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Av. Paulista, 901, 4º andar Bela Vista – São Paulo – SP – CEP: 01311-100 SAC sac.sets@saraivaeducacao.com.br Direção executiva Flávia Alves Bravin Direção editorial Ana Paula Santos Matos Gerência editorial e de projetos Fernando Penteado Gerência editorial Thais Cassoli Reato Cézar Novos projetos Aline Darcy Flôr de Souza Dalila Costa de Oliveira Edição Jeferson Costa da Silva (coord.) Daniel Pavani Naveira Design e produção Daniele Debora de Souza (coord.) Flavio Teixeira Quarazemin Camilla Felix Cianelli Chaves Claudirene de Moura Santos Silva Deborah Mattos Lais Soriano Tiago Dela Rosa Planejamento e projetos Cintia Aparecida dos Santos Daniela Maria Chaves Carvalho Emily Larissa Ferreira da Silva Kelli Priscila Pin Diagramação Reginaldo César S. Pedrosa Revisão Amélia Kassis Ward Capa Tiago Dela Rosa Adaptação de capa Lais Soriano Produção gráfica Marli Rampim Sergio Luiz Pereira Lopes mailto:sac.sets@saraivaeducacao.com.br CDD 340 CDU 34 Produção do E-pub Fernando Ribeiro ISBN 978-65-5362-799-4 DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) VAGNER RODOLFO DA SILVA - CRB-8/9410 M593 Feferbaum, Marina; Mafei, Rafael (orgs.) Metodologia da pesquisa em direito - técnicas e abordagens para elaboração de monografias, dissertações e teses / Ana Carolina Correa da Costa Leister...[et al.] ; Marina Feferbaum, Rafael Mafei (orgs.) - 3. ed. - São Paulo : SaraivaJur, 2023. ePUB ISBN: 978-65-5362-799-4 (e-book) 1. Direito. 2. Metodologia da Pesquisa. I. Queiroz, Rafael Mafei Rabelo. II. Feferbaum, Marina. III. Título. 2022-3054 Índices para catálogo sistemático: 1. Direito 340 2. Direito 34 Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Saraiva Educação. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo art. 184 do Código Penal. Data de fechamento da edição: 14-10-2022 SUMÁRIO Prefácio Apresentação à 3ª edição Apresentação à 2ª edição PARTE 1 — Introdução e conceitos fundamentais 1. Introdução 1. Um roteiro prático para uma disciplina teórica 2. A quem serve este livro? 3. Mestrado profissional 4. O que há neste livro? 2. Escrita científica em direito: espécies de trabalhos acadêmicos e suas principais características 1. “Monografias” 1.1. Monografias para disciplinas de graduação 1.2. Monografias de conclusão de curso na graduação (TCCs) 1.3. Monografia de conclusão de curso em pós-graduação “lato sensu” (especialização) 2. Artigos científicos 3. Teses e dissertações Referências 3. Pesquisa jurídica aplicada no Mestrado Profissional 1. Introdução 2. O caráter aplicado da pesquisa jurídica 3. Fontes e métodos de pesquisa 4. O rigor científico 5. Possibilidades de pesquisa no mestrado profissional 5.1. Trabalho exploratório sobre práticas jurídicas 5.2. Resolução de problema 5.3. Estudo de caso 6. O formato do trabalho de conclusão 7. Conclusão Referências PARTE 2 — Concepção da pesquisa, localização e constituição de fontes 4. Como encontrar um tema dentro de minha área de interesse? 1. Um tema de pesquisa 1.1. O tema deve ser um verdadeiro objeto de dúvida 1.2. O tema deve ser relevante 1.3. A originalidade do tema 1.4. O tema deve estar dentro das limitações do pesquisador 2. Alguns tipos possíveis de problemas de pesquisa 2.1. Problemas descritivos: apresentando fatos juridicamente relevantes 2.2. Problemas prescritivos: oferecendo respostas para dúvidas jurídicas difíceis 2.2.1. Pesquisas com respostas “de lege lata” 2.2.2. Pesquisas com respostas “de lege ferenda” Referências 5. Como respondo cientificamente a uma questão jurídica controvertida? 1. Introdução 2. O problema de pesquisa: quando temos um caso difícil? 2.1. O caminho até a pergunta de pesquisa 2.1.1. Definindo a pergunta de pesquisa 3. Procedendo cientificamente 3.1. Definindo as posições em debate 3.2. A dinâmica da refutação 3.2.1. O argumento de Dworkin 4. A conclusão do trabalho (e deste capítulo) Referências 6. Meu trabalho precisa de jurisprudência? Como posso utilizá-la? 1. Introdução: a agenda de pesquisa de jurisprudência no direito brasileiro 2. Pesquisa de jurisprudência: uma pesquisa de julgados 3. Quando minha pesquisa pode ser desenvolvida por meio de análise de jurisprudência? 3.1. Análise temática e apresentação de linhas de entendimento 3.2. Análise dos elementos de decisão 3.3. Análise da dinâmica institucional do órgão julgador 3.4. Análise dos impactos da jurisprudência 3.5. Análise processual da jurisprudência 3.6. Outras aplicações da pesquisa de jurisprudência 4. Modelagem da pesquisa de jurisprudência 4.1. Delimitação da pesquisa de jurisprudência 4.2. Composição da amostra 4.3. Aplicação dos recortes jurisprudenciais e formação da amostra 4.3.1. Consulta e pedido de pesquisa de jurisprudência 4.3.2. Pesquisa eletrônica pela internet 4.3.3. Acesso aos julgados pela Lei de Acesso à Informação Pública 4.4. Variáveis de pesquisa 5. Como apresentar os resultados da pesquisa de jurisprudência? 5.1. Apresentação do método de pesquisa 5.2. Apresentação dos resultados de pesquisa Referências 7. A pesquisa legislativa: fontes, cautelas e alternativas à abordagem tradicional 1. Introdução 2. Pesquisa de legislação 2.1. Fontes 2.2. Cuidados 3. Outras modalidades de pesquisa 3.1. Processo legislativo 3.2. Justificativas 3.3. Histórico legislativo 3.4. Capacidade normativa do Executivo 3.5. Demais estopins legislativos 3.6. Lei e Desenvolvimento 3.7. Legislação comparada 3.8. Política legislativo-regulatória 4. Conclusão Referências 8. Meu trabalho precisa de um capítulo histórico? 1. O uso inadequado da história nos trabalhos jurídicos 2. Quando é apropriado construir meu trabalho com uma perspectiva histórica 3. Cuidados com a abordagem histórica do direito 3.1. Deixando os preconceitos e as caricaturas de lado: aprendendo a ler o passado pelo passado 3.2. Utilização de fontes históricas 4. Considerações finais Referências 9. “Achtung Baby!” Ou porque meu trabalho acadêmico não precisa de Direito Comparado... até que se prove o contrário 1. Introdução 2. Direito comparado como campo de estudos: construção de identidades nacionais, transplantes jurídicos e governança global 3. Questões práticas 4. Questões teóricas 5. Considerações finais Referências PARTE 3 — Planejamento e execução da pesquisa jurídica: métodos, técnicas e dicas 10. O projeto de pesquisa 1. A importância de planejar uma pesquisa 2. Estrutura de um projeto de pesquisa 3. Preocupando-se com a pesquisa de fontes (doutrina, jurisprudência e legislação) 4. Planejamento adequado para leituras de qualidade 5. Qual o momento adequado para começar a redação do trabalho? 6. Considerações finais Referências 11. O uso da internet para localização de fontes da pesquisa jurídica 1. Introdução 2. Buscadores de internet 2.1. Aspectos gerais 2.2. Operadores de pesquisa 2.3. Google Acadêmico 3. Legislação 4. “Doutrina” 4.1. Repositórios de acesso livre 4.2. Repositórios de acesso pago 5. Relatórios de pesquisa 6. Catálogos de bibliotecas Referências 12. O método de leitura estrutural 1. Objetivos da leitura filosófica 2. Uma filosofia do método (estrutural) de leitura? 3. Como ler um texto 3.1. Leitura rápida 3.2. Leitura aprofundada 3.3. Exercício de leitura estrutural de um texto 3.4. Exercício I de Leitura – “Política”, de Aristóteles 3.5. Exercício II de Leitura – “Física”, de Aristóteles 3.6. A descrição da estrutura é um resumo do texto? 3.7. A elaboração de um Esquema para orientação dos seminários. A ordem das razões e a ordem topológica – tornando as coisas um pouco mais fáceis 3.8. Técnica mista Referências 13. A organização da informação jurisprudencial 1. Introdução 2. Por que devo organizar a minha pesquisa de jurisprudência? 3. Mãos à obra: organizando as informações jurisprudenciais 3.1. Planejamento da pesquisa de jurisprudência 3.2. Organização dos julgados analisados nos arquivos do pesquisador 3.3. Organização das informações obtidas com ae uma defesa pública perante banca composta por cinco docentes. Cada programa tem regras específicas sobre a composição das bancas e o papel de orientadoras e orientadores na sessão pública de defesa. Há também diferenças relativas ao programa acadêmico em que teses e dissertações são produzidas – mestrado e doutorado, respectivamente. Em geral, mestrados têm menor carga exigida de créditos acadêmicos (disciplinas que se deve cursar) e créditos de pesquisa, o que faz que sejam, na prática, mais curtos do que doutorados, embora nem sempre seja assim. Dissertações de mestrado e teses de doutorado têm, de partida, diferenças de profundidade. Espera-se que a tese seja um trabalho mais profundo que a dissertação, já que, na primeira, é preciso haver contribuição original para a área de concentração do trabalho – é necessário que haja, de fato, uma nova tese defendida pelo doutorando. “A tese científica (...) não se ocupa tão somente da descrição ou análise de um instituto ou questões jurídicas”, mas “vai além dos dados citados e se caracteriza fundamentalmente (...) pela contribuição pessoal do autor e a proposição que se expõe e se defende” (LEITE, 2006, p. 34). Essa exigência de inovação às vezes causa confusões, pois tanto a dissertação quanto a tese têm de trazer contribuições à comunidade científica, ainda que apenas a tese tenha de formular uma proposição nova e prová-la, ou defendê-la. Tal requisito não existe na dissertação, o que não significa que esta deva limitar-se a uma simples compilação de ideias alheias. Ela deverá mostrar capacidade de realização de pesquisas de alguma complexidade por parte do mestrando, ainda que seja meramente aplicando um método de pesquisa já consolidado em objetos novos e ainda não estudados. Ela é o produto final de um longo treino em métodos e técnicas de pesquisa, revelando, pela sua consistência, a aptidão do candidato como pesquisador. “A dissertação, de caráter eminentemente didático, representa treino de iniciação à investigação, de forma que sua elaboração não levará em conta que a investigação se concretize na comunicação de uma teoria nova, ou nova explicação e interpretação de fatos dentro da originalidade que norteia a tese doutoral” (LEITE, 2006, p. 33). Ao se realizar, por exemplo, uma pesquisa de jurisprudência com metodologia consagrada sobre um conjunto de acórdãos ainda não estudados, uma dissertação de mestrado produziria resultados inéditos, mas sem a inovação teórica exigida de um doutorado. A tabela a seguir sintetiza as principais diferenças. Tabela 1 – Comparativo: principais trabalhos monográficos em Direito TCC de graduação TCC de pós-- graduação Artigos científicos TCC de graduação TCC de pós-- graduação Artigos científicos Objetivo: Que nível de comple xidade é exigido do trabalho? Demons tração de domínio dos conhe - cimentos básicos sobre um tema específico Demons tração de capaci dade de aplicação de conhe - cimentos avançados de um tema específico no trata - mento de um problema jurídico, usualmente de caráter prático Reportar o trata mento de um tema ou problema específico, no curso de uma inves tigação, comuni cando objeti - vamente resultados relevantes de pesquisas ou teorizações Conteúdo: Que substância o trabalho deve apresentar? Leitura compreen - siva e articulada dos materiais básicos sobre o tema de pesquisa Articu lação de conceitos e dados necessários para o tratamento satisfatório de um problema jurídico de caráter prático Resultados pontuais de pesquisas, ou respostas pontuais a problemas teóricos ou aplicados específicos Extensão: Que tamanho o trabalho costuma ter? Curtos ou médios Curtos ou médios Curtos TCC de graduação TCC de pós--graduação Objetivo: Que nível de comple xidade é exigido do trabalho? Demons tração de capacidade de pesquisa em um ou vários métodos, bem como domínio de conceitos funda mentais de metodologia de pesquisa científica Demons tração de domínio pleno de metodo logia de pesquisa científica, com capa cidade de inovação de conheci mento e definição de pautas e linhas de pesquisa Conteúdo: Que substância o trabalho deve apresentar? Pesquisa compreen siva sobre deter - minado tema jurídico, sem necessidade de inovação do conheci mento Tese inovadora na área do trabalho. Demons tração de plena autonomia acadêmica do candidato, em termos de métodos de pesquisa e capacidade de definição de pautas e linhas de investigação TCC de graduação TCC de pós--graduação Extensão: Que tamanho o trabalho costuma ter? Médios ou longos Médios ou longos Fonte: elaboração dos autores. Referências BARRAL, Welber. Metodologia da pesquisa jurídica. 2. ed. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003. LEITE, Eduardo de Oliveira. Monografia jurídica. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. OLIVEIRA, Luciano. Não fale do Código de Hamurabi! A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. Sua Excelência, o comissário e outros ensaios de Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2006. PEREIRA, Bruno Ramos. O uso da proporcionalidade no Supremo Tribunal Federal: análise dos votos do ministro Gilmar Mendes (2004-2006). Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2011. SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2006. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-18112009-130359/pt-br.php 1. 3 PESQUISA JURÍDICA APLICADA NO MESTRADO PROFISSIONAL MARIO ENGLER PINTO JUNIOR7 INTRODUÇÃO A pesquisa no mestrado profissional pretende contribuir para o aprimoramento da capacidade analítica do aluno e, ao mesmo tempo, oferecer um conhecimento prático sistematizado, a título de bem público para benefício da comunidade jurídica. O modelo não dispensa, mas pressupõe a abordagem teórica, desde que devidamente contextualizada e combinada com proposta de ação prática8. A investigação deve ser feita com adequado rigor acadêmico, tendo por objeto uma prática jurídica, situação problemática ou caso concreto, preferencialmente inserido no campo de atuação profissional do aluno, ou cujas informações sejam acessíveis para consulta. A adoção de um marco inicial ancorado na realidade fática é essencial para construir a ponte entre teoria e prática. A prática é ao mesmo tempo o ponto de partida e o ponto de chegada da pesquisa, embora o segundo esteja situado em plano mais elevado que o primeiro. O meio de elevação entre ambos é o percurso investigativo e reflexivo do pesquisador, que toma consciência da prática que lhe é familiar, para então resgatar o seu fundamento teórico e torná-la mais qualificada sob o ponto de vista jurídico. 2. É essencial que a pesquisa tenha caráter prescritivo, vale dizer, apresente uma conclusão propositiva sob a forma de recomendações de ação prática, e não apenas um posicionamento hermenêutico. Vale dizer, o pesquisador não deve se limitar a emitir juízos de direito, traduzidos por afirmações sobre legalidade ou licitude de condutas, nem juízos meramente de fato, por meio da descrição da realidade relevante ao direito. Espera-se que os trabalhos investigativos também sejam capazes de produzir juízos de valor e de conveniência, juridicamente embasados, sobre a melhor estratégia a ser adotada em situações concretas. Sob a perspectiva do aluno, a pesquisa propiciará uma prática mais consciente, refinada e fundamentada juridicamente9. Sob a perspectiva da comunidade jurídica, o resultado será a formalização e o compartilhamento de um conhecimento tácito de domínio restrito de profissionais experientes, não captado pelos textos puramente acadêmicos10. O CARÁTER APLICADO DA PESQUISA JURÍDICA Nas ciências exatas ou sociais, o objetivo principal da investigação é a comprovação de hipóteses fáticas, a realização de inferências probabilísticas ou a descrição cuidadosa da realidade. Já no campo das humanidades, a pesquisapreocupa-se com a formulação de explicações racionais, a dedução de respostas lógicas, a elaboração de conceitos e a organização de reflexões. Como regra, esse tipo de trabalho investigativo enquadra-se na categoria de pesquisa básica, na medida em que não possui o compromisso de produzir um conhecimento imediatamente aplicável. Por sua vez, a pesquisa aplicada pressupõe uma produção tecnológica com utilidade prática imediata. No campo do direito, esse resultado demanda a construção de soluções jurídicas funcionais que atendam às necessidades do mundo real. A pesquisa jurídica de base doutrinária pode ser puramente conceitual ou dogmática, como também assumir caráter aplicado, voltado à resolução de problemas e questões práticas. A doutrina tradicional privilegia o enfoque abstrato das questões jurídicas, ignorando o contexto fático e a realidade concreta. Nesse caso, o direito posto e as questões hermenêuticas passam a ser o principal objeto de estudo, em detrimento de problemas de qualificação jurídica dos fatos ou de comportamentos complexos. Como consequência, fica mais difícil fazer a ponte entre teoria e prática jurídica11. Já a pesquisa exclusivamente empírica adota abordagens científicas pouco familiares aos juristas (ainda que diga respeito a disposições jurídicas ou a comportamentos juridicamente qualificados), tomando de empréstimo a metodologia das ciências sociais (sociologia, antropologia, psicologia, economia, finanças). O objetivo básico consiste em investigar o funcionamento das instituições ou os efeitos produzidos por determinada norma jurídica no ambiente social ou econômico. As disposições legislativas ou comportamentos sociais são assumidos como coisas, e não como textos ou ações que veiculam sentidos próprios. A empiria prioriza a observação da realidade fática subjacente ao direito, e não a interpretação e aplicação do direito para solução de problemas práticos. A relevância aplicada do conhecimento jurídico decorre de sua utilidade para resolver problemas que desafiam os operadores do direito. Para cumprir esse desiderato, a pesquisa no mestrado profissional necessita chegar a conclusões propositivas, por meio da formulação de recomendações de condutas em face do direito posto, e apenas complementarmente soluções que pressuponham alterações constitucional, legislativa e regulatória. Uma contribuição particularmente relevante da pesquisa no mestrado profissional é a identificação das chamadas melhores práticas, ou então o aprimoramento de uma prática já existente. Conquanto o referencial teórico-normativo seja importante na pesquisa desenvolvida no mestrado profissional, isso não significa que seu objetivo principal seja a crítica ou o refinamento da teoria, ou das correntes doutrinárias existentes. O objetivo tampouco consiste na elaboração de novas proposições teóricas (embora isso possa até ocorrer de forma incidental). O trabalho de investigação e reflexão visa essencialmente a solucionar problemas relacionados com a prática jurídica, a partir da aplicação das teorias e opiniões doutrinárias já conhecidas, escolhendo aquela que se mostre mais adequada ao caso concreto, mediante justificativa fundamentada. Nada impede que a pesquisa no mestrado profissional se oriente por um marco teórico-normativo específico. Raramente o pesquisador poderá prescindir da doutrina ou da teoria jurídica. Isso não significa, porém, que deva enfrentar os desacordos formados em torno do arcabouço conceitual adotado. Basta que proponha uma abordagem devidamente fundamentada e teoricamente consistente para resolver o problema, discutir a prática jurídica ou criticar o caso estudado, a partir de referências teóricas ou práticas bem definidas. O registro de entendimentos divergentes é importante para evidenciar que a abordagem do pesquisador foi neutra e imparcial, ao invés de estar comprometida com a defesa de um interesse ou de ponto de vista definido a priori. Em termos ideais, a pesquisa jurídica no mestrado profissional deve gerar um produto tecnológico, com inequívoca utilidade prática para a sociedade, o setor empresarial, o governo, o terceiro setor ou o meio profissional. A utilidade prática está diretamente relacionada com o componente inovador da pesquisa. O objetivo da pesquisa é a intervenção no mundo real, com propósito transformador. Não basta o aluno se dedicar ao estudo de um tema interessante por ele até então ignorado, para ao final elaborar um texto que seja mera reprodução de conhecimento já amplamente difundido e formalizado. Um trabalho com esse perfil tende a assumir a forma de explanação do direito posto, compilação de opiniões doutrinárias ou enunciado de decisões judiciais. Como regra, o modelo de pesquisa no mestrado profissional deve cumprir as seguintes etapas: (i) contextualização fática (funcionamento do mundo real e práticas usualmente adotadas); (ii) apresentação do referencial teórico-normativo (direito aplicável e questões sensíveis); (iii) abordagem analítica (discussão sobre pontos fortes e pontos fracos; principais riscos); (iv) recomendações finais de conduta ou ação prática (como agir e com que cautelas). Estrutura Básica do Trabalho de Pesquisa ↓ Contextualização fática ↓ Referencial teórico-normativo ↓ Abordagem analítica ↓ Recomendações finais No mestrado profissional, a pergunta de pesquisa mais relevante é o “como”, e não simplesmente “o quê”, ou mesmo o “por quê”. Para isso, não basta identificar a legislação aplicável, explicar o regime jurídico vigente, discutir a natureza jurídica ou o fundamento teórico, apontar o entendimento doutrinário e jurisprudencial prevalecentes, ou ainda descrever a realidade fática. Essas abordagens representam apenas uma parte do percurso, e não o objetivo final da pesquisa. No fundo, o resultado do trabalho de investigação precisa responder a questões dinâmicas sobre como agir e com que cautelas, qual a melhor estratégia, quais os fatores relevantes para tomada de decisão, quais os 3. riscos jurídicos e como podem ser mitigados. Naturalmente, para elaborar respostas fundamentas, é necessário enfrentar primeiro indagações mais específicas, que muitas vezes constituem o foco central da pesquisa realizada em outros cursos ou programas universitários12. Questões Principais e Secundárias Questões principais (objetivo final da pesquisa) O que fazer? Como agir e com que cautelas? Quais os principais riscos e como podem ser mitigados? O que funciona? O que faz sentido? Qual a estratégia ideal? Qual a melhor prática? Qual a lição apreendida? Qual a conduta recomendável? Questões secundárias (função instrumental) O que diz a legislação? Qual o entendimento doutrinário ou jurisprudencial? Qual o conceito ou a natureza jurídica? Qual o fundamento teórico? Qual o relato dos fatos? Qual a realidade empírica? FONTES E MÉTODOS DE PESQUISA Muitas questões práticas não podem ser compreendidas e respondidas apenas pela consulta às fontes tradicionais de pesquisa no campo jurídico, tais como legislação, repositório de decisões judiciais ou textos doutrinários clássicos (que normalmente se reportam à legislação e às decisões judiciais). A compreensão de modelos negociais, estruturas tributárias, soluções regulatórias, programas de conformidade e políticas públicas exige o amplo conhecimento do contexto fático em que são adotados. Daí a importância da abordagem multidisciplinar para a construção de soluções jurídicas conectadas com o mundo real. A pesquisa no mestrado profissional pode e deve se valer de métodos empíricos para conhecer e dialogar com o contexto fático. Nesse caso, a empiria terá papel coadjuvante, contribuindo para desvendar a realidade relevante à compreensão da norma jurídica ou da disposição contratual. O resultado final será um trabalho mais transparente e contextualizado. É possível fazer da investigação empírica uma ferramenta útil para informar o estudo e a pesquisa jurídica sobre aspectos importantes da realidade a ser considerada na aplicação do direito. Os achados empíricosnão esgotam a pesquisa, mas servem de substrato fático para contextualizar e enriquecer a reflexão jurídica. Tampouco se faz indispensável que a pesquisa empírica observe o mesmo rigor metodológico das ciências sociais aplicadas. Para a pesquisa no mestrado profissional, basta que os fatos sejam apreendidos a partir da experiência própria do pesquisador, na qualidade de observador participante, combinado com o uso de conhecimento anedótico ou da chamada empiria pervasiva13. A experiência própria do pesquisador também pode servir como fonte de pesquisa, ainda que seja altamente recomendável validá-la e complementá-la com outros métodos ou técnicas de investigação. Não é necessário, nem desejável, que o pesquisador seja alguém alheio à prática profissional ou ao caso concreto, que será objeto de reflexão e análise. Quem está em melhor posição para sistematizar e refletir sobre uma prática jurídica é justamente o profissional que possua vivência no assunto. Para mitigar o risco de enviesamento, o trabalho investigativo deve explicitar a relação precedente do pesquisador com o objeto pesquisado. Com isso, o público-alvo poderá atribuir ao texto afinal produzido o valor acadêmico que julgar adequado, à vista do envolvimento pessoal do pesquisador expressamente declarado. Quando o pesquisador possui familiaridade com a prática investigada, o trabalho de coleta de dados e a identificação das questões-chave ficam facilitados. Nada impede que o pesquisador investigue alguma prática não compreendida na sua experiência profissional. Nesse caso, porém, o pesquisador deve estar preparado para despender um esforço adicional, uma vez que precisará reunir informações fidedignas e suficientes para descrever, explicar e sistematizar a prática pesquisada. Precisará, ainda, estar suficientemente seguro para apresentar alternativas de ação prática que façam sentido a quem já milite na área. Nesse caso, o pesquisador dificilmente escapará da necessidade de realizar pesquisa de campo, notadamente por meio de conversas informais ou entrevistas semiestruturadas com atores relevantes, detentores de experiência prática sobre o tema pesquisado. Na maioria das vezes, a prática investigada não estará retratada, de forma confiável e abrangente, em textos doutrinários já publicados. Eventualmente, poderá constar de trabalhos empíricos produzidos em outras áreas do conhecimento. Sem embargo da importância do uso da própria experiência, o depoimento de atores relevantes também pode contribuir para robustecer a percepção do pesquisador sobre a realidade concreta. Vale destacar que as conversas ou entrevistas não se destinam propriamente a colher opiniões jurídicas, mas a obter informações qualificadas sobre os fatos. Os interlocutores devem ser selecionados em função de seu conhecimento diferenciado sobre a prática jurídica, as soluções usualmente adotadas para resolução de problemas, ou os detalhes do caso que não constam de registros escritos. Trata-se de especialistas experientes na sua área de atuação e dispostos a compartilhar sua visão sobre a realidade concreta para enriquecer a pesquisa jurídica. A credibilidade do resultado das conversas ou entrevistas depende fundamentalmente do reconhecimento da comunidade jurídica sobre a qualidade da experiência dos entrevistados escolhidos pelo pesquisador. As pesquisas puramente quantitativas para determinar inferências, a exemplo de questionários (surveys), possuem menos espaço no mestrado profissional, na medida em que exigem domínio de métodos estatísticos dificilmente manejáveis pelos profissionais do direito. Além disso, a 4. aspiração de estabelecer juízos de fato metodologicamente robustos pode negligenciar o componente jurídico e propositivo da pesquisa. Fontes e Métodos de Pesquisa Legislação (consulta e fontes oficiais) Doutrina nacional e estrangeira (pesquisa bibliográfica) Decisões judiciais e administrativas (pesquisa jurisprudencial) Pareceres de autoridade (consulta a fontes oficiais) Trabalhos acadêmicos dentro e fora do campo jurídico (pesquisa bibliográfica) Matéria jornalística (consulta a periódicos ou a internet) Documentos (leitura e análise documental de fontes autorizadas) Banco de dados (análise de informações já compiladas e organizadas) Pesquisa de campo (etnografia e entrevista com atores relevantes) Uso da própria experiência (observador participante) O RIGOR CIENTÍFICO Na atuação profissional, é normal que o advogado seja parcial e desenvolva o seu trabalho para atender primordialmente aos interesses do cliente. Nesse ambiente, o advogado pode fazer uso da retórica persuasiva, narrar fatos destacando os pontos positivos e encobrindo os negativos, invocar argumentos de autoridades sem questioná-los, ou mencionar apenas precedentes judiciais favoráveis, ainda que existam outros em sentido contrário. Como regra, tais posturas não são encaradas como desvio ético. Já o texto acadêmico dotado de rigor científico deve utilizar linguagem sóbria e equilibrada, expor os fatos de forma ampla e fiel à realidade, sem omissões ou distorções, além de conduzir a argumentação com imparcialidade e espírito crítico. Os atributos básicos do texto acadêmico podem ser assim resumidos: (i) neutralidade e independência do autor; (ii) informação correta e completa; (iii) indicação das fontes de pesquisa; (iv) análise crítica e abrangente; (v) argumentação lógica e racional; e (vi) propostas construtivas e realistas14. Em relação à pessoa do pesquisador, espera-se que (i) declare o seu envolvimento com o objeto pesquisado; (ii) não se comprometa com a defesa de interesses encobertos; (iii) aponte, discuta e refute os argumentos contrários; e (iv) revele as limitações e fragilidades do posicionamento proposto ou da conduta sugerida. O pesquisador deve se manter aberto a mudanças de rumo durante o curso da pesquisa, sem se sentir vinculado ao roteiro inicialmente traçado ou às respostas que considerava desejáveis. A pesquisa dotada de rigor científico não pode se limitar a sistematizar intuições baseadas no senso comum. É necessário demonstrar faticamente as afirmações e sustentar juridicamente as proposições apresentadas. Isso não quer dizer que um posicionamento hermenêutico ou prática jurídica somente sejam aceitos como corretos ou verdadeiros, se estiverem ancorados em alguma opinião doutrinária autoritativa, ou em estudo empírico metodologicamente robusto. O pesquisador não deve reverência a doutrinadores renomados (melhor doutrina), tampouco está vinculado a decisões judiciais reiteradas (jurisprudência consolidada). O pesquisador pode desafiar o entendimento ou conhecimento estabelecido sobre determinado assunto e propor novos olhares ou soluções. O importante é que o faça de forma refletida e fundamentada, com base em informações oriundas de fontes confiáveis, devidamente explicitadas, ainda que não tenham validade estatística ou abrangência universal15. Para ter credibilidade acadêmica, a opinião jurídica emitida pelo pesquisador deve ser ao mesmo tempo (i) informada (considera contexto fático, ordenamento jurídico e possíveis consequências); (ii) fundamentada (utiliza argumentação jurídica consistente e contextualizada); (iii) ponderada (abrangente, equilibrada e sóbria); e (iv) desinteressada (neutra e imparcial). A pesquisa acadêmica na área jurídica não se limita à produção de um belo texto dissertativo. O texto funciona como veículo de comunicação do resultado final do trabalho do pesquisador e deve ser sempre bem escrito. No entanto, não se confunde com as atividades antecedentes de revisão bibliográfica, coleta de informações, discussão, análise e reflexão aprofundada. São essas atividades que qualificam a pesquisa no campo jurídico, e não simplesmente a redação do texto. Em suma, o rigor científico na área do Direito pressupõe que afirmações fáticas e proposições jurídicas sejam demonstradas e fundamentadas. Para isso, é necessário utilizar fontes de informação fidedignas e argumentar de forma lógica, convincente, abrangente eimparcial. Qualidades do Texto Desejável Inadequação Delimita escopo a partir da formulação de um problema, da apresentação de um caso concreto ou da indicação de uma prática jurídica Limita-se a explanar o direito posto, compilar opiniões doutrinárias ou decisões judiciais, relatar fatos ou emitir opiniões Discute a aplicação do direito considerando o contexto fático; situa o tema no cenário internacional Abordagem dogmática desconectada da realidade concreta; discute o tema no plano puramente abstrato; ignora o cenário internacional Consulta boas fontes de pesquisa; utiliza métodos empíricos para conhecer a realidade; aproveita experiência prática do autor Ausência de pesquisa ou falta de credibilidade das fontes consultadas; faz inferências e afirmações sem fundamentação adequada Argumentação lógica e consistente, análise sofisticada e crítica fundamentada; postura propositiva Argumentação retórica, análise simplista, crítica superficial; reproduz o senso comum; inexistência de proposta Visão neutra e abrangente; discute posições contrapostas; isenção intelectual do autor Visão unilateral e enviesada; não discute posições contrapostas; motivação secundária não declarada 5. Desejável Inadequação Encadeamento lógico do raciocínio; clareza de redação; linguagem sóbria; pertinência das citações doutrinárias Raciocínio confuso; redação truncada; exageros de linguagem; citações bibliográficas sem objetivo definido Conclusão propositiva imediatamente aplicável; recomendação de conduta ou ação concreta; geração de produto com utilidade prática; contribuição inovadora Constatação de obviedades; proposições genéricas e abstratas; aponta objetivo desejável sem indicar meios para atingi-lo; carência de abordagem inovadora POSSIBILIDADES DE PESQUISA NO MESTRADO PROFISSIONAL No mestrado profissional, emergem pelo menos três modalidades básicas de pesquisa que atendem às diretrizes supra-anunciadas. São elas (i) o trabalho exploratório sobre práticas jurídicas, (ii) a resolução de problemas complexos e (iii) o estudo de caso paradigmático. Os tópicos seguintes tratarão separadamente de cada modalidade. Em qualquer hipótese, recomenda-se que a questão central de pesquisa seja desdobrada em questões secundárias ou quesitos específicos. Cada etapa do trabalho deve ensejar a formulação de pelo menos um quesito (contextualização fática; referencial teórico-normativo; abordagem analítica; e recomendações finais). Os quesitos são úteis para delimitar o escopo do trabalho e estabelecer a sequência lógica de abordagem do tema. Exemplo de Quesitos Retenção pecuniária como instrumento de autotutela em contratos empresariais Em que consiste o mecanismo de retenção pecuniária em contratos empresariais? Para que serve? Em que contextos se aplica? Com que finalidade? Qual a prática usual? Qual a fundamentação jurídica do mecanismo contratual de retenção pecuniária? Qual a sua moldura legal de validade? Que aspectos práticos devem orientar a adoção e o desenho contratual do mecanismo de 5.1. retenção pecuniária? Qual o modelo ou modelos ideais de mecanismos contratuais de retenção pecuniária? Como se traduzem em cláusulas-padrão? Tributação de empreendimentos de shopping center Como opera o setor de shopping centers? Quais os arranjos negociais usualmente adotados? Quais as incidências tributárias sobre a operação de shopping center? Quais as principais controvérsias jurídicas? Qual o arranjo negocial mais eficiente sob o ponto de vista tributário? Quais os principais riscos e como podem ser mitigados? Licenciamento ambiental no âmbito municipal Quais os custos e benefícios do licenciamento ambiental no âmbito municipal? Quais as vantagens e desvantagens em relação ao licenciamento estadual ou federal? Qual a fundamentação jurídica do licenciamento ambiental no âmbito municipal? Quais os principais riscos de questionamento jurídico e como podem ser mitigados? Quando faz sentido a adoção do licenciamento ambiental no âmbito municipal? Que fatores devem ser considerados para tomada de decisão? Como estruturar o licenciamento ambiental no âmbito municipal? Trabalho exploratório sobre práticas jurídicas No trabalho exploratório sobre práticas jurídicas, o pesquisador deve inicialmente buscar a apreensão da realidade e a contextualização fática. Para isso, precisa elucidar o conteúdo da prática pesquisada, o campo de aplicação, as soluções usualmente adotadas e possíveis variações. O passo seguinte consiste na reflexão sobre as práticas constatadas, mediante a identificação do regime jurídico aplicável, das questões controversas ou com potencial de problematização e dos entendimentos relevantes diretamente aplicáveis (doutrinários, administrativos e judiciais). Com isso, o pesquisador terá condições de desenvolver a fundamentação jurídica adequada para qualificar a prática, sem prejuízo de também apontar suas fragilidades e limitações. 5.2. O trabalho deve, então, avançar para a análise e avaliação crítica da prática descrita e qualificada juridicamente. As ponderações precisam indicar, entre outras coisas, os pontos fortes e os pontos fracos, os limites e possibilidades, os fatores que influenciam a tomada de decisão, os principais riscos e como podem ser mitigados. A quarta fase deve ser necessariamente propositiva, sugerindo cursos de ação aos operadores do direito (como agir e com que cautelas). Em caráter complementar, pode-se formular propostas de lege ferenda para adequação do marco legal ou regulatório, sem prejuízo das necessárias proposições de lege lata. Dependendo da área de concentração e das linhas de atuação do programa de mestrado profissional, as práticas pesquisadas podem consistir em (i) arranjos contratuais e societários; (ii) cláusulas específicas de negócios jurídicos; (iii) formas de contratação no setor público: (iv) estruturação de projetos de infraestrutura; (v) modelos regulatórios; (vi) políticas públicas com impacto na atividade empresarial; (vii) incidências tributárias em setores ou transações específicas; (viii) modelos de gestão ou governança tributária; (xi) políticas de tributação e técnicas de arrecadação; (xii) estratégias de defesa processual; (xiii) medidas preventivas de ilícitos penais. Resolução de problema A pesquisa no mestrado profissional também pode ser orientada pela resolução de problemas que tenham densidade jurídica e relevância prática. A formulação do problema é importante para delimitar o escopo da pesquisa, evitando que o trabalho se transforme em narrativa descompromissada, discurso genérico ou dissertação sem objetivos claros. A descrição dos fatos, a explanação da legislação vigente, a invocação de entendimentos doutrinários e precedentes jurisprudenciais possuem função instrumental. São úteis apenas na medida em que sirvam para subsidiar respostas às perguntas relevantes sob o ponto de vista prático (v.g., como agir e com que cautelas, qual a estratégia ideal, o que funciona ou faz sentido). Ao final, o pesquisador deve emitir um juízo de conveniência dentro de uma moldura legal mais ampla, e não simplesmente sustentar um posicionamento hermenêutico ou afirmar a licitude ou ilicitude de determinada conduta. Não se trata, portanto, de partir da teoria para, por meio da prática, alargar, estreitar, endossar ou abandonar uma proposição teórica. Trata-se de partir de um problema concreto para, por meio da teoria, propor reformas ou aprimoramentos práticos. O problema não é exatamente a mesma coisa que a hipótese de pesquisa. Ele pode admitir alternativas de soluções que serão testadas ou avaliadas no curso da pesquisa. Pode, ainda, tomar múltiplas questões que demandam respostas fundamentadas, a ponto de compor uma solução integral. Por sua vez, as hipóteses são explicações preliminares ou provisórias, que serão testadas durante o percurso da pesquisa, visando à sua confirmação ou refutação16. Na pesquisa acadêmica, a hipótese funciona como o ponto de partida, cujo destino final ainda é incerto. A pesquisa no mestrado profissionalpode dispensar a formulação de uma hipótese inicial, atendo-se apenas à resolução do problema proposto (ainda que as alternativas de solução sejam previamente anunciadas pelo pesquisador)17. Não basta ao pesquisador refutar a solução inicial aventada, como faria com a hipótese na pesquisa puramente acadêmica. Ele precisa construir a melhor solução e justificá-la de modo satisfatório. São exemplos de problemas juridicamente relevantes, que demandam propostas de ação prática: (i) em que medida o contrato pode dispor sobre regras de interpretação e distribuição do ônus da prova; quando e como convém fazê-lo; (ii) qual o enquadramento jurídico e o campo de aplicação das chamadas condições precedentes; (iii) quando faz sentido o contrato de sociedade limitada prever a aplicação subsidiária do regime jurídico da sociedade anônima, com fundamento no art. 1.053 do Código Civil; (iv) em que circunstâncias pode ser atribuída a responsabilidade tributária a outra 5.3. empresa do mesmo grupo econômico; como mitigar o risco daí decorrente; (v) como estruturar um plano de opções de compra de ações conciliando eficiência tributária e segurança jurídica; (vi) qual a melhor estratégia para impedir a sonegação fiscal em determinado setor da atividade econômica. Estrutura Básica de Resolução de Problema Sintomas (apreensão dos fatos e percepção da situação problemática) Impactos negativos no mundo real (segurança jurídica, políticas públicas, equidade) Distorção nos resultados ou efeitos pretendidos pelo formulador Desorganização do setor privado, ineficiência da ação pública, demandas essenciais não atendidas, pressão orçamentária e risco fiscal Reflexão (mobilização de conhecimento teórico e prático) Identificação do referencial teórico-normativo correspondente ao direito aplicável no caso concreto Consulta à literatura especializada Combinação com conhecimento tácito baseado na própria experiência Exercício de subsunção dos fatos à norma jurídica Diagnóstico (identificação das possíveis causas) Interpretação equivocada da norma jurídica Lacuna legislativa ou falta de parâmetros para aplicação de princípios jurídicos vagos Práticas jurídicas inadequadas Decisor desconhece realidade fática e consequências práticas Deficiência do marco legal e regulatório Prescrição (proposta de solução) Mudança de posicionamento hermenêutico Compreensão da norma jurídica e fixação de parâmetros de aplicação concreta Ajuste nas práticas utilizadas Monitoramento e controle dos efeitos e das consequências práticas Alteração legislativa Estudo de caso A pesquisa jurídica profissional pode ainda se inspirar em um caso real já ocorrido, passível de análise e problematização. Embora o ponto de partida seja diferente em relação ao modelo de resolução de problema, o resultado final busca igualmente uma recomendação de ação prática. A resolução de problema pode ensejar uma solução nova, enquanto o estudo de caso pressupõe a avaliação crítica de uma solução já adotada, com sugestões de aprimoramento (proposições contrafáticas) ou de alargamento do campo de aplicação (proposições abrangentes). A resolução de problema envolve um olhar prospectivo, ao passo que o estudo de caso é por natureza retrospectivo. De todo modo, ambos os percursos demandam uma conclusão propositiva. O estudo de caso requer uma análise qualitativa, e não quantitativa. Pressupõe o acesso do pesquisador às informações essenciais, incluindo a documentação básica, ainda que de caráter reservado, e a possibilidade de manter interlocução com atores relevantes diretamente envolvidos, preferencialmente por meio de conversas informais ou entrevistas semiestruturadas. A atenção do pesquisador deve se voltar à solução adotada no caso concreto, sua fundamentação jurídica e avaliação crítica. O estudo de caso combina bem com a pesquisa no mestrado profissional. Isso porque propicia a abordagem integrada, envolvendo, simultaneamente, aspectos estratégicos e jurídicos, o que facilita a compreensão sobre a relevância do problema jurídico e a lógica da solução adotada. Possibilita, ainda, a discussão de questões dogmáticas devidamente contextualizadas, e não apenas no plano teórico-abstrato. Além disso, o estudo de caso permite criticar com imparcialidade decisões judiciais ou administrativas, mostrando eventuais equívocos conceituais ou de percepção da realidade concreta, indicando caminhos alternativos. Tratando-se de uma situação conflituosa já resolvida, cabe ao pesquisador investigar de forma mais ampla o contexto fático e os argumentos utilizados pelas partes envolvidas, pois esses elementos nem sempre estarão incorporados no relatório da decisão proferida. O estudo de caso não pode se limitar à mera narrativa ou descrição dos fatos. Além do componente descritivo, precisam estar presentes a análise qualificada e a postura propositiva. O objetivo central do estudo não é o relato do caso em si, mas a exploração dos problemas que podem ser discutidos e respondidos por seu intermédio. Em outras palavras, as lições apreendidas ou os ensinamentos que podem ser dele extraídos para orientar condutas futuras. O resultado final da pesquisa na modalidade de estudo de caso pode mostrar o que funciona ou não em determinados contextos (ou o que deu certo e o que deu errado), ainda que não assegure o domínio completo das explicações causais. A utilidade do caso analisado decorre justamente do componente prescritivo para guiar a ação dos profissionais do direito (o que deve ser feito em termos de organização, gestão ou decisão), e não apenas do componente explicativo (o que exatamente determinou o resultado final). Nem sempre é fácil identificar as perspectivas de análise mais adequadas em cada estudo de caso. Isso depende fundamentalmente das peculiaridades da situação concreta e do potencial de aprendizagem. Para maiores indicações sobre estudos de caso na pesquisa jurídica, confira-se o Capítulo 17. Perspectivas de Análise em Estudo de Caso Perspectivas de análise (i) Principais desafios e como foram equacionados (identificação dos pontos-chave) Adequação, fragilidades e potencialidades da solução adotada (pontos fortes e pontos fracos) Fatores relevantes para tomada de decisão (compreensão do contexto fático e percepção de interesses) Mecanismo de incentivos e alinhamento de interesses (motivação para colaboração espontânea e potenciais conflitos de interesses) Principais riscos e formas de mitigação (constatação e valoração) Comparação com soluções alternativas (análise comparativa sobre vantagens e desvantagens) Correspondência com práticas usuais de mercado (inserção do caso em contexto mais 6. amplo) Aderência ao ordenamento jurídico e questões sensíveis (confronto com posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, possíveis controvérsias) Repercussão sob a ótica da política pública (valoração de aspectos positivos e negativos) Lições apreendidas com potencial de generalização (o que deu certo e o que deu errado) Sugestões de aprimoramento e ações práticas (recomendações de conduta em face do direito posto e proposta de alterações legislativas) O FORMATO DO TRABALHO DE CONCLUSÃO O trabalho de conclusão no mestrado profissional admite diferentes formatos, incluindo a chamada dissertação, desde que também esteja presente o componente aplicado18. Todavia, a apresentação de uma dissertação tradicional corre o risco de induzir o aluno a adotar o modelo de digressão conceitual extensiva, em detrimento do enfoque concentrado na análise e solução de questões específicas. O mestrado profissional deve dar preferência a trabalhos concisos e com profundidade vertical, em detrimento da extensão horizontal. O texto tampouco deve assumir o perfil de “apontamentos”, “reflexões iniciais” ou “delineamentos básicos”. Não bastam especulações difusas; é necessário construir um raciocínio estruturado para sustentar juízos de fato, de direito e de conveniência, apresentando ao final alternativas de ação prática. O trabalho também não se resume à produção de um textoelegante e bem escrito, que tenha dispensado a pesquisa prévia conduzida com rigor científico. A verdadeira pesquisa não prescinde dos componentes investigativo e reflexivo. O texto produzido serve basicamente para registrar e divulgar os achados, a análise e a reflexão do pesquisador. Na sua versão mais evoluída, o produto final da pesquisa deve estar refletido em pelo menos um artigo pronto e acabado, passível de ser publicado em periódicos com impacto no meio profissional. No entanto, nem sempre será possível o trabalho alcançar de imediato o objetivo ideal, 7. antes de passar por um período mais longo de maturação e ser submetido ao crivo da banca examinadora. É nesse momento que o trabalho receberá críticas e contribuições adicionais, especialmente por parte dos membros externos que não acompanharam o percurso de pesquisa do aluno. Afigura-se mais prudente orientar o aluno a produzir um trabalho de conclusão que supere o tamanho desejável de um artigo. A diferença da extensão decorrerá de indicações metodológicas e explanações que podem ser omitidas na versão do texto que vier a ser publicada. É importante, porém, que o texto já contenha as informações básicas, o detalhamento metodológico, as referências doutrinárias e jurisprudenciais, as reflexões jurídicas, a avaliação crítica e a conclusão propositiva, ou seja, todos os elementos de pesquisa necessários à produção posterior da versão consolidada. Após a aprovação pela banca examinadora, o trabalho passará por novo processo de depuração e lapidação, para se transformar finalmente em um ou mais artigos publicáveis, que reflitam a essência do objeto pesquisado e dos resultados obtidos, dentro das dimensões aceitáveis para esse gênero literário. CONCLUSÃO O desafio de construir a identidade própria do mestrado profissional em direito passa pela definição do modelo de pesquisa que o diferencie dos programas acadêmicos. Para isso, o resultado da pesquisa deve atender, simultaneamente, a exigências mínimas de rigor científico e produzir impacto social, econômico ou profissional. Apresentou-se aqui uma proposta básica de pesquisa que combina quatro dimensões: (i) contextualização fática; (ii) apresentação do referencial teórico-normativo; (iii) abordagem analítica; e (iv) recomendações finais. O modelo idealizado permite pelo menos três abordagens distintas, embora todas elas sejam voltadas à obtenção do mesmo resultado propositivo: (i) trabalho exploratório sobre práticas jurídicas; (ii) resolução de problema complexo; e (iii) estudo de caso paradigmático. Nesse contexto, teoria e empiria desempenham uma função instrumental, pois são apenas meios para qualificar a pesquisa, e não pontos de chegada. Não basta que o trabalho de investigação apresente proposições teóricas ou constatações fáticas. As proposições e constatações somente terão valia se também forem úteis para orientar práticas jurídicas ou condutas profissionais. Tanto melhor se as orientações contiverem soluções inovadoras. Referências FOX, Mark; MARTIN, Peter; GREEN, Gill. Doing practitioner research. London: Sage, 2007. LIMA, Roberto Kant; BAPTISTA, Bárbara Gomes Luppeti. Como a antropologia pode contribuir para a pesquisa jurídica? Um desafio metodológico. Anuário Antropológico, Brasília: UnB, I, p. 9-37, 2014. LOPUCKI, Lynn M. Disciplining legal scholarship. Tulane Law Review, v. 90, 2015. PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista de Direito GV, v. 14, n. 1, p. 28-48, jan.-abr. 2018. POPPER, Karl Raimund. The logic of scientific discovery. London: Routledge, 2002. ROBSON, Colin. Real world research. 2. ed. Malden, MA: Blackwell Publishing, 2002. WEST, Glenn D. That pesky little thing called fraud: an examination of buyers’ insistence upon (and sellers’ too ready acceptance of) undefined “fraud carve-outs” in acquisition agreements. The Business Lawyer, v. 69, 2014. PARTE 2 CONCEPÇÃO DA PESQUISA, LOCALIZAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DE FONTES 1. 1.1. 4 COMO ENCONTRAR UM TEMA DENTRO DE MINHA ÁREA DE INTERESSE? RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ19 UM TEMA DE PESQUISA A definição do tema é o ponto de partida para um trabalho científico, desde um TCC até uma tese de doutoramento. Definir o tema de pesquisa, em seu formato pronto e acabado, talvez seja a parte mais importante de uma pesquisa de sucesso. Normalmente, é também uma das mais difíceis. Pesquisadores experimentados sabem que, uma vez definido o tema de pesquisa, o processo de investigação, ainda que trabalhoso, deflui com facilidade. Até a definição do específico tema da pesquisa, entretanto, tudo parece mais nebuloso, porque de fato o é: a pesquisa é um caminho que leva da dúvida à certeza; sem que se saiba de onde se parte e aonde se quer chegar, esse caminho não tem como ser percorrido. Este capítulo apresenta algumas etapas que ajudam a transformar um mero assunto de interesse (que muitos equivocadamente pensam ser um tema de pesquisa) em um tema propriamente suscetível de investigação “científica”20. O tema deve ser um verdadeiro objeto de dúvida Trabalhos científicos comunicam resultados relevantes de pesquisas a seu público leitor. Cientistas e pesquisadores são socialmente apreciados porque são capazes de fazer algo importante: eles descobrem coisas desconhecidas, ou esclarecem pontos duvidosos, ou (des)confirmam coisas que todos julgamos saber; e o fazem por meio de procedimentos intelectuais reconhecidos (“métodos científicos”), em cujos produtos confiamos (“descobertas científicas”). Esses procedimentos são adquiridos no processo de formação acadêmica superior e aperfeiçoados na pós-graduação. Dependem de algum treino até que sejam dominados. Uma pesquisa científica é, portanto, uma empreitada de produção de um conhecimento até então desconhecido, ou ao menos carente de confirmação, por meio de métodos aceitos pela comunidade acadêmica. Toda pesquisa deve começar com algo que não se sabe, ou de que não se tem certeza, ou cuja certeza intuitiva se quer testar. Sem isso, não se tem um verdadeiro tema de pesquisa, por mais que se disponha de um assunto de interesse. As dúvidas que se desdobram em problemas de pesquisa podem variar quanto a extensão, impacto, nível de inovação que implicam, natureza (teórica ou prática) etc. Algumas vezes, pesquisadores refazem, com novos métodos ou variações, pesquisas já feitas, em busca de uma resposta nova para uma velha pergunta, ou da (des)confirmação de uma certeza difundida. Tome- se, por exemplo, a questão da orientação socioideológica dos juízes em suas sentenças: os juízes brasileiros, visando aplacar seus sentimentos pessoais de injustiça social, costumam favorecer a parte mais fraca em suas sentenças? Um ensaio de 200521 aventou, a partir de entrevistas com magistrados brasileiros, a hipótese de que o Judiciário teria a tendência de desrespeitar cláusulas contratuais e dispositivos legais para favorecer o litigante economicamente mais fraco e, assim, fazer “justiça social” ao arrepio de normas jurídicas cogentes. Para muitas pessoas, tal hipótese fez sentido: ela combinava com a desconfiança de muitos sobre a imparcialidade do Poder Judiciário e com sua suposta tendência a sempre favorecer a parte mais fraca em um litígio (pense-se, por exemplo, na vulgata que se faz da Justiça do Trabalho). Porém, no ano seguinte, uma pesquisa foi levada a cabo com o específico propósito de testar a veracidade dessa hipótese. Resultado: ela se provou falsa, nos limites testados pelos pesquisadores. De acordo com essa última investigação, os litigantes economicamente mais fortes têm, considerados todos os fatores, 45% mais chances de saírem vitoriosos em uma disputa judicial do que os mais fracos, em casos iguais (FERRÃO; RIBEIRO, 2006). Nessa mesma linha, pesquisas sobre a atuação do Poder Judiciário em demandas relacionadas ao direito à saúde têm mostrado que os demandantes economicamente mais avantajados estão entre os mais contemplados por decisões judiciais que mandam a Administração Pública oferecer remédios sem custoa seus beneficiários, aprofundando a já grande disparidade entre usuários do sistema público de saúde e clientes de planos privados (FERRAZ, 2009). Outras vezes, a pesquisa pode ter o propósito de organizar e sistematizar algo que está confuso por, digamos, sucessões legislativas pouco claras, ou, ainda, decisões judiciais que mais confundem do que esclarecem. Tome-se, por exemplo, um trabalho que procure responder à seguinte dúvida: qual é o conceito de “trânsito em julgado” atual mente prevalecente no direito brasileiro? Tal trabalho investigaria os novos contornos desse tradicional instituto sobre o qual julgávamos ter segurança, mas que está atualmente embaralhado por decisões desencontradas do Supremo Tribunal Federal, especialmente no tocante a alguns dos efeitos das decisões penais condenatórias tomadas por órgãos colegiados. Ainda, outros trabalhos procuram determinar o significado jurídico de algo novo. Também esse tipo de situação é terreno fértil para boas pesquisas, que geram bons artigos. Áreas do Direito que lidam com novas tecnologias são campos vastos para esse tipo de pesquisa, como mostram as muitas dúvidas jurídicas em torno da proteção de dados pessoais, assunto disciplinado em uma recente e importante lei (Lei n. 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados) e elevado à categoria de direito fundamental pela Emenda Constitucional n. 115/2022. Como compatibilizar a proteção de dados pessoais, da intimidade e da vida privada com o princípio da transparência dos atos públicos e o dever geral de publicidade? Em todo campo da vida social em que haja fatos sociais novos, juridicamente relevantes, perguntas desse tipo podem surgir. Todos esses temas são muito diferentes entre si, mas compartilham uma característica relevante. O leitor atento terá notado que todos os temas foram apresentados como perguntas. Isso indica que são objeto de verdadeiras dúvidas, de indagações significativas. Nenhuma dessas perguntas é singela ou simplória; todas são razoavelmente difíceis, e demandam certa reflexão e estudo para que sejam respondidas com substância. Tais reflexões e estudos são justamente as pesquisas – que, se corretamente executadas, serão capazes de construir boas respostas para cada uma delas. Eis a diferença entre uma pesquisa e o mero estudo diletante, que, por mais que contribua positivamente para o aumento de conhecimentos de um estudante, não suscita, via de regra, a forma de reflexão voltada à resposta de problemas específicos. É importante também notar que os temas citados são diferentes de meros assuntos, como “Da ideologia da decisão judicial”, ou “Do trânsito em julgado em matéria penal”, ou, ainda, “Da tributação da publicidade na internet”. A diferença entre um mero assunto e um verdadeiro tema de pesquisa é que o assunto indica um campo de interesse, mas não necessariamente uma pergunta – isto é, um objeto de inquietação, de dúvida – que será respondida pelo trabalho de pesquisa. Como fazer para transformar um assunto em um tema? Um bom exercício é buscar extrair dele uma pergunta, um problema, uma dúvida – com ponto de interrogação ao final, inclusive. Na visão de senso comum, pesquisadores são como detetives do mundo da ciência, pois investigam as coisas com métodos científicos e descobrem verdades até então ignoradas. Porém, há uma importante diferença entre detetives e cientistas: enquanto detetives recebem o problema pronto (um crime para o qual não se encontra o culpado), cujo sentido é mais ou menos óbvio (encontrar o assassino), o cientista primeiro constrói o problema para só depois enfrentá-lo por meio da pesquisa. EXEMPLO 1.2. EXEMPLO “Serviços Públicos” indica um assunto interessante, mas está longe de se constituir em um tema de pesquisa pronto e acabado; tal assunto precisa ser trabalhado, moldado, para que se extraia dele uma pergunta interessante e atual, que possa ser criteriosamente respondida por meio de uma pesquisa jurídica – digamos, por exemplo, “Pode a concessão de serviços públicos ser feita por decreto do Poder Executivo, ou deve o art. 175 da Constituição de 1988 ser interpretado no sentido de exigir que a concessão se dê por meio de lei em sentido estrito?”. Note bem a diferença: a primeira hipótese traz um assunto, uma área; a segunda, uma entre muitas possíveis perguntas dentro dessa área. DICA: CUIDADO COM QUESTÕES ESSENCIALISTAS Quando instados a transformar um assunto (“Serviços Públicos”) em uma pergunta, muitos alunos recorrem à saída fácil de formular uma indagação essencialista: “O que são Serviços Públicos?”. Não se deve fazer isso. Perguntas desse tipo tendem a gerar produtos que nada mais são do que compilados de definições, sem grande utilidade. Ainda que se queira insistir na abordagem conceitual, é preferível tentar aportar o conceito em algo mais concreto, tornando seu enfrentamento mais simples: como se comparam os conceitos de serviço público nos autores A e B? Que critérios a jurisprudência dos tribunais superiores usa para definir o caráter essencial dos serviços públicos? Pesquisas que partam dessas perguntas terão de passar por uma investigação conceitual do que sejam serviços públicos, mas a concretude das questões confere um sentido mais claro à investigação: é mais fácil saber como proceder para enfrentá-las. O tema deve ser relevante A pergunta ou o problema que serão tema de pesquisa devem refletir um objeto relevante para a discussão acadêmica. O fato de um tema ser objeto de frequentes discussões entre pesquisadores e juristas é um bom indicativo de sua relevância enquanto pauta de investigação. Acadêmicos e pesquisadores frequentemente escrevem diversos livros sobre assuntos repetidos. Tome-se, por exemplo, o campo da filosofia: quanta coisa já não foi escrita ao longo da história sobre “como sabemos alguma coisa?”, ou “o que é a justiça?”, ou, ainda, “como as palavras podem ter significado?”. A mesma coisa vale para o Direito, que também tem seus “campeões da a) audiência” entre os problemas jurídicos: “como determinar o valor de indenizações por danos morais?”, “o sistema recursal brasileiro determina a morosidade judicial?”, “que proteção adicional confere o Direito do Consumidor às pessoas excessivamente endividadas?”, “que circunstâncias supervenientes permitem a flexibilização do vínculo contratual anteriormente estabelecido?”, e assim por diante. Eduardo Marchi (2009, p. 48) lembra que temas profícuos de pesquisa podem nascer de debates doutrinários ou jurisprudenciais – e estes, se de fato são debates, envolverão, invariavelmente, partidários de uma e de outra posição, os quais defenderão seus pontos de vista por meio de textos que, provavelmente, citam uns aos outros, seja para expressar concordância, seja para registrar discordância. Assim, uma primeira maneira de determinar a relevância de um tema é saber o quanto ele está na pauta dos debates jurídicos atuais. Há diversos veículos informativos que são úteis nesse sentido. Artigos científicos, dissertações e teses. Os primeiros e mais evidentes veículos são os periódicos científicos, tanto nacionais quanto estrangeiros. Neles são publicados artigos científicos da área do direito. Periódicos são um importante meio de divulgação de novidades de pesquisa à comunidade jurídica. Alguns periódicos têm seus textos disponíveis na internet gratuitamente22. Com o mesmo proveito, o autor poderá consultar também teses e dissertações jurídicas, produzidas no âmbito de programas de mestrado e doutoramento no Brasil e no mundo. Essa estratégia é viável mesmo para quem não dispõe de tempo para frequentar o acervo de uma biblioteca universitária pública, já que, por exigência dos organismos governamentais que cuidam da pós- graduação no Brasil, os programas de mestrado e doutorado devem disponibilizar, pela internet, as dissertações e as teses defendidas em bibliotecas digitais virtuais. Todas as grandes universidades já possuem bibliotecas digitais com bom volume de teses e dissertações disponíveis gratuitamente na rede: USP23, Unicamp24, UFRGS25,UERJ26, UFPE27 etc. Para facilitar a vida b) c) dos pesquisadores, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações oferece um portal que unifica as buscas em algumas bibliotecas digitais28. O pesquisador que dominar línguas estrangeiras poderá também consultar bibliotecas de teses estrangeiras, fartamente disponíveis na internet29. Cursos e manuais. Como cursos e manuais são a bibliografia com que a maioria das faculdades trabalha em seus cursos de graduação, esse tipo de material é tomado por muitos alunos como a bibliografia jurídica por excelência. Para pesquisas acadêmicas, isso pode se mostrar um problema. Cursos e manuais devem ser os pressupostos de um trabalho acadêmico: espera-se que qualquer pessoa que escreva um trabalho sobre algum aspecto de contratos de leasing saiba o bê-á-bá sobre contratos: natureza jurídica, conceito, classificações etc. Portanto, essa literatura de caráter mais pedagógico não deve povoar, em abundância, a bibliografia de trabalhos monográficos. Não é com pesquisadores e acadêmicos que manuais querem dialogar: seu público-alvo são neófitos nas disciplinas, enquanto o trabalho de pesquisa pressupõe o domínio do conteúdo básico que figura nessas obras. Autores de manuais em geral são respeitados acadêmicos, e invariavelmente terão teses, trabalhos monográficos e artigos científicos publicados em periódicos especializados, que poderão ser consultados com maior proveito como bibliografia para trabalhos acadêmicos de caráter monográfico. Jornais de grande circulação. Além desses veículos, há algumas fontes subsidiárias que podem ser úteis na construção de um tema- problema. Dentre essas fontes subsidiárias, destacam-se, em primeiro lugar, os jornais de grande circulação. Jornais são úteis para apontar situações-problema: uma polêmica em torno de novas formas de fiscalização da Receita Federal, uma dúvida jurídica sobre a competência para a exploração econômica de certo recurso natural, um debate sobre concentração de mercado e danos à concorrência em razão de alguma recente operação de fusão entre empresas, e assim por diante. Eles também podem ser fonte importante de pesquisa quando se tem por tema um caso d) específico, especialmente se se tratar de um episódio importante (uma grande fusão entre empresas, uma específica operação da Polícia Federal, um notório caso de corrupção etc.). No entanto, convém lembrar que, como fontes de argumentos ou razões jurídicas, tais veículos têm uma limitação: muitas vezes o que neles é escrito vem simplificado para um público leigo, o que se faz à custa da profundidade do argumento. Prefira, novamente, textos de caráter monográfico: é razoável a chance de que o próprio autor do artigo de jornal tenha textos mais elaborados sobre o tema, especialmente quando se tratar de um especialista na questão. Portais jurídicos. Outra espécie de fontes subsidiárias são os portais jurídicos (JOTA, Conjur, Direitonet, Jus Navigandi, Boletim Jurídico, Migalhas etc.), aos quais se chega com muita facilidade quando se consultam temas jurídicos com qualquer ferramenta de busca na internet (Google, Bing, Yahoo etc.). Esses portais contêm, no mais das vezes, pequenos artigos escritos por profissionais do direito, bacharéis, estudantes e professores. Além de indicarem a existência de alguma situação-problema que esteja atualmente na pauta dos juristas, esses sítios poderão também sugerir alguma bibliografia desconhecida ao pesquisador, que eventualmente apareça citada nos artigos que abrigam. Não mais do que isso. Nem todos os portais jurídicos têm critérios de qualidade para a seleção do material que publicam: periódicos científicos são avaliados por agências públicas e normalmente têm conselhos editoriais e pareceristas externos que opinam sobre a qualidade dos textos publicados; dissertações e teses passam por uma arguição pública em banca com examinadores internos e externos; e mesmo os grandes jornais costumam selecionar suas fontes entre juristas de prestígio e atores diretamente envolvidos na situação-problema reportada. Alguns portais jurídicos não têm nada disso, e com um agravante adicional: não há constrangimento de espaço físico que os obrigue a ser seletivos em relação ao material que recebem, já que tudo “cabe” na internet. Por tudo isso, recomenda-se muito cuidado com o uso 1.3. desse tipo de material, que não deve, de forma alguma, protagonizar a bibliografia de um trabalho científico, embora possa ser consultado com proveito por quem está à caça de problemas relevantes de pesquisa. DICA: QUANDO UM PROBLEMA DE PESQUISA É RELEVANTE? Booth et al. (2005, p. 45 e s.) fornecem um teste útil para o pesquisador determinar se a pergunta por ele construída pode ser um problema de pesquisa relevante: a dúvida a que ela pretende sanar deve ser útil não só à curiosidade do pesquisador que a formula, mas também a outros pesquisadores. A resposta à pergunta deve ser, portanto, chave para o entendimento de problemas maiores e mais relevantes do que a dúvida pontual que ela expressa. A pergunta “existe água em Marte?” não quer apenas satisfazer a curiosidade inexplicável de um fanático por Marte, pois respondê-la pode ser a solução para sanar outra dúvida maior e mais importante, acerca da possibilidade de vida em Marte. Da mesma forma, perguntar-se sobre a efetividade do cumprimento de decisões de concessão de medicamentos na Bahia durante o ano de 2010 pode ser revelador do grau de cumprimento pelo Executivo de decisões judiciais referentes a direitos sociais naquele Estado, como pode também sugerir hipóteses para outros estados e intervalos de tempo. A originalidade do tema Tecnicamente, originalidade, em sentido de inovação teórica, é requisito apenas de teses de doutorado. Nem mesmo dissertações de mestrado precisam ser originais nesse sentido estrito, de oferecer uma nova teoria ou nova interpretação para um conjunto de fatos. Mas isso não significa que uma dissertação ou um TCC deva limitar-se a repetir tediosamente as interpretações mais cediças e indisputáveis em sua área de interesse. Mesmo o trabalho de reconstrução ou reorganização de textos de terceiros, sem objetivo de originalidade, pode ser criativo e inovador, gerando produtos interessantes. Digamos que eu queira fazer um trabalho sobre o Princípio da Capacidade Contributiva em matéria tributária. Uma forma nada inovadora de abordar meu tema seria simplesmente elencar históricos legislativos e definições doutrinárias sobre ele; com toda probabilidade, nesse caso, eu 1.4. concluiria que o tema é relevante, suscita debates, e precisa continuar sendo estudado – ou seja, nada além do óbvio. Bem diferente seria analisar esse mesmo material com uma pergunta em mente: “Como o princípio da capacidade contributiva é mais frequentemente apresentado pela doutrina brasileira? Como uma norma de eficácia plena, que favorece o contribuinte, ou como uma norma programática, que favorece o Fisco?”30. Note-se que o resultado desta pesquisa, em termos de compreensão do princípio em questão, não será revolucionário, pois ele forçosamente se limitará a repetir aquilo que outros autores já disseram sobre a capacidade contributiva. Mas nem por isso será um “recorta e cola” de opiniões alheias, pois sua abordagem é criativa e inovadora, dois requisitos que acompanham e fortalecem a relevância que se espera de qualquer estudo científico. O tema deve estar dentro das limitações do pesquisador Nada adianta um tema que seja em si bem construído, mas que, por qualquer circunstância, esteja além das capacidades de quem pretende trabalhá-lo. Em primeiro lugar, o pesquisador deve ter um razoável nível de familiaridade prévia com o tema, deve se sentir confortável em relação aos conhecimentos que já possui. A realização de uma pesquisa científica não é um bom momento para começar a aprender um tema do zero. Ao contrário, o autor deve demonstrar todo seu conhecimento e proficiência em um tema no qual já é razoavelmente perito. Sem expertise prévia, a tendência é que o pesquisadornão consiga formular um problema de pesquisa suficientemente interessante e termine por se limitar à leitura de textos básicos, como cursos e manuais, cujo conteúdo fica distante do conhecimento acadêmico criativo que é o motor dos debates científicos em qualquer área. Esse conselho é especialmente importante para os alunos de pós-graduação que estão buscando formação em áreas novas, mirando mudanças de rumo na carreira. Mesmo nesses casos, é preciso buscar um tema que seja, ao menos indiretamente, familiar à experiência e ao conhecimento prévio do pesquisador. Em segundo lugar, as fontes relativas ao tema devem ser acessíveis a quem irá lê-las. Um grande obstáculo nesse sentido são idiomas estrangeiros. Não conseguirei pesquisar coisa alguma sobre o direito chinês se as fontes relativas ao meu tema estiverem todas em mandarim, sem tradução confiável para algum idioma cuja leitura me seja acessível. Em muitos temas, como aqueles relativos a direito econômico, bancário e de mercado de capitais, a bibliografia de ponta é majoritariamente em língua inglesa, de forma que convém conhecer bem o idioma antes de se aventurar a pesquisar poison pills ou algum aspecto polêmico da Lei Sarbanes-Oxley. O mesmo valerá para pesquisas que utilizem a metodologia do direito comparado31: por razões evidentes, convém dominar a leitura nos idiomas das jurisdições que servirão de parâmetro comparativo. Adicionalmente, o pesquisador deve se atentar para as limitações de acesso aos materiais dos quais ele precisará para fazer sua pesquisa. Pensemos, por exemplo, em uma pesquisa que queira reconstruir o debate jurídico em torno da formação do mercado de seguros no Brasil desde o século XIX. Certamente haverá fontes históricas de difícil acesso para tal trabalho: livros sobre direito dos seguros do século XIX no Brasil só são encontráveis em bibliotecas com bons acervos de obras raras, para não falar em documentação específica das primeiras seguradoras brasileiras, que provavelmente estão confinadas em arquivos públicos e/ou particulares. O pesquisador que insista em aventurar-se por tal assunto terá de dispor de tempo livre para visitar esses arquivos e bibliotecas com o propósito de consultar in loco os livros e documentos. Registre-se, contudo, que algum alívio nesse sentido é dado pela internet, pois muitos documentos históricos já estão abertamente acessíveis na rede: os debates parlamentares da Câmara e do Senado desde a Independência até o presente, por exemplo, já estão digitalizados nos sítios de cada uma dessas casas32, com boas 2. ferramentas de consulta, sobretudo para períodos mais recentes, quando a informação é mais organizada. A estratégia de coleta de material, a realização da pesquisa e a escrita da monografia devem ser pensadas – e aqui se chega à última importante limitação de que convém falar – em face das limitações de tempo do pesquisador: uma pesquisa, como qualquer projeto cuja execução se protrai no tempo, deve ser concebida a partir de um cronograma e executada de acordo com os seus prazos (Capítulo 10). O tempo de se ler todo o material inerente à pesquisa (bem como, evidentemente, o tempo de obtenção desse material, como no caso da importação de livros ou a consulta a arquivos e bibliotecas) deve ser computado nesse cronograma. Como o tempo para a realização de uma pesquisa sempre será pouco, em função da complexidade do trabalho de investigação e da escrita de um artigo científico, convém que o pesquisador restrinja, o quanto possível, o tema a ser pesquisado, de forma a torná-lo plenamente “estudável” diante dos inerentes percalços de uma investigação. Temas muito amplos tendem a levar a trabalhos impossíveis de serem executados em toda sua plenitude, ou, o que é mais comum, a uma abordagem superficial e simplória do objeto de estudo33. ALGUNS TIPOS POSSÍVEIS DE PROBLEMAS DE PESQUISA Estando claro que o primeiro passo na construção de um trabalho científico é evoluir de um assunto de interesse para um problema de pesquisa, é preciso agora saber como prosseguir a partir daí. Nesse particular, convém anotar que há diferentes tipos de problema que se podem extrair de um assunto, e que cada um deles deve ser trabalhado de uma maneira particular – isto é, com uma metodologia própria. Há dois grandes tipos ideais de problemas de que uma pesquisa científica pode se ocupar: 2.1. problemas descritivos e problemas prescritivos. Os principais traços de cada um serão comentados a seguir. Problemas descritivos: apresentando fatos juridicamente relevantes Os objetos de que podemos nos ocupar em um trabalho de pesquisa são geralmente muito complexos quando vistos em toda sua abrangência. Tome-se, por exemplo, um assunto singelo como “contratos de adesão”. O que exatamente pesquisa alguém que estuda contratos de adesão? Estudaria ele a posição dessa forma de contrato em face da teoria contratual clássica, que preza pela autonomia da vontade do contratante? Ou seus limites e restrições em face de um campo específico do direito, como o direito do consumidor? Talvez estivesse preocupado apenas com os problemas jurídicos surgidos em contratos de adesão dentro de uma atividade específica, como a bancária ou a de serviços de saúde. Mesmo assim, poderíamos ser mais específicos: no caso de contratos de adesão celebrados entre bancos e correntistas, o que exatamente ele estudaria? A definição de taxas de juros? Nesse caso, como ele estudaria esse problema? Sabendo o que diz a doutrina, ou como se posicionam os tribunais? Ou, ainda, talvez ele queira saber como esse mesmo problema jurídico é tratado em outras jurisdições, por tribunais estrangeiros. Finalmente, ele pode querer fazer um estudo interdisciplinar e avaliar qual é o impacto econômico de uma dessas muitas coisas mencionadas. As possibilidades são muitas, e tudo isso faz de qualquer instituto jurídico um objeto que, à primeira vista, é confuso de se observar em sua totalidade – ou melhor, cuja observação total é impossível. Descrever de forma organizada uma parte de realidades tão complexas é uma possibilidade interessante para uma pesquisa científica. Esse tipo de problema é o que se chama aqui de problema descritivo: nele, o pesquisador quer oferecer um retrato compreensível de fenômenos complexos, que ajudam a entender melhor as particularidades neles envolvidas. Tomemos um exemplo conhecido e esclarecedor: a questão da morosidade judicial. Imaginemos que um pesquisador queira investigar o porquê de a justiça brasileira ser tão lenta. Uma maneira ruim de fazê-lo será simplesmente se desembestar a escrever sobre “Da morosidade judicial”, dizendo que o problema é antigo, pois vem desde as Ordenações Filipinas, e que as suas causas são múltiplas, e que o sistema judicial é complexo e de tudo se pode agravar, mas que, no entanto, há os princípios da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição, embora um processo de duração razoável também seja direito de todos, segundo o Pacto de São José da Costa Rica etc. Um trabalho assim não diria nada de novo, e certamente não concluiria novidade alguma: provavelmente exortaria as autoridades a fazerem reformas de toda sorte, que são urgentes e exigidas por um sem- número de leis, tratados e princípios. Nada disso é novidade e nada disso justifica o esforço de uma pesquisa. Para remediar esse estado de coisas, se deveria começar buscando uma forma original de abordar esse velho problema. Uma possibilidade seria avaliar o desempenho individual de juízes que trabalham sob as mesmas condições no que diz respeito à celeridade com que julgam. Note-se bem: o problema original do pesquisador – “Por que a justiça é lenta?” –, que era muito amplo e complexo, ficou agora mais simples e instigante: “Há diferenças de desempenho, em termos de celeridade, entre juízes que trabalham sob as mesmas condições materiais e processuais?”34. Outro dado de se notar aqui é que boa parte das fontes que normalmente usamos em pesquisas jurídicas não será útil para responder a essa pergunta: o problema em relação à forma apresentadanão é de interpretação legal, nem de divergências doutrinárias. É um problema fático: quanto demora cada juiz para julgar, e como posso explicar as eventuais diferenças de desempenho entre eles? Pois bem, o pesquisador descobrirá rapidamente que sua tarefa será identificar, dentro de um conjunto de julgados, a data de recebimento de cada ação por um magistrado, a data de seu respectivo julgamento, medir o tempo de sua duração e comparar os desempenhos de cada juiz, tudo isso tendo em vista as especificidades dos procedimentos conduzidos por cada uma, o que só o jurista sabe avaliar. Por uma questão de facilidade no acesso à informação, ele poderá restringir-se ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, que oferecem essas informações on-line em seus sítios na internet. Poderá também medir os intervalos entre diferentes etapas processuais (pedidos de vista, pedidos de informações, providências administrativas internas da corte) e ensaiar algumas hipóteses explicativas mais específicas sobre certas causas de demora pontuais, o que faria sua observação um tanto mais interessante. Suas principais fontes de pesquisa, em uma investigação desse tipo, seriam os extratos processuais disponíveis nessas páginas de internet. Um problema descritivo de pesquisa pode perfeitamente ter por objeto a dogmática jurídica. Pesquisas assim simplesmente propõem-se a descrever qual é o estado da arte da regulação jurídica de determinado assunto ou problema, com vistas a facilitar a construção de respostas jurídicas naquela matéria. São muito úteis quando o pesquisador se interessa por temas cuja regulamentação jurídica está dispersa por diversas leis e áreas do direito. Imaginemos, por exemplo, que alguém que se interesse por bioética queira saber com precisão os termos e limites em que o ordenamento jurídico brasileiro tutela o direito à vida. Sua pesquisa poderia ser um levantamento, feito em todo o ordenamento, dos dispositivos legais que tutelam a vida (ou, ao contrário, permitem o seu sacrifício) em qualquer etapa do seu desenvolvimento biológico: desde a Constituição, que consagra o direito à vida, mas permite a pena de morte em casos de guerra declarada; até o Código Penal, que pune o homicídio, mas permite descriminantes e exculpantes em certas situações, como também faz com o aborto; passando por toda a legislação sobre pesquisas com células-tronco embrionárias, o Estatuto da Criança e do Adolescente (que contém dispositivos sobre gestação e saúde fetal), além das leis e instruções normativas que eventualmente disciplinem o cuidado médico e respeito à autonomia de pacientes acometidos por doenças terminais, como o Estatuto de Ética Médica. A depender da específica corrente filosófica a 2.2. que se filie, poderá ser também útil comparar a tutela jurídica das diversas formas de vida (humana, demais animais, vegetais, biomas, ecossistemas), e então a legislação a ser pesquisada seria um tanto ampliada. A tarefa do pesquisador que se aventure por esse campo será reconstruir as normas jurídicas que podem ser extraí das de toda essa legislação, bem como organizá-las de forma ordenada, a partir das boas regras de hermenêutica jurídica. Ao final, ele terá ajudado a esclarecer o disciplinamento jurídico do importante conjunto de temas que tangem o seu trabalho. Problemas prescritivos: oferecendo respostas para dúvidas jurídicas difíceis Há outro tipo de tema-problema do qual trabalhos jurídicos normalmente se ocupam, que podemos chamar de problemas prescritivos: aqueles que, em vez de meramente retratarem o seu objeto de pesquisa, esforçam-se em oferecer uma resposta, bem construída e bem fundamentada, sobre como o problema deve ser juridicamente considerado. Chamamos esse tipo de resposta de normativa, pois ela não se limita à observação de fatos, mas sim pretende extrair de regras sociais de caráter prático (éticas, morais, jurídicas, econômicas) um comando acerca de como devemos agir – prescreve a ação devida, portanto – em face da situação- problema abordada (COURTIS, 2006). Primeiramente, deve-se considerar que respostas prescritivas sempre são dadas a partir de parâmetros normativos; e, no caso das respostas jurídicas, os mais importantes provêm das normas jurídicas válidas em um dado ordenamento. Limitando-me intencionalmente a uma visão mais tradicional para fins de simplificação, podemos considerar que essas normas provêm principalmente do direito posto, que é aquele criado pela atividade oficial do Estado por meio dos procedimentos legislativos aceitos na prática jurídica de cada nação (aprovação bicameral no Congresso seguida de sanção presidencial no Brasil; “Rainha no Parlamento” na Inglaterra etc.). O direito posto, antes de ser aplicado a um caso concreto, deve ser interpretado, e essa atividade interpretativa é compartilhada por diversos atores jurídicos em uma dada comunidade: alguns o interpretam oficialmente, como os juízes de direito e tabeliães; outros o interpretam com vistas às atividades práticas de maneira não oficial, como advogados; e outros, ainda, o fazem em caráter mais acadêmico e menos comprometido com casos particulares, como os chamados “doutrinadores”, que têm enorme importância na cultura jurídica brasileira. Todos esses profissionais, conjuntamente (uns mais, outros menos, mas ainda assim conjuntamente), contribuem para a formação de um grande repositório de saber jurídico que nos dirá, diante dos mais variados casos, como devemos entender o regramento jurídico de uma determinada situação e, assim, como devemos agir para “seguir o direito” naquele caso. Podemos chamar esse grande depositório de entendimentos jurídicos coletivos de dogmática jurídica. Este contrato é válido? Como devo realizar esta operação societária? Este tributo é constitucional? Esta peça publicitária viola direitos dos consumidores? As respostas a essas perguntas são dadas a partir da dogmática jurídica (civil, comercial, tributária), portanto conhecê-las bem é aquilo que se espera dos chamados “operadores do Direito”. Conforme opiniões particulares vão ganhando aceitação dos membros da comunidade jurídica, e principalmente das instituições oficiais de aplicação do direito, formando, assim, jurisprudência, elas ganham, na prática, efetividade normativa: tornam-se padrões de conduta cuja observância é revestida de grande expectativa social por parte de todos os atores do sistema jurídico e da comunidade em geral. Quando o Código de Defesa do Consumidor foi aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente, tornando-se direito posto, algumas dúvidas interpretativas surgiram sobre vários de seus dispositivos. Uma delas dizia respeito à aplicabilidade, ou não, do Código de Defesa do Consumidor às atividades bancárias: muitos bancos alegavam que sua atividade só poderia ser disciplinada por lei complementar, nos termos da Constituição de 1988; entidades ligadas à defesa dos consumidores, ao contrário, diziam que a legislação ordinária bastava para regulamentar relações de consumo entre bancos e correntistas. Formou-se um grande debate jurídico que envolveu práticos do direito (advogados, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores), acadêmicos de diversas áreas, experts contratados como pareceristas por ambas as partes, entidades de representação dos bancos e de defesa dos consumidores etc. Com o passar do tempo, depuraram-se os argumentos e prevalece hoje a opinião, já fundamentada pelo debate que a precedeu, de que o Código de Defesa do Consumidor se aplica, sim, às relações entre bancos e seus correntistas. É a orientação mais aceita da doutrina, é a posição prevalecente dos tribunais e das bancas examinadoras na maior parte dos concursos públicos. O argumento contrário já é percebido como juridicamente fraco. Há, entre todos os envolvidos (bancos, advogados, juristas, juízes e consumidores), uma firme expectativa de que os bancos seguirão as normas de proteção ao consumidor porque elas lhes dizem respeito, e qualquer desvio nesse sentido poderá ensejar reprovaçãoleitura dos julgados 3.3.1. Uso das fichas de leitura especialmente elaboradas para análise de jurisprudência – o “Case Brief” 3.3.2. Construindo um banco de dados Referências 14. Como devo fazer entrevistas? 1. Introdução 2. Quando usar a entrevista como técnica de pesquisa? 3. Estou convencido da necessidade da entrevista para o meu trabalho. Como escolher o tipo de entrevista que devo utilizar? 4. Tipos de entrevista 4.1. Entrevistas estruturadas (“surveys”) 4.2. Entrevistas não estruturadas 4.3. Qual delas escolher? 5. Preparação da entrevista 6. A escolha dos entrevistados: como chegar ao número mágico? 7. Cadastro da pesquisa no comitê de ética: é mesmo necessário? 8. Chegou a hora: realizando a entrevista 9. Digitação ou transcrição da entrevista 10. Codificação das informações 11. O relatório de pesquisa 12. Modelo de TCLE Referências 15. Pesquisar o “Direito em ação”: observando contextos jurídico- institucionais 1. Introdução 2. O que é observação e qual a sua utilidade na pesquisa jurídica? 3. Quais perspectivas de análise podem ser atribuídas às instituições e interações jurídicas pela observação? 4. Dos textos para o campo: como fazer uma transição do processo de construção para a desconstrução de categorias jurídicas? 5. Como observar? Existe um passo a passo? 5.1. Relação do pesquisador com o campo e o objeto de pesquisa 5.2. Sacrifícios pela pesquisa 5.3. O campo exploratório e a identificação de “incidentes” 5.4. Caderno de campo: anotações, registros 5.5. (Re)construindo o problema a ser investigado 5.6. A identificação e desconstrução de categorias nativas 5.7. Quando a observação termina? 6. Considerações finais Referências 16. Como devo fazer pesquisa em arquivos históricos? 1. O que é um arquivo? 2. O que é um arquivo judicial? 3. O que é uma pesquisa em arquivo judicial? 4. Relação de alguns arquivos judiciais ou arquivos com documentos do poder judiciário brasileiro Referências 17. Estudo de caso na pesquisa em direito 1. Introdução 2. Por que um estudo de caso? E por que este caso em particular? 3. O evento, o contexto, o caso e as unidades de análise 4. A amostra de caso único e a especificidade das pesquisas em direito 5. A narrativa e a análise Referências PARTE 4 — Algumas agendas contemporâneas da pesquisa jurídica 18. Direito e Economia 1. Introdução 2. Expectativas realistas para a análise econômica do direito 3. Algumas das muitas vertentes do direito e economia 3.1. A Escola de Chicago 3.1.1. Os três pilares da Escola de Chicago 4. Economia institucional e direito 4.1. Explicações comparativas 5. Nova economia institucional 6. Economia comportamental e o direito 7. Números e direito: análise econômica dos dados jurídicos, pesquisa empírica e “jurimetria” Referências 19. Pesquisa em direito e políticas públicas 1. O que considerar como objetos de pesquisa em direito e políticas públicas: programas de ação governamental coordenada, em escala ampla 1.1. Complexidade e interdisciplinaridade 1.2. Escala ampla 2. O que não considerar como tema de pesquisa em direito e políticas públicas 2.1. Abordagem de direito tradicional x abordagem de direito e políticas públicas 2.2. As políticas públicas não se reduzem às normas jurídicas que tratam delas 3. Quando a pesquisa jurídica em políticas públicas é útil? que tipo de pergunta jurídica ela permite responder? 3.1. Esquemas de representação das políticas públicas 4. Quais linhas de investigação tem aplicado a pesquisa jurídica em políticas públicas? 5. Quais linhas podem ser exploradas na pesquisa jurídica sobre políticas públicas? 6. Quais são as etapas básicas de uma boa pesquisa em direito e políticas públicas? O que uma pesquisa desse tipo deve conter, o que deve evitar? 7. O que devo ler para me aprofundar e saber mais sobre a pesquisa em direito e políticas públicas? Referências 20. Direito e Tecnologia 1. Relevância da pesquisa jurídica sobre novas tecnologias 2. O caleidoscópio da tecnologia: investigar o direito por diferentes lentes 3. Como escolher um tema envolvendo tecnologia para uma pesquisa jurídica? 4. Fontes de pesquisa e acompanhamento dos temas em direito e tecnologias 4.1. Primeiramente: acompanhando a discussão dos temas e sua atualidade 4.2. Metodologia: diversidade de fontes na pesquisa em direito e tecnologias 5. Conclusões: novas tecnologias e desafios jurídicos globais Referências 21. Direito, feminismos e gênero: um guia básico para a pesquisa 1. O que é feminismo? considerações iniciais 1.1. As “ondas” do feminismo 1.2. Perspectiva feminista sobre gênero 2. O que é a pesquisa em direito e feminismo? 3. Linhas de investigação em direito e feminismos e seus métodos 4. Por onde começar: bibliografia básica e fontes de pesquisa Referências 22. Direito e Discriminação: agenda de pesquisa desafiadora e urgente 1. Introdução: um abismo entre norma e realidade social 2. As perguntas-chave do campo 2.1. O que é a discriminação? 2.2. Quais grupos são afetados pela discriminação? 2.3. Por que a discriminação ocorre? 2.4. Como medir os efeitos da discriminação? 2.5. Quem pode pesquisar sobre esse tema? 3. Possíveis contribuições da pesquisa em direito 3.1. Desenvolvimento e interpretação da legislação antidiscriminatória 3.2. Efetividade da legislação antidiscriminatória e o papel do sistema de justiça 4. Conclusões Referências 23. O estado da arte da pesquisa sobre o Supremo Tribunal Federal Referências PARTE 5 — A escrita do texto científico e as boas práticas de integridade acadêmica 24. Apontamentos sobre a redação e o texto do trabalho acadêmico 1. É preciso saber aonde se quer chegar 2. Escrevendo em camadas 2.1. Primeiro passo: um esqueleto de cinco páginas 2.2. Segundo passo: pensar o sumário descritivo do trabalho 2.3. Terceiro passo: adicionar as principais referências 2.4. Quarto passo: adicionar casos, exemplos, refutações e referências faltantes 2.5. Quinto passo: a introdução e as conclusões 2.6. Último passo: reler o texto para dar-lhe forma final 2.7. Pós-escrita: revisão externa 3. A linguagem do trabalho acadêmico Referências 25. Formatação, citações e referências: ABNT e Manual de Chicago 1. Introdução 2. Normas técnicas ABNT para trabalhos acadêmicos 2.1. Estrutura de monografias, dissertações, teses e outros trabalhos acadêmicos 2.2. Capa e lombada 2.3. Parte interna 2.3.1. Folha de rosto 2.3.2. Errata 2.3.3. Folha de aprovação 2.3.4. Dedicatória 2.3.5. Agradecimentos 2.3.6. Epígrafe 2.3.7. Resumo em língua portuguesa e estrangeira 2.3.8. Lista de ilustrações 2.3.9. Lista de tabelas 2.3.10. Lista de abreviaturas e siglas 2.3.11. Lista de símbolos 2.3.12. Sumário 2.3.13. Elementos textuais: introdução, desenvolvimento e conclusão 2.3.14. Referências 2.3.15. Glossário 2.3.16. Apêndice 2.3.17. Anexo 2.3.18. Índice 2.4. Regras para formatação 2.5. Citações e referências no padrão ABNT 2.6. Notas de rodapé 2.7. Regras para referências 3. Padrão de Chicago 3.1. Notas e bibliografia 3.1.1. Formatação das entradas bibliográficas 3.1.2. Livros 3.1.3. Artigo em periódico, revista, teses, entre outros 3.2. Sistema autor-data 3.2.1. Formatação 3.2.2. Livro 3.2.3. Artigo em periódico, revista, teses, entre outros 4. Ferramentas “on-line” para formatação de referências 4.1. ABNT: More/UFSC 4.2. Chicago e outros padrões internacionais: Zotero Referências 26. Ferramentas de informática para formatação da monografia 1. Introdução 2. Contagem e numeração de páginas 2.1. Como iniciar a contagem do número de páginas a partir da folha de rosto 2.2. Como iniciar a numeração das páginas a partir de um ponto específico do documento 2.3. Sumário 3. Autonumeração (introdução às listas) 3.1. Listas 3.2. Listas numeradas, títulos e sumário 4. “Layout” da página e seções 4.1. Seções e as opções do parâmetro “aplicar a” da ferramenta “Configurar Página” 4.2. Configurar página 5. Introdução ao latex 5.1. Afinal, o que é o LaTeX? 5.2. Breve introdução à criação de documentos em LaTeX 27. Ética e pesquisa jurídica 1. A ética e a pesquisa jurídica:jurídica (multas, condenações judiciais em ações individuais ou coletivas etc.) e social (publicidade negativa, danos reputacionais) à instituição violadora. Supondo, assim, que um banco estrangeiro queira iniciar operações no Brasil e pergunte ao seu corpo de advogados se o Código de Defesa do Consumidor será ou não aplicável a suas atividades, a resposta terá de ser positiva, e terá por fundamento uma interpretação da dogmática do direito do consumidor, nas linhas já mencionadas, em que se reconhece existir uma norma jurídica, intersubjetivamente compartilhada pelos diversos operadores do direito, que manda aplicar a legislação consumerista às relações entre bancos e seus clientes. Pois bem, uma evidente possibilidade para um trabalho científico jurídico, seja ele um artigo, uma monografia ou uma tese, será o de responder normativamente a uma pergunta de caráter dogmático: Tal coisa é permitida? Proibida? Obrigatória? Quais são as consequências jurídicas da violação à regra posta? Tal operação é ou não uma compra e venda, para fins tributários? Esta outra operação é crime? É ilícito administrativo? Seria ilícito civil? Todas essas perguntas, que são jurídicas no sentido mais estrito 2.2.1. a) b) da palavra, têm natureza dogmática (quem as formula quer saber como deve agir, à luz dos dogmas do direito), e trabalhos acadêmicos podem muito bem se ocupar de lhes propor respostas dogmaticamente fundamentadas. Podemos subdividir em dois grupos as pesquisas desse tipo: pesquisas de lege lata e pesquisas de lege ferenda35. Pesquisas com respostas de lege lata Em latim, de lege lata significa “segundo a lei criada” ou “de acordo com a lei existente”. Esse tipo de pesquisa elege um problema interpretativo-jurídico como objeto, e busca oferecer a resposta jurídica que entende ser a melhor. Segundo Courtis (2006, p. 120), podemos traçar um roteiro de cinco etapas para um trabalho científico que lidará com um problema de interpretação jurídica de lege lata: Identificação do problema interpretativo a ser tratado, com explicitação da sua natureza. Nem todos os problemas interpretativos são iguais. Algumas vezes, a dúvida interpretativa pode estar mais ou menos restrita a um conceito ou palavra, como no caso de saber se aeronaves seriam ou não “automóveis” para fins de pagamento do IPVA. Outras vezes, a legislação propositadamente utiliza expressões de conteúdo mais aberto, como “de forma proporcional” ou “conforme seja necessário e suficiente”. Trata-se de duas dúvidas interpretativas de tipos distintos. Saber o tipo de problema interpretativo ajudará na identificação dos tipos de materiais com que se precisará trabalhar, além do método apropriado para a pesquisa. Seleção do conteúdo normativo relevante para a resposta à pergunta. Se a matéria-prima dessa espécie de trabalho são as normas jurídicas, é fundamental que o pesquisador identifique e separe os textos legais e interpretativos que lhe sejam pertinentes. Assim, as normas jurídicas pertinentes ao tema (leis, decretos, súmulas) e suas principais interpretações (correntes doutrinárias e c) d) jurisprudenciais, opiniões de jurisconsultos) devem ser coletadas nesta segunda fase da pesquisa. Precisar as respostas interpretativas rivais que têm sido propostas pelos principais debatedores do tema. Esta terceira etapa consistiria, por assim dizer, em um esmiuçar do estado da arte dos trabalhos escritos sobre o assunto. Se minha dúvida interpretativa é sobre, digamos, a revogação ou não da Lei de Usura pelo art. 406 do Código Civil, preciso saber o que os juristas de referência quanto ao tema têm dito sobre esse assunto. Aqui, mais do que simplesmente elencar as diferentes posições, há um exercício muito útil de se fazer: tentar identificar qual é a questão de fundo sobre a qual discordam os adversários do tema. Não vale dizer que é sobre a vigência ou não da Lei de Usura, pois essa não é a questão de fundo, é a questão de frente. Existiria a dúvida, por exemplo, de por que a corrente pró-vigência exige revogação explícita da dita lei, em cumprimento ao que exige a Lei Complementar n. 9536? Ou por que a corrente pró-revogação identificaria a limitação às taxas de juros como uma intervenção já obsoleta na autonomia privada, por conta da mudança no cenário econômico? Esse método supõe que as divergências interpretativas sobre aspectos pontuais de textos legais são como pontas de icebergs, que escondem divergências mais substantivas que nem sempre aparecem explícitas. Note como esse expediente procura trazer a dúvida para um terreno em que ela possa ser enfrentada com mais clareza – inclusive para fins de críticas subsequentes dos adversários da sua própria resposta. Ler textos dogmáticos “adversários”, buscando a questão subjacente, é uma boa maneira de trabalhar divergências interpretativas de forma mais convincente do que o simples “há quem diga A..., no entanto, há quem diga B...”, de onde pouca coisa se pode efetivamente concluir. Encontrar o melhor critério a partir do qual é possível eleger uma “vencedora” entre as diversas respostas rivais analisadas. Aqui, o pesquisador dará a sua resposta para o problema jurídico que e) 2.2.2. escolheu tratar. Imaginemos que meu tema de interesse seja sobre as políticas de ação afirmativa no ensino superior: se estipulei, por exemplo, que a questão de fundo diz respeito à forma de alocação de um bem escasso (vagas no ensino superior gratuito) com vistas à redução dos níveis de desigualdade, posso, então, decidir que a melhor resposta será aquela que determinar a forma mais justa de alocação dessas vagas. O critério que me permitiria escolher entre respostas rivais, nesse caso, seria uma teoria da justiça. Mas há outras opções: posso me convencer de que a verdadeira questão é não a maneira mais justa, mas sim a maneira mais eficiente, do ponto de vista da geração social de riquezas, de alocação desses recursos sociais escassos, que poderia desaguar em alguma teoria de caráter utilitarista. A escolha entre ambas é possível, e há juristas de primeiro time que optaram por cada uma delas. Cientificamente, o importante é ser honesto e explícito nas suas opções: dizer qual é seu critério de escolha e por que ele lhe parece ser a melhor alternativa. Conclusão. Apresenta-se, ao final, o resultado da análise da questão interpretativa à luz do problema identificado considerado em face da matriz teórica escolhida para seu tratamento. Esse caminho permite a construção de uma opinião interpretativa bem fundamentada e explícita em seus critérios de escolha, o que lhe agrega um bom valor metodológico. Pesquisas com respostas de lege ferenda De lege ferenda é expressão latina que significa “de encontro à lei” ou “contra a lei”. Pesquisas desse tipo não querem investigar uma dúvida interpretativa para um problema jurídico, como fazem as de lege lata. Elas já partem de uma resposta dogmática estabelecida, mas com a qual não concordam; por isso, criticam a resposta juridicamente válida e/ou propõem-lhe alterações37. Em termos metodológicos, e prosseguindo com Courtis (2006), não há diferença substantiva entre esse tipo de pesquisa e as de lege lata: a questão passará pela identificação de um problema, a avaliação de propostas alternativas de acordo com determinada matriz teórica e, finalmente, uma proposta de alteração. O problema identificado pode dizer respeito à redação concreta de uma determinada lei, ou ainda à interpretação predominante de um dispositivo legal. Pode também dizer respeito a um elemento de legislação antigo, que permaneça vigente, mas esteja já em desacordo com o contexto (político, econômico, social) do atual arranjo social. A ideia será sempre mostrar que uma determinada parte da ordem normativa vigente, considerada a redação com que está positivada e/ou o entendimento dominante a seu respeito, é, por alguma razão, ruim ou insatisfatória e precisa de alteração. Campos férteis para colheita desse tipo de problema são as áreas da vida social em que houve significativas mudanças de paradigmas,sem a devida atualização legislativa. Os direitos civis dos casais homoafetivos são um exemplo, como mostrou a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o reconhecimento de uniões estáveis homoafetivas. Outros exemplos vêm de leis estritamente ligadas ao ambiente político e econômico de outrora, bastante diferente do atual: faz sentido manter um estrito controle penal sobre a evasão de divisas, como faz a Lei n. 7.492/86, elaborada em uma década econômica e monetariamente tormentosa, se considerarmos a estabilidade financeira e a plenitude de reservas cambiais que o Brasil tem hoje? Não seria o caso de rever a interpretação dos dispositivos legais pertinentes, ou mesmo de lutar por sua derrogação? A etapa seguinte seria mostrar os argumentos que sugerem a inadequação da atual regulamentação legal da situação-problema, bem como que apontem os rumos de uma desejada alteração das normas que disciplinem a situação. Tudo isso partirá da matriz teórica com que a questão for analisada: uma teoria da intervenção jurídica desejável por parte do Estado na arena macroeconômica, ou uma teoria dos direitos fundamentais das minorias, em cada um dos exemplos citados. A questão de fundo, conforme identificada pelo pesquisador, indicará o tipo de teoria de que se necessita. Finalmente, o trabalho poderá indicar, a título de conclusão, e com base na mesma matriz teórica, as alterações legislativas necessárias para um melhor tratamento jurídico da situação-problema. Referências ARIDA, Pérsio; BACHA, Edmar; RESENDE, André Lara. Credit, interest, and jurisdictional uncertainty: Conjectures on the case of Brazil. In: GIAVAZZI, F.; GOLDFAJN, I.; HERRERA, S. (orgs.). Inflation targeting, debt, and the Brazilian experience: 1999 to 2003. Cambridge, MA: MIT Press, 2005. BOOTH, Wayne C.; COLOMB, Gregory; WILLIAMS, Joseph M. A arte da pesquisa. São Paulo: Martins Fontes, 2005. COURTIS, Christian. El juego de los juristas. Ensayo de caracterización de la investigación dogmática. In: COURTIS, Christian (org.). Observar la ley: ensayos sobre metodología de la investigación jurídica. Madrid: Trotta, 2006. FERRÃO, Brisa L. M.; RIBEIRO, Ivan C. Os juízes brasileiros favorecem a parte mais fraca? UC Berkeley: Berkeley Program in Law and Economics, 2006. Disponível em: . Acesso em: 13 jul. 2010. FERRAZ, Octavio Luiz Motta. Right to health litigation in Brazil: an overview of the research. May 15, 2009. Disponível em: . Acesso em: 9 ago. 2011. PESSOA, Leonel Cesarino. O princípio da capacidade contributiva na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Direito GV, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 95-106, jun. 2009. http://escholarship.org/uc/item/0715991z 1. 5 COMO RESPONDO CIENTIFICAMENTE A UMA QUESTÃO JURÍDICA CONTROVERTIDA? CLARISSA PITERMAN GROSS38 INTRODUÇÃO A nossa primeira tarefa neste capítulo é delimitar o tipo de pergunta de pesquisa de que nos ocuparemos. O título remete a questões controvertidas. O que seria uma pesquisa sobre uma questão controvertida no campo do direito? De que tipo de pesquisa estamos tratando aqui? Um primeiro sentido para uma questão controvertida é mais trivial. Diz respeito a qualquer pergunta que mereça uma pesquisa jurídica. Afinal, tal como vem sendo trabalhado neste livro, uma pesquisa sempre nasce de uma pergunta, de um problema. Uma pergunta que carece de uma resposta. Nesse sentido, toda pergunta de pesquisa, no campo do direito ou fora dele, suscita uma dúvida, um algo que ainda não se sabe, e que poderia, nesse sentido, ser considerado controvertido. Para nos ajudar a situar a especificidade da pergunta de que estamos tratando neste capítulo, vou eleger, para os próximos parágrafos, o tema da liberdade de expressão para explorar como a ele podem ser direcionadas perguntas de pesquisa de naturezas distintas. Como um primeiro exemplo, podemos tomar uma pergunta de pesquisa a respeito do posicionamento de um tribunal brasileiro específico acerca do escopo de proteção da liberdade de expressão política durante as primeiras décadas do século XX. Essa seria uma pergunta histórica, que buscaria compreender o entendimento de determinada autoridade jurídica acerca de um problema específico no passado. Podemos levantar algumas hipóteses: é possível que o tribunal compreendesse a liberdade de expressão como um direito individual; ou que a compreendesse como um valor instrumental; ou, ainda, que, apesar de reconhecer algum valor à liberdade de expressão, decidisse, na maior parte das vezes, pela superação da liberdade de expressão por outros valores e tipos de interesse. A pergunta é interessante, suscita algumas hipóteses, e o seu esclarecimento pode revelar aspectos importantes acerca de se e como a liberdade de expressão foi internalizada como um valor no ordenamento jurídico e na cultura jurídica nacional. Em certo sentido, essa pergunta é controversa: podemos ter algumas pistas acerca de como respondê-la antes de iniciada a pesquisa (indícios que sustentariam alguma das hipóteses iniciais), mas antes de finalizada a pesquisa não possuímos as informações de que precisamos para formular uma resposta. E, mesmo depois de finda a pesquisa, é possível que a controvérsia acerca da pergunta persista: um segundo pesquisador pode resolver ampliar a base de decisões judiciais analisadas e vir a sugerir uma leitura distinta daquela proposta na primeira pesquisa acerca da compreensão do tribunal a respeito do escopo da liberdade de expressão política. Esse tipo de controvérsia histórica é interessante, importante e suscita debates e investigação, mas não é o tipo de controvérsia da qual nos ocuparemos. Como segundo exemplo de controvérsia, podemos imaginar uma pesquisa sobre o impacto de um padrão de decisões judiciais determinando a responsabilidade civil de empresas de mídia por difamação nas escolhas de cobertura da imprensa em uma determinada jurisdição. Essa é uma pergunta também controvertida: busca estabelecer relações causais entre um determinado padrão normativo estabelecido por autoridades judiciais e a dinâmica de formulação da pauta da imprensa. A determinação dessas relações de causalidade não é fácil. Uma tal pergunta, de natureza sociológica, costuma suscitar muita controvérsia: seria mesmo possível distinguir alterações no padrão de cobertura midiática de determinadas empresas ao longo do tempo? Em caso positivo, seria possível isolar o impacto de um conjunto de decisões judiciais na alteração da pauta da imprensa? Não haveria outros fatores tão ou mais importantes na explicação da alteração da pauta das empresas de mídia? Pesquisas sociológicas relacionadas ao impacto de leis ou de padrões jurisprudenciais no comportamento de agentes sociais são de extrema relevância e suscitam enormes controvérsias. Novamente, no entanto, não é desse tipo de controvérsia de que nos ocuparemos. A controvérsia objeto da nossa preocupação neste capítulo tem a estrutura das perguntas que advogados, juízes, defensores públicos, procuradores e outros profissionais do direito enfrentam no seu trabalho com os casos concretos. Trataremos de pesquisas que indagam acerca de qual é o direito em determinada situação. Em outras palavras, a pesquisa busca chegar a uma resposta quanto à solução jurídica correta para um problema jurídico atual; se debruça sobre uma pergunta de natureza prática no sentido de que a resposta buscada constitui solução jurídica para problemas jurídicos reais e atuais. Nesse sentido, e ainda dentro do tema da liberdade de expressão, poderíamos levantar o seguinte questionamento: o direito proíbe a expressão de discursos de ódio, compreendidos como discursos de conteúdo discriminatório ou forma ofensiva dirigidos a grupos de pessoas definidos por um traço identitário, no debate público de ideias? Essa pergunta questiona sobre a resposta dada pelo direito acerca de uma questão prática, ou seja, como o direito orienta a ação no que diz respeito a esse tipo de discurso39. As pessoas podemexpressar esse tipo de discurso? As autoridades judiciais possuem o dever, de acordo com o direito, de proibir esse discurso e de punir aqueles que nele incorrem?40 A sociedade é repleta de situações-problema que requerem atuação jurídica diá ria por parte de profissionais do direito. Advogados trabalham todo dia oferecendo orientação jurídica a seus clientes e os ajudando a solucionar conflitos de natureza jurídica, seja extrajudicial ou judicialmente. Mas nem toda situação-problema constitui um problema de pesquisa. A maior parte das situações-problema enfrentadas por advogados, juízes, defensores públicos, promotores, procuradores ou outros juristas trabalhando na solução de casos jurídicos concretos não requer desses profissionais e de suas equipes uma tomada de posição acerca de uma questão jurídica controvertida. Muitos são os exemplos que poderiam ser dados para ilustrar esse ponto. Uma das situações-problema corriqueiras com as quais advogados precisam lidar é aquela de pedido de pensão alimentícia por parte de filhos menores aos pais. A questão jurídica não é, na grande maioria dos casos, controversa: simplificando, se a filiação é comprovada e o filho é menor, este possui direito à pensão, seja por parte da mãe ou do pai. Ficando provada a situação fática pressuposta ao direito à pensão, este será reconhecido sem grandes discussões. Alguém poderia objetar que em diversos casos de pedido de pensão poderia haver dúvidas importantes sobre a configuração da filiação. Por exemplo, a paternidade biológica poderia ser questionada. Nesses casos, haveria uma pesquisa importante a ser feita, que é aquela relativa à existência ou não do vínculo de filiação a fundamentar o direito de pensão. Seria necessária dilação probatória para realização de exame de DNA, oitiva de testemunhas e outros eventuais meios de prova. Esse trabalho configuraria verdadeira investigação, ou seja, pesquisa. É verdade que alguns casos de pedido de pensão suscitam controvérsias fáticas importantes em que um tipo de trabalho de pesquisa, consistente na produção de provas acerca dos fatos, se revelará necessário. Essa controvérsia, no entanto, não é de natureza jurídica. Ou seja, não há dúvidas, uma vez dados os fatos, acerca da resposta que o direito oferece ao problema. Configurado o vínculo de filiação biológica, devida será a pensão. Inexistente o vínculo, indevida a pensão. O caso é fácil do ponto de vista do direito41. Casos fáceis do ponto de vista jurídico podem se revelar bastante difíceis de solução na prática. Muitos casos fáceis tomam grande tempo e esforço dos profissionais neles envolvidos. As razões podem ser muitas: os 2. fatos são extremamente disputados, há estratégia de uma ou muitas das partes envolvidas no sentido de diferir a solução do problema, há dificuldades ou custos significativos de produção de provas. Nenhuma das questões torna o caso, de difícil solução na prática, em um caso difícil do ponto de vista jurídico. A essa altura, já deve estar implicitamente sugerido que o problema de pesquisa objeto deste capítulo constitui um caso difícil do ponto de vista jurídico. Mas o que é um caso difícil? O que faz de um caso jurídico um caso difícil, que suscita a oportunidade para uma pesquisa jurídica de natureza prática? O PROBLEMA DE PESQUISA: QUANDO TEMOS UM CASO DIFÍCIL? Não há consenso a respeito de quando há, no direito, um caso controverso. Em outras palavras, há grande controvérsia no campo do direito acerca de quando existe uma verdadeira controvérsia jurídica prática. Essa afirmação se assemelha a um trava-línguas e, nessa altura, o leitor poderá se questionar sobre a possibilidade de pisar em terreno seguro para fins de delimitação e justificação do seu problema de pesquisa. Essa é uma preocupação legítima. Em última instância, a controvérsia acerca do que constitui um caso controvertido se dá porque os juristas não concordam entre si sobre o que é, ao fim e ao cabo, o direito42. Mas esta última é uma proposição densa e carregada de pressupostos e compromissos teóricos que não me cabe explorar neste texto. Não obstante, penso que qualquer um que queira enfrentar uma questão jurídica prática controversa precisa ter alguma ciência acerca do imbróglio teórico no qual pisa. Para fazer uma breve, mas necessária, incursão no problema de definir o que faz de um caso um caso difícil, não proporei debates teóricos intricados, mas me valerei de exemplos que acredito suficientes para esclarecer no que pode consistir um caso difícil. Uma linha de abordagem do direito afirma que um caso difícil é aquele para o qual o direito positivo não oferece uma resposta. O que faria de um caso um caso difícil seria o fato de que autoridade estatal competente alguma jamais tenha se pronunciado para oferecer uma solução jurídica àquele conjunto de fatos, ou seja, é um caso para o qual não há solução jurídica explicitada no passado. Um caso difícil, portanto, decorreria de lacuna jurídica. De acordo com essa definição de caso difícil, um exemplo seria o do pedido de um ex-cônjuge por reconhecimento do direito de visitação de animais domésticos, no caso de separação do casal. O direito legislado, seja no campo do direito de família, seja em qualquer outro campo do direito, não diz nada explicitamente a respeito de direito de visitação de animais que pertenciam ao casal em conjunto no período de convivência. Antes que a questão tivesse sido tratada de forma estável e previsível pelo judiciário43, seria possível afirmar a existência de uma lacuna no direito positivo. Quando há lacuna no direito positivo, é possível afirmar que estamos diante de um caso difícil, a ser solucionado por meio da interpretação de princípios gerais de direito, usos e costumes, analogia ou outras formas de integração do direito44. Ainda seguindo a mesma abordagem, uma outra hipótese de caso difícil seria daquele que recai na “zona de penumbra” de uma regra de direito positivo. Isso significa que, apesar de alguma autoridade competente ter determinado consequências jurídicas potencialmente aplicáveis ao caso no passado, a dificuldade repousa justamente em saber se a linguagem utilizada pela referida autoridade abarca ou não o caso em questão. Um exemplo clássico é o utilizado por H. L. A. Hart em sua obra O conceito de direito (2001, p. 141-142). Ele concebe uma regra jurídica que proíbe veículos em um parque. Hart chama a atenção para a natureza inafastavelmente indeterminada da linguagem a partir de um exercício de extração de sentido do termo “veículo”. As convenções de uso do termo “veículo”, embora claramente apontem para a sua aplicação em relação a automóveis, ônibus, caminhões e tratores, não estabelece de forma igualmente consensual a sua aplicação para o caso de um carrinho de brinquedo elétrico. Sendo assim, um segundo tipo de caso difícil seria aquele que recai na “zona de penumbra”, ou seja, na zona de indeterminação, das convenções de uso das palavras utilizadas para formulação das regras de direito positivo. No entanto, a prática jurídica, a vida do direito, parece desafiar a ideia de que os casos difíceis são um produto exclusivo da lacuna do direito positivo ou da indeterminação da linguagem utilizada nas regras de direito positivo. A história recente da jurisdição constitucional brasileira oferece exemplos importantes de casos que foram amplamente debatidos tanto pela comunidade jurídica como pela sociedade civil em geral, para os quais seria difícil afirmar a inexistência de previsão jurídica não apenas explícita como inequívoca no ordenamento positivo. Tenho em mente, por exemplo, o problema jurídico levado à apreciação do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 (convertida em Ação Direta de Inconstitucionalidade) julgada em conjunto com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.27745. Ambas requeriam a interpretação conforme à Constituição do art. 1.723 do Código Civil para que fossem reconhecidas as uniões estáveis homoafetivas e a elas dado tratamentojurídico análogo ao das uniões estáveis heteroafetivas. Trago esse caso porque, a meu ver, ele apresentou uma controvérsia jurídica importante, ainda que houvesse, tanto na Constituição quanto no Código Civil, previsão expressa acerca da união estável, estabelecendo, dentre outros requisitos para o seu reconhecimento pelo Estado, que ela se desse entre homem e mulher. O art. 226, § 3º, da Constituição afirma que, “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. E o art. 1.723 do Código Civil, ao determinar que “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”, reproduz a determinação constitucional na parte em que define a união estável como aquela entre o homem e a mulher. Portanto, a despeito de definição expressa e inequívoca da união estável, tanto na Constituição quanto no Código Civil, o Governador do Estado do Rio de Janeiro e a Procuradoria-Geral da República entenderam plausível propor, respectivamente, a ADPF 132 (que foi recebida e convertida em ADI) e a ADI 4.277. O caso gerou grande controvérsia. O relator da ação, o então Ministro Ayres Britto, deferiu o ingresso na causa de 14 amici curiae. Ao final, o Supremo Tribunal Federal julgou procedentes as ações por unanimidade. Nessa oportunidade, portanto, o STF defendeu uma interpretação conforme à Constituição de um artigo do Código Civil no sentido de contrariar o tratamento explícito que a própria Constituição havia dado ao tema. Tratamento esse que o artigo interpretado do Código Civil não fazia mais do que praticamente reproduzir46. Em desafio à primeira abordagem acerca do que faz de um caso um caso difícil, a ADPF 132 e a ADI 4.277 mostram que, para uma parte importante da comunidade jurídica, a emergência de um caso controverso não se circunscreve às situações de lacunas no direito positivo, ou aos casos em que os fatos recaem nas zonas de indeterminação ou vagueza da linguagem. É plausível supor que uma outra parte da comunidade jurídica tenha pensado que a mera ideia de propor uma ADPF ou ADI para pleitear interpretação conforme a Constituição de dispositivo de lei em contrariedade a tratamento explícito dado pela própria Constituição ao problema jurídico não passaria de uma aberração argumentativa. Isso porque contrariaria o pressuposto básico acerca do que determina a resposta correta para um problema jurídico prático, qual seja, o fato de que uma autoridade competente tenha se pronunciado explícita e inequivocamente, no passado, acerca da solução a ser dada ao problema. Em outras palavras, é possível que parte da comunidade jurídica tenha tomado a ADPF 132 e a ADI 4.277 como casos absurdos, que sequer deveriam ter sido discutidos, mas que, uma vez que tenham sido propostos, deveriam ser considerados casos fáceis no sentido de que a decisão deveria, inequivocamente, julgar improcedentes as ações. No entanto, o mero fato de que o caso existiu, ou seja, de que agentes importantes do cenário institucional brasileiro entenderam que fazia sentido propor e defender o caso perante o Supremo Tribunal Federal, e que este tenha julgado as ações procedentes por unanimidade47, mostra que parte importante da comunidade jurídica discorda da tese de que aquilo que torna um caso controverso possível é a lacuna e/ou indeterminação e vagueza do direito positivo48. A partir dessa observação, dois esclarecimentos se fazem necessários. (i) Em primeiro lugar, a ADPF 132 e a ADI 4.277 podem fortalecer o argumento negativo acerca daquilo a que não se resume um caso controverso: ele não é apenas aquele que decorre de lacuna, indeterminação e/ou vagueza do direito positivo. Em termos propositivos e a partir da reflexão sobre a ADPF 132 e ADI 4.277, o que seria um caso controverso? Em um primeiro momento, poderíamos supor que aquilo que faz de um caso um caso controverso é a observação de existência de controvérsia de fato em torno do caso ou do problema jurídico. Nesse sentido, um problema jurídico digno de pesquisa seria aquele que tenha sido de fato abraçado pela comunidade jurídica enquanto tal. A definição do caráter controvertido do problema seria resolvida, portanto, a partir do comportamento da própria comunidade jurídica em torno desse problema. Ele não se tornaria controverso até que controvérsia real fosse deflagrada em torno dele, ou seja, até que uma parcela importante dos interlocutores na comunidade jurídica tivesse aceitado o problema como um problema controverso, um caso difícil. Não é isso, no entanto, que quero afirmar aqui. Um problema jurídico prático difícil não emerge enquanto tal apenas depois que a comunidade jurídica o aceita dessa forma. E isso por duas razões: em primeiro lugar, alguém deverá conceber o problema para trazê-lo à pauta. Ou seja, alguém deverá enxergá-lo, formulá-lo, antes que ele seja abraçado como pauta de debate pela comunidade jurídica. E não se pode dizer que ele não era um problema jurídico genuíno, um caso difícil, no momento de sua concepção e antes que atenção razoável lhe fosse dispensada pela comunidade jurídica49. O problema é controverso, o caso é difícil, desde que uma argumentação plausível seja elaborada a favor do reconhecimento do problema. O que define o caráter controverso de um problema jurídico prático é a qualidade da argumentação em torno da existência do problema, o que poderá (ou não) levar a comunidade jurídica ao engajamento no debate. Desse ponto decorre que o próprio pesquisador poderá inaugurar uma controvérsia jurídica prática. O próprio pesquisador do direito, e não apenas aqueles que atuam na solução de problemas jurídicos concretos (advogados, juízes, defensores públicos, promotores, procuradores, entre outros), poderá identificar uma questão que entende complexa e digna de uma tomada de posição a partir do confronto de argumentos distintos. Ele deverá, no entanto, enfrentar o ônus de argumentar quanto à existência do problema. Deverá expor as razões pelas quais entende que uma questão jurídica complexa existe e deve ser debatida ainda que ninguém ou poucas pessoas tenham até então a identificado. Ele pode inaugurar a controvérsia justamente por entender que existem argumentos contrários a uma posição pacificada que são pouco explorados. Por muito tempo, não se pensou plausível reivindicar o reconhecimento, por parte do Estado, da união estável de casais homoafetivos enquanto direito individual fundamental dos homossexuais, ou mesmo um direito de visitação a animais de estimação em caso de separação, até que um argumento em relação não apenas a essas possibilidades, mas à plausibilidade desses direitos, fosse formulado. Uma controvérsia prática pode, portanto, estar sempre à espreita: novas circunstâncias tecnológicas ou culturais podem nos forçar a revisitar todo o nosso aparato conceitual anteriormente estabelecido. O outro lado desse ponto é o de que, (ii) em segundo lugar, muita tinta ou saliva gasta pela comunidade jurídica em torno de uma questão não faz dela, automaticamente, uma questão jurídica prática controversa digna de uma pesquisa jurídica. É possível que a comunidade jurídica em geral erre o ponto, dedicando muito tempo e esforço em algo que não deveria ser tomado como um problema jurídico controverso. É verdade que o fato de haver um debate acalorado entre juristas acerca de uma questão jurídica prática pode ser considerado um indício da existência de uma controvérsia digna de investigação. Muitas vezes, onde há fumaça, há fogo. Mas, da mesma forma que a inexistência de debate real em torno de um problema identificado pelo pesquisador não significa que o problema não valha a investigação, o fato de que muitas pessoas dedicam tempo e esforço para debater uma questão jurídica prática não faz desta, automaticamente, uma boa questão para a pesquisa. Ou seja, não faz do caso um caso difícil.Não existe teste para apontar se um caso é ou não difícil, ou seja, para determinar se o caso apresenta um problema jurídico prático controverso. Não há como provar, “por A + B”, que um caso consiste em um caso difícil, ou que uma situação levanta um problema jurídico complexo digno de investigação. Há o ônus argumentativo do pesquisador de justificar a escolha do seu problema de pesquisa apontando as razões pelas quais entende que uma questão jurídica difícil, do ponto de vista prático, merece reflexão, com consequente tomada de posição. Não me parece ser possível dizer mais do que isso acerca da identificação e formulação de um problema jurídico controverso a não ser levando o leitor a percorrer um exemplo de pesquisa acerca de uma questão jurídica prática que entendo controversa (e buscarei reproduzir com brevidade algumas das razões pelas quais assim entendo). Retomo a seguir a questão jurídica prática no campo da liberdade de expressão apontada no início do capítulo: “o direito proíbe a expressão de discursos de ódio, compreendidos como discursos de conteúdo discriminatório ou forma ofensiva dirigidos a grupos de pessoas definidos por um traço identitário, no debate público de ideias?”. Essa é uma versão um pouco modificada da 2.1. pergunta que persegui em minha pesquisa de doutorado50. No próximo tópico, buscarei relatar a maneira como a concebi. O objetivo é, por meio do relato, ilustrar um processo de formulação de uma questão jurídica prática controversa. O caminho até a pergunta de pesquisa Antes de me submeter ao processo seletivo do doutorado, eu estava às voltas com a identificação de um caminho de pesquisa. Eu precisava elaborar um projeto de pesquisa e isso requeria identificar uma boa pergunta para nortear a minha investigação. Nessa época, o professor com quem eu pretendia trabalhar no doutorado estava interessado no estudo da teoria da liberdade de expressão. Era o ano de 2013. Pouco tempo antes, Jeremy Waldron, um importante filósofo do direito, professor na New York University, havia lançado um livro intitulado The Harm in Hate Speech (2012)51. Nesse livro, dentre vários argumentos, Jeremy Waldron avança uma tese intrigante acerca do discurso de ódio. Waldron afirma que discurso de conteúdo discriminatório ou agressivo voltado contra o traço identitário de um grupo de pessoas viola o que ele afirma ser um dos aspectos da dignidade das pessoas, qual seja, os fundamentos da sua reputação. A tese é interessante porque parte do pressuposto, um tanto plausível, de que as oportunidades sociais e padrões de interação social de um sujeito dependem não apenas da maneira como as características singulares daquele sujeito são percebidas socialmente, mas também da maneira como as características dos grupos dos quais o sujeito é reputado partícipe são percebidas por essa mesma sociedade. Se é assim, e se temos um direito à reputação reconhecido juridicamente, então faria parte da proteção integral do direito à reputação individual a proibição de discursos de conteúdo discriminatório ou agressivo voltado contra o traço identitário de grupos, sejam eles delimitados em razão de sua cor, raça, sexo, religião, gênero, nacionalidade, etnia, orientação sexual, dentre outras características. E isso não para fins de promoção da identidade do grupo, mas para proteção de um meio ambiente moralmente saudável a que todo indivíduo possuiria direito para que pudesse participar da sociedade e da vida civil em boas condições. Àquela altura, eu já estava familiarizada com parte das obras de Ronald Dworkin, importante teórico do direito e do liberalismo igualitário, que havia sido professor também na New York University. Ronald Dworkin defende tese que antagoniza com Jeremy Waldron no ponto de chegada: Dworkin defende que discursos de ódio não deveriam ser proibidos apenas em razão de seu conteúdo discriminatório ou forma ofensiva, e eu entendia que esse posicionamento decorria de sua teoria da liberdade, em especial da liberdade de expressão. Dworkin entende que a liberdade de expressão é um direito individual central em democracias liberais porque essa é uma prerrogativa importante para que cada indivíduo tenha sua dignidade respeitada pelo Estado. Para ele, a dignidade está na possibilidade da autodeterminação, seja ela individual – para fins de escolha e formulação dos aspectos centrais da identidade pessoal – ou política – para fins de plena participação na conformação do ambiente ético, moral, político e estético da comunidade na qual o sujeito leva a sua vida. Dworkin argumenta que a liberdade de expressão é central para os dois aspectos da autodeterminação, e que a restrição desse importante direito, central para que o Estado possa reivindicar legitimidade de exercício do seu poder coercitivo sobre aqueles que governa, só pode se dar quando se puder estabelecer um vínculo causal provável entre o ato discursivo e um dano iminente para terceiros, dano esse contra o qual terceiros possuem direito de proteção pelo Estado. Parte dos argumentos de Dworkin é expressamente reconhecida e abordada por Jeremy Waldron na obra The Harm in Hate Speech, tal como o problema da reivindicação de legitimidade do poder estatal quando o Estado restringe a liberdade de expressão das pessoas acerca de assuntos de relevância política (como é o caso de uma série de instâncias de discurso de ódio). Eu percebi que ali havia um debate interessante em curso, que envolvia concepções distintas de valores centrais no direito, tais como o da dignidade da pessoa humana. Ainda, cada um deles mobilizava concepções importantes de noções centrais para a discussão da proibição ou não de discurso de ódio, tais como as noções de reputação, democracia e autonomia. Concluí que ali residia um bom ponto de partida. Uma possibilidade de pesquisa interessante se descortinava, que buscaria a compreensão aprofundada dos posicionamentos de cada um dos autores e de suas teses (o que envolvia compreender não apenas o ponto de chegada de cada um deles, mas a teia argumentativa que os levava até ali), passando para uma confrontação entre estas e entre cada uma delas e os posicionamentos e argumentos dos demais interlocutores de cada um dos autores. A mim parecia que o estudo daquele debate poderia me levar à formulação de uma pergunta de pesquisa de natureza prática interessante. Bastava, no entanto, verificar o cabimento e relevância daquele problema no cenário jurídico brasileiro. É difícil apontar obras clássicas no campo jurídico brasileiro sobre o sentido da liberdade de expressão. O tema não é objeto de um recorte acadêmico-disciplinar autônomo. Ele é tratado no âmbito do multifacetado direito constitucional: no emaranhado dos dispositivos de uma Constituição extensa como a nossa, a liberdade de expressão é abordada algumas vezes, como no art. 5º, IV, que afirma que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e no inc. IX do mesmo artigo, que dispõe que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”52. Quanto a debates jurisprudenciais reputados relevantes sobre a matéria, eu sabia que o Supremo Tribunal Federal havia decidido, em 2003, o Habeas Corpus 82.424-2, conhecido como caso Ellwanger. Nessa ação, o STF decidiu que a publicação de livros com conteúdo discriminatório contra os judeus constituía crime então tipificado no art. 20 da Lei n. 7.716/89, conforme redação dada pela Lei n. 8.081/90, vigente à época dos fatos julgados no caso. O dispositivo definia ser crime “praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou procedência nacional”, estabelecendo pena de reclusão de dois a cinco anos. Ainda, o Supremo Tribunal Federal considerou que a publicação das obras por Ellwanger redundava em racismo, o que levou à imprescritibilidade do crime, conforme disposição do art. 5º, XLII, da Constituição Federal. Identifiqueitambém alguns textos que apontavam o caso Ellwanger como referência da jurisdição constitucional brasileira sobre o tema53. Lendo a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Ellwanger, achei que a maneira como o caso havia sido formulado não privilegiava uma discussão importante acerca dos limites da liberdade de expressão. Isso porque os impetrantes do habeas corpus apresentaram o problema perante o STF não como um acerca da definição do escopo e limites da liberdade de expressão, mas como um outro, muito mais tacanho, que era o de afastar simplesmente a imprescritibilidade do crime com base no argumento de que judeus não constituem uma raça e que o crime de discriminação contra os judeus não poderia ser considerado crime de racismo. O problema jurídico de fundo do habeas corpus não havia sido concebido como de liberdade de expressão. O debate sobre liberdade de expressão surgiu a partir de iniciativa dos então Ministros do STF, sendo difícil distinguir entre os votos uma linha argumentativa majoritária clara acerca da relação entre discursos de ódio e a liberdade de expressão. Ainda, os textos que eu havia identificado apontando o caso Ellwanger como paradigmático na jurisprudência nacional sobre o problema endossavam a posição do STF no caso a partir de argumentos que não me pareceram convincentes. Por exemplo, Daniel Sarmento defendeu que a proibição em geral de discursos de ódio se justificava para evitar que a democracia se tornasse uma empreitada suicida. Ao mesmo tempo, no entanto, ele afirmou o direito de pessoas religiosas expressarem conteúdo homofóbico, sem oferecer qualquer razão pela qual a proteção da empreitada democrática seria suficiente para proibir literatura nazista, mas insuficiente para sustentar proibição análoga de discurso homofóbico (SARMENTO, 2006, p. 257). O meu diagnóstico, portanto, era o seguinte: (i) havia um debate interessante sobre as razões de proteção da liberdade de expressão e aquelas de proibição do discurso de ódio entre teóricos de uma outra jurisdição (no caso, a estadunidense); (ii) o debate não repercutia, com a mesma força e sofisticação, na jurisdição brasileira; (iii) o caso apontado como paradigmático na jurisprudência constitucional brasileira acerca do tema, o caso Ellwanger, era, a meu ver, um caso mal colocado para discussão do sentido e escopo da liberdade de expressão em face do discurso de ódio. Ademais, da leitura dos votos era difícil estabelecer uma linha argumentativa clara majoritária de justificação do ponto de chegada do acórdão (de condenação de Ellwanger pelo crime de racismo com base no art. 20 da Lei n. 7.716/89); (iv) ainda, os textos que eu havia localizado na minha pesquisa preliminar, discutindo o problema do discurso de ódio, endossavam o posicionamento do STF no caso Ellwanger, sem problematizar o que eu compreendia por contradições em potencial importantes: por exemplo, como justificar a proteção de discurso religioso homofóbico, plausivelmente difundido em diversos centros e templos religiosos Brasil afora, e proibir o discurso antissemita publicado em livros de pífia circulação? Ainda, e mais trivial, como justificar ampla proteção de discurso político, por exemplo, de defesa do desmantelamento de serviços públicos, ou de defesa de drásticas reduções de impostos, com grande potencial lesivo para a garantia de direitos básicos, tais como o direito à saúde, e, mais uma vez, proibir discursos de conteúdo antissemita de pífia circulação? Não parecia haver no Brasil um debate de fôlego em andamento sobre o sentido do direito de liberdade de expressão e sua relação com o discurso de ódio. A posição do Supremo Tribunal Federal no caso Ellwanger parecia absorvida de forma razoavelmente incontroversa na cultura jurídica nacional. Havia o art. 20 da Lei n. 7.716/89, dispositivo de lei determinando tipo penal que facilmente poderia ser interpretado como de proibição e punição de vários tipos de discurso de conteúdo discriminatório. À época da elaboração do meu projeto de doutorado, a redação do caput do art. 20 da Lei n. 7.716/89, e de seus §§ 1º e 2º (relevantes para tipificação do crime), era dada pela Lei n. 9.459/97, nos seguintes termos: Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. § 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. A meu ver, os termos “praticar”, “induzir” e “incitar” comportavam algumas interpretações, e não necessariamente indicavam a proibição e punição de qualquer discurso de natureza discriminatória ou ofensiva dirigida a traços identitários, como cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional. O mesmo valia para “discriminação”. Eu entendia que era necessário um debate mais sofisticado acerca do que, para fins penais ou de definição de ilícito jurídico, poderia ser considerado como “discriminação”. A expressão pública de qualquer posicionamento de conteúdo discriminatório poderia ser punida pelo direito? Nesse sentido, se uma pessoa declarasse publicamente que jamais se casaria com uma mulher judia por considerar que os judeus são um grupo intelectualmente limitado, essa pessoa deveria sofrer as punições do direito, civis ou penais? Em outras palavras, as pessoas deveriam ser impedidas de expressar as suas convicções mais profundas acerca de elementos centrais de sua identidade, ainda que essas convicções fossem extremamente infelizes e odiosas? Essa não me parecia uma questão simples. Tampouco me parecia que a prática jurídica nacional endossava de forma coerente o posicionamento de que qualquer discurso de conteúdo discriminatório, em qualquer circunstância, 2.1.1. era proibido, e, uma vez expresso, deveria ser punido. Afinal, o exemplo levantado por Daniel Sarmento, mencionado há alguns parágrafos, sugere justamente o contrário: é plausível pensar que a condenação pública e reiterada da homoafetividade é uma prática comum em muitos centros religiosos por todo o país. Por que discursos que defendem a proibição da homoafetividade e que negam o valor da sexualidade de homossexuais não transforma a democracia em uma empreitada suicida tal como o discurso nazista supostamente a transforma? E isso levando em consideração que, no Brasil, seria plausível supor que o público que mais sofre com a violência social é a população LGBTQ+, e não os judeus. Esses elementos apontavam para a plausibilidade e conveniência de se suscitar uma controvérsia prática em torno da correção ou não da proibição de discursos de ódio no debate público de ideias no Brasil, já que o país endossa o valor e o direito à liberdade de expressão na sua Constituição, e a prática jurídica em torno da definição das razões de proteção e do escopo desse direito parecia incoerente e desarticulada. Definindo a pergunta de pesquisa Abri este tópico porque, em alguns casos de problemas jurídicos controversos, a delimitação do objeto do que se pretende discutir pode exigir um cuidado maior. Algumas vezes, os principais termos utilizados em discussões importantes de problemas jurídicos práticos se revelam equívocos. Isso porque o mesmo termo pode ser utilizado para fazer referência a situações que, ao mesmo tempo em que guardam entre si semelhanças, guardam também diferenças importantes para fins de definir o que diz o direito sobre cada uma delas. Esse é o caso da expressão “discurso de ódio”. Essa expressão é utilizada, por exemplo, para capturar a situação de um esportista branco que se dirige a um esportista negro em um jogo e grita “seu macaco imbecil”. Esse é um caso de discurso dirigido a uma pessoa especificamente considerada e podemosrazoavelmente atribuir a ele a intencionalidade de ofender. A mesma expressão, “discurso de ódio”, é utilizada para capturar a situação na qual um líder de um grupo neonazista expressa em palanque em praça pública que os negros são uma raça que contamina a pureza genética dos brancos e que, por isso, deveriam ser todos enviados de volta para a África. As duas situações apresentam semelhanças em relação ao traço discriminatório do conteúdo do discurso. Mas apresentam também diferenças potencialmente relevantes para definir se a melhor interpretação do direito proíbe ou não cada um dos discursos em questão. Isso porque o discurso de conteúdo discriminatório ocorre em contextos distintos que revelam finalidades distintas: o primeiro é dirigido a uma pessoa específica durante um jogo. É plausível atribuir àquele que fala a intenção, nesse caso, de desestabilização do outro jogador. Ainda, podemos pensar que o jogo ocorre em uma liga profissional. Nesse caso, o discurso teria sido proferido em local de trabalho. Na segunda situação, observa-se a manifestação de uma convicção política, odiosa, é verdade, mas ainda assim uma convicção que marca a identidade do grupo social e político dos neonazistas. É possível imaginar a situação na qual o discurso não possui impacto imediato relevante sobre a população negra: nenhuma violência é deflagrada, nenhum ato de intimidação é praticado por ocasião da expressão em questão. Ainda, o discurso não é dirigido a uma pessoa específica e tampouco em um contexto no qual uma pessoa ou grupo de pessoas negras esteja tentando desempenhar um trabalho, uma tarefa ou uma performance, tal como seria o caso se o discurso tivesse sido expresso no ambiente de trabalho ou no ambiente escolar. A meu ver, essas são distinções importantes nas circunstâncias de cada uma das instâncias discursivas que alteram o que deve ser levado em consideração quando debatemos a proibição ou não de cada um desses discursos, ainda que ambos tenham conteúdo discriminatório e expressem ódio. É possível chegar à conclusão de que o direito proíbe ambas as instâncias discursivas. Ou que protege o direito de expressão de ambas. A questão é que o ônus argumentativo é distinto em cada uma dessas situações. É por isso que, na definição da pergunta de pesquisa, especifiquei o que eu estava chamando de discurso de ódio, conforme a formulação já apresentada: “o direito proíbe a expressão de discursos de ódio, compreendidos como discursos de conteúdo discriminatório ou forma ofensiva dirigidos a grupos de pessoas definidos por um traço identitário, no debate público de ideias?”. Parece-me que essa mesma preocupação pode surgir em uma série de outras discussões doutrinárias que são, na atualidade, igualmente relevantes, como, por exemplo, no debate acerca da constitucionalidade de ações afirmativas. Penso que uma pergunta tal como “as ações afirmativas são constitucionais?” pode se revelar intratável. Isso porque existem muitos tipos de ações afirmativas, tanto no sentido do tipo de política adotada quanto no critério utilizado para definir o grupo beneficiário. Podemos imaginar uma política que pretendesse promover a igualdade racial no Brasil ao proibir o acesso de crianças brancas a escolas privadas do ensino básico por 10 anos, com o objetivo de impedir que a população branca, normalmente a que mais contrata serviços de ensino básico na rede privada, perpetue, na geração em questão, a vantagem em termos de acesso a ensino básico de maior qualidade. Essa poderia ser considerada uma ação afirmativa em favor da população negra. Uma outra ação afirmativa, mais comum e comumente discutida, são cotas em universidades públicas para grupos sociais desfavorecidos. Contudo, mesmo políticas de cota possuem variações: há cotas raciais e cotas baseadas em critério de renda. Cada uma dessas ações afirmativas levanta, a meu ver, um conjunto distinto de problemas jurídicos. Portanto, é importante que, ao fazer o esforço de especificação da pergunta jurídica prática que pretende abordar, o pesquisador atente para o fato de que, algumas vezes, um conjunto de problemas práticos é discutido a partir do uso de “conceitos guarda-chuva”. Isso porque a comunidade jurídica aproxima as situações-problema a partir de suas semelhanças. O aprofundamento da discussão, no entanto, revela muitas vezes diferenças significativas entre cada uma dessas situações. O pesquisador precisa estar 3. atento a isso e fazer um esforço de definição do problema ou conjunto de problemas específicos que pretende abordar dentro de um campo de debate. A pesquisa em torno de uma pergunta jurídica prática controversa deve ser comprometida com a precisão da discussão, evitando que a confrontação argumentativa redunde em uma “conversa de surdos”. Para qual situação- problema específica busco a determinação da resposta que o direito oferece? Os argumentos que pretendo defender e criticar se dirigem a essa mesma situação-problema? É importante, portanto, que o objeto da controvérsia esteja muito bem delimitado. DICA Atente-se para a possibilidade de que a comunidade jurídica empregue um mesmo termo ou uma mesma expressão para se referir a um conjunto de situações-problema que, embora semelhantes em alguns aspectos, podem também apresentar diferenças importantes para fins de definição da resposta que o direito lhes dirige. Ao delimitar o seu problema de pesquisa, você deve deixar claro qual é a situação-problema específica que irá discutir, explicitando o sentido específico em que pretende empregar um termo ou expressão utilizado pela comunidade jurídica para se referir a um grupo variado de situações-problema. PROCEDENDO CIENTIFICAMENTE Problemas jurídicos práticos controvertidos, apesar de não formarem o arroz com feijão do trabalho diário da maior parte de juízes, advogados, defensores públicos, promotores, procuradores e outros profissionais do direito que lidam com a solução de problemas jurídicos reais, por vezes se apresentam a esses profissionais na sua atividade prática. É importante, no entanto, marcar a diferença entre o ponto de vista do pesquisador e aquele dos profissionais supramencionados, uma vez que se deparam com o mesmo tipo de problema. Advogados e todos os demais profissionais do direito que representam uma parte em uma ação ou em uma negociação jurídica possuem o dever de defesa dos interesses da parte que representam. Nesse sentido, ao se depararem com qualquer problema jurídico, controverso ou não, tendem a mobilizar e intensificar todos os argumentos jurídicos que favorecem a posição da parte que representam, ao mesmo tempo em que procuram minimizar o valor, descaracterizar e omitir os argumentos que favorecem posicionamentos contrários. A posição do advogado é, portanto, parcial. Já o pesquisador deverá buscar responder ao problema jurídico prático controvertido com isenção e imparcialidade. Juízes também possuem o dever de imparcialidade. Devem abordar o caso de um ponto de vista impessoal, buscando a solução do problema a partir de juízo da qualidade dos argumentos a ele apresentados pelas partes, bem como a partir do seu conhecimento sobre o direito. No entanto, juízes possuem tempo escasso para apreciação dos problemas que lhes são submetidos. Muitas vezes, eles se atêm aos argumentos apresentados pelas próprias partes para solução do caso. A natureza da reflexão operada pelo juiz é a mesma daquela de um pesquisador quando confrontado com um problema jurídico prático difícil. Mas um juiz raramente se aprofunda na formulação de um mapa argumentativo sobre o problema, identificando todos os principais argumentos favoráveis e contrários a cada posição, bem como explorando a relação entre eles. Já o pesquisador deverá enfrentar justamente esse ônus. Proceder cientificamente na solução de um problema jurídico prático implica em percorrer com honestidade, transparência, objetividade e imparcialidade os principais argumentos que podem ser feitos a favor e contra os posicionamentos possíveis acerca do problema. Seo advogado sabe de antemão o posicionamento que deverá assumir e defender, o pesquisador não precisa nem deve assumir de partida uma posição com tamanha lealdade. É verdade que, se o pesquisador foi capaz de formular o problema de pesquisa jurídica prática que pretende abordar, é porque já realizou uma investigação preliminar importante que apontou para um confronto genuíno e interessante de posicionamentos possíveis54. O pesquisador provavelmente possui uma inclinação em direção a um desses posicionamentos. O posicionamento que de partida lhe parece mais plausível constituirá a sua hipótese de pesquisa. Ela é, no entanto, o seu ponto de partida. E só se confirmará como seu ponto de chegada se, após sua submissão à refutação pelos melhores argumentos contrários que puderem ser feitos, ela ainda assim se sustentar. Mas o que significa, no campo das questões jurídicas práticas, submeter uma hipótese à refutação? O que exatamente o pesquisador deve “fazer” para “testar” a sua hipótese? Os verbos “fazer” e “testar” estão entre aspas porque podem sugerir procedimentos classicamente tomados como científicos que não se aplicam ao caso. Não estamos no campo das ciências formais ou naturais. Estas procedem por dedução (demonstração de conclusões a partir de premissas verdadeiras) e por indução (formulação de leis gerais a partir de regularidades fáticas). Não é esse o sentido de ciência emprestado ao método aqui privilegiado. Não se trata de submeter a hipótese a um experimento científico, tampouco fornecer provas empíricas para uma proposição fática. Ainda assim, cabe chamar de científico o método a ser perseguido porque há algo do valor atribuído ao método das ciências naturais e formais que se busca capturar também no método para enfrentamento de problemas jurídicos práticos controversos. O ponto de convergência é a construção de um procedimento para reflexão que seja adequado à natureza do objeto sobre o qual se pretende refletir e que permita alcançar convicções da melhor qualidade possível tendo em vista os critérios de qualidade compartilhados para a área sobre a qual se reflete. Sendo o problema que nos ocupa de natureza jurídica prática, o método que buscamos é um que permita alcançar a melhor fundamentação possível para a orientação da ação no campo do direito. A natureza da conclusão é normativa, porque prescreve uma ação. Também os argumentos utilizados para sustentar a conclusão são de natureza normativa. Os critérios de aferição da qualidade de argumentos normativos não passam pela indução ou pela dedução55, mas pelo apelo que o conjunto de argumentos apresentados em favor de uma posição exerce em função da sua capacidade 3.1. de universalização, da sua coerência interna e do seu poder de organização de um conjunto de intuições que possuímos acerca de como agir a partir de um sistema de normas jurídicas. Assim, o teste de qualidade de um conjunto de argumentos passa pela sua submissão a críticas que buscam desestabilizá-lo em alguma de suas dimensões: seja mostrando a sua incoerência interna, seja apontando para a implausibilidade das orientações para a ação a que conduzem se aplicados a uma situação até então desconsiderada, ou, ainda, pela sua incapacidade de fundamentar outras orientações para a ação que entendemos plausíveis. O pesquisador, dessa forma, não possui razões para temer as críticas que possam ser feitas à sua hipótese inicial. Pelo contrário: ele pode e dever estar aberto ao poder persuasivo dessas críticas. O seu dever não é o de defender a hipótese. E ele não fracassa se, ao final do processo de consideração dos diversos argumentos contrários e favoráveis à sua hipótese, concluir por abandonar a hipótese, ou por endossá-la parcialmente, ou mesmo pela impossibilidade de tomada de um posicionamento acerca do problema sem que considerações outras, externas ao escopo da pesquisa, sejam apreciadas. O compromisso do pesquisador não é com a hipótese, mas com a honestidade das suas próprias convicções, uma vez que elas são progressivamente amadurecidas no confronto com diversos argumentos. Mais uma vez, um exemplo pode ajudar na ilustração da dinâmica de investigação de uma pergunta jurídica prática controversa. No próximo tópico reconstruirei um dos confrontos argumentativos que enfrentei ao conduzir minha investigação a partir da pergunta: “o direito proíbe a expressão de discursos de ódio, compreendidos como discursos de conteúdo discriminatório ou forma ofensiva dirigidos a grupos de pessoas definidos por um traço identitário, no debate público de ideias?”. Definindo as posições em debate No tópico anterior afirmei que a condução da pesquisa acerca de uma pergunta jurídica prática controversa consiste na apresentação de argumentos de fundamentação de uma hipótese e na sua submissão às críticas, ou tentativas de refutação. Ocorre que os argumentos passíveis de confrontação não se encontram organizados e hierarquizados, em termos de importância e sofisticação, à espera do pesquisador em alguma dimensão intelectual. A seleção dos argumentos, em termos de relevância, e a sua organização em um esquema dialético são tarefas do pesquisador. Quando eu trabalhava na formulação de uma boa pergunta de pesquisa para o meu doutorado, identifiquei algumas características do debate que pareciam predominar entre juristas brasileiros. Em primeiro lugar, a questão da proibição ou não de discursos de ódio era formulada enquanto um conflito de direitos ou valores. No caso, um conflito entre a liberdade de expressão e a igualdade, ou entre a liberdade de expressão e a dignidade da pessoa humana. Ocorre que não havia muitos esforços de conceptualização do sentido desses direitos. Parecia predominar o pressuposto de que o escopo de direitos de liberdade, igualdade e dignidade, assim como de quaisquer outros direitos, correspondia à maior amplitude possível do sentido dos termos liberdade, igualdade e dignidade. Inevitavelmente, isso levava à conclusão de que esses direitos conflitavam em diversas situações, tal como no caso de discursos que expressam convicções discriminatórias. Por um lado, estes são discursos expressivos, e a liberdade de expressão, a princípio, significaria a liberdade de dizer aquilo que se tem vontade sem a oposição de obstáculos por terceiros. Por outro lado, o discurso, no caso, veicula ideias não igualitárias e/ou ofensivas, as quais violariam o direito de igualdade porque este abarcaria, dentre outras, a prerrogativa de figurar como um igual na convicção das demais pessoas, ou seja, de não ser considerado diferente de ninguém, principalmente em função de um juízo discriminatório imoral. E violariam também a dignidade das pessoas pertencentes ao grupo alvo do discurso porque o discurso que expressa essas ideias buscaria negar o senso de autorrespeito dessas pessoas e o status destas na sociedade. Em segundo lugar, o conflito era tratado por meio de um método de proporcionalidade. Em síntese, já que a solução do problema implicaria, necessária e supostamente, no sacrifício de um dos direitos ou valores, o método da proporcionalidade serviria à definição, no caso concreto, da solução que implicasse no menor dos sacrifícios relativos do direito ou valor não privilegiado no caso. Essa forma de pensar e, portanto, de decidir era a que, a princípio, poderia explicar como um mesmo juiz chega a resultados aparentemente contraditórios em casos semelhantes, tais como proibir discursos de conteúdo discriminatório contra judeus em livros, mas proteger discursos de conteúdo discriminatório contra homossexuais em templos religiosos. De algum modo, o sacrifício da liberdade no primeiro caso não seria tão significativo tendo em vista o tanto de igualdade promovida pela proibição do discurso, enquanto no segundo caso a lógica seria justamente inversa. Essa abordagem me parecia insatisfatória porque não oferecia uma razão para diferenciação entre as duas situações. Por que, exatamente, a proibição de discursos discriminatórios contra judeus publicados em livros sacrificamenos a liberdade de expressão do que a proibição de discursos discriminatórios contra homossexuais em templos religiosos? Por que a convicção religiosa do crente teria maior importância do que a convicção política do antissemita? A solução do problema jurídico prático em questão por meio da proporcionalidade me parecia envolta em uma caixa preta na qual as métricas de realização e sacrifício de direitos e valores em cada caso eram atribuídas sem que se pudesse compreender sua lógica. A sensação é de que os resultados, ainda que formulados em linguagem racional, eram produtos de decisão ad hoc. O leitor não precisa concordar com o meu diagnóstico acerca do método da proporcionalidade aplicado ao problema da proibição ou não de discurso de ódio. O relato serve para justificar as minhas escolhas em relação aos argumentos postos em confronto no meu trabalho de doutorado. Optei por não trabalhar com o método de proporcionalidade e elegi argumentos que, diferentemente das conceptualizações do sentido da 3.2. liberdade e da igualdade pressupostos pelo método da proporcionalidade, buscavam oferecer uma conceptualização mais detalhada dos valores ou direitos envolvidos na questão. Foi por isso que escolhi a confrontação dos argumentos de Ronald Dworkin e Jeremy Waldron como ponto de partida da minha pesquisa56. Cada um dos autores busca oferecer uma conceptualização do sentido de um ou mais dos valores ou direitos envolvidos no problema e, a partir daí, fazer uma defesa dos comportamentos que esses valores ou direitos justificavam proteger ou proibir. Por exemplo, tanto Dworkin quanto Waldron ofereciam uma concepção de dignidade da pessoa humana da qual partiam para se posicionar no sentido de proteção ou proibição de discursos de ódio em razão do conteúdo ou forma do discurso. Parte do meu trabalho seria, portanto, confrontar os argumentos utilizados por cada um dos autores para fundamentar a sua concepção de dignidade com o objetivo de avaliar cada uma das teses e, eventualmente, tomar um posicionamento no debate. Mais uma vez, o leitor não precisa concordar com a minha decisão de afastar o tratamento da questão pelo método da proporcionalidade, tampouco com a escolha que fiz dos argumentos para confrontação na primeira etapa da minha pesquisa. O relato breve serve para ilustrar o percurso de seleção e justificação dos argumentos que figuraram na primeira parte da minha investigação e, posteriormente, na primeira parte da tese de doutorado desenvolvida. A dinâmica da refutação A hipótese de que parti era a de que os discursos de ódio, considerados como discursos de conteúdo discriminatório ou forma ofensiva dirigidos a grupos de pessoas definidos por um traço identitário, no debate público de ideias, não eram proibidos pelo direito. Os argumentos que identifiquei no trabalho de Ronald Dworkin para sustentar essa hipótese me pareciam os mais plausíveis. Não cabe, neste texto, explorar em detalhes os argumentos de Dworkin ou aqueles de Jeremy Waldron. Tampouco abordarei todo o 3.2.1. • • • • conjunto de argumentos que explorei e confrontei na tese de doutorado. O exercício a seguir serve como ilustração do movimento de proposição e refutação que constitui o trabalho de pesquisa e argumentação para solução de uma pergunta jurídica prática controversa. O argumento de Dworkin De forma sucinta, é possível encadear alguns dos argumentos de Dworkin pela proteção de discursos de ódio (tal como definidos na tese e neste capítulo) no debate público de ideias da seguinte forma: A dignidade ou valor de cada vida humana depende de que a pessoa de cuja vida se trata decida com independência acerca dos seus compromissos identitários centrais. Esses compromissos incluem, dentre outras, suas escolhas profissionais, amorosas, culturais, morais e políticas (DWORKIN, 2011, p. 209-213; 2000, p. 127). O valor da independência moral, fundamento da dignidade da vida de cada pessoa, só é preservado perante o exercício do poder coercitivo estatal se o Estado proteger, por um lado, uma esfera privada na qual o indivíduo poderá exercer com independência escolhas centrais para a sua identidade e, por outro, a prerrogativa de cada sujeito de contribuir também com independência para a formação do ambiente cultural, estético, moral e político no qual as decisões políticas e institucionais da comunidade são tomadas (DWORKIN, 2011, p. 379; 1997, p. 148; 1996, p. 200-201). A liberdade de expressão acerca de questões estéticas, morais, culturais e políticas é central tanto para o exercício da independência moral no âmbito privado quanto para o exercício da participação na formação do ambiente valorativo da comunidade (DWORKIN, 2000, p. 127 e 201-202; 1997, p. 148). Discursos discriminatórios ou de forma ofensiva dirigidos contra grupos definidos por um traço identitário, no debate público de ideias, constituem discurso de conteúdo político protegido pelo direito à independência moral (DWORKIN, 2011, p. 369-371; 1996, p. 200). Os argumentos de Dworkin são consistentes e convincentes? Penso que são bons argumentos. Eles organizam alguns pressupostos centrais a respeito da maneira como nos comportamos em relação à nossa vida e como valorizamos o fato de estar vivo. A maior parte de nós se angustia, em um momento ou outro, com a grande questão que nos ocupa: o que fazer com a nossa vida? Temos a convicção de que essa pergunta deverá ser respondida, em última instância, por cada um de nós, individual mente, e que não podemos delegá-la a ninguém (ainda que possamos nos beneficiar de conselhos e sugestões daqueles que nos cercam e em quem confiamos). Entendemos que a autonomia na condução da nossa vida e na tarefa de lhe dar identidade é um pressuposto para a manutenção do valor da nossa jornada: uma vida, ainda que possa parecer muito interessante se observada “de fora”, será maculada de maneira insanável se for fruto da imposição de terceiros sobre aquele de cuja vida se trata, e não fruto de uma escolha livre. Dessa forma, para que uma vida tenha valor, é preciso que cada um possa correr o risco de se equivocar tremendamente acerca das escolhas que faz e das identidades que assume. Inclusive, o risco de se confrontar com, e eventualmente abraçar, convicções políticas odiosas. Esse mesmo risco, ainda que razoavelmente controlado, faz parte de uma democracia. O autogoverno significa, em alguma medida, correr algum risco de que a coletividade acabe endossando convicções extremamente injustas e que redundem em consequências graves do ponto de vista da justiça. Essa não é uma afirmação estranha à realidade em que já nos encontramos. Afinal, segundo algumas análises, já vivemos, no Brasil, por exemplo, um cenário em que possuímos um sistema tributário extremamente regressivo e que é, segundo muitos, injusto. Ainda, o país é vítima de esquemas históricos de corrupção nos quais estão envolvidos grupos políticos que se perpetuam no poder ao longo de décadas. Um dos resultados plausivelmente atribuíveis a esse estado de coisas é a falta de acesso de grande parte da população a serviços e bens materiais para • • • garantia de uma mínima qualidade de vida. Nem por isso proibimos que discursos em defesa de esquemas tributários ainda mais regressivos possam ser vocalizados no debate público. Tampouco proibimos os grupos políticos envolvidos em esquemas de corrupção e aqueles que os apoiam de continuar a participar no debate público de ideias. Em síntese, não proibimos a continuidade de circulação de discursos políticos advogando ideias que, uma vez implementadas, poderiam agravar a situação de injustiça no país. Procurei estabelecer brevemente, portanto, o que enxergo como qualidades dos argumentos de Dworkin. Cabe examinar com abertura, transparência e honestidade argumentos que criticam ou questionam algum ou alguns dos argumentos que estruturam a posição de Dworkin sobre o problema. Há, por exemplo, algum argumento interessante que desafia o conceito de dignidade humana de Dworkin e suas implicações? Jeremy Waldron apresentaargumentos intrigantes que desafiam a concepção dworkiniana de dignidade. Esses argumentos se desenvolvem da seguinte forma: A concepção de Dworkin de dignidade é “estipulativa”, ou seja, não é sensível às contribuições da linguagem natural para o uso da noção de dignidade em discursos de direitos humanos e não respeita a tradição histórica do conceito jurídico de dignidade (WALDRON, 2011, p. 216-217; 2007, p. 208-214). A tradição histórica do conceito jurídico de dignidade implica a noção de deferência, reconhecimento de uma posição diferenciada de valor. Alguns exemplos são os de leis que impunham um comportamento deferente em respeito à dignidade de monarcas e juízes (WALDRON, 2011, p. 225; 2007, p. 215-217). O conceito de dignidade sofreu uma transformação histórica, passando a afirmar o valor não apenas de certos grupos de pessoas, mas de toda e qualquer pessoa. O que significa estender a deferência, o reconhecimento da existência de um valor especial, a toda e qualquer pessoa (WALDRON, 2011, p. 219-223). • • • • A dignidade de toda e qualquer pessoa, portanto, impõe um dever de reconhecimento, por parte de todas as demais, do valor e importância que reside em cada pessoa parte da comunidade (WALDRON, 2011, p. 223-226). Direitos de dignidade implicam, portanto, em direito de cada indivíduo de não se deparar com discursos que neguem o valor igualitário desse indivíduo na comunidade (WALDRON, 2012, p. 161-172). Isso implica proteção tanto contra discursos que se dirigem especificamente a uma pessoa individualmente considerada, como contra discursos que se dirigem a grupos de pessoas marcadas por um traço identitário. O instituto da difamação protegeria as pessoas contra o primeiro tipo de discurso. A proibição de discursos de ódio protegeria as pessoas contra a violação dos fundamentos de sua reputação, ou seja, contra violação da garantia da boa percepção pública acerca dos grupos aos quais a pessoa pertence (WALDRON, 2012, p. 52-61). Os argumentos de Waldron são bastante interessantes. Dizem respeito tanto ao tipo adequado de considerações para formulação de conceitos jurídicos quanto ao sentido substantivo do conceito jurídico de dignidade57. Eu precisei me posicionar acerca dos argumentos de Waldron para chegar a conclusões sobre o debate e sobre a hipótese inicial. Refletindo acerca dos argumentos de Waldron, concluí que alguns deles, apesar de interessantes, não se sustentavam. Sobre esses argumentos, cheguei às seguintes convicções: O conceito de dignidade de Dworkin não é menos jurídico que o conceito de Waldron. Waldron faz menção a uma transformação histórica do sentido do valor de dignidade, o que aponta para o fato de que o sentido do conceito é disputado na história e está sempre aberto a uma nova formulação. A melhor formulação é aquela que orienta o reconhecimento de direitos plausivelmente universalizáveis. • • A concepção de dignidade de Waldron não orienta ao reconhecimento de direitos plausivelmente universalizáveis. Não é plausível afirmar que as pessoas possuem direito de proteção contra o confronto com discursos que negam o seu valor ou status igualitário em qualquer situação. O reconhecimento desse direito teria que redundar em um dever do Estado de proibir discursos discriminatórios contra homossexuais em templos religiosos, que afirmam que a homossexualidade é um perigo à sexualidade de crianças, por exemplo. Ou que homos sexuais deveriam ser submetidos a tratamento médico. Esses são discursos que, embora terrivelmente equivocados, consideramos protegidos pela liberdade de expressão das pessoas religiosas. O argumento de Waldron, portanto, teria que enfrentar o ônus de defender a proibição desses discursos e, para tanto, teria que reformular o que compreendemos por liberdade de expressão religiosa, ônus do qual ele não se desembaraça. Se a liberdade de expressão é um direito fundamental para o exercício da própria identidade, seja no âmbito privado, seja no âmbito político, e se a todas as pessoas é preciso garantir direitos em igual escopo e medida, não há como justificar a proibição de alguns discursos de conteúdo discriminatório em função do seu conteúdo enquanto se confere proteção a outros de conteúdo igualmente discriminatório. Por outro lado, um dos argumentos de Waldron me pareceu bastante forte, colocando um desafio importante para o conjunto argumentativo de Dworkin. Trata-se do argumento que aproxima os discursos de conteúdo discriminatório dirigidos a grupos dos discursos dirigidos a pessoas individualmente consideradas que consistem em violação do direito à reputação. Se o direito à reputação individual significar proteção contra todo discurso que negar publicamente o valor de uma pessoa ou de alguma característica dessa pessoa, então não existiria qualquer razão para não proibir também discursos que se dirigem não a pessoas individuais, mas aos grupos aos quais as pessoas pertencem. Isso porque é plausível pensar que os discursos dirigidos a grupos possuem impacto importante na percepção que a sociedade desenvolve de cada membro dos grupos-alvo dos discursos (considerando duas figuras hipotéticas, João e Maria, o que o argumento pretende formular é que aquilo que Maria pensa sobre os negros em geral impacta na maneira como Maria irá enxergar João e na forma como irá se portar perante João, que é negro). Ao me deparar com esse ponto do argumento de Waldron, entendi que, para que o conjunto argumentativo de Dworkin pudesse resistir de maneira completamente satisfatória aos desafios de Waldron, esse conjunto deveria se valer de uma concepção do direito individual à reputação que fosse coerente com os demais argumentos de Dworkin acerca da dignidade e das suas implicações para o sentido e alcance da liberdade de expressão. DICA Busque apresentar e confrontar a melhor versão que puder construir dos argumentos que desafiam a hipótese inicial. A força persuasiva das conclusões do pesquisador depende do enfrentamento dos melhores argumentos que puderem ser feitos tanto a favor como contra a hipótese. Lembre-se: enquanto pesquisador, você não deve se comprometer com nenhum resultado antes de percorrer com abertura e imparcialidade os argumentos contrários à hipótese. No entanto, pesquisando sobre a obra de Dworkin, não encontrei posicionamentos do autor quanto à existência e ao sentido de um direito à reputação. Uma concepção do direito à reputação integrada aos demais argumentos de Dworkin sobre os direitos de liberdade de expressão estava ainda por ser formulada. Esse momento da minha reflexão se caracteriza pela incerteza acerca de qual dos posicionamentos, pela proibição ou pela proteção dos discursos de ódio, era o mais acertado. Eu acreditava que isso dependia de uma tomada de posição em relação ao sentido do direito à reputação, mas não tinha convicções amadurecidas acerca de se e como deveríamos afirmar a existência desse direito (se e como ele poderia ser concebido de forma compatível com a liberdade de expressão). Quando o pesquisador se depara com um momento como esse na sua reflexão, algumas opções se abrem. Essas opções dependem das pretensões de pesquisa do pesquisador, ou seja, o quão longe ele pode e está disposto a levar a sua pesquisa e reflexão. Se o projeto de pesquisa não for longo e o trabalho monográfico em questão não tiver sido planejado para ser extenso, o pesquisador pode encerrar a pesquisa nesse ponto, com a conclusão de que um conjunto 1 de argumentos se revela, em alguns pontos, mais forte do que outro conjunto 2 de argumentos, mas que uma resposta conclusiva para o problema só poderá ser obtida uma vez enfrentado um desafio que o conjunto 2 colocou ao conjunto 1. Essa é uma conclusão legítima, que revela a transparência, a honestidade e a abertura do pesquisador em relação aos argumentos em confronto. Ainda, é uma conclusão que aponta para caminhos futuros de pesquisa, que podem ser abraçados pelo próprio pesquisador em outro momento, ou por outros pesquisadores que compreendam a relevância da investigaçãoaspectos gerais 2. O uso de ideias de terceiros: citações, paráfrases e plágio 2.1. Documentos não protegidos por direitos autorais 2.2. Autoplágio 3. Seres humanos como fontes de pesquisa: cuidados éticos em entrevistas 4. Conflitos de interesse 4.1. Multiplicidade de papéis: pesquisadores com profissões paralelas Referências 28. Tecnologia aplicada à pesquisa no direito: a ciência de dados jurídicos 1. Introdução 2. Ciência de dados jurídicos 3 O objeto da Ciência de Dados Jurídicos 4. Ferramentas 5. Por onde começar 6. Considerações finais Referências 29. Proteção de dados pessoais na pesquisa em direito: QUATRO CASOS E ALGUMAS LIÇÕES 1. Um ponto de partida para o debate sobre a proteção de dados pessoais na pesquisa jurídica: o caso da Universidade de Umea 2. Regime especial da LGPD para atividades de pesquisa e os dados pessoais públicos: o caso sobre o acesso aos dados na educação brasileira 3. Pesquisa em redes sociais e os dados pessoais “disponíveis” para análise do pesquisador: o caso EU DisinfoLab 4. Identidade de juízes na pesquisa jurídica: a criminalização da perfilização de magistrados na França 5. Recomendações de adequação ao pesquisador e aos órgãos de pesquisa Referências PREFÁCIO Sérgio Campinho, com a seriedade que marca a sua trajetória destacada e responsável no seio da advocacia e da academia, oferece-nos a sua mais recente colaboração ao mundo jurídico: Curso de direito comercial – Falência e recuperação de empresa. Depreende-se do escrito que o processo de falência com o incidente eventual da recuperação judicial da empresa, inspirado na legislação francesa, restou regulado até a presente data pelo cognominado Decreto-Lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945. Inspirado na ideologia processualista-iluminista da época de sua edificação, atravessou meio século, o que por si só denota sua vetustez, posto radicalmente alterados os paradigmas jurídicos do novo milênio, o que implicou a defasagem da lei ante a nova ordem econômica e a realidade brasileira. As severas transformações socioeconômicas, acrescidas da novel percepção axiológica do direito, fundado na livre concorrência e na dignidade da pessoa humana, conduziram o legislador a repensar uma norma falencial mais voltada para a salvação das empresas do que para a punição delas com a decretação da quebra, o que conduzia, a um só tempo, devedores e credores a situações deveras desvantajosas. Enfim, o direito concursal não atendia mais as agruras da crise da empresa, impondo-se um marco separatório entre o passado e o presente; entre o processo liquidatório de outrora e o recuperatório. Nesse afã, foi constituída uma comissão com a finalidade de elaborar um novel projeto de lei de falências e concordatas, submetido ao crivo dos especialistas desde os idos de 1992, notadamente com grande e profícua participação da Ordem dos Advogados do Brasil. Cumpre destacar que o decurso do tempo motivou a adoção da lúcida estratégia de criação de uma nova comissão para a redação última do projeto, à luz das ponderações recebidas (Portaria 552/MJ). Por isso, várias propostas foram acolhidas sem a triagem necessária, transfigurando sobremodo o projeto originário. Essa interação resultou na atual lei, com resgate da sua tecnicidade, que, em sentido diametralmente oposto à antiga legislação, tem como desígnio a tríplice proteção dos credores, devedores e empresa. A obra do Professor Sérgio Campinho, cuja dedicação e competência experimentei como dileto companheiro na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, aborda, com notável visão interdisciplinar, todas as vicissitudes desse novel ordenamento. Depreende-se de suas especulações teóricas e dogmáticas a moderna teoria da empresa, que se organiza para a prestação de serviços e produção de bens de forma organizada, de sorte que, além dos comerciantes, passaram a integrar a órbita falencial as pessoas jurídicas de natureza civil, bem como o devedor individual, ambos com ostensiva exploração de atividade econômica. Deveras, anota o autor o quanto se ampliou esse espectro para alcançar pessoas com funções delegadas pelo Poder Público e que exercem atividade econômica, numa afirmação legal de que ubi eadem ratio ibi eadem dispositio. Ressalta a obra a tendência hodierna à desformalização e à preponderância do valor celeridade na prestação jurisdicional, responsáveis pela supressão da atuação constante do Ministério Público, salvo nas hipóteses em que se manifesta interesse público, situação de difícil ocorrência nesse rito em que gravitam interesses patrimoniais, de regra, disponíveis, bem como do Poder Judiciário, cuja função precípua é a solução dos conflitos intersubjetivos. O autor não se descura da análise principiológica, ressaltando a influência do dogma da valorização do trabalho humano, porque quanto mais forte a empresa, mais forte o emprego, conspirando pelo ideal de progresso e da livre concorrência. Destaca-se, sob esse enfoque, o mais expressivo dispositivo da lei, vale dizer, o art. 47 ao dispor que “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, provendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”. Destarte, revela a sua crença de que a recuperação em si tende a superar quantitativamente a ocorrência das falências e que a ratio essendi da lei, por si só, explicita a razão da manutenção do privilégio dos créditos trabalhistas. Destaca Campinho que a celeridade é responsável pela sumarização formal dos incidentes surgidos, quer na falência, quer na recuperação da empresa, sendo certo que, sob o enfoque empresarial, a falência adquiriu uma feição continuativa dos negócios, com administração profissional, de sorte que a tutela dos credores está na justa proporção da rentabilidade dos bens da massa. A par dos aspectos interdisciplinares, a obra de Sérgio Campinho aborda a novel lei na sua visão de conjunto, a saber: são 8 capítulos, sendo o capítulo I relativo às “disposições preliminares” acerca do alcance da lei e seus sujeitos; o capítulo II dedicado às “disposições comuns à recuperação judicial e à falência”; o capítulo III específico quanto à “recuperação judicial”; o capítulo IV destinado a regular a “convolação da recuperação judicial em falência”; o capítulo V específico da “Falência”; o capítulo VI retratando a inovadora “recuperação extrajudicial”; o capítulo VII tratando das “disposições penais” e o capítulo VIII, das “disposições finais e transitórias”. A leitura deste volume, indispensável pela sua linguagem técnica e didática, não é servil apenas aos profissionais do direito, mas também a tantos quantos se dedicam à atividade negocial. Enfim, é motivo de efusiva saudação o surgimento de mais um trabalho elaborado pela acuidade intelectual de Sérgio Campinho, que desde muito jovem destacou-se nesse campo árido do direito comercial, fazendo-o respeitado com singularidade entre os profissionais da advocacia e os integrantes do mundo acadêmico. Honra-me prefaciar este livro, assim como gerou em mim significativo desvanecimento proceder à leitura de obra deveras minudente e construtiva, de tal sorte que há de destacar-se na biblioteca dos comercialistas respeitáveis do nosso Brasil. Ministro Luiz Fux APRESENTAÇÃO À 3ª EDIÇÃO O mundo tem se transformado em velocidade acelerada. Esse processo de transformação intensificou-se durante o período mais agudo da pandemia de Covid-19, entre os anos de 2020 e 2021, quando a maior parte de nossos afazeres profissionais e acadêmicos migrou para o ambiente digital. Os impactos do necessário distanciamento social sobre o ensino e a pesquisa no Direito foram divisores de água em nosso campo. Daí a necessidade de lançarmos novos olhares e criarmos outras abordagens para lidar com essa realidade cada vez mais digital e em constante mudança. Após três anos doe por ela se interessem. Outra possibilidade é a de que o pesquisador, possuindo tempo, disposição e interesse, assuma o desafio e tente elaborar uma resposta para ele. Mais comumente, esse é o caso em trabalhos monográficos de maior fôlego, tais como pesquisas de doutorado ou projetos de pesquisadores mais experientes. Em minha pesquisa de doutorado, eu decidi por abraçar o desafio colocado pelos argumentos de Waldron àqueles de Dworkin. Procurei, portanto, oferecer, em um dos capítulos da tese de doutorado, uma concepção do direito à reputação que fosse coerente com o conjunto argumentativo de Dworkin58. PARA SABER MAIS Recomendo a leitura do texto “Como se escreve um ensaio de filosofia”, de James Pryor (2012) (tradução de Eliana Curado, disponível em: ) para compreensão das etapas de um trabalho de confrontação de argumentos normativos. O texto é didático e chama a atenção para questões de estrutura do trabalho, objetividade e concisão da linguagem e apresentação e avaliação de pontos de vista alheios. http://filosofia.ufsc.br/files/2013/04/JamesPryor.pdf 4. A CONCLUSÃO DO TRABALHO (E DESTE CAPÍTULO) Ao final da pesquisa, depois que o pesquisador percorreu os argumentos em favor da hipótese inicial, bem como aqueles que colocam desafios aos primeiros, ele pode chegar a uma das conclusões possíveis: (i) a hipótese foi completamente confirmada, (ii) a hipótese foi parcialmente confirmada, de forma que o pesquisador conclua acerca da necessidade de sua modificação, (iii) a hipótese foi completamente refutada, de forma que o pesquisador conclua que o posicionamento contrário à hipótese inicial é o mais acertado, ou, ainda, (iv) a hipótese é fundamentada por um conjunto de argumentos superior, em alguns de seus aspectos, ao conjunto de argumentos que buscam refutar a hipótese. No entanto, o pesquisador não foi capaz de chegar a uma resposta conclusiva ao problema porque um ou mais desafios colocados pelos argumentos que buscam refutar a hipótese não puderam ser respondidos pelo pesquisador no escopo da pesquisa em questão. Todas essas são conclusões valiosas a que pode chegar o pesquisador, e ele deve estar aberto a todas essas possibilidades durante o percurso da pesquisa. Mais uma vez, o valor da pesquisa e da conclusão alcançada não está no sucesso do pesquisador em confirmar a hipótese, mas na maneira consistente, atraente, transparente, honesta e intelectualmente profunda com que ele reflete sobre o problema e apresenta o percurso argumentativo que o levou à conclusão. A pesquisa bem-sucedida de problemas jurídicos práticos controversos depende de algumas etapas encadeadas de investigação. A primeira, e mais importante delas, é a formulação precisa de uma pergunta acerca de um problema jurídico prático controverso, um caso difícil. Essa formulação depende, em si, de que um trabalho prévio de pesquisa tenha sido feito para identificação do problema e justificação da sua relevância e caráter controverso. A definição do problema de pesquisa a direciona para a seleção e organização das respostas possíveis ao problema e dos melhores argumentos de fundamentação de cada uma delas. O pesquisador deverá fazer um esforço de compreensão desses argumentos, confrontando-os de maneira intelectualmente honesta e transparente. Isso implica reconstruir os argumentos da maneira mais completa e caridosa possível. O pesquisador deverá organizar os desafios que os argumentos colocam uns aos outros e deverá se posicionar sobre eles, de forma a alcançar uma conclusão sobre a hipótese inicialmente formulada. A pesquisa será tão mais completa e convincente em seus resultados quanto maior for o conjunto de argumentos e posicionamentos de autoridades jurídicas e estudiosos sobre o problema considerados pelo pesquisador. Referências BARROSO, Luís Roberto. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 fev. 2018. Ilustríssima. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro). Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. BRASIL. Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. BRASIL. Lei n. 8.081, de 21 de setembro de 1990. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/02/em-artigo-ministro-do-supremo-rebate-criticas-feitas-ao-tribunal.shtml?loggedpaywall http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7716.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8081.htm BRASIL. Lei n. 9.459, de 13 de maio de 1997. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Habeas Corpus 82.424-2, Tribunal Pleno, rel. Min. Moreira Alves, j. 17-9-2003. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Recurso Extraordinário 898.060, Tribunal Pleno, rel. Min. Luiz Fux, j. 21-9-2016. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. DWORKIN, Ronald. Forked tongues, faked doctrines. Index on Censorship, 3, p. 148-151, 1997. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011. DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Belknap Press, 1986. DWORKIN, Ronald. O império do direito. 3. ed. Trad. Jeferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2014. DWORKIN, Ronald. Sovereign virtue: the theory and practice of equality. Cambridge: Harvard University Press, 2000. DWORKIN, Ronald. Why Must Speech Be Free? In: DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law: The moral reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996. FREITAS, Riva Sobrado de; CASTRO, Matheus Felipe de. 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Em maior ou menor medida, com menor ou maior sofisticação analítica, análises de jurisprudência sempre estiveram presentes na produção jurídica brasileira. Porém, a partir da década de 1990 a pesquisa de jurisprudência ganhou inédito destaque. Por um lado, o crescimento do ativismo judicial e o recente papel que o Supremo Tribunal Federal assumiu no jogo da governabilidade reforçam o interesse no estudo da jurisprudência. Por outro lado, pode-se dizer que há uma consolidada agenda de pesquisa de jurisprudência na academia jurídica brasileira. O início dessa “revolução metodológica” é atribuído à Escola de Formação Pública – EFp da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP)62. Desde o seu início, em 1998, a EFp mantém um bem-sucedido programa de iniciação científica voltado ao estudo empírico da jurisdição constitucional brasileira. Ao longo desses 20 anos, foram produzidas centenas de pesquisas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre os mais variados assuntos63, contribuindo significativamente para a compreensão do papel institucional da cúpula do Poder Judiciário. O Programa de Educação Tutorial (PET) Sociologia Jurídica, da Faculdade de Direito da USP, também contribuiu significativamente para o desenvolvimento da pesquisa de jurisprudência a partir de importantes contribuições nessa linha64. Muitos dos ex-alunos de ambos os programas apresentaram trabalhos de mestrado ou de doutorado com estudo de jurisprudência nos programas de pós-graduação stricto sensu. Professores parceiros desses centros de referência, vários ex-alunos, foram responsáveis por influenciar toda uma geração para a pesquisa de jurisprudência. A essa iniciativa se associaram outros centros de pesquisa, com especial destaque para a FGV Direito SP, a FGV Direito Rio e a Rede de Pesquisa Empírica em Direito (REED). Felizmente, o Brasil conta hoje com excelentes pesquisas de jurisprudência enquanto o seu número tende apenas a aumentar. O avanço da pesquisa de jurisprudência não ficou restrito apenas ao âmbito acadêmico. Na prática, o trabalho com decisões judiciais e administrativas terminou por ocupar parte expressiva do dia a dia do profissional do Direito. À medida que os julgadores atribuíram peso decisório à jurisprudência mencionada nas peças processuais, a pesquisa de jurisprudência foi se consolidando como técnica instrumental de trabalho. A relevância do trabalho com a jurisprudência na prática é tamanha que o atual Código de Processo Civil positivou a “lógica de precedentes” em seu art. 489: dentre outros aspectos, a sentença somente será considerada fundamentada – e, portanto, válida – se o juiz demonstrar que os 2. precedentes utilizados se coadunam ao caso concreto e se motivar sua decisão de não seguir jurisprudência invocada pela parte nas específicas hipóteses de distinção dos casos em julgamento ou de superação de entendimento65. Hoje, a prática jurídica requer do profissional a habilidade de trabalhar com a jurisprudência, que vê incorporadas ao seu glossário fundamental palavras até então estranhas à sua atuação, como distinguishing, overruling, ratio decidendi e obiter dictum. Porém, a “pesquisa de jurisprudência” da prática não corresponde ao trabalho científico de análise de julgados no âmbito acadêmico. Pesquisa de jurisprudência não é um “catadão” de julgados aleatórios para defender o seu ponto de vista. Também não é analisar os julgados mais recentes de um determinado Tribunal para afirmar uma suposta orientação jurisprudencial. Tecer críticas ou elogios ao Tribunal a partir de um julgado específico, escolhido arbitrariamente, não pode ser considerado pesquisa de jurisprudência. Mas, afinal, o que é pesquisa de jurisprudência para a área acadêmica? Como posso utilizar a jurisprudência em meu trabalho? Neste capítulo pretendemos apresentar informações de ordem metodológica aplicadas à pesquisa de jurisprudência. Nosso principal objetivo é capacitá-lo para desenvolver trabalhos acadêmicos tendo como uma das principais fontes a jurisprudência. PESQUISA DE JURISPRUDÊNCIA: UMA PESQUISA DE JULGADOS De modo geral, as pesquisas de jurisprudência compartilham as seguintes características: trata-se de uma investigação científica, orientada por metodologia especialmente construída para endereçar perguntas que possam ser respondidas por meio de análise de julgados. Assim como em qualquer trabalho científico, estudos jurisprudenciais são guiados por uma questão de pesquisa. Isso significa que o trabalho como um todo se volta a responder à pergunta lançada e os resultados de pesquisa dialogam diretamente com ela, conferindo delimitação e coerência ao texto. A particularidade das pesquisas jurisprudenciais está no fato de que essa pergunta apenas pode ser respondida por meio da análise de julgados, orientada por uma metodologia de investigação. Dessa forma, pesquisas de jurisprudência se voltam à análise de julgados, o que deve ser tomado de modo bastante amplo. Podemos considerar “julgado” qualquer decisão tomada por autoridade competente que, interpretando o Direito, emite um comando na tentativa de resolver o caso concreto que lhe é apresentado. Aqui há pelo menos dois elementos relevantes nessa noção ampla de julgado. Primeiramente, o julgado é sempre direito aplicado. Julgados não são tomados como exercícios argumentativos “em tese”, mas sempre a partir de um caso concreto e visando à solução do problema que ele apresenta. Por essa razão, a narrativa do julgado – geralmente apresentada no seu relatório – precisa ser adequadamente compreendida para uma boa análise. Essa etapa mostra-se fundamental para a realização do distinguishing, ou seja, o afastamento de precedente que não avaliou elementos relevantes do caso presente. Em segundo lugar, o julgado resulta de uma escolha interpretativa. De modo geral, julgados são direcionados a casos conflitivos, com partes em disputa. Sobre o mesmo conjunto de normas – preceitos da Constituição, leis, decretos, regulamentos, súmulas, cláusulas contratuais etc. – são construídas interpretações diversas que podem levar a resultados diametralmente opostos. O julgado exprime a escolha da autoridade competente da interpretação mais adequada ao caso concreto, que pode ser a apresentada por uma das partes ou não. A maior parte das pesquisas de jurisprudência se concentra em julgados tomados por um colegiado, como os acórdãos do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal deJustiça. Nesses casos, as autoridades podem apresentar diferentes interpretações, ainda que convergentes, razão pela qual a escolha interpretativa resulta da combinação numérica de interpretações em sentido semelhante (maioria). Há votos vencedores e votos vencidos66. No trabalho com a jurisprudência, é extremamente importante que o aluno reconheça as diversas interpretações em jogo. Sobre o que concordam os julgadores? Sobre o que eles discordam? Qual é o voto condutor, ou seja, a autoridade que emitiu a interpretação escolhida no caso concreto? Considerando esses elementos, podemos inferir que os julgados não se limitam apenas aos judiciais. É plenamente viável realizar pesquisa de jurisprudência na esfera administrativa ou controladora, bem como nas entidades privadas que exerçam função pública. No artigo “Agências Reguladoras e o controle da regulação pelo Tribunal de Contas da União”, Vera Monteiro e André Rosilho analisam a jurisprudência do Tribunal de Contas da União sobre a regulação das Agências Reguladoras67. Trata-se de um exemplo de pesquisa de jurisprudência na esfera controladora. Quanto à jurisprudência administrativa, citem-se a pesquisa “Como decide o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional? Relatório de pesquisa”68 e o Observatório do CARF69. A dissertação de mestrado “Discriminação racial publicitária: apontamentos dos julgados do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR)”, de Mônica Bispo de Paulo, pode ser indicada como exemplo de pesquisa de jurisprudência em entidade privada. DICA 3. DICA Exemplos de julgados judiciais: decisões monocráticas; liminares; sentenças; acórdãos; Exemplos de julgados administrativos: atos administrativos em processos contenciosos (aplicação de sanções); atos administrativos em processos competitivos (concursos públicos e licitação, por exemplo); atos administrativos em processos graciosos (concessão de autorizações ou licenças, por exemplo, ou inscrição em benefício social); inquéritos; decisões recursais; decisões concretas, como de desenho de políticas públicas e de agenda regulatória; acordos (termos de ajustamento de conduta ou termos de compromisso, por exemplo); decisões de conciliação ou de mediação administrativa; Exemplos de julgados controladores: acórdãos dos Tribunais de Contas; atos de instauração de inquéritos pelo Ministério Público; termos de ajustamento de conduta; decisões do Conselho Superior do Ministério Público sobre o arquivamento de ação civil pública. É interessante notar que a pesquisa de jurisprudência pode perfeitamente se voltar a um aspecto específico do julgado, sem ser necessário analisar o inteiro teor deste. Tudo dependerá da pergunta de pesquisa. No artigo “O Ementário Jurisprudencial como fonte de pesquisa: uma análise crítica a partir dos dados obtidos no estudo ‘A prática judicial do habeas corpus em Sergipe (1996-2000)’”, Andréa Reginato e Robson Alves desenvolvem a sua pesquisa jurisprudencial exclusivamente por meio de ementas70. QUANDO MINHA PESQUISA PODE SER DESENVOLVIDA POR MEIO DE ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA? A princípio, qualquer problema jurídico pode ser analisado pela perspectiva jurisprudencial. São os objetivos da pesquisa que norteiam a escolha pela pesquisa de jurisprudência no estudo. Se a proposta da investigação científica apenas puder ser endereçada por meio de análise de julgados, então o método de pesquisa jurisprudencial será o mais adequado em comparação com outros métodos, como estudo de caso, análise doutrinária e observação participativa, por exemplo. O que caracteriza um estudo de jurisprudência é o fato de a pergunta de pesquisa apenas poder ser respondida por meio da análise de julgados, como explicado. Isso significa que os julgados correspondem à principal fonte de pesquisa e a metodologia deve, necessariamente, ser construída visando ao trabalho com julgados. A primazia dos julgados nas pesquisas jurisprudenciais pode levar à falsa percepção de que nesse método a única fonte de pesquisa são os julgados. Embora sejam as principais fontes de pesquisa, não se faz uma pesquisa de jurisprudência apenas com julgados. Pelo contrário. Trabalhos mais sofisticados de jurisprudência tendem a apresentar o referencial teórico utilizado, o que geralmente se faz por meio da revisão bibliográfica pertinente ao assunto estudado empiricamente. Trata-se de uma etapa importante para contextualizar a pesquisa, indicando em qual ordem de debates ela se insere e como os seus resultados contribuirão para essa agenda. Também é comum verificarmos nesse referencial teórico a análise de outras pesquisas jurisprudenciais antecedentes ou conexas à desenvolvida. Nesse caso, estabelece-se um diálogo direto entre as pesquisas. O novo estudo pode, por exemplo, atualizar a pesquisa anterior; replicar o método da pesquisa anterior em um novo campo de investigação; ou refinar o método da pesquisa anterior e, assim, questionar os resultados alcançados. Assim como a pesquisa de jurisprudência não é descaracterizada pelo uso de outras fontes que não os julgados – como a doutrina –, o fato de pesquisas se valerem de julgados não as transforma em pesquisas jurisprudenciais. Nos estudos de caso, por exemplo, é comum a narrativa retratar o diálogo institucional com o Poder Judiciário por meio da análise de um julgado. Outras vezes, os julgados são utilizados como exemplificações do problema que se pretende endereçar, como um estudo de teoria do Direito que tome um julgado concreto como exemplo de caso difícil. Aqui, a proposta não é analisar a jurisprudência, mas utilizá-la 3.1. instrumentalmente para melhor compreensão do ponto a ser debatido ou para fins de sensibilização do leitor. Novamente, reforça-se, o estudo de jurisprudência caracteriza-se por ter os julgados como principal fonte de pesquisa. Assim o é porque a pergunta de pesquisa apenas pode ser respondida por meio da análise de julgados. A seguir, veremos alguns exemplos de perguntas de pesquisa que predicam a análise de julgados e, assim, determinam o uso do método de pesquisa de jurisprudência. Análise temática e apresentação de linhas de entendimento Uma das perguntas mais recorrentes em pesquisa de jurisprudência corresponde à compreensão do entendimento do julgador sobre um determinado tema. A proposta de uma análise temática da jurisprudência consiste no exame de conjunto de julgados sobre um determinado tema, geralmente com a proposta de compreender o entendimento do órgão julgador sobre o instituto estudado. PARA SABER MAIS PARA SABER MAIS As pesquisas a seguir se voltaram à compreensão do entendimento sobre um determinado tema à luz da jurisprudência: Nos labirintos do STF: em busca do conceito de serviço público. Uma visão a partir do “caso ECT.” (VOJVODIC, 2009); Panorama atual da responsabilidade do Estado em matéria de serviços públicos na jurisprudência do STF (BLASI, 2010); O artigo 173 da Constituição Federal de 1988 e o regime das empresas estatais (SZYFMAN, 2011); A competência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para legislar sobre licitação e contratação à luz da jurisprudência do STF (CAMARGO, 2014); Racismo ou injúria racial? Como o Tribunal de Justiça de Minas Gerais se posiciona diante dos conflitos raciais (SILVA; RIBEIRO, 2016); A judicialização da saúde e as políticas públicas para fornecimento de medicamentos: uma análise a partir das decisões do TRF da 5ª Região (PASSOS; GOMES, 2017). Pesquisas que se voltam ao entendimento do tratamento jurisprudencial sobre um determinado tema tendem a resultar em textos eminentemente descritivos. Essa descrição de entendimentos pode estar compreendida em uma parcela do órgão julgador, a exemplo das turmas do Superior Tribunal de Justiça, ou mesmo em um determinado julgador. No artigo “A intervenção do Estado na Ordem Econômica (comentários aos votos do Ministro Marco Aurélio em acórdãos do STF)”, por exemplo, Pedro Buck descreve o posicionamento do Ministro Marco Aurélio nos casos apreciados pelo Supremo TribunalFederal em matéria econômica71. Geralmente uma pesquisa dessa natureza demanda significativo número de acórdãos. Não é possível afirmar qual é o entendimento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE com relação às fusões de empresas dotadas de poder econômico se houver a análise de apenas uma ou duas decisões72. Não há um número aprioristicamente fixado sobre a quantidade de julgados que deve ser analisada para pesquisas descritivas da orientação jurisprudencial sobre determinado assunto. Recomenda-se, porém, que, antes da seleção de julgados, o pesquisador 3.2. avalie o total de decisões disponíveis para delimitar a abrangência da pesquisa e, desse modo, apresentar resultados mais fidedignos. Análise dos elementos de decisão Outro enfoque das pesquisas de jurisprudência que se mostra bastante recorrente consiste na análise da argumentação utilizada pelo órgão julgador, ou determinado julgador, para a tomada de decisão. Em uma pergunta: quais são os argumentos considerados para a construção da decisão (judicial ou administrativa)? Geralmente esses tipos de análise não se restringem a apenas enumerar os argumentos empregados no julgamento, mas dão um passo adiante para analisar criticamente o modo pelo qual as decisões são formadas nos órgãos julgadores73. Um pressuposto das pesquisas de jurisprudência que se voltem à análise da argumentação é a qualificação dos argumentos como ratio decidendi ou obiter dictum. Para as finalidades deste capítulo, a ratio decidendi compreende todos os argumentos necessários para se promover a decisão, que podem ser aplicados em casos futuros. Obiter dictum, por sua vez, corresponde aos argumentos, muitas vezes utilizados de forma retórica pelos julgadores, cuja utilização poderia ser suprimida sem que se alterasse o resultado do julgamento analisado74. Tendo em vista essa dicotomia, diversos trabalhos buscam reconhecer quais são os argumentos que levam ao efetivo convencimento do julgador por um ou outro sentido, ou seja, qual é a ratio decidendi. De forma semelhante, mapeiam os argumentos meramente acessórios à decisão definitiva, por vezes considerados retóricos (obiter dictum). Vejamos alguns exemplos de pesquisas que se voltaram à análise dos elementos de decisão: • • • 3.3. • • • • • Argumentação sobre liberdade de expressão: resultados da análise de votos do Ministro Marco Aurélio (PRETZEL, 2007); Homoafetividade e direito: um estudo dos argumentos utilizados pelos ministros do STF ao reconhecerem a união homoafetiva no Brasil (MORAES; CAMINO, 2016); A judicialização das reformas previdenciárias na jurisprudência do STF: um Tribunal amigo do equilíbrio financeiro e atuarial (LIMA; OLIVEIRA, 2017). Análise da dinâmica institucional do órgão julgador Por meio da pesquisa de jurisprudência pode-se depreender aspectos concretos do modo de tomada de decisão pela autoridade competente e, assim, depreender o real funcionamento institucional do órgão julgador. É possível verificar, por exemplo, qual é o tempo que o órgão utiliza para decidir, a formação da pauta, assim como a dinâmica de trabalho no julgamento, em especial nos órgãos colegiados. Veja alguns exemplos de pesquisas de jurisprudência conduzidas com o propósito de analisar a dinâmica institucional do Supremo Tribunal Federal: A audiência pública realizada na ADI 3510-0: a organização e o aproveitamento da primeira audiência pública da história do Supremo Tribunal Federal (LIMA, 2008); Definição de pauta no Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade de emendas constitucionais nos governos FHC e Lula (PONCE, 2009); Processo decisório no Supremo Tribunal Federal: aprofundando o diagnóstico das 11 ilhas (KLAFKE; PRETZEL, 2014); Supremo Tribunal Federal representativo? O impacto das audiências públicas na deliberação (SOMBRA, 2017); Relatórios Supremo em Números, da FGV Direito Rio. • • • 3.4. Caso opte por realizar esse tipo de pesquisa jurisprudencial, é importante que se tome contato com os dados produzidos pelos próprios órgãos julgadores, como se verifica com a edição dos relatórios de atividade que tendem a apresentar informações sistematizadas do funcionamento institucional. Outro exemplo recorrente nas pesquisas de jurisprudência que digam respeito à dinâmica institucional envolvendo o julgador corresponde ao diálogo institucional que ele termina por estabelecer com outras instituições. É o clássico caso, por exemplo, da jurisprudência sobre separação de Poderes entre Executivo e Judiciário. São diversos os exemplos encontrados: Justiciabilidade dos Direitos Sociais: análise de julgados do direito à educação sob o enfoque da capacidade institucional (MARINHO, 2009); Senado Federal e STF: um estudo sobre a suspensão de lei declarada inconstitucional (DALESSIO, 2012); Simetria Federativa e Separação de Poderes: um estudo da jurisprudência do STF no controle de constitucionalidade das Constituições Estaduais (SCHLOBACH, 2014). Análise dos impactos da jurisprudência Em uma vertente consequencialista de análise, tem-se desenvolvido pesquisas de jurisprudência voltadas à mensuração das mais diversas ordens de impacto das decisões, como econômica, orçamentária, concorrencial, de segurança jurídica, de alocação de competências etc. Nessa linha de pesquisa de jurisprudência, o tema da judicialização da saúde é o que recebeu maior atenção e estudos empíricos. Destacando-se os trabalhos de Daniel Wang e Octávio Ferraz75, pesquisas sobre a judicialização da saúde lançam luzes sobre os efeitos do conjunto de decisões favoráveis ao pleito de direito à saúde, retomando a agenda de diálogo institucional com o Executivo. • • 3.5. • • • 3.6. • São outros exemplos: Judiciário e Orçamento Público: considerações sobre o impacto orçamentário de decisões judiciais (VASCONCELOS, 2014); O Judiciário frente aos conflitos fundiários das comunidades quilombolas (CHASIN, 2015). Análise processual da jurisprudência Pela análise processual da jurisprudência, o foco do trabalho concentra-se nos aspectos processuais relacionados aos casos estudados. Dessa maneira, o aluno pode analisar, por exemplo, o modo pelo qual um tribunal utiliza instrumentos processuais específicos, como a concessão de liminares, a repercussão geral, a modulação de efeito no controle de constitucionalidade feito pelo Supremo Tribunal Federal ou mesmo a forma pela qual ocorre o uso de precedentes pelo órgão julgador. Como exemplos, mencionamos os seguintes trabalhos: Recorribilidade diferida de decisões interlocutórias: um estudo de caso no Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região e no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (ESTEVES, 2014); Timing control without docket control: how individual justices shape the Brazilian Supreme’s Court Agenda (ARGUELHES; HARTMANN, 2017); Aspectos controvertidos do filtro da repercussão geral em perspectiva empírica (FILPO; BARBUTO, 2017). Outras aplicações da pesquisa de jurisprudência Além dessas linhas de pesquisa de jurisprudência, que hoje são as mais recorrentes, outros exemplos de aplicação podem ser recolhidos: Pesquisa de jurisprudência para a elucidação ou aplicação de teorias filosóficas com metodologias interdisciplinares. Exemplo: Indícios de descolonialidade na análise crítica do discurso na • • 4. ADPF 186/DF (BRAGATO; COLARES, 2017); Análise da influência recíproca da jurisprudência de cortes nacionais e internacionais. Exemplo: A interação argumentativa entre o Supremo Tribunal Federal e outras cortes (RAMOS; SANTANA; BARROS, 2015); Pesquisas quantitativas de jurisprudência, que recentemente receberam o nome de Jurimetria76. Há diversas linhas de pesquisa de jurisprudência no Brasil, algumas mais experimentadas e outras ainda incipientes. Contudo, é plenamente possível criar novas propostas de análise de julgados conforme o desenho da metodologia. MODELAGEM DA PESQUISA DE JURISPRUDÊNCIA As fases da pesquisa de jurisprudência podem ser esboçadas na ilustração a seguir: Imagem 1 – Fluxo da pesquisa jurisprudencialFonte: elaboração dos autores. 4.1. Para pesquisar a jurisprudência, é importante conhecer os instrumentos desse trabalho, ou seja, o ferramental básico para lidar com julgados. Uma vez que o pesquisador conheça quais são os instrumentos de pesquisa e, principalmente, saiba manuseá-los, ele estará habilitado a desenvolver seus estudos para melhor responder à pergunta-problema com maior propriedade. Dentre os principais instrumentos de pesquisa de jurisprudência, destacam-se: (1) delimitação da pesquisa de jurisprudência; (2) composição da amostra; e (3) análise da amostra. Delimitação da pesquisa de jurisprudência Em grande medida, o sucesso de uma pesquisa de jurisprudência está na adequada delimitação do tema, ou seja, da questão de estudo que será analisada por meio de julgados. Pesquisa de jurisprudência não combina com generalidade. Apenas com um objeto bem delimitado é possível alcançar resultados de pesquisa relevantes e com o devido aprofundamento. Um trabalho que se volte à análise da jurisprudência sobre o direito tributário não é viável: ou faltará fôlego para o pesquisador cotejar todas as decisões administrativas e judiciais, ou o trabalho será marcadamente superficial. Os recortes jurisprudenciais são utilizados na delimitação do tema. Há várias possibilidades de recortes de análise, sendo os mais comuns os recortes institucionais, temáticos, processuais e temporais. Pelo recorte institucional, define-se qual é a instituição decisória cujos julgados serão analisados. Normalmente, as pesquisas se voltam à análise de uma instituição específica, como o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, Tribunais de Justiça, órgãos administrativos etc. Aplicando-se o recorte institucional ao exemplo mencionado, temos a jurisprudência do STF sobre o direito tributário. Porém, essa decisão dependerá da sua pergunta de pesquisa e, aqui, não há uma regra sobre quais ou quantas instituições podem ser selecionadas77. O recorte temático é também muito comum nas pesquisas de jurisprudência, pois corresponde diretamente à delimitação do tema. Por meio do recorte temático, o pesquisador escolhe um tema específico dentre vários possíveis para ser o objeto de análise em seu trabalho. É importante que essa decisão esteja sempre orientada pela pergunta de pesquisa, à qual deve se adequar. Delimitando a proposta de pesquisa anteriormente apresentada a partir dos recortes institucional e temático, podemos ter como abordagem a jurisprudência do STF sobre o princípio da legalidade em matéria tributária. Também pode ser indicado o recorte temporal na delimitação da pesquisa de jurisprudência, ou seja, o período no qual as decisões que serão analisadas foram proferidas. Em geral, quando o assunto envolve matéria constitucional, os recortes temporais tomam como base o período de 1988, quando foi promulgada a vigente Constituição Federal, até a data do estudo. Quando o tema é largamente trabalhado na jurisprudência, os pesquisadores procuram fazer uma delimitação temporal mais enxuta (alguns poucos anos, por exemplo). Ainda é possível fragmentar o recorte temporal, quebrando a linearidade do período contemplado. É o caso de uma pesquisa que queira analisar o emprego do Código de Defesa do Consumidor pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, em que o aluno analisará a jurisprudência nos períodos de 1990 (ano da aprovação do Código), 2000 (10 anos após a edição da Lei n. 8.078/90) e 2010 (20 anos após a edição do CDC e atual estágio de aplicação de seus preceitos). No caso da pesquisa indicada, teríamos a seguinte proposta convencionada com a delimitação temporal: a jurisprudência do STF sobre o princípio da legalidade em matéria tributária no período de 2007 a 2017. O recorte processual, por fim, considera elementos processuais para a delimitação do tema, como o tipo de recurso por meio do qual a questão foi levada à apreciação de um determinado tribunal, a concessão de liminares ou a aplicação de precedentes, por exemplo. Apesar da ampla possibilidade de recortes processuais, geralmente as pesquisas jurisprudenciais se voltam à análise de um instrumento processual específico. Voltando à pesquisa- • • • • parâmetro, teríamos como proposta: a jurisprudência do STF em ações diretas de inconstitucionalidade sobre o princípio da legalidade em matéria tributária no período de 2007 a 2017. Tanto esses quatro recortes quanto outros elegidos pelo pesquisador devem ser devidamente justificados. Se, a princípio, qualquer tipo de recorte é bem-vindo na delimitação do objeto de estudo, essa escolha não deve ser aleatória. É fundamental que o pesquisador justifique o motivo pelo qual analisará uma instituição específica, o recorte temporal, a preferência por analisar um único julgador, a escolha pela análise comparada entre instituições, a proposta de se ater apenas à fundamentação ou à ementa etc. Para tanto, algumas dicas são valiosas: Procure sempre delimitar o seu problema cotejando a pergunta de pesquisa. A congruência entre eles é imprescindível; Faça escolhas que otimizem os resultados de pesquisa. Pesquisas empíricas de jurisprudência são reveladoras e de grande utilidade prática; A delimitação do problema pode considerar recortes que sejam centrais à discussão em curso sobre o tema. Isso permite que a sua pesquisa seja melhor contextualizada; Considere a composição da amostra na delimitação do problema. Aplique o teste fôlego – suficiência. O pesquisador deve buscar combinar em sua pesquisa um número de decisões que ele efetivamente consiga trabalhar (fôlego), mas que também seja adequado para responder à pergunta lançada (suficiência). Fôlego suficiência = proposta irrelevante e factível (acomodação) – Ex.: análise de 2 acórdãos sobre a jurisprudência do STF. Fôlego ↔ suficiência = proposta relevante e factível – Ex.: análise de 80 acórdãos sobre a jurisprudência do STF. 4.2. Composição da amostra Para desenvolver um trabalho de jurisprudência com profundidade – e, assim, retratar da forma mais fidedigna possível a orientação do órgão julgador –, é recomendável que o pesquisador analise todas as decisões identificadas a partir de seus critérios de recorte. Muitas vezes, porém, é inviável trabalhar com todos os julgados (população, para a estatística) referentes a um determinado tema. Frequentemente são encontradas centenas ou milhares de decisões sobre os mais variados temas. Quando esse for o caso, o pesquisador pode adotar algumas estratégias para manter o equilíbrio entre fôlego e suficiência de sua pesquisa. A primeira delas é adicionar novos critérios de recortes jurisprudenciais com o intuito de que o número total de decisões encontradas seja reduzido, como já mencionado. Retomemos o exemplo de pesquisa mencionado no item anterior, cujo recorte é a jurisprudência do STF em ações diretas de constitucionalidade sobre o princípio da legalidade em matéria tributária no período de 2007 a 2017. Caso o número de decisões selecionadas seja muito grande, é possível adicionar um novo recorte, por exemplo, somente analisar os votos proferidos por um determinado ministro ou reduzir a quantidade dos anos a serem pesquisados. Ademais, o pesquisador pode analisar apenas uma parcela de julgados do total identificado (conjunto de indivíduos, em termos estatísticos), ou seja, uma amostra. Para a estatística, a “amostra” consiste em um conjunto de indivíduos retirados de uma população segundo critérios metodológicos para viabilizar o estudo desse conjunto, cujas conclusões serão representativas da população. Em pesquisas de jurisprudência, entretanto, é comum verificar a expressão “amostra” para designar o total de julgados a ser analisado. • • • Um erro comum nas pesquisas de jurisprudência é não haver a indicação da representatividade da amostra (em sentido estatístico) formada com relação ao total de decisões. Para compreender a extensão do estudo proposto,é essencial que o pesquisador indique o quanto do analisado representa a dinâmica decisória do órgão. Essa precaução tanto permite traçar a projeção das conclusões (i.e., definir se elas ficarão adstritas somente aos julgados analisados ou se terão maior extensão para indicar a dinâmica decisória para outros julgados) quanto possibilita evitar certos problemas, como a análise de um número insuficiente de decisões para responder à pergunta-problema (amostra não representativa). Em termos práticos, a amostra é exatamente aquele conjunto de decisões com que o aluno lidará em seu trabalho no formato de pesquisa de jurisprudência. Alguns cuidados devem ser considerados na composição da amostra: A amostra deve ser uma parcela do total de decisões referentes à matéria que se pretenda analisar; A escolha das decisões que irão compor a amostra deve ser norteada pela metodologia, com recortes jurisprudenciais devidamente justificados; As conclusões da pesquisa devem se ater à amostra selecionada, sem generalizações para outros grupos de decisão, caso não tenha sido utilizado um método estatístico para construção da amostra. PARA SABER MAIS 4.3. PARA SABER MAIS Se você pretende desenvolver uma pesquisa quantitativa de jurisprudência – que envolverá uma análise estatística com geração de gráficos e tabelas –, é útil consultar antes um estatístico para auxiliá-lo na escolha dos critérios para composição da amostra. Uma das grandes potencialidades da aproximação do Direito e da Estatística (Jurimetria) nas pesquisas de jurisprudência é permitir a construção organizada de amostras: para analisar uma população, é necessário catalogar apenas x número de julgados, segundo cálculos estatísticos. Caso você não possa contar com a ajuda de um estatístico, recomenda-se fazer recortes na pesquisa de jurisprudência para que a população seja equivalente à amostra, ou seja, para que sejam examinados individualmente todos os casos encontrados sobre um assunto para que não existam problemas de generalizações indevidas a partir da análise de jurisprudência realizada. Para as finalidades do presente capítulo, adotaremos o conceito de amostra em sentido comum como utilizado em grande parte das pesquisas de jurisprudência. Desse modo, “amostra” significa o conjunto total de decisões selecionadas pelo pesquisador e que serão examinadas em seu trabalho. Não há um número mínimo e máximo de decisões que precisam ser recolhidas para a composição de uma amostra: novamente, essa escolha dependerá do teste fôlego – suficiência. Aplicação dos recortes jurisprudenciais e formação da amostra Toda e qualquer pesquisa de jurisprudência pressupõe o acesso a um banco de dados de julgados. Em geral, as repartições públicas, inclusive as judiciais, organizam os seus julgados em acervo físico e sistema eletrônico. Assim, a busca por julgados pode se dar presencial ou remotamente. Presencialmente, o pesquisador se dirige ao órgão para recolher fisicamente as decisões. Cada repartição dispõe de autonomia administrativa para organizar o modo de acesso a esses documentos; se não sigilosos, e não arquivados, o acesso físico aos processos é mandatório. 4.3.1. 4.3.2. O modo mais usual de pesquisa de jurisprudência, porém, é o remoto, com ênfase para a pesquisa eletrônica de jurisprudência. O acesso remoto aos julgados pode se dar fundamentalmente por três meios: (i) consulta por encomenda; (ii) pesquisa eletrônica pelo sistema disponibilizado em página da internet; e (iii) pedido de acesso à informação pública. Consulta e pedido de pesquisa de jurisprudência É comum os Tribunais disponibilizarem em suas páginas de internet canais de comunicação para que qualquer cidadão solicite consultas de jurisprudência. Por meio de pedidos, geralmente apresentados com o preenchimento de formulários eletrônicos, o pesquisador recebe do setor especializado em pesquisa de jurisprudência o conjunto de julgados pertinentes à solicitação. Caso não encontre um julgado específico, o pesquisador pode se valer do mesmo canal para acessar o seu inteiro teor. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, a página solicitação de pesquisa apresenta formulário eletrônico e e-mail para contato (jurisprudência@STF.jus.br)78. O pedido de pesquisa de jurisprudência é sempre recomendado em paralelo às pesquisas autônomas conduzidas pelo pesquisador, presencialmente ou não. Trata-se de um reforço na composição da amostra, tornando-a o mais completa possível. Pesquisa eletrônica pela internet Praticamente todas as pesquisas de jurisprudência atuais são desenvolvidas com base em amostra composta por busca eletrônica nos bancos de dados de julgados disponibilizados pelos Tribunais. Na linha da harmonização de jurisprudência, os Tribunais têm trabalhado na sistematização de seus entendimentos pela seleção criteriosa de julgados. Assim, eles não se valem apenas de um banco de dados de jurisprudência, mas podem se valer de vários – todos eles úteis na mailto:jurisprud%C3%AAncia@STF.jus.br composição da amostra. No caso do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, além do banco de dados “bruto” de jurisprudência, o Tribunal ainda disponibiliza os seguintes sistemas em Pesquisas Prontas: Casos Notórios79 e Pesquisas por Ramo do Direito80. Outra relevante fonte para a composição da amostra corresponde aos informativos de jurisprudência ou boletins de jurisprudência, geralmente elaborados pelos Tribunais para apresentar aos interessados os principais casos decididos no período contemplado. A página de internet do Supremo Tribunal Federal permite desenvolver extensa pesquisa dos informativos para colher os acórdãos81. Em qualquer busca eletrônica de jurisprudência, é fundamental que se conheça antes o banco de dados. Todos os julgados estão de fato disponibilizados? Caso não estejam, qual é o critério de escolha dos julgados que aparecerão na ocorrência em pesquisa eletrônica? Qual é a representatividade dos julgados considerando toda a atividade julgadora da instituição? Essas são perguntas de extrema relevância não apenas porque permitem compor uma amostra com maior rigor, mas especialmente porque indicam o quanto os resultados de pesquisa podem ser generalizados ou de fato representam o posicionamento do Tribunal. Recomendamos que o pesquisador aplique as matrizes de análise dos bancos de dados eletrônicos elaborados por Fabia Fernandes Carvalho e outros82 previamente à composição da amostra. Para realizar a busca pelas decisões, o aluno deve delimitar o tema para estabelecer os critérios de busca mais adequados à composição da amostra. Se retomarmos a proposta de análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em ações diretas de inconstitucionalidade sobre o princípio da legalidade em matéria tributária no período de 2007 a 2017, em pesquisa realizada em 16 de maio de 2018, os critérios de busca contemplados podem ser os seguintes: Tabela 1 – Critérios possíveis para recorte de pesquisa sobre princípio da legalidade em matéria tributária • • • • • • Argumento de pesquisa Quantidade Direito Tributário 8.988 acórdãos Direito Tributário e legalidade 294 acórdãos Direito Tributário e legalidade / 1º-1-2007 a 31-12-2017 166 acórdãos Direito Tributário e legalidade / 1º-1-2000 a 31-12-2010 / ADI 40 acórdãos Fonte: elaboração dos autores. Para facilitar a sua pesquisa de jurisprudência, diversos sites disponibilizam alguns facilitadores, como os operadores booleanos e os sistemas de comunicação com os tribunais. Os operadores booleanos permitem uma pesquisa mais refinada da jurisprudência. Trata-se de termos lógicos que, quando inseridos no campo “pesquisa livre de jurisprudência”, resgatam os julgados de modo mais específico. Vejamos exemplos de operadores booleanos e suas correspondentes funcionalidades83: E – procura todas as palavras desejadas em qualquer lugar do documento. OU – procura qualquer uma das palavras especificadas. ADJ – busca palavras aproximadas, na mesma ordem colocada na expressão de busca. NÃO – recupera documentos que contenhama primeira, mas não a segunda palavra. PROX – procura palavras aproximadas em qualquer ordem. $ – substitui qualquer parte da palavra desejada (prefixo, radical ou sufixo). A seguir estão os resultados da pesquisa de jurisprudência com uso de operadores booleanos (acesso realizado em 16 de maio de 2018). Tabela 2 – Pesquisa com uso de operadores booleanos Argumento de pesquisa QuantidadeArgumento de pesquisa Quantidade Direito Tributário legalidade 294 acórdãos Direito Tributário e legalidade 2.941 acórdãos Direito Tributário ou legalidade 15.332 acórdãos Direito Tributário e (legalidade ou anterioridade) 405 acórdãos Direito adj Tributário e legalidade 202 acórdãos Direito Tributário e legalidade não anterioridade 260 acórdãos Direito Tributário prox legalidade 13 acórdãos Direito Tributário e legal$ 778 acórdãos Fonte: elaboração dos autores. Um exemplo simples, mas esclarecedor sobre o aprimoramento dinâmico da metodologia, são as constantes modificações nos parâmetros de busca em bancos de dados de tribunais, realizadas durante a pesquisa para refinar a coleta de julgados. Não é raro que tais modificações se deem por tentativa e erro, pelo menos num primeiro momento. Também é bastante comum que a incidência reiterada de julgados indesejados promova mudanças nos parâmetros, de modo a filtrar a busca ainda na fase inicial do levantamento. Em outras palavras, o trabalho empírico de jurisprudência implica – quase sempre – constantes ajustes nos critérios de busca das decisões, uma vez que novas palavras-chave e termos centrais são encontrados a partir da leitura do material selecionado. Observa-se que é muito comum que tais ajustes ocorram ao longo da atividade de pesquisa, e não na fase que precede o início dos trabalhos de investigação, operando com uma forma de equalização empírica dos parâmetros, ou seja, praticamente impossível de ser realizada na fase de planejamento, salvo se informada por experiências anteriores. Especialmente em pesquisas quantitativas, o aperfeiçoamento dos 4.3.3. 4.4. parâmetros é muito importante para a identificação de julgados, devendo constar da metodologia. Para tanto, uma estratégia importante é fazer testes com os operadores de pesquisa disponibilizados pelos tribunais e, em seguida, ler o inteiro teor de algumas decisões judiciais para saber se há novas palavras a serem utilizadas nas buscas, de modo a tornar a amostra mais completa e fidedigna. Acesso aos julgados pela Lei de Acesso à Informação Pública Residualmente, caso o pesquisador não consiga acessar os julgados pelas vias presencial e eletrônica, sempre resta a alternativa de acionar a Lei de Acesso à Informação Pública (Lei n. 12.527/2011) para solicitar os documentos não disponibilizados. Apenas os documentos classificados como sigilosos e aqueles referentes a dados pessoais não poderão ser disponibilizados ao pesquisador. A segunda hipótese dificilmente se verificaria em uma pesquisa de jurisprudência, sendo a primeira uma possibilidade real. Recomenda-se que o pesquisador busque primeiramente esgotar as vias regulares de composição da amostra para, apenas se frustrados esses mecanismos, fazer um pedido via acesso à informação pública. Isso porque a Lei de Acesso à Informação Pública fixa um processo formal e sujeita a autoridade competente à responsabilidade caso descumpra a Lei ou a cumpra de modo insuficiente. Ademais, na medida em que a Lei fixa prazo de acesso à informação, pedidos dessa natureza impactam significativamente as rotinas administrativas da repartição pública e a própria condução da pesquisa, tendo em vista que o pesquisador não sabe de antemão se e quando a informação será disponibilizada. Variáveis de pesquisa • • • Após a composição da amostra, o pesquisador passa à fase de leitura e análise dos julgados. Como apontado, é natural que ao longo desse processo ele refine a sua amostra pela leitura de seu inteiro teor. Por um lado, alguns julgados selecionados podem não se relacionar diretamente com o escopo do projeto, razão pela qual deverão ser excluídos. Por outro lado, alguns importantes precedentes referenciados nas decisões analisadas, mas não recolhidos na fase de pesquisa nas bases eletrônicas de jurisprudência, merecem ser integrados à amostra. A amostra inicial é, portanto, meramente indicativa. O mais importante é que o pesquisador mantenha um registro das inserções e exclusões com a devida justificativa. A leitura dos julgados deve ser orientada pela pergunta de pesquisa, que deve ser desmembrada em variáveis de pesquisa. Assim, as variáveis de pesquisa são tradução da metodologia. Ao lidar com as variáveis de pesquisa, o grande desafio lançado é criar categorias que sejam suficientes e adequadas para a análise proposta sem que sejam simples ou complexas demais a ponto de inviabilizar conclusões relevantes de pesquisa. De modo simples, pode ser considerado variável de pesquisa todo elemento que será analisado nela. Para fins de organização, é fundamental que o aluno estabeleça as variáveis antes de iniciar a rodada de leitura mais atenta das decisões. Isso o auxiliará na otimização do tempo de trabalho (imagine ter de reler todo o material porque você não analisou um elemento fundamental à pesquisa?), bem como na leitura mais focada, pois você já sabe de antemão o que procura. Se o escopo da pesquisa for verificar quais são os critérios adotados pelos Ministros do STF para o julgamento que envolva empresas estrangeiras radicadas no Brasil, provavelmente os seguintes elementos serão extraídos dos acórdãos: partes envolvidas; data de julgamento; resultado do julgamento (favorável ou não às empresas); • • • • • 5. citação de norma nos votos analisados; citação de precedente nos votos analisados; citação de princípio nos votos analisados; citação de doutrina nos votos analisados; principais linhas argumentativas desenvolvidas pelos Ministros. Outros elementos ainda podem ser considerados para desenvolver a investigação proposta. Apesar da indicação de que as variáveis fundamentais da pesquisa devem ser conhecidas com antecedência, é bastante natural que no curso da leitura e análise sejam feitos pontuais ajustes: algumas variáveis consideradas relevantes em um primeiro momento praticamente não foram exploradas nas decisões, enquanto outras que não foram indicadas a princípio são essenciais à descrição do comportamento do órgão julgador. Não há qualquer falha metodológica na supressão ou no acréscimo, respectivamente, de variáveis na pesquisa. Para mais detalhes sobre como selecionar e organizar as informações relativas à análise de jurisprudência, ver o Capítulo 13. COMO APRESENTAR OS RESULTADOS DA PESQUISA DE JURISPRUDÊNCIA? Após a leitura e análise dos julgados da amostra, o pesquisador é capaz de alcançar resultados de pesquisa que dialogam diretamente com o problema colocado e ajudam a compreender o fenômeno investigado. Esses resultados precisam ser transmitidos do modo mais claro, objetivo e instigante possível. A estrutura de um trabalho que se volte à análise de jurisprudência é bastante flexível, permitindo que o aluno sistematize informações e valorize achados de acordo com o modo pelo qual pretende apresentar as suas conclusões. Recomenda-se que toda e qualquer pesquisa de jurisprudência tenha os seguintes elementos estruturais: 1. 2. 3. 5.1. Introdução – em que o objeto da investigação científica será claramente colocado, com indicação da pergunta de pesquisa e da hipótese, bem como outros trabalhos teóricos ou empíricos que já trataram do mesmo objeto; Metodologia – em que o pesquisador apresenta a estratégia desenhada para responder à pergunta de pesquisa por meio da análise da jurisprudência. Um bom método de trabalho com a jurisprudência considera dois aspectos: (i) a composição da amostra e (ii) a análise do material; Conclusão – em que o pesquisador confirma ou refuta a hipótese lançada na introdução com base nas análises sobre a jurisprudência. Esse alinhamento com a introdução confere coesão ao trabalho.Se esses três elementos são obrigatórios, todo o resto é livre para que o pesquisador modele a estrutura que permita a melhor compreensão possível de seus achados de pesquisa. Devido às peculiaridades da pesquisa de jurisprudência, passa-se a analisar mais detidamente a apresentação do método e dos achados de pesquisa. Apresentação do método de pesquisa O método de pesquisa em jurisprudência não difere significativamente dos demais tipos de trabalho acadêmico. A metodologia de uma pesquisa de jurisprudência deve conter, em resumo, os seguintes elementos, como qualquer outro trabalho acadêmico: delimitação do tema; pergunta- problema; hipótese; revisão de literatura; e método para responder à questão, para confirmar ou refutar a hipótese. Porém, em razão da especialidade desse tipo de pesquisa, alguns cuidados devem ser tomados. A metodologia de uma pesquisa de jurisprudência deve conter, ainda, os seguintes elementos que lhe são peculiares: (i) formação do conjunto de casos a serem examinados (amostra) e (ii) método para responder à questão que tome por base as decisões contempladas. • • • • • • Um conjunto de decisões bem identificado permite que o aluno constate relevantes tendências do órgão julgador, alcance conclusões úteis aos debates teóricos e trace um panorama sobre a prática do instituto jurídico analisado. Enfim, a composição da amostra é uma das etapas mais significativas de uma pesquisa de jurisprudência. Por essa razão, a metodologia de qualquer pesquisa de jurisprudência deve contemplar o modo de composição da amostra, com os seguintes elementos: indicação do site em que a pesquisa foi realizada, bem como a data, o que delimita o total de decisões processadas, pois os órgãos julgadores tendem a alimentar os seus bancos de dados periodicamente; apresentação dos critérios de busca utilizados e respectivas ocorrências; justificativa das exclusões de decisões; indicação do total do conjunto de casos que serão analisados. Além da descrição da composição da amostra, outra nota característica das pesquisas de jurisprudência corresponde à análise da pergunta-problema por meio das decisões examinadas. Qualquer que seja a questão lançada nas pesquisas de jurisprudência, ela deve ser respondida por meio da análise das decisões coletadas – ainda que haja a combinação de outras fontes de pesquisa, como a doutrina e a norma, a jurisprudência assume um papel central nesse tipo de pesquisa. É no campo da metodologia que o aluno apresentará: o método de análise da jurisprudência, isto é, a forma pela qual o repertório de decisões será analisado, tendo em vista o escopo da pesquisa; e o método estatístico eventualmente utilizado na pesquisa. Vejamos um exemplo prático: FORMAÇÃO DO BANCO DE DADOS FORMAÇÃO DO BANCO DE DADOS Para seleção dos julgados do STF que inte- ressam ao escopo da pesquisa, foi utilizada a própria base eletrônica de jurisprudência do Supremo, disponível no domínio www.stf.jus.br. A pesquisa de jurisprudência foi realizada no mês de julho de 2015 e percorreu os campos “pesquisa livre de jurisprudência” e “pesquisas favoritas”. – Campo de pesquisa. – Especificação do campo de pesquisa. – Refinamento da pesquisa – campos específicos de pesquisa. No campo “pesquisa livre de jurisprudência”, utilizou-se o seguinte critério de busca: responsabilidade serviço público terceiro não tributário não trabalhista. Como marco temporal, fixou-se o período de 5-10-1988 a 20-7-2015, e especificou-se como resultado da busca apenas acórdãos e repercussão geral. Foram obtidos 41 acórdãos e uma repercussão geral. Após uma primeira leitura sistemática dessa amostra preliminar, foram excluídos os acórdãos que não versavam sobre o tema de investigação, pois tratavam de responsabilidade tributária, responsabilidade trabalhista, crime de responsabilidade ou a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Feita essa triagem, restaram 29 acórdãos e uma repercussão geral. – Palavras-chave. – Delimitação temporal. – Resultado parcial. – Justificativa das exclusões. Na sequência, procedeu-se à análise do campo “pesquisas favoritas”. Em “pesquisas por ramo do Direito” e “Direito Administrativo”, constatou-se no ramo “Direito Administrativo – Responsabilidade Civil do Estado” a entrada “Responsabilidade Civil / Objetiva do Estado e Terceiro Não Usuário do Serviço”, com seis julgados. Foram integrados ao banco de dados quatro acórdãos, excluídos dois já selecionados na fase anterior, totalizando 33 acórdãos e uma repercussão geral. – Não é obrigatório, mas sempre se mostra de grande auxílio. Não é preciso colocar no projeto. FORMAÇÃO DO BANCO DE DADOS A fim de deixar o banco de dados o mais completo possível e representativo da realidade decisória do Supremo, foi enviada uma solicitação de pesquisa de jurisprudência ao STF, que, em resposta, enviou 57 julgados. Excluídas as repetições e considerando o recorte da pesquisa, foram acrescidos 7 julgados à amostra. – Refinamento do material de pesquisa. Apesar de algumas decisões monocráticas e questões de ordem terem sido, incidentalmente, analisadas, o estudo se centrou nas decisões colegiadas (acórdãos) e na repercussão geral. Os informativos (semanais e por tema) produzidos pelo STF foram consultados com a finalidade de verificar se algum acórdão relevante não foi integrado ao banco de dados, mas todos foram contemplados. – Banco de dados final. – Trata-se de um banco de dados representativo e de manuseio factível pelo aluno. O banco de dados final conta, portanto, com 40 acórdãos e uma repercussão geral. – Bibliografia de julgados ou tabela com os acórdãos relacionados. ANÁLISE DO MATERIAL Os acórdãos selecionados foram lidos na íntegra e analisados de modo a depreender as seguintes informações: dados objetivos (data de julgamento, relatoria e decisão final), especificação do prestador do serviço público (se agente público ou delegatário), análise do caso concreto, orientação do STF (ratio decidendi) e os fatores decisórios (texto constitucional, precedentes, doutrina, peculiaridades do caso concreto etc.). Essas informações foram organizadas em fichas de leitura, as quais foram posteriormente ordenadas por assunto, em ordem decrescente de quantidade de casos. O texto final do trabalho apresenta os resultados da pesquisa que confirmam ou refutam a hipótese da pesquisa. – Mecanismos de análise dos julgados. – Fichas de leitura ou tabelas de análise. Tais elementos, que devem constar na metodologia de pesquisas de jurisprudência, permitem que o leitor tenha maior clareza sobre o desenvolvimento do estudo e, nessa medida, sobre as escolhas feitas pelo 5.2. leitor. Tendo contato com essas informações, outros pesquisadores poderão reaplicar a pesquisa e atualizá-la, expandir os resultados alcançados ou observar os resultados em outra perspectiva. O nível de detalhamento do método depende de diversos fatores: complexidade da pesquisa, relevância dentro do escopo do trabalho, importância dos resultados etc. O adequado dimensionamento dos detalhes da pesquisa de jurisprudência é, antes de tudo, um exercício de bom senso, devendo-se levar em conta a própria natureza do trabalho. Em todo caso, o processo de refinamento deve ser sistematizado na metodologia em sua forma aprimorada (aquela que leva à obtenção dos dados refinados), explicando o motivo das escolhas, mas sempre com o cuidado de ser claro e não tumultuar o texto com explicações alongadas com o único objetivo de produzir volume. Qualquer que seja o caso, a apresentação do método deve ser precisa e clara, de modo que sua lógica seja apreciável pelo interlocutor. Apresentação dos resultados de pesquisa A realização da pesquisa pressupõe o trabalho com dados que, no caso das pesquisas de jurisprudência, apresentam-se sob forma de decisões, votos ou acórdãos. Durante o processo de pesquisa, esses dados passam por diversos tratamentos, de modo a refinar a informação até se tornar material de análise. Esse processo envolve tarefas de filtragem e seleção de julgados,classificação, isolamento de trechos, identificação de posicionamentos etc. Tudo isso se desenvolve numa constante atividade de aperfeiçoamento, em que os dados obtidos retroalimentam o método de pesquisa. Ao final, nota- se a transformação de um dado bruto, tal qual extraído dos repositórios de jurisprudência, em um dado reduzido, pronto para ser analisado. Os dados que devem ser apresentados no trabalho são aqueles utilizados pelo pesquisador para tirar conclusões, ou seja, os dados refinados. Salvo se houver justificativa para tanto, os dados brutos não devem ser apresentados, principalmente como elementos textuais. Além das longas citações, deve-se evitar a reprodução de ementas ou longos trechos da decisão no corpo do texto. Ocorre que as ementas e os trechos isolados de decisões não são autoexplicativos e muitas vezes não sustentam o argumento trabalhado no texto. Assim, fica a recomendação de refletir sobre a citação de passagens dos votos e, principalmente, da transcrição de ementas: uma boa pesquisa de jurisprudência é aquela que apresenta interessante raciocínio a respeito do material coletado. A escolha pela elaboração de uma pesquisa quantitativa ou qualitativa de jurisprudência traz consequências para a forma de apresentação dos resultados obtidos com o estudo. Nos estudos quantitativos, o aluno terá de discriminar na metodologia os métodos de agrupamento de dados e, se for o caso, as ferramentas estatísticas adotadas. Além disso, terá de apresentar tabelas ou gráficos gerados a partir dos dados da pesquisa. Nas pesquisas qualitativas, o pesquisador deve sistematizar as principais linhas argumentativas desenvolvidas nas decisões analisadas e eventualmente criticá-las. Novamente, o modo de apresentação dos resultados da pesquisa relaciona-se diretamente com o escopo da pesquisa de jurisprudência. Muito embora não exista um formato predeterminado, os dois modelos a seguir são recorrentes em trabalhos de jurisprudência, podendo ser tomados como ponto de partida para o desenho de sua própria estrutura: Modelo 1 – aglutinação de julgados Essa estrutura é comum em trabalhos de jurisprudência com uma amostra relativamente grande e cuja principal finalidade da pesquisa de jurisprudência seja descritiva, demonstrando as correntes de entendimento sobre um determinado tema, as tendências processuais de certo tipo de ação ou as respostas para certos problemas jurídicos. Os julgados são sistematizados em correntes de entendimento ou em outras variáveis, podendo ser abertos itens específicos para casos paradigmáticos ou peculiares que não permitam a sua classificação. Itens específicos também podem ser abertos para indicar o entendimento de um julgador específico. TÍTULO 1. Introdução 2. Metodologia 3. Contextualização do tema objeto de pesquisa 4. A jurisprudência do Tribunal X sobre o tema 4.1. Corrente A 4.2. Corrente B 4.3. O entendimento do julgador X 4.4. Sobre o quê os julgadores divergem? 5. O caso paradigmático X 6. Análise crítica da jurisprudência 7. Considerações finais Modelo 2 – análise de jurisprudência em profundidade Essa estrutura é preferida em situações de amostra pequena e com casos paradigmáticos, permitindo que sejam analisados com profundidade. Cada caso é examinado individualmente, em que são recuperados seus fatos e os argumentos das partes e dos julgadores. Ao final, faz-se uma análise crítica comparando-se os casos e apontando inconsistências e tendências de julgamento para casos futuros. TÍTULO 1. Introdução 2. Metodologia 3. Contextualização do tema objeto de pesquisa 4. O Caso A 5. O Caso B 6. O Caso C 7. A jurisprudência a partir do julgamento do Caso C 8. Análise crítica da jurisprudência 9. Considerações finais Referências ALMEIDA, Fabricio Antonio Cardim. Interpretação constitucional e os princípios da Ordem Econômica: debate teórico e estudo empírico da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). 2009. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. ARGUELHES, Diego Werneck; HARTMANN, Ivar Alberto Martins. Timing control without docket control: how individual justices shape the Brazilian Supreme’s Court Agenda. Journal of Law and Courts, p. 105-140, 2017. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2018. BLASI, Marcos Chucralla Moherdaui. Panorama atual da responsabilidade do Estado em matéria de serviços públicos na jurisprudência do STF. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, v. 8, n. 31, p. 91-125, out. 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2018. BRAGATO, Fernanda Frizzo; COLARES, Virginia. Indícios de descolonialidade na análise crítica do discurso na ADPF 186/DF. Revista Direito GV, v. 13, n. 3, p. 949-980, 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 13.150, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil, Brasília, 16 mar. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. https://www.journals.uchicago.edu/doi/pdfplus/10.1086/690195 http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/37554 http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/73337/70473 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm BUCK, Pedro. A intervenção do Estado na Ordem Econômica (comentários aos votos do Ministro Marco Aurélio em acórdãos do STF). Revista de Direito Público da Economia, p. 213-244, 2006. BUCK, Pedro. Fidelidade, álibi ou traição: ressignificação e perspectivas sobre o comportamento decisório do STF. 2015. 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O primeiro desses novos capítulos oferece um panorama sobre as características da realização de pesquisas empíricas quantitativas na área do Direito, indicando possíveis pontos de partida para o incremento, nessa seara, da nossa literatura científico-jurídica (capítulo 28). O segundo capítulo inédito abarca a proteção de dados pessoais na atividade de pesquisa científica (capítulo 29). Ele parte de estudos de casos para ilustrar boas práticas e elencar recomendações para a realização de investigações conformes ao direito da proteção de dados pessoais, cujas normas têm gerado muitas dúvidas em instituições de ensino e pesquisa. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – Lei n. 13.709/2018), que impacta a condução de atividades de pesquisa jurídica no país, em vigor desde 2021, acarretou mais responsabilidades e cuidados por parte de pesquisadores, pesquisadoras e órgãos de pesquisa que tratam dados pessoais nesse tipo de atividade acadêmica. Trata-se de elemento imprescindível para que graduandos(as), pós-graduandos(as) e acadêmicos possam atuar com plena segurança jurídica em seus afazeres científicos. Com isso, estamos seguros de que esta terceira edição traz as reflexões e balizas mais atualizadas sobre métodos e técnicas para pesquisa e redação científica no campo jurídico. O caráter instrumental deste manual, bem como sua estrutura, foram preservados das edições anteriores, com a finalidade de manter a praticidade no momento de fornecer roteiros práticos de ação e sanar dúvidas na elaboração de monografias, dissertações e teses. Esperamos, com isso, que este manual de referência para acadêmicos e acadêmicas de Direito continue sendo parte dos programas de ensino e pesquisa de todo o Brasil, oferecendo um guia alinhado a questões contemporâneas e auxiliando na elaboração qualificada da produção científica nacional. Boas pesquisas! Setembro, 2022. M.F. e R. M. R. Q. APRESENTAÇÃO À 2ª EDIÇÃO Este livro deveria ser uma segunda edição de nossa obra anterior Metodologia Jurídica: um roteiro prático para trabalhos de conclusão de curso (Série GVlaw, Ed. Saraiva, 2012). O primeiro livro foi escrito com um propósito bastante específico: servir como manual de pesquisa jurídica para alunos de pós-graduação lato sensu. Esse objetivo determinou as características fundamentais da obra: textos curtos, eminentemente práticos, voltados às dificuldades cotidianas de pesquisadoras e pesquisadores com baixa experiência acadêmica e pouca disponibilidade de tempo (porque, geralmente, dividem seu tempo de dedicação à pós-graduação com carreira e família). A recepção da obra, porém, foi muito além do que esperávamos: em pouco tempo tivemos notícia de que o livro se tornara leitura obrigatória não apenas em cursos de especialização, mas também de graduação e de pós-graduação stricto sensu em todo o Brasil. Acreditamos que esse resultado deveu-se tanto às suas características editoriais únicas (simplicidade, viés prático, apelo visual dos textos e quadros), quanto, e principalmente, à qualidade das autoras e autores que contribuíram com capítulos excepcionais dentro de seus temas de expertise. A ampla aceitação daquele livro nos animou a publicar uma segunda edição, melhorada no que fosse possível. Contudo, sete anos nos separam desde a primeira publicação e, ao longo desse período, o direito mudou muito, em diversos aspectos. Enfrentar novos paradigmas, ocasionados pelo impacto da tecnologia no modo como se pesquisa e se faz o direito, trouxe a necessidade de revisar métodos, técnicas e temas para atender a um mundo que está em constante transformação. Após muito tempo de trabalho, notamos que as melhoras haviam sido tantas que não faria sentido a publicação da nova obra como segunda edição. Daí a opção por um novo livro, mais ambicioso que o anterior: ele pretende ser um manual de referência para pesquisas para qualquer nível acadêmico no direito – inclusive o mestrado profissional, objeto de um capítulo próprio (Capítulo 3). Tantas mudanças recomendavam, ainda, a publicação deste novo produto fora de sua coleção editorial de origem. Os editores, felizmente, concordaram com nossa decisão. Além das muitas mudanças em capítulos que estavam no livro anterior, alguns deles inteiramente reescritos – como o capítulo de pesquisa na internet, agora mais voltado a técnicas aplicadas de busca em vários portais acadêmicos –, esta nova obra traz importantes acréscimos. Além do já mencionado capítulo sobre a pesquisa no mestrado profissional, há um capítulo inteiramente dedicado à integridade acadêmica na pesquisa e na redação jurídica, no qual o plágio e os conflitos de interesse são tratados com a devida importância. Há também capítulos novos sobre métodos e técnicas para leitura de textos teóricos complexos, bem como sobre os métodos do estudo de caso e da observação etnográfica para pesquisa jurídica. O capítulo sobre a pesquisa em Direito e Economia foi totalmente reformulado. Finalmente, incluímos uma seção inteiramente nova (Parte 4) com capítulos que tratam de agendas contemporâneas da pesquisa jurídica. Eles apresentam caminhos iniciais para leituras preliminares e identificação de temas de investigação em áreas nas quais alunas e alunos têm mostrado crescente interesse acadêmico, tanto na graduação quanto na pós- graduação. A despeito das muitas mudanças, preservamos o caráter prático e instrumental dos textos, que foi tão bem recebido no livro anterior. Preservamos também a organicidade da obra, que não é apenas uma coletânea de textos avulsos sobre metodologia da pesquisa jurídica, mas um todo coerente, com começo, meio e fim. Acreditamos que manuais de metodologia de pesquisa devem se mostrar úteis e resolver, do modo mais direto possível, as dúvidas mais prementes de pesquisadoras e pesquisadores. Estamos certos de que este novo livro é ainda melhor do que o anterior em cumprir esses objetivos. Boa leitura, e boas pesquisas! São Paulo, julho de 2019. R.M.R.Q. e M.F. PARTE 1 INTRODUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS 1. 1 INTRODUÇÃO RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ1 MARINA FEFERBAUM2 UM ROTEIRO PRÁTICO PARA UMA DISCIPLINA TEÓRICA Metodologia Científica é uma disciplina teórica e normativa. Ela informa a um pesquisador como ele deve proceder à análise de seu objeto de pesquisa para que o faça de maneira cientificamente válida. Diz ainda como os resultados da pesquisa devem ser registrados em um relatório final (dissertação de mestrado, tese de doutorado etc.). O objetivo de quem realiza uma pesquisa acadêmica é produzir um texto cientificamente respeitável. Nesse sentido, não faz diferença se o tema do trabalho é algo muito teórico (“Qual o conceito de validade jurídica em Hart?”) ou mais prático (“Qual a diferença entre monopólio estatal e serviços prestados em caráter exclusivo pelo Estado?”), pois se o seu autor pretende que ele seja reconhecido como um trabalho científico, então deve escrevê-lo observando certas regras que a comunidade acadêmica estabelece como pedigrees de trabalhos dessa natureza. Essas regras amparam-se em fundamentos filosóficos que a disciplina de Metodologia Científica sintetiza, organiza e expõe. Por esse motivo, tanto as disciplinas de metodologia científica que são obrigatoriamente oferecidas em cursos de graduação e pós-graduação em Direito quanto a bibliografia fundamental indicada para esses cursos dedicam muita atenção a temas que interessam bastante a quem tenhaLima e; RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes. Racismo ou injúria racial? Como o Tribunal de Justiça de Minas Gerais se posiciona diante dos conflitos raciais. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 3, n. 1, p. 54-78, 2016. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIREITO PÚBLICO (SBDP). Escola de Formação Pública. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIREITO PÚBLICO (SBDP). Jurisdição. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. SOMBRA, Thiago Luís Santos. Supremo Tribunal Federal representativo? O impacto das audiências públicas na deliberação. Revista Direito GV, v. 13, n. 1, p. 236-273, 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. SOUZA, André Lucas Delgado. Ministro Moreira Alves e uma possível influência sobre seus pares no exame das causas de inelegibilidade. 2014. 83f. Trabalho de Conclusão de Curso – Escola de Formação Pública, Sociedade Brasileira de Direito Público, São Paulo, 2014. Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2018. SUNDFELD, Carlos Ari. Princípio é preguiça? In: MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto; BARBIERI, Catariana (org.). Direito e interpretação – racionalidades e instituições. São Paulo: Saraiva, 2011. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/68917/66521 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Casos notórios. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo STF. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pesquisa de jurisprudência. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pesquisas por ramo do direito. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Solicitação de pesquisa. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2018. SZYFMAN, Daniel. O artigo 173 da Constituição Federal de 1988 e o regime das empresas estatais na leitura do STF. In: PEIXOTO, Daniel Monteiro; PRADO, Roberta (org.). Direito societário – reorganizações empresariais – aspectos societários e tributários. São Paulo: Saraiva, 2011. VASCONCELOS, Natália Pires de. 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São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017. 1. 7 A PESQUISA LEGISLATIVA: FONTES, CAUTELAS E ALTERNATIVAS À ABORDAGEM TRADICIONAL FELIPE DE PAULA84 LUIZ GUILHERME MENDES DE PAIVA85 INTRODUÇÃO O presente capítulo almeja apresentar e discutir possibilidades e alternativas de concepção de pesquisas que tenham como objeto central a lei, o ato normativo em sentido amplo ou a própria legislação em seu conjunto. Como fonte primária do direito, é natural que o pesquisador se veja às voltas com atos normativos em seu trabalho cotidiano. É esperado que pesquisadores do direito conheçam, compreendam e saibam mobilizar esse elemento fundamental ao seu trabalho. No entanto, a legislação é usualmente estudada e avaliada dentro de recortes bastante tradicionais que, embora necessários à pesquisa e à prática jurídica, nem de longe esgotam as possibilidades de investigação. O texto convencional que tem na lei seu objeto principal discute as interpretações possíveis, as hipóteses de aplicação legal. Quando muito, avalia a relação entre diferentes espécies normativas com vistas a testar constitucionalidade e legalidade. Porém, há uma vasta gama de arranjos adicionais de pesquisa que podem ter na legislação seu alvo principal. 2. 2.1. Nosso objetivo, aqui, é explorar tais possibilidades com as cautelas pertinentes, a demonstrar quão rico e amplo é o campo de pesquisas legislativas. Em abordagem exploratória, não desejamos apresentar exaustivamente as fontes legislativa de pesquisa, já apresentadas em outro capítulo da presente obra, nem debater em detalhes a metodologia ou o mérito de uma ou outra possibilidade de pesquisa aventada. A meta é instigar a curiosidade por recortes de pesquisa diferentes dos tradicionais, com a indicação do instrumental mínimo necessário para tais opções. O capítulo está assim estruturado: primeiro, iremos revisitar brevemente os principais bancos de dados de legislação brasileiros, trazidos no capítulo relativo a pesquisas na internet, com vistas a adicionar elementos e cautelas relevantes. Depois, iremos apontar outras modalidades de pesquisa, justificando sua relevância e indicando ferramentas úteis à sua concepção. Tópico conclusivo encerrará o capítulo. PESQUISA DE LEGISLAÇÃO Fontes O item 3 do Capítulo 11 deste livro, de autoria de Rafael Mafei Rabelo Queiroz, apresenta elementos importantes sobre fontes de pesquisa em legislação na internet, como a página de legislação do Planalto na internet, que é extremamente útil e oferece informações legislativas básicas, como a redação das leis em vigor, decretos regulamentares e referências cruzadas entre normas. E também que as informações sobre a tramitação legislativa de leis aprovadas, projetos de lei em tramitação e mesmo versões digitalizadas de documentos históricos, como diários, anais legislativos, discursos e afins, podem ser localizadas nos sítios das casas legislativas na internet. No âmbito federal, são úteis os portais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Nos âmbitos estadual e municipal, naturalmente, o acesso a informações legislativas varia bastante. Todas as Assembleias Legislativas possuem portais de legislação mais ou menos completos, mas, geralmente, o acesso a normas municipais é mais difícil. Fontes oficiais ou públicas são fundamentais para a pesquisa de legislação. Há, entretanto, outras importantesfontes de informação legislativa para a investigação acadêmica. A primeira delas, o serviço LexML, também já foi mencionada por Rafael Mafei Rabelo Queiroz no Capítulo 11: “um portal que pretende reunir informações jurídicas de múltiplos tipos”. Como nem todos os órgãos estatais estão vinculados à plataforma, infelizmente não é possível recorrer somente a ela para buscar informações mais detalhadas. Outra fonte privada de informação legislativa é o portal JusBrasil86, que também pretende reunir conteúdos normativos, jurisprudenciais e noticiosos em um só lugar. Contudo, nem todas as pesquisas são gratuitas. Existem, também, bibliotecas virtuais temáticas que pretendem aglutinar em um único espaço a legislação referente a determinado assunto ou área do direito. A Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da USP, por exemplo, congrega importantes documentos legislativos nacionais e internacionais sobre a matéria87. Buscas rápidas encontram portais em profusão que contêm, por exemplo, compilados de legislação tributária ou trabalhista. Alguns repositórios setoriais com tais características são confiáveis, mas sempre devem ser utilizados sob as cautelas indicadas a seguir e, quando necessário, validados à luz das publicações oficiais. Finalmente, existem ainda as compilações físicas de legislação – o famoso vade mecum, campeão de vendas em livrarias jurídicas. Tais compilados são bastante úteis para o dia a dia do estudante e para a prática jurídica, mas possuem relevância em boa medida limitada ao pesquisador. Primeiro, com exceção de alguns compilados setoriais – como o vade mecum do serviço social, por exemplo –, tais aglutinações raramente trazem atos normativos infralegais relevantes para pesquisas mais densas. Segundo, tais obras são obviamente datadas e, em que pese algumas permitam 2.2. atualizações on-line, seu benefício talvez seja baixo diante da quantidade de informações já disponíveis na rede. DICA É possível fazer pedidos de informações sobre leis, decretos, portarias e afins a órgãos públicos via Lei de Acesso à Informação (LAI)88. Qualquer pessoa física ou jurídica pode solicitar informações públicas a órgãos da administração pública direta ou indireta, dos três Poderes da União, estados e municípios, inclusive aos Tribunais de Contas e Ministério Público. Os portais dos órgãos públicos na internet devem conter link para o serviço de informações, onde as solicitações podem ser enviadas. Caso a informação solicitada não esteja imediatamente disponível, o órgão público deve enviar resposta em até 20 dias. No âmbito do Governo Federal, por exemplo, as solicitações via LAI são dirigidas ao portal . Cuidados O pesquisador que tem na legislação seu objeto de pesquisa possui ressalvas a observar e cuidados a tomar, particularmente sobre a confiabilidade, a completude e a atualização do banco de dados que se está a pesquisar. O texto da norma está correto? Comecemos pelo menos problemático. Como citado, boa parte dos acadêmicos de direito utilizam o site da Presidência da República como fonte oficial de informações legislativas federais. Embora bastante completo, atualizado diariamente, com sistema push de envio de novidades razoavelmente seguro e, especialmente nos últimos anos, bastante confiável, é preciso ter cautela sobre os textos ali dispostos. O site é fonte pública de informação, mas não substitui o repositório oficial onde os textos são originalmente publicados, qual seja, o Diário Oficial da União (DOU)89. Já houve casos em que a transcrição da norma para o site trouxe algum tipo de incorreção – uma transcrição meramente parcial, por exemplo. Além disso, em ressalva bastante importante, leis e outras normas podem ter a sua redação alterada por uma revogação parcial, ou mesmo ter sua eficácia suspensa por força de decisões judiciais – declaração liminar ou definitiva de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. As referências a tais fatos nos textos do site da Presidência, sinalizados por meio de textos rasurados (exemplo), são realizadas manualmente e, por mais atentos e bem treinados que sejam os servidores que realizam tal tarefa, estão sujeitas a equívocos. A propósito, há situações em que a definição do que foi de fato revogado não é trivial. A não revogação expressa e específica de normas e o uso da conhecida fórmula “revogam-se as disposições em contrário”, embora não aceita pela Lei Complementar n. 95/98 e pelo Decreto n. 9.191/201790, ainda são recorrentes. Há, em suma, boa margem para interpretações divergentes acerca daquilo que foi de fato revogado. O mesmo vale para eventual decisão do Supremo Tribunal Federal que, eventualmente, module efeitos ao declarar uma norma inconstitucional. Em suma, o trabalho de assegurar a validade de determinado texto e de detectar alterações em leis e outros textos normativos exige cautela do pesquisador. É fundamental verificar a integridade e a vigência dos textos e, especialmente, validar eventuais revogações na norma que efetivamente revogou a lei anterior. O site da Presidência da República pode e deve ser utilizado para pesquisas básicas, mas suas informações merecem, sempre, dupla checagem. Para tanto, uma das alternativas possíveis é utilizar a data da norma em análise e pesquisá-la no site oficial da Imprensa Nacional, responsável pelo DOU91. A busca ainda pode ser feita por termo em um determinado período de tempo. Destaque-se que os atos normativos gerais são publicados na Seção 1 do DOU: Imagem 1 – Pesquisa no site da Imprensa Oficial Fonte: Imprensa Oficial. A norma de fato existe ou existiu? É válida e vigente? O conjunto de dados é completo e confiável? Também é preciso ter em conta que, apesar do ótimo trabalho de oferta pública de legislação histórica feita pela área jurídica da Casa Civil da Presidência da República92, nem toda legislação antiga, ainda que potencialmente vigente, está devidamente indexada e publicizada pela plataforma. Ou seja: não constar do site da Presidência não equivale a afirmar que a norma não exista ou que esteja revogada. A atenção diante da (in)completude de bancos de dados digitais deve ser redobrada quando partimos para repositórios estaduais e municipais. Inúmeras cidades brasileiras sequer possuem repositório eletrônico de legislação, ou ao menos um repositório confiável, completo e atualizado. Embora a disponibilidade de dados legislativos estaduais e municipais tenha sido significativamente incrementada como efeito inesperado da pandemia, que incentivou a digitalização de informações sobre legislação e processo 3. legislativo, muitas vezes o pesquisador só conseguirá determinado ato normativo entrando em contato com a Prefeitura – por telefone ou e-mail –, e precisará de muito cuidado para confirmar sua validade e vigência. Cruzar as informações oferecidas pelo Poder Executivo com as informações ofertadas pelo Poder Legislativo – Assembleias Legislativas ou Câmaras Municipais, a depender do caso – é estratégia útil. O pesquisador também enfrenta dificuldades se seu objeto de pesquisa disser respeito a atos infralegais – especialmente portarias, instruções normativas e resoluções. A qualidade e a confiabilidade dos dados ofertados variam muito conforme os diferentes órgãos e entidades, seja da Administração Direta, seja da Administração Indireta. A segurança quanto à completude e à atualização de determinados bancos de dados é baixa, embora por certo existam repositórios mais confiáveis do que outros – as páginas das agências reguladoras, por exemplo, regra geral, trazem suas decisões de caráter normativo93. Seja como for, também nesses casos validações via outras fontes são essenciais. Finalmente, a precaução precisa ser ainda maior no caso de mobilização de legislação estrangeira. Embora haja bastante cuidado com a publicização e a simplificação do acesso à legislação em vários países – em especial em países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou que possuem política regulatóriadesenvolvida –, é importante confirmar a validade de atos normativos ao menos com outra fonte de informação94. OUTRAS MODALIDADES DE PESQUISA Qualquer pesquisador do direito deve conhecer sua fonte primária – a lei –, embora, como visto, a tarefa nem sempre seja simples diante dos diferentes estágios de transparência dos entes federativos brasileiros e da crescente profusão regulatória que marca vários setores do direito. Como dissemos, é razoável e esperado que o pesquisador, treinado essencialmente 3.1. em interpretação e aplicação, consiga manejar o ato normativo com vistas a examinar hipóteses de aplicação, possíveis interpretações e avaliações de sua constitucionalidade, legalidade e coerência diante do sistema normativo. Tal atitude perante o ato normativo é, em boa medida, replicada nas pesquisas legislativas. Seja por motivos teórico-filosóficos, seja por motivos puramente instrumentais, a escolha pelo exame da lei posta e pronta é sistemática e recorrente. Ainda é bastante baixa a participação do acadêmico de direito no processo de criação ou de análise da efetividade de determinada norma jurídica, ou a realização de investigações que tenham a fase pré-normativa como elemento-chave95. Não obstante, o campo de pesquisa legislativa é muito mais rico do que isso. A criação de normas jurídicas é um fenômeno complexo da relação entre Direito e poder, “o momento exato da conversão de certas preferências individuais em coletivas, como fins a serem atingidos” (FARIA, 1977, p. 20). O contexto fático, de tempo e de espaço, que envolve a criação, a justificação, a alteração, a aplicação e a produção de efeitos de determinada norma é essencial ao conhecimento efetivo e à análise de nosso material de trabalho. O investigador tem diante de si, portanto, um enorme campo de estudo, que contempla diversas questões interessantes no âmbito da produção legislativa. Vamos apresentar aqui, brevemente, algumas possibilidades de investigação nessa área. Processo legislativo Se as leis – em sentido amplo – são a concretização de um poder de escolha do Estado para impor determinadas regras de comportamento para a sociedade, o processo pelo qual esse poder de escolha se concretiza em norma é objeto de estudo relevante para o pesquisador do direito. Como as leis são de fato produzidas? Como produzir melhores leis? A ferramenta básica para o estudo do processo legislativo são, naturalmente, os portais das casas legislativas na internet. A maior parte deles contém ferramentas de busca das diferentes proposições em tramitação ou já tramitadas. Veja, por exemplo, a funcionalidade de pesquisa simplificada no site do Senado Federal: Imagem 2 – Pesquisa rápida no Senado Federal Fonte: Senado Federal, com destaques dos autores. A pesquisa rápida é útil quando já se sabe o que se quer buscar: caso já tenha o número do projeto de lei, por exemplo. Mas pode ser necessário fazer pesquisas mais amplas, por assunto e em um determinado período de tempo – para saber, por exemplo, quantos projetos de lei foram apresentados sobre o tema “aluguéis” na última legislatura. Para tanto, pode-se utilizar a pesquisa simples para pesquisar o termo, e depois filtrar pelo período desejado por meio das opções dos menus laterais: Imagem 3 – Pesquisa simples no Senado Federal Fonte: Senado Federal, Atividade Legislativa (com destaques dos autores). Existem muitos filtros que podem ser usados na pesquisa: fase de tramitação, data da apresentação, natureza da matéria (projeto de lei, proposta de emenda constitucional, decreto legislativo etc.). Vários portais legislativos, inclusive o do Senado e o da Câmara dos Deputados, também permitem a consulta a pesquisas prontas sobre temas frequentes, bem como apresentam links para temas históricos. Há, em suma, uma infinidade de recursos a serem explorados pelo pesquisador. Imagem 4 – Pesquisa na Câmara dos Deputados Fonte: Câmara dos Deputados, Propostas Legislativas (com destaques dos autores). Ao observar as informações de tramitação, pode-se verificar com facilidade as diversas fases pelas quais passa uma determinada proposição legislativa. Desde a apresentação da proposta, até a análise pelas comissões temáticas, apresentação de relatórios e substitutivos, realização de audiências públicas e deliberações. Uma série de documentos é produzida, passando a compor o dossiê legislativo daquela demanda. Se antigamente eram necessários meses de levantamento e muita boa vontade para obter as informações de tramitação de um projeto de lei, hoje é possível ter acesso a tudo em segundos: Imagem 5 – Informações sobre tramitação de um projeto de lei no site da Câmara dos Deputados Fonte: Câmara dos Deputados. Cada tópico pode ser analisado com detalhes pelo pesquisador: quem propôs as demandas, sob qual justificativa, qual a forma jurídica escolhida; se houve apresentação de emendas, quem as propôs, quais as controvérsias do processo deliberativo ou do mérito da questão. Também é possível investigar eventuais dados apresentados para fundamentar o debate parlamentar, qual o grau de abertura do processo deliberativo para a participação social e tantos outros temas que compõem boa agenda de pesquisa. O estudo do processo legislativo pode ainda ser formal – ter como objeto o cumprimento e/ou a necessidade de ajustes do conjunto de regras que regulam a criação de outras normas – ou material – buscar compreender os motivos da elaboração de determinada norma jurídica, bem como os conflitos e as visões distintas que se confrontaram durante o processo de formulação e discussão. Sob a lente formal, é possível perguntar se o procedimento constitucional para se aprovar uma emenda ou uma lei complementar tem sido seguido, ou como estão construídos os regimentos internos das casas legislativas quanto à participação de terceiros no processo. Os interstícios temporais regimentalmente previstos são observados em casos de matérias relevantes para o governo? E assim por diante. Sob a chave material, é possível perquirir quais diagnósticos foram utilizados para a elaboração da nova lei geral de proteção de dados, por exemplo, e qual o prognóstico esperado. De que forma argumentos jurídicos e extrajurídicos moldaram o debate? Quais foram contemplados no texto final da norma? Ainda, é possível tentar compreender como a dinâmica política-legislativa afeta o resultado legislativo final. Será que a menção em lei a um regulamento posterior decorreu de uma efetiva crença no papel do decreto regulamentador, ou foi espécie de solução salomônica para destravar determinado entrave político e permitir que o projeto de lei avançasse, postergando debates difíceis? E assim por diante96. 3.2. Em suma, o estudo do processo legislativo carrega em si uma infinidade de agendas de pesquisa. Também é ferramenta poderosa para aumentar a profundidade do estudo de outros temas, sob outros métodos, apresentados neste livro. Justificativas Decorrência das pesquisas em processo legislativo, um dos instrumentos mais importantes para seu estudo está na justificativa apresentada pela autoridade responsável pela proposta normativa. Todo projeto de lei apresentado por um parlamentar deve conter uma justificativa, em que o autor explicita as razões que o levaram a fazer aquela proposta. O pesquisador logo perceberá que a qualidade das justificativas varia muito: no mais das vezes, à primeira vista, tais textos parecem não querer dizer muita coisa. Contudo, isso já é, em si, um elemento de análise – como adiantado anteriormente, quais são as verdadeiras razões por trás de uma determinada proposta? Há diagnóstico efetivo? Considerando o que é efetivamente apresentado como fundamento, a proposta legislativa se presta a alcançar o objetivo a que se propõe? Sabe-se aonde quer chegar? Na última década, vários estudos se concentraram na explicação do fenômeno da legislação para além dos problemas formais, incluindo aí investigações sobre os motivos da lei. Um exemplo de análise de processo legislativo em sua dimensão maisampla é o trabalho de Machado et al. (2010), Atividade legislativa e obstáculos à inovação em matéria penal no Brasil, que compõe a série de estudos Pensando o Direito, da hoje extinta Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. A pesquisa analisou as justificativas de vários projetos de lei então em trâmite no Congresso Nacional para tentar compreender as razões invocadas pelos legisladores para propor, com frequência, aumento de penas ou criação de novos tipos penais. Estudos semelhantes podem ser desenvolvidos para qualquer área do direito, e não apenas no âmbito do Poder Legislativo. 3.3. Outro exemplo de análise de justificativas para a produção legislativa está em obra de autor deste capítulo, em que se analisa a aprovação da Lei dos Crimes Hediondos e as sucessivas propostas para sua alteração posterior (PAIVA, 2007). Utilizou-se como fonte primária as justificativas parlamentares para contextualizar as demandas com outros aspectos culturais, sociais e midiáticos que influenciam o processo legislativo. Histórico legislativo A evolução de um determinado instituto jurídico ao longo do tempo também é ferramenta poderosa para auxiliar na sua interpretação. A análise do histórico legislativo pode ser considerada uma espécie de comparação (v. item 3.7 a seguir) entre textos jurídicos separados não geograficamente, mas no tempo. O estudo do histórico legislativo de determinada matéria pode se prestar à análise da origem e do contexto histórico de leis e regras hoje vigentes, ou das diferenças e semelhanças entre normas aplicáveis em períodos históricos distintos. Também pode colocar sob escrutínio o contexto social, cultural ou econômico em que formas de regulação foram propostas ou alteradas. Trata-se de técnica que permite investigar a evolução de conceitos jurídicos, a ampliação – ou redução – do reconhecimento de direitos, a construção de políticas públicas, entre outros. Em suma, trata-se de buscar conhecer o contexto de surgimento de determinada lei ou regra jurídica, cujos fundamentos, interpretações ou aplicações podem ser muito diferentes dos atuais. Um ótimo exemplo de pesquisa histórica no âmbito legislativo é o trabalho de Queiroz (2017), em que o autor contribuiu para o intenso debate sobre o conceito de crime de responsabilidade na esteira do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. O trabalho partiu da análise não apenas da doutrina brasileira e do direito comparado, mas especialmente de pareceres jurídicos e propostas legislativas no parlamento brasileiro desde o início do século XX, colocando a norma em seu devido 3.4. contexto histórico. Também em Paiva (2015) buscou-se contextualizar o atual estágio da política criminal brasileira a partir de trabalhos legislativos e de comissões parlamentares montadas desde a edição do Código Penal de 1940 e, especialmente, a partir dos amplos debates na Assembleia Nacional Constituinte (1986-1988). Capacidade normativa do Executivo Embora para parte da doutrina tradicional isso ainda seja analisado sob a ótica de funções potencialmente atípicas, ou até mesmo como espécie de resquício autoritário, o fato é que o Poder Executivo brasileiro é extremamente relevante e atuante no processo de elaboração de nossa legislação. Em que pese o bom debate sobre o peso efetivo de tais índices, parece fora de dúvida que as altíssimas taxas de dominância e de sucesso do Executivo no Brasil demonstram sua proeminência nesse processo97. Nesse sentido, a edição de decretos, de projetos de lei e, em especial, de medidas provisórias faz com que a participação formal e informal do Executivo no processo legislativo e o processo de elaboração normativa dentro do próprio Executivo sejam agendas interessantes – e ainda pouco exploradas – de pesquisa pelo viés do direito. As Exposições de Motivos do Executivo (ou a falta delas)98, por exemplo, ainda não foram devidamente tratadas pela academia. Um outro eixo de análise da produção normativa do Executivo se coloca em nível infralegal, especialmente quando falamos de entidades da administração indireta, como as agências reguladoras, ou de conselhos com algum grau de capacidade normativa. Como e sob quais premissas de fato e de direito uma agência edita um novo regramento? Como são definidas as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama ou do Conselho Nacional de Trânsito – Contran, que afetam diretamente a vida do cidadão e dos agentes econômicos? 3.5. Por fim, lembre-se de que o Poder Judiciário também tem iniciativa legislativa (cf., por exemplo, o art. 96, II, da CF), e que seus membros participam, inclusive informalmente, de processos de avaliação e emenda de leis. Há, aí, importante possibilidade de investigação ainda incipiente. Demais estopins legislativos A fagulha que dá início a um processo de construção normativa não ocorre apenas por decisão de um agente do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou, em situações específicas, do Poder Judiciário. Na prática, inúmeros outros atores e situa ções podem dar ensejo ao debate sobre a criação de uma nova norma. A compreen são de tais motivações ou de tais mecanismos é excelente agenda de investigação. Pense-se, por exemplo, no papel da alta burocracia dos Ministérios que, ao avaliarem determinada política pública instituída por lei, detectam a necessidade de ajustes; o mesmo vale para a chamada burocracia de nível de rua, composta por servidores que atuam na ponta para a implementação de políticas, cuja sensibilidade para detectar entraves regulatórios e propor soluções é enorme. Entender quais normas derivam desse tipo de ocorrência, e como funcionam tais correias de transmissão até que a norma seja ajustada, é assunto interessantíssimo para a exata compreensão de um regulamento. O papel de grupos de interesse, de movimentos sociais e de lobistas também importa ao direito. Qual o real motor de determinada lei que concede incentivos fiscais a determinado setor econômico? Qual o impacto que uma Conferência Nacional de Saúde gera na produção normativa relativa ao seu setor? Quanto aos atos normativos em si, importa conhecer o que outrora qualificamos como DNA da lei99; quanto ao desenho institucional que cerca tal produção, em agenda bastante ligada aos estudos sobre processo legislativo formal e informal, importa conhecer e pensar no desenvolvimento de mecanismos que ofereçam maior transparência, 3.6. 3.7. efetividade e rastreabilidade à participação de interessados na produção normativa. Há ainda outras ocorrências que podem dar ensejo à produção de uma lei. Eventos midiáticos relevantes, como o assassinato da atriz Daniela Peres ou o vazamento de fotos íntimas de atores, tragédias como a da Boate Kiss ou, mais recentemente, a de Brumadinho, têm impacto direto na produção normativa e são campo fértil de pesquisa100. Lei e Desenvolvimento Uma outra abordagem possível às investigações que envolvem pesquisas legislativas, que tangencia pesquisas sobre direito e políticas públicas, tratada no Capítulo 19, reside no papel positivo ou negativo que o direito, em geral, e o ato normativo, em especial, podem ter para o (não) desenvolvimento de determinados países. Se um dos inúmeros papéis contemporâneos do ato normativo é o de estruturar arranjos institucionais que permitam a boa execução de políticas públicas (COUTINHO, 2013a, 2013b), compreender se determinado ato ou conjunto de atos normativos foi ou é capaz de estabelecê-los é agenda relevante, estudada, usualmente, sob a chave teórica de Direito e Políticas Públicas101, ou sob as premissas do Direito e Desenvolvimento102. Sob essa lógica, é possível discutir se a legislação de determinado setor é entrave ou fomento ao desenvolvimento econômico ou social do país, ou se eventual transplante de modelo de países desenvolvidos produziu ou não os efeitos desejados quando implementado no contexto de países em desenvolvimento. Legislação comparada Outra vertente bastante comum de pesquisa legislativa é a comparação entre legislações aplicáveis emâmbitos diferentes. Por exemplo, a comparação entre o imposto sobre mercadorias em Pernambuco e Alagoas, ou sobre empresas públicas no Brasil e na França, ou sobre como a União Europeia e os EUA tratam o tema de privacidade na internet. A tradição de estudo de direito comparado é bastante antiga. Há séculos, doutrinadores se propõem a classificar diferentes legislações em sistemas jurídicos baseados em suas semelhanças e diferenças: quais são as fontes do direito, qual o papel da jurisprudência, quais os trâmites necessários para a regulação de determinado aspecto da vida social. Mas a importância da comparação legislativa aumentou consideravelmente não apenas na pesquisa doutrinária, mas na prática jurídica. Afinal, com o aprofundamento da globalização dos mercados, do trânsito de pessoas e de capitais, do estabelecimento de entidades públicas e privadas que não se limitam ao território de um estado nacional, conhecer o funcionamento de outros sistemas jurídicos tornou-se imperativo. Ao iniciar um projeto de pesquisa legislativa comparada, é preciso responder a três perguntas básicas: (a) por que comparar? (b) o que comparar? (c) como comparar? A resposta a essas perguntas irá determinar quais são os melhores métodos a se utilizar, e os resultados que se devem esperar do trabalho de investigação. A primeira questão, por que comparar?, não é tão trivial quanto pode parecer. Ela nos obriga a formular uma questão de pesquisa, a definir o objeto de estudo. Qual é o problema que a comparação entre leis, normas e sistemas jurídicos distintos pode ajudar a resolver? Esse objetivo pode ser melhorar a qualidade das normas jurídicas locais (“qual a melhor estratégia jurídica para o combate à lavagem de dinheiro?”), buscar a melhor solução para um problema jurídico concreto (“como outras cidades estão regulando o uso de bicicletas e patinetes elétricos?”) ou harmonizar aspectos regulatórios (“como é a tributação de dividendos nos países do Mercosul?”). A segunda questão, o que comparar?, decorre da resposta que se dê para a primeira, e também é mais complexa do que aparenta. É preciso ter em conta que leis e outras normas jurídicas devem ser analisadas no contexto de sua criação e aplicação. Como demonstram sistematicamente • • • 3.8. estudos da área de Direito e Desenvolvimento, por exemplo, a mera importação de modelos jurídicos de outros países sem a devida consideração de contexto é equívoco bastante frequente de legisladores, e também o pode ser no caso de pesquisadores. A comparação entre uma lei criminal brasileira e uma dos Estados Unidos, por exemplo, não fará sentido sem a consideração de que o sistema jurídico brasileiro está fundado na tradição do direito romano, em que a lei é a fonte primária do direito, em contraste com o direito anglo-saxão – e, ademais, que a legislação criminal nos EUA é basicamente de competência estadual. Para responder à terceira questão, como comparar?, o pesquisador pode fazer uso de uma série de métodos, isoladamente ou em conjunto103: Método funcional: identificar o problema social concreto e analisar as maneiras com que são solucionadas em diferentes jurisdições – por exemplo, como diferentes países regulam a possibilidade de greve de controladores aéreos; Método analítico: analisar conceitos jurídicos específicos em diferentes sistemas jurídicos e verificar as semelhanças e diferenças entre eles – como o “direito à moradia” é compreendido em diferentes jurisdições, por exemplo; Método estrutural: analisar a estrutura jurídica relacionada ao aspecto que se deseja estudar, relacionado à organização da atividade econômica ou, em nível mais amplo, ao próprio estado – por exemplo, como se estrutura o regime de proteção à propriedade intelectual na China e na Rússia. Para algumas questões de pesquisa, pode ser útil verificar a existência de trabalhos ou relatórios de organismos internacionais que tenham se debruçado sobre o tema. Há muitas iniciativas de “legislação modelo” sobre os diversos assuntos, em geral precedidas de trabalhos aprofundados de direito comparado104. Política legislativo-regulatória Finalmente, outra frente de pesquisas sobre legislação, que tem avançado bastante ao longo dos últimos 25 anos, diz respeito não à legislação pertinente a determinado setor ou área do direito, mas sim ao próprio modo e forma de legislar, bem como à qualidade da legislação ou da regulação produzida. Pesquisas nessa linha inserem-se no que se chama de legisprudência, política legislativa ou, em sua nomenclatura mais comum na Europa, política regulatória. Também há quem chame tal campo de pesquisas de legística, em que pese defendamos que tal definição também pode ser vista como espécie de pesquisa legislativa mais voltada ao texto normativo em si (legística formal ou técnica legislativa). Para que não se perca a amplitude necessária ao debate no Brasil, preferimos qualificá-la como política legislativo-regulatória105. A política legislativo-regulatória é espécie de meta política pública voltada ao aperfeiçoamento do processo de elaboração de instrumentos normativos e, fundamentalmente, ao incremento da qualidade das normas. É meta política porque almeja, ao fim e ao cabo, melhorar o desenho normativo que embala outras políticas. Ganhou peso especialmente a partir de políticas adotadas pela OCDE em 1995/1997 e avança fortemente em diferentes países (embora sem exata convergência)106. PARA SABER MAIS PARA SABER MAIS Para ter contato com os documentos centrais e entender as diferentes dimensões do que chamamos de política regulatória ou política legislativo-regulatória, vale navegar pelos seguintes sites: OCDE: . União Europeia: . No Brasil, cf. os recentes Decretos n. 9.191/2017 e n. 9.203/2017, bem como o Guia da Política de Governança Pública () e as Diretrizes Gerais e Guia Orientativo para Elaboração de Análise de Impacto Regulatório (). Diferentes tipos de pesquisa podem ser realizados aqui. Sob a ótica do texto normativo propriamente dito (drafting), ou da qualidade das previsões normativas em si, há agenda de pesquisa focada nos elementos tradicionais voltados à melhoria redacional, como a busca por clareza, objetividade e acessibilidade de textos. Há também debates contemporâneos mais sofisticados acerca da simplificação da linguagem e da chamada plain language, bem como quanto ao uso de elementos da economia comportamental – como a visibilidade de pontos-chave da norma (salience) – para obtenção de melhores resultados. Considerando que a atenção é um bem escasso, seria possível e desejável dar destaque a itens específicos de um ato normativo de forma a garantir seu cumprimento? Seria possível usar imagens e fluxogramas em um texto normativo, ou como seu anexo, de forma a ampliar a inteligibilidade de determinada ordem legal? Em agenda bastante cara à regulação, também é possível se debruçar sobre a mecânica de causa e efeito entre ação normativa e resultados práticos. O foco recai no como fazer, e no debate sobre qual alternativa regulatória é mais conveniente a determinado tipo de indução comportamental que se pretenda. A ideia de comando e controle, como sanções administrativas ou penais diante de um comportamento que o http://www.oecd.org/regreform/ legislador quer reduzir, são sempre a melhor opção? Quando devo usar em uma lei incentivos econômicos, ou o redesenho de uma matriz de responsabilidades? Dar transparência a uma lista de devedores pode ser mais efetivo do que simplesmente cobrá-los por cartas e ofícios? Tal eixo está particularmente em profusão no mundo e também no Brasil, com os recentes avanços relativos à governança pública e à adoção da chamada análise de impacto regulatório por agências reguladoras e mesmo por órgãos da administração direta. Debates sobreas metodologias específicas que envolvem a produção de uma norma (análises custo- benefício, custo-efetividade, governança baseada no risco etc.) também representam um bom campo de estudos, além de área fértil a pesquisas empíricas. Análises ex post dos efeitos e dos impactos de uma lei – no Brasil agora chamadas de análise de resultado regulatório – também avançam no mundo107. Um outro eixo, já tangenciado, diz respeito a debates sobre participação, abertura e transparência no processo de elaboração normativa. Entender o grau ótimo de participação nos processos, os ganhos e os limites da abertura à participação dos agentes interessados no tema, ou mesmo o momento e a forma de dar transparência a processos deliberativos com vistas a uma nova norma estão na mesa. Como pode ocorrer a democratização do processo legislativo ou regulatório? Modelos participativos estáticos – cidadão envia contribuições ao Estado – e dinâmicos – cidadão interage diretamente com cidadão e Estado ao longo do processo de elaboração normativa – devem ser usados em quais circunstâncias? Mecanismos de crowdsourcing, como o que foi supostamente usado na elaboração da Constituição islandesa, são de fato positivos108? Qual a real eficácia de processos de consultas e audiências pública em agências reguladoras? Por último, temas interessantíssimos e ainda pouco estudados no detalhe no Brasil, com exceção daqueles que estudam ou trabalham com política regulatória em específico, relativos ao gerenciamento e atualização 4. do estoque regulatório como um todo, podem ser mobilizados – tal assunto tem crescido, especialmente, no âmbito das agências reguladores brasileiras, que avançam em normas e métodos de controle de seus estoques normativos109. As consolidações normativas com vistas à simplificação de textos ao cidadão, que almejam aglutinar em uma única norma dezenas de normas anteriores que se sobrepõem ou que se contradizem, estão previstas em nossa legislação há mais de 20 anos, mas ainda são pouco utilizadas110. O próprio controle de estoque regulatório, com regras como, por exemplo, o one-in, one-out ou o one in, two out, avança fora do país e merece tratamento acadêmico específico111. CONCLUSÃO A pesquisa jurídica sobre legislação é ferramenta essencial para o estudo do Direito. Para além da consulta às fontes oficiais de normas jurídicas – que, como visto, exige cautelas – e das tradicionais abordagens relativas a hipóteses de aplicação e de interpretação, há amplo campo investigativo que nos permite qualificar trabalhos, fugindo de abordagens meramente formais ou tradicionais. De um lado, é fundamental observar mais atentamente as regras que permeiam o processo legislativo, suas formalidades, regras formais e informais, justificativas, atores e resultados. De outro, também importa colocar a lupa em momentos anteriores e posteriores à elaboração da norma: compreender aspectos políticos, sociológicos, econômicos e tantos outros que se encontram no processo de criação normativa, nos diagnósticos e prognósticos, em sua aplicação e em sua avaliação de efeitos e resultados. Ainda, o próprio conjunto de atos normativos é, em si, interessante objeto de pesquisa, como demonstram as diferentes possibilidades de investigação trazidas pela chamada política legislativo-regulatória. O campo é de interesse profundo e crescente na academia jurídica. Os tópicos aqui descritos não esgotam o tema. Definitivamente, há larga agenda de pesquisa a ser desenvolvida. Referências BRASIL. Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Centro de Documentação. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Estudos e notas da Assessoria Técnica. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Proposições legislativas. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Congresso. Senado Federal. Atividade legislativa. Pesquisa de matérias. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Congresso. Senado Federal. Estudos legislativos. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Controladoria-Geral da União. Portal da Transparência. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2018. BRASIL. Diretrizes Gerais e Guia Orientativo para Elaboração de Análise de Impacto Regulatório. Brasília, Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República, 2018. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas https://www.camara.leg.br/busca-portal/proposicoes/pesquisa-simplificada https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/homeestudoslegislativos http://www.portaldatransparencia.gov.br/ BRASIL. Guia da Política de Governança Pública. Brasília, Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República, 2018. BRASIL. Guia Orientativo para Elaboração de Avaliação de Resultado Regulatório – ARR. Brasília, Governo Federal/UERJ-REG, 2022. BRASIL. Imprensa Nacional. 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THIAGO DOS SANTOS ACCA112 O USO INADEQUADO DA HISTÓRIA NOS TRABALHOS JURÍDICOS Quando ministro aulas de metodologia de pesquisa, sempre que possível procuro trabalhar em sala de aula com meus alunos a partir de uma dinâmica de desconstrução/reconstrução. Parto do que eles já sabem, portanto, de um mundo coletivamente partilhado para questionar alguns “pressupostos” de como se deve realizar uma pesquisa jurídica. Minha experiência demonstra que essa díade os auxilia a compreender o que eventualmente estejam fazendo de errado e, principalmente, o motivo pelo qual não deveriam continuar a construir seus trabalhos da forma como fazem. Logo após esse momento de desconforto, invariavelmente, surge a questão: “Professor, se não devo fazer nada disso do que vimos em sala de aula, então o que devo fazer?”. Gostaria de me valer do mesmo expediente na construção deste artigo. Assim, em um primeiro momento, vou mostrar como, em geral, o (mau) uso da história pode aparecer em trabalhos científicos. Em um segundo momento, vou explicar como a história pode ser bem utilizada trazendo um ganho de qualidade para os trabalhos acadêmicos. Há uma tendência no Brasil a se iniciar um trabalho jurídico por uma narração de fatos históricos. Há quem diga que a ausência de uma parte histórica redundará na incompletude do trabalho. Conheço professores que orientaram seus alunos a incluí rem, mesmo a contragosto do pesquisador, um item denominado “evolução histórica”, pois, caso contrário, o trabalho estaria incompleto. Desconfio de que essa necessidade foi formada pela leitura de manuais durante os anos de graduação e mesmo, por vezes, em cursos de pós- graduação. A nossa formação jurídica é baseada, em grande medida, na leitura de doutrina cujos textos são basicamente constituídos por manuais. Esse tipo de bibliografia tem em comum um ponto: apresentam um modo de abordagem de seu objeto de estudo (direito constitucional, penal etc.) em que inicialmente são narrados fatos históricos. Esse modo de abordagem foi naturalizado pela doutrina nacional. Assim, surgiu quase uma obrigação de se iniciar qualquer texto jurídico acadêmico com uma parte histórica113. Seja como for, o fato é que muitos pesquisadores adotam o pressuposto de que o uso da história é inerente a todo trabalho jurídico, independentemente do tema a ser desenvolvido. Presencio os mais diversos temas contemplados por uma parte histórica. Essa amplitude abarca assuntos tão diferentes quanto direito à moradia, contrato de consumo e justiça tributária. O pesquisador esforça-se para narrar resumidamente a história do direito pelas quatro Idades (Antiga, Média, Moderna e Contemporânea). Por exemplo, fala-se do direito romano, do direito na Idade Média, às vezes abordam fatos ocorridos nos séculos XVIII e XIX para, de repente, chegarmos à Constituição Brasileira de 1988. Todos esses passos ocorrem em 5 ou 10 páginas. Em suma, dois mil anos de história (ou mais) são resumidos em poucas páginas. Essa forma de tratar a história redunda em um texto superficial. Afinal de contas, por qual razão se deve resumir dois mil anos de história em 5 páginas? De qualquer forma, do ponto de vista metodológico, a superficialidade não me parece o ponto mais relevante, embora, certamente, deva ser evitada. Há outro ponto que afeta decisivamente a qualidade dos trabalhos acadêmicos. Por que, ao estudar um assunto como contratos, direito tributário ou propriedade, é necessário tratá-los, em algum momento do trabalho acadêmico, historicamente? Aqui há um problema que efetivamente pode afetar a qualidade da pesquisa: o diálogo com a história não é visto como uma compreensão mais adequada do tema, do problema de pesquisa ou uma melhor fundamentação de seus argumentos, mas tão somente como uma obrigação, um item que precisa, necessariamente, ser abordado no início de um trabalho acadêmico. Essa visão não entende a interdisciplinaridade como uma tarefa particular e que necessita de alguns cuidados. Dessa forma, a “parte histórica” é inserida nos textos não como um desenvolvimento natural de um argumento necessário para uma compreensão mais adequada do tema, mas sim como um item que precisa obrigatoriamente constar no trabalho. O resultado dessa experiência não pode ser positivo, já que o pesquisador inclui uma parte histórica em seu trabalho sem ao menos saber o motivo pelo qual assim está agindo. Tive a oportunidade de me deparar com trabalhos que afirmavam, por exemplo, como o direito romano já contemplava este ou aquele conceito, instituto ou ideia. Se pensarmos com calma, podemos facilmente levantar uma dificuldade ao tratarmos dele. Ao se falar em direito romano, a que período especificamente pretendemos nos referir? O direito romano possui, no mínimo, mil anos de história, o que complica sobremaneira que falemos em “O Direito Romano”. Essas dificuldades simplesmente são ignoradas no desenvolvimento do trabalho. Você já refletiu detidamente sobre a seguinte pergunta: por que discutir história em um trabalho jurídico? Vou me apropriar de um outro texto para trazê-lo como exemplo. Tive a oportunidade de ler um trabalho que pretendia discutir o direito à educação na Constituição de 1988, porém dissertava em 15 páginas sobre a educação (e não sobre direito à educação) na pré-história, passando pela educação grega (Atenas e Esparta), romana e na Idade Média. Mesmo desconsiderando qualquer questãoespecífica de 2. metodologia de história, a pergunta principal a se fazer é: qual a relevância em discutir a educação em marco temporal tão variado e extenso se o tema é o direito à educação na Constituição de 1988? Se o autor pretendia contextualizar o direito à educação, seria mais adequado tratar, por exemplo, da história do direito à educação nas Constituições do Brasil. A história é usada de forma pouco rigorosa nas pesquisas jurídicas no Brasil. No entanto, isso não significa que uma formação em história seja imprescindível para elaborar um trabalho com um bom diálogo entre direito e história. Alguns cuidados metodológicos básicos são suficientes para agregar qualidade na pesquisa. QUANDO É APROPRIADO CONSTRUIR MEU TRABALHO COM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA114 O primeiro questionamento que o pesquisador deve fazer a si mesmo diz respeito à necessidade de se escrever uma parte histórica. Essa minha afirmação pode ser óbvia, porém, como anteriormente discutido, muitos acadêmicos sequer se dão conta do seu propósito ao escrever um item denominado “evolução histórica”. É preciso ressaltar dois pontos. O primeiro é que nem todo trabalho exigirá uma parte histórica. O segundo é que, mesmo identificando a sua necessidade, isso não significa narrar fatos ocorridos desde o Código de Hamurabi. O recorte temporal, bem como o que deve ser ressaltado dentro do recorte escolhido, dependerá do tema, do problema de pesquisa a ser enfrentado em um trabalho acadêmico. A pergunta persiste: quando faz sentido usar história em meu trabalho? O passo fundamental é ter consciência do que se pretende ressaltar. Em outras palavras, é imprescindível que o pesquisador se questione: ao inserir uma visão histórica, o que pretendo agregar em meu trabalho? DICA Tudo o que for escrito em um trabalho acadêmico deve ter um objetivo, um sentido, um porquê. Nunca escreva nada para simplesmente consumir espaço, ou porque escrever tal ou qual coisa lhe pareça uma praxe que você deve seguir. Em primeiro lugar, porque, do ponto de vista acadêmico, essa atitude diminui a qualidade do trabalho. Em segundo lugar, do ponto de vista pragmático, o examinador pode atribuir uma nota abaixo da média ao perceber que o pós-graduando está simplesmente acrescentando informações desconexas e injustificadas em face do problema de pesquisa proposto pelo trabalho acadêmico. A parte histórica é vista como a possibilidade de facilmente ganhar mais alguns parágrafos para conseguir obter o número exigido de páginas. Não caia nessa tentação! Só insira uma parte histórica se realmente estiver convencido de que ela é importante para o seu trabalho. Algumas possibilidades são: (a) compreensão mais adequada do problema de pesquisa; (b) circunstâncias históricas que vão ilustrar ou reforçar a argumentação; e (c) contextualização do debate referente ao tema escolhido. Essas possibilidades justificam a inclusão de uma parte histórica no desenvolvimento do trabalho. Vou exemplificar cada uma dessas possibilidades com base no uso que a doutrina faz da história. O primeiro caso pode ser identificado na obra de Maria Paula Dallari Bucci, Direito administrativo e políticas públicas. A autora formula o seguinte problema de pesquisa: contemporaneamente, qual deve ser o papel desempenhado pelo direito administrativo no Brasil? A autora pretende buscar uma nova estruturação para o direito administrativo, já que, conforme seu entendimento, as ações realizadas pela Administração Pública não são efetivas. A falta de efetividade ocorre na coordenação tanto das funções estatais quanto “dos atores sociais na direção do desenvolvimento coletivo do povo no Brasil” (BUCCI, 2006, p. XXXVII-XXXVIII). Por que se faz necessário buscar essa nova estruturação, esse novo papel para o direito administrativo? Parte importante da resposta pode ser encontrada na história. A narração de fatos históricos fornecerá elementos para que se compreenda melhor seu problema de pesquisa. Assim, em face do processo histórico transformador do Estado, afirma a autora que é necessário “rever o papel do direito administrativo na nova ordem social que se esboça” (BUCCI, 2006, p. 3). O item 1, denominado A crise do Estado nos anos 80 e 90: novos papéis para o Estado e a Administração Pública (BUCCI, 2006, p. 1-3), mostra, em não mais do que três páginas, que a partir dos anos 1970, com as duas crises do petróleo, há um processo de redefinição do papel do Estado. O Estado mantém as suas funções, porém passa a contar com uma relação mais próxima com entes privados por meio, por exemplo, de concessões de serviços públicos. Por que será que o direito administrativo possuiria um novo papel nos dias atuais? O que justificaria a intenção da autora em investigar o problema de pesquisa proposto? Ora, são exatamente as alterações, segundo Bucci, ocorridas na configuração do Estado nos anos 1980 e 1990 que sugerem que o direito administrativo tem de assumir um novo papel. Nesse contexto, a narração histórica está completamente justificada, pois o leitor compreende melhor o problema de pesquisa a ser enfrentado pela autora. O segundo caso, ou seja, o uso de circunstâncias históricas para ilustrar e reforçar um argumento, aparece na obra Juízes legisladores?, de Mauro Cappelletti. A tese sustentada pelo autor é a de que os juízes, ao aplicarem o direito, não apenas agem como mediadores de soluções preexistentes no sistema jurídico, mas sim que seu papel, de modo semelhante ao legislador, é o de criar direito (CAPPELLETTI, 1999, p. 13-16 e 20-27)115. Para fortalecer o argumento de que os juízes não só possuem, mas também devem possuir um alto poder criativo, o autor narra as alterações vivenciadas pela sociedade, pelo direito e pelo Estado no pós-Segunda Guerra. Toda a segunda parte do livro, denominada Causas e efeitos da intensificação da criatividade jurisprudencial, é dedicada a narrar fatos históricos no intuito de reforçar a ideia de que a criatividade dos juízes não só existe como também, em virtude de um contexto histórico específico, deve ser significativa. Cappelletti, nascido em 1927, teve a oportunidade de testemunhar a história ao presenciar as alterações advindas do pós-Segunda Guerra. O Estado passa, paulatinamente, a se tornar um big government ao legislar extensamente em áreas até aquele momento estranhas ao direito, como política social e economia. Assim, a função legislativa passa a regular diversas áreas da vida social. Essa legislação também passa a ser formulada com características diferenciadas em relação ao que vinha ocorrendo anteriormente, pois a partir da constituição de Estados sociais a legislação apresenta maior número de disposições jurídicas finalísticas e principiológicas116. Esse aumento da criatividade dos juízes ocorre, portanto, em face das alterações do papel do Estado no decorrer da história. O Judiciário “não pode simplesmente ignorar as profundas transformações do mundo real” (CAPPELLETTI, 1999, p. 46). Com um Estado interferindo cada vez mais em diversas áreas da vida social, é preciso um Judiciário forte para poder manter um controle efetivo e equilibrado entre os Poderes (CAPPELLETTI, 1999, p. 54). As mudanças na sociedade levam à necessidade de alteração na compreensão da atuação da figura do juiz, bem como do processo civil. No texto de Cappelletti, a história desempenha um papel importante, até mesmo imprescindível, no intuito de mostrar como a figura do juiz que cria direito, para além de qualquer questão teórica envolvida, é uma necessidade dos novos tempos. Da mesma forma, caso se queira que a tutela jurisdicional seja efetiva, é preciso reformular a visão que se tem do processo civil para que este deixe de considerar única e exclusivamente o indivíduo como objeto de tutela (CAPPELLETTI, 1999, p. 59). Por fim, o uso da história também pode ser justificado pela necessidade de contextualização de um debate referente ao tema escolhido pelo pesquisador. Virgílio Afonso da Silva, em sua obra Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia,no Capítulo 6, aborda o tema da eficácia das normas constitucionais (2009, p. 209-251). Aqui o autor se valerá da reconstrução histórica para expor o debate desenvolvido no Brasil sobre o aludido tema. Por que será que o autor recupera os conceitos e os argumentos elaborados pelos diversos autores na história do direito brasileiro? É preciso ficar claro que não se faz isso pelo fato de que é uma espécie de “obrigação acadêmica” em recriar o pensamento sob um viés histórico. Esse panorama do pensamento jurídico brasileiro é narrado para que o leitor tenha conhecimento dos principais argumentos debatidos no Brasil sobre a eficácia das normas constitucionais. DICA O desenvolvimento da leitura atenta e crítica dos textos é essencial para que se possa progredir metodologicamente. Um fator importante de aprendizagem é a realização de uma leitura ativa da doutrina, da jurisprudência ou da legislação que servirá como alicerce para a produção de um trabalho acadêmico. Não basta ler os textos, é preciso efetivamente estudá-los. Assim, por exemplo, um exercício proveitoso é verificar o modo pelo qual a história é usada pela doutrina. Tente identificar nos textos lidos qual das perspectivas aludidas acima está sendo utilizada para construir a relação entre direito e história. Perceba-se que em nenhum dos três exemplos supramencionados os autores recorrem a fatos históricos que não estejam relacionados estritamente com o objeto de seu estudo. Nesse sentido, no caso de Bucci, não há uma reconstrução do modo pelo qual o Estado foi historicamente constituído. Da mesma forma, o texto de Virgílio Afonso da Silva não mostra o panorama do pensamento de eficácia das normas jurídicas desde os romanos. Por que eles não remontam suas discussões a tempos mais remotos? Simplesmente porque não é necessário, e mais, seria despropositado de acordo com os temas que estão estudando. No caso de Virgílio Afonso da Silva, por exemplo, sua discussão está claramente vinculada a um debate sobre eficácia das normas constitucionais realizado proficua mente após a publicação do livro Aplicabilidade das normas constitucionais, de autoria de José Afonso da Silva, cuja primeira edição é de 1968. Assim, Virgílio Afonso da Silva pretende retomar esse debate para deixar claro com qual tradição está discutindo. Ele vai discordar de posições assumidas pela doutrina brasileira da eficácia das normas constitucionais. Por que haveria, então, de se falar do conceito de eficácia desde os romanos? Para o tema, é irrelevante saber se os romanos discutiam ou não o conceito de eficácia, porque seu diálogo é com a doutrina brasileira a partir dos anos 1960. Portanto, basta ir ao debate jurídico acerca da eficácia das normas constitucionais a partir dos anos 1960 a fim de retomar as ideias que são importantes para o debate que se quer propor. Entretanto, há trabalhos que pressupõem o uso da história não para que se compreenda mais adequadamente o problema de pesquisa ou a construção argumentativa, mas, sim, em virtude da busca incessante em demonstrar que o autor é culto. A história proporcionaria ao trabalho um ar de erudição. No entanto, essa é uma visão equivocada do papel da história do direito. Em acréscimo a tudo o que foi discutido até este momento, o entendimento de sua principal função proporciona um norte para que se decida quando usar ou não a história em um trabalho acadêmico. Afinal, para que serve a história do direito? Diferentemente do que em geral se entende, seu propósito primordial não é possibilitar que o jurista tenha uma cultura mais ampla, mas sim mostrar que o significado e a construção do direito não estão previamente dados (HESPANHA, 2019, p. 13-14; LOPES, 2014, p. 13). A história do direito consegue mostrar que, em épocas e regiões distintas, as soluções jurídicas para determinados problemas foram muito diferentes, o que indica, portanto, que não há uma solução jurídica definitiva, porém ela é sempre instável e passível de crítica, de alteração, de mudança. Por isso, afirma Lopes (2014, p. 13) que a história do direito “desempenhará o papel da desmistificação do eterno e ajudará a compreender que vivemos no tempo da ação”. PARA SABER MAIS 3. PARA SABER MAIS Recomendo vivamente a leitura dos capítulos introdutórios dos livros de António Manuel Hespanha (2019, p. 13-83) e José Reinaldo de Lima Lopes (2014, p. 1-14). Esses dois autores escreveram de forma didática e resumida quais são as principais tarefas da história do direito. Essas ideias podem servir como parâmetro para facilitar a interlocução entre direito e história. CUIDADOS COM A ABORDAGEM HISTÓRICA DO DIREITO Não é possível desenvolver um trabalho sem ter alguma noção básica de metodologia de história. Esse conhecimento é necessário mesmo para trabalhos que não estão voltados a desenvolver pesquisas em história do direito. Não estou me referindo, evidentemente, a um conhecimento aprofundado da metodologia histórica, tampouco ao desenvolvimento do trabalho a partir de suas escolas teóricas117. É preciso ver a História como uma área de conhecimento distinta do direito e que, portanto, exige que conheçamos suas características. A interdisciplinaridade só será frutífera caso consigamos estabelecer efetivo diálogo entre duas áreas de conhecimento. É preciso compreender os limites e as formas de se fazer uma pesquisa histórica para que possamos estabelecer um diálogo entre direito e história. A compreensão dos limites das fontes e, por conseguinte, de sua interpretação, por exemplo, depende de um conhecimento elementar de história. Carr aponta para o fato de que a narração histórica é construída com fontes que nem sempre nos trarão um panorama fiel118 dos acontecimentos. Ademais, o jurista deve duvidar de uma visão da história que contempla a continuidade, o progresso e a evolução (LOPES, 2014, p. 5-8). Não há continuidade em história, ou seja, o futuro é sempre aberto e contingente. Os fatos passados não nos levam a concluir sobre como será o futuro. Algumas séries de ficção científica produzidas nos anos 1960 pela 3.1. TV americana são bons exemplos da contingência do futuro. Se tomarmos séries como Jornada nas Estrelas (Star Trek) ou Perdidos no Espaço (Lost in Space), veremos que as espaçonaves são repletas de botões, alavancas e luzes coloridas. A construção do futuro nas mencionadas séries é uma visão ampliada da sua própria realidade, ou seja, toda a tecnologia imaginada era semelhante aos aparelhos conhecidos na época. No entanto, o futuro mostrou que o “moderno” não eram os botões, tampouco as luzes coloridas e alavancas. Quem poderia imaginar há 40, 50 anos a popularização de computadores, smartphones, tablets, fotografia digital? Da mesma forma, a ideia de que estamos progredindo ou evoluindo não está amparada pelos fatos. Nesse caso, a questão mais importante a ser respondida diz respeito ao significado de “evolução” ou “progresso”. Será que a sociedade romana ou grega antiga, ou, ainda, a sociedade medieval, seriam mais atrasadas do que a nossa? Sob que perspectiva poderíamos fazer essa afirmação? Deixando os preconceitos e as caricaturas de lado: aprendendo a ler o passado pelo passado A forma como a história é transmitida aos alunos nos ensinos fundamental e médio deixa-os presos a duas visões limitadoras do modo como encaram o passado. Essas limitações acabam por prejudicar a construção dos trabalhos acadêmicos. Esses problemas são: (a) a análise do passado com os valores do presente; (b) a simplificação dos personagens, fatos, instituições, regras jurídicas e pensamento do passado, criando, assim, “verdades” que não conseguem se manter diante de um estudo mais aprofundado da história. Os dois fatores em conjunto podem levar a uma distorção dos acontecimentos históricos. Dessa forma, ficamos apenas com sua caricatura. A Idade Média (476-1453), por exemplo, é vista como um período de “trevas” pelos juristas, ou seja, um momento na história em que nada ocorreu de importante ou, se algo foi produzido, não deve ser positivamenteconsiderado. Período que pode ser resumido pela fome, guerra, violência, ruptura de contato com os valores clássicos. Ocorre que um trabalho jurídico sério e de envergadura deve qualificar a afirmação de que a Idade Média foi um período que pode ser resumido unicamente por acontecimentos negativos. Sob que perspectiva a Idade Média pode ser considerada um período “de trevas”? No campo do direito houve contribuições fundamentais para a formação da cultura jurídica ocidental. O Digesto119 foi compilado (em 533) e redescoberto (século XI) ainda na Idade Média. Esse material foi fundamental, por exemplo, para os primórdios do ensino jurídico. Ademais, a Idade Média nos legou a noção de que o direito não pode negar seus pontos de partida, isto é, a solução para um dado caso deve sempre partir de um texto, de uma regra jurídica (FERRAZ JR., 1998, p. 39-41). Nas artes podem-se citar várias contribuições importantes, como a arte gótica e, inclusive, a música composta no período120. Certamente, do ponto de vista do conforto material, não foi este o momento em que a civilização esteve em posição privilegiada. Entretanto, não me parece esse fato justificar que a Idade Média foi constituída pelas “trevas”. Ademais, essa não é uma visão compartilhada pelos próprios historiadores, mas apenas por aqueles, justamente por não conhecerem a história, que ainda olham o passado com certo preconceito. Veem o passado não como um momento contingente com suas idiossincrasias, com seus próprios problemas a serem resolvidos, com sua ideologia, com seu modo de ver o mundo, mas como um momento ou pior do que o atual ou romantizado, nostálgico. É curioso notar que há períodos injustificadamente considerados “funestos”, da mesma forma que outros são interpretados como “iluminados”. A visão de direito romano que os alunos recebem nos bancos universitários segue justamente a linha do olhar romantizado e nostálgico sobre o passado. O direito romano parece ter previsto praticamente todos os conceitos, institutos, ideias, desde a propriedade, passando pelo direito tributário e pelas relações de consumo. É preciso minimamente tentar compreender o direito romano e não sua caricatura121. Para tanto, é necessário consultar as fontes bibliográficas adequadas. A história do direito brasileiro também é alvo de caricaturas dessa natureza. Sem uma preocupação em se debruçar sobre documentos e sobre a historiografia, as instituições jurídicas do passado podem facilmente ser adjetivadas como atrasadas, despóticas ou não democráticas. No Brasil, o Poder Moderador é alvo de críticas que, em parte, desconsideram o contexto histórico de sua criação. No Império, o Estado era constituído não por três, mas por quatro Poderes. Além do Executivo, Legislativo e Judiciário, existia o Poder Moderador122. Meu propósito com esse exemplo não é construir uma defesa, tampouco uma crítica, ao modelo institucional criado no Império. O que pretendo ressaltar é que esse modelo, bom ou ruim, não deve ser visto simplesmente como uma criação tresloucada de um determinado personagem histórico. O Poder Moderador deve ser inserido em um contexto histórico e político específico. Ao se realizar tal tarefa, percebe-se que sua concepção responde a um problema vivenciado por todos os Estados democráticos e constitucionais do início do século XIX. Assim, explica Lopes: O poder moderador, criticado por décadas a fio durante o Império, respondia a uma necessidade sentida por todos os primeiros Estados constitucionais e representativos: como dar estabilidade a um Estado que de quando em quando tem sua representação política mudada? Como garantir existência mesma do Estado quando as massas podem mudar de opinião a cada dois, três ou quatro anos e, portanto, pôr tudo a perder em termos de continuidade dos arranjos político-constitucionais e administrativos? Em toda parte isto era um problema, que ao fim veio a ser resolvido de vários modos (LOPES, 2006, p. 18-19 – grifei). Esses exemplos mostram as caricaturas que os juristas costumam fazer do passado. Assim, saliento que não se podem pesquisar fatos históricos sem compreendê-los minimamente a partir dos problemas enfrentados pela sociedade investigada. É importante que sejam estudados sem preconceitos, 3.2. nostalgia, caricatura, para basear-nos unicamente nas fontes e nas interpretações de autores que se voltam para o estudo aprofundado da história e da história do direito. Utilização de fontes históricas O pesquisador deve ter cuidado com as fontes que utilizará em seu trabalho. Tendo em vista que o jurista, em geral, não possui dupla formação e, portanto, não é ao mesmo tempo bacharel em direito e em história, a pesquisa de fontes para a elaboração da parte histórica pode se tornar mais espinhosa. Afinal, quais seriam os livros mais adequados a serem lidos? Qual a legislação mais correta a ser consultada? O jurista procura, invariavelmente, como “fonte histórica” os manuais de direito. O problema não está com os manuais, mas sim com o uso que o pesquisador acaba fazendo deles. Por exemplo, caso se queira retratar as vicissitudes da história constitucional, a fonte por excelência será algum manual da área. O que, então, é preciso fazer? Em primeiro lugar, o pesquisador deve dar-se conta do quanto já sabe sobre o tema histórico ao qual pretende se dedicar. Ao responder a essa indagação, teremos basicamente duas possibilidades: ou há algum conhecimento mínimo ou nada se sabe sobre o assunto. No primeiro caso, sugiro que o pesquisador comece a examinar obras gerais sobre história do direito123 ou mesmo obras gerais sobre um determinado tema de história do direito124. No segundo caso, é preciso ter um pouco mais de cuidado. Se o momento histórico a ser estudado é totalmente desconhecido para o pesquisador, inicialmente é preciso ter um conhecimento de história. Não é produtivo começar a ler um texto complexo e aprofundado sobre o Conselho de Estado no Império se nem sequer conheço a existência do Poder Moderador e de suas competências. Assim, sugiro que o pesquisador que queira situar algum ponto de seu trabalho na história parta de obras gerais de história125. 4. Outra sugestão que me parece relevante é ter conhecimento, a depender do tema, dos textos das Constituições do Brasil. Uma fonte rica de conhecimento em diversas áreas. Dentro desse contexto, quem quer falar sobre o direito romano não deve basear-se em material secundário. Se queremos saber quais as regras que regiam o testamento no direto romano, o mais adequado é nos valer de fontes diretas, como o Digesto de Justiniano ou suas Institutas, e não obter informações a partir, por exemplo, de autores como Pontes de Miranda. Ele certamente foi um jurista renomado e tem uma produção importante na área do direito privado, como seu famoso Tratado de Direito Privado; porém, este é um livro de dogmática de direito civil e não de história do direito. CONSIDERAÇÕES FINAIS A pergunta-chave a ser respondida pelo pesquisador para a inclusão ou não de uma parte histórica é a seguinte: há algum ganho substancial para o meu trabalho caso fatos históricos sejam nele inseridos? O leitor compreenderá melhor o debate que pretendo mapear ou o meu problema de pesquisa ou, ainda, minha argumentação tornar-se-á mais sólida em virtude do desenvolvimento de uma parte histórica? Se a história em nada contribuir para uma melhor compreensão de seu trabalho em alguma dessas dimensões apontadas, então uma parte histórica não se faz necessária. No entanto, caso as respostas sejam positivas, é preciso se fazer outra série de perguntas: qual o período histórico que devo abordar? Qual a bibliografia que devo usar? Lembre-se de que a parte histórica, a depender do tema, não precisa começar do Código de Hamurabi, do direito romano ou do Código Napoleônico. Na maioria das vezes, regressar alguns anos ou décadas já é suficiente para desenvolver o diálogo entre direito e história. Por sua vez, com relação às fontes, invista na leitura de textos especializados de história e, principalmente,curiosidade teórica sobre o direito e seu status epistemológico, mas que interessam pouco aos alunos que não tenham esse perfil. Para quem quer fazer um trabalho de qualidade, mas nem por isso deseja se converter em filósofo da ciência, ou em profundo teórico do direito, as preleções sobre paradigmas da ciência moderna ou separação entre sujeito e objeto soam enfadonhas e distantes. Muitas vezes são frustrantes também, pois não ajudam, de maneira imediata, a enfrentar os obstáculos mais corriqueiros que surgem durante a escrita de um trabalho científico. O papel dos trabalhos científicos no Direito mudou muito de alguns anos para cá: hoje temos muitas (demasiadas, a bem da verdade) faculdades de direito funcionando no Brasil, onde estudam milhares de alunos que têm, todos, a obrigação de escrever trabalhos científicos – a temida monografia de final de curso, ou trabalho de conclusão de curso – como requisito para seu bacharelado. Boa parte desses alunos irá, pouco tempo depois da formatura, perseguir uma especialização acadêmica em sua área de preferência em algum dos muitos cursos de pós-graduação lato sensu existentes no mercado, os chamados cursos de especialização, onde, eventualmente, terão de fazer um trabalho científico. Embora a mais recente resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) tenha deixado de mencionar a obrigatoriedade de desenvolver um trabalho científico para obtenção do título de especialista, os cursos de mestrado profissional estão se multiplicando pelo país e exigem, para sua titulação, a produção de um trabalho acadêmico. Além disso, há dezenas de programas de mestrado e doutorado em Direito no Brasil, cada vez em maior número. Assim, de pouco tempo para cá, os trabalhos científicos no campo jurídico, que antes ficavam restritos ao mundo das poucas pessoas que buscavam formação em pesquisa em cursos de mestrado e doutorado em universidades públicas ou seletas escolas privadas, agora pertencem ao universo da massa variada de estudantes de graduação e pós-graduação em Direito. Esses estudantes têm interesses heterogêneos, mas é certo que muitos deles não querem ser cientistas, filósofos ou metodólogos; querem, isso sim, ser advogados tributaristas, juízes da infância e juventude, defensores públicos, membros do Ministério Público, diplomatas, procuradores etc. – querem, em outras palavras, perseguir carreiras jurídicas práticas e não acadêmicas. Essas pessoas têm, via de regra, preocupações formativas que passam longe da epistemologia jurídica ou da metodologia das ciências sociais, mesmo porque tais conhecimentos, embora úteis, não são condições necessárias para que se tenha sucesso em nenhuma dessas profissões. Nesse sentido, os bacharéis em Direito distanciam-se de quem vem das outras ciências sociais aplicadas: nestas últimas, os conhecimentos metodológicos são mais imediatamente constitutivos dos profissionais da área, sejam eles acadêmicos ou não. Um sociólogo precisa saber fazer pesquisa social quando atua como professor universitário, mas também quando é responsável por, digamos, pesquisas de mercado sobre comportamento de consumidores em uma agência publicitária. O mesmo não vale para um advogado, magistrado ou promotor: todos podem ser ótimos profissionais sem que estejam familiarizados com o estado da arte da metodologia da pesquisa jurídica (muito embora conhecimentos metodológicos sempre ajudem no bom pensar). Este livro objetiva fornecer um guia prático para a elaboração de trabalhos científicos em direito. Seu conteúdo é prático em um duplo sentido: primeiro, porque espelha dúvidas mais recorrentes e importantes que alunos de graduação e pós-graduação em direito fizeram e fazem aos seus autores, todos professores da disciplina em diferentes instituições de ensino pelo Brasil: como devo usar a jurisprudência na minha pesquisa? Tenho de escrever um capítulo histórico? Como devo fazer entrevistas, caso necessite delas? E assim por diante. Segundo, porque reflete também o estado da arte das pesquisas em que as autoras e os autores estão envolvidos enquanto acadêmicos, revelando desafios reais da investigação científica do direito e estratégias concretamente adotadas para sua superação. O livro encontra-se, portanto, no meio do caminho entre as dúvidas de alunos iniciantes na pesquisa e os desafios de pesquisadores profissionais do direito, cada qual escrevendo sobre sua área de expertise. 2. A QUEM SERVE ESTE LIVRO? A concepção de objetividade e praticidade do livro que antecedeu a este (Metodologia Jurídica, 2012) teve como referência o aluno de cursos de especialização em direito, cujo perfil era o do profissional sem tempo para se dedicar ao aprofundamento das questões teóricas relacionadas à produção acadêmica. Mas esse perfil de aluno, ocupado e inexperiente, se espalha por outros contextos: os acadêmicos não habituais e com pouca experiência de pesquisa estão também nos cursos de graduação e mestrado profissional; são seguramente a maioria nos cursos de pós-graduação stricto sensu também. Acadêmicos não habituais não têm na pesquisa científica sua principal ocupação, mas precisam, em algum momento particular, conhecer e aplicar de alguma maneira as técnicas e métodos de pesquisa de modo competente e funcional. Estamos entre aqueles que acreditam que essas habilidades não só viabilizam bons trabalhos científicos, mas contribuem também para o incremento de competências valorizadas nas profissões práticas do direito, tais como localização de informações precisas, resolução de problemas completos e clareza na argumentação escrita. O livro também pode servir a acadêmicos mais experientes, que poderão encontrar aqui informações úteis. Poderão consultá-lo como um manual prático para sanar dúvidas pontuais sobre exigências formais específicas (como uma referência bibliográfica pouco usual), bem como para aproveitar as dicas objetivas e precisas sobre as várias etapas da produção científica, as quais a experiência nem sempre é capaz de sistematizar com clareza. Não é raro que o tempo apague da memória algumas das lições dessa matéria ou que o hábito gere vícios pouco saudáveis. Esta obra atende a diferentes necessidades em diferentes níveis, portanto. Organizada como roteiro e estruturada como referência ponto a ponto entre os requisitos, as convenções e as formalidades da produção científica, ela pode ser consultada de diferentes maneiras, com distintos 3. propósitos. Em linhas gerais, este livro possui uma sequência lógica e concatenada de capítulos, os quais podem ser lidos na ordem estabelecida ou consultados de maneira independente e em diferentes níveis de profundidade. Considerada em seu todo, esta obra revela sua utilidade como roteiro prático, sendo de especial valia aos estudantes iniciantes na graduação e na pós-graduação que tenham de fazer trabalhos de fôlego, seja em disciplinas específicas, ou, ainda, e principalmente, nas etapas de término, quando devem redigir seus trabalhos de conclusão de curso (TCC). Para os primeiros, que não possuem senão uma vaga ideia do que seja uma produção científica, uma leitura atenta deste livro, acompanhada de alguma atenção de seus orientadores, já os ajudará a produzir um trabalho acadêmico respeitável. Para os demais, muitos dos quais já passaram pelo temido trabalho de conclusão da graduação, este roteiro os ajudará a pôr em ordem os trabalhos de pós-graduação, cuja densidade de pesquisa exige um planejamento bem estruturado desde o início. Qualquer que seja o caso, este livro visa tornar acessível um conjunto de técnicas científicas mais diretamente aplicáveis a trabalhos jurídicos, de maneira concisa e abrangente, servindo a todos que necessitem de informações descomplicadas e objetivas que os auxiliem na produção científica em direito. MESTRADO PROFISSIONAL O mestrado profissional em direito é recente no Brasil. O programa pioneiro foi o da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, iniciado em 2013. Depois deste, vários outros programas foram e estão sendo criados, em númerode história do direito. Evite ler somente manuais. Ressalto que a inclusão de uma parte histórica no trabalho acadêmico não deve ser vista como uma obrigação. A ausência do diálogo entre história e direito não significa, necessariamente, sua incompletude. Referências BIRKS, Peter; McLEOD, Grant; KRUEGER, Paul (orgs.). Justinian’s Institutes. Ithaca: Cornell University Press, 1987. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. BRASIL. Constituição (1824). Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2011. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. BURROWS, John (org.). Música clássica. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. CAENEGEM, Raoul C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. CARR, Edward Hallet. Que é história? 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. CROUZET, Maurice (org.). História geral das civilizações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. DIPPEL, Horst. História do constitucionalismo moderno. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2007. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1998. GILISEN, John. Introdução histórica ao direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001. HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Coimbra: Almedina, 2019. HOLANDA, Sérgio Buarque de; FAUSTO, Boris (orgs.). História geral da civilização brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. LE GOFF, Jacques (org.). A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 2005. LOPES, José Reinaldo de Lima. Modelos históricos do Judiciário: poder político ou poder neutro? In: LOPES, José Reinaldo. Direitos sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006. LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. LOPES, José Reinaldo de Lima. O oráculo de Delfos: o Conselho de Estado no Brasil Império. São Paulo: Saraiva, 2010. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. VEYNE, Paul. O Império Romano. In: VEYNE, Paul (org.). História da vida privada: do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. v. 1. WATSON, Alan (org.). The Digest of Justinian. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1998. 4 v. 1. 9 ACHTUNG BABY! OU PORQUE MEU TRABALHO ACADÊMICO NÃO PRECISA DE DIREITO COMPARADO... ATÉ QUE SE PROVE O CONTRÁRIO FABIA FERNANDES CARVALHO126 INTRODUÇÃO O ato de comparar não é algo estranho ao direito. Ao contrário, a comparação faz parte da rotina dos estudantes e de todas as pessoas que atuam no campo jurídico profissional, seja advocacia, defensoria pública, magistratura, academia, entre outras atividades. Comparamos dispositivos legislativos para compreender como determinada questão é regulamentada pelo direito, comparamos decisões judiciais para verificar como determinado tribunal ou corte se posiciona sobre dada problemática jurídica, assim como comparamos o posicionamento teórico de autoras e autores para entender como certo problema jurídico é articulado em termos mais abstratos. Em outras palavras, comparar é ato fundamental à prática argumentativa em que se constitui o direito. No entanto, quando pensamos em trabalhos científicos no campo jurídico, o ato de comparar passa a ter uma dimensão diferente. De atividade integrante da rotina de estudantes e profissionais do direito, a comparação se torna algo mais específico e sofisticado no contexto de trabalhos acadêmicos. Assim, mesmo que em um primeiro momento seja possível se sentir à vontade com a inserção de um capítulo sobre direito comparado em uma monografia de final de curso, por exemplo, essa empreitada compreende dificuldades e questionamentos que extrapolam o uso corriqueiro da comparação no campo do direito. Por mais familiar que nos pareça o ato de comparar, quando precisamos escrever um artigo científico, uma monografia, um trabalho de conclusão de curso, uma tese de doutorado ou uma dissertação de mestrado, questionamentos mais rigorosos sobre comparação devem necessariamente vir à tona. Este capítulo buscará explorar justamente esses questionamentos sobre os usos do direito comparado em trabalhos científicos no campo jurídico. Assim como analisado no Capítulo 8 deste livro127, parto do pressuposto de que há um uso inadequado do direito comparado na produção de trabalhos científicos no campo do direito no Brasil. Da mesma forma como visto para a inserção do item “evolução histórica”, a inserção de um item ou capítulo sobre direito comparado parece ser vista como etapa necessária para que o trabalho acadêmico possa ser considerado completo e adequado no contexto brasileiro. O resultado desse uso “burocrático” do direito comparado no Brasil, isto é, como um capítulo ou item obrigatório em um trabalho acadêmico, é a inserção de informações esparsas sobre determinado instituto ou conceito jurídico em um certo grupo de países. Em algumas poucas páginas, o leitor faz uma rápida viagem pelo mundo (normalmente, uma viagem restrita a certos países europeus e aos Estados Unidos), por meio de uma listagem de como determinado conceito jurídico é regulamentado na França, na Itália, na Alemanha etc. Sem uma justificativa robusta que oriente o olhar para a experiência estrangeira e sem uma análise aprofundada de cada ordenamento jurídico mencionado, geralmente o capítulo ou item sobre direito comparado reduz-se à um apanhado de informações coletadas com pouco rigor metodológico. Terminada a parte do trabalho que trata da perspectiva comparada, o pesquisador segue sua análise sem articular as formas pelas quais o direito comparado contribui para uma melhor exploração do problema de pesquisa proposto. 2. Este capítulo desafia fortemente essa prática. O uso do direito comparado, tal como supradescrito, constitui um desperdício de tempo e de energia do pesquisador, além de constituir um desperdício de páginas de um trabalho científico. É nesse sentido que o título deste capítulo deve ser lido. Um trabalho acadêmico no campo do direito não precisa desse uso “burocrático” de direito comparado – não existe nenhuma regra específica em metodologia científica, tampouco entre as normas técnicas para apresentação de trabalhos acadêmicos no Brasil, que determine a obrigatoriedade de inserção de um item ou capítulo sobre direito comparado em um trabalho acadêmico no campo do direito. Não faz sentido, assim, perpetuar uma prática que não traz contribuições substantivas à produção de conhecimento jurídico em nosso país. Pelas razões que serão exploradas a seguir, a decisão pelo uso da comparação em um trabalho científico deve ser refletida e devidamente justificada no trabalho. Várias ponderações devem ser realizadas, desde questões práticas, como o conhecimento de outras línguas e o acesso a materiais e bases de dados de outros países, até questões teóricas próprias do campo de estudos em que atualmente se constitui o direito comparado. Este capítulo tem como objetivo lançar luz em alguns desses questionamentos e ponderações, para que a eventual decisão pela inclusão do direito comparado em um trabalho científico no campo do direito possa ser uma decisão informada e justificada. DIREITO COMPARADO COMO CAMPO DE ESTUDOS: CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NACIONAIS, TRANSPLANTES JURÍDICOS E GOVERNANÇA GLOBAL Antes de abordar os questionamentos que julgo importantes para embasar a decisão pelo uso do direito comparado em um trabalho acadêmico, é importante ressaltar algumas questões relacionadas ao direito comparado como disciplina. Esses apontamentos iniciais serão breves, mas trata-se de esclarecimentosque só tende a aumentar. A demanda por profissionais de mercado que buscam na academia uma alta qualificação está crescendo. Em grande parte, esses alunos são profissionais já com alguma experiência prática, mas que possuem pouca 4. familiaridade com normas acadêmicas. São também pessoas que não possuem, como regra, folga de tempo disponível para se apropriar de rigores e formalidades científicas. Segundo a Portaria n. 17/20093, o mestrado profissional é um curso stricto sensu, mas com público-alvo distinto. Os alunos são profissionais com grande conhecimento e atuação no mercado, que não necessariamente pretendem seguir uma carreira exclusivamente acadêmica. Formam-se mestres, mas com foco voltado à pesquisa aplicada, e não pesquisadores com atuação exclusiva na academia. Este livro também está na medida do que mestrandos de programas stricto sensu profissionais precisam. Uma fonte de consulta objetiva e prática para auxiliá-los desde a formulação do seu problema de pesquisa até a execução e registros científicos. O Capítulo 3 é inteiramente dedicado à pesquisa jurídica no Mestrado Profissional. O QUE HÁ NESTE LIVRO? Este livro está dividido em cinco partes, fracionadas em 27 capítulos. Cada parte representa uma etapa do roteiro de elaboração de um trabalho científico em direito; e cada capítulo, um tópico possivelmente relevante para cada uma dessas etapas. Embora as grandes partes cubram etapas necessárias à produção de um trabalho científico (determinar o tipo de pesquisa a ser feita, executá-la, redigir o trabalho), os capítulos dentro de cada uma delas terão pertinências diferentes para diferentes tipos de pesquisa: quem for fazer, por exemplo, um trabalho de pesquisa jurisprudencial deverá passar pelos Capítulos 6 e 13, mas não precisará passar pelo Capítulo 8 se estiver convencido de que seu trabalho não precisará de uma parte histórica. Na primeira parte, há orientações gerais sobre os objetivos do livro e como utilizá-lo (Capítulo 1), bem como os formatos possíveis de trabalhos acadêmicos que alunas e alunos de direito podem ter de escrever (Capítulo 2). Ela também inclui um capítulo sobre a pesquisa jurídica aplicada no âmbito de mestrados profissionais (Capítulo 3). A parte 2 pode ajudar o pesquisador na etapa inicial de construção da sua pesquisa, oferecendo caminhos e inspirações para iniciar a concepção do seu problema de pesquisa caso esteja com dúvida sobre o tema diante da área de interesse (Capítulo 4). O Capítulo 5 cuida de uma das dúvidas elementares de jovens pesquisadores: como é possível dar “cientificidade” à resposta de uma questão jurídica controvertida, quando parece haver boas razões para ambos os lados da contenda? Há também capítulos que ajudam a avaliar a necessidade de uma pesquisa jurisprudencial (Capítulo 6), de um capítulo histórico (Capítulo 8) ou de direito comparado (Capítulo 9). O Capítulo 7 trata de um tema inexplicavelmente negligenciado na pesquisa jurídica (salvo raras exceções, como é o caso dos autores que o escreveram): a pesquisa legislativa. A parte 3 apresenta métodos e técnicas úteis para a execução de vários tipos de pesquisa jurídica. Ele começa com o projeto de pesquisa, documento básico para o planejamento de uma investigação minimamente adequada (Capítulo 10). Em seguida, apresenta ferramentas para localização de informação jurídica básica na internet (“doutrina” e legislação, pois jurisprudência é cuidada no Capítulo 6). O Capítulo 12 apresenta um método e técnicas para leitura de textos teóricos complexos. O Capítulo 13 explica como coletar e organizar as informações coletadas em pesquisa jurisprudencial de modo adequado e funcional. Os capítulos seguintes abordam a realização de entrevistas (Capítulo 14) e a observação etnográfica em contextos jurídico-institucionais (Capítulo 15). O Capítulo 16 apresenta orientações para a realização de pesquisa em arquivos históricos, enquanto o Capítulo 17 explica o uso do método do estudo de caso e sua aplicação para temas jurídicos. Na parte 4, apresentamos algumas agendas contemporâneas da pesquisa jurídica, que podem apontar caminhos interessantes de pesquisa. Elas cuidam de áreas interdisciplinares, cujo conteúdo não foi ainda “canonizado” por manuais ou programas oficiais de disciplina, e que por isso costumam trazer maiores dificuldades para pesquisadores menos experientes. Há capítulos que apresentam os campos de pesquisa de Direito e Economia (Capítulo 18), Direito e Políticas Públicas (Capítulo 19), Direito e Tecnologia (Capítulo 20), Direito, Feminismos e Gênero (Capítulo 21), Direito e Discriminação (Capítulo 22), e finalmente o estado da arte da agenda de pesquisa sobre o Supremo Tribunal Federal (Capítulo 23). Detalhamento e orientações sobre o registro formal e escrito da pesquisa estão na parte 5. A pesquisa deve culminar com a redação de um texto (artigo, TCC, dissertação ou tese) que a apresente e a comunique de maneira clara, correta e eficiente. O Capítulo 24 traz apontamentos iniciais para a redação de textos acadêmicos em direito. O Capítulo 25 explica as normas para formatação do texto e padronização de textos e referências, conforme as normas técnicas da ABNT ou o Manual de Chicago. O Capítulo 26 apresenta ferramentas de informática necessárias para a formatação do trabalho final, ensinando como resolver rapidamente dificuldades com processadores de texto que roubam tempo de acadêmicos das humanidades. O Capítulo 27 é dedicado às boas práticas éticas na pesquisa e na redação de textos jurídicos. Os leitores notarão que recursos visuais, como tabelas e quadros, são frequentes no livro. Eles são estratégias de organização da informação apresentada pelos autores, de modo a simplificar a sua consulta. Notará também que todos os capítulos são recheados de exemplos, do que fazer e do que não fazer, referentes a cada tipo de pesquisa. Todos os exemplos são tirados de pesquisas reais, devidamente publicadas pelos seus autores. 2 ESCRITA CIENTÍFICA EM DIREITO: ESPÉCIES DE TRABALHOS ACADÊMICOS E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ4 MARINA FEFERBAUM5 Na área do direito, os trabalhos de conclusão de curso (ou TCCs) não costumam ter a mesma variedade de formas das outras áreas do conhecimento, como nas artes (em que se pode produzir um vídeo, executar um número musical ou construir uma maquete) ou em áreas tecnológicas (em que se pode construir um robô ou um protótipo de automóvel). No direito, os trabalhos se apresentam sempre como textos escritos, no típico monográfico, com um conteúdo invariavelmente homogêneo (conceito, natureza jurídica, evolução histórica, o tema na jurisprudência etc.), o que faz pensar numa espécie de modelo canônico a partir do qual toda produção jurídica acadêmica é concebida e executada. Por isso, muitos têm a impressão de que existe um único tipo de trabalho de conclusão em direito – “a” monografia, como se não houvesse vários tipos de trabalhos monográficos – e que fazer um trabalho acadêmico-jurídico é sempre produzir um texto à imagem e semelhança desse cânone. Não é o caso. Mesmo limitados à forma escrita, os trabalhos jurídicos não são tão restritos como parecem à primeira vista. Além da conhecida “monografia”, artigos científicos, dissertações e teses exemplificam a variedade possível de trabalhos acadêmicos no campo jurídico. As opções à disposição do aluno dependem, por sua vez, do tipo de programa e da 1. instituição de ensino em cujo âmbito o trabalho seja produzido, a qual pode estabelecer quais formatos serão aceitos. Por disposições regulamentares dos órgãos governamentais responsáveis pelos programas de mestrado e doutorado no Brasil, os trabalhos de conclusão nesses programas devem ser dissertações e teses, respectivamente, defendidos em sessões públicas perante uma banca de examinadores devidamente titulados. Já nos programas de graduação e pós- graduação lato sensu (especialização), admitem-se variedades de formatos. Ainda assim, o trabalho mais comumente solicitado nesses programas é a tradicional“monografia”, às vezes chamada de TCC (trabalho de conclusão de curso). É importante conhecer a especificidade de cada um desses trabalhos, de forma a ter clareza do que se exige de quem venha a empreender qualquer um deles. “MONOGRAFIAS” A “monografia” é o formato de trabalho mais adotado pelas faculdades de Direito no cumprimento da exigência de um trabalho obrigatório de final de curso. Como o nome indica, impõe conteúdo monográfico; ou seja, ela deve focar-se em um assunto específico e ser completa na abordagem que dele fizer. A monografia é um trabalho completo por si só, pois constrói um argumento bastante em si mesmo, da dúvida que suscita a investigação ao encaminhamento de uma possível conclusão, exaurindo o estudo da produção científica mais relevante a seu respeito. “Qualquer trabalho que se proponha a examinar um tema específico, esgotando a sua análise, seria subsumível no conceito genérico de monografia” (BARRAL, 2003, p. 15). A monografia é um gênero de trabalho acadêmico que pode compreender, portanto, desde um artigo científico de fôlego até uma longa tese de doutorado, passando por trabalhos de conclusão de cursos de graduação ou pós-graduação lato sensu, dissertações de mestrado ou mesmo trabalhos disciplinares de matérias específicas na gradua ção ou pós-graduação. No entanto, o nome “monografia” acabou associado, no Brasil, especificamente a trabalhos de conclusão de graduação e pós-graduação lato sensu. O primeiro aspecto constitutivo de uma monografia é o seu tema. O tema é a fronteira de um trabalho. Numa primeira aproximação, fixar um tema implica não mais do que delimitar um assunto. A “responsabilidade civil”, por exemplo, é uma primeira aproximação a um tema monográfico (ainda que seja excessivamente amplo e necessite de ulteriores recortes). A “responsabilidade civil do Estado por omissão” é outro exemplo, uma especificação do primeiro. Essa primeira aproximação deve, nos casos de trabalhos de pretensões mais científicas, ser mais delimitada e recortada de modo a produzir novos temas, cada vez mais restritos, todos desdobramentos da primeira aproximação ao tema: “responsabilidade civil objetiva por atividades de risco” seria uma especificação dentro do amplíssimo tema da “responsabilidade civil”, por exemplo. Porém, não importa o quanto seja delimitado, um tema nunca se esgota, pois o que o constitui não é apenas o assunto, mas também o enfoque de análise a que ele será submetido: uma compilação bibliográfica ampla sobre a responsabilidade civil em atividades de tratamento de resíduos tóxicos não se confunde com uma pesquisa jurisprudencial exaustiva sobre esse mesmo tema, embora as duas foquem nos mesmos institutos jurídicos. É por isso que não basta discorrer sobre determinado tema para se produzir uma monografia. É necessário fazê-lo de maneira direcionada, ou seja, com um objetivo. Monografias, como trabalhos científicos que são, partem de dúvidas e procedem de modo a respondê-las, colhendo dados e informações e fazendo interpretações e análises tendentes à resposta das perguntas iniciais. Essas dúvidas iniciais, a serem respondidas por meio do trabalho de pesquisa e análise de argumentos e dados, formam o verdadeiro tema de uma monografia. Se quero fazer uma pesquisa cujo propósito seja descobrir as nuances da jurisprudência sobre a responsabilidade civil decorrente de atividades de manejo de lixo tóxico, então o meu tema pode ser apresentado como “as regras de responsabilidade civil no manejo de lixo tóxico na jurisprudência” (faltaria ainda acrescentar o tribunal e o intervalo de tempo focados na pesquisa, o que daria ainda maior precisão ao recorte temático). O objetivo da minha investigação – aquilo que quero descobrir – constitui meu tema, note-se bem, moldando-o a partir de um assunto mais amplo (responsabilidade civil por atividades de risco inerente). Nem todo objetivo é compatível com o conteúdo de um texto monográfico. Textos com o objetivo de ensinar, explicar ou divulgar determinado tema não são monográficos, normalmente, pois não possuem foco, aprofundamento ou completude suficientes em relação a um tema, elementos que uma monografia deve ter. Tratados, manuais e cursos, por mais completos que sejam, não são monográficos, pois sua principal ambição é, digamos, horizontal – cobrir todo um campo de conhecimento, não mais do que panoramicamente –, enquanto que em uma monografia o propósito do autor deve ser vertical: aprofundar-se em um aspecto bastante restrito de um tema pontual. Um texto monográfico deve ter um ponto de partida (perguntas), um caminho (coleta de dados ou argumentos, análises e intepretações) e um ponto de chegada (conclusão), alinhados coerentemente com vistas ao objetivo inerente ao tema da pesquisa. Um bom critério para saber se um trabalho é monográfico é verificar se o texto traz um raciocínio que conduz a uma conclusão. Não basta que ele tenha um capítulo final intitulado “Conclusão” se esta não decorrer de um desenvolvimento intencional e articulado do texto, com base em dados e argumentos interpretados ao longo do trabalho. Não basta, portanto, escrever um texto no estilo manual didático (conceito, natureza jurídica, evolução histórica...), criar um tópico final denominado “Conclusão” e apresentar o trabalho como se monográfico fosse. As leitoras e os leitores mais atentos já terão notado que os mais populares manuais e cursos do mercado editorial brasileiro não têm um capítulo de conclusão, o que faz perfeito sentido, já que manuais não são construídos com o propósito de concluir coisa alguma. Trabalhos que se pretendem monográficos, mas são elaborados à moda de manuais em geral, mostram-se inconclusivos, não obstante, como aponta Oliveira (2006), seus autores esforcem-se para, ao final, apresentar conclusões que muitas vezes não superam o senso comum, e que não dependem de uma pesquisa científica para que se chegue a elas: “o tema é difícil”, “o assunto é instigante”, “há muitas nuances”, “é preciso decidir com cautela” etc. Casos tais apenas demonstram que seus autores começaram trabalhos que deveriam ser monográficos, mas não tinham seus objetivos bem definidos: faltavam-lhes perguntas claras e uma ideia de como respondê-las. EXEMPLO Imaginemos um trabalho não monográfico sobre responsabilidade civil. O texto apresentaria de início os elementos da responsabilidade: dano, nexo causal e culpa. Explicaria, em seguida, cada um deles, detalhando cada teoria envolvida. Seguiria, então, para a discussão dos sujeitos envolvidos, dedicando um capítulo inteiro ao Estado. E por aí iria. Ao final, concluiria seu autor que a responsabilidade civil é um tema complexo, que merece ser estudado em minúcias, que certos aspectos só podem ser apreciados caso a caso etc. O leitor desse texto certamente ficaria bem informado sobre os conceitos básicos da matéria, mas tal conclusão não é aquilo que se espera de um trabalho monográfico. Ou melhor, tal “conclusão” nem é, em sentido próprio, uma verdadeira conclusão. Não basta incluir um capítulo chamado “Conclusão” para que o trabalho, por mágica, torne-se conclusivo: a conclusão depende de um concatenamento argumentativo que não existe em um trabalho com esse conteúdo. Em um trabalho verdadeiramente monográfico sobre o mesmo tema do exemplo anterior, o autor passaria rapidamente pelos elementos da responsabilidade, conceituando-os com brevidade e profundidade apenas necessária ao enfrentamento de suas questões de pesquisa. Optaria, como introdução do trabalho, por contextualizar a responsabilidade civil à luz da Constituição de 1988, analisando o instituto a partir das decisões do Supremo Tribunal Federal, especificamente nos pontos em que o entendimento da corte mudou em relação à Constituição anterior. Observaria o autor que, embora não tivesse havido quaisquer alterações relevantes de redação da normativa constitucional da responsabilidade civil do Estado, a jurisprudência da corte sobre esse tema mudou a partir da nova Carta. Tomando isso como ponto de partida, o autor procurariaidentificar os fatores que teriam levado a essa mudança de posicionamento jurisprudencial – eis uma dúvida de pesquisa possível. Analisando 1.1. minuciosamente os julgados paradigmáticos, constataria, digamos, frequentes referências à doutrina e filosofia alemã contemporânea, as quais conduziam a interpretações mais integrativas dos dispositivos normativos constitucionais, principalmente com normas de direitos fundamentais e ponderação de princípios, bem como uma nova concepção do princípio democrático. Concluiria, enfim, que os fatores identificados – a maior influência de uma certa corrente doutrinária – foram provavelmente responsáveis pela nova orientação da jurisprudência, deixando, contudo, em aberto a discussão, à espera de análises semelhantes sobre temas diversos, para reforçar as hipóteses levantadas. Nota-se que nesse trabalho hipotético o autor enfrentou um problema específico: identificar os fundamentos que levaram à mudança de posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a responsabilidade civil do Estado. Eis o cerne de um trabalho monográfico. Desde o princípio, o autor tinha um objetivo definido, baseado em uma inquietação sobre algo que até então não tinha respostas. Esse seu objetivo – sanar uma dúvida, responder a uma pergunta – acaba por constituir o próprio tema da pesquisa. DICA O fato de cursos e manuais não serem trabalhos monográficos não significa que não possa haver definições e explicações de conceitos e teorias, como as que muitas vezes aparecem nessas obras, no escopo de trabalhos monográficos. Elas podem e devem ser usadas quando forem necessárias para o cumprimento do objetivo do tema proposto pela monografia. Se estou fazendo um trabalho cujo objetivo seja definir se os ministros do STF diferenciam os conceitos de “proporcionalidade” e “razoabilidade” em seus votos, então parece ser necessária uma explicação sobre esses conceitos, inclusive para explicitar os critérios que permitem sua identificação na dinâmica dos votos que analisarei6. Evite, ao contrário, usar explicações de conceitos básicos se não for estritamente necessário. Lembre-se de que o trabalho é dirigido a um examinador ou corretor que, em princípio, é expert no assunto, e não precisa tomar uma aula das definições básicas da matéria com alguém que, como jovem pesquisador escrevendo uma monografia de conclusão de curso, possivelmente estará dando seus primeiros passos na carreira acadêmica. Monografias para disciplinas de graduação É provável que a primeira vez que se tenha de elaborar um trabalho monográfico seja durante uma disciplina ainda no início do programa de graduação. Ainda sem desenvoltura acadêmica, o estudante terá, via de regra, dificuldades de realizar um trabalho com genuíno interesse científico. Um trabalho nessa fase terá, provavelmente, finalidade sobretudo didática, para que se comece a tomar contato com as exigências de estrutura, referências, formatação e conteúdo envolvidos no trabalho monográfico. A grande dificuldade das monografias disciplinares no início da vida acadêmica encontra-se, sem dúvida, na definição de um tema e do método apropriado para abordá-lo. Acostumado até então a lidar apenas com manuais jurídicos, é comum que o estudante abra o primeiro livro à mão para ver como o autor redigiu as referências bibliográficas, as quais se encontram no centro das suas preocupações concernentes ao trabalho. O passo seguinte é tomar o livro todo como paradigma, desde como apresentar um tema até o estilo específico de redação, o que talvez explique a sobrevivência de modismos e jargões da linguagem jurídica, como “é mister” ou “o festejado autor”. A redação do manual e seu conteúdo passam a ser exemplos de como o trabalho deve se apresentar. Porém, manuais didáticos não são trabalhos monográficos e não devem servir de modelo para uma monografia. Como já foi dito, para que o trabalho tenha essência monográfica, é necessário que tenha um tema que o oriente a um objetivo: algo que se queira descobrir, ou uma pergunta a que se queira responder. Isso é algo raro em trabalhos dessa fase acadêmica inicial, salvo quando houver atenta e constante orientação de um professor. Uma possível maneira de se contornar essa dificuldade é eleger como tema alguma discussão teórica em que haja correntes divergentes. Bastaria, então, formular questões específicas que indiquem um problema a ser resolvido, ou uma situação fática a ser constatada, sempre a partir de investigação e pesquisa, e que tivesse tal divergência por objeto. Por exemplo: qual corrente prevalece nos tribunais brasileiros quanto à polêmica da internalização dos tratados de direitos humanos? Quais são os limites de aplicação da corrente que considera os tratados incorporados anteriores à 1.2. EC n. 45/2004 como infraconstitucionais e supralegais? Isto é, em quais situações tal corrente não resolve o problema da interpretação do texto anterior à referida emenda de maneira satisfatória? E assim por diante. O importante é evitar um trabalho que imite um manual, cuja única finalidade seja resumir a matéria, sem algo que se queira propriamente concluir. O ponto central, que realmente agrega qualidade ao trabalho, é realizar análises e interpretações próprias, pautadas numa lógica objetiva e em critérios avaliatórios explícitos, que demonstrem coerência nos argumentos, conduzindo o texto a uma conclusão. Isso é possível mesmo a um aluno de graduação, desde que proximamente orientado. Contudo, isso deve ser seguido apenas se o professor não estabelecer um roteiro obrigatório de redação, caso em que o trabalho talvez sequer chegue a ser monográfico. Nesses casos, quer-se apenas que o aluno estude o conteúdo e redija um texto para fixação do aprendizado sob regras da redação acadêmica. Monografias de conclusão de curso na graduação (TCCs) Na graduação em direito, os TCCs são, em regra, monografias jurídicas, geralmente produzidas sob orientação de um professor do curso. No entanto, a própria dedicação do aluno ao trabalho rivaliza com outras coisas importantes em sua vida, já que, além de ter de estudar para as provas finais, existe o assombro do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, muitas vezes somado à busca da efetivação em seu emprego. Nessa fase, soluções práticas são interessantes. Nesse contexto, a primeira recomendação ao aluno é que escolha um tema com que tenha afinidade. Tal escolha permite manejar temas de maior complexidade mais facilmente, o que, além de ser o caminho mais seguro para a produção de trabalhos consistentes e interessantes, é um bom ensaio para aqueles que vislumbram fazer logo uma pós-graduação. Em sentido contrário, a falta de afinidade prévia com o tema pode levar (e normalmente leva) à elaboração de um trabalho não monográfico, com tendências a 1.3. replicar manuais, que são, usualmente, o tipo de literatura a que um novato em qualquer assunto é obrigado a recorrer. DICA Alguns alunos têm dificuldades para encontrar um tema em que se julguem minimamente especialistas. Os que fazem estágio durante a faculdade têm um pouco mais de facilidade para tanto, já que seus trabalhos em geral os tornam mais peritos em determinado assunto. Entretanto, há outras maneiras de se chegar a um tema com que se tenha familiaridade, inclusive para o aluno que não queira fazer seu trabalho sobre o mesmo tema de seu estágio: o assunto de um trabalho importante que tenha sido feito durante a faculdade; um livro ou autor lidos com especial afinco para uma disciplina, ou por gosto pessoal; um seminário preparado com empenho, do qual ainda se tenha algum material de preparação guardado; ou até mesmo um ponto de matéria estudado com especial afinco para uma prova. Monografia de conclusão de curso em pós-graduação lato sensu (especialização) Embora já se encontrem na pós-graduação pesquisas bem realizadas e trabalhos com grande qualidade científica, nesse nível também há frequentes trabalhos produzidos à semelhança de cursos e manuais, o que, reitera-se, se deve evitar. Muitas razões distintas contribuempara isso. Uma delas é o vício trazido da graduação nos inúmeros trabalhos disciplinares escritos de maneira explicativa, de modo a demonstrar ao professor o aprendizado da matéria. Em outros casos, por desencantamento com o curso ou qualquer outra frustração acumulada ao longo da pós-graduação, o aluno perde a motivação para fazer um trabalho mais desafiador e instigante. Mas também há, paradoxalmente, alunos muito interessados que desejam produzir trabalhos diferenciados. Motivados em inovar, porém, acabam confundindo “diferenciado” e “diferente”: elegem como assunto de trabalho temas exóticos e obscuros, ou então inteiramente alheios às suas respectivas áreas de familiaridade. Consequentemente, passam a maior parte do tempo de pesquisa aprendendo o básico a seu respeito. Ao final, sentem dificuldade até mesmo para identificar um objeto de pesquisa e terminam 2. por realizar trabalhos que se resumem a transcrever trechos de manuais ou jurisprudência consagrada. Há também aquele aluno que está na pós- graduação para qualificar-se para o exercício profissional em uma nova área, e este também tende a gastar tempo excessivo em meio à literatura voltada a principiantes. Por isso, reitera-se: na pós-graduação, mais do que nunca, deve-se desenvolver um tema familiar. O nível acadêmico exige, inclusive, certo domínio sobre a matéria. É um erro querer escrever sobre um tema que não se conhece, mesmo que esteja compreendido na especialidade cursada. A finalidade de uma monografia de pós-graduação é agregar valor à comunidade científica ou profissional, por meio do compartilhamento da expertise adquirida mediante a investigação realizada. Afinal, será um trabalho de um especialista, e não de um simples curioso. A regra de ouro da graduação também vale para a pós-gradua ção. Na verdade, ela se torna mais importante à medida que subimos na escala acadêmica. Portanto, escreva sobre o assunto que melhor conhece. Concentre-se em identificar questionamentos interessantes sobre o tema escolhido. Agregue valor com uma argumentação sólida pautada em raciocínio próprio, e não simplesmente replicando ideias alheias. ARTIGOS CIENTÍFICOS O artigo científico é, antes de tudo, um meio de diálogo acadêmico: é o instrumento pelo qual um pesquisador comunica ao restante da comunidade acadêmica algum achado novo, ou conclusão importante a que chegou, preferencialmente por meio de veículos de publicação especificamente destinados a esse fim, como são os periódicos científicos. Segundo Severino, um artigo tem “por finalidade registrar ou divulgar, para público especializado, resultados de novos estudos e pesquisas sobre aspectos ainda não devidamente explorados ou expressando novos esclarecimentos sobre questões em discussão no meio científico” (2007, p. 208). A finalidade de um artigo científico é, portanto, a divulgação científica, o que afasta, mais uma vez, textos com finalidades didáticas, como são os manuais jurídicos. Alguém que, a pretexto de escrever um artigo científico, produza um texto superficial sobre um tema amplo, como se fosse um capítulo de manual, comete um erro quanto ao gênero literário, como o aluno de vestibular que escreve um poema quando o examinador pedia uma carta. Artigos científicos apresentam argumentos, dados e conclusões de maneira mais compacta e objetiva e, por isso, não possuem extensão ou profundidade necessária para se tornar um livro autônomo. Embora seja plenamente possível fazer um artigo científico de tema puramente teórico ou especulativo, a objetividade desse gênero literário manda que grandes explicações teóricas ou conceituais de caráter preliminar sejam suprimidas. Não é porque meu raciocínio emprega tipos ideais que meu artigo deve ter uma longa divagação sobre Max Weber, sua vida e sua obra. Não é preciso sequer uma extensa explicação sobre o que são tipos. Ao mesmo tempo, artigos devem possuir completude e clareza necessárias para que seus argumentos, os experimentos nele descritos, ou linhas de raciocínio nele empregadas, sejam replicáveis por qualquer leitor interessado. Isso exige cristalina enunciação do problema de que tratam, explicitação de pressupostos relevantes, enunciação clara das hipóteses e exposição objetiva dos procedimentos de coleta e análise de dados, ou do material doutrinário consultado e a forma de sua apreciação. O conteúdo específico de um artigo variará de acordo com a natureza da pesquisa que reproduza. Em trabalhos de caráter mais doutrinário, é importante que o artigo ofereça uma abordagem compreensiva e abrangente da literatura mais atual e relevante no assunto de que trata, de modo a demonstrar que aquilo que contém está conectado com o estado da arte da produção acadêmica sobre a matéria. Já os artigos que apresentam dados de pesquisas empíricas precisam detalhar com clareza os procedimentos adotados para a coleta de dados, a forma de análise das informações coletadas, os próprios dados levantados na pesquisa e as conclusões que 3. deles se podem extrair. O importante é que todos os elementos de convicção necessários à formação da conclusão do autor do artigo, seja ele de que natureza for, sejam explicitamente oferecidos ao leitor, para que ele mesmo possa “replicar” o pensamento do autor do artigo e verificar se as conclusões procedem ou não. E, claro, tudo isso deve ser feito no curto espaço de poucas dezenas de páginas que artigos normalmente têm, razão pela qual artigos científicos devem ser marcadamente claros, objetivos e concisos: o que determina sua extensão é a necessidade de clareza na comunicação dos procedimentos de pesquisa, ou dos passos argumentativos, percorridos pelo autor. Finalmente, vale lembrar que artigos científicos, como qualquer produção acadêmica, deverão atender a todas as exigências de forma e estilo dos trabalhos dessa natureza. Há, entretanto, requisitos específicos que podem variar de um periódico científico para outro. Convém, portanto, conferir previamente, junto ao periódico em que se pretenda publicar o trabalho, as regras específicas para apresentação deste, como lembra bem Severino (2007, p. 208). Para os programas de graduação ou pós-graduação que aceitam artigos científicos como trabalhos de conclusão de curso, convém, igualmente, que se confiram na secretaria acadêmica do respectivo programa as regras para apresentação dos trabalhos. DICA Muitas vezes, a expressão “artigo científico” é empregada de forma menos específica do que o definido aqui, para indicar apenas um trabalho de curta extensão, cujo conteúdo pode ser variável: a análise de uma obra, a definição de determinado conceito em um livro específico, ou até mesmo uma resenha crítica. Quando uma instituição ou um professor pedem que alunos escrevam artigos científicos, convém, portanto, certificar-se quanto ao exato produto esperado nesses casos. TESES E DISSERTAÇÕES A dissertação e a tese são trabalhos monográficos exigidos para obtenção dos títulos de mestre e doutor, respectivamente. Na escala dos trabalhos monográficos de conclusão de curso, são os que mais demandam planejamento e pesquisa. Falta de tempo, de dedicação e de interesse são incompatíveis com esses trabalhos. Idealmente, os preparativos iniciais devem começar antes mesmo do ingresso no programa. A complexidade de trabalhos da magnitude de uma dissertação e de uma tese exige a elaboração de um projeto cuidadoso. Em muitos programas, o projeto é pré-requisito para a participação do processo de seleção do curso. Nos programas mais concorridos, o projeto não pode ser apenas bom; tem de ser excelente. Apesar de serem trabalhos monográficos e com evidente densidade de planejamento e pesquisa, a dissertação e a tese não são simples monografias aprofundadas. Elas guardam certas particularidades. A dissertação é um trabalho desenvolvido no curso de um programa de mestrado, submetida a uma qualificação e a uma defesa pública perante banca composta por ao menos três docentes. A tese é um trabalho desenvolvido no curso de um programa de doutorado, submetida a uma qualificação