juntas no mesmo rolo de papel. O que pintavam não era necessariamente apenas doci- Durante 1966 e 67, morei em Haight-Ashbury, numa casa vito- riana de quatro andares, que parecia uma casinha de chocolate. Três lidade cooperativa e leveza - de fato, muitas folhas de papel foram furiosamente rasgadas ao meio e, de vez em quando, um pouco de 72 73barro era arremessado contra a parede por um participante frustrado lhas por um agente de narcóticos que "plantou" a droga; o garoto, de- que felizmente escolhia demolir a figura de barro em vez de uma pes- sesperado, tomou uma overdose de soníferos. Restabelecido e aos cui- soa! Algumas vezes, a destruição simbólica servia como válvula para dados de um psicoterapeuta, ressentiu-se tremendamente com seu a violência, de modo que, depois disso, as pessoas envolvidas podiam advogado ao ser informado que precisaria cortar o cabelo comprido e estabelecer uma comunicação face a face, prestar atenção uma na vestir roupas tradicionais para ir ao tribunal, se quisesse ter uma au- outra e ouvir com cuidadosa concentração. diência imparcial perante um juiz conservador. Para minha agradável surpresa, alguns pais vinham com seus fi- O garoto cortou o cabelo, comportou-se como deveria, falou lhos adolescentes e usavam a arte para se revelar um ao outro. Como educadamente no tribunal e as acusações contra ele foram anuladas. eu tinha empatia com ambos, sempre podia ao menos ajudá-los a se Enquanto isso, afastou-se da família, dos amigos e de uma sociedade verem como pessoas separadas em vez de projeções de suas próprias que via apenas como inimiga; desenhava figuras e escrevia na soli- falsas fantasias. Acho, também, que algumas das duplas de pais-filhos dão. Julgava aqueles que o julgaram não por sua culpa ou inocência começaram a ver mais profundamente a individualidade do outro po- como viciado em drogas, mas por seu corte de cabelo e roupas. Há dendo, então, trocar idéias verdadeiramente próprias, em vez de fica- muitos desses garotos e garotas vagando, desejando e querendo ser rem se atacando mutuamente. ouvidos por alguém que se importe o suficiente para escutá-los quan- Pondero os benefícios dessas experiências de arte: "O que acon- do pedem uma audiência aberta e franca. teceu?", pergunto a mim mesma. Honestamente, não sei o alcance de A Figura 4 foi seu primeiro desenho; ele o trouxe juntamente seus efeitos; sei que um número considerável de pessoas fez contatos com o poema quando ficou sabendo que eu estava interessada em vê- umas com as outras de uma forma que as forçou a reconhecer a dife- rença entre pessoas de carne e osso e os alienígenas estereotipados que julgavam que fossem. Sei que muitos daquela "juventude flori- da" jamais haviam visto um psicoterapeuta de verdade. Quando vi- ram um nas sessões de arte, ficaram espantados ao ver que ele não era um monstro. Ele, por sua vez, surpreendeu-se ao ver que um pedaci- nho de gente poderia ser bastante convincente ao lhe contar porque havia escolhido morar em uma comunidade hippie. E havia uma bela analista junguiana que estava apavorada com o adolescente negro de Mission District, até que descobriu como era parecido o modo como ambos expressavam seus sentimentos de solidão em imagens. Independentemente do que viesse a acontecer, muitos de nós pas- samos a achar cada vez mais difícil separar as pessoas em boas e más. Naquelas sessões confusas, os abismos entre gerações, raças, estilos de vida e status social não pareciam ter tanta importância; a linha di- visória entre quem somos "nós" e quem são "eles" ficava cada vez mais difícil de ser GAROTO" A Figura 4 e o poema de protesto que a acompanha foram feitos por alguém em quem penso como "o garoto": dezessete anos, acusado de portar maconha, foi preso com um grupo de pessoas bem mais ve- Figura 4. "O Garoto". 74 75los e ouvir como ele percebia a si mesmo. Ele disse que a figura é um estratosfera de insights cósmicos, ou de mergulhar nas profundezas auto-retrato de como sente seu eu interior; sua própria imagem. Aqui terrenas do saber total. está o poema: Sei que a paisagem do meu passado influenciou a minha compa- ração do fluxo de um rio com o curso de vida de uma pessoa. Minhas mãos estão manchadas de sangue, meu sangue; e Nasci e cresci no nordeste da Flórida. Num raio de cerca de 130 você tenta lavá-las, substituí-las. Estou apenas aprendendo, e vou continuar, se puder, quando você terminar. quilômetros, muitos elementos naturais e sociais diferentes conver- Estou enojado com o seu mundo, e de pensar que minha alma gem e se misturam. As encostas das montanhas Blue Ridge acompa- nham a Costa do Golfo; o Pântano Okefenokee se estende por entre estará barganhando por sua compaixão. os morros; rios vermelhos por causa da terra de seus leitos, ou verde- Estou enojado com sua surpresa de que minhas mãos são sua- ves e minha voz, calma. pálidos por causa do calcário, encontram-se e se fundem em seus ca- minhos para o Golfo. Correm e desaparecem sob as montanhas e Estou enojado com o seu julgamento e julgamentos que virão e julgamentos que foram feitos e aqueles que destroem todos os pântanos, nos labirintos das cavernas calcárias e, então, reaparecem na superfície em corredeiras inesperadas. Em alguns, borbulha a água mundos, exceto a sua engrenagem mecânica perigosa. tola. mais clara que se possa imaginar, formando lagos de águas cristali- Felizmente, seus pais eram boas pessoas que queriam entender e nas. O mergulho nesses fossos azuis era meu esporte favorito. O de- ajudar o filho desorientado. Ele está agora na faculdade, estudando safio consistia em nadar contra a força da correnteza, e ir o mais arte e encontrando amigos entre seus colegas. fundo possível pela boca da caverna adentro. Algumas vezes, quando adolescente, tive a coragem e a obstinação de mergulhar fundo, segu- rar nas pedras do me lançar para dentro das cavernas escuras. Lembro-me bem de como ficava assustada e excitada; como me sen- RIACHOS DA VIDA tia corajosa explorando a fonte oculta da nascente, opondo-me à sua força, ainda que confiando nessa mesma força para me levar de volta Gosto de pensar no processo de vida de cada pessoa como um à luz do sol. Tão logo largava das pedras, era levada tão rapidamente riacho que começa em algum lugar secreto e serpenteia até algum mar ainda desconhecido. para cima pelo poderoso empuxo da água, que minha cabeça surgia na superfície do lago como uma bolha da nascente. Minha alegria ao Quando estou em um avião, posso olhar do alto e ver as formas poder respirar o ar fresco era tão grande quanto o de não poder dos riachos e rios. Alguns formam arabescos; outros são retos; alguns respirar enquanto mergulhava nas águas escuras explorando sozinha foram represados; outros vertem em charcos estagnados; alguns pare- os mistérios que jaziam ali. cem desaparecer; e, algumas vezes, vejo águas transbordando sem controle. Os fossos azuis que conheci mantiveram um fluxo constante, Do alto, lá no céu, vejo-me inclinada a metáforas filosóficas. Re- despejando mais ou menos a mesma quantidade de água ano após flito: "Sim, é assim que a nossa vida flui. Nossos riachos de vida ano, mantendo o lago limpo e fresco e formando um riacho pela mata. Entretanto, ouvi algumas histórias apavorantes de que não de- estão levando cada um de nós por um canal formado pelas nossas na- vemos confiar sempre nesse fluxo constante. No tempo do meu avô, turezas humanas movendo-se em nosso meio ambiente". contaram-me, minha fonte azul favorita subitamente reverteu seu Essa metáfora ainda parece válida quando me encontro em terra firme, mas não posso mais manter o distanciamento frio dos riachos fluxo. Ao invés de jorrar na superfície, a água correu para o centro da terra e desapareceu, deixando descoberta uma planície de lama da vida humana como nos momentos em que estou a milhares de qui- meio seca onde antes houvera o lago. Não sei quanto tempo isso lômetros de altura. Aqui embaixo, estou envolvida com a realidade durou, mas diz a história que a fonte recomeçou a jorrar água tão re- humana do dia-a-dia, consciente de minha própria condição humana, preocupada com contatos diários diretos que me impedem de voar à pentina e misteriosamente como no momento em que começou a sugá-la. 76 77Tenho visto rios e riachos tornarem-se subterrâneos. Segui o CLARICE curso de um rio de 150 metros de largura e vi o lugar onde ele sim- plesmente desapareceu. Um curso d'água pode continuar subterrâneo No processo de viver, algumas vezes nosso chão firme desmoro- por quilômetros e então emergir novamente. na e nossa vitalidade é soterrada, perdendo-se em labirintos escuros; Um riacho límpido, cor de café, onde brincava quando era crian- caminho de volta ao ar e à luz não é facil de encontrar. Algumas ça, serpenteava calmamente sobre a areia em quase toda a sua exten- vezes, a experiência com arte resgata energias vitais há muito sub- são, mas, em um determinado lugar, formava uma piscina escura, mersas. Isso aconteceu com Clarice. girava lentamente e sumia de vista. Poucas centenas de metros além, Quando concordei em passar algum tempo com Clarice em ses- o riacho emergia em um lodaçal e continuava a correr na mesma di- individuais de arte, não tinha a menor idéia de como começar a reção que vinha até então. Isso me assombrava e me intrigava. Olha- ajudá-la. Sua terapeuta não tinha nenhuma sugestão, exceto um aler- va para a piscina sombria, atirava alguns objetos ali, e então ia para o "Clarice está tanto em terapia individual quanto grupal e funciona charco ver se localizava o objeto emergindo depois de sua viagem razoavelmente bem até ser tocada fisicamente por outra pessoa; faça subterrânea. Nunca tive a satisfação de descobrir com certeza se a que achar melhor com os materiais artísticos, mas lembre-se de que água que surgia ali era a mesma que havia desaparecido mais acima, não suporta ser tocada!". mas aceitava a explicação de que a água, seguindo a menor resistên- Precisei com me conter nas sessões com Clarice, por- cia, corre pelos canais que a natureza fornece. Na nossa região do que uso muito o contato físico com outras pessoas sem me aperceber. país, o curso natural dos riachos era correr sob as barreiras de terra, Na noite anterior à nossa primeira sessão individual, sentei com Cla- em vez de em torno delas. Era mais fácil desse modo. rice em um grupo, vendo como ela se afastava dos outros, seu rosto Revendo o passado, sei que me identifico fortemente com essas completamente inespressivo, suas mãos apoiadas nos braços da ca- cavernas e riachos subterrâneos. Eu era tímida e introvertida, escon- deira como se estivessem mortas, seus pés afastados um do outro sem dia minha raiva, medos e solidão até de mim mesma. Como a filha se mexer no chão. mais velha de uma família numerosa, assumi um papel adulto e afo- Percebi: "Clarice tenta não se tocar". Deduzi: "Sensual e emo- guei muitas das minhas necessidades emocionais. Tornei-me muito cionalmente, ela está submersa". Indaguei-me: "Como posso ofe- competente em manter secretos os meus sentimentos de mágoa e im- recer experiências com arte, profundas o bastante para tocá-la, potência, especialmente em situações sociais com outras garotas. quando ela está tão assustada com qualquer contato com processos Como as correntes, quando encontrava uma barreira grande demais vitais?" para contorná-la e alta demais para transpô-la, mergulhava para o Na manhã seguinte, no Clarice ficou em pé com um zum- meu nível subterrâneo e escuro. Ainda faço isso, mas agora tenho bi; pálida, desamparada, seu corpo todo estava quieto mas tenso, muito mais percepção do que estou fazendo e consciência de que es- enquanto seus olhos se moviam rapidamente pela sala, mostrando colho recolher-me ao meu mundo interior. Em geral, agora sigo o desânimo quanto aos materiais expostos - argila, tinta, giz, cola, curso que escolhi, não permitindo que muito de mim fique no sub- tesoura, rolos de papel rústico -, todos materiais para estimular sen- terrâneo por muito tempo. Conhecendo razoavelmente bem o terre- sações táteis. "Pobrezinha", pensei. "Qual material será menos as- no, posso vagar pela escuridão e por passagens complicadas sem sustador para ela? Como começar?" medo de perder o caminho da volta à claridade. Sei o que sinto quan- Clarice notou um vidro cheio de seixos que eu havia recolhido na do fico confusa entre as paredes da caverna que não sei em que praia. "Parecem bonitos", ela disse com sua vozinha fraca. "Gostaria direção está indo, ou até se estou de fato me movendo. Quando es- de vê-los mais de perto?", perguntei em meu tom menos persuasivo. tou tão profundamente perdida na escuridão a ponto de não poder "Sim", ela respondeu, e começamos a tentar. me enxergar ou sentir-me como eu, fico apavorada e preciso de Coloquei uma folha de papel muito branca, lisa e limpa na mesa ajuda. e entornei os seixos nela. Clarice estava sentada rigidamente em uma cadeira de espaldar reto e olhava para o padrão aleatório que os sei- 78 79XOS escuros formavam no papel. Continuei com um outro projeto, fa- esta era uma emergência. O mosaico tinha de ser colado! zendo algumas pequenas montagens com pedaços de algas marinhas Então, Clarice e eu trabalhamos juntas; algumas vezes as mãos dela molhadas e mergulhadas na cola branca e depois secas em sua forma as minhas ficavam literalmente coladas com cola seca. Tínhamos natural sobre o papel branco granulado. Gostava do que fazia, mas es- cola no rosto e nos cabelos; limpávamos a lambuzeira uma da ou- tava concentrada em minha visão periférica para ver o que Clarice e colávamos mais um seixo. Inclinávamos o cartão para ver se estava fazendo. Por alguns momentos, ela não fez nenhum movimen- havíamos esquecido alguma pedra; se alguma rolava, nós a pegá- to sequer. Notei mais uma vez que ela mantinha as partes de seu vamos e a afundávamos numa poça branca. Devia haver pelo menos corpo tão afastadas quanto possível umas das outras. Ela não fecha- cem pedrinhas, mas colamos todas elas firmemente no lugar e, va as mãos ou as punha sobre o colo ou as pernas; nem cruzava os quando o mosaico secou, nós o levamos juntas, triunfantemente, braços ou pernas. Pensei: "Desmembrada, intocável. Como ela pode para mostrá-lo à terapeuta. Ela estava surpresa, não tanto com o mo- se libertar desse tabu?". saico, mas com o fato de Clarice e eu estarmos de braços dados, Então, com o dedão e o anular de cada mão, ela delicadamen- corpo contra corpo, tocando-nos. Havíamos esquecido totalmente te levantou as bordas do papel e o sacudiu de forma que os seixos esse tabu! rolassem formando novos desenhos. Depois de alguns experimen- Logo após, Clarice voltou à sua casa na Costa Leste. Foi morar tos desses, Clarice começou a levantar os seixos e a deixá-los cair, com seus pais e voltou à psicoterapia, a qual resistira ao sair de casa. observando o desenho que faziam quando caíam sobre o papel. Fi- Levou o mosaico consigo; espero que seus seixos permaneçam jun- nalmente, ela começou a arranjá-los em desenhos de sua preferên- los em qualquer relação de contato que lhe faça bem. cia, chamando minha atenção para os de que gostava e até mesmo interpretando para mim o que via nas configurações. Os primeiros desenhos foram descritos como "estrelas no céu" e "flores num GEORGE campo". Houve uma hora em que Clarice trabalhou muito intensamente, Quando George cambaleou para meu disse-me que sua classificando seixos por tamanho, forma e cor. Experimentando todas força vital estava tão completamente obstruída que ele só pensava em as formas de combinação, pegou uma cartolina grossa e ampliou o ta- como o único alívio possível para a tremenda pressão emo- manho do seu Sem a sua timidez costumeira, apanhou pe- cional que sentia e, disse, que nem mesmo para fazer isso tinha dras coloridas maiores de outros vidros e criou um grupo de figuras energia. George tinha pouca esperança de que a experiência com arte que obviamente fazia parte de uma mesma série. sugerida por seu psicoterapeuta fizesse efeito, mas estava disposto a Então disse triunfantemente: "Assim! Este é exatamente o mo- fazer uma última tentativa para aliviar o estresse insuportável de con- do como as quero! Esta sou eu e todas as pessoas que conheço co- ter as emoções violentas que não podia expressar. locadas juntas! Agora, quero colá-las como você fez com as algas". George é um assistente social psiquiátrico de seus e Consternada, gaguejei: "Mas as algas já tinham cola; seus seixos tantos anos, que havia passado vinte como conselheiro para pacientes estão secos e a cartolina é seca e você não pode...". Ela começou a de instituições de saúde mental. Sua abordagem sempre fora não-dire- chorar: "Mas quero colar todas as pedras e seixos exatamente da com ênfase no amor, na fé, na espiritualidade e na não-violência. forma que estão agora!". Isso era importante para Clarice crucial, Passando por dificuldades pessoais, ele se sustentara dando tempo e terrível, maravilhosamente importante. Então, dei a ela um pequeno energia extras a organizações que promoviam reformas sociais; ao frasco plástico com cola branca e mostrei-lhe como levantar cada mesmo tempo, negava para si próprio que era um ser humano com ne- pedra, espremer uma grande quantidade de cola em sua base e então cessidades. Teve, então, de encarar uma tragédia familiar feia e incom- apertá-la em seu lugar original. Ela tentou, mas havia cola em toda preensível, que parecia zombar de tudo em que ele acreditava e pelo a sua mão, os seixos grudavam em seus dedos, e finalmente ela que havia trabalhado: seu próprio filho havia-se tornado uma pessoa pediu ajuda. Violei minha regra de nunca fazer o trabalho para al- anti-social tão violenta que estava confinado a uma instituição corre- 80 81cional. Um homem essencialmente idealista, George simplesmente não sabia como encarar a realidade nua e crua de sua desilusão. Cons- escolha de cores ainda maior, mas não por acaso. Deixei-o a sós; ele truiu, então, uma muralha, represando seus sentimentos porque, expli- pintou por seis horas. Meses mais tarde ele me disse: "Expressei mais cou, tinha medo de que não fosse capaz de ajudar aos outros se se de mim naquele único dia de pinturas do que em um ano falando sobre mim mesmo "com palavras". permitisse experimentar sua própria amargura; após algumas semanas de fingida despreocupação, mas cheio de tristeza e pena, percebeu, de- George tinha aberto as comportas de sua própria represa e, libe- sanimado, que os pacientes que iam ao seu consultório estavam se tor- rado, com segurança, a força poderosa que só era destrutiva enquan- nando pessoas sem importância para ele: ele não percebia o que to estivesse contida. Ele se juntou a um grupo de terapia e continuou estavam dizendo; não se importava com o que diziam; seus problemas falar de si em pinturas, e mais e mais em palavras também. Agora o irritavam; culpava os pacientes por suas próprias impotências. Final- que estava livre para ser ele mesmo, George tinha muito para comu- nicar. Ele se tornou bastante volúvel com pinturas, fazendo muitas em mente, tomou consciência do seu mal disfarçado, e do antagonismo cada sessão, usando cores vibrantes enquanto sua voz saía cheia de contra todos aqueles que pediam sua ajuda. George era um homem consciencioso; pediu afastamento e co- vida e excitação. Estava fascinado com o tema de paisagem do deser- to, com areia, céu e um grande cacto espinhoso que dominava suas meçou psicoterapia. Lá, ele era capaz de verbalizar, racionalizar e analisar sua raiva reprimida e seu ressentimento, mas não conseguia pinturas. Fez uma série de plantas que cresciam sobre um fundo de terra. Gradualmente, as plantas se tornaram mais vivas e semi-abstra- sentir ou atuar quaisquer emoções negativas; ele estava emocional- mente imobilizado. Palmeiras frondosas apareciam no lugar das rígidas olaias. E lá estava ele em meu parado em frente às largas folhas Ao longo das mudanças em suas pinturas, George mudou em sua atitude em relação aos outros no grupo. Passou a falar sem se descul- de papel que eu havia espalhado, quando disse: "Tudo que sei é que sinto vontade de pintar algo grande". Psiquicamente imobilizado, par a cada sentença; passou a falar de si mesmo, saindo do papel de cuidador compulsivo, e foi capaz de permitir à sua tristeza fluir livre- seu olhar desconcertado parecia dizer: "Como posso eu, o humilde e calmo George, profanar essas folhas intactas para expressar a mente sem ter medo de que pudesse deprimir alguém. Pôde até imundície que está dentro de mim?". Usei um artifício que, em mesmo permitir que mais alguém o apoiasse, quando sentisse tal ne- cessidade. geral, funciona com pessoas autocontroladas como George; peguei o papel, molhei-o, amassei-o e então o espalhei novamente, úmido George continuou sendo uma pessoa gentil. Não repetiu sua e cheio de fissuras e vincos. "Agora o papel está todo bagunçado; orgia selvagem de estilo de pintura "sangue e tripas". Voltou ao seu trabalho no hospital psiquiátrico, e, quando falei com ele recentemen- você não precisa se preocupar em não estragá-lo ou em fazer algo bom. Você não pode fazer algo bonito em uma superfície tão esfar- disse, com um sorriso triste: "Sim, eu vou indo bem - não perfei- rapada, portanto, não tente. Apenas ponha um pouco de tinta nela e to, com alguns altos e baixos como todas as outras pessoas, mas, em deixe acontecer!". geral, estou bem". Coisas aconteceram. George escolheu tinta vermelha e preta; pincelou no papel molhado, e as cores se misturaram e borraram. TONY Então ele começou a despejar a tinta dos vidros para fazer poças de preto combinando com vermelho. Ele pegou mais folhas de papel, Acho que a experiência gestáltica de arte é uma saída natural para retorceu-as, rasgou-as e então pintou ao redor dos cortes. Falou de pessoas cujas forças vitais tenham sido soterradas, como as de Clari- "sangue e tripas", e falou de "horror, terror, fúria, vazio". George re- conhecia o que estava acontecendo; nenhuma explicação era necessá- ou quando sua energia está represada, como estava a de George; mas quando a vitalidade de alguém apenas se espalha e se infiltra num ria. Ele apenas continuou pintando, socando algumas das folhas desordenadamente coloridas até deixá-las como massas sem forma, pântano estagnado e enfadonho, sinto-me perdida e sem saber que tipo de atividade artística pode motivar algum tipo de movimento in- jogando-as na cesta de lixo, passando a uma outra explosão com uma terno que ajude a pessoa a sair de seu lamaçal de tédio crônico. 82 83Por exemplo, vejamos Tony: há anos ele tem vindo esporadica- "descargas" alternadas com períodos de claro reconhecimento dos li- mente aos grupos de experiência de arte. Ele não tem grandes proble- mites mais apropriados para as situações da vida. mas para resolver; nenhuma crise dramática ocorre em sua vida; na Kathy era uma assistente social especializada em lidar com ado- verdade, nada de muito importante acontece que faça circular seus lescentes dependentes de drogas; ela era especialmente perceptiva fluidos. Ele tem um emprego bastante bom; funciona adequadamen- com a "molecada vagabunda"; com eles ela era calma, atenta, tran- te; tem relações razoavelmente satisfatórias com mulheres; ele se dá quila e lhes dava apoio. Mas o preço que pagou por sua suposta sere- bem com as pessoas. Mas isso é tudo o que ele faz! Ele vai indo, os nidade foi reprimir o seu próprio ímpeto de emoções, figurativamente anos também; aos quarenta, não se casou, não realizou suas vagas as- colocando sacos de areia na corrente de medos, futilidade, raiva, es- pirações de se tornar um artista profissional reconhecido; tudo que perança e desafios que a tragavam. tem feito em sua vida tem sido sem muito entusiasmo. Sua parti- Então, uma vez por semana, vinha ao meu com a necessi- cipação nos grupos de arte é também sem muito entusiasmo. Ele de- dade expressa de deixar que suas exasperações reprimi- senha letargicamente figuras de outras pessoas, faz perguntas sobre das transbordassem com a tinta. E ela o fazia! suas reações sentimentais, mas pouco diz sobre si mesmo por meio Riachos de cores escorriam pelo chão, das largas peças de musse- da arte, das palavras, ou das ações - exceto que percebi: que Tony, lina que ela pregava numa parede e atacava com pincéis encharcados. na verdade, dormitava sempre que a atenção do grupo parecia ir em Depois, encostava-se no sofá e respirava profunda e regularmente, sua direção como personalidade. Concluí que ele tanto quer como exausta, mas novamente disposta e capaz de dirigir o fluxo constante não quer mover-se em qualquer direção que possa perturbar seu de sua energia pelo canal que escolhera. modo de vida superficial, indefinido, mas confortavelmente não- Kathy não precisava falar sobre o que havia feito com a tinta; ela ameaçador. sabia como abrir suas comportas, e podia fechá-las e suportar a pressão Por vezes, senti-me tentada a jogar algum tipo de dinamite psí- quando precisava fazê-lo. George precisava mostrar suas emoções de quica em seu apático pântano, com a esperança de explodir um fosso alguma forma, mas a idéia de poder se afogar em seu próprio dilúvio, drenante para que ele se mova, mas não o fiz. Tony escolheu o seu de liberar seus sentimentos totalmente o aterrorizavam. A atividade de próprio caminho, e nem a experiência de arte, nem a interação com o arte permitiu-lhe expressar não-verbalmente o que ele não colocava grupo, nem eu, podemos escolher um canal para ele. Tony terá de em palavras. Ele aprendeu experiencialmente o que Kathy tomava por arcar com a responsabilidade de se mexer, se quiser verdadeiramente ele precisava de um escape para as emoções difusas demais encontrar uma saída para sua inércia. Contudo, se ele roncar mais para serem colocadas em palavras lógicas e, o mais importante, que era uma vez durante a sessão de grupo, é bem provável que eu esqueça capaz de direcionar essas emoções construtivamente. minha ética profissional e atire-lhe um pedaço de argila! Clarice precisava de ajuda para direcionar o riacho de sua vida; ainda não havia encontrado nenhum curso que fosse dela. Juntar os seixos a fez ver que podia ter algum desejo que fosse seu e permitiu KATHY que aceitasse meu toque, sem medo. Então, voltou com mais esperan- ao seu processo de psicoterapia, para esboçar alguma direção para Para pessoas que estão numa fase crescente de receber mais es- mesma. tímulos e excitação do que podem a experiência artística Para a maioria das pessoas sobre as quais escrevi neste capítulo, oferece um meio imediato de expressão catártica; com a experiência de arte foi algo para o qual elas se voltaram num mo- pessoas altamente excitáveis precisam de um tempo e lugar para ex- mento de crise. Para cada uma delas, a experiência foi diferente - travasar, numa atmosfera permissiva em que sua intensidade não seja tanto quanto suas necessidades; usaram a arte de maneiras únicas, vista como loucura. Quando essas expressões selvagens já estão no congruentes com seus próprios processos de crescimento. papel, seu criador relaxa e quer discussões longas, calmas, assimila- doras e integrativas. Isso pode levar tempo; semanas de repetidas 85 84Anexo 1 Anexo 2 Norman, "Velha Árvore Valente". Helen, Norman, "Olhos Acusadores". Helen, "Humores". Cyndi, "Eu Quero". 86 87Anexo 3 Anexo 4 Celia, "Por Todo Lugar". Cyndi, "Talvez Coeleen, "Garotinho Negro". Celia, "Dentro de Mim Mesma". Coeleen, "Estirada na Areia". 8 893 também, sobre outras que sequer sabiam como procurar um caminho para si próprias. A maioria delas estava em dificuldades; seus padrões de vida criaram problemas que as impediam de funcionar adequa- damente. Resolver seus problemas era, para elas, necessidade priori- CRESCENDO COM A tária e, quando trabalhamos juntos, canalizamos suas energias nessa direção. DE ARTE Outras pessoas não parecem estar com problemas; elas tentam e conseguem lidar com as dificuldades do dia-a-dia adequadamente, até mesmo admiravelmente. Elas vêm aos centros de crescimento, às oficinas ou às reuniões de dinâmica de grupo dizendo: "Estou indo muito bem, não preciso de um terapeuta, mas sinto que quero algo. Preciso de algo mais quero crescer e ser mais do que sou". Essas pessoas têm motivação própria, se autodirecionam e esco- seu próprio tipo de mestres. Algumas delas vêm até mim querendo tentar a experiência gestáltica de arte para facilitar o seu crescimento pessoal. Este capítulo descreve algumas dessas pessoas USANDO A FANTASIA PARA ENCONTRAR A REALIDADE em seu processo de crescimento pessoal. A fantasia compreende uma grande parte do meu trabalho com Em seu maravilhosamente rico e compacto livrinho, Um catálo- pessoas em processo. Valorizo usar a fantasia como um modo de ex- go sobre as maneiras como as pessoas crescem, Severin Peterson diz: pandir e explorar personalidades, e estimulo as pessoas a fantasiar criativamente, mesmo que estejam arriscando ir ao encontro de coisas Cada pessoa tem sua própria maneira de crescer. maravilhosas e não tão maravilhosas também. Isso é fundamental. Parte da minha introdução à fantasia como um caminho para des- As pessoas e os processos mencionados neste livro são acessórios. cobrir a realidade vem de Fritz Perls, que escreveu: Pode acontecer que essas maneiras interfiram na maneira de al- guém ser. [...] há uma grande área da atividade na fantasia que exige tanto Principalmente, porém, podem ajudar muito se você usá-las do da nossa excitação, da nossa energia e da nossa força de vida que modo certo, do seu modo. deixa muito pouca energia para estar em contato com a realidade. Agora, se desejamos tornar a pessoa um ser total, precisamos, pri- Se quem lhe mostra um caminho é respeitado, você o respeitará. meiro, entender o que é mera fantasia e irracionalidade, e temos Se quem lhe mostra um caminho lhe oferece o seu melhor, você de descobrir onde a pessoa é tocada e o que a toca. Com muita fre- oferecerá a ele o seu máximo. se trabalhamos e esgotamos essa zona intermediária da Se um caminho se tornar maior do que você, ou você fez uma fantasia, esse maya, encontraremos a experiência de satori, do maravilhosa descoberta ou cometeu um grande despertar. Repentinamente, o mundo está lá. Você desperta de um transe como se despertasse de um sonho. Você está lá, inteiro, no- No capítulo anterior, falei sobre algumas pessoas cujo modo de crescer tornou-se muito grande ou muito pequeno para elas; contei, 2. Fritz S. Perls, Gestalt Therapy Verbatim (Moab, UT, Real People Press, 1. Severin Peterson, A Catalogue of Ways People Grow, Nova York, Ballanti- 1969), p. 50. Copyright 1969 Real People Press. Reproduzido com pemissão. Edi- ne, 1971. tado no Brasil sob o título Gestalt-terapia explicada, em 1977, pela Summus. 90 91Peço às pessoas que mergulhem em seu mundo de fantasia e re- mostramos a eles como as coisas são", ou "Teríamos feito um gol se o presentem por meio da arte o que encontram lá - para esgotar essa campo não estivesse tão enlameado". Se você não o tivesse visto sen- área e olhar os seus conteúdos. esse é o primeiro em sua cadeira confortável durante todo aquele tempo, pensaria passo para adquirir uma nova síntese criativa de dois velhos inimigos. que ele estava, realmente, lá no campo, lutando e dando o máximo de Perls diz: "Em vez de ficarmos divididos entre maya e realidade, po- si por seu time. Em sua fantasia, ele realmente lutava para vencer aque- demos integrá-las, e se maya e realidade estiverem integradas, cha- le jogo; mas não lhe diga que ele passou toda a tarde de sábado fanta- mamos isso de arte. A grande arte é real e, ao mesmo tempo, uma siando, porque ele é um homem prático, e não tem nenhuma paciência ilusão. A fantasia pode ser criativa, mas é criativa somente se você com coisas que não são reais. tem a fantasia, qualquer que ela seja, no agora". Sua esposa está tendo aulas de arte e esteve pintando a tarde toda Tendo integrado fantasia com experiência de arte, posso falar daquele sábado. Ela está animada e diz: "Finalmente descobri como sobre o processo de adquirir maior auto-sustentação para o cresci- usar as cores para expressar aquilo que desejo delas nesta pintura. mento pessoal. Sua personalidade é composta por várias partes, algu- aquela espiral vermelha? É como me sinto por dentro, agora que estou mas das quais podem parecer-lhe estranhas a ela; para ter realmente grávida". E ele diz: "Bem, fico satisfeito que você goste do que está uma auto-sustentação, você tem de explorar as áreas que lhe são estra- fazendo, se isso a deixa feliz, mas não vejo nenhum sentido nisso. É nhas. Muito mais de você fica disponível para você mesmo quando apenas um amontoado de papéis e tinta e, de qualquer modo, você não você o faz. Laura Perls descreve esse aprendizado de autoconhe- pintou nada real. Se gosta de se distrair com esse tipo de arte, está bem cimento: para mim, mas não se deixe levar. O fato de estar tão excitada com suas entranhas me parece um tanto mórbido". O processo pode ser comparado à criação de uma obra de arte Joe e Jane são um outro casal que conheço. Uma noite, Joe che- (a forma máxima da experiência humana integrada e integra- ga em casa. Parecia estar extremamente sério durante o jantar, e disse: dora), na qual o conflito entre a multiplicidade de "Estive pensando; eu poderia parar de trabalhar no ano que vem e ter cias incompatíveis e incontroláveis é compreendido somente uma pensão suficiente para viver, se formos cuidadosos. O que eu quando os meios de interpretá-lo e transformá-lo se tornam gostaria de fazer seria comprar alguns hectares no campo e construir disponíveis.4 tipo de casa que queremos. Poderia ser um pequeno fazendeiro e Apoiada em Laura e Fritz Perls, posso afirmar que as pessoas fazer móveis usando as ferramentas do sótão. Estou cansado de ficar fantasiam da sua própria maneira; suponho que você também o faça. sentado o dia todo num escritório com ar-condicionado. Quero sair e Acredito que alguns de nós podem usar a fantasia como meio de en- fazer algo de que possa me orgulhar". contrar a realidade. A experiência de arte pode oferecer-lhe um meio Jane, sempre muito prática, retruca: "Joe, seja razoável. Você para experimentar isso, e a forma de arte que você cria pode prover- continua falando dessa idéia de construirmos nossa casa e plantarmos lhe meios de interpretação e um potencial para a transformação. nosso próprio alimento. Você está sonhando acordado. Não é prático. Para algumas pessoas - práticas, sensatas, com bom senso, que que deveríamos fazer é comprar uma casa num desses condomínios se orgulham de serem sempre realistas -, a idéia de fantasiar é um para aposentados, que estão sendo anunciados na televisão. Eles têm anátema. aquecimento central, ar-condicionado e ainda têm assistentes, geren- Um homem assiste a um jogo de futebol pela televisão, identifi- tes, clube social e TV a cabo; e cuidam de tudo o que você precisar. cando-se com o seu time; torce e aplaude, xinga e sente-se derrotado Eles têm até uma oficina, onde você pode entalhar pequenas peças de ou vitorioso. Quando o jogo termina, ele diz: "Cara! Nós realmente madeira, se quiser. Mas você não teria de fazer coisa alguma. Esta é a coisa mais sensata que temos a fazer". 3. Ibid., p. 50. A realidade de alguns é a fantasia de outros. E a maioria das pes- 4. Paul D. Pursglove, Recognitions in Gestalt Therapy, Nova York, Harper & soas se desculpa sobre suas próprias fantasias. No entanto, todos nós How, 1971, p. 45. fazemos isso, de um modo ou de outro, e aqueles que dizem ser com- 92 93pletamente realistas, estão se iludindo. Estão mentindo para si próprios enriquecer a capacidade um do outro de experienciar plenamente, ou estão completamente fora de contato consigo. Também estão negan- quando não temos medo de revelar nossas maravilhosas percepções do um dos seus recursos mais ricos para viver plenamente a realidade. individuais imaginárias. Com recuamos e escondemos Rollo May diz: nossa individualidade, dizendo: "Se você soubesse o que eu estava realmente sentindo, pensaria que sou louco". Muitas pessoas ficam Fantasia é uma expressão da imaginação. A imaginação é a ori- inibidas pelo medo de que a revelação de suas fantasias poderia levá- gem da intencionalidade e a fantasia, uma de suas linguagens (eu las a serem julgadas como: "louca, boba, estúpida, infantil, mórbida, uso fantasia aqui com seu significado original: "capacidade de irrealista ou demoníaca". Esse tipo de julgamento é feito por pessoas representar, tornar visível"). Fantasia é a linguagem do eu total, cujas mentes prosaicas não reconhecem sua própria vida de fantasia e, comunicando, oferecendo-se, tentando se enquadrar. É a lingua- conseqüentemente, não são capazes de aceitar a dos outros. gem do "Eu gostaria/Eu farei" - a projeção imaginativa do eu Em nossa cultura, a tendência é evitar que a nossa imaginação in- numa determinada situação. E se alguém não puder fazer isso, dividual se realize em situações da vida diária; só nos permitimos vi- nunca estará presente em nenhuma situação, esteja seu corpo lá venciar fantasias no lugar dos outros. Aceitamos o mundo de fantasia ou não. A fantasia assimila a realidade, e depois empurra-a a uma do teatro, do cinema, da televisão, da poesia, da ficção, das cerimô- nova profundidade. nias rituais e da criação artística. Até aceitamos essas fantasias co- mercializadas em anúncios; embora saibamos que alguns desses Abençoado seja Rollo May por ter escrito em bela prosa o que anúncios fantásticos devem ser mentirosos, permitimo-nos acreditar sei ser verdade pela experiência! E abençoada seja a arte que fornece porque queremos. a linguagem com a qual qualquer um é "capaz de representar, de tor- Também queremos acreditar em nossas próprias fantasias, mas nar visível" suas fantasias para assimilar sua totalidade e para se in- temos medo de confiar em nossa própria imaginação. Somos avessos a tercomunicar com as percepções de realidade dos outros. olhá-las claramente; suspeitamos que algumas delas possam ser menti- Alguma vez você se deitou de costas na areia fria de uma praia ras. É verdade que algumas de nossas fantasias são devaneios e outras, e olhou para a Lua, fantasiando poder sentir a Terra rodando sob decepções que criamos e atrás das quais nos escondemos para evitar você, mantendo o seu corpo próximo à superfície enquanto sentia o ver o que é real. É igualmente verdade que algumas delas são a nossa chamado da Lua em seu sangue? Já sentiu sua afinidade com as maior garantia do que é real. Como podemos, sozinhos, saber o que é marés, quando elas correspondem às distantes órbitas do Sol e da devaneio e o que é verdade, a menos que nos disponhamos a abrir nos- Lua? Presenciou as mudas germinarem suas folhas novas, sempre sa caixa de Pandora, arriscando desencadear um possível pandemônio? em direção à luz que dá vida? Já sentiu, em meio ao crescimento das Tenho conhecido pessoas que não se atreveram a entrar em seu coisas vivas, como sua respiração é interligada com a delas? Já olhou próprio limbo até que foram forçadas por situações externas ou por nos olhos de um bebê recém-nascido sabendo que ele acabou de uma grande pressão interna. Entretanto, conheci algumas outras ou- realizar a viagem miraculosa de um tipo de espaço para outro? Há sadas, que encararam a exploração pessoal como uma aventura por pouco ele flutuava numa escuridão líquida; agora, é forçado a respi- seu interior, que escolheram fazer no interesse de seu próprio cresci- rar num mundo de gás e luz. Você já acordou subitamente de um mento e na ânsia genuína de viver plenamente mesmo que algo da sono profundo, sabendo que apreendeu em seu sonho a integração plenitude inclua confusão e dor. Penso que chega um tempo na vida vívida de insights que o seu eu acordado poderia compreender ape- de cada um que vive a idade adulta plenamente em que se tem de fa- nas vagamente? zer escolhas discriminadas, caso se deseje crescer e amadurecer - e Essas são algumas de minhas realidades-fantasia. Nomeie as suas, penso que escolher sabiamente, para cada um, envolve o uso de todos que podem ser bem diferentes das minhas. Podemos compartilhar e os seus recursos advogo a auto-exploração dentro dos domínios frequentemente desconhecidos das fantasias pessoais, antes que a 5. Rollo May, "Love and Will", In: Psychology Today, 1969 3(III), 57. do viver force alguém a tomar decisões cruciais. 94 95Naturalmente, recomendo a arte como um meio de viajar no seu televisão, cinema ou teatro. Em outras palavras, todos, inevitavel- mundo interior de awareness. Basicamente, estive e estarei levando mente, recebem mensagens das diversas formas de arte; mas alguns você a experienciar a linguagem da arte diretamente, criando suas pró- parecem ignorar que estão sendo afetados e, portanto, não integram prias formas. Entretanto, você pode, ao mesmo tempo, encontrar di- esses efeitos à sua awareness pessoal. versão, estímulo, apoio ao projetar-se nas fantasias retratadas pela arte Aqueles que escolhem a arte como meio podem transmitir suas dos outros. Quando podemos entrar na realidade imaginária criada por mensagens de vários modos. Diz McLuhan: outra pessoa, conseguimos, às vezes, não só contatá-la pela comunica- ção empática, como também podemos dar boas-vindas a uma parte de A arte, como os jogos, é um tradutor de experiência. O que nós já nós mesmos que não tínhamos reconhecido anteriormente. havíamos sentido ou visto numa situação, nos é repentinamente Pela arte, podemos reconhecer também a conexão entre nós e os dado num novo tipo de material. Os jogos, do mesmo modo, dão outros, e descobrir o que ocorre com o nosso meio ambiente comum. novas formas a experiências conhecidas, dando ao lado sombrio Marshall McLuhan diz: "A arte, tal como um radar, age como um sis- e desolado das coisas uma luminosidade tema inicial de alarme e assim nos torna capazes de descobrir as questões sociais e psicológicas suficientes que nos prepararam para Assim como todos nós fantasiamos, também todos nós partici- lidar com eles". Esse conceito profético contrasta com a idéia comum pamos de algum tipo de jogo. Não quero dizer que assumimos falsos da arte como mera expressão papéis a fim de manipular os outros, como Eric Berne descreve em McLuhan está se referindo à arte como meio de comunicação Os jogos da vida (Games People Play). Ao contrário, digo que, seja cultural, como uma mensagem de estado de nação que poderia ser individualmente ou em grupo, planejamos situações nas quais pode- usada como radar para nos tornar conscientes dos futuros desenvol- mos nos expressar e expandir nosso eu de um modo diferente daque- vimentos tecnológicos e sociais. Concordo, e ainda acrescento que le que usamos no dia-a-dia. Chamando o seu jogar de diversão, o podemos alcançar nosso próprio desenvolvimento se dermos a devi- homem pode dizer que está "se livrando de tudo", seja passando a da atenção a receber os sinais que vêm da nossa participação como mão numa coelhinha no Clube Playboy ou suando com um louco observadores da produção artística dos outros. num campo de golfe. No entanto, ele não está "se livrando de tudo", A arte nunca é "mera expressão pessoal", seja criando nossas está se aproximando de um outro aspecto de si mesmo seus jogos e próprias formas ou observando a criação dos outros estamos ativa- diversões são modos de auto-expansão. Eles são também modos de mente tanto recebendo como transmitindo mensagens. Suas preferên- fantasiar seja com uma coelhinha ou num clube de golfe, o homem cias por certos tipos de comunicação assinala mensagens para você; está explorando sua perícia em representar jogos de fantasia, e supo- suas escolhas do que ouvir, ler, olhar, prestar atenção, todos indicam nho que ele seja capaz de realizar uma ou outra atividade com bas- seu padrão de personalidade. Você pode crescer muito na sua auto- tante talento. awareness mediante apenas observar-se observando. Clubes Playboy e jogos de golfe não são para todos, mas há uma Todas as produções artísticas são fantasias tornadas realidade porção de outros jogos; cada um de nós escolhe o tipo de fantasias ima- e todas transmitem uma mensagem. Não posso imaginar que exista ginárias que estão, de algum modo, relacionadas com a realidade da alguma pessoa que não seja afetada pelas muitas mensagens que re- nossa vida individual. Posso até aplaudir a brincadeira com a coelhi- cebe diariamente pelos meios de comunicação artística: cartazes, fo- nha, se nenhuma fantasia melhor estiver disponível; porque, citando tografias, ilustrações, pinturas; músicas no rádio, nos discos, nas fitas McLuhan uma vez mais, concordo que "para jogos ou diversões serem ou nos concertos; palavras nos jornais, revistas e livros; imagens na bem aceitos, eles têm de ser um eco da vida diária. Por outro lado, uma pessoa ou uma sociedade sem diversões é aquela que está mergulhada 6. Marshall McLuhan, Understanding Media: The Extensions of Mam, p. xi. Copyright 1964 by Marshall McLuhan. Este e todos os outros trechos da mesma fonte foram usados com permissão da McGraw-Hill Book Company. 7. Ibid, p. 214. 96 97num transe de automação zumbi. A arte e os jogos nos possibilitam ob- PESSOAS EM PROCESSO servar e questionar, porém distantes das pressões materiais da rotina e das convenções."8 Obstinadamente recuso-me a usar o termo "história de caso" (case Percorrendo um longo caminho de Rollo May a Marshall Mc- history) quando apresento minha observação sobre o processo em an- Luhan, já que ambos aceitam fantasia, arte e jogos como formas de damento de vida de uma outra pessoa. Não resisto em citar uma das mui- expressão da realidade, voltarei ao ponto de partida da experiência tas definições que Webster inclui para case: "Objeto em forma de caixa, gestáltica pelo caminho da realidade-fantasia da ficção científica. Há possuidor de compartimentos para uma diversidade de coisas de vários muito tempo, sou adepta da ficção científica, usando esse gênero para tipos". Embora a definição se refira a "uma diversidade de coisas", às refletir minhas próprias explorações de outros modos possíveis de vezes penso nela como aplicável a relatos em que as pessoas são "com- realidade, além da rotineira vida cotidiana. Prefiro a fantasia-ficção às partimentadas" ou "tipificadas", sendo assim inseridas numa ampla pessoas, como Ray Bradbury escreve com humor excêntrico e respei- "caixa com diversos tipos" que é a história de caso. História, de acor- tosa compaixão por todos nós. Bradbury diz: do com meu dicionário de bolso, é uma "narração de eventos e fatos A habilidade de fantasiar é a habilidade de sobreviver. É maravilho- dispostos cronologicamente com suas causas e efeitos". Essa definição SO falar sobre esse tema, porque há muita gente equivocada tratan- está um pouco ultrapassada na nossa época de relatividade, teorias de do disso. Atravessamos um período terrível na arte, na literatura e campo e guerras reais não declaradas, até mesmo quando usadas para na vida, na psiquiatria e na psicologia. Os assim chamados realistas apresentar os acontecimentos do mundo; e ela, certamente, não é apro- estão tentando nos levar à loucura, e recuso-me a priada para o ser humano que tenta reduzir o drama da vida de um outro ao formato de um folheto de história de caso. Simpatizo com aqueles Suponho que os "assim chamados realistas" de Bradbury, "os que precisam, por razões institucionais, escrever e arquivar esse tipo de zumbis" de McLuhan, "os que não fantasiam" de May e meu ser hu- documentos fatuais. Eles têm de fazer isso; eu não tenho e não mano feito como um robô são a mesma espécie. E também suponho Para mim, um fato é uma dessas coisas muito raras de que tenho que nenhum de vocês está inevitavelmente preso nesse molde. Acredi- certeza e tem alguma relevância para o quadro mais amplo da minha to que qualquer um com entusiasmo por viver plenamente e coragem para explorar suas fantasias realisticamente, pode encontrar muitos ca- realidade pessoal. A que fatos se deve a minha alegria quando uma minhos abertos para si. Experienciando e comunicando-se pela arte é chuva repentina quebra o calor abafado de uma tarde de verão? Você um meio de acesso. Poucos de vocês irão produzir filmes para a comu- pode medir a queda da temperatura em graus; pode medir a quantidade nicação de massa, livros, televisão, shows ou ter seus trabalhos de arte de chuva em polegadas. Esses são fatos, mas o que eles têm a ver com exibidos para milhões de pessoas, mas cada um de vocês pode, se as- como me sinto quando respiro o cheiro fresco da terra úmida, sentindo sim escolher, produzir o seu próprio espetáculo. Pode convidar seus co- meu suor salgado ser lavado pelas pequenas gotas da chuva fresca? legas, amigos, familiares, e mesmo alguns que não são amigos, para Quais são os fatos quando as suas mãos formam uma figura de verem suas fantasias tornadas realidade; você pode afetar outros obser- argila com movimentos rítmicos cuidadosos? Você usa cerca de nove vadores liberando a comunicação entre vocês a níveis mais profundos. quilos de argila vermelha com chamote, com determinada densidade Imediatamente, cada um pode se tornar um observador e espectador e temperatura. Fato, sim. Mas, e daí? O que tem o fato a contribuir ao muito mais sensível e perspicaz para o drama da sua própria vida; com seu senso de alguma imagem sublime que você criou de um punhado um pouco de fé nas suas capacidades individuais, poderá até criar al- de sujeira inerte e água? guns efeitos fantásticos no seu processo de vida pessoal. A arte que é esteticamente satisfatória não pode ser descrita em termos de fatos mensuráveis. Nem tampouco a forma feita por um iniciante, que nunca soube que poderia criar algo tão expressivo a 8. Ibid., p. 210. 9. M. H. Hall, "A Conversation with Ray Bradbury and Chuck Jones, The Fan- partir de materiais inertes que nada mais fazem que responder à ener- tasy Makers", in Psychology Today, 1968, 11 (i), 28-29. Todo este trecho é dedicado gia das mãos do criador. Você produz uma forma que é sua forma. à fantasia e à realidade. Você diz: "O meu jeito é esse. É assim que eu me sinto". Não preci- 98 99sa ser mais explícito do que isso. É isso que é real. E não são ne- Orgulhosa de seu próprio realismo, ficava impaciente com "gru- cessários nem desejados fatos adicionais para explicar. pos de terapia nos quais brancos, de classe média, gastavam horas fa- Estou num dilema sobre escrever esta parte do meu livro. Con- lando sobre suas crises emocionais, enquanto tantas pessoas pobres tei-lhes que tenho usado a arte como forma de experiência e expres- estão lidando com a realidade imediata de ter de conseguir trabalho e são por quase meio século, que tenho ensinado aos outros o meu dinheiro para sobreviver". Eu não podia e não iria discutir com ela. modo de fazer isso há quase vinte anos e que, nos últimos cinco anos, Obviamente, o trabalho que fazia, e tem feito, merece o tempo e a venho dirigindo centenas de grupos de experiência terapêuticas por energia que Helen e os outros têm-lhe dado. meio da arte. Digo a mim mesma: "Certamente, após todos esses anos Entretanto, nestes últimos cinco anos, Helen e eu descobrimos de participação e observação, tenho de ter algum material concreto que nossos dois modos de trabalhar com as pessoas não são mutua- para passar a vocês que este livro". Meus caderninhos de anota- mente excludentes. Ela tem participado de grupos que não visam di- ções estão lotados com as coisas que escrevi ao longo desses anos, retamente à ação social: ela tem feito com que muitos de nós nos mas, quando leio minhas notas, encontro descrições e perguntas, não tornássemos mais conscientes da nossa falha em lidar com a situa- fatos. No entanto, encontro algumas observações e pensamentos que dos negros; ela mesma se tornou mais consciente das suas pró- podem ser válidos, se reconhecermos que minha percepção é seletiva. prias necessidades emocionais, que pouco tinham a ver com os Como qualquer outra pessoa, tendo a perceber aquilo que quero; não problemas entre brancos e negros. Participar de grupos de posso ser totalmente objetiva, mesmo quando tento ser o que não é cia artística foi fator de extrema importância para Helen descobrir muito frequente. a si mesma e tornar-se capaz de revelar, a alguns de nós, sua inquie- Nem mesmo tentarei descrever fatos objetivos; relatarei breves tação interna, suas incertezas, sua timidez e a sua vontade incon- descrições de algumas pessoas que conheço por suas experiências fessa de manter contatos íntimos com seus pares num contexto com a arte. Nosso relacionamento tem sido, e ainda é, mais do que in- não-profissional. formal; tanto em grupo quanto individualmente, temos dividido ri- Sua primeira experiência de pintura não foi em grupo. Só por quezas e mágoas, e conhecemos uns aos outros bem e há muito curiosidade, foi comigo até o Barn" (O celeiro das artes), um pré- tempo. Mas não sabemos tudo um sobre o outro, nem estivemos sem- dio antigo no campo, que estava prestes a desmoronar e que eu estava pre juntos nem estaremos juntos para sempre. usando como para grupos que trabalhavam com arte. Helen riu da minha sugestão de pintar apenas por diversão. Ela nunca havia pin- tado, e a idéia de se tornar uma artista pareceu-lhe absurda; mas não HELEN pôde resistir ao desafio dos potes de tintas. Então, pintou entusiasti- camente, muito tagarela, zombando de si mesma o tempo todo: "Isso Helen é uma mulher negra, inteligente, dinâmica. Aos 35 anos, é ridículo. Nem mesmo sei como misturar as tintas para conseguir era bem-sucedida em sua carreira de assistente social, trilhando a sua marrom". Ao mesmo tempo, ela pintava com pinceladas diretas e vida profissional e social, tanto com brancos quanto com negros, de vigorosas; enquanto dizia não saber como, agia como se soubesse uma maneira tão confiante que as pessoas respondem a ela com ad- exatamente o que queria retratar e não quisesse perder tempo para miração e respeito. Ela é impressionantemente bela, veste roupas fazê-lo. coloridas, faz amigos com facilidade e briga vigorosamente com pes- Essa primeira pintura representou muitas facetas da persona- soas que violem seu código moral. Quando a conheci, há cinco anos, lidade de Helen (ver Fig. 5: "Árvore de outono"). A forma forte da pareceu-me majestosa e dominante, como uma rainha. Parecia tão se- árvore centralmente dominante, dirige-se para cima com muita se- gura de si que me senti intimidada. Na primeira noite que passamos gurança; é um tronco de árvore bem real, feito com pinceladas rá- juntas, ela deixou bem claro que não tinha interesse em participar de pidas e fortes. Helen comunicava autoritariamente: "Eu sou eu". O grupos, a não ser que eles estivessem trabalhando em algum projeto fundo vibrantemente amarelo e laranja tinha duas outras formas que pudessse trazer resultados tangíveis para ajudar as pessoas de sua quadradas de árvores. Ao preencher a página com cores quentes, 100 101