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LINGUAGEM VISUAL NA HISTORIOGRAFIA UNIASSELVI-PÓS Autoria: Dra. Camila Serafi m Daminelli Indaial - 2020 2ª Edição CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Carlos Fabiano Fistarol Ilana Gunilda Gerber Cavichioli Jóice Gadotti Consatti Norberto Siegel Julia dos Santos Ariana Monique Dalri Marcelo Bucci Revisão Gramatical: Equipe Produção de Materiais Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Copyright © UNIASSELVI 2019 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: D159l Daminelli, Camila Serafim Linguagem visual na historiografia. / Camila Serafim Daminelli. – In- daial: UNIASSELVI, 2020. 170 p.; il. ISBN 978-65-5646-015-4 ISBN Digital 978-65-5646-016-1 1. História e linguagem visual. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 701.15 Sumário APRESENTAÇÃO ............................................................................5 CAPÍTULO 1 História e Linguagem Visual .........................................................7 CAPÍTULO 2 Linguagem Visual, Modernidade e Tecnologia ........................61 CAPÍTULO 3 Imagem e Ensino de História ....................................................119 APRESENTAÇÃO Os conteúdos abordados nesta disciplina buscam desenvolver habilidades em relação à linguagem visual. Entendendo-a em suas especificidades, o inquérito ao qual submetemos um produto visual na perspectiva historiográfica requer instrumentos específicos. No entanto, não há como selecionar e normatizar critérios universais, elencados como os mais aptos ao saber histórico. A princípio, cabe dizer que no decorrer dos debates que aqui terão lugar buscaremos romper com a gaiola epistemológica que limita a imagem a um documento visual, interpelado iconograficamente, apenas. Como sugere o historiador Ulpiano Bezerra de Meneses (2012), é crucial que o historiador/a se familiarize com as inúmeras variáveis que definem a natureza da imagem e com a multiplicidade de papéis que ela pode assumir historicamente. Quer dizer, ainda que não percorramos todos os métodos e caminhos pensados para se “ler” uma imagem, interpretar os seus signos ou o seu conteúdo intrínseco, será preciso realizar uma cartografia dos aportes oferecidos a esta inquirição pela história da arte, pela história das técnicas, pelas ciências da percepção, da comunicação, da cultura visual e da semiótica, entre outros. No primeiro capítulo abordamos os marcos teóricos que pensaram a “leitura” de imagens, introduzindo técnicas e metodologias oriundas do campo do ensino das artes. Estas contribuições são importantes seja porque a análise das técnicas tem peso na produção de sentidos, seja porque estes estudos foram desenvolvidos com um público-alvo semelhante àquele com o qual nós, professores e professoras, também atuamos: crianças, adolescentes, jovens, estudantes e apreciadores de arte. Abordaremos a imagem pela perspectiva iconográfica, iconológica e no âmbito dos estudos da cultura visual, no qual a imagem é documento visual e artefato. No âmbito da imagem como fonte histórica, analisamos a tensão existente entre o seu uso como testemunho e/ou como representação, ou seja, a imagem como representação do passado, mas também como instrumento para construí-lo. No segundo capítulo da disciplina, aproximaremos os debates sobre a linguagem visual ao campo das técnicas e tecnologias. Arte, fotografia, cinema e televisão são linguagens visuais, mas vão além. São técnicas, ou melhor, fazem parte de uma produção artística técnica que se relaciona com a modernidade, com tecnologias e que se inserem em uma outra dinâmica de produção de sentidos. Vamos abordar a discussão clássica sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e também problematizar os registros audiovisuais como linguagens possíveis de produção e apropriação do conhecimento histórico. O terceiro capítulo da disciplina está dedicado à relação entre imagem e ensino de História. Tal relação, embora não seja nova, encontra-se em franco desenvolvimento. As possibilidades de utilização de imagens em sala de aula, em quaisquer dos níveis de formação, é um tema de suma relevância em uma sociedade como a nossa, na qual impera a visualidade. Levantamos as possibilidades de utilização da imagem como objeto e fonte para a construção do conhecimento histórico escolar e sugerimos, finalmente, propostas didáticas que inspirem cada um e cada uma a empregar recursos imagéticos na disciplina de História. CAPÍTULO 1 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: • Analisar e compreender os conceitos e códigos que envolvem a leitura de imagens, no âmbito de diferentes perspectivas teóricas que pensam a imagem como linguagem. • Apreender as especifi cidades dos documentos imagéticos enquanto fontes históricas e além, sobretudo em relação a sua qualidade de representações que indiciam sobre dado contexto histórico, oferecendo também um testemunho sobre ele. • Ser capaz de realizar a análise crítica de imagens, situando-as na produção do conhecimento histórico como uma categoria de documento que é, ao mesmo tempo, fonte e objeto de investigação, com as características próprias de sua materialidade e lugar de produção. 8 Linguagem Visual na HistoriograFia 9 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 1 CONTEXTUALIZAÇÃO Realizar uma leitura crítica de imagens, imprescindível ao saber histórico, requer o conhecimento dos critérios investigativos da imagem enquanto produto cultural, coisa feita por homens e mulheres, com intenções, que comunicam e que expressam através de diferentes aportes: plasticidade, elementos formais, estéticos, iconográfi cos etc. Para que possamos inquerir uma imagem, qualquer que seja, enquanto produto visual ou como fonte documental, que aporta um testemunho, será preciso caminhar primeiro entre o universo das artes e seu encontro com a semiótica. Deste encontro resultaram diferentes métodos de leitura de imagens, os quais teremos a oportunidade de conhecer e “provar” em um primeiro momento deste Capítulo I. Não estranhe se neste primeiro momento a discussão desenvolver-se de maneira lenta, abordando metodologias de leitura de imagens que não são específi cas do campo historiográfi co. Elas são importantes, pois o conceito “leitura de imagens” é oriundo dessas interceptações que os diferentes campos do conhecimento realizaram e realizam entre as artes visuais. Requer também alguma atenção o fato de que a concepção da imagem como algo que pode ser “lido” não refl ete um consenso entre historiadores e historiadoras, talvez por isso os métodos de leitura de imagens fi quem restritos a esta parte inicial da discussão. Nos dois outros momentos do capítulo, utilizaremos a noção de que as “inquerimos”, o que certamente abrange com maior precisão a sua utilização pelo saber historiográfi co. No segundo e no terceiro momento do capítulo, situaremos as discussões oriundas do fazer historiográfi co, como as relações entre História e imagem, imagem e memória, imagem e documento. Quais são as perguntas que o historiador/a pode ou deve fazer ao artefato visual na tessitura historiográfi ca? Há uma relação direta entre a natureza visual de um problema histórico e as respostas disponíveis na visualidade de um produto inquerido? A imagem compõe um sistema linguístico? Buscaremos, se não resolver, ao menos discutir essas e outras celeumas próprias do nosso campo, apresentando algumas das ideias centrais. Um dosos objetos prediletos de nossa atenção são, hoje, menos os informes pontuais, os dados, os acontecimentos, e mais as maneiras de viver ou de pensar, particulares à época que testemunham e que, talvez, estejam ali presentes a contragosto, ou seja, sem que a sua produção ou autoria tenha assim desejado expor-se. Nossa represália em relação à dependência que temos dos documentos, para escrever a História, consiste em usar a astúcia para saber muito mais sobre eles do que eles julgaram sensato nos dar a conhecer. No entanto, a partir do momento em que não nos limitamos “a registrar [pura e] simplesmente as palavras de nossas testemunhas, a partir do momento em que tencionamos fazê-las falar [, mesmo a contragosto], mais do que nunca se impõe um questionário. Esta é, com efeito, a primeira necessidade de qualquer pesquisa histórica bem conduzida” (BLOCH, 2001, p. 78). Qualquer fonte documental, tendo testemunhado muito mais do que se vê na superfície, não fala senão quando se sabe interrogá-la. Claro está que, como em qualquer roteiro, entrevista, expedição ou outra operação que enseje um passo a passo, no interrogatório das fontes, haverá sempre desvios, alterações no itinerário, mudança nos planos. Mas impor um questionário é estar ciente de que o testemunho, ao não ser submisso, 37 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 não se dá com a facilidade que se espera: é preciso pressioná-lo, por assim dizer, com a força das perguntas pertinentes. Pontuados tais pressupostos, uma questão está, ainda, a nos interpelar. Existe, no interior do método crítico da ciência histórica, uma especifi cidade metodológica relativa às imagens? Em Testemunha ocular Peter Burke (2017) oferece uma contribuição destacada para o uso de imagens como evidência histórica. Segundo o historiador, existe um debate historiográfi co que deve ser situado previamente à problematização dos usos das imagens pelo saber histórico, que se refere ao confl ito permanente entre positivistas e estruturalistas. Para os primeiros, as imagens oferecem informações confi áveis sobre o mundo exterior; perscrutam-na, portanto, para perceber a realidade além dela. Já os estruturalistas focam-se na imagem e somente nela, em sua organização interna, nas relações entre suas partes, entre uma imagem e outra do mesmo gênero, pontuando que a imagem não informa sobre uma realidade, mas sobre uma representação sempre situada de dada realidade. Há, enquanto proposta metodológica, uma terceira via? Burke acredita que sim, que há outro caminho sendo trilhado por historiadores e historiadoras, mas que inexiste, por ora, um manual. Entretanto, sabe-se já que esta terceira via não se situa no meio da estrada, entre as duas propostas apresentadas anteriormente (a positivista e a estruturalista), mas fazendo cuidadosas distinções que se referem aos dois pressupostos teórico-metodológicos da prática histórica tradicional (lugar de produção do documento e questionário a ele aplicado), inserindo as críticas pertinentes do campo visual. A título propositivo, Burke apresenta quatro observações, das quais podemos nos aproximar no trabalho de análise crítica de imagens. I - As imagens não dão acesso ao mundo social diretamente, mas sim a visões contemporâneas daquele mundo. Não podemos esquecer, por exemplo, que tendências opostas de produtores de arte idealizam e satirizam o mundo que representam, sendo necessário distinguir entre representações do típico e imagens do excêntrico. II - O testemunho das imagens necessita ser colocado nos seus devidos contextos, cultural, político, material etc., incluindo as convenções artísticas e pictóricas de determinado tempo e lugar. Nos contextos inserem-se também as questões relacionadas às funções da imagem, os interesses do artista, do patrocinador, do cliente. III - Séries de imagens oferecem testemunhos mais confi áveis do que pode aportar uma imagem individual. Quer dizer, uma “história serial” se apresenta mais fértil; seja uma multiplicidade de imagens de um mesmo período, 38 Linguagem Visual na HistoriograFia a fi m de abordá-lo, seja ao observar mudanças nas imagens de um mesmo tema, ao longo do tempo. IV – É preciso ler nas entrelinhas das imagens, observar pequenos detalhes, notar as ausências signifi cativas; usar estas observações para apreender informações que os produtores das imagens não sabiam que sabiam ou suposições que não estavam conscientes de expressar. As observações de Burke são válidas como síntese do que tratamos de abordar neste apartado sobre o método crítico das fontes em História, que foi desenvolvido conforme o itinerário de Marc Bloch. Agregamos, no entanto, uma última questão, também sumária: é possível afi rmar que as imagens se prestam melhor, como documentos, como fontes documentais, às problemáticas específi cas do campo visual? Os autores chamados a colaborar nesta narrativa estão de acordo em pontuar que se trata de um equívoco imaginar que a cada problema histórico corresponde um tipo de documento específi co para este uso. Atentam, também consensualmente, que o conhecimento histórico mais qualifi cado, fi ável e prazeroso se constrói com o diálogo entre fontes documentais diferentes e as mais variadas possíveis: “quanto mais a pesquisa [...] esforça-se por atingir os fatos profundos, menos lhe é permitido esperar a luz a não ser dos raios convergentes de testemunhos muito diversos em sua natureza” (BLOCH, 2001, p. 80). Convencidos e convencidas de que as imagens, em toda a variedade em que se apresentam no universo do campo visual, podem ser utilizadas como fontes para a escrita da História problematizaremos, a seguir, alguns destes usos frequentes. A imagem como testemunho e representação de dada sociedade, cultura ou ação situada no tempo será o foco da abordagem, havendo, fi nalmente, espaço para discutirmos a questão da imagem enquanto linguagem e como tal, inspecionar os elementos que conformam o seu enunciado. 4 A IMAGEM COMO TESTEMUNHO E/ OU REPRESENTAÇÃO Ouvimos com frequência, ao longo da trajetória acadêmica, a sugestão de não utilizarmos imagens em nossos trabalhos, se elas se fi zerem presentes apenas enquanto ilustrações. O conselho constitui um “não faça isto”, tendo por base a historiografi a: a maior parte dos trabalhos de História que utilizam imagens ou são estudos específi cos sobre o campo visual ou as inserem a fi m de ilustrar conclusões que a narrativa já havia chego através de outras fontes. De fato, como sugerido por Peter Burke (2017), alguns dos estudos pioneiros na utilização de 39 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 imagens possuem a característica de investigar temas em que o apelo ao visual assume maior importância por serem escassos vestígios oriundos de outras fontes, caso, por exemplo, da “pré-história”. De qualquer forma as imagens, sendo bem exploradas ou apenas superfi cialmente, aportam um testemunho e evidências específi cas para o levantamento de hipóteses. A concepção de testemunho, conforme a temos utilizado, refere-se à característica de um artefato ter sido contemporâneo de um momento histórico: quem se atreve a dizer que as pinturas rupestres encontradas na Serra da Capivara, no Estado do Piauí, não testemunham sobre a presença humana no local, desde 25 mil anos atrás? Não é testemunho no sentido de “prova”. É testemunho no sentido de haver compartilhado, feito parte daquele contexto, podendo, por esta razão, ser inquerido em relação a ele. Sigamos com este exemplo, por meio da abordagem da Figura 10. FIGURA 10 – PINTURA RUPESTRE DO PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA, PIAUÍ/BRASIL FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. 40 Linguagem Visual na HistoriograFia Qual é o testemunho dado por esta imagem? Com certeza, ela testemunha a presença humana na região; que estas pessoas manipulavam o ocrevermelho; que representavam fi guras humanas; e que, em suma, expressavam-se pictoricamente. Já em relação ao que a imagem indicia – no sentido de vestígio, possibilidade, evidência – pode-se pontuar a existência de códigos de conduta e práticas de castigo. O que não podemos afi rmar, senão por meio de outras fontes, são as motivações do castigo, se eram perpetrados por homens ou por mulheres, se os castigados eram crianças ou adultos, quais eram as funções da representação desta prática, dentre outras questões que a imagem nos suscita. Com isso queremos colocar uma questão inicial: o testemunho oferecido por uma imagem tem limites, não podendo ser compreendido como manifestação de uma mensagem autevidente, tampouco super interpretado, inferindo-se sobre ele muito mais do que apenas indicia. Não ignoramos o fato de que uma imagem pode manifestar um desejo, uma aspiração, ou uma representação subjetiva de uma realidade, sem que nada palpável acerca dessa realidade possa dela ser apreendido. No entanto, uma imagem testemunha de maneira mais qualifi cada quando aponta para um fenômeno social. As imagens são uma forma importante de evidência histórica, sobretudo quando registram atos de testemunho ocular. Recordemos a existência de uma cultura e mesmo de um estilo artístico designado “estilo testemunho ocular”, no qual aos iniciantes das artes se instruía representar o mundo tal qual se deixava ver. Esta tradição, que remonta à Grécia Antiga, inspira atualmente estilos como a arte documentária, os retratos, as crônicas do cotidiano, o fotojornalismo, por exemplo. Foi um estilo artístico muito valorizado nas campanhas de guerra no século XVIII e XIX, quando artistas compunham as tropas dos exércitos com a função de observar e testemunhar as batalhas, a fi m de narrá-las visualmente de forma realista. Em Testemunha ocular, o historiador Peter Burke sumariou usos e abordagens das imagens segundo uma classifi cação estética ou de estilo, a saber: fotografi as e retratos; iconografi a e iconologia; o sagrado e o sobrenatural; poder e protesto; cultura material através das imagens; visões da sociedade; estereótipos do outro; narrativas visuais; de testemunha a historiador; além da iconografi a; e, História cultural das imagens. É importante que se tenha em mente este sumário, porque a obra de Burke fez uma espécie de apanhado geral sobre as metodologias e usos do campo visual na historiografi a, mas também delineou possibilidades em cada uma destas classifi cações. Limitamo-nos a abordar parte deste sumário, em relação às imagens como testemunhos/evidências em dois sentidos: um mais literal, quando as imagens informam sobre uma determinada cultura material, e outro, em que permitem contextualizar dada concepção de mundo, ou examiná-las quanto às mentalidades, aí incluídos os estereótipos. Um terceiro momento de refl exão insere-se no campo que o historiador designou 41 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 “além da iconografi a”, no qual abordaremos a contribuição da semiótica na análise da produção visual considerada “de massa”. Na construção material de uma sociedade, nem todos os artefatos são produzidos com materiais aptos a resistir ao tempo. Um bom exemplo são os telhados. Lembremo-nos das ruínas de Machu Picchu, no Peru: as muralhas, paredes e caminhos da ciudadela construída no século XV estão preservados, mas falta-lhes a estrutura superior. Esta, feita com vigas de madeira e coberta com ichu, um tipo de palha local, não durava mais do que três ou quatro anos, com manutenções periódicas. Isso se infere por meio de estudos arqueológicos e, principalmente, através da tradição oral, uma marca da cultura Inca. Fora de dúvida está que uma imagem originária desta população em relação as suas habitações ou mesmo uma representação dos conquistadores espanhóis teria sido de grande contribuição para enriquecer análises sobre sua cultura material, já que se tratava de uma sociedade não escrita. O valor das imagens como evidência para a História do vestuário é igualmente destacado. Neste quesito ela informa sobre o que se vestia, quais os tipos de tecido ou a composição das peças e cores, mas também as infl uências, aproximações ou inovações de uma dada indumentária no interior de uma comunidade, Estado ou em relação à contextos internacionais. Pensemos na quantidade de indícios fornecidos pela pintura holandesa da segunda metade do século XVI e decorrer do XVII, por exemplo, em relação aos alimentos, à arquitetura das casas, à composição dos gêneros numa cozinha, à presença de animais entre os habitantes da residência etc. Parece evidente que, ao nos lançarmos à investigação historiográfi ca, temos que questionar: porque esta imagem, que representa um lar comum, ou a vista panorâmica de uma cidade, por exemplo, “mentiria”? Quais razões teria o artista para retratá-la como não era? Quais elementos podem ter sido exagerados ou ocultados? Conforme destacado por Burke, algumas evidências da cultura material são mais confi áveis. No caso da pintura da República Holandesa, o fato de que seus artistas estiveram “entre os primeiros a pintar vistas externas das cidades e interiores domésticos, para não mencionar natureza morta, é uma valiosa pista para a natureza da cultura holandesa no período” (BURKE, 2017, p. 129). De fato, nesta cultura dominada por cidades e mercadores, a observação e o detalhe, tão valorizados, fi zeram surgir uma arte descritiva que se apresenta, por isto mesmo, rica em indícios e testemunhos para a escrita da História. Aqui a ressalva se constitui no cuidado de não se tomar como testemunho ocular o que na realidade podem ser versões revisadas de uma imagem, ou ainda, uma representação de dado contexto sobre outro. Em um exemplo extremo, seria como tomar a Madonna de Da Vinci (Figura 8) como indiciária de elementos da época do nascimento de Jesus, sendo que fora produzida quinze séculos depois. 42 Linguagem Visual na HistoriograFia As imagens do cotidiano têm o poder de nos fazer adentrar no seu universo, pois possuem caráter realista, mas também despretensioso. Temos que recordar, no entanto, que ambas as características são ilusórias. É comum que as imagens transmitam certa distorção da realidade, caso das pinturas que informam sobre a arquitetura de uma cidade, por exemplo. Ao mesmo tempo em que seu testemunho possui um valor ímpar, porque permite de uma só vez e de forma geral, abstrair uma composição complexa de elementos que os textos – supondo- se que existam – demorariam muito a explicar, o estilo artístico arquitetônico ou de paisagem urbana costuma representar as cidades mais limpas e menos populosas do que de fato se encontravam no momento da observação. Esse é o caso da impressionante pintura de Jan Van Der Heyden (Figura 11), um expoente da pintura holandesa do século XVII, em A barragem e Damrak. A imagem é povoada por gentes e por construções de diferentes períodos históricos, mas ela não deixa de apresentar-se organizada e asseada. Isso é o resultado de uma “limpeza” estética, típica do gênero. O inverso de tal “limpeza” também pode ocorrer: a desordem e a sujeira podem ser destacadas ou exageradas quando a imagem possui uma retórica política ou moral. Ainda sobre a obra de Heyden, seu fator realidade reside na segurança que ela expressa em relação ao testemunho ocular do artista. Ou seja, ela nos convence, dada a sua técnica apurada, a perfeita perspectiva e o jogo de sombras, que o artista estava justamente no mesmo lugar que ocupamos a admirar a paisagem urbana. FIGURA 11 – A BARRAGEM E DAMRAK (C. 1663), JAN VAN DER HEYDEN FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. 43 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 Sugestão de fi lme: Moça do brinco de pérola (2004). Trata-se da adaptação fílmica de um romance baseado na origem do quadro homônimo, um dosmais famosos de Johannes Vermeer. Para além do drama central envolvendo uma jovem camponesa e o pintor, os cenários, fi gurinos e as relações de mecenato do meado do século XVII na Holanda estão muito bem representados. Quando nos referimos aos testemunhos da imagem em relação à cultura material não estamos apenas sugerindo que elas apresentam indícios da existência ou não de dado objeto, instrumento, vestimenta ou mobiliário, mas que eles evidenciam a organização e o funcionamento dos objetos investigados. Este tipo de “informe” raramente se apreende em textos escritos. O exemplo da Figura 12 pode tornar mais claro tal argumento. A obra, uma aquarela de Jean-Baptiste Debret, foi produzida entre 1820 e 1830 e intitula-se Loja de Sapateiro. A imagem retrata um sapateiro português, proprietário de seu comércio e dos africanos escravizados que o auxiliam nos serviços que presta. Um deles, em razão possivelmente de dano causado a alguma peça, é visto sendo castigado com uma palmatória, sob o olhar temeroso do companheiro à direita do observador e caçoísta da senhora à esquerda, possivelmente, a esposa do sapateiro, a amamentar uma criança. Repare-se na riqueza de indícios da cultura material do espaço: as ferramentas, os utensílios, a palmatória. A imagem informa que o comerciante produz sapatos variados, para um público de posses. No alto se veem botinas em couro; no interior do ímpio móvel envidraçado, a cobrir toda a parede traseira do estabelecimento, observam-se sapatos de seda. Em relação a estes últimos, a coloração clara não deixa dúvidas de que se trata de calçados para o público feminino. A delicadeza do armazenamento e o asseio do espaço denotam tanto o cuidado com um produto custoso, voltado a uma determinada pertença social, como a frequência do lugar por estes indivíduos. Quer dizer, não se tratava de uma ofi cina frequentada exclusivamente pelos trabalhadores. Tudo o que compõe o lugar destinava-se a ser visto, inclusive os trabalhadores e a prática do castigo. O estilo dos móveis, comuns para um contemporâneo, talvez não tenha sido registrado em detalhes em outras tipologias de documentos. Por sua vez, a organização do lugar e a disposição do espaço, entre o armário e o móvel central (possivelmente para o atendimento) e a dos trabalhadores se daria com difi culdade em um documento escrito, nisto residindo sua contribuição mais 44 Linguagem Visual na HistoriograFia importante. Já a indumentária da imagem corrobora o exposto noutras fontes: enquanto os escravizados vestiam roupas claras, feitas de baetão – tecido de lã grosso, dos mais baratos da época – e não levavam calçados, os homens livres, porém sem grandes fortunas, vestiam-se com modéstia, mas portavam sapatos e calças compridas, nisso diferenciando sua indumentária daquela voltada aos homens e mulheres de sua propriedade. FIGURA 12 – LOJA DE SAPATEIRO, (1820-1830), JEAN-BAPTISTE DEBRET FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. Para o estudo das mentalidades, as imagens constituem também fontes de notório valor. Podemos inclusive pontuar que a abertura do campo historiográfi co, no sentido da abordagem de novos temas, novos problemas e novas perspectivas, foi possível pela incorporação de outras fontes que não as ditas “ofi ciais” para a escrita da História, como aquelas do campo visual. Uma história da morte, do amor, da infância, problemáticas investigativas da chamada “história vista de baixo”, a cultura popular como um todo: se bem é verdade que escritos, diários, relatos podem dar conta destas temáticas, também é verdade que as imagens permitiram enriquecer grandemente estes estudos ao longo do século XX. Vêm-nos à mente, tão pronto colocamos esta questão, a obra de Philippe Ariès, História Social da Criança e da Família. O historiador investigou a emergência de um “sentimento de infância” no início da Era Moderna, utilizando 45 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 como fontes documentais artefatos de patrimônio material dos cemitérios, tratados sobre educação de crianças e jovens e imagens do período. Para o historiador, a alteração nas representações da infância se vinculava às sensibilidades dos adultos em relação a essa fase da vida, evidenciando o momento de transformação nas relações entre adultos e crianças e pais/mães e fi lhos. A obra, não ignoramos, tem sido alvo de diversas críticas ao longo dos mais de trinta anos desde a sua publicação. A principal delas, a nosso entender, é a que acusa o autor de negligenciar a mudança nas convenções de representação, vendo demasiada ausência de representações da infância durante a Idade Média e entendendo-a, por analogia, como ausência de sentimento em relação a esta fase da vida. De qualquer forma, seu trabalho tornou-se uma referência pioneira na utilização de imagens para o estudo das mentalidades, mas alerta também sobre as suas difi culdades. Um exemplo de sensibilidades apreendidas no âmbito político são as charges e as caricaturas do Segundo Império brasileiro. Elas testemunham de maneira ímpar a existência de um tipo de antimonarquismo que, ao mesmo tempo que satirizava a situação social e política do país, construía uma imagem do Imperador. Como nos mostrou Lilia Moritz Schwarcz (2014), os idealizadores da República no Brasil, no bojo das tensões travadas com os monarquistas, lograram formular a conexão entre a imagem de Pedro II como um velho e a obsolescência do regime que conduzia. Imagens do Imperador dormindo, alheio aos temas do país, abundaram nos jornais da época. Tratava-se, neste caso, de uma representação visual do Imperador, mas também da manifestação de uma imagem mental dos sentimentos que o monarca suscitava entre seus opositores. (Indicação de leitura: SCWARCZ, 2014. Trata-se de uma premiada biografi a de D. Pedro II que aborda concepções acerca do monarca construídas no contexto da crise do Império.) Vejamos a Figura 13, uma caricatura intitulada Manipanso Imperial publicada no jornal O Mequetrefe, em 1878. Primeiramente devemos ter em conta que uma caricatura ou charge não se produz tão somente para ilustrar uma ideia, mas para convencer e infl uenciar a formação de uma imagem mental sobre alguma coisa. Conforme esclarece a historiadora Joelza Esther Domingues (2016, s/p), “Manipanso é uma palavra de origem quicongo para designar um ídolo africano que representa o ancestral de um clã”. Apesar de a caricatura pautar-se num estilo fantástico original, nota-se que o Imperador fora representado com fi sionomia realística. A princípio, parece evidente o intento de acusá-lo pela centralização na distribuição de privilégios e cargos, estes representados pelas pastas que segura nas múltiplas mãos. A serenidade no olhar se choca com o colar de crânios humanos que leva posto, o que sugere a impiedade de sua personalidade. 46 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 13 – MANIPANSO IMPERIAL, CÂNDIDO ARAGONEZ DE FARIA. O MEQUETREFE, 10/01/1878 FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. Sugestão de site: . A autora do site é professora de História e oferece sugestões de documentos e fontes de diversos temas do currículo da disciplina para se trabalhar em sala. Como parte importante da campanha republicana, as caricaturas se davam à apreciação junto a textos que expunham os problemas do regime, mas elas informam também um enunciado próprio. No caso, a imagem do Imperador representava um sistema de governo obsoleto e antiquado – observe-se o manipanso, distribuindo cargos sem critério além do seu poder discricionário. Videm-se também as fi guras em menor escala: sustentando-o, fi gurativamente – porque estão abaixo –os políticos e o Exército são pelo Manipanso sustentados, 47 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 já que ele é a fonte de seu status quo. O elemento pictórico em si corrobora este enunciado: a representação tribal de um líder sentado confortavelmente em uma grande almofada suscita o sentimento de que ele e o regime que representa estão situados em outro tempo social. Voltando à questão que temos feito: o que imagens como essa podem testemunhar? Nesse caso, elas são, no mínimo, testemunhas da criação de instrumentos para expressar, visualmente, uma ideia subjetiva sobre o Imperador Pedro II. Parece necessário pontuar que a distinção entre a imagem como testemunho e a imagem como representação não se sustenta. Isso porque qualquer imagem concreta, mesmo em relação a uma imagem mental sobre dado período ou personagem, não pode ser outra coisa senão uma representação daquele momento ou pessoa. No caso de um retrato em que o artista – suponhamos que assim seja – reproduziu fi elmente as características de seu modelo, por exemplo, no retrato de Getúlio Vargas (Figura 14), nem por isso o retrato deixa de ser uma representação do estadista. Aqui operamos com a noção de representação como uma forma de reproduzir, simbolizar, ser a imagem de uma coisa, período, sentimento, lugar. Mas representação também no sentido de “estar no lugar de”, no sentido de uma atuação que substitui a coisa em si. FIGURA 14 – RETRATO DE GETÚLIO VARGAS (1938) FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. 48 Linguagem Visual na HistoriograFia No retrato em análise, as características fi sionômicas de Getúlio se deixam reconhecer, pretendendo-se uma obra realista, inclusive tendo em vista a sua fi nalidade expositiva no panteão dos estadistas brasileiros, na sede do Governo Federal. No entanto, o retrato não dissimula seu caráter lisonjeiro. Realizada em 1938, a pintura apresenta um homem de 56 anos, com aparência, porém, mais jovial. Seu biotipo físico fora igualmente alterado: ali, parece mais magro e alto do que realmente foi. A faixa presidencial e o cenário onde foi retratado demonstram o desejo de uma memória histórica específi ca, a saber, ser lembrado com as insígnias do cargo que ocupou – embora isso seja em parte a continuidade de uma tradição no país. Finalmente, uma sombra pairava sobre o governante: a de sua ilegitimidade. Tendo em vista consagrar-lhe a insígnia da legalidade, segurava fi rme numa das mãos – sugerindo-se inclusive que nela se apoiava – a Constituição Federal de 1937. Tendo sido esclarecida esta ponderação – a de que uma imagem será sempre uma representação, não importa o grau de fi delidade atribuído em relação ao modelo ou sua pretensão à testemunha ocular – tomemos um exemplo de representação no extremo: imagens construídas sobre o “outro”. De acordo com Peter Burke (2017), as maneiras com as quais lidamos com o outro, com aquele que é diferente de mim, na tentativa de compreendê-lo, são duas: a domesticação do exótico por analogia à minha cultura; e a construção da outra cultura em oposição a que eu pertenço. Este tipo de representação designa-se, grosso modo, estereótipo, e se observa entre duas culturas: a portuguesa e a generalidade dos indígenas; entre religiões: no caso dos judeus e dos muçulmanos; ou entre integrantes de uma mesma pertença social, como nas representações masculinas sobre as mulheres. Entre os exemplos mais familiares de estereótipos do outro, para nós, está o dos indígenas que habitavam o território brasileiro quando da sua invasão pelos portugueses. As populações indígenas foram objeto de inúmeras imagens, relatos e publicações no Velho Mundo, sobretudo nos séculos XV e XVI, tendo alcançado vendagem signifi cativa dado o interesse que despertavam. Assim como as “raças monstruosas” que faziam parte do imaginário europeu no período das navegações, é importante lembrar que a produção de imagens sobre sociedades remotas não fora de todo “inventada”. Em que pese o fato de grande parte delas ter sido produzida por homens que jamais pisaram em solo americano, essas visões distorcidas acerca do “outro” que, além de diferente, era alguém que se desconhecia, ilustra tanto os medos dos europeus frente ao mundo que se ampliava, quanto a sua autopercepção em termos de humanidade e civilização. Neste caso, o “outro”, além de bárbaro, revelava-se através das imagens enquanto privado de humanidade. 49 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 FIGURA 15 – COZINHANDO E COMENDO, (1592), THEODOR DE BRY FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. Na imagem de De Bry, vemos a cena de uma refeição em que o alimento é a carne humana; uma típica representação de canibalismo, com Staden representado atrás a gesticular sobre a barbaridade do ato. Os homens têm partes do corpo cobertas de pelo, plumas ou penas e estão do lado oposto ao ocupado pelas mulheres. Destaca-se a representação de duas mulheres velhas, à esquerda, com os seios fl ácidos (havia uma terceira na imagem original, cortada nesta que reproduzimos), a grande moradia que fi gura no plano mais ao norte da imagem e a gordura que goteja dos membros sobre a fogueira. Nenhuma imagem foi mais fértil em relação a esta falta de humanidade do indígena do que o discurso do canibalismo. Tomemos o exemplo da Figura 15 de autoria de Theodor de Bry, publicada no ano de 1592, De Bry era um ourives e editor de origem Belga, inserido no grupo daqueles interessados nos “descobrimentos”, mas que nunca esteve no Brasil. Suas imagens sobre o Novo Mundo foram produzidas em chapas de cobre (método designado “água-forte”) e inspiraram-se, sobretudo, no relato e nas imagens de Hans Staden – um explorador mercenário alemão que foi prisioneiro dos Tupinambás durante nove meses, na região situada entre a atual cidade do Rio de Janeiro e a de Bertioga em São Paulo. 50 Linguagem Visual na HistoriograFia Além de todas as liberdades que De Bry tomou em relação às imagens de Staden, nesta, em particular, a antropofagia foi retratada não como um ritual, mas como uma prática ordinária de alimentação. Isto dá margem para que se “leia” o canibalismo enquanto naturalizado, seja para o grupo em questão, seja para a totalidade dos grupos indígenas, já que a prática foi generalizada sem muito critério. Isto, hoje sabemos, está longe de ser verídico. Em termos pictóricos, não só a representação indígena na imagem não informa sobre os caracteres fi sionômicos dos Tupinambás, como a sua feição é grotesca, monstruosa, atualizando as representações do outro entre os europeus, que agora se encarnavam no habitante da América Portuguesa: exótico, inculto, primitivo, desumano e cruel. Como observou a historiadora Darlene Sadlier (2016), nada na gravura de De Bry é “tipicamente brasileiro”: reparem nos corpos esculpidos, nos cabelos longuíssimos da representação feminina mais à frente, que parece inspirado na Vênus de Botticelli. O destaque dado à prática do canibalismo pelos europeus não fora o resultado apenas de sua repulsa ou curiosidade, mas constituiu- se na prova de que a noção de cultura se limitava à civilização e esta não era encontrada senão no Velho Continente. Neste sentido, a imagem de De Bry, como outras, informa muito pouco sobre a realidade Tupinambá do meado do século XV e muito sobre o imaginário europeu, de si e do outro, no mesmo período. O estereótipo, no entanto, nem sempre se constitui como imagem negativa. O caso de Eugene Delacroix, pintor francês que viveu no século XVIII, é ilustrativo. Fascinado com a cultura oriental, o artista produziu desenhos e pinturas lisonjeiras de mulheres belíssimas e misteriosas, de uma cultura muçulmana luxuosa em cores e em ouro. Estas imagens não estão mais longe de serem estereótipos doque a representação dos indígenas pelos europeus. Em primeiro lugar, o “oriente” se resumiu à observação de umas poucas cidades muçulmanas, do que resulta uma enorme generalização. Depois, como o próprio artista assumiu, as mulheres muçulmanas não se deixavam retratar, motivo pelo qual usou modelos judias para inspirar as suas obras, inserindo as insígnias exóticas que observava nas muçulmanas. Neste caso, temos num mesmo exemplo a representação de um estereótipo e a distorção de uma realidade. Outro exemplo foi a emergência do sentimento romântico em relação aos indígenas brasileiros. É verdade que ele foi gestado, no século XVIII, junto aos propósitos nacionalistas, mas também é um fato que o bom selvagem de Rousseau adquiriu, no Brasil, nuances daquilo que “éramos”, ou seja, do que não somos mais, ou ainda, do que aspiramos enquanto identidade coletiva. De qualquer forma, tratava-se de um “outro” positivamente estereotipado, que se deixa ver muito bem pelas pinturas “nacionalistas” do século XIX. É curioso 51 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 pensar que, no curso da história, os indígenas passaram de selvagens canibais a modelo de bondade e pureza. Orientamo-nos, a partir de agora, para a parte fi nal da discussão sobre a linguagem visual na operação historiográfi ca, abordando as contribuições da semiótica para o campo da chamada “cultura de massa”. Designamos nossos artefatos de análise de fontes “documentais” porque esta nomenclatura é uma herança do ofício, dos tempos em que apenas documentos – no sentido lato, de textos escritos por uma ofi cialidade que confere, afi rma, um estado ou condição – eram confi áveis provas dos acontecimentos do passado. Mas o conceito de “fonte” não é menos problemático: sugere uma fonte d´água a se encontrar e nela a verdade sobre o passado, como se este pudesse ser avistado sem o contágio com intermediários. As críticas ao uso de imagens parecem residir no mais profundo deste postulado: na sua origem há um indivíduo que retrata o mundo como quer, como pode, como parece conveniente. Portanto, as imagens iludem, mentem, criam e imaginam. O tratamento historiográfi co conferido às imagens como fontes de informação situadas, numa sociedade como a nossa contemporânea, eminentemente visual, requer do/a historiador/a de ofício a aproximação da linguagem visual à estrutura linguística, oral e discursiva. O conhecimento do construto teórico, ideológico, social, enfi m, histórico das imagens estimula uma interação crítica com o universo ao seu redor, que está a todo o momento gerando representações do mundo através do campo visual. Daí que o diálogo entre culturas possibilitado pelo estudo crítico de imagens tradicionais, como a arte, mas também daquelas disponíveis no cotidiano – como outdoors, propagandas etc. – relacione-se com a perspectiva histórica, ao estimular um exercício cultural mais consciente em seu relacionamento com o “mundo das imagens”. Neste sentido, parece importante situar o caso das imagens como produto da cultura de massa. Para esta “leitura”, em específi co, são fundamentais as contribuições de Roland Barthes (1915-1980). Barthes foi um sociólogo francês que se destacou, dentre outros, no campo da semiologia – lembremo-nos da semiótica: ciência, teoria ou campo de conhecimento dos sistemas de signos. Através do estudo das imagens, das artes e da produção midiática em geral, Barthes realizou uma etnografi a da sociedade francesa através dos signos que ela emitia, oferecendo uma contribuição em relação à maneira de “ler” a produção visual contemporânea. Para o historiador Rodrigo Fontanari (2016), especialista na obra de Barthes, é na sua Mitologias, conjunto de textos escritos entre 1954 e 1956, que o autor esboça uma crítica ideológica da linguagem da cultura dita de massa, apontando para o mascaramento ideológico operado pelos códigos das mídias ao dissimular 52 Linguagem Visual na HistoriograFia a realidade e dar por natural aquilo que é historicamente construído. E como se dá tal mascaramento? Segundo Barthes as palavras, uma vez que a linguagem é naturalizada, passam pelas coisas, escondendo-se aí as intenções. Na obra oferece-se um modelo de desmontagem das operações discursivas dos meios de comunicação através de um exercício crítico de visão, que enseja perceber a produção de sentidos para além das aparências. O mito é defi nido por Barthes como uma fala, um sistema de comunicação e uma forma de signifi cação que se defi ne não pelo que diz, mas pela maneira como diz. A isto chamamos “linguagem”. Para o que nos interessa nesta discussão, importa que saibamos problematizar o uso social e histórico que os falantes fazem de uma dada linguagem, por exemplo, a visual, porque este uso é capaz de fazer com que os objetos e as matérias passem a signifi car outra coisa, para além de uma nomenclatura do mundo. Fontanari recorda que o conceito barthesiano de mito não se distancia de outro, aqui já abordado: o de “conotação, esse acréscimo de signifi cado ao signo” (2016, p. 147). O conceito de conotação aponta que é por meio do uso empregado à linguagem que o mito é defi nido conceitualmente, porque ele impõe ao signo um sentido secundário – “co-notar”, notar outra vez –, para além do desejo da produção visual em deixar-se mostrar francamente, como sugere o signifi cado do verbo “denotar”. O signo, para a semiótica, é tudo aquilo que está no lugar de outra coisa, ausente, passando a representá-la. Segundo André Valente (1997) com base nas diferentes relações entre signifi cante e signifi cado estabelecem-se três tipos de signos: ícone (como metáfora; imagem ocupa o lugar de algo que dela se assemelha); índice (como metonímia; um termo ou imagem substitui o outro porque o sentido de ambos é contíguo); e símbolo (de caráter conotativo; uma forma de convenção em que uma realidade concreta representa algo abstrato). Vamos aos exemplos práticos. Na Figura 16 temos um exemplo de ícone: o desenho de um abridor de garrafa de Coca-Cola vintage. Este desenho se assemelha, relaciona-se e faz lembrar o produto Coca-Cola, mas trata-se de um ícone ligado tanto à marca quanto ao produto, mas não há o produto em si. A Figura 17, por sua vez, sugere que se trata da bebida Coca-Cola, porque o líquido é escuro, está gelado e a identidade visual do produto, como ele costuma ser publicitado, suscita a ideia de refrescância, o que está sendo indicado – daí o “índice” – pela imagem. Finalmente, a Figura 18 aporta um símbolo: o produto não está ali, nem representado, nem sugerido. A relação com o símbolo é convencional: é preciso aprender o que ele signifi ca, saber o que é uma Coca- Cola, para compreendê-lo. 53 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 FIGURA 16 – UM ÍCONE COCA-COLA FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. FIGURA 17 – UM ÍNDICE COCA-COLA FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. FIGURA 18 – UM SÍMBOLO COCA-COLA FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. 54 Linguagem Visual na HistoriograFia A aproximação da História com os saberes oriundos da semiótica é notável, sobretudo em estudos que utilizam fontes documentais do mass media, publicidade e cultura de massa. A “leitura” barthesiana nos é importante também, por exemplo, em estudos que investigam fenômenos de recepção, quando se faz necessário analisar a produção de sentidos em âmbito coletivo. Recepção, diga- se, não apenas no seu sentido comercial, mas que abrange também a propaganda política, os regimes autoritários ou as campanhas de guerra, para citar alguns exemplos do desenvolvimento do estilo e de fórmulas visuais de relevo voltadas às massas. Embora não tenhamos a pretensão de serexperts em semiótica, porque isto requer toda uma formação que não possuímos como historiadores/as, seria importante realizar um exercício de leitura de imagem pautando-nos em tal perspectiva, aplicada a um produto da chamada cultura de massa. Fiquemos com o produto Coca-Cola. A imagem em análise (Figura 19) foi produzida como uma publicidade natalina da marca, no ano de 1957, tendo sido veiculada em revistas periódicas brasileiras. Do ponto de vista da análise que temos feito até aqui, a publicidade se insere na dinâmica enquanto testemunha de um momento histórico, indiciando sobre a vestimenta da época, o mobiliário e os objetos, os penteados. Mas a imagem não pode representar tal momento histórico porque a família em tela não existe: a imagem é a composição de um conjunto de fatores que enunciam o embricamento entre família, felicidade e Coca-Cola. Num exercício de denotação, observamos que a ambientação da família se dá em espaço doméstico, porém festivo, descontraído. Na cena representada, uma família branca, heteronormativa e nuclear troca presentes de Natal entre si. Ou, melhor posto, o pai, provedor da família, é quem distribui os presentes. O que está colocado enquanto signo é o produto Coca-Cola sendo consumido neste ambiente doméstico, familiar, harmonioso. Apesar da “festa”, os membros que a compõem são apenas o pequeno núcleo familiar, muito bem arrumados para uma confraternização reservada. “Conotando” a imagem, percebemos que ela sugere uma mensagem: os momentos simples podem se tornar grandes momentos com Coca-Cola, e ainda mais quando se verifi ca a presença dos três elementos da “fórmula felicidade”, como informa o enunciado: a família, o Natal e Coca-Cola. O que não está dito é que tudo o que está representado, desde a família, o cenário, o produto ou a festividade, foi naturalizado, como se não fossem, todos estes elementos, construções culturais que variam mesmo dentro de uma mesma cidade, classe ou etnia. Também fi ca evidente que um produto 55 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 cujo apelo imperialista é inquestionável, insere-se no cenário nacional de maneira naturalizada. Barthes questionaria acerca desta imagem o seguinte: qual é a sua retórica? O que ela inspira a que nos identifi quemos? Podemos afi rmar com certeza que a publicidade estimula a que se vincule a festividade natalina com a família, com presentes. Já a família se reporta ao ambiente doméstico e tal domínio e suas relações como permeados pela presença de Coca-Cola. FIGURA 19 – PUBLICIDADE DE NATAL DA COCA-COLA VEICULADA EM REVISTAS FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. 56 Linguagem Visual na HistoriograFia Como poucos produtos, Coca-Cola logrou ao longo do século XX consolidar sua imagem junto à da confraternização natalina, inserindo-se num mesmo apelo de consumo que hoje caracteriza esta data. No caso da bebida, por sua vez, seu apelo se irradia a diversas outras comemorações: dia dos pais, dia das mães, dia das crianças, carnaval, aniversários, reuniões entre colegas de escola ou de trabalho... Enfi m, a publicidade da marca sugere em cada um desses contextos que é um bom momento para fazer uso da bebida, para se permitir, para disfrutar. A análise de um produto como Coca-Cola – que é ao mesmo tempo um símbolo capitalista, ou de consumo, e um ícone da cultura norte-americana – tem mais nuances do que aquelas que apontamos. Acreditamos, no entanto, que nosso ponto em relação às intenções que se escondem sob a linguagem visual foi observado a contento. O que se buscou abordar neste apartado foram sugestões de análise de imagens de acordo com o método crítico da História, entendemos produtos da cultura visual como testemunhos do seu contexto de produção, e que podem, por isto mesmo, indiciar sobre ele uma série de coisas, se logramos fazer as perguntas corretas. No universo das artes, abordamos alguns estilos e os cuidados a se tomar para que não entendamos o enunciado desse tipo de imagens como evidente, tampouco sobrevalorizemos o elemento pictórico ou iconográfi co. Destacamos a necessidade de percorrer uma terceira via analítica, como sugerido por Peter Burke, para incorporar com qualidade as imagens na construção do conhecimento histórico: suas fórmulas, estilos, elementos pictóricos, convenções, relações, entre outros. Indicação de leitura: Gatto, 2018. O texto aborda alguns conceitos fundamentais da semiologia de Barthes aplicada a fotografi as, pinturas e imagens das mídias. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Qualquer artefato cultural se inscreve numa cadeia que engloba quem o produziu, quem o utilizou, quem o analisou, quem o empregou de outra forma. Mas as imagens, além de oferecerem seus testemunhos e indícios, permitem que se formem visões do passado, pois através delas imaginamo-lo melhor. Essa relação entre imagem e imaginação está presente na própria etimologia de 57 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 ambas as palavras. Também para a psicologia, por exemplo, o conceito de imago designa uma imagem inconsciente de um objeto. O elemento estético aporta ao conhecimento do passado uma sensação, uma visão desse passado. Este postulado é dos mais importantes. Um produto visual se insere em nossa memória histórica como um dado, eis aí seu potencial para o conhecimento histórico, mas onde residem também os seus perigos. As artes, privilegiadas na discussão que ora encerramos, poderiam haver sido abordadas pela perspectiva da História Social da Arte ou da Psicologia histórica, por exemplo. Optamos, em alternativa, por realizar um apanhado geral da sua utilização na operação historiográfi ca em dois sentidos. O primeiro, situado no apartado inicial do capítulo, apresentou propostas de leituras de imagens do campo do ensino de artes. Para quem está começando a se aventurar nos domínios da visualidade, não há melhor iniciação do que essa. A contribuição fundamental dada por esse campo vem no sentido de estabelecer etapas de apreciação artística que são fundamentais no “olhar” para a imagem e na sua signifi cação. Mas o ensino das artes aporta, também, ao instruir que a produção de sentidos se dá não apenas pela representação de alguém ou alguma coisa identifi cada, pois o pictórico, o gestual, o lumínico, o gráfi co, o espacial, entre outros passam uma mensagem, um enunciado e um sentimento. Os outros dois apartados do capítulo estiveram focados na utilização de imagens pelo saber historiográfi co. Sustentamos que as fontes visuais, como qualquer outra, devem ser inqueridas quanto ao seu lugar de produção, além de submetidas a um questionário qualifi cado para a investigação em curso. Da mesma forma como a tradição historiográfi ca sugere que se utilizem tipologias documentais diversas para a construção de hipóteses e argumentos, no caso da incorporação das imagens, isso se mantém: elas fornecem um testemunho mais seguro se cruzadas com outros, com outras “miradas” e outras “vozes”. Atentamos, fi nalmente, para a diversidade de produtos visuais disponíveis para o propósito da História. Uma obra de arte do século XIII e uma propaganda da década de 1990, o que elas têm em comum? A resposta esclarece aquilo que no capítulo seguinte será abordado em relação às imagens técnicas: seria mais acertado falar em múltiplas linguagens visuais, pois cada produto possui uma forma de signifi cação que testemunha e enuncia não pelo que diz, mas pela forma e através do que diz. Conforme aprendemos com Barthes, esse é o sentido do qual se investe a palavra “linguagem”. 58 Linguagem Visual na HistoriograFia 1) Em relação aos teóricos que propuseram metodologias de leitura de imagens, qual das afi rmativas a seguir está incorreta? a) ( ) As etapas de apreensão artística propostas por Ott constituem movimentos, daí sua descriçãono gerúndio, sendo o último deles a fase de reprodução, em que o apreciador revela sua apropriação da obra através de um fazer artístico singular. b) ( ) Para Maria Helena Wagner Rossi existem três níveis de julgamento estético, sendo o mais sofi sticado o nível III, em que o observador tem consciência de que a sua subjetividade atua na produção de sentidos e signifi cados em relação ao produto visual analisado. c) ( ) Os métodos de leitura de imagem de Robert Ott, Abigail Housen e Maria Helena Wagner Rossi compreendem etapas de recriação artística ao fi nal do processo de apreensão, quando então os/as mediadores poderão atentar se os/as observadores/ as compreenderam corretamente a obra analisada. d) ( ) As etapas de apreciação sugeridas por Erwin Panofsky foram largamente utilizadas por historiadores e historiadoras ao longo do século XX, embora atualmente se destaque a necessidade de analisar produtos visuais para além de iconografi a e iconologia. 2) Em relação ao método crítico das fontes elaborado por Marc Bloch no livro Apologia da História, assinale a alternativa correta: a) ( ) Aborda sobretudo a crítica a documentos escritos e ofi ciais. b) ( ) Compõem-se pelos princípios da discrepância, da semelhança limitada e da contradição. c) ( ) Prescinde o acosso de uma hipótese a ser comprovada. d) ( ) No caso das imagens, o método sugere maior importância à análise de sua produção do que dos símbolos e signos que a compõem. 3) Analise as afi rmações a seguir acerca da noção de testemunho, conforme elaborada por Peter Burke, assinalando a opção correta: a) ( ) O testemunho oferecido por uma imagem refere-se a haver sido contemporânea de dado contexto histórico, podendo ser inquerida em relação a ele. 59 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 b) ( ) Testemunho assemelha-se à noção de “prova documental”, daí a possibilidade de ser utilizada na produção do conhecimento em História. c) ( ) Algumas imagens fornecem um tipo de testemunho mais “fi el” do passado, a exemplo dos retratos pintados e das fotografi as, a partir do fi nal do século XIX. d) ( ) Uma imagem pode ser compreendida enquanto verdadeira testemunha ocular, se tiver sido produzida neste mesmo passado e com fi ns de registro histórico. 4) Em relação à obra de Barthes, assinale a alternativa incorreta: a) ( ) Está centrada na leitura semiótica de imagens do mass media. b) ( ) Incorpora noções de outros teóricos, como denotação e conotação. c) ( ) Acredita que através da naturalização da linguagem escondem-se as intenções, por exemplo, na publicidade. d) ( ) Foi um crítico de ícones como a Coca-Cola por razões ideológicas não sustentadas em suas teorias. 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Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. CAPÍTULO 2 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: • Compreender o papel dos processos tecnológicos na produção artística, assim como na difusão de imagens em diferentes contextos históricos e sociais. • Conceber a fotografi a, o cinema e a televisão em suas relações com manifestações artísticas, ideológicas e historicamente situadas. • Desempenhar-se criticamente em relação aos conteúdos e intencionalidades da linguagem, quando aportados pelos registros visuais e audiovisuais. 62 Linguagem Visual na HistoriograFia 63 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 1 CONTEXTUALIZAÇÃO Em primeiro lugar, comecemos por dizer que modernidade é um termo polissêmico. Ou seja, a depender do referencial teórico adotado, do fenômeno específi co a ser abordado ou até mesmo do lugar e do período em que se está situado, podemos encontrar concepções distintas de modernidade, que apesar de se sobrepuserem em muitos sentidos, certamente não coincidem por completo. No entanto, é possível destacar de antemão que todas estas possíveis defi nições, incluindo variações semânticas como modernização e modernismo, guardam consigo uma intrínsica dimensão temporal que as convertem em conceitos históricos de enorme relevância. Em diversos idiomas existem palavras derivadas da expressão originalmente latina, hodiernus, utilizadas para se referir ao tempo mais recente, algo que se conserva até os dias atuais, quando dizemos, por exemplo, que um determinado aparelho eletrônico, recém-lançado, é o “mais moderno” do mercado. Contudo, esta afi rmação carrega ainda outro signifi cado: o de que, por ser mais atual, o referido aparelho seria, consequentemente, também diferente e melhor do que os anteriores, ainda que fadado a ser ultrapassado pelo próximo que virá. Enquanto conceito histórico, esta segunda concepção de modernidade é a que mais nos interessa. A percepção do presente como um tempo radicalmente novo, que rompe com as tradições do passado e se abre para um futuro de possibilidades, constitui uma experiência moderna do tempo que começa se delinear, sobretudo na Europa, por volta dos séculos XV e XVI, no bojo de fenômenos históricos concomitantes como a invenção da imprensa, a difusão do Renascimento Cultural, a eclosão da Reforma Protestante e a formação dos Estados Absolutistas, mas que se expandem para outras regiões do planeta através das Grandes Navegações e do desenvolvimento se um sistema mercantilista mundial. Especialmente ancorado em torno da valorização de uma cultura humanista, o conjunto de transformações provocadas por este processo de grande abrangência envolveu mudanças profundas, que foram desde uma nova concepção de sujeito até um novo paradigma epistemológico. Como período histórico, uma noção de Idade Moderna irá se afi rmar lentamente, principalmente, por oposição a uma Idade Média quese tinha a impressão de deixar para trás. Mas foi somente na esteira de uma extensão do pensamento iluminista e dos impactos da dupla revolução, Industrial e Francesa, ocorridas no fi nal do século XVIII, que por volta de 1800 as rápidas e contínuas transformações sociais e tecnológicas vieram atribuir à modernidade um acentuado teor de realidade e vivência cotidiana. A partir desse momento, conceitos meta-históricos, como os de aceleração e progresso – além de outras variações semânticas, como “desenvolvimento” e “evolução” – passaram a ser 64 Linguagem Visual na HistoriograFia cada vez mais utilizados para descrever o crescente afastamento entre espaço de experiência (passado) e horizonte de expectativa (futuro), assim como para explicar a própria História (KOSELLECK, 2014). Curiosamente, mas de maneira coerente, quando se tem a necessidade de descrever este momento mais recente dos tempos modernos como uma novíssima Idade Contemporânea, é que se consolida o entendimento do período anterior como sendo uma Idade Moderna. Ou seja, a modernidade tal qual a conhecemos em termos de experiências caracterizadas, dentre outros aspectos, pela predominância do progresso tecnológico, do sistema capitalista e de uma sociedade urbano-industrial e de valores liberais-burgueses, é algo que se inicia justamente quando, em termos históricos, a Idade Moderna chega ao fi m. Para ressaltar esta diferença, alguns autores costumam chamar este período anterior de Primeira Modernidade ou Início da Modernidade. O imperativo processo de adequação, nos mais variados âmbitos, à frenética sequência de inovações conhecidas ao logo dos séculos XIX e XX, será frequentemente denominado de modernização. Ao passo que modernismo expressa a reação estética a estes processos de modernização, seja de forma entusiasta, crítica ou apenas refl exiva, sempre mediados pela experiência de uma modernidade strictu sensu. As novas possibilidades de reprodução técnica das obras de arte, oriundas da Segunda Revolução Industrial iniciada por volta de 1850, provocarão, por exemplo, profundas alterações não apenas nos modos de produção, mas também na própria forma moderna de percepção artística. Ainda no campo da arte, é justamente da tentativa de marcação de uma descontinuidade em relação a estes movimentos modernistas da primeira metade do século XX que surgirá uma ideia de pós-modernidade. Entretanto, a rigor, tal posicionamento, assim como o próprio prefi xo “pós”, seria historicamente equivocado, haja vista que não haveria nada mais moderno do que um gesto de inovação que busca superar a ordem precedente. Partindo deste pressuposto, autores como Hans Ulrich Gumbrecht defendem que a versão mais interessante de “pós-modernidade consiste em conceber nosso presente como uma situação que desfaz, neutraliza e transforma os efeitos acumulados dessas modernidades que têm se seguido uma a outra desde o século XV” (GUMBRECHT, 1998, p. 21). Nesta perspectiva, o século XXI seria produtor de uma nova temporalidade, diferente daquele imperativo por inovação característico da modernidade, na qual agora predominaria uma impressão de desaceleração em relação aos ritmos de mudança e uma crise da ideia de progresso, motivada dentre outras coisas pelas expectativas negativas das ameaças de colapso ambiental. Para Gumbrecht, a constatação de “uma mudança do hábito – moderno – de organizar as múltiplas representações de fenômenos idênticos como evoluções e histórias para o hábito – pós-moderno – de tratá-las como variações que estão simultaneamente 65 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 disponíveis” poderia indicar a constatação, tanto no nível historiográfi co quanto no artístico, desse novo paradigma (1998, p. 22-23). 2 ARTE E REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA Técnica, arte ou ofício. Três conceitos que designam maneiras de realizar uma ação ou um conjunto de ações. Conhecimentos que abrangem métodos, instrumentos, procedimentos, ferramentas: um modo de fazer. Interpelando a técnica por este prisma, fi ca claro que a possibilidade de reproduzir uma obra de arte sempre esteve à disposição de homens e mulheres que, atentos/as aos procedimentos, puderam refazer um objeto original. Na Antiguidade Clássica, por exemplo, os aprendizes de ofícios mais destacados eram aqueles que logravam melhor imitar a arte de seus mestres. A cunhagem de moedas, desde quatro mil anos atrás, constitui um dos mais antigos procedimentos de reprodução em massa. No Oriente, a xilogravura – técnica de gravura que utiliza uma matriz de madeira onde está esculpida uma imagem – é conhecida desde o século VI, antecedendo, portanto, a reprodução tipográfi ca da escrita. Em termos de reprodução técnica, a imagem surgiu antes da palavra. Outras artes fazem parte do universo de possibilidades a serviço da reprodução anteriores ao século XIX, momento em que o fenômeno da reprodutibilidade técnica entrou em um novo patamar. A prensa móvel desenvolvida por Gutenberg (1450) é uma forma de reprodução técnica, na qual um dispositivo com tinta aplica pressão sob uma superfície de papel ou tecido, imprimindo nela o texto da matriz. A matriz, por sua vez, é formada por “tipos” – daí o nome tipografi a – bloquinhos de chumbo forjados em relevo, cada um com uma palavra ou letra, que unidos formavam a placa que seria prensada e daria origem a uma pilha de páginas idênticas. Em seguida, a placa era desmontada, as palavras de uma nova página eram agrupadas e o processo repetia-se até a conclusão da obra. A mesma técnica, porém, em bloco único e um tanto rudimentar, ao invés dos “blocos móveis”, já era utilizada para a impressão de ideogramas na China desde o século VIII. 66 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 1 – BLOCOS MÓVEIS DE TIPOGRAFIA FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. Durante o medievo europeu desenvolveu-se a gravura em metal (com destaque para o cobre), nomenclatura genérica para designar a calcogravura (gravura mediante compressão). Na gravura em metal a tinta é depositada nos sulcos de uma gravura produzida no metal por um cinzel, ou buril, para a impressão da imagem em outra superfície. A lógica desta técnica é a mesma da xilogravura. A água-forte, do mesmo período, é também uma técnica de gravura em metal, mas cuja especifi cidade reside na corrosão dos traços do artista pelo ácido nítrico, o que provoca os sulcos que receberão a tinta para impressão. Embora mais de uma impressão possa ser produzida por uma única operação, com qualidades distintas entre a primeira e as demais, as técnicas de reprodução de gravuras se caracterizam pela operação singularizada, ou seja, cada gravura que se queira reproduzir com certa qualidade requer um novo procedimento de pintura e pressão da matriz na superfície que a receberá. As artes gráfi cas tornaram-se aptas a acompanhar a experiência de aceleração técnica do início do século XIX com o desenvolvimento da litografi a, já que este método se apresentava muito mais efi ciente do que os demais na reprodução massiva de gravuras. Na litografi a – lito, pedra, grafi a, escrita – a matriz de pedra calcária recebe um desenho feito com material gorduroso, trabalhado em goma arábica nas regiões brancas, não pintadas. A gordura não adere à goma, defi nindo-se o desenho. No processo de entintagem, além das cores, uma solução destaca as partes oleosas, desenhadas, que repelem água, daqueles que absorvem água e repelem gordura. Ao umedecer a superfície da pedra, primeiro com removedor, depois com água, as partes pintadas, gordurosas, 67 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 são impressas na superfície de contato. Através da prensagem de papel, madeira e até mesmo plástico sobre a pedra, reproduz-se milhares de cópias da imagem. Pode-se voltar a umedecer a pedra para expelir pigmentoquantas vezes forem necessárias para a continuidade da reprodução. A revolução operada pela litografi a na reprodutibilidade técnica só seria ultrapassada pela invenção da fotografi a. Com ela, o artista libertava as mãos e acelerava ainda mais o processo de reprodução. No entanto, o advento do “desenho da luz” trouxe, para as teorias da arte, tensões que envolviam a própria defi nição/redefi nição de arte, além de questões novas relacionadas às possibilidades de sua reprodução, que não se limitavam mais ao ofício do artista e suas técnicas. Técnica, neste momento, deslocava-se do sentido comum de procedimento para incorporar nele o de máquina. Numa equação simplista: a imagem passava a ser o produto de um procedimento mediado pela máquina. Independentemente de a intervenção humana ser mais ou menos signifi cativa nesse procedimento – isto variava entre os que pensaram a relação arte/ reprodutibilidade técnica – de qualquer forma o advento da fotografi a alterou as singularidades que até então haviam defi nido a produção artística de homens e mulheres. FIGURA 2 – MÁQUINA DE IMPRESSÃO LITOGRÁFICA FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. 68 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 3 – RÓTULO IMPRESSO EM MÁQUINA DE IMPESSÃO LITOGRÁFICA FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. De acordo com Wagner Souza e Silva (2012), no estado da arte atual que se relaciona à produção de imagens técnicas, esse conceito – técnica – não se refere apenas a um meio de produção, mas também a um modo de percepção produzido pelo aparato tecnológico. Apesar de usados indiscriminadamente, técnica e tecnologia possuem signifi cados diferentes. Para o autor, o termo técnica sugere uma conexão mais íntima com as necessidades e motivações da práxis, enquanto tecnologia corresponde aos aparatos e aos discursos que estipulam os modos de atuação. Os usos, formas de proceder e as maneiras de produção de sentidos através do aparato tecnológico, por exemplo, são as técnicas, ou ainda, as razões para fotografar, por exemplo. O sentido de ambos os conceitos está explícito na maneira como os utilizamos corriqueiramente: quando se aborda um “modo de fazer” de dado fotógrafo – uma expressão prática da necessidade que leva a uma ação – não afi rmamos que ele possui sua “tecnologia própria”, mas sim uma “técnica própria”, ou pessoal. Em síntese, tecnologia se defi ne pela conjunção do material e da teoria que foram originados por uma técnica. A fotografi a e o cinema, antes de se tornarem imagens, são o produto de atividades técnicas e tecnológicas. Ou seja, sendo a produção de imagens o produto fi nal dessas tecnologias, sua operação passa por uma instrumentalização 69 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 a que Souza designa experiência tecnestésica. Tal experiência está marcada, nos dias de hoje, pela infl uência da tecnologia digital na percepção de imagens e na construção de narrativas visuais, uma vez que a popularização dos aparelhos de comunicação e suas câmeras integradas, conectadas às redes sociais, constituem um arsenal de novas formas de aproximação e produção dessas narrativas. Uma característica de nossa experiência tecnestésica é que essa aproximação gera cada vez mais atribuições para as práticas de produção visual e, imersa em outros dispositivos que os outrora aparatos que em caráter exclusivo fotografavam/fi lmavam. A tecnologia da fotografi a, por exemplo, perdeu muito de seu apelo singular, hoje conectada a um universo que não é mais específi co de sua constituição original, ou seja, a câmera fotográfi ca. Utilizamos cada vez menos tal aparato, hoje substituído por aparelhos multifunção, como os smartphones. Os debates sobre a produção de imagens técnicas e a possibilidade de sua reprodução, como não poderia deixar de ser, percorreu uma trajetória constante de aperfeiçoamento e progressão ao longo do século XX, que acompanhou o desenvolvimento de tecnologias sempre mais atuais, mais promissoras, mais revolucionárias. Embora o universo tecnológico nos deixe tímidos/as no sentido de construir conhecimentos duradouros, porque os objetos e os problemas mudam com a velocidade típica do nosso tempo, o campo da sociologia da arte se desenhou, em nosso entender, a partir das contribuições daqueles que, a partir do início do século XX refl etiram sobre as alterações nas formas de percepção e comportamento surgidas com a expansão e o progresso dos meios técnicos. Um estudo da imagem em interlocução com a modernidade e a tecnologia não pode dispensar estas contribuições. A discussão basilar do espírito fi ssurado das artes pela fotografi a e depois, pelo cinema, foi empreendida por Walter Benjamin, ao longo da década de 1930. O fi lósofo e crítico literário alemão escreveu um dos maiores clássicos da sociologia da arte, uma obra que aqui será abordada enquanto precursora, mas que requer alguma crítica e revisão: A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. No centro das preocupações de Benjamin estava o fato de que, por volta de 1900, a reprodução “tinha alcançado um nível em que não só começou a transformar em seu objeto a totalidade das obras de arte do passado” (2017, p. 13), como a submeter a sua repercussão às mais profundas transformações. A obra de arte autêntica guarda, em relação às imagens dela reproduzidas, a autoridade que se relaciona a sua autenticidade e originalidade. Tal autoridade é maior em relação às reproduções manuais (falsifi cações) do que em relação às reproduções técnicas. Isso porque, segundo Benjamin, a reprodução técnica é muito mais independente da obra original do que a manual. Através da reprodutibilidade técnica fotográfi ca, por exemplo, podem-se ampliar partes 70 Linguagem Visual na HistoriograFia Sugestão de fi lme: A arte da falsifi cação, 2013. O fi lme apresenta uma singular trajetória de falsifi cação de obras de arte, a de Wolfgang Beltracchi, que durante décadas se dedicou a copiar técnicas e estilos de artistas famosos, ao invés de reproduzir seus quadros famosos. Suas falsifi cações – adquiridas como verdadeiros Picassos e Modiglianis por museus e galerias de arte mundo afora – recolocam a questão sobre a originalidade da obra de arte e o “aqui e agora” que habitam obras únicas. de uma obra de arte, desvelando aspectos através da lente objetiva que a óptica humana não consegue captar. Na era digital este postulado se expande infi nitamente. Pensemos na ampliação possibilitada pelos pixels, que nos permitem ver inclusive um pequeníssimo cílio que caíra na tinta ainda fresca de uma tela pintada a óleo. Uma segunda razão da autonomia da reprodução técnica em relação às cópias manuais, e mesmo em relação à original, refere-se ao seu alcance, à capacidade de ir ao encontro de uma massa de expectadores que jamais verão a obra de arte original. Isso, em primeiro lugar, dá-se porque a obra original é apenas uma, enquanto a sua cópia pode se reproduzir infi nitamente. Depois porque, mesmo considerando que inúmeras obras de arte circulam entre exposições e mostras ao redor do mundo, existem muitas outras que são fi xas, exemplo dos afrescos na parede de uma catedral ou das obras arquitetônicas. Neste sentido, parece claro que o aprimoramento da reprodutibilidade técnica signifi cou para as artes a sua democratização, pelo menos no sentido da expansão do conhecimento e do acesso às imagens. Por mais bem-feita que seja a cópia manual de uma obra de arte ou as possibilidades abertas pelas formas de sua reprodução técnica, a obra de arte possui uma existência única no lugar onde se encontra, seu “aqui e agora” a que Benjamin vai designar “aura”. A aura que habita a obra autêntica “é a essência de tudo o que ela comporta de transmissível desde a sua origem, da duração material a sua qualidade de testemunho histórico” (BENJAMIN,2017, p. 15). A sua autoridade de coisa original, fruto de um gênio e de uma materialidade única não pode ser copiada sequer pelo próprio artista, se fi zesse de sua própria obra uma reprodução manual cinco minutos depois da primeira. A autoridade reside justamente nisso: a segunda, realizada em relação de subordinação à primeira, dá um testemunho absolutamente diferente. Talvez seja menos o caso desta não possuir uma aura, do que o de ser habitada por outra, mas igualmente singular, como a obra original. 71 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 Benjamin entendia que a possibilidade de reprodução técnica da obra de arte a libertava do domínio da tradição. Na medida em que se multiplicava a reprodução do que antes era singular, substituía-se a existência única de uma obra de arte por sua existência em massa, nisso operando-se a atualização da obra, já que lhe permitia ir ao encontro de novos receptores. Mas, atualização signifi cava para o autor a liquidação do valor de herança cultural aportado pela obra de arte, e também o enfraquecimento de sua aura. Por um lado, enfraquece- se porque toda aproximação, espacial e humana, subentende a perda do ritual em que a obra singular está envolta. Por outro, a apreensão da obra de arte, com a facilidade com que se dá através da sua reprodução técnica, é a manifestação da tendência de ultrapassar a existência única de cada situação, através da recepção em larga escala de sua reprodução. O caráter único da obra de arte autentica seu lugar junto ao ritual de sua utilização primeira, e também sua função social. É a isso que Benjamin se refere quando fala da inserção da obra de arte no contexto da tradição. Realizada para fazer pensar, inspirar, cultuar, a obra de arte está carregada de emoção e de todos os sentimentos que avultam da criação artística original, os quais não estão presentes na sua cópia ou reprodução. Com os diferentes métodos de reprodução técnica da obra de arte, a possibilidade de sua exposição cresceu numa proporção tamanha, mensurada pela fi ssura que se abriu entre o valor de culto de uma imagem (culto no sentido religioso, espiritual, mas também culto no sentido de cultuar a genialidade da obra originária) e seu valor expositivo. Enquanto a obra de arte tradicional tem sua existência sob o valor de culto, a ser fruída por um público seleto em uma exposição ou museu, a essência da obra de arte reproduzida é o seu valor expositivo, já que sua razão de ser é a apreciação por diversas coletividades em espaços diferentes ao mesmo tempo. Isto não apenas subverte o “aqui e agora” da obra original, mas sugere, para o autor, que quanto mais reproduzida, menos ritualizada se converte a obra original. Como parece evidente, há ressalvas contundentes a se fazer em relação aos conceitos de valor de culto e valor de exposição. Num exemplo simples, é patente que a disseminação universal da reprodução da La Gioconda de Da Vinci não diminuiu a função de culto da obra original. Ao expandir-se como reprodução, conquistou apreciadores em diferentes rincões do mundo, que hoje se espremem no Louvre para vê-la “pessoalmente”, a metros de distância e ainda assim com minutos contados. Ou seja, ao contrário de seu valor de culto ter se enfraquecido com a sua reprodução técnica, parece que sua aura foi potencializada, assim como seu valor simbólico, que cresceu na proporção da sua reprodução. Além dessa classe de crítica em relação à aura da obra de arte, que se enfraqueceria na proporção das possibilidades de sua reprodução, Benjamin argumentou, também, no sentido de que as novas artes – a fotografi a, o cinema 72 Linguagem Visual na HistoriograFia e o disco – manifestam minimamente sua aura, “seu aqui e agora”, seja pela reprodução em massa, seja porque são produzidas com a fi nalidade, justamente, de serem reproduzidas. Ou seja, há nisso uma crítica contundente à cultura de massa como instrumento da indústria da arte e nesta, uma refl exão sobre a apreciação das artes sem o pensamento crítico necessário. Onde reside o “aqui e agora” de uma narrativa fílmica, se a ilusão criada pela técnica não é resultado da atuação do ator, mas sim de um conjunto de montagens? Eis, por exemplo, uma das reservas do autor. O cinema foi objeto de especial atenção de Benjamin. Na atuação para a câmera, ao invés dos olhos, entendia que o ator estava sozinho, exilado, numa atuação de natureza diferente daquela que se dá diante dos expectadores. Uma vez que o público se identifi ca com um personagem através da técnica, da máquina e de seus instrumentos de produção de sentido, perde-se o valor de culto do cinema como obra de arte. Para Benjamin, o único mérito revolucionário do cinema consistia em revolucionar as concepções tradicionais de arte. Não se entenda, nesta análise dura do autor, um rechaço da sétima arte. Se apreendermos com atenção as suas palavras, perceberemos que, ao contrário, ele enseja uma utilização do cinema em sua função social que esteja à altura da potencialidade desta técnica em representar a tragédia e as utopias humanas. Comparando a obra de arte em sua acepção tradicional, que requer concentração e que deve ser apreciada em silêncio, já que faz pensar, o autor entendia o cinema como o passatempo dos incultos, a arte da distração que suscitava, ao contrário, o barulho e o pensar superfi cial e acelerado. Comparava, fi nalmente, que enquanto o indivíduo mergulhava na arte, as massas eram absorvidas pela “arte técnica”. Na esteira de Benjamin, outros dois intelectuais amadureceram as teorias críticas em relação à reprodução técnica de imagens, aqui elencados para apreciação de suas ideias. Além de clássicos, importa conhecer estes estudos porque suas refl exões abrangem distintas fases do desenvolvimento tecnológico ocorrido no século XX, servindo para embasar análises sobre o tempo presente, em relação à era digital. Durante os anos 1950 Roland Barthes aproximou suas análises ao tema da fotografi a e da reprodução técnica, nas quais julgava poder observar a codifi cação ideológica presente em qualquer processo da então moderna produção mitológica. Em textos da década seguinte o autor passa a dialogar intimamente com Walter Benjamin. Este acreditava que a única maneira de mobilizar a fotografi a em sentido contrário ao da multiplicação capitalista seria associá-la à palavra crítica. Ou seja, conectar uma linguagem à outra, para fi ns revolucionários. Barthes se mostrará um crítico desta perspectiva, pois entendia que ancorar o sentido da imagem a um texto verbal aprisiona o visual, transformando a imagem em uma 73 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 mensagem sem código próprio, conotada apenas em sua relação com o verbal. A análise realizada por Barthes em A mensagem fotográfi ca (1990) tem como objeto a fotografi a e sua reprodutibilidade na mídia periódica, nos jornais, e o processo de construção de signifi cados pelos receptores. De um lado da produção do jornal está uma fonte emissora – o jornalista, o fotógrafo e o editorial do jornal – que, segundo o autor, parasitam a imagem, incorporando nela uma moral, uma imaginação e uma intenção logradas através da sua subordinação ao texto escrito. De outro lado está uma fonte receptora, que faz uma leitura da imagem inspirada pelos saberes manipuladores do texto que a acompanha. No entanto, tal leitura da linguagem fotográfi ca é histórica e será sempre, portanto, infl uenciada pelos saberes do leitor ou leitora, que não pode senão por meio deles realizar essa leitura. Barthes expressa através do conceito de analogon a ideia da imagem como analogia da realidade, um produto que não apresenta códigos na sua mensagem em si, uma vez que representa uma realidade objetiva. Mas, no âmbito da fotografi a jornalística, sustenta que existem duas mensagens inerentes a este tipo de produção imagética. Essa primeira, denotada emobjetivos que perpassa a discussão do capítulo é também contribuir de alguma maneira com a cultura visual de cada cursista. Em que pese a disseminação profusa e sistemática de imagens de diferentes tipos, disponível a quem quer que seja na internet, aqui teremos a oportunidade de analisá-las a partir de outras perspectivas. É válido para nós o seguinte ditado: nunca nos 10 Linguagem Visual na HistoriograFia banhamos no mesmo rio duas vezes. Assim, mesmo aquelas obras, imagens ou produtos visuais mais disseminados, com os quais nos depararmos em diversos momentos da vida, ganham aqui uma nova oportunidade. 2 INTRODUÇÃO À LEITURA DE IMAGENS Diz o ditado popular remetido a Confúcio: uma imagem vale mais do que mil palavras. O contexto de produção desta lógica, a Antiguidade Oriental, difere em absoluto das nossas sociedades contemporâneas. Dispomos de recursos visuais infi nitamente mais complexos do que aqueles aos quais o fi lósofo teve acesso. Na época, possivelmente, esteve no centro da lógica do ditado citado, que remete ao século V a. C, a forma de comunicação simbólica chamada de ideograma. Tal ditado popular é utilizado, nos dias atuais, para expressar a ideia de que uma única imagem possui a capacidade explicativa de mais de mil palavras. Cabe-nos indagar o seguinte: resulta correta essa afi rmação? Nas páginas que seguem, problematizaremos a relação entre imagem e expressão/comunicação, a começar por uma introdução do que seria uma “leitura” da visualidade enquanto linguagem. Confúcio e a máxima de que a imagem é um recurso visual mais expressivo do que o texto escrito – porque possibilita exprimir ideias complexas através de um único plano – é retomado aqui, em primeiro lugar, para situar um argumento fundamental acerca da leitura de imagens: ela é democrática, na melhor acepção dessa palavra. Ela é inclusiva ou, pelo menos, mais inclusiva do que a palavra escrita, pois, para que o leitor/a comungue de uma cultura escrita, ele deve, no mínimo, ser alfabetizado/a. No interior desta cultura letrada, inserem-se as diferentes interpretações, ou mesmo o entendimento que cada um/a fará do que leu. No entanto, aquele que não sabe ler, nesta lógica, fi ca alheio ao enunciado e ao que está sendo informado no texto escrito. No caso da imagem, a inserção do leitor/a em um saber específi co torna- se dispensável, pois basta ter olhos para ver. Nisso reside o valor que se dá, atualmente, à imagem como recurso publicitário, político ou estético. É nesse sentido que os recursos visuais são democráticos, pois permitem que diferentes públicos estejam aptos a compreendê-los, de acordo com as suas inserções socioculturais e políticas. Agora, assim como no texto escrito, não basta saber o signifi cado das palavras para dotar um texto de compreensão, na linguagem visual não basta enxergar para entender os enunciados da imagem. É preciso estar instruído e informado, além de conhecer os símbolos e os mecanismos mobilizados pela linguagem visual para produzir sentidos. 11 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 Tomemos como exemplo a pintura realizada em uma rua pública na capital da Lituânia, a cidade de Vilnius, no Leste Europeu, em maio de 2016 (Figura 1). O que se vê nessa imagem? Para o leitor ordinário, que desconhece as fi guras envolvidas e o contexto político de produção do mural, dois homens se beijam, numa aparente relação amorosa. Para identifi car este ato, basta que a pessoa esteja inserida num padrão cultural em que o beijo na boca é uma das manifestações do amor romântico. A imagem pode manifestar ao leitor, ainda nesta hipótese, um posicionamento do artista em relação à homoafetividade, inserindo-a num contexto humorístico para ridicularizá-la ou, ao contrário, expondo-a como bandeira política. FIGURA 1 – VLADMIR PUTIN E DONALD TRUMP SE BEIJAM EM MURAL NA LITUÂNIA FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. O leitor/a politicamente informado identifi cará, pelos caracteres físicos, as fi guras de Vladmir Putin e Donald Trump representadas. O beijo, para ele/a, pode signifi car através da veia humorística uma aproximação entre as duas fi guras, já que em 2016 Trump era então candidato à presidência dos Estados Unidos e Putin, como ainda hoje, exercia o cargo de presidente da República da Rússia. Apesar da troca de elogios mútuos, essas duas fi guras têm posicionamentos divergentes em relação ao cenário internacional, talvez nisso reside um pouco a “graça” da imagem para este leitor/a. Quem sabe seria interessante reparar, ainda, 12 Linguagem Visual na HistoriograFia Um terceiro leitor/a dessa imagem, munido de uma cultura política um pouco mais sólida, analisará possivelmente todos esses elementos de signo e de estética, de forma, cor e expressão, mas saberá que se trata de uma compilação, uma apropriação cultural do painel elaborado em 1979 por Dmitri Vrubel (Figura 2). O painel representava Erich Honecker, líder da Alemanha Oriental e Leonid Brejnev, premiê soviético e se baseava, por sua vez, numa foto verídica na qual os dois líderes se cumprimentavam. O beijo fraternal socialista, cumprimento comum entre lideranças do partido e demais membros, podia ser excepcionalmente dado na boca ao invés de nas bochechas. Naquele contexto, o beijo na boca como forma de cumprimento consistia em um escárnio dessas fi guras públicas que, atuando em forças divergentes, pareciam levar- se muito bem. Se comparamos ambos os murais, o beijo de Putin e Trump ganha outros contornos. Os lábios apenas se tocam e os olhos estão semiabertos, o que sugere ressalvas mútuas entre estes últimos, que se mostravam bastante menos “entregues à relação” do que os dois primeiros. Finalmente, destacamos que o realismo expresso pela Figura 2 é conquistado por meio dos elementos técnicos e não pela forma visual, a fi gura em si, daí que pareça mais afrontadora do que a Figura 1, a qual expressa um ar brincalhão. que as cores dos dois personagens denotam em parte a personalidade de cada um: sisuda e acinzentada, no caso de Putin, enquanto Trump foi representado em tons mais fortes de laranja e amarelo do que as tonalidades da pele e cabelo dele, respectivamente, possuem de fato. FIGURA 2 – ERICH HONECKER E LEONID BREJNEV NO MURAL DE DMITRI VRUBEL DE 1979 EM BERLIM FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. 13 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 Que leitura é possível fazer da Figura1 estando, agora, munidos de todas as informações sobre os representados e suas relações, acerca do contexto de sua produção, do local desta manifestação artística, sobre a imagem enquanto representação de outra imagem, e sobre o que nela está “dito”? Parece evidente que a leitura dessa imagem sugere que a aproximação entre os representados se mostrava frágil, construída sob suspeição mútua. O beijo representado se baseou em sentimentos que o artista evidenciou entre os dois líderes, na materialidade das relações que eles estabeleciam: calor e desconfi ança, admiração e dúvida, e aproximação com reservas. Às vésperas da eleição de Trump, o mural apontava para os paradoxos, mas também fazia pensar sobre os refl exos de uma possível aproximação entre ele e o presidente russo. Apesar dos elogios trocados, essas fi guras se mostravam portadoras de temperamentos políticos distintos, cuja compatibilidade haveria ainda que ser comprovada. Mas para os lituanos, habitantes de um pequeno país que sofria, historicamente, pressão da gigante Rússia sobre o seu território, fronteira e economia, o beijo selado entre ambos representava o seu receito frente às manifestações de Trump em relação à OTAN, considerada de vital importância para a sua segurança. Esse exercício de inquerir a imagem sobre seu lugar de produção, sobre as suas característicasanalogia à realidade, e outra, conotada pela imposição de um segundo sentido à imagem fotográfi ca. Seja porque sua produção se dá por meio de procedimentos técnicos que manipulam o processo de conotação de quem faz a sua leitura, seja porque seus dizeres foram subjugados ao texto escrito, a imagem jornalística é trabalhada além da mensagem que lhe é intrínseca (para o autor, nenhuma), nisto diferindo das outras obras de arte, como a pintura, por exemplo. Este processo de segundo sentido conferido à imagem reduz a liberdade interpretativa do “leitor” frente a um objeto já demasiadamente interpretado seja pelos procedimentos – pose, trucagem, esteticismo etc. – ou pela palavra escrita. Entretanto o autor se mostrava também em parte otimista em relação à reprodução técnica, eis aqui o paradoxo por ele apontado: a fotografi a, objeto inerte reproduzido por uma linguagem mecânica e inculta, conforme afi rmava, não reconhece o estado denotativo, porque ele é desnecessário (já que é analogon de uma realidade literal). Daí que sua linguagem própria só exista socialmente quando se encontra com o cognitivo, a percepção, que lhe dá razão de ser e de existir. Isso pode ser, como apontado, indicado pelos fatores de manipulação, mas está condicionado também a uma reserva de signos pré-estabelecidos, determinado por um espaço temporal, histórico, cultural e estético no qual o leitor está inserido. Isso, conclui, faz desta “mecânica” a mais social das instituições humanas. O terceiro teórico chamado a contribuir com esta discussão sobre arte e reprodutibilidade técnica é o fi lósofo tcheco Vilém Flusser, cuja obra foi em parte 74 Linguagem Visual na HistoriograFia desenvolvida no Brasil, entre 1941 e 1972, para onde veio com a ascensão do nazismo na Europa. Em Filosofi a da caixa preta: ensaios para uma futura fi losofi a da fotografi a, originalmente publicada em 1983, Flusser sustenta que a invenção das imagens técnicas representa a segunda de duas grandes viradas na cultura humana (sendo a primeira a invenção da escrita linear). Situada na evolução da cultura ocidental como resposta à textolatria oitocentista, o resultado da massifi cação das imagens técnicas foi devastador para a cultura, segundo o autor, porque ela substitui o real por sua imagem, criando uma ilusão de experiência vivida quando na realidade vive-se no plano das imagens e seus efeitos. No glossário que propõe para uma futura fi losofi a da fotografi a, textolatria aparece como a idolatria do texto devido à incapacidade de decifrar seus códigos, não obstante a capacidade do leitor de lê-los. Neste sentido, as imagens técnicas se diferem de outras formas de linguagem pictórica porque estas representavam, sugeriam, propunham uma visão do mundo e das coisas, enquanto aquelas as substituem. O objeto da refl exão de Flusser são os processos sociais transformados em cenas pela mediação das imagens. O que vislumbra para a transformação da fotografi a em instrumento crítico, à semelhança do que propunha Benjamin, passa pela desmagicização da imagem produzida pela técnica. Isto porque o autor via nesse tipo de imagem um princípio mágico do mundo que se desenvolveu na era pós-histórica (ou pós-industrial). Tirar a realidade fotográfi ca da mística técnica pressupunha, neste sentido, que o fotógrafo não se limitasse a condição passiva de utilizar o equipamento conforme a lógica da produção em série. Tratava-se de uma concepção crítica que ensejava desenvolver a consciência histórica nos homens e mulheres comuns, consciência diluída pela profusão de imagens que naturalizavam a separação entre o produtor e seu meio de vida do produto realizado. O momento da produção deste texto, o início da década de 1980, foi marcado pela expansão dos aparelhos tecnológicos, o que abrange desde a automatização das câmeras fotográfi cas até o desenvolvimento dos microcomputadores. Para Flusser, o conceito de aparato é central: em oposição aos instrumentos da era industrial, os aparelhos pós-industriais não laboram nem transformam o mundo, nisso residindo o caráter novo das sociedades do período, em que o trabalho não é mais um dos alicerces. Em sua obra, inquerir o aparato fotográfi co, considerado o patriarca, o protótipo de todos os aparelhos modernos, foi uma tentativa de descrever criticamente as engrenagens pós-ideológicas do aparato industrial, publicitário, político e econômico que constitui o mundo contemporâneo. Como bem destacaram Martins e Silva (2013, p. 173-4), “o fi o condutor do livro é a denúncia do caráter totalitário e eminentemente massifi cador da cultura superfi cial (embora altamente abstrata e codifi cada) das imagens técnicas”. 75 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 A interface entre esses autores, dentre outros, que teorizaram sobre a reprodutibilidade técnica, com destaque para a fotografi a, observa-se pela crítica consensual da universalização das imagens como produto e fator de alienação. Seja através da perda do valor de culto (Benjamin), da codifi cação ideológica que a imagem reforça (Barthes) ou da mística produzida pela técnica (Flusser), as teorias da arte posteriores ao advento da fotografi a suspeitavam não do seu poder de alterar a realidade social tanto quanto fora alterada a percepção da visualidade ao longo do século XX, pois isso era evidente. O receio que se observa nas análises destes teóricos era a manipulação do poder emanado dessas imagens técnicas para a construção de um tipo específi co de sociedade, alienada, manipulada, autoritária. Veja-se, por exemplo, a aproximação feita por Walter Benjamin entre reprodutibilidade técnica como instrumento de distração e manipulação e os preceitos dadaístas e futuristas. Os primeiros a refl etir um comportamento associal desejavam apenas “causar”: a arte era para eles um instrumento de distração. Os segundos viam na estetização da política um meio para se alcançar uma estética da guerra e aniquilar tudo o que se relacionasse com uma sociedade entendida como atrasada, como afi rmava o Manifesto Futurista, de 1909: “queremos glorifi car a guerra, única higiene do mundo, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias pelas quais se morre, o desprezo pela mulher” (MARINETTI, 1909). Na Figura 4 temos um exemplo do dinamismo e da temática do combate que nas artes caracterizaram o movimento futurista. O curso da experiência humana confi rmou, com os piores resultados possíveis, as conjecturas previamente levantadas por Benjamin. FIGURA 4 – CARGA DOS LANCEIROS (1915), UMBERTO BOCCIONI FONTE: . Acesso em: 13 fev. 2020. 76 Linguagem Visual na HistoriograFia Sugestão de atividade de estudo: cada acadêmico deve realizar uma pesquisa individual sobre as vanguardas modernistas europeias, escolhendo uma entre elas para aprofundamento: quando e em que contexto histórico surgiu? Quem foram os principais expoentes? Quais foram as características do movimento nas artes e na literatura? E, sobretudo, quais foram os usos políticos sugeridos ou inspirados por estas vanguardas? Os resultados das pesquisas podem ser compartilhados entre todos. 3 A FOTOGRAFIA COMO TÉCNICA, PRÁTICA SOCIAL E FONTE DOCUMENTAL As aproximações entre a imagem fotográfi ca e o conhecimento histórico se dão a partir do estatuto técnico da fotografi a em seu caráter de autenticidade e prova, dado seu apelo enquanto testemunha ocular de fatos históricos. Como sabemos, a evidência histórica do testemunho dado por uma imagem não é inequívoca, neutra ou passiva. Igualmente no caso da fotografi a, esse testemunho está constituído por investimentos de sentido, tendo que ser inquerido enquanto representação do passado para a construção de conhecimento histórico. A consciência historiográfi ca, ao incorporar àinvestigação do campo um conjunto amplo de registros da cultura humana, compreende que a elaboração de linguagens, o uso de equipamentos e as condições de sua utilização são defi nidos e redefi nidos pelos sujeitos históricos. É a partir dessa lógica, dinâmica não-linear, que abordaremos a fotografi a, em dois momentos: realizando uma breve história da técnica e interpelando-a como prática social; e inferindo sobre questões teórico-metodológicas para a sua utilização na escrita da história. Embora haja relatos de que Aristóteles (384-322 a.C.) tenha feito a primeira descrição do funcionamento de uma câmara escura, foi o árabe Abu al-Hasan Ibn al-Haytham (965-1038 d.C.) quem descreveu, trabalhou a técnica e ampliou-a, conferindo-lhe também outros usos, como a observação de eclipses lunares e solares, que seriam fundamentais para o desenvolvimento do telescópio e do microscópio. Grosso modo, a técnica fotográfi ca consiste numa caixa, que pode ser do tamanho de um quarto ou ter as medidas da palma de uma mão, sendo três lados escuros e um claro. A parede oposta à clara deve conter um 77 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 orifício por onde entra a luz que projeta, na parede clara, a imagem do objeto que está do lado de fora da câmara escura, em frente ao orifício. A imagem da câmera fotográfi ca como sinônimo de aparato industrial é apenas uma de uma série de experiências com a câmara escura: desde os experimentos escolares com caixinhas de fósforo, até as Dirkons elaboradas em papel na extinta União Soviética demonstram como a técnica é acessível, mas também como ela está arraigada à cultura ocidental moderna. Nas páginas que seguem, utilizaremos como itinerários da abordagem sobre a fotografi a dois estudos da historiadora Ana Maria Mauad; o primeiro datado de 1996, o segundo, em parceria com Marcos Felipe de Brum Lopes, de 2012, incorporando outras contribuições e sugestões de leitura e audiovisuais. No que se refere ao primeiro ponto em discussão – uma breve história da técnica – parece relevante pontuar, destarte, que o discurso inaugural da história da fotografi a a partir do daguerreótipo como resultado natural de esforços primitivos não parece um caminho muito preciso. A câmara escura, como dissemos, há muito conhecida no Velho Mundo, foi desenvolvida tecnicamente em diferentes lugares, em diferentes momentos. Durante o século XIX variaram, de acordo com seus inventores, os suportes de fi xação de uma imagem, que era, ainda, única. O daguerreótipo, compreendido como o primeiro instrumento técnico dessa fi xação – no caso, em uma placa de metal – foi apenas um dos processos que a logrou. Pela fama galgada pelo invento, cujo autor vivia num dos centros culturais mais destacados do mundo – a França do século XIX –, o daguerreótipo foi alçado à categoria de elo condutor entre a técnica da câmara escura e a fotografi a como prática social como a entendemos no século XX. O daguerreótipo foi, isto sim, o primeiro processo fotográfi co amplamente comercializado a partir de 1839. A imagem capturada pela câmara escura era fi xada em uma placa fi na de metal, geralmente o cobre, devido ao seu baixo valor. A fi xação se operava pela sensibilização da placa com iodeto de prata, que deixava a imagem espelhada. Nesse processo, a imagem da placa fi nal continha seu positivo e seu negativo, a depender do ponto de vista do observador. As imagens eram únicas e extremamente frágeis, já que a superfície banhada em prata se riscava com facilidade. A invenção, designada pelo apelido de seu inventor, Louis Daguerre, não foi patenteada, mas sim cedida ao governo francês em troca de uma pensão. Isso, a falta de patente do invento, foi fundamental na disseminação da fotografi a e na revolução nas formas de apreensão imagética, como abordado no apartado anterior. 78 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 5 – DAGUERREÓTIPO DE LOUIS DAGUERRE, 1839 FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. O valor cobrado por um retrato tirado a partir de um daguerreótipo, por exemplo, ainda na primeira metade do século XIX, podia fazê-lo acessível às classes trabalhadoras. A arte dos retratistas, por sua vez, era difi cilmente acessada por esta parcela populacional. Sobre a técnica, é interessante perceber que a necessidade de exposição à luz solar intensa durante cerca de dez minutos para a fi xação da imagem resultou na sua execução a céu aberto, mas também, na utilização de encostos e suportes que resultavam em representações um tanto engessadas e em expressões sisudas de parte dos retratados, claro, com exceções. Pode-se imaginar a revolução operada pela fotografi a numa sociedade em que o pictórico, representando a realidade subjetiva por defi nição, era até então um resultado da intervenção humana, que mediava a relação entre imagem e realidade. Ou seja, na produção das artes, o artista expressava o mundo segundo seu olhar. Com a fotografi a, inaugurava-se uma economia visual que reproduzia o mundo com todos os detalhes supostamente de forma objetiva, cujo produto fi nal unia realidade e imagem. Como os inventos e produtos de uma época são sempre fi lhos de seu tempo, parece claro que as descobertas fotográfi cas se estruturaram sobre as transformações das sociedades ocidentais, modernas e urbanas, irmanadas a um conjunto de novidades como a lâmpada elétrica, o trem 79 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 a vapor e o cinematógrafo (MAUAD; LOPES, 2012, p. 270). Até a década de 1880, quando a técnica fotográfi ca como resultado de negativos se popularizou, ainda a cargo de sua operacionalização por profi ssionais, outras técnicas existentes eram o calótipo (sensibilização de um papel, a partir do nitrato de prata, que depois “copiava“, como um carimbo, a imagem negativa produzida na câmara escura para um segundo papel, positivando-a); o ambrótipo (impressão fotográfi ca sob placa de vidro); e o ferrótipo (criação de uma imagem positiva sob uma chapa fi na de ferro revestido com verniz), as duas últimas sem o correspondente negativo. Seria pertinente realizar uma divisão entre os circuitos e usos sociais da fotografi a durante o século XIX e depois, no XX, analisando como esse circuito se complexifi cou até o advento da fotografi a digital. Durante o oitocentos os usos da fotografi a atualizam a tradição das pinturas a óleo, tanto em relação aos retratos quanto às paisagens, já que esses dois estilos de produção imagética se apresentam na fotografi a segundo padrões construídos nas épocas anteriores: a posição dos retratados, os símbolos inseridos, a vista aérea para as paisagens etc. Os retratos parecem ter se convertido rapidamente em um enorme sucesso. Nisto infl uenciaram os custos relativamente acessíveis da fotografi a e a facilidade com que se instruíam os fotógrafos para o trabalho. Considera-se, como parece evidente, que o custo de um retrato fotográfi co era barato em comparação com um retrato pintado, mas também o objeto adquirido era de outra materialidade: pequeno, mais íntimo, portátil. De qualquer forma, tais aspectos multiplicaram a demanda pela produção de retratos e de profi ssionais que os executassem, o que contribuía para a redução dos valores de produção. O retrato fotográfi co é um dos sintomas do novo ordenamento social evidenciado no meado do século XIX em relação ao indivíduo, à família nuclear e aos mecanismos de autorrepresentação das camadas burguesas em ascensão. O retrato fotográfi co moldou a face das camadas médias abastadas à semelhança dos códigos pictóricos de representação de outrora, utilizados pela aristocracia, atualizando seu modo de vida através de um dispositivo de representação moderno, que articulava um universo de signos de distinção. As fotografi as de paisagens foram outra modalidade produzida em larga escala durante o período. Um fotógrafo, que poderiatambém ser um retratista, acompanhava as empreitadas de companhias comerciais e agências coloniais a fi m de produzir imagens e construir representações dos domínios imperiais e de conquistas empresariais. As vistas fotográfi cas se pautavam pelos cânones da pintura de paisagem e, dado o objeto em apreciação, utilizavam-se costumeiramente chapas médias e grandes. A fotografi a de paisagens inseria- se também nos circuitos de comportamento burgueses, pois permitiam trazer 80 Linguagem Visual na HistoriograFia ao universo social de origem uma “mostra” das viagens turísticas e da refi nação simbólica do cotidiano proporcionada pelos trânsitos burgueses. Atente-se, por exemplo, para a disseminação de relatos de viagem em revistas voltadas às classes ricas urbanas ou os cartões postais remetidos aos pares durante o transcorrer das viagens. Uma terceira utilização da fotografi a, a qual teve início ainda no século XIX, referia-se a sua utilidade supostamente científi ca. O urbano, o moderno e o civilizado se consolidaram a partir de padrões formados com base nos seus opostos: os bárbaros, os incivilizados, os atrasados. Categorias etnocentricamente construídas que utilizaram a fotografi a para criar inventários do mundo e categorizar a humanidade em raças e “tipos”. Nesta última categoria insere-se a sua instrumentalização para os estudos sobre criminologia e teorias raciais, uma vez que a objetividade visual aportada pela técnica informava a respeito das características, semelhanças e anomalias encontradas – com demasiada facilidade – em pessoas que haviam cometido um crime específi co, por exemplo. Isso permitiu a criação de estereótipos que foram cientifi cizados e adotados pelos Estados liberais como “provas” que reifi cavam preconceitos cujo perfi l classista e racista é hoje inquestionável. Como recorda Mauad (1996), a fotografi a como prova infalsifi cável foi inserida na documentação ofi cial para fi ns de controle social: tem-se, até os dias de hoje, sua obrigatoriedade na Carteira de Identidade, no Passaporte, na Carteira de Habilitação etc. A fotografi a passou a ser entendida como uma forma de arte a partir do advento do século XX, quando o trabalho de fotógrafos pioneiros se inseriu nos circuitos das obras de arte “tradicionais”, deles se independizando logo em seguida. Destaca-se a exposição precursora de Alfred Stieglitz em 1902, no National Arts Club de Nova York, realizada após intentos anteriores que, além de subjugar a fotografi a à pintura, por exemplo, tinham como avaliadores, com exclusividade, pintores, ao invés de fotógrafos. Desse momento data o conceito de pictorialismo, surgido para descrever fotografi as que simulavam o estilo das pinturas e que eram manipuladas pelo uso do foco brando e do tom sépia, por exemplo. Este intento de aproximação da fotografi a ao campo visual das artes plásticas é característico de um momento em que a fotografi a, como arte, não dialoga intimamente com o conceito de objetividade. De acordo com a escritora Carol King (2011), depois da Primeira Guerra Mundial, o espírito de celebração da mecanização e da velocidade inspirava fotógrafos e fotógrafas ao redor do mundo, numa evidente apologia da modernidade. Paul Strand, Edward Weston e Ansel Adams fundaram, em 1932, uma pequena sociedade de fotógrafos chamada f/64, cujo objetivo era desafi ar o predomínio do pictorialismo. O grupo defendia o uso mais puro e realista possível da fotografi a, sem manipulações. Buscava utilizar as fotografi as como 81 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 meio de promover as reformas sociais na década de 1930, nos Estados Unidos. No período, o Departamento para o Desenvolvimento do Trabalho nos Estados Unidos já contava com projetos que envolviam fotógrafos no mapeamento de determinadas situações sociais, como as retratadas por Dorothea Lang sobre as famílias migrantes e sem-teto. Na mesma direção foram os investimentos em relação ao inventário imagético de períodos marcados por confl itos armados, que passaram a contar com a contribuição de profi ssionais que retratavam tanto o cotidiano dos exércitos quanto o dia a dia das pessoas de sua pátria. Nesse sentido, duas contribuições merecem destaque, ainda na primeira metade do século XX. A primeira foi a experiência de Bill Brandt ao retratar, para o Departamento de Guerra britânico, a depressão no seu país e o ataque de parte dos alemães. A obra, publicada em livro, revolucionou a fotografi a inglesa ao mostrar o contraste entre a vida prazerosa da aristocracia e a árdua realidade dos operários. A segunda contribuição consiste na trajetória de Robert Capa, profi ssional que se especializou em fotografi a de guerra, tendo coberto, dentre outras, a Guerra Civil Espanhola, a Guerra Civil Chinesa, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Indochina, na qual morreu ao pisar em uma mina terrestre enquanto trabalhava. Dentre muitas imagens icônicas produzidas por ele está A morte do soldado legalista, realizada em 1936 durante a Guerra Civil Espanhola, e o desembarque dos soldados americanos na Normandia, no episódio conhecido como Dia D, que encerrou a Segunda Guerra Mundial (Figura 6). Capa se caracterizava pelo estilo destemido. Ao utilizar câmeras com lentes de curto alcance, considerava que uma fotografi a, quando não estava sufi cientemente boa, era o resultado de uma distância muito grande em relação ao objeto fotografado. Dentre os seus legados está também a co-fundação da Agência Magnum, junto a Henri Cartier-Bresson, David Seymour e George Rodger, uma cooperativa de fotógrafos livres que conta atualmente com mais de um milhão de fotografi as em seu banco de imagens. 82 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 6 - SEM TÍTULO (1945), ROBERT CAPA HENRI CARTIER-BRESSON FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. FIGURA 7 – ATRÁS DA ESTAÇÃO ST. LAZARE (1932) HENRI CARTIER-BRESSON FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. 83 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 Sugestão de leitura: Steinbeck e Capa, 2011. Em Um diário russo, John Steinbeck, jornalista e escritor estadunidense vencedor do Prêmio Pulitzer de 1940 – e futuramente, do Nobel, conquistado em 1962 – narra sua viagem com o fotógrafo Robert Capa por países que formavam a hoje extinta União Soviética. Para além do objeto central do livro, qual seja, fazer um relato “neutro” do outro lado da cortina de ferro, a obra apresenta também os desafi os e as especifi cidades do trabalho de um fotógrafo profi ssional no meado da década de 1940. Um terceiro nome, uma reverência na história da fotografi a, é o do francês Cartier-Bresson. Enquanto Capa se caracterizou pelos detalhes obtidos em aproximação com o objeto fotografado, Cartier-Bresson tinha como fi losofi a capturar o momento decisivo, o instante único. Pioneiro em fotografi a de rua, apreciava a simetria e o equilíbrio; via padrões repetidos em cenas do cotidiano. Nas fotografi as afamadas de O momento decisivo, livro publicado em 1952, observa-se como o fotógrafo foi inspirado pelas formas angulosas do surrealismo e pelas formas geométricas do cubismo, como sua Atrás da estação St. Lazare (Figura 7). A imagem consiste em um trabalho harmonioso, espontâneo e preciso. O jovem pulando uma poça d´água, tendo utilizado uma escada como ponte, é apenas um elemento com o qual outros dialogam: as acrobatas da fi gura ao fundo parecem imitá-lo; o cartaz apresenta elementos circenses, como também as formas arredondadas na água. A palavra Brailowski, sem o “B” apagado pelas grades, resultaem Railowski que lembra, por sua vez, rail, ferrovia em inglês, cuja estética (dos trilhos e do trem) é retomada pelas grades e pela escada no chão. No Brasil a fotografi a deu origem a nomes destacados internacionalmente, como o de Sebastião Salgado e o de Araquém de Alcântara, ambos ainda em atividade. O primeiro, economista de formação com estudos realizados sobre a pobreza no Brasil e na América Latina, encontrou na fotografi a uma maneira de dotar de rostos as pessoas que habitavam seus trabalhos. Especializou-se em fotografi as de retratos de migrantes, exilados, estrangeiros, com destaque para mulheres e crianças que vivem em contextos de miséria e guerras, exclusivamente em preto e branco. Recebeu inúmeros prêmios internacionais pelos seus trabalhos fotográfi cos, sendo atualmente titular da cadeira n. 01 das quatro ocupadas por fotógrafos na Academia de Belas Artes da França. Durante a chamada carestia de 1983-1985 na Etiópia, Salgado produziu uma de suas séries fotográfi cas mais 84 Linguagem Visual na HistoriograFia aclamadas, Êxodos, na qual retratou os deslocamentos humanos resultantes da situação de fome e da insurgência de grupos guerrilheiros no país, que resultaram na morte de mais de 400 mil pessoas. FIGURA 8 – DA SÉRIE ÊXODOS (1984), SEBASTIÃO SALGAD FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. O catarinense Araquém de Alcântara é um dos fotógrafos mais importantes da atualidade, especialista em paisagens naturais. Há mais de trinta anos dedica-se a documentar a natureza e os biomas brasileiros, tendo sido o primeiro profi ssional a registrar fotografi camente a totalidade dos parques nacionais. Através da fotografi a, realiza um trabalho contundente no combate ao desmatamento da Amazônia, disponibilizando seu trabalho a entidades e instituições de defesa do patrimônio ambiental brasileiro. Possui mais de 50 livros publicados e um currículo com mais de 70 exposições realizadas no Brasil e no mundo. Como qualquer seleção, muitos nomes de relevo no campo da fotografi a fi caram de fora desse limitado sumário. 85 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 FIGURA 9 – DA SÉRIE PARQUES NACIONAIS BRASIL (2004), ARAQUÉM DE ALCÂNTARA FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. Em relação aos circuitos sociais da fotografi a no século XX, Mauad e Lopes (2012) estabelecem, para fi ns didáticos, dois roteiros: o das imagens públicas e o das imagens privadas. Em relação à fotografi a pública, prevaleceu, dentre outras possibilidades, a institucionalizada, associada e produzida pelas agências do Estado para dar visibilidade as suas ações, incorporadas a estratégias de persuasão do poder político. Um segundo tipo de fotografi a pública foi a considerada “engajada”. Na diversifi cação imagética ocorrida ao longo do século XX, a questão social emergiu na cena pública em diferentes lugares e de diferentes formas. Sobretudo a partir da irradiação dos movimentos sociais e políticos, a fotografi a tornou-se uma poderosa arma nas mãos de profi ssionais que registravam acontecimentos e encadeavam imagens em narrativas contestatórias. As bandeiras de luta foram variadas, dos direitos civis à liberdade sexual, do movimento operário aos movimentos pós-coloniais. Em todos os casos mencionados anteriormente, a fotografi a se tornou ou foi produzida enquanto pública “para cumprir uma função política que garante a visibilidade do poder, das estratégias de poder, ou, ainda, das disputas de poder” (MAUAD; LOPES, 2012, p. 275). As fotografi as se tornam parte e objeto de uma memória pública que registra e projeta no tempo histórico uma versão dos acontecimentos, construída por uma narrativa verbal e multitemporal: o tempo do 86 Linguagem Visual na HistoriograFia acontecimento, o tempo de sua recepção; o tempo e as formas de sua exibição e salvaguarda etc. A experiência fotográfi ca do século XX alterou as formas de acesso aos acontecimentos e sua inscrição na memória pública. O valor autoral da fotografi a parece ter se elevado com a sua disseminação entre as camadas sociais, mas também se relaciona a sua profi ssionalização. De qualquer forma, esse valor envolve um investimento do fotógrafo na produção de sentido defi nida pela relação com o mundo visível, assim como sua ressonância no campo social onde desenvolve sua experiência fotográfi ca. Uma fotografi a adquire valor histórico dada sua capacidade de responder às demandas dos circuitos sociais nas quais esteve inserida, mas também pelos recursos técnicos e estéticos utilizados nesse trabalho. Em relação aos usos privados da fotografi a, esses dizem respeito às formas de recolher e preservar fragmentos de experiências cotidianas, ordinárias, porém afetivas, por exemplo, os rituais simbólicos da infância. Um bebê dando os primeiros passos, fazendo traquinagens; uma criança correndo atrás de um cachorro na grama, tomando banho de piscina ou de mangueira; a primeira comunhão ou o batizado; o primeiro dia na escola. No tempo presente, toda família, por mais diferente que seja a sua formação e dinâmica, registra fotografi camente as fases da vida de seus membros, com destaque para a infância, com vias a construir uma memória futura e compor o legado familiar afetivo. Entre as elites, o predomínio de álbuns fotográfi cos em estúdio desde o último quartel do século XIX em diante limitou o registro de experiências cotidianas, informando pouco sobre as formas de ser criança de cada período. No entanto, estas narrativas biográfi cas visuais informam sobre as formas de autorrepresentação burguesa. Atualmente observamos certo renascimento deste gênero fotográfi co, quer dizer, as crianças voltaram a ser fotografadas em estúdio, mais do que nunca cercadas de elementos do universo infantil como brinquedos, parquinhos e fantasias. O cenário, absolutamente artifi cial, infere pouco sobre o lugar social da criança: é a própria produção técnica em si que delata sua origem entre as classes bem colocadas socialmente. No âmbito da produção fotográfi ca não profi ssional, pelo menos dois momentos transformaram sua produção, circulação e consumo. O primeiro observou-se com o desenvolvimento de câmeras de tamanho reduzido, na virada do século XIX para o XX, como a Kodak n. 01 (Figura 10). Embora seu acesso fosse limitado pelo alto custo do produto, o invento, que utilizava películas de vidro, obviamente de única utilização, fáceis de inserir e alterar, permitia que um indivíduo comum fosse proprietário de um equipamento que fazia do entusiasta um produtor de imagens, tornando o mediador profi ssional desnecessário. O artefato não requeria, para sua utilização, mais do que o conhecimento acerca do 87 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 aparato em si – abrir a gaita da lente, apertar o botão, trocar a lâmina de vidro, fechar a gaita. A câmera fotográfi ca tornara-se, como o relógio havia sido dois séculos antes, um objeto de fetiche e uma insígnia da modernidade, mas também um distintivo de classe social. FIGURA 10 – KODAK N. 01, c. 1909 FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. O segundo momento de mudanças técnicas de relevo em relação à indústria da fotografi a foi a entrada em cena da fotografi a digital. A partir dos anos 1980, dados os avanços tecnológicos introduzidos nos instrumentos fotográfi cos, originou-se no interior das teorias da imagem debates sobre o caráter da fotografi a digital, e sua relação de continuidade ou ruptura com a fotografi a analógica. Noutras palavras, a discussão teve origem – e perdura – em torno do questionamento da imagem digital enquanto fotografi a. Dentre os argumentos a favor da ruptura entre fotografi a analógica edigital está um determinismo técnico que defi niria o meio. Ou seja, para aqueles que defendem esse preceito, sem processo físico e químico não há fotografi a. Também se aponta que a fotografi a analógica mantém uma relação física com o mundo, uma indicialidade da qual está liberada a fotografi a digital. Neste sentido e, fi nalmente, opõe-se a objetividade da fotografi a analógica à manipulação como marca da fotografi a digital. Será importante esclarecermos essas questões. Em primeiro lugar, não faz sentido destituir a imagem digital de seus aspectos fotográfi cos porque, embora 88 Linguagem Visual na HistoriograFia não haja a transferência de energia da luz para os elementos químicos na superfície sensível, o processo de formação da imagem ainda ocorre no interior da câmera. Mas, sobretudo, porque a fotografi a é uma experiência histórica e uma prática social, transformada, evidentemente, pela substituição do negativo e da prata por grades de pixels e pela tradução de impulsos elétricos, mas isso não alterou em absoluto o seu circuito social. A produção de imagens digitais mantém com a prática analógica uma série de coisas: as lentes ópticas, o enquadramento, a cor e a escala de cinza, pode ser impressa ou não (como o fi lme, que pode não ser revelado), pode ser exposta, compartilhada, apreciada ou fi car restrita ao seu círculo social de origem. Os dois últimos argumentos se relacionam às associações materiais com a realidade. É compreensível que estas questões se refi ram às possibilidades de manipulação da realidade pelo aparato digital: antes ou depois da captura, pode- se alterar a cor, a intensidade, o enquadramento, as proporções, pode-se inserir outros personagens, objetos, cenários. Tudo pode ser modifi cado, forjando-se a realidade, antes mesmo da imagem deixar o aparelho original de captura para ser impressa, publicada ou compartilhada. O regime de verdade que a fotografi a analógica fundou se fortaleceu em relação à imagem digital, mas esta acabou por estender àquelas as técnicas de manipulação informática, ao passo que nenhuma está em condição de guardar inquestionavelmente uma verdade representada. Sabemos que a objetividade inexiste mesmo na fotografi a analógica não manipulada, pois o olhar, a técnica da autoria fará de cada imagem, única, construída em perspectiva subjetiva. Mas parece importante pontuar que também a fotografi a analógica pôde desde os primeiros experimentos de fi xação da imagem, sofrer alterações, então conhecidas como “montagens”, por exemplo, pela seleção de alguns objetos fotografados e sua adição em outros cenários e contextos. Analogia e verdade não se conectam de forma automática, assim como não são necessariamente relacionadas às noções de mentira e de imagens digitais. Como a objetividade, conceitos como verdade, mentira e manipulação não são a-históricos, mas signifi cados em cada contexto, pois socialmente construídos. Consideramos, segundo orientações dos autores que vêm nos inspirando neste índice sobre a história da fotografi a, que indicar a especifi cidade da técnica – através da nomenclatura digital – já expõe o diferencial desta classe de uso da luz – foto –, e da escrita – grafi a –, não sendo necessário designá-la de outra forma, tampouco considerá-la outra coisa, que não isso: fotografi a digital. Talvez um terceiro momento, então de alteração dos circuitos sociais da fotografi a, seja a sua produção junto aos aparatos individuais multifunção, os smartphones, conectados às redes e mídias sociais. A ampliação e mesmo a vulgarização desses aparelhos, sem exceções, compostos por câmeras integradas, não apenas popularizou a fotografi a de uma maneira nunca antes observada, como deu origem a uma cadeia de produção e consumo de imagens 89 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 que tem na fotografi a um elemento fulcral. A representação de si, a exposição das experiências vividas e da intimidade através do compartilhamento de instantes e lives se tornou uma forma privilegiada de exposição da compreensão de mundo de alguns grupos sociais, geracionais e inclusive profi ssionais. Uma vez apresentadas as técnicas, tecnologias, abordagens e alguns momentos do pensamento ocidental em relação à fotografi a, podemos afi rmar com alguma certeza que hoje ultrapassamos o seu entendimento como duplicação da sociedade, para compreendê-la como o resultado de um investimento de sentido, “uma leitura do real realizada mediante o recurso a uma série de regras que envolvem, inclusive, o controle de um determinado saber de ordem técnica” (MAUAD, 1996, p. 75). Investigar esses sentidos é tão importante para a produção historiográfi ca quanto as informações materiais disponibilizadas pela imagem fotográfi ca em si. Isso nos conduz ao segundo momento da abordagem sobre a fotografi a: orientações teórico-metodológicas para sua utilização na ofi cina da História. Ana Maria Mauad, em um texto fundamental sobre as interfaces entre história e fotografi a (MAUAD, 1996), apresenta o pensamento de alguns críticos da imagem técnica como duplicação do real. Estas críticas podem ser interessantes para introduzir um roteiro teórico-metodológico. Uma primeira demanda é a que ressalta, em que pese o efeito de realidade, que a fotografi a é bidimensional, plana, com cores que podem ou não reproduzir a realidade. Neste sentido, a fotografi a isola um determinado ponto no tempo e no espaço, acarretando a perda da dimensão processual do tempo vivido. Além disso, a imagem técnica é puramente visual, excluindo outras formas sensoriais. Outra crítica de relevo é a que denuncia a faceta encenada das fotografi as históricas, já que a interação do fotógrafo na ação e o efeito de paragem da imagem produzem uma determinada versão dos fatos históricos que lhes garantiriam o estatuto de verdade comprovada. Finalmente, uma terceira postura relacionada à fotografi a como transformação do real remete a uma perspectiva antropológica, segundo a qual o signifi cado da mensagem fotográfi ca é convencionado culturalmente, ou seja; sua compreensão pressupõe certa aprendizagem ligada à interação dos códigos de leitura da imagem técnica. A consideração dessas críticas importa no sentido de conduzir a questões teórico-metodológicas norteadoras em pesquisas com fotografi as: como alcançar o que não foi imediatamente revelado pelo olhar fotográfi co? Como acessar um passado por meio dessas imagens técnicas? Como ultrapassar a superfície da mensagem fotográfi ca e ver além e através da imagem? Como resultado de um trabalho social de produção de sentido, a fotografi a é uma linguagem, uma mensagem “que se processa através do tempo, 90 Linguagem Visual na HistoriograFia cujas unidades constituintes são culturais, mas assumem funções sígnicas diferenciadas, de acordo tanto com o contexto no qual a mensagem é veiculada, quanto com o local que ocupam no interior da própria mensagem” (MAUAD, 1996, p. 79). Com base nas regras de produção de sentido nas linguagens não verbais, temos que a representação fi nal, o produto fi nal é sempre uma escolha realizada em um conjunto de escolhas possíveis. Para analisar as unidades constituintes da mensagem visual enquanto índice (marca de uma materialidade passada), por um lado, e enquanto símbolo (imagem socialmente estabelecida para ser perenizada), por outro, Mauad (1996) sugere a confecção de fi chas individuais que devem ser construídas para cada imagem. Ressalta, também, que se utilize para a construção do saber histórico um corpus fotográfi co, uma série extensa e relativamente homogênea que permita dar conta de destacar semelhanças e diferenças próprias ao conjunto de imagens que o/a historiador/a escolheu analisar. Essa homogeneidade pode construir-se em relação a um tema, como o casamento ou as festas familiares ou em função das diferentes agências de produção de imagens, tais como o Estado, agênciaspublicitárias, a imprensa etc. São duas as fi chas propostas pela historiadora: a fi cha de elementos da forma do conteúdo e a fi cha de elementos da forma da expressão. Na primeira, a indicação metodológica consiste em atentar aos seguintes elementos: agência produtora; ano; local retratado; tema retratado; pessoas retratadas; objetos retratados; atributo das pessoas; atributo da paisagem; tempo retratado (dia/ noite); designação de um número para a fotografi a. Da segunda fi cha constarão os seguintes dados: agência produtora; ano; tamanho da foto; formato e suporte; tipo; enquadramento I (horizontal ou vertical); enquadramento II (esquerda, direita ou centro); enquadramento III (distribuição de planos); enquadramento IV (objeto central, arranjo e equilíbrio); nitidez I (foco); nitidez II (defi nição de linhas); nitidez III (iluminação); produtor (amador ou profi ssional); número da fotografi a. Cada uma das categorias analisadas constitui unidades culturais que devem ser realocadas em categorias espaciais, estabelecidas para a estruturação fi nal da análise. Esse procedimento de instrumentalizar a noção de espaço como chave de leitura das mensagens visuais é comum na produção historiográfi ca que lida com imagens técnicas. Os campos espaciais – fotográfi co, geográfi co, do objeto, da fi guração e da vivência – permitem o restabelecimento dos códigos de representação social de comportamento, mas também reconstruções de realidades sociais do passado nos marcos de sua historicidade. Como recordam Mauad e Lopes (2012), a fotografi a é uma atitude de representação ideologicamente elaborada, pois a manipulação dos elementos técnicos é exercida por pessoas que agregam valores de suas experiências 91 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 pessoais às imagens que produzem. Essas imagens fotográfi cas, como produto de práticas e experiências históricas de mediação, oferecem-se à apreciação historiográfi ca: se inqueridas, permitem investigar sobre o seu papel na produção de sentido social, sobre as práticas de produção e consumo de imagens, sobre indivíduos e instituições que as protagonizaram, seja como fi nanciadores ou como representados, sobre seu público de recepção etc. Obedecendo às demandas visuais dos grupos envolvidos na produção e no consumo de imagens, a fotografi a como imagem técnica se modifi cou desde a sua criação. Esse saber-fazer do/a fotógrafo/a e seus instrumentos, que envolve o desenvolvimento técnico, industrial, das relações de trabalho e das competências científi cas também pode ser acompanhado pelo/a historiador/a a partir de questionamentos de diferentes ordens. A compreensão de um processo como histórico subentende, como visto no capítulo anterior, a organização de um questionário em relação ao passado, numa relação dialética entre as práticas sociais dos sujeitos que habitaram esse passado, suas experiências históricas e as evidências que são produtos destas relações. Entre estes produtos está a fotografi a. Sua especifi cidade consiste numa abordagem da realidade em termos de visualidade; realidade concebida por um meio (fotografi a), e a partir de um mediador (fotógrafo). Como temos abordado, a fundamental ancoragem metodológica no tratamento de fotografi as na pesquisa histórica consiste na incorporação da história do meio na elaboração do objeto de estudo, a fi m de compor um quadro que defi na as fotografi as como práticas sociais e experiências históricas. Dentre os cuidados metodológicos, destacamos a escolha de se trabalhar com séries fotográfi cas ou com fotografi as únicas a maneira de foto ícones, que potencializam um acontecimento ou uma ausência. A título de síntese, os procedimentos metodológicos que instauram a investigação histórica com fontes visuais técnicas – mas que são antecedidos pela construção do questionário a que serão submetidas – compõem-se por quatro pontos: produção, produto, agenciamento e recepção. Esses aspectos orientam a análise histórica de fotografi as, contudo, destaca-se a necessidade de discutir também, por um lado, o estatuto epistemológico das imagens e, por outro, a noção de fonte histórica como fonte que contém o passado, à espera de ser revelado pelo/a historiador/a. Atentar para a produção consiste em situar o dispositivo, a técnica e as tecnologias que mediaram a relação do sujeito e seu olhar sobre o objeto fotografável e a imagem que elaborou, o produto como materialidade de outro tempo histórico. Ou seja, por produção subentende-se a compreensão de que a mirada do/a fotógrafo/a se materializa através da manipulação de um dispositivo tecnológico com regras defi nidas historicamente. Aqui também importa situar 92 Linguagem Visual na HistoriograFia um pouco a história da técnica e o regime de visualidade no qual se operou a produção da imagem técnica – não como pano de fundo, mas inquerindo esse regime como indício de uma lógica, de uma concepção de mundo e do lugar ocupado nele por homens e mulheres que o viveram. A investigação sobre o produto em si, a imagem que se fez matéria, requer atenção dado seu potencial “efeito realidade”. A imagem possui a capacidade de potencializar a matéria visual, mascarando o processo de produção de sentido social por meio da qual foi concebida. Como relação social, as imagens técnicas “nos contam histórias, atualizam memórias, inventam vivências, imaginam a história, demarcam o campo do visível e do invisível” (MAUAD; LOPES, 2012, p. 280). Nessa capacidade residem, ao mesmo tempo, os perigos e as potencialidades da fotografi a como objeto e fonte histórica. Um acervo fotográfi co pessoal salvaguardado que não se refi ra à pessoa pública retrata mais fi elmente a realidade do que o cotidiano fotografado de um líder político? Ou seja, seria mais “natural”, menos intencional? O que esses produtos visuais indiciam, informam ou simulam? O processo social que envolve a trajetória das imagens técnicas, a biografi a da fotografi a como artefato, revela-se através do conceito de agenciamento. Neste aspecto deve-se ter em mente que até o encontro do/a historiador/a com uma imagem técnica ou um conjunto delas, guardadas, arquivadas, expostas ou destruídas, elas passaram por processos de seleção e descarte, sofreram alteração em seus circuitos sociais e foram utilizadas de outras formas que não aquela visada em sua produção original. Esta biografi a das imagens revela relações sociais diferenciadas e requer que a concebamos como materialização não de uma, mas de distintas práticas sociais nas quais estas imagens estiveram envolvidas. É fundamental conhecer a trajetória dos produtos e dos arquivos visuais ao longo de sua existência: por quais razões foram produzidos? Por quem foram conservados? Quando e com quais objetivos foram expostos, musealizados, mantidos ou retirados de sigilo? Finalmente, atentar-se-á para a recepção da imagem técnica em análise. Questiona-se, neste ponto, o valor atribuído à imagem pela sociedade que a produziu e como estruturou a recepção da visualidade e seus espaços. Uma fotografi a pode ter sido produzida com valor informativo, afetivo, para fi ns de memória ou prova, como manifestação artística ou como forma de denúncia social. Pode, como parece claro, servir a mais de um desses preceitos, já que a condução da narrativa historiográfi ca nunca será tão simples a ponto de afi rmar que foi isto ou aquilo, sem interrogar os processos de recepção: quem o pensou, quais estratégias utilizou, quais eram os públicos-alvo etc. 93 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 4 REGISTROS AUDIOVISUAIS: CINEMA E TELEVISÃO Em um conjunto de textos de André Bazin (2014) publicados postumamente em 1960, intitulado O que é o cinema, o teórico francês analisa a imagem fotográfi ca e a imagem cinematográfi ca desde uma perspectiva comparada, realizando algumas defi nições. Para o autor, a fotografi a possuicaráter centrípeto (atuando como uma força que puxa o corpo, neste caso, os olhos, para o centro do movimento). Os olhos do/a observador/a fi cam restritos aos limites da moldura, não questionam se existe algo mais, além daquilo que veem: trata-se de uma imagem “acabada”. No cinema, por sua vez, a imagem é regida por uma força centrífuga (uma força inercial que empurra para fora um corpo em movimento de rotação). Há o deslocamento constante do olhar, pois a imagem está sempre em movimento, em processo. Ao contrário da imagem acabada e fi nita da fotografi a, no cinema convive-se com a possibilidade constante de que algo novo entre em cena, existindo muito além do que se deixa ver no momento, pelo menos enquanto possibilidade. Parece adequado iniciar a discussão sobre o audiovisual com esta comparação, já que entre um produto e outro – a fotografi a e o audiovisual – situa-se como diferença inicial o fato de que o primeiro se constitui por uma imagem imóvel, enquanto o outro se funda por um encadeamento de imagens que adquirem sentido no movimento: uma narrativa. A comparação também parece relevante dado que as primeiras projeções audiovisuais resultantes de aparatos tecnológicos foram produzidas pelo ordenamento de imagens fotográfi cas acompanhadas de música que, juntas, conformavam uma narrativa expressa pela fórmula áudio + visual. Não é preciso ir muito longe para explicar do que se tratava, já que a técnica não desapareceu: fotodocumentários, produções escolares e, mais além, a técnica do stop motion são exemplos de audiovisuais produzidos com base em imagens fi xas. Os audiovisuais são um objeto de análise difícil de situar em sua relação com a História, em nosso entender, porque no conceito se inserem muitas variantes, cada uma com sua trajetória e desenvolvimento específi cos: cinema (subdividido entre os vários gêneros), animação, games, vídeos (videoaulas, videoclipes, vídeos de canais, como o Youtube, montagens, videocasts etc.). Elencamos dois produtos culturais para análise retenida, o cinema e a televisão, e sobre eles lançaremos questões relacionadas ao seu desenvolvimento técnico e usos em diferentes contextos. Em primeiro lugar, inquerindo a técnica e seus produtos quanto aos seus fi ns comerciais e políticos. Depois, aventurando-nos a 94 Linguagem Visual na HistoriograFia tecer algumas considerações sobre a sua utilização na produção historiográfi ca. Por fi m, problematizamos a linguagem audiovisual na produção do conhecimento histórico acadêmico, bem como suas potencialidades na construção de imagens sobre o passado. O viés adotado nas páginas que seguem é o de uma abordagem do audiovisual em sua inserção cultural. De acordo com o historiador Rafael Rosa Hagemeyer (2012), em seu História e Audiovisual – leitura que nos inspira na discussão que segue – qualquer sociedade humana, visando transmitir algum aspecto de sua experiência elabora, de alguma maneira, representações visuais acompanhadas ou não de som simultâneo. Na valoração e no estabelecimento de formas consideradas legítimas se conforma uma linguagem audiovisual, que servirá de base para formas futuras de expressão. Neste sentido, consideramos que o teatro grego, por exemplo, constituía uma espécie de narrativa audiovisual, já que se tratava de uma forma elaborada de representar uma história utilizando recursos visuais e sonoros (dramatização). A constituição da linguagem cinematográfi ca deve muito às antigas formas de enquadramento do olhar, que se desenvolveram durante o Renascimento. Foi durante esse período que surgiram as formas modernas de produção de quadros, com base em “’telas’, espaço privilegiado de composição das formas do mundo, no qual os artistas adotaram as metáforas teatrais da ‘cena’ e do ‘cenário’ para ambientar as ‘ações’ e os ‘personagens retratados” (HAGEMEYER, 2012, p. 66). Como bem percebe o autor, as expressões entre aspas continuam sendo adotadas como conceitos da linguagem cinematográfi ca: são critérios de representação visual do mundo. No âmbito das técnicas de projeção da realidade ou de realidades fantásticas, os avanços da ciência óptica desde o século XVII têm no epidascópio um exemplar de referência. A “lanterna mágica”, como fora designada posteriormente, era um aparelho de projeção constituído por uma câmara escura (um candeeiro) e por um jogo de lentes, sendo considerada a antecessora dos aparelhos de projeção modernos. Athanasius Kircher, um padre jesuíta residente em Roma, descreveu o invento em 1645. O aparato funcionava da seguinte maneira: em uma sala escura, a luz de uma vela acesa dentro do candeeiro atravessava uma placa de vidro pintada com desenhos coloridos à mão. Na parede oposta ao “projetor”, apreciavam-se as imagens ampliadas. Promovendo-se o deslocamento da placa de vidro ou da chama da vela, produzia-se um etéreo efeito de movimento. A técnica foi utilizada em exibições públicas, para entretenimento ou com fi ns educacionais – como em algumas universidades – em diferentes partes do mundo até o século XIX. 95 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 FIGURA 11 – UM MODELO DE LANTERNA MÁGICA FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. Os espetáculos de ópera, surgidos no século XVII, também representam um tipo de expressão audiovisual, uma combinação complexa de drama e som com códigos e técnicas próprias. Para Hagemeyer (2012), no avanço das artes dramáticas, desenvolveram-se técnicas de deslocamento do olhar indispensáveis para o surgimento da linguagem audiovisual em suas manifestações modernas. Tal desenvolvimento está inserido nas revoluções das técnicas da era industrial, cujo “progresso” até a invenção do cinematógrafo respondeu a demandas culturais que já estavam estabelecidas no âmbito dos divertimentos e da modernidade. O princípio do jogo de cena da ópera, por exemplo, é muito similar ao do cinema: grosso modo, o palco mostra uma cena, da qual estamos distantes e da qual não participamos enquanto espectadores. No entanto, sabemos de tudo o que se passa, ao contrário dos personagens que ali estão. Um mínimo de verossimilhança com o real é necessário para que nós, espectadores, embora não interfi ramos na narrativa, acreditemos nela: seja por meio da dramaturgia, dos efeitos, do cenário etc. Durante a última década do século XIX, a invenção do cinematógrafo pelos franceses August e Louis Lumière foi dada a conhecer como um artefato científi co. Seus inventores, nas sessões fílmicas que organizaram eu seu país, 96 Linguagem Visual na HistoriograFia França, afi rmavam desacreditar a sua utilização com fi nalidades comerciais. O cinematógrafo era um aparelho que capturava séries de imagens instantâneas dispostas em rolo rotativo, criando a ilusão de movimento. O recurso musical, orquestrado ou técnico, amplifi cava a sensação de aceleração das imagens. O aparato era um dispositivo híbrido, pois, além das funções de captação de imagens, ele também as projetava. Filhos de um industrial que produzia películas fotográfi cas, os Lumière patentearam o invento que, na realidade, teve seu registro solicitado três anos antes por León Boyle. Isso sugere, como abordamos também em relação à fotografi a, que o processo de mitifi cação dos “gênios inventores” aporta pouco para uma história da técnica, pois ele é de alguma forma excludente, ao considerar a autoria única de uma técnica que provavelmente se desenvolveu em mais de uma oportunidade, ainda que fruto de um mesmo momento histórico e social. Na abordagem realizada por Hagemeyer (2012) sobre a história do cinema, temos que sua invenção envolveu um aspecto técnico (o aprimoramento de mecanismos de projeção de fotografi as em sequência), um aspecto comercial (a transformação operada na indústria de massas) e um aspecto comunicacional (que se refere ao desenvolvimento de padrões de linguagem e constituiçãode uma narrativa). É importante que atentemos a cada um destes aspectos, que estão interconectados entre si. A evolução do maquinário de projeção e captura de imagens, como visto, não por acaso deu-se na região da capital francesa. Como capital mundial da modernidade e dos divertimentos populares, inventos como o cinematógrafo e depois, o cinema, estavam incorporados a uma cultura do entretenimento que progrediu rapidamente para a indústria do espetáculo. Ou seja, onde imperava uma cultura de expectação, as experiências audiovisuais constituíam-se como um fato social: a adaptação das projeções aos palcos respondia às demandas sociais e culturais do universo audiovisual na qual estavam inseridas. Esta experiência foi distinta daquela observada nos Estados Unidos, por exemplo, em que regia uma experiência de visualização e apreciação mais voyerista. Um exemplo dessa apreciação voltada para o individual, pelo sujeito que paga para espiar algo que só ele pode ver foi a invenção do cinetoscópio, equipamento simultâneo e mesmo anterior ao cinematógrafo dos irmãos Lumière. O cinetoscópio fora um invento originário dos Laboratórios de Thomas Edison, que o patenteou. Constituía-se por um equipamento de projeção de imagens observadas através de um visor individual, que era acionado pela inserção de uma moeda. A captura de imagens em movimento se dava pela operação de diversas câmeras fotográfi cas em fi la, cujo produto era uma pequena tira de fi lme disposta em looping (formato de cobra, na vertical), dentro do equipamento de projeção. Como parece evidente, o equipamento fora pensado desde o princípio aliado a 97 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 sua comercialização: estava apto a ser distribuído em distintos estabelecimentos públicos e de entretenimento, acessível ao nível do indivíduo que podia pagar por ele. Esta é apenas uma de uma série de experiências, inventos e parafernálias desenvolvidas no país, cujo lugar de destaque na segunda revolução industrial permitiu a rápida ascensão de sua indústria cinematográfi ca, dominante do mercado da produção fílmica já nas primeiras duas décadas do século XX. Desde a sua invenção, o cinema foi aproximado do universo do sonho, do subconsciente, envolto numa espécie de magia produzida pelo efeito de ilusões. A possibilidade de manipulação política do inconsciente coletivo através do cinema gerou diversas experiências de propaganda, que acreditavam ser possível manipular as mentes e promover o convencimento das massas em relação a um dado sistema de crenças. As potencialidades do cinema no âmbito da propaganda foram provadas já no período da Primeira Guerra Mundial, quando se produziram fi lmes com essa fi nalidade. De todo modo, parece claro que o poder evocativo das imagens cinematográfi cas, seja por meio do efeito realidade ou da manipulação inconsciente, não se limita a uma propaganda no sentido lato do termo: somos infl uenciados pelos modos de ser e existir representados no cinema, mesmo que o produto cultural que consumimos não tenha a intenção de convencer-nos a algo. Em relação aos usos políticos do cinema, mas também ao seu apelo às massas (aspecto comercial), o caso da produção russa pós-revolução de 1917 merece destaque. A arte cinematográfi ca vinha fl orescendo no país desde a fi lmagem da coroação do último czar russo, Nicolau II, em 1986, que foi, por assim dizer, um entusiasta da técnica. Ainda no período czarista, adaptações das obras de grandes ícones da literatura nacional, como Tolstói, Dostoiévski e Puchkin, alçaram o país como um dos maiores produtores mundiais (e consumidores) de cinema, lugar que ainda ocupa atualmente. As grandes produções cinematográfi cas estimuladas, fi nanciadas e distribuídas pelo governo bolchevique, por sua vez, são fruto do gênio de cineastas cuja importância pode ser sintetizada em dois pontos. O primeiro refere-se ao fato de que o interesse de cineastas como Vsevolod Pudovkin, Sergei Eisenstein e Lev Kulechov no desenvolvimento da linguagem do cinema e no ensino de suas técnicas fez deles os primeiros “‘professores’ de cinema a analisar os mecanismos pelos quais os fi lmes de Hollywood desenvolviam suas narrativas, identifi cando na rapidez da mudança de planos a essência de seu dinamismo” (HAGEMEYER, 2012, p. 81). Em segundo lugar, a contribuição de Eisenstein – lembremos, cuja “escola” fora louvada por Walter Benjamim como única manifestação legítima de representação, ao utilizar ao invés de atores, pessoas que se identifi cavam com os personagens representados, por exemplo, os trabalhadores – originou um tipo novo de efeito visual de produção de sentido, realizado pelo confronto 98 Linguagem Visual na HistoriograFia de duas imagens conceito. O desenvolvimento desta técnica esteve inspirado na lógica dos ideogramas orientais: aliando-se dois ideogramas com signifi cados relacionados, tem-se um terceiro, que representa outra coisa que não as duas primeiras. Levando isso ao plano das imagens, Eisenstein utilizou técnicas de montagem que se constituíam no choque entre duas imagens, a fi m de produzir um determinado efeito de sentido (uma terceira imagem). Sua obra-prima, O Encouraçado Potemkin, foi considerada por diversas instituições de cinema como uma das melhores produções fílmicas de todos os tempos. O fi lme, lançado em 1925, conta a história de uma rebelião ocorrida em 1905 no navio de guerra Potemkin, estando baseado, portanto, em fatos reais. O estopim para a revolta ocorre quando os marinheiros percebem que lhes foi oferecida uma porção de carne estragada para o jantar. A revolta contra os ofi ciais superiores se desdobra no desejo de lutar contra as injustiças universais, a começar pela revolução social que desejam empreender junto a sua cidade natal, Odessa, situada no atual território ucraniano. O fi lme é um clássico no seu estilo: fi lmado em preto e branco, com alto contraste e mudo. Recebeu diferentes trilhas sonoras ao longo do século XX, sendo a primeira produzida por Edmund Meisel, em parceria com o próprio Eisenstein. A apreensão da riqueza de signifi cados de cada uma das cinco partes em que está dividida a obra não se dá senão por certo esforço de parte do expectador/a no tempo presente, dada a complexidade das ideias expressas e evocadas pela visualidade. Isto ocorre, também, porque o fi lme está repleto de situações que aportam informações sobre o espaço-tempo da narrativa, efeitos de sentido conquistados por meio das técnicas de montagem e por uma linguagem característica da apreensão estética de seu tempo, que podem passar despercebidas para os/as iniciantes do gênero. Finalmente, temos que o caráter chocante dos confrontos parece o resultado de um gênio criativo dos primeiros tempos da revolução russa, impregnado de um forte senso de justiça e reparação para com o seu povo. O terceiro aspecto a que nos adverte Hagemeyer (2012) acerca da invenção do cinema e sua relação com a História refere-se ao seu aspecto comunicacional, a constituição de uma narrativa e padrões de linguagem, aspectos em parte já abordados. Nos primeiros tempos do cinema, quando de sua era “silenciosa”, a possibilidade de condensar uma história, estabelecendo nexos narrativos entre 99 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 imagens separadas no tempo e no espaço, permitiu que se desenvolvesse a ideia de que o cinema era uma linguagem hieroglífi ca, puramente imagética. No entanto, a “evolução técnica” das formas de comunicabilidade utilizadas pelo/no cinema, a partir dos anos 1930, trouxe uma série de inovações que não foram entendidas consensualmente como um progresso. As ressalvas giravam em relação, sobretudo, à introdução do som sincronizado e à imagem colorida, dois elementos fundamentais na produção de sentidos e na alteração das formas de apreensão visual, os quais devem ser levados em conta pelo/a historiador/ana análise de produções cinematográfi cas. FIGURA 12 – CENA DO MASSACRE NA ESCADARIA DE ODESSA, EM O ENCOURAÇADO POTEMKIN (1925) FONTE: . Acesso em: 13 dez. 2019. Podemos afi rmar, em relação ao âmbito sonoro, que o silêncio nunca fez parte da experiência cinematográfi ca. Isso porque junto à exibição visual de um fi lme mudo, além dos ruídos e manifestações dos/as expectadores/as, partituras, pianistas ou orquestras a acompanhavam. Nesse momento a trilha sonora, portanto, era concebida separadamente, mas em sincronicidade com os planos e sua alternância, o que dotava de densidade a dramatização de uma cena – suspense, alegria, leveza – como ainda ocorre atualmente. A mudança mais signifi cativa do cinema falado em relação ao mudo, por conseguinte, referia-se ao som verbal: substituíram-se os diálogos extremamente reduzidos do cinema mudo, expressos através de palavras escritas, à moda de “legendas”, pela 100 Linguagem Visual na HistoriograFia sincronicidade entre a dramaturgia e os sons que ela produz. Como resultado do cinema falado, temos que uma produção possui, pelo menos, três tipos de som: o verbal, o musical, e o ruído produzido pelas situações representadas (HAGEMEYER, 2012). O surgimento do cinema colorido, por sua vez, conferiu às produções um caráter mais realista ou uma ilusão maior de realismo, aportando também um sentido mais literal ao que era capturado pelas câmeras. As imagens em preto e branco conferiam às produções certo distanciamento em relação aos espectadores/as; muitos detalhes fi cavam de fora da apreciação do público porque a escala de cinza não permitia que se atentasse àquilo que não estava em primeiro plano, ou ainda, àquilo que não tivesse sido pensado para um close up. Nos fi lmes de arte, por exemplo, a fi lmagem em preto e branco, suas regras de composição e jogos de luz característicos continuam sendo utilizadas. Já o fi lme colorido, mais pictórico, permite que o espectador apreenda melhor a composição do cenário, objetos, vestimenta etc. Uma vez que na imagem colorida “tudo se vê” e ainda, “realisticamente”, sempre há quem se questione sobre a importância de algum detalhe: está na cena com alguma fi nalidade ou simplesmente compõe um universo recheado demais? A fi m de tecer algumas considerações sobre a televisão, parece adequado apontar de antemão que a história desse meio de comunicação, suas teorias, chaves de compreensão e apropriação como objeto de narrativas históricas o coloca em lugar distinto daquele em que se situa o cinema no campo da produção de conhecimento. Embora, quando de sua difusão, nos anos 1950, alguns intelectuais a tenham considerado a “oitava arte”, convencidos de que ela abriria as portas para o sonho da visão e da transmissão à distância de imagens, hoje a televisão ocupa um lugar menos “nobre”, permeado muito mais por críticas quanto ao seu papel na alienação das massas do que por esperanças em relação ao desdobramento da técnica ou suas potencialidades, por exemplo, no desenvolvimento de formas estéticas ou “artísticas” de linguagem. Ainda em relação ao cinema ou a um audiovisual que está autolimitado pelo tempo de sua exibição, a televisão se diferencia pela difusão de imagens e sons em fl uxo contínuo: anunciando novidades, informes, curiosidades, apelando ao consumo como uma necessidade e exigindo, de alguma maneira, atenção permanente. Acabado um jornal de notícias, a dramaturgia seguinte se mostra sedutora, o programa de auditório que o sucede, da mesma forma parece “valer a pena”; assim sucessivamente, toda a teledifusão será apresentada de forma enormemente interessante. A linguagem audiovisual desenvolvida em meio televisivo tem neste fl uxo contínuo sua característica. Em que pese o invento ser datado dos anos 1930, sua necessidade social – na qual pôde desenvolver-se – se daria apenas com o fi nal da Segunda Guerra Mundial. 101 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 Embora atualmente a segmentação de mercados consumidores demande das emissoras de televisão uma série de estudos de recepção para orientar- se na elaboração dos programas a serem exibidos e o melhor horário para esta exibição – sem falar da super especialização do público espectador, pelos canais de assinatura “temáticos” – a organização da televisão aberta ainda está fortemente inspirada no modelo americano dos anos 1950. Ou seja, organizada a fi m de satisfazer o American Way of Life, a programação da manhã está dedicada aos programas de variedades, culinária e bem-estar, temas e demandas orientados ao público feminino. À tarde, quando as crianças estão em casa, no contraturno escolar, exibem-se fi lmes, desenhos ou séries infantojuvenis, ou ainda, aquela programação designada “familiar”. O fi m da tarde e o começo da noite estão voltados aos mais velhos: a dramaturgia é mais suave, romântica; os jornais possuem caráter local e são mais informativos, com amenidades e menos analíticos. Finalmente, o período da noite está reservado aos adultos, audiência máxima: nesse espaço a programação oferece dramaturgias “nobres” e os noticiários promovem a síntese do cenário nacional e internacional, em que se veiculam análises de especialistas e a opinião de “colunistas”. Como parece claro para nós, que nascemos e crescemos sob a infl uência, em maior ou menor medida, do aparato televisivo, o fl uxo contínuo da programação não se encerra nem mesmo com a inserção de inúmeros comerciais entre um bloco e outro de conteúdo. Isso porque as propagandas são parte constitutiva do fl uxo que compõe a transmissão. Escasseando-se cada vez mais o tempo de propaganda, ele tende a encarecer-se, já que em “comercial” se incluem as chamadas da própria programação, que compete pela audiência do público com os produtos oferecidos, mas também com o conteúdo a ser exibido em outros canais. Esse fenômeno é ainda mais evidente nos canais de assinatura pagos: o/a espectador/a, adquirindo o acesso à transmissão, reduz drasticamente a necessidade de que a programação seja fi nanciada pela propaganda. Mais adiante, ao pontuar questões teórico-metodológicas em relação à televisão como fonte histórica e como um produto cultural, incorporaremos outros elementos a essas breves considerações sobre a “tv” como meio técnico. Consideramos importante situar, para o momento, duas especifi cidades da televisão, no interior do conjunto amplo de audiovisuais. A primeira, a de que a linguagem televisiva não se defi ne por si mesma, mas numa relação comunicacional entre a instituição que a produz, os expectadores/as e os/as críticos/as, reconhecendo-se nisso uma série de leituras e correlações possíveis. A segunda, a de que a televisão recorre a diversos tipos de representação visual diferentes e simultâneos. Reside nessas características, sem dúvidas, parte das resistências para a incorporação da televisão, sua programação e evocação narrativa aos estudos históricos. 102 Linguagem Visual na HistoriograFia Dando início ao segundo momento de nossa análise sobre história e audiovisual, abordaremos a utilização desses produtos culturais na produção historiográfi ca, com ênfase no cinema, a partir das análises do historiador Alexandre Busco Valim (2012) e em menor medida na televisão, com base nos estudos de João Freire Filho (2004). Em relação ao cinema, reiteramos que sua produção consiste em fenômeno complexo no qual se entrecruzam elementos de ordem estética, política, econômica e social, e destacamos que as questões abordadas a seguir se baseiam em fi lmes característicos do denominado estilo clássico hollywoodiano. Essa ressalva pressupõe o entendimento de que as questões colocadas não são adequadas para a análise de outros tipos de produção cinematográfi ca, a não ser a título de grosseiras generalizações. Para Valim (2012), a narrativahistoriográfi ca pode ser analisada a partir de três perspectivas: 1) enquanto representação, o conjunto de ideias que compõem a trama; 2) enquanto estrutura, através de uma abordagem sintática; e 3) enquanto ato, processo dinâmico de apresentação de uma história a um receptor. A natureza da análise, entre uma ou outra das perspectivas, será de eleição do/a historiador/a, atendo-se ao gênero da produção ou produções em análise e às questões históricas que se colocará em relação a elas. Uma primeira coordenada metodológica de relevo será atentar ao caráter necessariamente multidisciplinar da análise das relações entre a produção, as relações sociais e a história dos meios através dos quais o produto cultural foi construído (audiovisual). Ou seja, o produto deve ser analisado “nos seus próprios termos”, mas também em relação ao aparato teórico dos estudos de cinema, buscando o equilíbrio entre as teorias do Cinema, a História do Cinema, e a crítica cinematográfi ca. Isto prescinde, no mínimo, um diálogo entre dois campos do conhecimento, a História e o Cinema. Os críticos, por sua vez, exercem “uma função que precisa ser integrada aos trabalhos sobre história do cinema e seu papel deve ser estudado em conjunto com a análise das temáticas do fi lme, na comparação com fi lmes preexistentes e no estudo dos tipos de personagens e tipos de relações” (VALIM, 2012, p. 293), uma perspectiva que pode dizer muito, segundo o autor, acerca do período estudado. Uma segunda orientação, adotada a partir de Marc Ferro e Michèle Lagny, ambos historiadores do cinema, refere-se à compreensão de que o cinema não se constitui apenas como prática social, sendo também um gerador de práticas sociais, podendo ser inquerido enquanto testemunho de formas de agir, pensar e sentir de uma sociedade. Investigar os processos através dos quais a narrativa cinematográfi ca suscita os indivíduos a se identifi carem com ideologias, posicionamentos e representações sociais e políticas dominantes, além dos rechaços a essas tentativas de dominação, propicia uma visão crítica 103 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 sobre a sociedade, e também demonstra o papel adquirido pelo cinema enquanto propulsor de certas transformações e de tomadas de atitude. Importa lembrar, ainda, que tanto as narrativas e sua produção quanto a recepção dos audiovisuais comprova que estes falam sempre do presente, mesmo abordando o passado ou contextos distópicos, residindo nisso sua potencialidade em fornecer dados sobre o lugar social, o contexto de sua produção e as ideias que o cercaram. Uma incontornável preocupação dos estudos de cinema pautados pela História Social é a que se refere à recepção cinematográfi ca. As produções fílmicas em si dizem pouco acerca do processo pelo qual foram realizadas: as estruturas organizativas, executivas, as situações de mercado, laborais etc. Quando assistimos a um fi lme, não encontramos nele esta categoria de informações. Assim, uma terceira indicação metodológica, referente à demanda por enriquecer a análise historiográfi ca do produto cultural, para além de si mesmo, seria incorporar como fontes documentais outros meios de comunicação tais como revistas populares, programas de rádio, anúncios, suplementos de jornais, dentre outros produtos culturais que se relacionem com a produção, mas que informem também sobre os domínios culturais, instituições e valores nas quais esta produção esteve inscrita. Importa investigar, nesses materiais, como a vida cultural da produção a interpretou, pois isso informa sobre atitudes e tendências difundidas no seu contexto de produção e circulação, além de aportar sobre os valores sociais correntes apropriados, modifi cados ou negligenciados pela obra. Para a construção de conhecimento histórico com base em narrativas audiovisuais, sobretudo cinematográfi cas, a análise dos gêneros é de suma importância. Uma produção – seja de Hollywood, Bollywood, do período áureo cinematográfi co soviético ou brasileiro – transmite impreterivelmente um conteúdo ideológico, ainda que de forma não intencional. Isso ocorre porque no processo de sua produção há elaboração, acumulação, formação e construção de conteúdo que reproduz a ideologia dominante, já que esta exerce todo o seu peso sobre aqueles/as que idealizam, realizam e apreciam estes produtos culturais (VALIM, 2012). Trata-se de uma disputa de poder travada no âmbito do discurso que pode ser subvertida, é claro, pelo indivíduo. Ou seja, a ideologia pode ser questionada, seja em sua linguagem, seja no rechaço às interpretações imagéticas acerca de lugares, atitudes e modos de vida. Entretanto, o poder da ideologia se mostra com (mais) força quando o conteúdo fílmico proporciona imagens sobre uma realidade para a qual o indivíduo não possui conhecimento prévio; nesse caso, tende a assimilá-las como reais, ignorando seu poder de representação e simulacro. 104 Linguagem Visual na HistoriograFia Sugestão de leitura: Sadlier, 2016. No capítulo sugerido para leitura, a historiadora aborda imagens do Brasil retratadas pelo cinema nacional, desde o movimento do Cinema Novo, nos anos 1960, até os anos 2000. O texto permite atentar para as fases da produção cinematográfi ca nacional e para as especifi cidades da indústria cultural brasileira. Na análise acerca da produção de sentido da narrativa cinematográfi ca, em que residem e se transmitem as ideologias de uma época, de um regime ou de seus produtores, os gêneros importam porque a partir deles se estabelecem as fórmulas que orientam as produções. Noutras palavras, o gênero é por si só uma linguagem, uma estratégia de comunicabilidade através da qual se dota de sentido uma narrativa. Desconsiderando-se a inserção de uma obra em seu gênero, com todas as referências que ele aporta, a análise do/a historiador/a sobre o seu conteúdo, produção ou relações sociais deixará muito a desejar. Por essa razão parece importante prosseguir, ainda que brevemente, na coordenada metodológica que aqui designamos como de análise dos gêneros cinematográfi cos. A partir do balanço realizado por Valim (2012), abordaremos a contribuição de alguns autores/as sobre a discussão dos gêneros e suas convenções. Para além de uma designação – western, noir, fi cção científi ca, drama, fantasia, policial, musical, comédia, histórico – o gênero é um conceito complexo, de acordo com Edward Buscombe, uma moldura dentro da qual uma história pode ser contada, limitando-a, portanto. Para Rick Altman, o gênero envolve múltiplos signifi cados: é um rascunho (uma fórmula que precede e programa a produção industrial); uma estrutura (que modela um conteúdo no interior de um espaço); um rótulo (categoria central nas decisões e comunicações entre produtores, distribuidores e exibidores). Já para Dudley Andrew os gêneros cumprem funções que abrangem toda a economia do cinema, composta pela indústria, por uma necessidade social de produção de mensagens, por uma tecnologia, por um conjunto de signifi cados, de práticas e de pessoas. Todos estes aspectos da economia cinematográfi ca estão inter-relacionados e sua dinâmica pode ser estudada com base na análise dos gêneros. Uma contribuição de destaque na abordagem dos gêneros enquanto defi nidores de dada indústria fílmica e sua respectiva audiência é a aportada por Jesús Martín Barbero, segundo o qual os gêneros são um ponto de ancoragem da indústria cinematográfi ca. Para o autor, eles imprimem um tipo de qualidade 105 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 à narrativa, que serve como mecanismo de reconhecimento do seu “estilo” junto às massas. Trata-se, nesta perspectiva, de uma chave de leitura de decifração de sentidos em relação ao mundo exterior, ou seja, a recepção, o público apreciador. Essa relação é a peça-chave da defi nição dos gêneros proposta por Thomas Schatz e Leo Braudy, os quais defendemvisuais e sobre o seu signifi cado, constitui uma primeira aproximação ao tema da leitura de imagens, que agora veremos de maneira mais teórica. Maria Emilia Sardelich (2006) realizou uma síntese dos conceitos que fundamentam as propostas de leitura de imagens no campo do ensino de artes, o que nos interessa no sentido de situar os debates e as diferentes perspectivas desse campo do conhecimento que aqui se situa entre a história e a linguagem. Quem sabe, ao fi nal desta abordagem, poderemos identifi car qual metodologia de “leitura” de imagens mais nos interessa, ou melhor, a que se apresenta mais útil para nós, enquanto historiadores e historiadoras. Antes de adentrarmos nestas diferentes propostas de “leitura de imagens”, cabe destacar que esta expressão começou a circular no campo das linguagens e das artes no meado da década de 1970, no bojo de um momento de intensas transformações nos paradigmas linguísticos e estéticos, com a explosão dos sistemas audiovisuais. Essa tendência que, inspirada numa ideia geral, buscava “ler” a imagem, foi infl uenciada por dois movimentos: o formalismo e a semiótica. O formalismo esteve fundamentado na teoria da Gestalt, movimento datado do início do século XX. Esta palavra signifi ca, no idioma alemão, “forma”. Segundo a teoria gestáltica, o todo não pode ser apreendido pelo conhecimento de suas partes, pois o todo é outra coisa – uma entidade concreta e individual – que não a soma de suas partes. Atentar-se aos fenômenos da superfície e não às profundezas obscuras que compõem um objeto, por exemplo, conduz à compreensão de que é a sua forma externa o que sobressai na “leitura” que dele se faz. Nesse olhar para o todo enquanto uma forma única consiste o método de leitura dos formalistas. Esta teoria 14 Linguagem Visual na HistoriograFia preza pelo processo de dar forma, de caracterizar o que se apresenta diante dos olhos, tendo inspirado intelectuais não só do campo das artes, mas fundado também uma escola psicanalítica. A semiótica, por sua vez, é um campo de estudos que se dedica à construção do signifi cado, à análise do processo de signo (processo de signifi cação). Nos processos de signo, analisam-se indicação, designação, semelhança, analogia, alegoria, metonímia, metáfora, simbolismo, signifi cação e comunicação. Ao contrário da linguística, que explora também os processos de signifi cação, mas em linguagens escritas, a semiótica se volta a sistemas não linguísticos, entendendo que em toda expressão cultural há um processo comunicativo. Apesar do termo semiótica já haver aparecido nos escritos de John Locke, no fi nal do século XVII, foi Charles Sanders Pierce quem se destacou como o pioneiro da ciência semiótica, tendo-a categorizado em três eixos, em texto de 1867: primeiridade (qualidade, a primeira impressão), secundidade (relação, a matéria em que está impressa a qualidade) e terceiridade (representação, sua qualidade distintiva, original). Voltemos ao contexto da leitura de imagens, conforme vinha se desenvolvendo este campo de estudos nos anos 1970, na medida em que uma imagem passa a ser compreendida como signo, ou seja, cujo signifi cado incorpora diversos códigos, surge a necessidade de construir categorias visuais que formalizem o processo de leitura. De acordo com Sardelich (2006), a noção de que se poderia ler e, portanto, ensinar a ler dados visuais, foi inspirada no livro de Rudolf Arnheim de 1957 intitulado Art and visual Perception. Nessa obra o autor catalogou dez categorias visuais que, juntando qualidades plásticas e estéticas aos aspectos formais, permitiriam desvelar uma confi guração que por si mesma possuía qualidades expressivas. As categorias elencadas por Arnheim são as seguintes: equilíbrio, fi gura, forma, desenvolvimento, espaço, luz, cor, movimento, dinâmica e expressão. Outra abordagem de relevo em relação à proposta de leitura de imagens foi desenvolvida por Robert Ott em 1984. Sua abordagem se centra no aspecto estético da leitura de obras de arte. Na realidade, a proposta de Ott caracteriza-se por um sistema de apreciação que deve ser mediado, o que talvez explique a ampla utilização de seu sistema entre professores e professoras ao redor do mundo, inclusive no Brasil. O método de leitura de imagens proposto pelo autor foi defi nido em seis etapas, assim descritas: Aquecendo (ou sensibilizando): o mediador prepara o potencial de percepção e de fruição do observador. Descrevendo: o mediador questiona sobre o que o observador vê, percebe. Analisando: o mediador apresenta aspectos conceituais da análise formal. Interpretando: o observador expressa suas sensações, emoções e ideias, oferece suas respostas pessoais à obra de arte. 15 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 Fundamentando: o mediador oferece elementos da História da Arte, amplia o conhecimento e não o convencimento do observador a respeito do valor da obra. Revelando: o observador revela através do fazer artístico o processo vivenciado (OTT, 1984 apud SARDELICH, 2006). Por se tratar de um processo em que não existe um resultado fi nal único ou correto, as etapas foram descritas no gerúndio, tempo verbal que na língua portuguesa representa ações em movimento. Façamos um exercício de leitura de imagem a partir da proposta de Ott, ressalvando nosso papel, nessa hipótese, enquanto mediador do processo de apreciação de uma obra: a pintura Criança Morta, de Cândido Portinari (Figura 3). A você, como acadêmico, cabe responder às questões com vias a experimentar o método de leitura de imagens que estamos analisando. Aquecendo: o mediador aprecia a obra e suscita que o observador faça o mesmo. Descrevendo: o que você vê nesta imagem? Como são as suas linhas? Ausentes, nítidas, angulosas, indefi nidas? Que cores foram utilizadas e que cores predominam? São fortes, misturadas ou chapadas? Há jogos entre claro e escuro? Quais são as texturas da obra, lisas, ásperas, macias? Você observa na imagem formas orgânicas, geométricas ou difusas? Analisando: como o artista organizou as formas? No centro ou nas extremidades? Elas estão agrupadas ou estão distantes? Esta alocação parece ter sido espontânea? Qual foi a técnica utilizada pelo artista? Os seus olhos, quando veem esta obra, movimentam-se de forma rápida, lenta, profunda ou ritmada? Há algum objeto em destaque nesta pintura? Qual é o tema desta obra? Interpretando: como o artista utilizou os elementos formais (cor, técnica, forma etc.) para expressar as suas ideias? Quais são as suas impressões sobre esta obra? Ela lhe reporta a alguma experiência? Que sentimentos suscitam? Que título você daria para esta obra? Fundamentando: qual é a relação do título da obra com o que ela expressa? Onde você considera que o artista estava e sob quais condições realizou esta obra? Você considera que o artista utilizou a sua memória, a observação ou a imaginação para produzir esta obra? A obra se reporta a alguma outra? Você vê nela traços que lembram outra obra ou imagem? Revelando: como você faria uma obra sobre este mesmo tema? Experimentação artística, cuja obra, resultante desta leitura, poderá também ser apreciada seguindo os passos propostos. 16 Linguagem Visual na HistoriograFia O tema desta obra de Portinari é a família migrante, a família sem posses que emigra do nordeste brasileiro fugindo da seca e da pobreza, que no drama vivido são sinônimos. A amplitude do horizonte, bem como do problema social no qual está inserida essa família é logrado pelos tons terrosos abaixo, de fora a fora da pintura, e do azulado chapado, acima. No centro da imagem está o ponto de destaque: as mãos do pai, que segura a criança morta, são desproporcionais, o que garante que este elemento será visualizado de imediato pelo/a observador/a. O aspecto fantasmagórico ou cadavérico das pessoas denota o tamanho da sua dor e do sofrimento vivido, ao que se somam as lágrimas em forma de pedras queque, para que um gênero se constitua como tal, é necessário que ele seja defi nido pela indústria e reconhecido pela audiência num duplo processo: de certifi cação pela indústria e de compartilhamento pelo público. Qualquer leitor/a que tenha entrado em contato com material historiográfi co que verse sobre produtos ou sobre a indústria cinematográfi ca compreende a importância dessa discussão. Para Valim (2012), a complexidade dos debates que envolvem o gênero cinematográfi co resulta em certo receio de parte dos/ as estudiosos/as em deter-se a analisar produtos ou conjuntos de produtos audiovisuais que não se encaixem em categorias defi nidas, ou ainda, que apresentem referências cruzadas. Daí que grande parte da historiografi a relacionada ao cinema se defi na pela análise de fi lmes que possuam limites claros quanto ao seu pertencimento em relação aos gêneros. Atente-se a que esta ressalva quanto ao caráter híbrido ou limítrofe entre dois ou mais gêneros não depende apenas de uma intencionalidade investida em sua produção, mas da variação na percepção de diferentes públicos em relação à obra. A perspectiva de análise dos gêneros – recordemos, aqui, o foco no estilo clássico hollywoodiano – não se trata de um mero sistema de classifi cações. Um gênero constitui um modelo cuja característica é a utilização repetida de um mesmo material, uma estrutura narrativa similar, se não reproduzida. Em que pesem os desfechos ou decisões particulares tomadas em uma produção fílmica, que a faz “destoar” de suas irmãs de gênero, o reconhecimento de uma fórmula traz para o/a espectador/a uma familiaridade fundamental na conformação de um público apreciador. Para o/a historiador/a, o conhecimento do gênero pressupõe também essa familiaridade, mas do ponto de vista analítico: o uso de imagens- chave, sons, situações, ambientações, momentos de clímax etc., todo um intenso diálogo intertextual. Compreender as fórmulas e formas de comunicabilidade e produção de sentido de narrativas audiovisuais não signifi ca dizer que o produto, nesse caso a obra cinematográfi ca, não esteja eivado de historicidade, dotado das marcas do seu tempo e de conexões com a cultura que o produziu. As convenções de gênero, suas referências repetidas e continuadas não devem ser supervalorizadas em detrimento das relações sociais e contextuais de sua produção. Numa equação simples, seria o caso de questionar se Por um punhado de dólares (1964), western estrelado por Clint Eastwood se relaciona intimamente com O grande assalto ao comboio (1903) mais do que serve de testemunho ao contexto 106 Linguagem Visual na HistoriograFia do início da década de 1960, quando foi produzido e fi lmado. A identifi cação de gênero é inequívoca. A partir da linha do Rio Mississipi a oeste se confi guram os cenários do gênero western – ocidental, em inglês – que aborda o contexto da “tomada” destas terras habitadas por populações nativas, no período compreendido entre a Guerra Civil Americana (1861-1865) e o começo do século XX. Em linhas gerais, tem-se como personagem um cowboy, homem branco, sempre de passagem, solitário, sem posses além de um cavalo e um revólver. As narrativas se passam em pequenas cidades compostas por uma rua principal, na qual se destaca o saloon, a delegacia e uma igreja, em algumas oportunidades. Movidos por ideais patrióticos, os cowboys “bonzinhos” se deslocam ao oeste em busca de um futuro glorioso. Em Por um punhado de dólares (Figura 13), temos que o personagem principal não fi gura como um patriota americano. Como o título do fi lme sugere, Eastwood faz o papel de um mercenário cínico, que tem em mente o benefício próprio a qualquer custo, visto que sua ocupação é a de caçador de recompensas. É quase um anti-herói, oscila entre comportamentos antiéticos – como “trabalhar” para gangues rivais, a custo do seu enriquecimento – e a preocupação com os demais – a exemplo de Marisol, a “mocinha” do fi lme. De forma sumária, limito-me a apontar que o contexto do fi lme revela que sua produção se deu num momento de decadência do gênero nos Estados Unidos (uma das razões de sua produção haver sido teuto-hispano-italiana), cujo declínio fora caracterizado pelo cansaço do público com as fórmulas do gênero, excessivamente pregadoras. Talvez isso justifi que a opção por um protagonista que não era nem mocinho, nem vilão, mas um “tipo” social sadicamente ofensivo, conforme as críticas que o fi lme recebeu à época de seu lançamento. De qualquer forma, tratava-se de uma abordagem nova, sem falar nos close ups extremos, demorados e em demasia para o estilo de Hollywood. Em suma, incontestavelmente inserido no gênero, a produção se revela pelo momento de sua produção, fi cando curta uma análise que o situe apenas no nível dos diálogos intertextuais. Além da natureza repetitiva do cinema hollywoodiano clássico – convencionalmente situando os “estilos” originados no intervalo 1917-1960 – outra característica comum aos gêneros reside na promoção do chamado sonho americano, dos mitos e ideologias que se referem ao homem que faz a si mesmo, numa sociedade que valoriza as instituições e execra o comunismo, que ama sua pátria e quer vê-la crescer com respeito à propriedade “conquistada”. No fi lme western analisado anteriormente, vemos como isso está presente, ainda que expresso através de sua distorção: a do homem que quer realizar o “sonho americano” por outras vias. No entanto, a inversão de valores expressos na concepção do Estado, da polícia e do sistema legal como legitimadores de um sistema leal, habitado por homens que prosperam no exercício desses valores foi 107 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 melhor do que em qualquer outro gênero abordado pelo gênero noir. Este gênero, habitado por criminosos, prostitutas, oportunistas e corruptos teve seu ápice nos Estados Unidos entre os anos 1939 e 1950. FIGURA 13 – CARTAZ DE A FISTFULL OF DOLLARS, WESTERN LANÇADO NOS ESTADOS UNIDOS EM 1967 FONTE: . Acesso em: 15 dez. 2019. Além de um gênero, os fi lmes noir possuem um estilo visual característico. Filmados em preto e branco em alto contraste, foram o resultado de uma estética visual marcada pela infl uência do expressionismo alemão dos anos 1930, bem como dos fi lmes de terror do mesmo período. Não por acaso os medos, as paranoias e a insensatez do seu conteúdo coincidem com o período da Grande Depressão (de 1929), nisto não residindo, obviamente, uma relação direta, mas constituindo-se numa das formas adquiridas pela manifestação dos receios sociais que dominavam a época. Num modelar exemplar do gênero, A dama de Shangai, estrelado e dirigido por Orson Welles, seu personagem se apaixona por uma loira misteriosa – personagem arquetípico deste gênero fílmico, a “loira fatal” – durante uma viagem de Shangai à Nova York (Figura 14). No enredo, a loira misteriosa o convence a forjar a própria morte para receber o seguro de vida. O clímax do fi lme origina uma cena clássica do gênero, um tiroteio na sala de espelhos de um parque de diversões. 108 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 14 – ORSON WELLES E RITA HAYWORTH EM A DAMA DE SHANGAI (1948) FONTE: . Acesso em: 16 dez. 2019. A abordagem da televisão pelo/a pesquisador/a em História caminha por uma trajetória diferente desta construída acerca do cinema. De acordo com João Freire Filho (2004), o primeiro e mais evidente obstáculo na elaboração de uma história da televisão é a busca e o processamento de dados, documentação e registros audiovisuais. Diríamos, no linguajar historiográfi co, que se trata de um problema de acesso às fontes. Em primeiro lugar, porque o material televisivo por muito tempo fora transmitido ao vivo, como ainda hoje ocorre com alguns programas, inviabilizandoa sua salvaguarda – pelo menos até a popularização dos videocassetes e sua função “gravar”. Em segundo lugar, porque os materiais que sobreviveram à efemeridade do meio são de propriedade de instituições que podem disponibilizar seu acervo mediante pagamento do acesso – o que já se constitui um obstáculo – ou vetá-lo, simplesmente. As salvaguardas caseiras, por sua vez, podem haver-se perdido dado a gravações posteriores da mesma fi ta, à incúria na sua conservação ou ainda, à falta de apreciação de seu valor histórico. Uma primeira orientação metodológica em relação à História da televisão e seus produtos, portanto, num cenário de escassez de fontes audiovisuais, seria recorrer a todo o entorno discursivo de seu objeto de investigação (além do refi namento das questões que orientarão a análise): resenhas, críticas, cartas de telespectadores, memorial de realizadores, memorandos da editora, scripts, fotos e planos de gravação, documentos oriundos da censura etc. Ou seja, aventurar-se na História da televisão prescinde uma refl exão sobre como se engajar de maneira crítica, analítica e criativa com aquele 109 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 passado, “com as conjunturas e os processos que assentam as condições de possibilidade não só para o funcionamento das instituições, como também para a construção dos discursos, dos imaginários, das representações e das práticas que circundam, interpretam e interpelam” a indústria da produção televisiva (FREIRE FILHO, 2004, p. 4). As linhas de investigação adotadas pelos/as historiadores/as da televisão para analisar sua natureza multifária, polimorfa podem ser sintetizadas em cinco aspectos: a televisão como instituição; como realização; como representação e forma; como fenômeno sociocultural; e como um experimento científi co- tecnológico. Não é demais recordar que a opção por uma, outra ou mais de uma linha de investigação requer do/a pesquisador/a que ele/a tenha seguido a mesma “cartilha” indispensável ao historiador/a de outros meios no tratamento das fontes. Ou seja, neste caso, a decisão por percorrer um caminho investigativo é precedida pela formulação de hipóteses estruturantes; pela coleta, organização e sistematização de dados; pela assimilação de eventos relevantes em quadros de referência coerentes com o objeto e a fonte de estudo; e pela elaboração de uma cronologia, periodização ou fases signifi cativas relacionadas aos campos tecnológico, social e institucional. O feeling resultante dessa operação, digamos, pré-historiográfi ca, permite que o/a historiador/a se “decida” de forma mais coerente entre as linhas de investigação possíveis. Cada uma das abordagens anteriormente mencionadas acerca da televisão e seus produtos requer do/a historiador/a que ele/a faça questionamentos diferentes às fontes de mídia televisiva e seus produtos. Em linhas gerais, a televisão como instituição inquere uma indústria específi ca e suas organizações, suas relações com a política governamental, regimes, as concessões e dados da administração corporativa. Como representação e forma, investiga-se o enquadramento estético que a televisão toma emprestado da crítica literária, do teatro e do cinema, sobretudo em relação ao vocabulário e linguagens. A televisão como realização tem o foco na cultura e na prática profi ssional, problematizando como um contexto histórico tende a ser narrado em relatos autobiográfi cos, por exemplo. A televisão como fenômeno sociocultural atenta às relações entre a produção televisiva e a esfera pública, a sociedade civil, a cultura popular, o caráter mutável das relações familiares e dos valores domésticos. Finalmente, a televisão como tecnologia, ou como experimento técnico-científi co, analisa como o aparato se tornou um item doméstico, uma fonte crescentemente infl uente e poderosa para uma mutação na estética social (FREIRE FILHO, 2004, p. 5). Para o campo dos estudos midiáticos, no qual a História da televisão se insere, torna-se importante abordar a complexidade das forças e das mediações sociais, culturais, econômicas e tecnológicas que envolvem a formação dos programas e suas transformações. Em que pese o cerne da História da televisão estar centrado 110 Linguagem Visual na HistoriograFia no produto cultural em si – os programas –, numa perspectiva cultural, a estrutura e a organização da programação, do fl uxo e do “supertexto” também são importantes parâmetros. Além do conteúdo do programa em si, sua relação com os demais programas da grade, as substituições do elenco, as alterações nas pautas, o período de tempo em que foi editado/transmitido, a comparação deste período com o de outros produtos, para citar alguns exemplos, são indicações analíticas de praxe para a conformação de periodizações, tão relevantes para os/ as historiadores/as do meio. A análise dessas questões que circundam o produto cultural televisivo e sua exibição constitui uma segunda orientação metodológica. Outro elemento de destaque para a construção de conhecimento histórico a partir de fontes televisivas é a relação entre os produtos e a audiência, como também já apontamos em relação ao cinema. Neste caso, como a dinâmica da “tv” é a de um fl uxo contínuo, o estudo dos vestígios da construção de vínculos entre a programação e sua audiência é ainda mais signifi cativo, já que nesta relação de dependência da primeira em relação à segunda faz-se o meio: o conteúdo, os programas e produtos audiovisuais podem ser alterados ou excluídos com base no retorno do público em relação a eles. Finalmente, cabe o destaque para outro tipo de relação: a que se institui entre a televisão e seu desenvolvimento técnico, estético e conteudístico e as mudanças nacionais de cunho político. Importa atentar, neste sentido, às ações político-estatais no desenvolvimento da televisão e seus produtos, ponderando que eles não podem ser considerados de forma independente do sistema político e institucional que modela o universo social como um todo. No Brasil, uma característica importante a ser considerada em estudos sobre a televisão se expressa em sua função social agregadora, nisto residindo certa continuidade em relação ao rádio, instrumento comunicacional predominante no país durante grande parte do século XX. A televisão contribuiu desde a sua popularização nos anos 1960 para a construção de imagens da nação, veiculando discursos acerca de sua integração e consolidando no imaginário social ideias sobre brasilidade. Nessas “imagens do/sobre o Brasil”, irradiadas a partir dos maiores centros produtivos do país, consolidavam-se mitos, transformando episódios e personagens em peças chave da nossa história, que se sedimentavam no imaginário social do país seja pela forma característica com que a televisão as utilizava ou pelo poder verbo-narrativo que evocava. 111 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 Sugestão de leitura: Para quem quer adentrar no universo da produção televisiva, História da televisão brasileira, de Sérgio Mattos é um ponto de partida interessante. Neste livro o autor analisa a emergência da televisão no panorama mundial, seus usos e algumas leituras sociais que dela se fi zeram. Em relação ao Brasil, a relevância do texto está em considerar a produção televisiva como indissociável do contexto político vivido e dos momentos econômicos do país – as concessões, a censura, as afi nidades político-institucionais – além de ter servido como uma espécie de termômetro para questões culturais em pauta na sociedade. O último ponto de nossa análise sobre História e audiovisual refere-se à problematização desta linguagem, em dois sentidos: na produção do conhecimento histórico acadêmico; e na construção de imagens sobre o passado. Em relação a este par de questionamentos, limitamo-nos a sumariar as polêmicas que suscitam. Pode a História, uma disciplina acadêmica eminentemente escrita,abrir-se a um tipo de produção de conhecimento sobre o passado e sua relação com outras temporalidades que não tenha como suporte a palavra escrita? Noutras palavras, pode a História “escrever-se” através de produções audiovisuais, por exemplo? A História como disciplina escolar teria a ganhar com o desenvolvimento destas possibilidades “alternativas” de produção histórica? Em que medida, pelo caráter da disciplina, as imagens e os audiovisuais podem contribuir para a apreensão de distintas experiências do tempo histórico? A expressão visual e a História têm em comum a característica da formação de imagens: como não vivenciamos a época dos descobrimentos, por exemplo, suscitamos através do conhecimento histórico a formação de imagens mentais sobre ele. A imaginação é um atributo fundamental ao historiador/a porque, ao narrar o passado, coloca em movimento um conjunto de imagens que constrói a partir dos indícios que encontra sobre este passado, completando as peças que faltam. Este “colocar em movimento” nada mais é do que a sua inserção em uma narrativa. Se imagem, imaginação e História mantêm entre si relações tão próximas, por que a expressão do conhecimento historiográfi co não pode aproximar-se de outras formas narrativas, como a que se manifesta através dos audiovisuais? As ressalvas quanto à produção historiográfi ca por meio de outras linguagens que não a escrita se situa na tradição acadêmica da disciplina, que 112 Linguagem Visual na HistoriograFia é eminentemente letrada e não caberia aqui realizarmos esta discussão. Para uma defesa da imagem técnica, em qualquer dos suportes nos quais pode ser produzida, basta apontar que sua utilização – não como fonte histórica, mas como expressão de conhecimento histórico – é entendida como insufi ciente para informar sobre esse tipo de conhecimento. Ou seja, os detalhes informativos, os dados, as referências cruzadas, as citações, o debate historiográfi co, nada disso poderia ser comportado por uma narrativa que não fosse escrita. Esse é um argumento poderoso, pois se funda nas bases do método da História como disciplina: analisar, comparar, discutir, apontar, referenciar. No entanto, se a imagem é vigorosa na incorporação que fazemos de experiências em História, e a discussão da produção historiográfi ca é um imperativo, justo seria que fosse possível ao conhecimento histórico, acadêmico ou escolar, poder expressar-se por meio destes dois suportes, o visual e o escrito. Por exemplo: assim como a seção introdução, em qualquer trabalho científi co, situa o leitor, orientando a leitura que fará a seguir, a mesma exigência poderia ser feita em relação ao audiovisual: que fosse “introduzida” a fi m de incorporar demandas que a linguagem visual não comporta. Por melhor que um/a historiador/a se esforce em descrever, analisar, elaborar formas de apreensão do conhecimento histórico, nunca o fará tão bem, com tanto poder de convencimento e fi xação entre os seus interlocutores – seus alunos/as, seus pares ou interessados/as – do que o faria através de uma narrativa visual ou audiovisual. A construção dessa narrativa, como a de qualquer produção historiográfi ca, seguirá os procedimentos teórico-metodológicos ordinários da profi ssão, sobretudo aqueles que regulam o ímpeto imaginativo a não afi rmar nada além daquilo que as fontes sugerem, apontam, indiciam. Quando ainda cursávamos História, no meado da década de 2000, causou- nos enorme impressão a leitura do livro de Natalie Zemon Davis, O retorno de Martin Guerre. Conhecíamos pouco sobre o século XVI francês rural, habitado por homens e mulheres comuns. A genialidade com que a autora descreveu os afetos, a alimentação, os ambientes, as situações e inclusive, o horizonte no qual Martin Guerre reaparece, foi responsável por muito tempo pelas imagens que havíamos criado acerca do período. Muito do que não pudemos imaginar deveu- se a nossa falta de conhecimento. Tal lacuna não fora empecilho, no entanto, para que nos apropriássemos desses conhecimentos quando, algumas semanas depois, assistimos ao fi lme homônimo (Figura 15): cruzando referências escritas e pictóricas, nossa compreensão acerca do enredo, contexto e da pesquisa havia se ampliado enormemente. Eis uma prova irrefutável do poder que as imagens emanam na produção e na apropriação de conhecimento sobre o passado – embora hoje entendamos que o fi lme falava tanto da investigação histórica de Davis acerca do contexto dos anos 1560, quanto da França do começo da década de 1980. 113 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 FIGURA 15 – CENA DE O RETORNO DE MARTIN GUERRE (1982) FONTE: . Acesso em: 16 fev. 2020. Sugestão de atividade de estudo: Dentre os gêneros não inclusos no cinema clássico hollywoodiano consta o da fi cção- científi ca, que conta atualmente com um público apreciador entre os mais destacados. Como a característica deste gênero é narrar histórias imaginativas, proféticas, sobre universos paralelos, que contradizem tanto as leis da física quanto as evidências históricas e arqueológicas conhecidas, ele permite atentar para uma relação histórica específi ca, aquela que se refere ao futuro-passado ou ao futuro presente. Ou seja, como se imaginou, no passado, que seria o futuro? E como hoje o pensamos? De que maneira cada presente interfere em dada visão do futuro e do passado? Cada um de vocês, acadêmicos, deve escolher uma obra cinematográfi ca de fi cção- científi ca e preparar, junto a um excerto do fi lme a ser compartilhado com os/as colegas, um trabalho dissertativo entre 2 e 5 páginas analisando o fi lme em perspectiva histórica. 114 Linguagem Visual na HistoriograFia ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Ao longo deste capítulo, abordamos um roteiro convencional relativo à temática da arte, da imagem e da reprodutibilidade técnica. Isso signifi ca, por um lado, que você acadêmico tem nesse material os conteúdos fundamentais para desenvolver saberes e práticas nesse campo de estudo. Nisso a que chamo “convencional”, inserem-se alguns conceitos-chave da discussão que envolve arte e técnica, autores/as com os quais é possível ou necessário dialogar e conteúdos que é imprescindível que sejam dominados. Por outro lado, dada a complexidade e amplitude do campo, muito ainda pode ser buscado por vocês. Filmes, livros, exposições, pesquisas em sites, blogues e mídias, há muito material disponível e que deve fazer parte do cotidiano do professor-pesquisador em História, já que o fi m de uma disciplina ou um curso não signifi ca que estejamos prontos, completos em relação a dado conjunto de conhecimentos. No sentido de indicar caminhos para o aprofundamento de vocês nas discussões que tiveram lugar nesse capítulo, sugiro três caminhos conectados de imersão, a começar pela defi nição de alguns conceitos, como buscamos fazer em alguns momentos desse capítulo. Moderno, modernidade, modernização, modernismo; técnica, tecnologia; imagem, visualidade, linguagem visual... cada conceito designa uma experiência, um momento, um saber situado. Para a discussão sobre modernidade e tecnologia, é preciso utilizar de forma coerente um apanhado de conceitos, que podem se confundir seja pela presença de um mesmo radical na composição de uma palavra, seja porque o uso corriqueiro desses termos não se dá de forma precisa. Em segundo lugar, como nenhum conhecimento é vão e nós, como professores e professoras, estamos sempre em busca de aprimorar nossas ferramentas didáticas, sugiro que vocês busquem familiarizar-se com produtos visuais diversos. Assistam a fi lmes, leiam biografi as de artistas, estudem História da Arte, visitem museus e galerias, tratem, sempre quando possível, de continuar os estudos acerca das imagens técnicas, sua história, seus instrumentos, seus usos. Não basta que saibamos uma porção de coisassobre linguagem visual e tecnologia, é possível também ampliar nosso leque de conhecimentos através de uma aproximação afetiva, no sentido de gratuita, sem fi ns utilitários, dos produtos culturais que virão a ser apreciados, analisados, instrumentalizados por nós em sala de aula ou na produção científi ca. Finalmente, em qualquer nível de instrução, um esforço intelectual é necessário e aprimorar-se requer algum grau de dedicação na busca pelo conhecimento – o que traçamos aqui não foi mais do que uns passos iniciais. Cada um de vocês pode continuar aproximando-se dos temas de estudo deste 115 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 1) Em relação à obra clássica de Walter Benjamin, A obra de arte da época da possibilidade de sua reprodução técnica, assinale a alternativa correta: a) ( ) A obra constitui uma ode à modernidade e um panorama apaixonado das técnicas e tecnologias que estavam se popularizando nas primeiras décadas do século XX. b) ( ) Seu argumento concebe que a possibilidade de reprodução técnica da obra de arte retirou-lhe a aura, um atributo conferido pelo instante singular de sua produção, o qual só possui uma obra original. c) ( ) O autor acreditava que a arte técnica não poderia produzir nada que fosse de validade à sociedade. d) ( ) Para o autor, sua época se caracterizava por haver destruído “o aqui e o agora” da produção das artes, que havia fi cado restrito às obras do passado. 2) Assinale a questão a seguir que expressa a alternativa incorreta acerca da fotografi a: a) ( ) Causou, quando de sua popularização, um enorme entusiasmo, decorrente da possibilidade de representação fi el da realidade, como era então concebida. b) ( ) Deu origem a uma técnica chamada pictorialismo, na qual o capítulo conforme as suas afi nidades: para os que se apropriam melhor de saberes através de conteúdos visuais, assistam a documentários sobre os temas, sobre os autores, sobre suas obras ou também videoaulas e outras produções que sistematizam os conteúdos. Já para os/as que se relacionam com mais facilidade com a palavra escrita, além das sugeridas no capítulo e daquelas que embasaram a sua escrita, a seguir referenciadas, há plataformas de conteúdo científi co nas quais muito do que está sendo discutido agora mesmo nos maiores centros de produção de conhecimento já está disponível para acesso e download. Além disso, em ambos os modelos – conteúdo visual ou textual – podemos encontrar produções que “explicam” as teorias e as ideias complexas dos autores de referência na temática da imagem técnica. Este encontro pelas margens com um tipo de conteúdo que parece duro, difícil de apreender, pode ser um caminho para preparar vocês para um contato direto. 116 Linguagem Visual na HistoriograFia fotógrafo buscava “simular” um retrato pintado, através do tom sépia e da manipulação do foco. c) ( ) As fotografi as são parte de uma narrativa social e familiar multitemporal, pois incorporam o tempo do acontecimento, a rememoração, da exposição etc. d) ( ) Constitui uma representação fi el da realidade tal qual no momento em que se produz, já que a diferença do pintor, que manipula o objeto representado, o olhar do/a fotógrafo/a não possui a capacidade de dotar a realidade de um sentido subjetivo. 3) No tópico relativo à História e Audiovisual, abordamos a importância de atentar para os seguintes critérios de análise acerca do cinema, exceto: a) ( ) Local e contexto de produção, direção, estúdio e outras condições de possibilidade da produção cinematográfi ca. b) ( ) A análise dos gêneros cinematográfi cos, dentre os quais os mais bem caracterizados são aqueles que conformam o estilo clássico hollywoodiano. c) ( ) As mensagens subliminares distribuídas ao longo da narrativa fílmica, que denotam sentido à produção e se vinculam especialmente ao caráter de comercialização do estilo clássico hollywoodiano. d) ( ) Os ruídos, o silêncio e a trilha sonora, as cores e o preto e branco em alto contraste: todos esses são elementos comunicacionais, além de estéticos. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. A mensagem fotográfi ca. In: BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, pp. 11-25. BAZIN, André. O que é o cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2014. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica. In: BENJAMIN, Walter. Estética e sociologia da arte. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, pp. 07-47. FREIRE FILHO, João. História da televisão: Teoria e Prática. In: XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – INTERCOM, 2004, Porto Alegre. Anais, 117 LINGUAGEM VISUAL, MODERNIDADE E TECNOLOGIA Capítulo 2 Porto Alegre: PUC Rio Grande do Sul, 2004. Disponível em: . Acesso em: 16 jan. 2020. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998. HEGEMEYER, Rafael Rosa. História e audiovisual. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. KING, Carol. A maturidade da fotografi a. In: FARTHING, Stephen (Ed.). Tudo sobre arte. Os movimentos e as obras mais importantes de todos os tempos. Rio de Janeiro: Sextante, 2011, pp. 356-359. KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2014. MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto futurista. 1909. Disponível em: . Acesso em: 16 fev. 2020. MARTINS, Paula Mousinho; SILVA, Teófi lo Augusto da. Decifrando a linguagem da caixa preta: Vilém Flusser e a Análise do Discurso. Discursos fotográfi cos, Londrina, v. 09, n. 15, jul./dez. 2013, pp. 171-178. MATTOS, Sérgio. História da televisão brasileira: uma visão econômica, social e política. 5. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografi a e história: Interfaces. Revista Tempo, Rio de Janeiro, v. 01, n. 02, 1996, pp. 73-98. MAUAD, Ana Maria; LOPES, Marcos Felipe de Brum. História e Fotografi a. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. (Orgs.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pp. 263-281. SADLIER, Darlene. O Brasil no cinema, de revolucionário a distópico. In: SADLIER, D. Brasil imaginado: de 1500 até o presente. São Paulo: Edusp, 2016, pp. 277-322. SILVA, Wagner Souza. Antes da imagem: a técnica e a tecnologia da fotografi a. Revista Ícone, v. 14, n. 01, ago. 2012, s/p. 118 Linguagem Visual na HistoriograFia STEINBECK, John; CAPA, Robert. Um diário russo. São Paulo: Cosac Naify, 2011. VALIM, Alexandre Busko. História e Cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. (Orgs.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pp. 283-300. CAPÍTULO 3 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: • Assimilar a imagem, em suas diferentes técnicas e materialidades, enquanto documento que embasa a produção do conhecimento histórico e também o seu ensinamento. • Apreender as potencialidades didáticas dos recursos imagéticos na construção do saber-fazer junto aos educandos. • Situar a utilização de recursos imagéticos nos estudos históricos. • Utilizar a imagem como recurso didático em sala de aula desde o ponto de vista crítico e dinâmico. • Capacitar os educandos a identifi car, analisar e compreender as características e os usos das manifestações artísticas e imagéticas no tempo presente. 120 Linguagem Visual na HistoriograFia 121 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 1 CONTEXTUALIZAÇÃO Percorrendo a trajetória de estudos desta disciplina sobre Linguagem Visual na Historiografi a, temos que o despontar da noção de que uma imagem poderia ser lida deu-se no campo de estudos das artes, e mais especifi camente, noensino de artes. Ao longo do século XX, com ênfase na segunda metade em diante, diferentes autores e autoras sugeriram estágios ou etapas de apreensão visual pelas quais alunos e alunas seriam conduzidos/as pelo/a professor/a visando a ampliação de seus conhecimentos técnicos, formais e estéticos, para que pudessem apropriar- se de um “informe” contido numa pintura, numa ilustração, numa imagem fi xa qualquer. No Capítulo I, elencamos duas contribuições fundamentais para o desenvolvimento desses saberes, o formalismo e a semiótica, os quais deram origem a métodos de ensino-aprendizagem que estiveram centrados no estudo descritivo da representação visual de símbolos, formas, temas e técnicas que compõem uma linguagem visual. Considerando como dada a possibilidade de nos valermos de imagens para a construção de conhecimento em História, indagamos o método historiográfi co em relação à noção de “fontes”, mas também – e sobretudo – acerca do questionário ao qual as imagens, como qualquer outra tipologia documental, devem ser submetidas no decorrer do processo. Problematizamos a concepção de “fonte” enquanto detentora de respostas ou da verdade histórica em si, preferindo considerar produtos visuais como testemunhos de um tempo histórico, inquerindo criticamente tal testemunho quanto aos indícios que aportam para as hipóteses históricas levantadas. Seja o problema histórico a investigar de ordem visual ou não, concordamos que a perspectiva metodológica mais adequada à produção de conhecimento histórico seria a utilização de um conjunto de imagens – ao invés de uma imagem singular – junto a documentos ou artefatos de outros tipos. Através do jogo de comparações entre diferentes testemunhos se dá a possibilidade de construção de saberes mais solidamente confi áveis. No Capítulo II sumariamos os debates fundamentais para o estudo dos objetos visuais oriundos da técnica. Ou seja, a técnica como “arte ou modo de fazer” foi sempre a maneira através da qual um conhecimento fora disseminado. Contudo, o momento histórico que designamos de segunda revolução industrial deu origem a uma classe de desenvolvimento que redefi niu a concepção de técnica, aproximando-a à de tecnologia, à de instrumento, à de máquina. No campo da sociologia da arte a produção de imagens técnicas – daguerreótipo, fotografi a, cinematógrafo, cinema, etc. – originou debates acerca do estatuto destas imagens, suas promessas de representação do real e de “alforria” das artes em relação a esta função (realística). Tais debates são atuais e fundamentais tanto para o/a historiador/a que trabalha com esta categoria de produção visual, 122 Linguagem Visual na HistoriograFia quanto para o/a professor/a que pretende utilizar essa produção em sala de aula, mas também iniciar os/as alunos em práticas de pesquisa em História. Cada tipo de produto visual, e no interior de um mesmo tipo, cada uma das formas tomadas pelos critérios de diferenciação (na fotografi a, os retratos e as paisagens, no cinema, a discussão sobre os gêneros, por exemplo) compõem linguagens específi cas que não podem ser compreendidas senão através do conhecimento acerca de sua produção. Isso porque, conforme a concepção de linguagem que temos utilizado não se desconsidera o conteúdo veiculado, mas uma linguagem é um meio através do qual esse conteúdo é materializado. O professor-pesquisador precisa dos conhecimentos acerca das técnicas de produção visual e audiovisual para fazer o seu trabalho com qualidade, já que elas são instrumentos de produção de sentido que atuam em nível muito mais profundo do que o “dizível”. Por essa razão dedicamos todo um capítulo às imagens técnicas, ao seu processo de desenvolvimento em diferentes momentos históricos, ao maquinário do qual resultam seus usos, especifi cidades etc. Neste Capítulo III, todos os conhecimentos desenvolvidos serão mobilizados em torno da relação entre Imagem e Ensino de História. Em um primeiro momento, discutiremos brevemente o universo imagético como fonte de ludicidade, criatividade e imaginação histórica, um dispositivo ímpar para a construção de conhecimentos sobre o tempo histórico. A seguir analisaremos o uso corrente de imagens na construção do conhecimento histórico escolar – o livro didático e o inquérito das imagens baseado em práticas de pesquisa. No terceiro momento do capítulo o foco de nossa abordagem se voltará a propostas didáticas com recursos imagéticos. Ao apontar a seriação às quais se destinam as propostas, sugerir conjuntos de imagens para cada tema e destacar, através de um questionário, os objetivos do saber-fazer a serem alcançados por meio de recursos visuais e audiovisuais, esperamos não apenas discutir princípios didáticos, mas inspirar a elaboração de outras propostas por cada acadêmico dessa disciplina. 2 POTENCIALIDADES E USOS DAS IMAGENS EM SALA DE AULA A História como disciplina escolar está presente no currículo de crianças, adolescentes e jovens na faixa etária de seis a 14 anos no Ensino Fundamental; e de 15 a 17 anos no Ensino Médio. Lidando com conteúdos complexos, que exigem níveis de abstração, e mesmo imaginação, superiores àqueles demandados em outras disciplinas, o ensino-aprendizagem do conhecimento histórico escolar vem requerendo atualizações didáticas cada vez mais constantes e dinâmicas 123 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 neste primeiro quartel do século XXI. As razões dessas demandas são diversas e relacionam-se ao próprio conteúdo da disciplina, mas também às novas formas de apropriação do conhecimento histórico disponíveis nos tempos em que vivemos. Elencamos, para um breve comentário, três fatores interligados que compõem o quadro situacional da dinâmica escolar em relação à História: 1) o/a professor/a e a escola não são mais os únicos (ou principais) fontes de irradiação do conhecimento histórico; 2) o momento de midiatização vivido pelas sociedades modernas promove a inserção das crianças e dos jovens numa cultura das “telas”, do imaginativo, do imagético e do fi ccional desde muito cedo; 3) como um conhecimento que está sempre em movimento, a História se vê no centro de uma polarização política evidenciada a nível mundial, alvo de revisionismos e de narrativas contestatórias. A escola como lócus principal de apropriação de conhecimentos por crianças e jovens não faz mais parte da realidade de grande parte do alunado brasileiro. Talvez seja, ainda, em parte verdade que algumas disciplinas – como as que envolvem cálculos – percorram uma trajetória na qual o professor/a continua a ser considerado indispensável. No caso da História, podemos afi rmar que a questão da dispensabilidade do mediador/a sempre esteve colocada: pelo menos desde a popularização do livro didático, o conteúdo estava disponível para aqueles que quisessem reforçar, através da leitura extraescolar, o que fora apontado em sala pelo/a professor/a. Como tudo estava escrito no livro à disposição do/a aluno/a, esse/a podia, também, despreocupar-se com as aulas, pois, quando tivesse que demonstrar o domínio dos conteúdos em provas escritas e outras atividades avaliativas, poderia recorrer ao livro didático, detentor de todas as informações a serem memorizadas. Como parece evidente, o que narramos anteriormente é uma leitura ultrapassada e mesmo estigmatizada do ensino de História no contexto escolar. Estigmatizada porque, em que pese diferentes momentos, contextos e profi ssionais, o livro didático nunca fora um manual autodidata, requerendo sempre, como hoje, a mediação do/a professor/a. Ultrapassada, por sua vez, porque a falta de dinâmica no ensino da disciplina conduz aqueles que estão em processo de aprendizagem à busca de novas fontes de consulta, que disponibilizem conteúdos de forma mais acessível, ou seja, sintética, mas também através de linguagens e recursos que dialoguem melhor com a sua faixa etária e com as fi nalidades dos estudos empreendidos.Sem demasiado esforço, hoje podemos encontrar uma infi nidade de atores sociais que se prestam a “ensinar História”: blogueiros, youtubers, videocasters, curiosos e interessados em temas históricos que disponibilizam sínteses, narrativas atrativas e ilustradas sobre fatos, processos e personagens. 124 Linguagem Visual na HistoriograFia O problema é que essas sínteses não estão sendo oferecidas por professores/ as de fato, ou seja, não são produzidas por profi ssionais que dominam, para além dos acontecimentos, o processo de construção de narrativas sobre os acontecimentos. A absorção de conteúdo pelos/as alunos/as, como sabemos, não é o objetivo de a disciplina de História constar no currículo escolar. Nisso residem as ressalvas em relação a “aprender” História através de almanaques audiovisuais: importa a capacidade de memorização que eles mobilizam ou o seu fracasso em potencializar o pensamento crítico? Essa “disputa”, na falta de termo mais adequado, entre a escola e os novos formadores de opinião, que se apresentam quase exclusivamente através das redes, conduz ao segundo elemento alvo de nossos comentários: a inserção constante e precoce das crianças e dos jovens na dinâmica das mídias e dos aparatos tecnológicos. Os desenhos infantis, os jogos, as séries, realidades fi ccionais e fantásticas estão disponíveis para meninos e meninas nem bem logram desenvolver a habilidade de assimilá-los. Ou melhor, desenvolvem com esses produtos tais habilidades. Atualmente, uma série de estudos vem sendo desenvolvida acerca dos níveis de inteligência de crianças que receberam estímulos audiovisuais, de imagens técnicas (sobretudo através da televisão, dos tablets e dos smartphones) desde bebês em comparação com crianças que não foram submetidas a esses estímulos até os três anos. Não nos cabe adensar essa discussão, mas sim apontar, através dela, que as mídias digitais são um fato concreto nas vivências da infância para grande parte da população mundial. Em comparação com o entretenimento e com a ludicidade que esses instrumentos aportam, na utilização que deles fazem os infantojuvenis, a escola torna-se maçante, desinteressante, fonte de conhecimentos inúteis. A História, entendida como o compêndio dos feitos humanos, torna-se a rainha entre as disciplinas sonolentas as quais as crianças e os jovens devem assistir para aprovar o ano. A questão que colocamos é a seguinte: tendo a História uma lista de conteúdos a trabalhar, elencados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, e tendo a demanda desses conteúdos o perfi l anteriormente descrito – cada vez menos pacientes, mais dinâmicos, instruídos em linguagens variadas – podemos fazer diferente? Podemos aliar História e fi cção, ludicidade, imaginação? Afi nal, como aprendem essas “novas” crianças e jovens? Bem, as crianças e os jovens, diga-se, podem aprender melhor através de dinâmicas diferentes daquelas que tradicionalmente embasam o ensino de História – um encadeamento entre leitura, silêncio, discussão, elaboração escrita e oral. No entanto, a razão pela qual aprendem continua sendo a mesma: os sujeitos consolidam seu aprendizado através daquilo que se torna signifi cativo e relevante para eles. 125 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 Como nos recorda Litz (2009), entre os principais objetivos da disciplina de História está o de desenvolver nos/as alunos/as a capacidade de escrever e expressar-se acerca dos conteúdos abordados, utilizando-os para melhor entender ou explicar a sua realidade e posicionando-se em relação a esta realidade, questionando-a, se preciso, em uma relação entre presente, passado e futuro. Para que o processo seja satisfatório, deve fazer-se dialeticamente, através do estímulo do/a professor/a em relação aos conhecimentos que os/as alunos/as já possuem, já que sua função de mediador requer a mobilização do objeto de conhecimento em relação ao aluno/a, para que este construa através de suas experiências um conhecimento elaborado acerca deste objeto. Isso prescinde que o/a professor se valha de elementos do universo no qual seus alunos/as se encontram, o que inclui considerações de âmbito geracional: se, talvez, para um grupo de adultos na faixa etária entre 50 e 60 anos, os jogos eletrônicos não sejam atrativos como veículo de saberes e para colocar em pauta algumas questões em relação ao seu contexto de produção, por exemplo, o mesmo não se pode afi rmar acerca da geração que hoje se encontra entre os 15 e os 25 anos, nascidos já na era dos videogames e da hiper-realidade dos jogos online. Finalmente, nosso terceiro comentário versa sobre a tendência, inerente ao conhecimento histórico, de refazer-se, reescrever-se, dando margem a tipos perigosos de revisionismos. Perigosos porque, na medida em que incitamos o pensamento crítico, certas narrativas isentas de investigação científi ca, ou seja, oriundas de opiniões que manipulam informações propositadamente ou não, podem vir a ser apropriadas enquanto outros “pontos de vista”. Ora, como profi ssionais comprometidos com a aprendizagem para a cidadania, está entre nossas funções incitar nos/as alunos/as a busca por fontes divergentes, por conhecimentos que questionem a passividade dos processos históricos. Isto é, também, uma orientação metodológica basilar do conhecimento em História. No entanto, o divergente pode, em tempos de polarização política e de acirramento das disputas em torno da memória histórica de certos acontecimentos, confundir- se com leituras, análises e narrativas ingênuas, falaciosas e mesmo mal- intencionadas. A máxima de que tudo tem dois lados, havendo sempre diversas opiniões sobre um mesmo tema, é a expressão de um maniqueísmo infértil para o conhecimento histórico. Se um regime foi bom, mal, quem nele agiu certo ou errado, por exemplo, são respostas que podem ou não ser respondidas por cada aluno/a no processo de apropriação de conteúdos e sua signifi cação sempre subjetiva sobre eles. Não convém ao professor/a respondê-las, mas apresentar todos os elementos, de forma crítica, ainda que isso não signifi que incorporar a falácia da neutralidade que, sabemos, não pode ser sustentada, já que professores e professoras são sujeitos com as suas próprias crenças e valores. Mas o que vemos no material produzido e disseminado à revelia pelas redes – 126 Linguagem Visual na HistoriograFia com exceções, felizmente – cuja autoria é incerta e muitas vezes propositalmente anônima, é a utilização de dados convenientes para a confi rmação de uma dada hipótese, remetendo todos os elementos existentes em contrariedade a tal hipótese a uma “invenção” de grupos supostamente hegemônicos. Esses, por sua vez, estariam visando fi nalidades político-ideológicas com a manutenção do “silêncio” destas outras versões. Em tudo isso, a função social do/a professor/a se destaca. Como mediador/a de conhecimentos, importa tanto que aponte a produção de narrativas falsas como a utilização parcial de evidências históricas por parte de agentes motivados por interesses difusos que não os que orientam os preceitos científi cos. Instigando o exercício de práticas de pesquisa histórica, o/a professor/a pode, antes mesmo das vertentes revisionistas aparecerem em sala, trazê-las para a discussão. Ao fazer esse exercício, as imagens certamente adquirirão um papel de relevo. São elas o lócus de produção das fake news por exemplo. Dentre as razões desse fenômeno, como já apontamos, está o seu poder de fi xação da realidade ou de realidades que são mais facilmente acessadas através da visualidade. Utilizar as imagens como instrumentos do conhecimento histórico signifi ca inseri-las no contexto escolar com propósitos bem defi nidos. A ludicidade que elas aportam à dinâmica da aula, bem como suas potencialidades na construção de imagens mentais sobre o passado são gatilhos para a atenção, imaginação e interesse dos alunos, mas o entretenimento não éa sua razão de estarem no espaço das aulas de História. Noutras palavras, utilizar em sala de aula um fi lme, um HQ, um conjunto de imagens fi xas não tem a fi nalidade de ilustrar como foi dado processo ou a de abordá-lo de maneira mais divertida, mas subsidiar refl exões sobre esse processo, haja vista a curiosidade, para dizer o mínimo, que esses produtos culturais suscitam entre as crianças e os jovens. O roteiro da abordagem de documentos visuais, pelo/a professor/a, deve ser construído com base nas refl exões e nos debates que se almeja empreender junto aos educandos/as. A seguir, faremos uma análise acerca de duas propostas didáticas em História, com foco no uso de produtos visuais e audiovisuais. Os dois “modelos” não são contraditórios; antes o inverso, vêm sendo utilizados em concomitância por grande parte dos/as professores/as de História brasileiros/as. São eles: o roteiro imagético proposto pelos livros didáticos; e a incorporação de imagens baseada em práticas de pesquisa. Em primeiro lugar, cabe a indagação: por que abordar o livro didático? Porque a utilização desse tipo de material em sala de aula ainda é o recurso pedagógico mais utilizado em nosso país. Como consequência disso, temos que as imagens disponíveis nos livros didáticos se constituem as mais acessíveis 127 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 aos/as professores/as e alunos/as. Como apontado por Circe Bittencourt (2012), em que pese o fato de os livros didáticos do meado do século XIX já possuírem litografi as reproduzidas a título de ilustração ou para fi ns didáticos – para que fosse possível “ver” a História, e não apenas memorizá-la – o incremento paulatino de recursos visuais nos livros da disciplina demonstram a importância que as imagens foram adquirindo ao longo do século XX e, sobretudo, no XXI. Contudo, questões de ordem metodológica se impõem mais do que nunca: que abordagens vêm sendo desenvolvidas em relação às imagens presentes nos livros didáticos? Qual é a relação entre o conjunto de imagens veiculado acerca de determinado assunto e o texto que o acompanha? Os livros sugerem propostas didáticas com as imagens que oferecem apreensão para os/as alunos/as? A natureza complexa do livro didático é responsável por tê-lo colocado no centro de celeumas importantes no campo da pesquisa em História, História da Educação, Didática da História, dentre outros nas últimas duas décadas. Há docentes que, embora com ressalvas, destacam seu papel norteador do ensino- aprendizagem, utilizando-o como roteiro. Há aqueles que, por outro lado, acusam- no pela acomodação gerada entre a classe docente, que ao apoiar-se em sua função de “manual”, exime-se da responsabilidade da preparação de didáticas variadas. Entre os elementos de sua complexidade está o fato de ser um produto, ao mesmo tempo, mercadológico, depositário de conteúdos, um instrumento pedagógico e um veículo portador de um sistema de valores (BITTENCOURT, 2012). Enquanto mercadoria, o livro didático está condicionado a diversas lógicas, como a das técnicas de fabricação e comercialização, que defi nem o tipo de papel, a quantidade de páginas, a qualidade da impressão, a faixa de custo do produto visando a sua competitividade, por exemplo. O livro didático, mesmo quando escrito por profi ssionais reconhecidos na área do ensino de História – supostamente resultando em produtos melhores avaliados pelos pares –, sofre interferências do editor, do designer, dos programadores visuais e de um conjunto de artesãos da manufatura que impõem uma forma de leitura organizada do conteúdo “original”, alterando no mais das vezes a lógica do raciocínio almejado pelo autor/a. Isto refl ete, evidentemente, na reprodução das imagens, sua disposição, quantidade, qualidade, tamanho etc. Pensar o livro didático como produto que deve apresentar-se atrativo, acessível em termos de linguagem e de valores, requer ter em mente que este mercado mobiliza milhões de reais todos os anos. Embora existam instituições privadas que produzam seu próprio material de ensino, a maior parte das escolas brasileiras adquire livros didáticos elaborados por editoras especializadas, seja através de convênios ou de avaliações como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). 128 Linguagem Visual na HistoriograFia Como depositário de conteúdos selecionados pelas propostas curriculares como fundamentais em cada época, o livro não pode deixar de ser informativo, recheado de textos escritos, mas ao mesmo tempo seletivo, porque não caberia em si o compêndio total dos feitos humanos considerados importantes. O que dispõe enquanto conhecimentos necessários à formação do/a aluno/a não é o que importa que eles/as saibam, mas o que foi elencado como conhecimentos que importam. Como suporte básico e sistematizador de conteúdos, o livro didático realiza uma transposição dos saberes acadêmicos para o conhecimento escolar. Isso signifi ca não apenas uma linguagem diferenciada, acessível a cada uma das etapas de desenvolvimento humano, mas também a elaboração de formas de comunicação distintas, substituição do vocabulário, construção de sínteses, de reforços visuais, dentre outros instrumentos pedagógicos. Nessa relação entre a necessidade de abordagem de determinados conteúdos e a imposição de sua transposição didática, as imagens costumam apresentar-se como ferramentas privilegiadas. O livro didático está inscrito em uma longa tradição na cultura ocidental enquanto o principal instrumento pedagógico escolar, daí também a vitalidade das discussões que o cercam. Como sugere Bittencourt (2012), o livro didático é inseparável das técnicas e das condições de ensino de seu tempo. Sua função é a de elaborar um roteiro didático que auxilie o processo de ensino-aprendizagem para ambas as partes envolvidas, professores/as e alunos/as. Enquanto tal, como instrumento pedagógico, ele oferece técnicas de aprendizagem, como exercícios, sugestões de trabalho, curiosidades etc., tarefas que os/as alunos/ as devem executar para se apropriar dos conteúdos abordados e, às vezes, para ressignifi cá-los. Para o professor/a, o livro aporta sugestões para a condução das aulas, ou seja, orienta acerca do modo de fazer, de como levar adiante cada uma das discussões tendo em vista as fi nalidades inerentes àqueles conteúdos. Finalmente, o livro didático é um importante veículo portador de um sistema de crenças, valores e ideologias. Importante, dada a amplitude de sua utilização, mas também em relação à função de detentor de saberes universais. Segundo Bittencourt (2012, p. 72), “várias pesquisas demonstram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando temas como, família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca burguesa”. Aqui cabe destacar que por ideologia não entendemos algo que propositalmente é reproduzido com fi ns de convencimento, de alienação de nossos interlocutores/as. Todos e todas nós, ao nos identifi carmos com algum valor, como o cristianismo, por exemplo, podemos reproduzir juízos de valor acerca dos não cristãos sem nos darmos conta de estar operando de forma estereotipada ou preconceituosa. Não há remédio senão uma autovigilância crítica em relação as nossas posturas profi ssionais, a fi m de ampliar o respeito a todas as formas de existência. 129 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 Ainda em relação ao livro didático como portador de um conjunto de crenças, importa dizer que ele pode sim ser utilizado como instrumento de reprodução de saberes impostos por determinados setores de um Estado ou regime. Governos totalitários alteraram ao gosto de suas ideologias os materiais escolares que subsidiariam a educação formal de suas crianças e adolescentes por exemplo. Mesmo em regimes democráticos, o controle do conteúdo reproduzido pode ser exercido por instâncias de censuraque se escondem atrás de argumentos relacionados aos “costumes” ou acerca do que já mencionamos em relação a “abordar pontos de vista contraditórios”. Se não vemos com muita frequência essas categorias de problemas em relação ao livro didático é porque a sua autoria se perde, em parte, pela inserção de muitas outras mãos, a atuar sobre o produto fi nal. Também infl uencia, nesse sentido, o próprio caráter do material didático e sua demanda por textos simplifi cados, padronizados, sintéticos. A reprodução de textos mais autorais, que incitem uma formação intelectual um pouco mais densa e autônoma por parte dos/as alunos/as não costuma ser evidenciada. Apresentando as características anteriormente descritas, parece claro que o consumo que se fará do livro didático em sala de aula está sob a chancela do/a professor/a. Isso inclui a leitura dos textos escritos, mas também uma leitura crítica das fontes visuais que compõem o material. Atente-se ainda ao fato de que, muitas vezes, é o próprio docente da disciplina quem indica para a instituição onde trabalha o livro didático de sua preferência. Não negamos que exista um tipo de detalhamento oportunizado pelas imagens, por exemplo, em relação a um cenário, a objetos, à corporeidade de personagens, que as imagens nos possibilitam apreender melhor, sobretudo aquelas que aportam um testemunho histórico. A fi guração de noções abstratas também é apontada como motivação para ilustrações personalizadas constituírem lugares comuns nos livros didáticos. Da mesma forma, ampliar o repertório cultural imagético dos/as alunos/as trata-se de uma função em nada irrelevante. No entanto, a atenção conferida às imagens, aos fi lmes, às charges, aos mapas e demais tipos de produção visual, se não vir acompanhada de refl exão pelo/a professor/a e do seu estímulo a que sejam inqueridas em relação a sua autoria, contexto, as suas funções sociais são esvaziadas em seu caráter de instrumento pedagógico. Em um cenário ainda mais problemático, uma utilização “ilustrativa” possibilita incorporações equivocadas das imagens enquanto substitutivas da realidade histórica, já que tomam o seu lugar na imaginação do passado. Em linhas gerais, para oferecer alguma contribuição à dinâmica das imagens no livro didático, abordaremos os elementos apontados por Circe Bittencourt (2012), historiadora que se dedica à investigação da história do livro didático brasileiro. Para a autora, uma peculiaridade da produção dos livros didáticos de História, no Brasil, é a sua marca francesa. Essa marca se fez presente durante 130 Linguagem Visual na HistoriograFia grande parte do século XX – ainda se deixando ver em alguns volumes sobre História Geral ou Universal – por termos nos baseado nas propostas curriculares francesas para a elaboração das nossas próprias. Por isso e também porque a disciplina de História ainda é bastante francófona nossos livros reproduzem muito material imagético dos manuais franceses. Isso infl uenciou também a aproximação entre as casas editoriais brasileiras e francesas, o que permitia àquelas recorrer mais facilmente a permissões para o uso de imagens, mediante o pagamento dos direitos de reprodução, evidentemente. Por tudo isso, em termos da quantidade de conteúdo visual, fi camos com a sensação de que a “História Universal” é demasiadamente francesa. O mesmo não se pode afi rmar acerca dos volumes destinados à História do Brasil. Dada a ausência de modelos que servissem de padrão em relação à História nacional, desde muito cedo, como nos informa Bittencourt (2012), autores e editores se engajaram na construção de acervos imagéticos próprios. Isso confl uiu na reprodução de um conjunto em parte limitado de produtos visuais, os quais tiveram nos livros didáticos seus principais divulgadores. Veja- se, por exemplo, obras como o 7 de setembro de 1822 de Pedro Américo ou A Primeira Missa no Brasil de Vitor Meirelles. Independentemente do valor artístico ou histórico dessas obras, a reprodução delas nos livros didáticos se disseminou, sendo hoje inviável que um livro de História do Brasil seja elaborado sem a presença dessas imagens. E por que razão se deu a eleição por elas? Dentre muitas outras razões possíveis está a de que, como obras de grandes dimensões e repletas de elementos fi gurativos, elas permitem imaginar com detalhamento os contextos aos quais se reportam. Serviam e servem, igualmente, ao propósito ufanista de representar os começos da nação de forma heroica e ritualística. Outra característica marcante da produção de livros didáticos no Brasil é a presença de retratos e fotografi as de personagens históricos, numa clara manifestação da preferência conferida à História Política até recentemente no Brasil. Talvez aqui haja um exemplo das críticas mais contundentes à reprodução de imagens enquanto mera ilustração. Sem entrar no mérito da relevância dos/as alunos/as conhecerem fi guras como Pedro Alvares Cabral, Maurício de Nassau ou Getúlio Vargas, os retratos de personagens considerados importantes para nossa história político-administrativa costumam ser reproduzidos na forma de uma naturalização da História como o relato de feitos de homens do passado, o que vai de encontro à perspectiva da História como uma disciplina que incita o pensamento crítico. Como bem observa Bittencourt, como a História Política optou por “biografar os feitos de chefes políticos, reis e presidentes republicanos, seus retratos constituíram-se em uma espécie de galeria de pessoas ilustres com características aristocráticas” (BITTENCOURT, 2012, p. 79-80) que, longe de elucidar as experiências da nação, acabava servindo aos alunos/as para que exercitassem a arte da caricatura – bigodes, chifrinhos e metanarrativas. 131 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 Quer dizer que sementes são jogadas ao solo da imaginação histórica dos alunos com a construção de narrativas sobre um passado habitado apenas por homens da elite e que se dedicavam a administrar o país? E, no extremo, o que aporta às experiências daqueles que estão em processo de aprendizagem formal conhecer essas fi guras e esses feitos? Na medida em que o inquérito das imagens presentes nos livros didáticos se relaciona, ou requer que assim o façamos como mediadores/as, com os métodos de investigação em História, vejamos agora outra forma de operar, a saber, as propostas levadas pelo/a professor/a para serem trabalhadas em diálogo ou à parte do livro didático. Trata-se de algumas considerações sobre a relação entre ensino e pesquisa em História. Há cerca de uma década, a estrutura dos cursos de História no Brasil sofreu alterações em relação à habilitação de seus profi ssionais. Até a primeira década do século XXI, o currículo das universidades se organizava, obrigatoriamente, tendo em vista uma dupla formação: a de bacharel/a em História – historiador- pesquisador, que se dedica à produção de conhecimento em História – e a de licenciado/a em História – cuja atuação se dá no ensino da disciplina de História em contexto escolar. Longe de discutir o mérito dessa divisão, parece-nos que, na prática, ambas as formações continuam em parte vinculadas. Por um lado, a formação do/a bacharel/a, com a ausência das disciplinas de didática e de estágio, por exemplo, constitui uma perda signifi cativa. Por outro lado, a formação do/a licenciado/a, em que pese a ausência de trabalho fi nal de curso, continua a dar conta da produção de conhecimento em História em diferentes momentos, bem como dos métodos de produção desses conhecimentos. Esses saberes estão concentrados, em grande parte, nas disciplinas de Teoria da História, comum a ambas as formações. Uma questão inicial, porém, basilar do ensino de História, refere-se à possibilidade de construção de conhecimentos acerca do tempo histórico sem que o processo de ensino-aprendizagem disponha também sobre como aquele conhecimento que está sendo oferecido àapreciação foi construído. A razão de incitarmos a discussão sobre a História produzida e a História ensinada com a questão da formação do profi ssional não é à toa, ela se estende também à formação/ensinamento de crianças e jovens – obviamente, numa escala reduzida e numa dinâmica diferente. Assim como o/a professor/a de História, durante a sua trajetória de formação profi ssional, necessita se apropriar de discussões e debates acerca da produção de conhecimento em História, embora não esteja sendo preparado para fazê-lo (ou seja, para escrever História), para os alunos e alunas também é fundamental compreender qual é o contexto de produção das fontes, o tratamento conferido a elas na elaboração dos saberes e, afi nal, o processo de construção das narrativas como um todo. 132 Linguagem Visual na HistoriograFia Nesse sentido, apontamos a necessidade de que o conhecimento histórico escolar se aproxime de práticas de pesquisa, de investigação histórica, seja para que o aprendizado em História seja mais qualifi cado, seja porque a incursão do alunado pelo processo dota de sentido àquelas experiências estudadas. De que maneira o/a professor/a pode fazer isso? Realizando uma abordagem crítica do material didático, por exemplo, elucidando o processo de construção dos saberes ali reproduzidos ou elaborando propostas didáticas em que os/as alunos/as possam provar o método de pesquisa em História. No decorrer das aulas, por exemplo, o professor/a pode e deve levantar questionamentos acerca de “como sabemos isso que está no livro”, ou ainda, em relação à produção das fontes que subsidiaram tal conhecimento que nos chega “pronto”: quem escreveu dado documento, com que fi nalidade? Por que foi salvaguardado, por que foi destruído? Que leituras ao longo da História se fi zeram deste documento? Como o/a historiador/a os acessou e que relação mantém com este tema ou com o lugar da produção da fonte? Que momento histórico vivia a sociedade de origem do documento? E sob que contexto ele foi utilizado e subsidiou a escrita deste conhecimento que então estudamos? Finalmente, inserir as práticas de pesquisa no contexto escolar pode também ser uma proposta avaliativa interessante. Conduzir os/as alunos a elaborar uma hipótese acerca do presente em relação ao passado, a levantar fontes de consulta, analisá-las de forma crítica, através da realização de um questionário, a elencar um produto fi nal que expresse os resultados alcançados parece-nos um excelente m étodo demonstrativo de como se dá a produção do conhecimento em História. No campo da visualidade, crianças e adolescentes demonstram enorme interesse por fotografi as antigas da cidade, por obras de arte fi gurativas, por cartazes, charges e Histórias em Quadrinhos, por exemplo. São exímios em reelaborar alguns desses produtos visuais, com seus traços característicos da época, mas como suas lógicas próprias. 3 PROPOSTAS DIDÁTICAS COM RECURSOS IMAGÉTICOS Os recursos imagéticos ou visuais no tempo presente são vastos e estão em grande medida à disposição do/a professor/a que queira inseri-los no processo de ensino-aprendizagem. Diversas seriam as possibilidades de abordagem de um tema ou processo em História, a partir do aporte conferido pelas imagens fi xas ou em movimento. Nossa intenção neste último apartado da disciplina Linguagem Visual na Historiografi a é oferecer modelos propositivos à incorporação visual nos estudos de História no contexto escolar. Para isso elencamos cinco tipologias de 133 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 produtos visuais, ou conjuntos de produtos, em relação aos quais construímos fi chas técnicas que informam sobre o conteúdo da aula, a série a que se destina, os objetivos almejados, o questionário a orientar o/a professor/a na condução dos debates e uma proposta avaliativa. Em alguns casos, sugerimos leituras que podem contribuir para qualifi car a abordagem docente em relação ao produto utilizado. Como parece evidente, as propostas que seguem não são estáticas e podem ser alteradas conforme o perfi l da turma, as didáticas já provadas, os conhecimentos prévios etc. Seria interessante que, para cada categoria de produtos visuais ou audiovisuais vocês, que cursam esta disciplina, pudessem elaborar a sua própria proposta: elencar outros fi lmes, fotografi as, pinturas e charges, por exemplo, para debater temáticas diferentes daquelas elencadas a seguir. As imagens dos produtos visuais serão reproduzidas, nessas propostas, com duas fi nalidades: a de contribuir para a ampliação dos conhecimentos visuais de vocês; e a de permitir apreciar as propostas com as respectivas referências visuais. Finalmente, cabe destacar que talvez tenhamos nos desviado daqueles produtos visuais mais amplamente difundidos no âmbito do ensino de História; considerando que o livro didático também aporta propostas visuais, tratamos de oferecer análises alternativas àquelas que podem já constar no material de apoio docente. 3.1 CINEMA Ficha técnica Ano: 2º ano do Ensino Médio Tema: marginalização social no Brasil Produto: cinema Sugestões: 1) Cinco vezes favela (1962). Dir.: Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman; 2) 5x favela – agora por nós mesmos (2010). Dir.: Manaíra Carneiro, Wagner Novais, Rodrigo Felha, Cacau Amaral, Luciano Vidigal, Cadu Barcelos. Objetivo: realizar uma leitura crítica das representações da marginalização social no Brasil em dois tempos. Questionário: em que contextos históricos estas obras foram produzidas? Que lugares sociais ocupam os que realizaram essas produções? Há estereótipos representados? Há personagens ou relações idealizadas? Quais são as causas da marginalização social no Brasil? Quais são os obstáculos para a superação desta condição? Quais os efeitos técnicos, visuais ou sonoros utilizados para expressar a angústia, a tristeza e o desespero nas duas obras? Por que o cinema brasileiro aborda a favela 134 Linguagem Visual na HistoriograFia com tanta frequência? Qual é o espaço ocupado por ela no imaginário social? Os fi lmes contribuem para reforçar este imaginário? Proposta avaliativa: exposição oral coletiva. Em duplas, os/as alunos/ as devem atentar em ambas as produções para as diferenças e aproximações entre as temáticas, as abordagens e os recursos utilizados; devem conseguir descrever o espaço da favela num e noutro fi lme; apontar como está formado o grupo familiar e comunitário retratado; analisar criticamente o modo de vida das pessoas, sobretudo em relação à violência; relacionar a formação destes espaços com contextos sócio-históricos específi cos; refl etir sobre as possibilidades de superação da sua condição social; propor maneiras de resolver os confl itos apresentados. Na abordagem de temas sociais, a favela ocupa um lugar de destaque. O modelo de favela tipicamente brasileiro, situado nos morros das granddes cidades, é palco para a construção de imaginários acerca da pobreza, da marginalização, da fi gura do excluído social como um “outro” oposto àqueles que habitam a “planície”. Para quem não é morador de favela, ela pode signifi car perigo, criminalidade e violência ou o lugar do desconhecido. Para quem a habita, engloba uma comunidade com as suas especifi cidades, onde residem famílias, trabalhadores e outros tipos sociais, gente com distintos perfi s, como em qualquer lugar. Seja qual for o caso, a temática social se deixa observar na favela de forma privilegiada. O cinema nacional analisou-a em diferentes momentos, que resultaram em imagens que permitem abordar questões como as moradias, o trabalho, as vivências da infância, as sociabilidades juvenis, as relações comunais, os papéis sociais pautados nas relações de gênero, as difi culdades, as solidariedades, enfi m. Pobreza e marginalização social são temas transversais que costumam ser trabalhados de forma interdisciplinar,junto a conteúdos situados no meado do século XX em diante (ou na passagem do século XIX para o XX). Abordar a temática da marginalização social através de duas produções cinematográfi cas brasileiras, separadas temporalmente por 50 anos, apresenta as seguintes vantagens para a análise da questão social no Brasil: permite que se discuta a origem e as motivações da colocação de dado perfi l social à margem da sociedade, bem como alguns resultados desse modelo de não gestão da pobreza; elucida o aspecto dinâmico da favela, que não é um depósito de gente marginalizada, estática, mas uma comunidade que estabelece relações com a polícia e com o crime organizado diferentes daquela experenciada pelos demais cidadãos, por exemplo; e como a percepção sobre a favela vem sendo alterada pela reivindicação desse espaço pelos seus moradores e suas práticas culturais. A partir dos eixos temático, histórico e formal, propomos analisar como o cinema 135 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 brasileiro abordou a exclusão social e a miséria em dois momentos históricos. Como produtos que serão submetidos a um questionário, o qual, por sua vez, está pautado pelos objetivos da aula, é necessário que o/a professor/a situe Cinco vezes favela e 5x favela – agora por nós mesmos, dentro da produção cinematográfi ca brasileira: o primeiro pertencendo ao movimento designado de Cinema Novo e o segundo, ao Cinema de Retomada. Antes de abordar esses momentos da história do cinema nacional, destacamos a sugestão de que os fi lmes sejam reproduzidos apenas em parte, no caso, uma parte de cada um deles, seguindo a ordem cronológica (primeiro o de 1962, depois o de 2010). Em que pese relações evidentes entre eles, o segundo fi lme não se trata de um remake, mas de uma visão que mantém com a anterior um jogo intertextual de referências, além de transitarem em um mesmo universo social. Ambos os fi lmes são compostos por cinco “capítulos” , dirigidos por diretores diferentes e que abordam temas igualmente distintos. Uma opção interessante seria elencar um capítulo inteiro de cada uma das produções. Couro de gato (de 1962) e Arroz com feijão (de 2010), por exemplo, são capítulos que abordam dilemas morais vividos por personagens infantis. Couro de gato faz uma etnografi a da prática da caça a gatos de rua, com a aproximação do Carnaval, para a confecção de instrumentos de percussão. Isso gerava algum recurso econônimo para as crianças, que se divertiam ao fazê-lo. No enredo, um dos meninos furta um gato de uma mansão, afeiçoando-se a ele. No entanto, acoçado pela fome, acaba vendendo o felino ao fabricante de instrumentos, dotando ainda mais a história de um aspecto triste. Feijão com arroz, por sua vez, conta a história de Wesley, um menino que deseja “presentear” o pai com um frango no dia de seu aniversário. Tendo ouvido a reclamação paterna de que em casa só se comia arroz com feijão, Wesley realizou diversas atividades, sem poder, no entanto, adquirir o frango almejado, roubando-o com o auxílio de seu amigo Orelha. O tom mais divertido dessa história em relação à Couro de gato resulta também no acirramento de seu teor moral: se na anterior vigora a lógica da privação, a “explicar” o delito, aqui prevalece a ideia de que o ilícito é errado mesmo que a intenção seja nobre. Trata-se de histórias que permitem pensar as formas de viver a infância na favela, suas práticas de sobrevivência e o modo como a materialidade da vida vai construindo padrões de conduta que articulam frustração, privações e ilegalidade. O movimento do Cinema Novo originou-se sob duas infl uências oriundas do cenário internacional, que aqui se evidenciaram em meados dos anos 1950. A primeira, aquela exercida pelo cinema hollywoodiano: fosse no sentido de reproduzir o seu glamour, a sua estética, ou submetê-lo à crítica paródica, a produção nacional acompanhava de perto o cinema dos Estados Unidos porque ele era entendido como o caminho a ser seguido para o nosso desenvolvimento 136 Linguagem Visual na HistoriograFia na sétima arte (SANTOS, 2011). A outra infl uência foi a produção do chamado Neorrealismo italiano, uma proposta oposta àquela de Hollywood: produções de baixo orçamento, pautadas pelo estilo documentário, porém fi ccionais, fi lmadas em locações reais, com o emprego de atores e de não atores etc. O Neorrealismo emprestou aos cineastas brasileiros uma espécie de atitude moral na sua representação da realidade social tal como se apresentava, com o predomínio da ética sob a técnica. De acordo com Roberto Elísio dos Santos (2011), o acirramento das posições políticas oriundas da Guerra Fria marcou a produção cinematográfi ca do início dos anos 1960. No Brasil, o Cinema Novo surgiu como um movimento estético e político que se caracterizou pela denúncia da miséria e das desigualdades sociais e regionais do país. Seus membros buscaram construir uma proposta artística que fosse nacional, popular e engajada na transformação da sociedade. Deste período e proposta resultam algumas das obras mais importantes do cinema nacional, tais como Deus e o Diabo na terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, e Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. A marca dessa produção – que à exceção de Cinco vezes favela traz como cenário a região mais pobre do Brasil, o Nordeste – foi o desenvolvimento de uma “Estética da Fome”, uma proposta de emprego da realidade não produzida para dar cabo da representação visual e estética do povo brasileiro, que em sua grande maioria era assediado pela violência enquanto manifestação cultural da pobreza e das privações. O movimento durou, no entanto, apenas alguns anos. Com o advento do regime militar, da censura e da perseguição política, inclusive em suas manifestações culturais, como sabemos, o movimento dissolveu-se, tomou outros rumos. A fi m de controlar a produção cinematográfi ca nacional e mantê-la sob vigilância, a ditadura dos militares criou a Embrafi lme, uma entidade de fomento responsável por fi nanciar durante duas décadas o cinema nacional. No período da redemocratização, em meados da década de 1980, a entidade agonizava, tendo de fato a indústria do cinema no Brasil se extinguido. Por essa razão o movimento em torno do cinema nacional, na segunda metade da década de 1990, inspirado pela “visão de mercado” decorrente da postura neoliberal vigente nos anos 1990 foi designado “de retomada”. Nele tiveram destaque corporações estabelecidas no âmbito das comunicações, como o grupo O Globo, mas também se evidenciaram experiências regionais em menor medida ditadas pelo apelo comercial ou mercadológico. De qualquer forma, a permanência das questões sociais na produção do Cinema de Retomada foi evidenciada, resultando, por exemplo, em obras aclamadas como Cidade de Deus (2002) e Carandiru (2003), e, mais recentes, como o polêmico Tropa de Elite (2007) e 5x favela – agora por nós mesmos (2010). 137 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 Atividade de estudo: Os acadêmicos devem assistir a outras produções que abordem temáticas afi ns, porém com maior disseminação entre as mídias, por exemplo, os fi lmes Cidade de Deus (2002) e Pixote (1987). A partir de uma síntese dos temas e abordagens do fi lme, o/a professor pode criar um roteiro que vincule os conhecimentos prévios dos/as alunos/as aos debates que deseja realizar com base nos audiovisuais sugeridos nesta atividade (Cinco vezes favela e 5x favela – agora por nós mesmos. Façam, a exemplo da fi cha técnica anteriormente reproduzida, questionamentos norteadores para a introdução da abordagem sobre marginalização social no Brasil. Enquanto síntese dos aspectos temáticos, temos que ambas as produções têm a favela e suas relações como objeto central. O primeiro fi lme, no entanto, aborda-a desde uma perspectiva externa: a produção foi realizada por membros de uma classe média intelectualizada, cujo olhar para arolam sobre os seus rostos. A morte assombra tanto os retratados quanto a obra, sendo difícil ao observador/a fi car alheio à denúncia social expressa pela pintura. Do método proposto por Ott (1984 apud SARDELICH, 2006) para a leitura de imagens podemos destacar algumas especifi cidades. A primeira e mais evidente é que ela se destina ou, pelo menos assim foi pensada, para uma mediação professor/aluno cujo objetivo seria o de “ensinar” a ler uma imagem. A segunda característica do método seria a sua aplicação limitada, sobretudo, a obras de arte, pois os passos e, consequentemente, o inquérito que o mediador propõe em relação à imagem se centra no processo artístico-criativo, nas formas, nas FIGURA 3 - CRIANÇA MORTA (1944), CÂNDIDO PORTINARI FONTE: . Acesso em: 6. nov. 2019. 17 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 técnicas e na plasticidade características da obra de arte. Finalmente, uma terceira especifi cidade se refere ao resultado da leitura de imagens proposta por este método, que seria o de realizar uma produção em relação a elas e não apreender um sentido ou um “dizer” expresso pela linguagem visual, no caso, artística. A infl uência de Robert Ott na metodologia de leitura de imagens é signifi cativa. Nos estudos de Abigail Housen, a autora parte do postulado de que o desenvolvimento de determinado domínio se faz em direção da menor à maior complexidade de pensamento, confi gurando-se estágios. Para Housen, conforme observou Sardelich (2006), o leitor de imagens vai evoluindo, passando por estágios em que sua compreensão estética vai se aprimorando: estágio narrativo, estágio construtivo, estágio classifi cativo, estágio interpretativo e estágio recreativo. A descrição dessas fases ou estágios apresenta semelhanças evidentes com a proposta de Ott. Também Michel Parsons (1992) elaborou estudos nesse sentido. Para Parsons, o desenvolvimento estético ao longo desses estágios é favorecido pela aproximação e familiaridade que um indivíduo vai estabelecendo com as imagens das obras de arte. Isto depende, é claro, tanto do amadurecimento destas relações indivíduo-imagem quanto das qualidades das experiências artísticas de cada um. As propostas de Housen e Parsons possuem diversas similitudes. Elencamos para a experimentação a metodologia da primeira autora, Abigail Housen, para quem a leitura de imagens segue cinco estágios, assim defi nidos: descritivo, construtivo, classifi catório, interpretativo e re-criativo. Nesta oportunidade a imagem a se analisar é La novia que se espanta al ver la Vida Abierta de Frida Kahlo de 1943 (Figura 4). O questionário ao qual submeteremos a obra, para “ler” a imagem segundo o método de Housen, é o seguinte: Estágio I, descrição: o que é esta imagem? O que ela mostra? O que chama nela mais a atenção? Que narrativa possível está inscrita nesta imagem? Estágio II, construção: Como a obra foi feita? Qual a técnica empregada? Como são as linhas, as cores, a textura? Como se dá a composição dos elementos? Ela se pretende realista? Estágio III, classifi cação: Qual foi o contexto de produção desta obra? Quando e por quem ela foi produzida? Ela se insere nos marcos de algum estilo artístico? Estágio IV, interpretação: Como a artista utilizou os elementos formais para expressar o que sentia? Há uma ideia expressa nesta obra? Qual seria a narrativa possível da história imaginada desta obra? 18 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 4 – LA NOVIA QUE SE ESPANTA EN VER LA VIDA ABIERTA (1943), FRIDA KAHLO FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. A obra de Frida Kahlo analisada anteriormente faz referência a um padrão artístico chamado natureza morta. Talvez muitos/as o considerem pouco expressivo, com signos limitados. Bem por isso o elegemos para análise. La novia que se espanta en ver la vida abierta é um exemplo de como os elementos formais, aqui destacadamente as cores, as formas dissemelhantes e a composição dos objetos, aliam-se na formação de sentidos. O movimento das folhas do abacaxi, por exemplo, e as cores vibrantes utilizadas na pintura transformam a obra em uma “natureza viva”, visto que estas características estão ausentes no gênero “natureza morta”. Essa é uma característica da pintora, presente em grande parte de sua obra, aqui se destacam as cores quentes, que fazem desta mesa de frutas uma imagem idílica dos trópicos. O caráter realista da imagem – a boneca retratada – contrasta com as frutas representadas. Do que a noiva-boneca estaria se escondendo ou com o que se espanta, como sugere o título da obra? Kahlo parece ter expressado Estágio V, recriação: A partir da ideia que a obra expressa, no seu entendimento, como você faria um trabalho na mesma linha deste La novia que se espanta en ver la vida abierta? 19 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 através da exposição do interior suculento das melancias e do mamão as partes íntimas femininas, já que as frutas nos falam em uma linguagem provocativa, que sugere coisas ocultas. Neste sentido podemos sugerir que a noiva estaria preocupada com sua vida sexual de casada, situação desconhecida dada sua condição pueril, razão pela qual se encontra a espreitá-la com receio por cima da casca da melancia. Sugestão de fi lme: Frida (2002). No fi lme podemos acompanhar parte da produção artística da pintora mexicana pelo viés de sua biografi a. A obra fílmica permite compreender que seu estilo inconfundível de se autorretratar emergiu de uma vida de sofrimentos, tanto físicos quanto emocionais. Maria Helena Wagner Rossi (2003) propõe a terceira metodologia de leitura de imagens que vamos atentar e provar. Pautada na noção de desenvolvimento ou de níveis de compreensão estética no qual oscilam apreciadores de diferentes idades em graus ascendentes de complexidade e sofi sticação, a autora sustenta que não é o indivíduo em si que se caracteriza por um ou outro nível, mas as ideias que expressa em relação à apreensão estética. Rossi destaca a não linearidade do pensamento estético, já que as formas tomadas pela linguagem visual são menos sequenciais, mais holísticas e orgânicas do que as outras formas de conhecimento. Dentre tantas contribuições que se desenvolveram com base na teoria de Housen e Parsons, a de Rossi se destaca por considerar que os níveis de apreensão estética são válidos para diferentes produtos visuais e não apenas para obras de arte. Outro diferencial dos seus estudos se centra na crítica ao formalismo da leitura estética no Brasil, cujo predomínio no ensino das artes reduz o processo educativo a um roteiro pré-estabelecido de perguntas que desrespeita a construção individual da apreensão estética e dos seus sentidos. Para desenvolver os níveis de compreensão estética de Rossi, selecionamos uma obra de Cindy Sherman na qual a técnica utilizada foi a impressão cromogênica em cores (fotografi a) realizada entre 2010 e 2012. 20 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 5 – SEM TÍTULO (2010-12), CINDY SHERMAN FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. No julgamento estético que se situa no nível I, o leitor ou a leitora entende que a qualidade da imagem se defi ne pelos atributos do mundo representados, ou seja, aqueles que podem ser identifi cados e que foram “transferidos” para a obra pelo artista. Neste sentido, o artista é um copista, e quanto melhor a cópia, melhor a obra. Não há distinção entre o julgamento estético e o moral: aquilo que é condenável é percebido como esteticamente feio. Neste nível o leitor atenta para o tema, para as cores, para o realismo ou para a maestria do artista. Um apreciador hipotético de nível I qualifi caria a obra de Sherman como feia ou ruim, pois apresenta uma noiva e um chef,população marginalizada é crítico, denunciativo, triste, afi nal. Já o segundo fi lme foi produzido por membros da própria comunidade, embora orientados por cineastas e atores do Cinema Novo. Desse olhar de dentro resultaram histórias mais alegres, por um lado – demonstrando que a condição social marginal não elimina o riso e as traquinagens infantis, por exemplo, que são inerentes à condição humana – e complexas, por outro lado – evidenciando o contínuo acirramento das questões sociais no Brasil e a consequente complexifi cação das relações entre favela e sociedade. O eixo histórico contribui para a compreensão dessas diferenças de abordagem. Enquanto o Cinema Novo encarava o cinema como uma forma de arte essencial para promover as transformações sociais desejadas pelos grupos progressistas, no século XXI, a sétima arte serve tanto ao entretenimento quanto à refl exão, sendo utilizada para dar voz a grupos cujas experiências são costumeiramente narradas a partir da concepção que outros atores sociais têm sobre eles. As diferenças dos eixos histórico e temático se expressam também no eixo formal. Em que pese a linearidade de ambas as narrativas e o predomínio de uma estética documental, o tom e a apreciação dos fi lmes são distintos entre si: no primeiro, prevalece a seriedade dotada pela fi lmagem em P&B e o aspecto precário e angustiante da vida na favela; no segundo, o humor alivia o peso da pobreza ao mesmo tempo em que as cores parecem destacar a complexidade das relações e das tensões. 138 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 1 – COURO DE GATO, CINCO VEZES FAVELA (1962) FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. FIGURA 2 – ARROZ COM FEIJÃO, 5X FAVELA – AGORA POR NÓS MESMOS (2010) FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. 139 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 3.2 CHARGES Ficha técnica Ano: 3º ano do Ensino Médio Tema: Ditadura Militar Produtos: charges Sugestões: no site pode-se realizar buscas por charges organizadas por autoria e data. Objetivo: analisar o período da ditadura militar brasileira segundo fatores econômicos, sociais, culturais e políticos; problematizar a memória acerca do período e os argumentos tendentes ao revisionismo do conhecimento histórico sobre ele. Questionário: quais elementos são responsáveis pelo humor em cada uma das charges reproduzidas? De que forma poderíamos sintetizar o que foi a ditadura militar em termos políticos, através das charges reproduzidas? Qual é a relação entre arquivos, ossadas e a ditadura militar? O que foram as Comissões da Verdade e por que elas foram instituídas? Por que há escárnio em relação ao ímpeto dos militares em “virar essa página da História”? Como explicar os números oriundos do “milagre econômico”? Por que a Anistia “à brasileira” dá lugar atualmente a um sentimento de injustiça em relação aos civis e de privilégio em relação aos militares? O que poderia signifi car que uma parte da população brasileira esteja a requisitar uma intervenção militar “avulsa” no tempo presente? Proposta avaliativa: como se trata de um tema recente da História do Brasil, para o qual há muita documentação disponível, há igualmente muitos elementos a serem trabalhados: os personagens, períodos, principais características, acontecimentos etc. Estas informações são relevantes para a compreensão de fenômenos sociais recentes, mas também costumam ser objeto dos exames de admissão para o Ensino Superior. Por isso sugerimos que a avaliação desse tema seja a construção de um mapa mental individual, material de estudo elaborado pelos próprios alunos que permite a incorporação de informações e nuances contínuas, além daquelas abordadas em aula. O humor é um campo de atuação histórico da crítica social. Através da veia humorística o teatro zomba das convenções sociais, a televisão faz chacota com a política, o stand up parodiza personagens e acontecimentos da vida pública. Uma das manifestações mais populares do humor no Brasil são as charges, veiculadas pela mídia impressa periódica nacional desde o fi nal do século XIX. Atualmente sua produção ainda se dá nos jornais impressos, mas vem cada vez mais sendo apropriada pelas mídias eletrônicas, mais ágeis na produção e 140 Linguagem Visual na HistoriograFia difusão de conteúdos e mais adaptadas à dinâmica da vida moderna. As charges se caracterizam por uma produção visual cujo conteúdo é político, crítico e humorístico, que ilustra uma percepção da realidade baseada em algum fato novo recente, por sua vez incluído em um fenômeno ou contexto mais amplo – uma declaração polêmica de parte de uma autoridade, uma saia justa vivida por um dirigente de futebol, por exemplo. Para os estudos históricos, as charges são chaves de apreensão da realidade, de uma realidade tal qual se mostra em perspectiva crítica. Nos últimos dez anos, a quantidade de charges que se produziu acerca da ditadura militar demonstra como o tema está envolto em polêmicas, sendo sua memória disputada por grupos sociais que a vivenciaram desde diferentes lugares. O Estado brasileiro tem sido, ao mesmo tempo, alvo e objeto desse tipo de críticas humoradas; ao passo que se decidiu pela abertura de investigações acerca das violências, torturas e assassinatos cometidos pelos gestores do Estado ditatorial, entre 1964 e 1985, os responsáveis por esses crimes não foram submetidos a sanções, como ocorreu em outros países latino-americanos. Temas como a Anistia, as Comissões da Verdade, a censura e as contranarrativas que colocam os militares no lugar de salvadores ou inocentes, ao invés de perpetradores de violências, foram os mais abordados por esse tipo de produção visual. Em relação ao lugar de produção das charges, seria interessante abordar com os/as alunos/as a questão da autoria, para além do veículo no qual a imagem é reproduzida. A maior parte dos chargistas e ilustradores brasileiros trabalha com contrato de liberdade produtiva, já que as corporações midiáticas ressaltam que as colunas assinadas não refl etem necessariamente a opinião dos proprietários/ editores dos jornais. Assim, um jornal de orientação liberal pode ter entre seus colaboradores tanto um chargista politicamente identifi cado como conservador, como um de viés comunista, por exemplo, sem que isso signifi que que o veículo compartilha dos sentimentos e das impressões desses colaboradores. No entanto, parece necessário pontuar que as perspectivas críticas em relação à ditadura militar e às narrativas revisionistas são um consenso entre setores progressistas de direita, de centro e de esquerda, já que estão sustentadas por evidências históricas e documentais inquestionáveis (Figura 3) À medida que a ditadura militar se encontra entre os temas principais dos revisionismos históricos – junto ao Nazismo e aos fascismos – o/a professor/a, ao abordar esse período, deve saber lidar com a contraditoriedade que o tema suscita no tempo presente. Recorremos muitas vezes a análises maniqueístas da História com vias a salvaguardar uma dada concepção acerca de uma experiência do passado. Um exemplo disso seria demonstrar como o período da ditadura foi ruim na sua totalidade, a fi m de não deixar lugar a dúvidas quanto à impossibilidade de revisitá-lo positivamente. Ora, mesmo quando lidamos com 141 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 períodos históricos marcados por grandes tragédias, como as guerras ou as catástrofes ambientais, as pessoas que ali viveram seguiram com as suas vidas, estando esse viver certamente permeado por uma infi nidade de sentimentos que não cabem no “bom ou ruim”. Conseguir distinguir processos de crescimento, desenvolvimento ou que geraram resultados satisfatórios nãoé incompatível com a reiteração da repressão vivida no período, da censura, do cerceamento das liberdades e das práticas de extermínio de alguns grupos por parte do Estado ditatorial. Outro problema para o qual as charges comportam valiosas contribuições – por apresentarem um cenário complexo a partir de uma única imagem e sua breve narrativa – é a comparação que se faz atualmente entre os números do crescimento do país durante o regime militar e as práticas autoritárias, que alguns grupos têm associado numa relação de condicionalidade. Ou seja, desqualifi cando os grupos que se mobilizaram em torno da retomada da democracia, alguns setores sociais buscam legitimar o uso da violência como condição através da qual se conquistaram números positivos, por exemplo, na economia, durante o período do chamado Milagre Econômico (1969-1973). No entanto, assim como esse dado é falacioso, também o “milagre” fora desmentido e “explicado” por economistas. De qualquer forma, visões de conjunto do que foram os anos sob o comando dos generais-presidentes são necessárias para que se compreenda o projeto de país levado a cabo pela ditadura e para que se desenvolva um olhar crítico em relação ao chamamento das forças armadas a atuar em questões políticas ou de segurança (Figura 4). Faz-se de suma importância, portanto, ao abordar o período da ditadura militar, situá-lo enquanto momento histórico de gestão do Estado brasileiro pelas forças armadas, que corresponde ao recorte de vinte e um anos, sumariados da seguinte forma: regime orientado discursivamente à oposição do comunismo; conservador nos costumes; vinculado à setores da Igreja Católica, civis e empresariais que promoveram sua ascensão; regido por apelos ao nacionalismo, à construção de obras que simbolizassem o “Brasil Grande”, mas empenhado na sua abertura ao capital estrangeiro; utilizou a censura, a tortura, a repressão e outras práticas que feriam as liberdades individuais como instrumentos de controle social; fortaleceu setores empresariais através de subsídios, incentivos e isenções que contribuíram para o sentimento de que a economia crescia como em um “milagre”; operou a precarização das condições de vida dos trabalhadores mais pobres através da alteração das modalidades de pagamento de benefícios por tempo de serviço; concentrou riquezas dos cofres públicos sob a justifi cativa de “fazer crescer o bolo para depois repartir”; arquitetou instituições e programas de auxílio e assistência social que não davam conta de abarcar mais do que uma pequena parte das famílias que a cada ano ingressavam nas fi leiras da marginalização social etc. 142 Linguagem Visual na HistoriograFia Atividade de estudo: Seria interessante que os acadêmicos pudessem elaborar o próprio mapa mental acerca do conteúdo abordado: a Ditadura Militar. Esse esboço serve tanto de modelo “do professor” para avaliar aquele confeccionado pelos alunos, quanto síntese que pode orientar a aula sobre a temática. Outra proposta seria a realização de uma pesquisa que mapeie quais são os temas mais recorrentes no universo social acerca da Ditadura; quais são os veículos que abordam a temática de forma crítica; quais sugerem a sua relativização; como as charges aparecem e com que frequência em relação a essa temática etc. De forma a se organizar a totalidade Importa que abordemos com os/as alunos o contexto de produção da Anistia como um novo pacto social, o qual possibilitou a saída dos generais do cenário político e a retomada da democracia representativa. No entanto, sob condições históricas desfavoráveis e no ímpeto de colocar um fi m no período ditatorial, acedeu-se a uma proposta de Anistia favorável aos militares, perpetradores de violências institucionalizadas pela máquina do Estado, que tiveram seus crimes “perdoados”. A existência de grupos organizados, armados ou não, que se levantaram contra a ditadura e que também seriam perdoados pelas ações cometidas foi a justifi cativa da Anistia ampla, geral e irrestrita. Mas, mensurando as práticas de ambos os lados, fi ca claro que eles não eram equivalentes, seja em quantidade, seja em força, o que justifi ca o sentimento de injustiça de parte das inúmeras famílias cujos membros “desapareceram” durante a ditadura e que ainda aguardam o reconhecimento de que elas foram, de fato, assassinadas pelas forças a cargo do Estado (Figura 5). As conclusões das comissões da verdade criadas em todo Brasil durante a segunda década do século XXI, por exemplo, são fontes interessantes de serem abordadas em complementariedade às charges. Os testemunhos coletados, cruzados com fontes documentais de diferentes tipos que sobreviveram a sua sistemática destruição por parte das Forças Armadas possibilitaram a construção de dados confi áveis em relação ao número de desaparecidos, mortos, torturados e a sua vinculação ou não com grupos de resistência (Figura 6). Seria interessante que o/a professor/a discutisse o mérito da existência dessas organizações, já que a liberdade é um dos preceitos fundamentais dos Direitos Humanos. Ainda mais importante seria situar a repressão, a censura e os desaparecimentos enquanto práticas oriundas das forças do Estado que não se voltaram exclusivamente àqueles que estiveram envolvidos com atividades “subversivas” - conforme eram designadas as organizações contrárias ao regime. 143 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 Sugestão de leitura: FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre o golpe de 1964 e a Ditadura Militar. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, pp. 29-60, 2004. Disponível em: . Acesso em: 21 jan. 2020. Nesse texto o historiador expõe algumas das mais importantes correntes historiográfi cas acerca da ditadura, confrontando essa produção em relação a questões como consenso, censura e repressão política. dos acadêmicos, para que não repitam as mesmas pesquisas, os resultados podem ser compartilhados. Dessa atividade pode resultar ainda um pequeno acervo coletivo de charges e seu lugar de produção para serem trabalhadas em sala de aula. FIGURA 3 – O NEGACIONISMO DEMAGÓGICO DOS MILITARES E SEUS APOIADORES FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020 144 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 4 – TEMPO PRESENTE E DISPUTAS DE MEMÓRIA EM RELAÇÃO À DITADURA MILITAR FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. FIGURA 5 – AS COMISSÕES DA VERDADE NO BRASIL FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. 145 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 FIGURA 6 – A CONTROVERSA LEI DA ANISTIA NO BRASIL FONTE: . Acesso em: 21 jan. 2020. 3.3 HISTÓRIAS EM QUADRINHOS Ficha técnica Ano: 9º ano do Ensino Fundamental Tema: Guerras Mundiais Produtos: Histórias em Quadrinhos (HQs) + Cinema Sugestões: 1) ORIGENS DOS HERÓIS. Rio de Janeiro: Ebal, n. 03. jul./ ago. 1975 (quadrinhos protagonizados pela Mulher Maravilha, Batman e Capitão América); 2) Mulher Maravilha (2017). Dir.: Patty Jekins (cinema). Objetivos: analisar de forma crítica as duas guerras mundiais e o período entre guerras, problematizando parte da produção cultural oriunda do período e aquela que o aborda: os simbolismos, os instrumentos de persuasão e as narrativas vencedoras irradiadas/inerentes às HQs e ao cinema que as apropriou. Atentar para os desdobramentos dos personagens ao longo da segunda metade do século XX e início do XXI, trajetórias que abordam visões, por um lado, acerca do lugar ocupado pelosEstados Unidos nesses processos históricos, e por outro, sobre o cinema de massas produzido no país. Questionário: quais fenômenos podemos elencar como decisórios para a consolidação da hegemonia norte-americana no século XX? Qual é a 146 Linguagem Visual na HistoriograFia relação entre a escalada estado-unidense no panorama internacional e a Primeira Guerra Mundial? Que acontecimentos marcaram cada uma das Guerras Mundiais e quais foram as suas características? Quais questões prevalecem na memória histórica contemporânea como determinantes para o estopim da Primeira Guerra, em 1914, e da Segunda Guerra, em 1939? Há traços de continuidade entre estas questões? De que maneira os super-heróis criados pelas HQs norte-americanas contribuíram para a consolidação de uma perspectiva da História em que os EUA possuem papel protagônico? Como podemos relacionar a alteração do cenário em que se passa o fi lme da Mulher Maravilha (2017) e os quadrinhos originais da personagem (1942)? Que problemas podemos evidenciar na utilização isolada seja das HQs, seja do cinema da franquia Marvel, para a compreensão dos períodos históricos abordados por esses produtos? Proposta avaliativa: Pode-se lançar mão justamente da grande quantidade de conteúdos sobre os super-heróis, assim como de comentários e críticas dessas obras disponíveis em diversos tipos de mídia, para elaborar um roteiro de estudos dirigidos com questões e atividades que, através do auxílio de textos e outros materiais de apoio indicados pelo/a professor/a, possam conduzir uma análise das HQs e suas releituras fílmicas. Esse instrumental avaliativo tem a vantagem de estabelecer objetivos bastante defi nidos ao mesmo tempo em que consegue conservar um caráter “aberto”, com pesquisas e utilização de outras fontes e produções que sejam da preferência ou do conhecimento dos/as alunos/as. Por se tratar de produções visuais diversas, que foram criadas há quase um século e ainda seguem sendo produzidas e reproduzidas até os dias de hoje, as HQs como recurso didático nas aulas de História se inserem em dois sentidos: como fonte através da qual podemos conhecer aspectos do período histórico em que o quadrinho foi criado e como testemunho das leituras que os fenômenos históricos em questão suscitaram em períodos posteriores. Nesse sentido podemos utilizar, por exemplo, as HQs de super-heróis para abordar conteúdos como o período que envolve as guerras mundiais e, conforme temos proposto, de maneira aliada a outro tipo de linguagem – o cinema – refl etir sobre o lugar ocupado no tempo presente por temas como imperialismo, nazismo, socialismo, capitalismo, dentre outros. 147 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 FIGURA 7 – MULHER MARAVILHA ATRAVESSA AS TRINCHEIRAS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, EM FILME DE 2017 FONTE: . Acesso em: 21 fev. 2020. Tomemos a personagem da Mulher Maravilha, que foi originalmente criada no contexto da Segunda Guerra Mundial. Se as fontes históricas utilizadas em sala de aula forem as primeiras HQs da personagem, elas remeterão a esse período. No entanto, quando da sua adaptação para as telas de cinema em 2017, os/as produtores/as resolveram modifi car a trama para a Primeira Guerra Mundial, com a justifi cativa de que tal cenário seria mais semelhante ao momento global atual. Essa perspectiva vai ao encontro das ideias de pensadores como o fi lósofo Alan Badiou, que no mesmo ano concedeu uma entrevista em que comparava a geopolítica atual ao contexto da véspera da Primeira Guerra Mundial (veja-se a seguinte matéria: Geopolítica atual lembra véspera da Primeira Guerra Mundial, Folha de São Paulo, 2017. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2020). Temos aqui não apenas uma possibilidade de abordar um tema específi co em História, mas ao mesmo tempo nos aproximarmos de questões como geopolítica contemporânea (em diálogo com a disciplina de Geografi a). Sobre o fi lme em si, há a interessante representação de alguns elementos que marcaram o confl ito em questão, com destaque para a guerra de trincheiras, oportunidade ímpar para que os/as alunos/as criem uma imagem mental sobre algo tão abstrato. Além disso, o enredo se desenrola através de uma suposta perda da fé na humanidade por parte da heroína. A partir dessa refl exão, podemos conduzir uma interpretação da Primeira Guerra Mundial através da leitura que o historiador Eric Hobsbawn (1995) 148 Linguagem Visual na HistoriograFia faz acerca do período. Para Hobsbawn, esse fenômeno histórico representou o fi m da Belle Époque, período de crença no progresso universal e de otimismo em relação ao futuro, que marcou o fi nal do século XIX e o início de uma Era de Extremos, com as grandes guerras e confl itos radicais que se desdobrariam ao longo do século XX. As HQs do Batman e do Superman, por sua vez, permitem abordar a Crise de 1929 e a Grande Depressão econômica vivenciada no período entre guerras, momento em que esses personagens foram originalmente criados. O Superman pode ser utilizado para discutir a descrença no sistema capitalista e a tentativa, em contraposição, de construção de um imaginário de solidez da economia dos EUA; certamente uma solidez mais almejada do que disponível naquela ocasião, mas que também exercia a função de recuperar a autoestima dos norte- americanos. Já o personagem Batman é construído a partir dos dilemas entre desigualdade social e criminalidade, especialmente das divergentes perspectivas de compreensão da relação entre indivíduo e sociedade, ensejando um diálogo interdisciplinar com a Sociologia – no caso de o tema ser trabalhado no Ensino Médio. Até que ponto Batman é um simples justiceiro – à margem da lei – que pune outros criminosos e até que ponto é um fi lantropo milionário que compreende os condicionamentos negativos a que estão submetidas as pessoas menos abastadas ou até excluídas da sociedade, é um dilema que perpassa o personagem em várias HQs, mas também as adaptações do personagem para o cinema, como na trilogia dirigida pelo cineasta Christopher Nolan ou no fi lme Batman Vs. Superman (2016). Em termos de currículo escolar pode-se trabalhar ainda, nesse sentido, o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social como alternativa ao liberalismo econômico, assim como o desmantelamento neoliberal contemporâneo, tema cuja abordagem pode ser realizada através de recortes do fi lme Coringa (2019). 149 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 FIGURA 8 – BATMAN E CORINGA EM “A PIADA MORTAL” (2011), DE ALAN MOORE E BRIAN BOLAND FONTE: . Acesso em: 21 fev. 2020. Em relação ao Nazifascismo e à Segunda Guerra Mundial, as HQs do Capitão América representam um dos materiais mais privilegiados. Historicamente, o próprio herói nasce com a função de ser também uma propaganda de guerra durante o confl ito contra os nazistas, muitas vezes representados pela organização fi ctícia da Hydra. No entanto, o mais interessante de Capitão América é o seu caráter refl exivo propiciado pela reprodução continuada dos mesmos personagens ao longo da história. No fi lme O primeiro vingador (2011), por exemplo, o super soldado aprimorado em laboratório é inicialmente utilizado apenas nas campanhas de alistamento, até que um dado acontecimento o coloca de fato na guerra. Esse é um aspecto em relação às HQs que deve ser explorado em sala de aula, em especial essa do Capitão América: elas podem ser concebidas como fonte histórica, mas como uma fonte que requer um questionário 150 Linguagem Visual na HistoriograFia crítico na medida em que seu surgimento está ligado a todo umesforço de guerra que envolvia inclusive propaganda junto à população civil e justifi cativas perante a comunidade internacional. O exposto acima não signifi ca que haja uma correlação direta e contínua entre a indústria cultural e os interesses de Estado. Até recentemente, um link no site ofi cial da Hydra, mantido pela editora Marvel, conduzia o/a internauta diretamente para a página ofi cial do presidente Donald Trump, insinuando que o inimigo/nazista agora seria o próprio líder dos EUA (ver: Marvel alfi neta Trump em ação promocional da saga, Jovem Nerd, 2017. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2020). Da mesma forma, as últimas HQs do Capitão América, um dos super-heróis que melhor representa o patriotismo estadunidense, vem levantando questionamentos sobre uma suposta identifi cação com o ideário nazista (ver a seguinte matéria: Capitão América sempre foi um vilão, confi rma Marvel Comics, Zero Hora, 2017. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2020). Em suma, as possibilidades de utilização das HQs nas aulas de História, em particular a dos super-heróis, são vastas. Elencamos aqui algumas possibilidades, mas o número de elementos que não foram mencionados, seja pela quantidade ou pela longevidade das obras, seja pela abrangência de temas e contextos históricos que os envolvem, são praticamente infi nitos. Cabe ressaltar que, em termos interdisciplinares, pode-se estabelecer ainda uma rica articulação com a disciplina de Filosofi a e a temática da indústria cultural, por exemplo. Interdisciplinarmente, ainda, um paralelo com a cultura de massa característica de períodos como a Era Vargas certamente proporcionará signifi cativas refl exões sobre a conjuntura política e econômica da sociedade brasileira e mundial de meados do século XX, se a aula for conduzida de maneira crítica em relação a essa produção. 151 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 FIGURA 9 – HITLER E O CAPITÃO AMÉRICA EM QUADRINHO DE 1941 FONTE: . Acesso em: 21 fev. 2020. Os acontecimentos que constituem o período 1914-1945 – as duas guerras mundiais e o período entre guerras – estão entre os mais importantes para a compreensão do mundo na segunda metade do século XX. São fenômenos que abrangem fatores econômicos, políticos e culturais, e que se vinculam à noção de geopolítica, absolutamente transformada pelas guerras. Seria interessante que vocês, acadêmicos, pudessem fazer uma “descrição” do mundo antes de 1914 e depois, pontuando como ele se encontrava reconfi gurado no pós- 1945. Esse exercício objetiva que construamos uma síntese didática do cenário internacional que subsidiará a preparação das aulas e do questionário com o qual as conduziremos acerca do período. Por mais preparados que estejamos para realizar uma leitura crítica de produtos culturais como aqueles oriundos do cinema hollywoodiano, por exemplo, nunca é demais lembrar que a imagem em movimento, super produzida, que envolve nossos sentidos e nossas emoções, tem o poder de nos convencer e, inclusive, fazer com que questionemos nosso olhar enquanto críticos de uma hegemonia econômica, cultural e simbólica que é a razão pela qual os Estados Unidos e o seu modo de vida suscitam encanto e admiração entre alguns de nós. Estamos sendo demasiadamente críticos com aqueles que, afi nal de contas, cumpriram papéis tão importantes nos acontecimentos chave do século XX? Não seria, de fato, a produção cultural norte-americana a maior e a mais adequada a ser seguida, como um guia que nos conduzirá a um novo estágio civilizatório? É claro que as respostas para essas questões, propositadamente estereotipadas, não são afi rmativas. Os Estados Unidos, lembremos, atuaram nas Grandes Guerras Mundiais segundo uma lógica e interesses próprios. Sua versão da História e sua fi losofi a ideológica, expressas de maneira naturalizada pelo cinema de heróis e heroínas, não são senão olhares subjetivos e parciais 152 Linguagem Visual na HistoriograFia Sugestões de sites: Os sites sugeridos a seguir podem ser utilizados como ferramentas pelo/a professor/a no momento da elaboração de aulas com recursos visuais, sobretudo HQs. Além de referências às obras originais, edições brasileiras e diversas HQs para download, as páginas webs também disponibilizam resenhas de livros, fi lmes e notícias veiculadas pela imprensa brasileira, relacionada às HQs. As sugestões são as seguintes páginas: Guia dos quadrinhos - e Plano Crítico - . Atividade de estudo: Como as HQs são produtos visuais de linguagem e suportes específi cos, sugerimos que os acadêmicos leiam e resenhem o livro Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula de Angela Barbosa et al., 2014. Além de um capítulo específi co sobre o ensino de História, o livro contempla a utilização de HQs em outras disciplinas, como língua portuguesa, artes e geografi a, além de fornecer insights sobre propostas interdisciplinares. Essa atividade pode abarcar o período da disciplina Linguagem Visual na Historiografi a e além. As propostas resultantes dessa leitura podem ser compartilhadas pelos acadêmicos nos fóruns e/ou grupos nas redes sociais. acerca de acontecimentos nos quais se colocam como tal – salvadores, bem feitores, condutores da democracia e da paz mundial. 153 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 3.4 MAPAS Ano: 7º ano do Ensino Fundamental Tema: Grandes Navegações Produtos: mapas históricos Objetivo: compreender o empreendimento realizado pelas nações que impulsionaram as grandes navegações entre o fi nal do século XV e começo do XVI, as visões de mundo dos homens e mulheres que habitavam este espaço-tempo e como elas foram transformadas pelo encontro com novos territórios e populações. Questionário: sob quais perspectivas cada um dos mapas foi elaborado? Qual é a relação entre as visões de mundo da época da produção dos mapas e a representação dos territórios? Quais são os elementos pictóricos representados em cada uma das imagens? O que esses elementos informam sobre o seu lugar de produção? Quais eram as possíveis funções exercidas pelos mapas quando foram produzidos, além da sua utilidade evidente? Há equívocos, por exemplo, de forma ou escala nos mapas reproduzidos? Por quais possíveis razões? Proposta avaliativa: a atividade prevista para essa temática deve ser realizada em conjunto com a disciplina de Geografi a e consiste na elaboração de um mapa cartográfi co que aborde elementos físicos, geográfi cos, históricos e simbólicos da espacialidade retratada. Na avaliação do produto fi nal, devemos levar em consideração tanto o correto uso da escala, coordenadas e posição quanto a imaginação e a criatividade dos elementos incorporados. O espaço-tempo representado pode ser real ou fi ctício. Ainda que a especialidade da disciplina de História seja o tempo, uma dada temporalidade sempre está relacionada também, necessariamente, a uma certa espacialidade. Por isso, as representações espaciais, sobretudo os mapas, constituem um importante tipo de linguagem que pode ser utilizado em sala de aula. É certo que as técnicas cartográfi cas não se restringem apenas à representação de uma imagem. No caso dos mapas históricos, eles aportam elementos que podem contribuir para a compreensão do período no qual ele foi produzido e acerca da visão de mundo daquela sociedade. Além disso, é uma ótima possibilidade de realizar diálogos interdisciplinares com a professora ou o professor de Geografi a. Já nos primeiros conteúdos do currículo, que via de regra estãoorganizados cronologicamente, pode-se utilizar mapas para representar, por exemplo, que a expansão territorial dos homo sapiens é um fenômeno de dimensões globais, 154 Linguagem Visual na HistoriograFia mesmo que observando particularidades como o fato da África ser considerada o “berço da humanidade” e a América, o último continente a ser povoado. Também na passagem para a Antiguidade, o longo processo que vai da Revolução Agrícola ao surgimento das primeiras civilizações ocorre no interior de uma temporalidade semelhante em lugares tão distantes como o norte da África, o Oriente Médio, a Europa, o Extremo Oriente, a América Central e os Andes. Contudo, é importante ressaltar junto aos alunos/as que se datações que muitas vezes conservam milênios de diferença podem ser classifi cadas como pertencentes a um mesmo período histórico é porque as escalas de tempo utilizadas na chamada “Pré- história” ou na Idade Antiga são muito diferentes daquelas empregadas em tempos mais recentes, como a Idade Contemporânea – cujos processos podem ser acompanhados mais “de perto”, ano a ano, por exemplo. Nesse ponto, uma analogia com as escalas espaciais estudadas pelos/as alunos/as em cartografi a costuma ser um recurso interessante para conceber as várias dimensões temporais da História. FIGURA 10 – MAPA O-T, DE LA FLEUR DES HISTOIRES, 1459-1463 FONTE: . Acesso em: 23 fev. 2020. 155 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 É especialmente na passagem da Idade Média para a Idade Moderna que podemos recorrer aos mapas históricos enquanto recurso visual que oferece possibilidades didáticas de destaque. Em primeiro lugar, deve-se chamar a atenção para o fato de que, nesse momento, os mapas sobre a Idade Média ou já desde a Antiguidade Clássica deixam de ser globais e começam a se concentrar cada vez mais na Europa e nos entornos do Mar Mediterrâneo, oportunizando abordar as limitações da abrangência geográfi ca de fenômenos históricos como o feudalismo, acusando a tendência ao eurocentrismo na medida em que nos aproximamos da Era Moderna. Em segundo lugar, podemos aproveitar esses documentos históricos para abordar as transformações radicais na visão e no conhecimento do mundo ocorridas na sociedade europeia nesse curto intervalo de tempo. Na Figura 10, temos um mapa do século XV, por exemplo, no qual estão apenas os três continentes conhecidos pelos europeus até então. Além disso, há uma representação plana da Terra e não esférica. A visão teocêntrica do mundo fi ca evidenciada pela presença de vários elementos mítico-religiosos, como a Arca de Noé e a narrativa do repovoamento do mundo pelos seus três fi lhos: Sem (Ásia/alto), Jafé (Europa/esquerda) e Can (África/direita). O/a professor/a pode ponderar que se trata de uma interpretação muito particular e preconceituosa da passagem bíblica na qual Noé teria condenado os descendentes de Can a serem servos dos seus irmãos. Esse foi um dos argumentos utilizado durante muito tempo para legitimar a escravidão moderna dos povos africanos, tema abordado mais adiante no currículo escolar. Já no planisfério do início do século XVI (Figura 11) temos uma representação global da Terra, possibilitada ao mesmo tempo pela experiência das Grandes Navegações – nesse caso portuguesas – e pelo desenvolvimento das técnicas cartográfi cas. Atentemos, no entanto, para o fato de que se trata de um ponto de vista europeu sobre as demais partes do mundo por eles “descobertas”, produzindo uma imagem condicionada por relações de poder que se refl etem na centralidade e no destaque que o continente europeu possui nesse mapa. É claro que o tempo não é linear, tampouco a história pode ser vista como uma sucessão de distintas etapas com fronteiras rígidas. A visão religiosa do mundo continuou sendo utilizada para signifi car o mundo durante muito tempo e, de certa forma, podemos dizer que ela segue importante até os dias atuais. Porém, observe-se como a comparação entre os dois mapas pode ilustrar aquilo que frequentemente é descrito como o “desencantamento do mundo” que ocorre na modernidade, na medida em que uma concepção teocêntrica dá lugar a uma representação racional do espaço. 156 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 11 – O PLANISFÉRIO DE CANTINO, 1502 (PORTUGAL) FONTE: . Acesso em: 23 fev. 2020. O mapa Terra Brasilis de 1519 – também conhecido como Mapa Miller, nome do seu último proprietário – por sua vez, é uma fonte visual que traz informações importantes sobre diversos aspectos do início do período colonial. Dentre eles podemos destacar a exportação da cultura e das instituições modernas europeias para outras partes do mundo, mas que se dá de modo muito desigual, através de exploração colonial, como fi ca evidente na representação do pau-brasil como mercadoria obtida pelo trabalho forçado dos povos ameríndios. Mais especifi camente, esse mapa remete a um período particular da História do Brasil, muitas vezes chamado de pré-colonial, anterior à fi xação defi nitiva dos portugueses na América, o que está simbolizado na restrição das caravelas ao oceano. Além de recursos comerciais, a curiosidade pelo caráter exótico da fauna e pela fl ora também se destacam. É interessante abordar junto aos alunos/as aquela que é a característica singular dos mapas produzidos no período marcado pelas Grandes Navegações: a sua provisoriedade. A produção de mapas constituía o conjunto de conhecimentos cartográfi cos, que abrangia elementos físicos, geográfi cos e culturais, e requeria uma formação específi ca. Traduzindo as coordenadas topográfi cas daqueles que empreenderam viagens de reconhecimento, encargadas pelos monarcas dos Estados Absolutistas, os cartógrafos produziam mapas condicionados aos informes e às descrições resultantes dessas viagens. Assim, na Figura 10 podemos verifi car a estabilidade do período medieval em relação à abertura dos horizontes espaciais. O mapa não apenas expressa, como há séculos, o conhecimento acerca de três continentes, como também está pautado em uma perspectiva teológica do território do mundo. Há, ainda, o predomínio do caráter 157 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 artístico em detrimento do geográfi co, além de uma evidente desproporcionalidade da terra fi rme em relação aos oceanos. O mapa da Figura 11, nesse sentido, foi produzido em perspectiva oposta à medieval: datado de 1502, auge da expansão marítima, a terra foi representada como um planisfério com fronteiras abertas no caso do território da América do Sul; incompletas, no caso da parte superior da América do Norte; ou inexistentes, o que podemos observar pela união da África e da Ásia em um único supercontinente. O Planisfério de Cantino apresenta já algumas referências à fl ora e fauna nativa americana, expressa pela coloração em verde abundante (referência às fl orestas) e pelas araras. No mapa da Terra Brasillis a representação pictórica dos ameríndios, das onças, do pau-Brasil, bem como a já avançada designação do litoral brasileiro demonstra um conhecimento mais concreto acerca do território. No entanto, a imagem reproduz a fração conhecida do território como um todo homogêneo, denotando um equívoco seja porque a parte mais ao centro da “Terra Brasilis” não possuía as mesmas características daquelas encontradas no litoral, seja porque naquele momento os portugueses sequer haviam chego àqueles territórios. FIGURA 12 – MAPA TERRA BRASILIS, 1519 (PORTUGAL) FONTE: . Acesso em: 23 fev. 2020. 158 Linguagem Visual na HistoriograFia Os mapas são documentos visuais interessantes para trabalhar com os/as alunos/as tambéma questão da conquista dos territórios encontrados no Novo Mundo. Ou seja, não passa despercebido que, sobretudo em Terra Brasilis, mas também noutros mapas encomendados pelos portugueses, a parte do território americano representada corresponde quase exatamente ao que havia fi cado determinado pelo Tratado de Tordesilhas como posse da Coroa Portuguesa. Representar as novas terras da Coroa de acordo com o tratado era uma forma simbólica de dispor sobre uma propriedade de direito para a qual não havia, no entanto, iniciativas que a assegurassem de fato. A exuberância dos elementos representados, seu caráter exótico ou o imaginário social presente nos elementos pictóricos dos mapas históricos geram muito interesse entre a faixa etária dos 12-13 anos, daí que atividades que incorporem esse tipo de produtos visuais resultem em aulas dinâmicas e muito participativas. Sugestão de site: Em é possível encontrar uma grande quantidade de mapas de diferentes procedências e períodos históricos. Cada mapa está acompanhado de uma breve descrição e contextualização, que oferece indícios ao professor/a para empreender pesquisas mais densas sobre eles. Sugestão de fi lme: A franquia Piratas do Caribe (2003, 2006, 2007, 2011, 2017) ilustra uma representação do mundo permeada pelos seres fantásticos que habitavam o imaginário europeu no período das grandes navegações, oferecendo também imagens acerca da produção de mapas e da consolidação ulterior do sistema colonial nas Américas. 159 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 FIGURA 13 – DAVY JONES NO PÔSTER DE PIRATAS DO CARIBE 2, O BAÚ DA MORTE (2006) FONTE: . Acesso em: 23 fev. 2020. 3.5 FOTOGRAFIAS Ano: 8º ano do Ensino Fundamental ou 2º ano do Ensino Médio Tema: Crise da monarquia e Proclamação da República Produtos: fotografi as Sugestões: o site Brasiliana Fotográfi ca reúne acervos fotográfi cos de várias instituições, podendo-se realizar buscas temáticas, por exemplo, pesquisando-se por “D. Pedro II” (ver: . Acesso em: 23 fev. 2020). Objetivo: analisar a derrocada do Império brasileiro sob perspectiva cultural, atentando para as especifi cidades do monarca e sua situação à frente do regime; situar o lugar das “questões” no advento da República, bem como seu caráter oportuno no contexto do fi nal da década de 1880. Questionário: qual é a representação predominante de Pedro II na memória histórica acerca dos anos fi nais da monarquia brasileira? Em que medida seu acervo pessoal de fotos revela um perfi l diferente ou 160 Linguagem Visual na HistoriograFia uma outra face do imperador brasileiro? Que testemunhos oferecem essas imagens à compreensão do momento histórico vivido na década de 1880? Quais foram as questões decisivas ou relevantes para o advento da República no Brasil? E quais acontecimentos parecem haver sido o resultado de um contexto favorável a uma mudança cujos passos seguintes não haviam sido planejados? Há relações possíveis entre as imagens construídas – inclusive pela oposição – acerca de D. Pedro II e o imaginário da República como condição para o progresso? Proposta avaliativa: a sugestão de proposta avaliativa para esse tema consiste em duas etapas. A primeira, a cargo do/a professor/a, avaliará o domínio dos conteúdos e da perspectiva crítica das fontes, o que os/ as alunos terão a oportunidade de demonstrar através de seminários em que o tema central será subdividido em pontos específi cos, sob responsabilidade dos grupos formados para esse fi m. A segunda parte da avaliação se dará através de uma autoavaliação, em que os/as alunos poderão pontuar os pontos fracos de seu desempenho coletivo e individual, tomando a apresentação dos demais colegas/grupos como ponto de apoio para suas considerações pessoais. Um dos temas mais importantes entre os conteúdos de História do Brasil, a crise da monarquia – que resultou na Proclamação da República – pode ser abordado de forma mais dinâmica do que como um conjunto de acontecimentos políticos encadeados. Não ignoramos o fato de que a importância desse processo histórico faz com que ele seja objeto de provas de admissão, como vestibulares e afi ns, mas também de concursos e testes seletivos para cargos variados. Há personagens, processos e fenômenos dos quais não podemos, portanto, prescindir nas aulas de História. No entanto, semeamos a seguinte proposta: podemos realizar uma leitura desse momento, que é fundamentalmente político, também pela perspectiva cultural e além, através de uma abordagem biográfi ca de um dos seus protagonistas. Nesse ímpeto, propomos analisar a crise do Império brasileiro através de fotografi as do acervo particular de D. Pedro II, podendo ser incorporados à análise outros documentos, como todo um conjunto de representações simbólicas que envolveu o imaginário de parte signifi cativa da sociedade brasileira no contexto de passagem do Império para a República. Mesmo antes de abordar as “questões” políticas que tradicionalmente são apontadas como as responsáveis pela Proclamação da República, uma abordagem cultural das fotografi as do período, sobretudo ligadas à família imperial, pode ser interessante para demonstrar que o regime experimentava um longo processo de desgaste. Por um lado, as críticas ao monarca se acumulavam e o Império que ele regia parecia não ter herdeiros ao trono que gozassem de grande legitimidade, como era o caso tanto do conde D’Eu quanto 161 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 da princesa Isabel. Por outro lado, o reinado de Pedro II parecia ter características aparentemente contraditórias. Por um lado, era “esclarecido”, amante das artes, das viagens, da história, da tecnologia e possuía tendências políticas liberais, como fi ca evidente na criação do Conselho de Ministros em 1847, inspirado no regime parlamentarista inglês. Por outro lado, mantinha intactas as prerrogativas absolutistas do Poder Moderador, do qual frequentemente se utilizava para controlar as disputas de poder entre os partidos Liberal e Conservador. Alguns dos biógrafos de Pedro II, como Lilia Schwarcz (2014), chegam a sugerir que, se não fosse ele próprio o titular do trono, bem poderia haver sido republicano. Talvez esse descompasso entre seus posicionamentos políticos, seu espírito e o lugar que ocupava tenha se demonstrado no desdém que emanava do regime em relação aos seus símbolos e signos, já que a pompa e o requinte que caracterizava o Império – bandeiras, vestimenta, ornamentos em ouro, carruagens etc. – tudo andava um tanto desleixado nos últimos anos do monarca nos trópicos. A historiografi a tradicionalmente costuma apontar que foram três questões específi cas a contribuir simultaneamente para o descrédito da instituição da monarquia. Em primeiro lugar está a relação entre republicanismo e abolicionismo. Os partidos republicanos vinham ganhando força na última década, com destaque para o Partido Republicano Paulista, fundado em 1873. Talvez então um aglomerado pouco signifi cativo de homens descontentes com o Império, além daqueles idealistas, mas de qualquer forma se tratava de uma força política que contestava pelas vias da legalidade o regime em curso. Alguns historiadores defendem que, não por acaso, o Partido Republicano fora criado pelos cafeicultores paulistas após e aprovação da Lei do Ventre Livre, dois anos antes, em meio às discussões sobre o processo de abolição da escravatura que já vinha se arrastando durante todo o século XIX, mas que se intensifi cou na década de 1870. O movimento abolicionista representava um enorme desgaste para o Império, pressionado que era pelos grandes produtores de café – a maior atividade econômica brasileira até então – a ressarci-los pelos milharesde africanos e afrodescendentes escravizados que seriam “expropriados”. Isso se deu justamente quando o Vale do Paraíba perdia força enquanto região produtora de café, dando lugar à ascensão dos cafeicultores do oeste paulista, que estavam no centro dos enfrentamentos com o Império. A cisão defi nitiva, por assim dizer, deu-se em 1888 com a abolição da escravatura, quando muitos senhores de escravos, contrariados, passaram a engrossar as fi leiras do republicanismo. A nomeação do Visconde de Ouro Preto para a chefi a do gabinete ministerial, em meados de 1889, foi decisiva para a perda de apoio do Império entre setores conservadores da sociedade. As hostilidades crescentes entre o regime monarquista e o Exército, que não se sentia valorizado à altura de seus 162 Linguagem Visual na HistoriograFia esforços na Guerra do Paraguai, acirraram-se com as punições sofridas por alguns militares, já que estavam proibidos por lei de se manifestarem em relação a assuntos políticos. Frente às tensões crescentes, o Visconde respondeu com o aumento dos poderes e das funções da Guarda Nacional – então uma força militar tímida, resquício dos tempos da regência – o que foi recebido como uma afronta entre as altas patentes militares. Estava colocada a “questão militar”, transmutada em questão política e social que pode ser sintetizada pela desconformidade do Exército em relação aos seus lugares e papéis sociais no regime monarquista. A outra “questão”, a religiosa, possui hoje menos aceitação entre os/ as historiadores/as, mas continua a ser abordada com frequência pelos livros didáticos (BUENO, 2003). A tensão com a Igreja Católica surgiu de uma aparente banalidade, que se referia à vinculação do imperador Pedro II com a Maçonaria. A “questão” acabou envolvendo a fi gura do papa Pio XII em pessoa e gerou um desgaste signifi cativo à imagem do monarca. Contudo, o confl ito ocorrera cerca de 15 anos antes da Proclamação da República, sendo pouco provável que tenha galgado papel decisivo na derrocada do regime. Nesse âmbito, as fotografi as podem servir como gatilhos para pensar a relação entre homens bem relacionados na sociedade imperial e sua dupla identifi cação, como católicos e como maçons, e como isso, longe de representar um paradoxo, era uma prática ordinária. As representações vitoriosas acerca da imagem de Pedro II como um velho, em que pese sua idade avançada no alvorecer da República, situam-no como um homem sonolento, de barbas longas, com hábitos antiquados; uma perfeita representação do passado do país, que se queria alterar. A oposição republicana soube bem utilizar essas imagens através de charges e acalorados debates na imprensa da época. Sabendo disso, nos cabe questionar junto aos alunos qual é o testemunho oferecido pelas fotografi as que compunham seu acervo pessoal, por exemplo: fi gura nelas um monarca ultrapassado, à imagem da falta de dinamicidade? Em parte, sim. Mas também podemos perceber, ao analisá-las, que o monarca se vestia com relativa simplicidade, ou melhor, com sobriedade. Não vemos que costumasse ostentar joias ou elementos que o identifi cassem como ocupante de um trono. Suas vestimentas são pretas na quase totalidade das fotografi as disponíveis. Na Figura 14 observamos sua preferência, nos últimos anos, pelas fotografi as informais, pelos retratos familiares, em detrimento dos protocolos com os quais conviveu toda a sua vida. Ainda assim, predomina sua postura costumaz: expressão séria, de pé, com as mãos para dentro do colete, essa última uma atitude ainda hoje utilizada por membros da monarquia. 163 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 FIGURA 14 – FAMÍLIA IMPERIAL BRASILEIRA NA QUINTA DA BOA VISTA, RIO DE JANEIRO, 1889 FONTE: . Acesso em: 23 fev. 2020. A Figura 15 faz parte de um conjunto de retratos oriundos de uma das viagens que o imperador fez ao Egito, em comitiva, em 1871. Entre as suas atividades favoritas estava viajar, mas também ser eternizado por fotografi as junto a cenários e artefatos culturais. Como se sabe, em meio à vasta coleção que foi tomada pelo fogo no Museu Nacional, em setembro de 2018, estava uma coleção de relevo de artefatos, objetos e inclusive, múmias, trazidas dessas expedições. A última de suas viagens como imperador fora um tour pela Europa e pela África que durou meses. Não foi uma viagem isolada, aliás, viajar era uma prática que há muito vinha deixando descontentes alguns setores sociais e políticos brasileiros, que reclamavam das ausências e da falta de iniciativa do monarca para resolver os confl itos internos – essa é outra nuance possível de abordar por meio das fotografi as de cunho pessoal do imperador. A identifi cação de Pedro II com o Brasil, inquestionável inclusive para seus críticos, pode ser situada através da análise de um conjunto de retratos produzidos ao longo da vida. As pinturas são um tanto mais engessadas, com uma postura e símbolos específi cos do gênero artístico, mas as fotografi as, por sua vez, costumavam conter elementos de autoidentifi cação do imperador com a sua pátria, a exemplo da Figura 16. Nela percebemos que foi montado um cenário “típico” de fl oresta tropical para o registro fotográfi co. Nessa oportunidade, em 164 Linguagem Visual na HistoriograFia 1883, D. Teresa Cristina fora fotografada no mesmo ambiente. Não se trata do único retrato da família real com esse motivo, já que ao longo dessa década foram produzidas fotografi as individuais e coletivas em jardins e outros cenários ao ar livre. Sobre esta relação entre as tentativas de construção de uma identidade nacional brasileira ao longo do século XIX através da valorização de algumas paisagens naturais, o professor ou a professora de História podem fazer uma aproximação interdisciplinar com a disciplina de Língua Portuguesa e as aulas sobre o estilo literário do Romantismo. FIGURA 15 – HÉLIOS (FOTÓGRAFO), COMITIVA IMPERIAL EM VIAGEM AO EGITO, COM D. PEDRO II AO CENTRO, APOIADO EM SEU GUARDA-CHUVA, 1871 FONTE: . Acesso em: 23 fev. 2020. Em suma, as fotografi as de D. Pedro II em particular e as da família real de modo geral podem ser uma ótima oportunidade para utilizar esse tipo de recurso imagético como material didático. Até porque, em termos cronológicos, esse é um dos primeiros conteúdos curriculares de História do Brasil em que se pode recorrer a esse tipo de mídia, já que a própria técnica do registro fotográfi co é também uma novidade do século XIX que vai sendo apenas aprimorada nos períodos seguintes. Cabe lembrar ainda que essa abordagem é apenas uma das possíveis, apontando para uma dimensão cultural que, como vimos, atua em simultâneo às questões políticas mais comumente descritas pelos livros didáticos. Além disso, é preciso ressaltar que produções historiográfi cas mais recentes têm demonstrado, 165 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 numa perspectiva de cunho mais socioeconômico, a relação estruturante entre o sistema escravista e o regime político da monarquia que por ele era sustentado, colocando assim a crise do Império e de Proclamação da República no bojo de um processo maior e de longo prazo que culminou na Abolição em 1888. O mesmo site que sugerimos para consulta fotográfi ca acerca de Pedro II, Brasiliana Fotográfi ca, por exemplo, possui igualmente um rico acervo sobre a temática “escravidão” que poderá ser utilizado na sala de aula. Nesse sentido, pode vir a ser interessante trabalhar de forma casada ambas as temáticas, a da crise do Império. FIGURA 16 – JOAQUIM INSLEY PACHECO (FOTÓGRAFO), PEDRO II, IMPERADOR DO BRASIL, 1883 FONTE:ca.bn.br/?p=7183>. Acesso em: fev. 2020. 166 Linguagem Visual na HistoriograFia Sugestão de leitura: CHIARELLI, Tadeu. História da arte/ História da fotografi a no Brasil - séc. XIX: algumas considerações. São Paulo: ARS, v. 03, n. 06, 2005. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2020. Neste texto o autor propõe uma leitura da arte brasileira do século XIX em conexão com as culturas da modernidade, com destaque para as tecnologias da imagem. Realiza, nesse sentido, uma análise da imagem de Pedro II, que pode vir a embasar propostas de aula como a descrita acima. 4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Ao longo deste capítulo, que se dedicou a fazer diálogos entre imagens e ensino de História, reforçamos o postulado segundo o qual desaconselha-se o uso meramente ilustrativo de produtos visuais em sala de aula: se as consideramos linguagens, isso requer que estejamos atentos/as às maneiras pelas quais e através das quais apreendemos seu enunciado. Essa análise crítica das imagens como produtos oriundos de uma cultura, um lugar, um período e uma autoria, específi cos ou indiciários, pode embasar nosso planejamento das aulas de História, dos anos iniciais do Ensino Fundamental até o Ensino Médio e além, no Ensino Superior. As propostas didáticas que utilizam produtos visuais como instrumentos na produção do conhecimento histórico escolar não são novas, vêm pelo menos há um século sendo implantadas, a título experimental, nas escolas brasileiras. Começamos a discussão desse capítulo por essa razão, tecendo comentários sobre alguns desafi os atuais enfrentados pela disciplina e pelos/as professores/ as que a conduzem. Na sequência, já que nos últimos vinte e cinco anos, para estabelecermos um recorte mais ou menos preciso, historiadores/as têm se dedicado a analisar a história do ensino de História através das imagens, analisamos, ainda que brevemente, como o livro didático costumou e costuma incorporar esses produtos ao processo de ensino-aprendizagem. Lecionar a disciplina de História em contexto escolar é hoje qualquer coisa menos o intento de transposição de um conjunto de conteúdos do/a professor/a aos alunos, a fi m de fazê-los reproduzir esses conhecimentos. A História é uma disciplina que faz pensar a realidade, que exercita a criticidade, além, é claro, do seu caráter erudito, mas também poderoso em suscitar a curiosidade por 167 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 outras experiências humanas na Terra. Propusemos, ao longo desta disciplina de Linguagem Visual na Historiografi a, que as imagens, como produção humana que aporta um testemunho, inserem-se nas aulas segundo didáticas que “simulam” práticas de pesquisa. Simulam, entre aspas, porque nem sempre instigamos os alunos para que façam investigações sui generis. Mas conduzimos as aulas, isso sim, sempre, de forma que todo conhecimento e todo testemunho seja inquerido em relação a sua produção: se um fi lme, pintura ou retrato fotográfi co, questionamos quem produziu, com que fi nalidade, em que momento e contexto, quem fi nanciou, quais foram as infl uências, se há intertextualidade, quais são os lugares “de fala” etc. Assim demonstramos aos alunos/as, na prática, como os historiadores/as produzem conhecimento em História. Na última parte do capítulo, propusemos temas e abordagens que podem ser trabalhados pelo/a professor/a a partir de produtos visuais específi cos: cinema, charges, HQs, mapas e fotografi as. Para cada um desses produtos, sugerimos a confecção de uma fi cha técnica que tem por objetivo, a princípio, mapear o conteúdo, os instrumentos e o roteiro das aulas. Nesse exercício acabamos, como professores/as, construindo um guia de muita valia para o nosso exercício profi ssional. Acerca das propostas apresentadas, gostaríamos de fazer, ainda, alguns comentários. Em primeiro lugar, recordamos que o conteúdo curricular de História é trabalhado no Ensino Fundamental e em seguida retomado, com maior profundidade, no Ensino Médio, já que na faixa etária dos 15 aos 17 anos os/ as adolescentes possuem habilidades mais desenvolvidas, como o potencial de abstração, para lidar com os conhecimentos em discussão. Dessa forma, cada uma das aulas sugeridas pode ser adaptada, sobretudo em relação aos questionamentos norteadores, para um ou outro público. Nesse capítulo, preferimos apontar questões gerais e claro – nunca será demais dizer – as opções pelos produtos e pelas questões foram subjetivas e pautaram-se nas experiências vividas e compartilhadas com professores/as de História. Em segundo lugar, como se trata de propostas, elas podem e devem ser aprimoradas pelo/a professor/a de acordo com o perfi l da turma, com as dinâmicas já provadas e com a eleição daqueles produtos visuais com os quais têm maior familiaridade. Nas propostas didáticas desse capítulo prevaleceram ora os comentários sobre o produto, ora as abordagens historiográfi cas. Seria interessante que cada uma dessas sugestões pudesse ser analisada por você, acadêmico, no seguinte sentido: o produto visual recomendado seria o mais adequado para abordar esta temática? Os questionamentos norteadores dão conta dos objetivos da aula? A proposta avaliativa é executável para a faixa etária indicada? 168 Linguagem Visual na HistoriograFia 1) Acerca da utilização do cinema e demais produções audiovisuais em sala de aula, selecione a alternativa incorreta: a) ( ) A escolha da obra e as formas de abordá-la se vinculam a um objetivo didático previamente estabelecido. b) ( ) Dentre os objetivos da seleção de um produto audiovisual pode estar o entretenimento da turma e uma dinâmica diferenciada, mas não deve ser esse o objetivo a inspirar o/a professor/a a levá-lo para a sala de aula. c) ( ) O produto audiovisual pode ser passado em sala para ilustrar ou complementar um tema já abordado, já que nesse caso serviria para cimentar conteúdos. d) ( ) Ampliar os conhecimentos culturais dos/as alunos/as através de excertos de audiovisuais é uma proposta interessante, sempre que o produto seja problematizado e inquerido por um questionário qualifi cado. 2) Analise as seguintes afi rmações sobre a utilização de recursos imagéticos em sala de aula, assinalando aquela que melhor representa os conteúdos abordados nesta disciplina de Linguagem Visual na Historiografi a: a) ( ) Produtos visuais chamam a atenção de meninos e meninas em idade escolar, esta é a principal razão pela qual o/a professor/a de História deve buscar inserir a visualidade nos estudos de História. b) ( ) Utilizar imagens em sala de aula apenas para ilustrar vem perdendo lugar entre as propostas de professores e professoras de História, que se inclinam a propostas mais dinâmicas, como Em terceiro lugar e fi nalmente, sugerimos alguns textos, sites e fi lmes que podem tanto subsidiar a proposta das aulas quanto aperfeiçoar a abordagem do/a professor/a em relação a determinados temas. Há, para cada uma das sugestões, outras tantas, que não foram incorporadas para não os aturdir de tanto conteúdo. É importante que esse exercício seja reproduzido pelo/a professor/a em sala de aula. Como formadores de opinião e mediadores do conhecimento, por um lado, e por outro, dado o escasso tempo de que dispomos para cada um dos conteúdos trabalhados, é imprescindível que deixemos migalhas de pão para serem guias de nossos Joãos, Marias, Josés... 169 IMAGEM E ENSINO DE HISTÓRIA Capítulo 3 aquelas que envolvem imagens em movimento. c) ( ) O/a professor/a pode utilizar as imagens presentes no livro didático de forma mais qualifi cada do que a proposta presente neste material, mas convém limitar a utilização de fontes diversas e polêmicas, que podem dar lugar ao contraditório e gerar tensões desnecessárias no ambiente escolar. d) ( ) Como aliados do/a professor/a no planejamentode aulas dinâmicas e com recursos didáticos variados, produtos visuais têm uma importante contribuição a dar para as aulas de História, mas a perspectiva de análise deve sempre atentar para o lugar de produção, tipo de produto e outros critérios que conformam um questionário crítico e uma proposta didática defi nida. 3) Através da mediação do/a professor/a nas aulas de História, a visualidade pode ser abordada por meio de propostas diferenciadas, exceto: a) ( ) O/a professor/a pode qualifi car o debate trazido pelo livro didático em relação a um conjunto de imagens. b) ( ) O/a professor pode sugerir um fi lme e deixar que os/as alunos se apropriem de seu conteúdo de forma a desenvolverem conhecimentos da maneira mais livre possível. c) ( ) O/a professor/a pode inserir propostas com produtos visuais que se aproximem de práticas de investigação em História. d) ( ) O/a professor/a pode sugerir que os/as alunos elenquem segundo critérios de afi nidade aqueles produtos visuais que querem incorporar aos debates em História, mas a mediação fi ca a cargo, de qualquer forma, do/a docente e das fi nalidades desses recursos na condução das aulas. REFERÊNCIAS BARBOSA, Angela et al. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4. ed. (Coleção Como usar na sala de aula). São Paulo: Contexto, 2014. BITTENCOURT, Circe Maria. Livros didáticos entre textos e imagens. In: BITTENCOURT, C. M. (Org.). O saber histórico na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2012. pp. 69-90. 170 Linguagem Visual na HistoriograFia BUENO, Eduardo. Brasil: uma História. A incrível saga de um país. São Paulo: Ática, 2003. CHIARELLI, Tadeu. História da arte/História da fotografi a no Brasil – séc. XIX: algumas considerações. São Paulo: ARS, v. 03, n. 06, 2005. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2020. FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre o golpe de 1964 e a Ditadura Militar. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, pp. 29-60, 2004. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2020. HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das letras, 1995. LITZ, Valesca Giordano. O uso da imagem no ensino de História. Caderno Temático. Programa de Desenvolvimento Educacional do Estado do Paraná. 2009. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2020. SANTOS, Roberto Elísio dos. 2 Vezes 5 Vezes Favela: aproximações e distanciamentos do cinema brasileiro. Intercom – RBCC, São Paulo, v. 34, n. 02, pp. 75-91, jul./dez. 2011. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. Dom Pedro II, um monarca nos Trópicos. São Paulo: Cia das Letras, 2014.com humores desconexos, sob uma montanha irreal. A imagem não fornece elemento para se compreender as relações que se estabelecem entre os personagens ou seu contexto. No nível II, a principal característica do pensamento do observador é o deslocamento da responsabilidade da existência da obra do mundo físico para o mundo interior do artista (ROSSI, 2003). Ou seja, é o mundo interno e subjetivo do artista que determina a qualidade da obra. Neste nível o observador ainda acredita que o artista é um copista do real, mas são as qualidades do tema “copiado” que merecem julgamento e não a obra propriamente. A criatividade do artista relacionada a sentimentos é o critério de julgamento. Se o artista expressou bem algum sentimento, a obra é boa (e não mais se o sentimento é bom ou ruim), mas também é boa se é “criativa”. A depreciação do realismo começa a se transformar neste nível e o conduzirá a priorizar, no nível III, o critério da expressividade da obra. Aqui talvez um observador entenda que Sherman quis expressar seus sentimentos em relação a uma festa que não surtiu os efeitos esperados: seja pela tez da personagem, atrás ou pelo cenário e suas cores, que 21 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 despertam sentimentos lúgubres ou melancólicos. O pensamento mais sofi sticado da interpretação se revela no nível III, quando o observador apreende um sentido abstrato, um tema subjetivo nos elementos da obra. Nesse nível os atributos do mundo representado são desprezados e prioriza-se a expressividade da obra. Importa se há uma mensagem, uma ideia ou, ainda, a refl exão de um tema relevante. Está presente a consciência de que a subjetividade do leitor é atuante na atribuição de sentidos ao produto visual. O pensamento abstrato é necessário, mas ele não garante o acesso ao pensamento estético, pois o fator determinante é a familiaridade com a leitura e discussão própria do campo estético. Como aqui se manifesta a subjetividade do apreciador, em toda sua complexidade, limita-se a comentar o sentimento engessado da mulher, com uma veste que se reporta ao romantismo. O cenário monocromático destaca-se em contraposição ao branco da vestimenta, cujo resultado é uma estética agradável. Tendo em vista a crítica realizada por Rossi (2003) em relação a um questionário que limita a apreciação artística do observador, pelo mediador, parece claro que os aspectos formais – ou seja, a perspectiva formalista – foram priorizados pelos autores trabalhados até então. A incorporação da semiótica no campo de estudos da leitura de imagens infl uenciou a criação de dois conceitos basilares para o campo, como ele se apresenta atualmente: as noções de denotação e conotação. A denotação refere-se ao que pode ser apreendido, na leitura de uma imagem, enquanto objetividade. Trata-se do conjunto de elementos e formas que podem ser descritas: as situações, as fi guras, as pessoas, as ações. Já o conceito de conotação se refere àquilo que não está inequivocamente na imagem, pois se relaciona ao campo das subjetividades. Ou seja, as impressões do intérprete, seus sentimentos, aquilo que a obra inspira ou faz pensar. Conotação se refere, também, a um signifi cado construído pelo indivíduo sobre a imagem que observa, sobre o que ela expressa. Ambos os conceitos estão incorporados ao modelo de Rossi, diluídos na construção dos níveis de compreensão estética, sendo que a denotação predomina no estágio primário ou nível I e a conotação se desenvolve paulatinamente entre os níveis II e III. A infl uência da semiótica no modelo formalista de apreensão ou leitura de imagens resultou – para defi nirmos alguns pontos e fecharmos esta primeira parte da discussão – em uma leitura orquestrada da produção imagética ou visual, formada pelos seguintes códigos, conforme nos aponta Maria Emilia Sardelich (2006, p. 456-457): Espacial: o ponto de vista do qual se contempla a realidade (acima/abaixo; esquerda/direita; fi delidade/deformação). Gestual e cenográfi co: sensações que produzem em nós os gestos das fi guras que aparecem (tranquilidade, nervosismo, 22 Linguagem Visual na HistoriograFia vestuário, maquiagem, cenário). Lumínico: a fonte de luz (de frente achata as fi guras que ganham um aspecto irreal, de cima para baixo acentua os volumes, de baixo para cima produz deformações inquietantes). Simbólico: convenções (a pomba simboliza a paz; a caveira, a morte). Gráfi co: as imagens são tomadas de perto, de longe. Relacional: relações espaciais que criam um itinerário para o olhar no jogo de tensões, equilíbrios, paralelismos, antagonismos e complementaridades. Chegamos ao ponto em que, já familiarizados com os conceitos mais utilizados para a apreciação imagética, nosso itinerário nos conduz às abordagens correntes entre os historiadores/as para a análise – e não leitura – de imagens. Estamos mais confortáveis com a utilização do conceito de análise, ao invés de leitura, uma vez que esta última subentende uma ideia basilar presente na imagem, tão explícita quanto a palavra escrita, o que nem sempre existe em dado produto visual. Quer dizer, uma produção visual, como ação que se realiza processualmente, é um empreendimento que não termina necessariamente com a mesma ideia com que foi iniciado, tampouco parece correto afi rmar que cada elemento e cada nuance foi estrategicamente pensada para formar um todo harmonioso. Como sugere Ulpiano Bezerra de Meneses (2012), a trajetória inicial da análise de imagens pelos historiadores e historiadoras esteve inspirada em Erwin Panofsky (1892-1968), cujos estudos foram desenvolvidos no decorrer da primeira metade do século XX. Panofsky foi professor junto à Universidade de Hamburgo, na Alemanha e em diferentes universidades nos Estados Unidos, para onde migrou com a ascensão do nazismo. Durante o curso de sua carreira desenvolveu um método de compreensão da História da Arte que se pautava em três momentos ou três níveis de signifi cação. O primeiro, aparente ou natural, é o nível pré-iconográfi co. Consiste na percepção da obra visual em seu estado puro ou descritivo daquilo que pode ser expresso em informações: a forma dos objetos, pessoas, animais ou as relações que estabelecem entre si. O segundo nível é o iconográfi co propriamente dito ou convencional. Neste nível insere-se a equação cultural do conhecimento iconográfi co de cada apreciador; o objeto de análise são as fórmulas, as convenções, os motivos artísticos e os temas representados. O terceiro nível é o da interpretação iconológica, a procura de uma espécie de mentalidade de base ou em uma questão: o que isto e aquilo, representado desta forma e, por esta fórmula, signifi ca? A abordagem iconográfi ca de inspiração panofkyana é a mais utilizada na interpelação de imagens no campo da História, embora atualmente o conceito 23 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 de iconologia tenha mais destaque. Vimos, anteriormente, como ambos os conceitos estão pautados no método de Panofsky. Privilegiando o signifi cado das imagens, a iconografi a compartilha com a semiótica uma reação explícita contra o puro formalismo na apreciação imagética, entendendo a imagem como suporte sígnico com propriedades intrínsecas. Como o termo iconografi a sugere, uma análise iconográfi ca suporia a apreensão de uma descrição possível de se identifi car na imagem. Esta descrição, plausível de se “ler” na imagem, dá lugar a classifi cações, comparações e tradições expressas pela visualidade e pelos signos. Este repertório de informações primárias é o que situa a iconografi a em um estágio inicial da análise imagética. Iconologia, por sua vez, seria um passo adiante na elaboração de teorias e perspectivas de análise de imagens, pois, apoiada em fontes heterogêneas, em um repertório imagético formado por emblemas e alegorias, embasa uma ciência da arte que vai além da busca por uma escritura representada pelaimagem visual. Uma análise que se confi gure de terceiro nível, de interpretação iconológica, requer que o apreciador possua uma vasta erudição, além do senso cultural comum e de competências em várias áreas das humanidades. Este nível leva em conta a história pessoal e técnica do/a observador/a para entender uma obra, que é produto de determinado momento histórico, que se relaciona com determinado inconsciente coletivo e que vai além do que aparentemente signifi ca. Como alguns podem já estar suspeitando, a análise realizada no começo deste capítulo em relação aos murais do Leste Europeu (Figuras 1 e 2) foi inspirada nos níveis de signifi cação de Panofsky. Conforme a orientação de Meneses (2012), seria interessante analisarmos, ainda que pontualmente, alguns itinerários dos estudos iconológicos pós-Panofsky. Uma abordagem de destaque deste movimento é a iconologia crítica, que se insere no campo de pesquisa designado estudos de cultura visual. Este campo se caracteriza pelo estudo da construção social do visível e da construção visual oriunda do social. Muito mais abrangente do que o estudo da arte, a iconologia crítica se volta às meta-imagens, ao estatuto da imaginária mental, ao estatuto teológico e político das imagens, o iconoclasmo e a iconofobia, a interação entre o virtual e o real, dentre outros chamados “fenômenos da imagem” (MENESES, 2012, p. 248). Uma das referências principais desta corrente é William Mitchell. Um segundo campo de interesse entre os teóricos da visualidade é o da antropologia da imagem, cujo foco encontra-se no corpo como agente de percepção e da ação, bem como na premissa de que as imagens têm lugar, elas acontecem – para além do quadro na parede e da sua formação na cabeça do/a observador/a. Destacamos, nesse campo de estudos, a contribuição de 24 Linguagem Visual na HistoriograFia Hans Belting, um dos principais nomes das teorias da visualidade, para quem a produção e a memória das imagens têm no corpo o agente principal de sua concepção. A reversão do paradigma da imagem como privada de movimento, estática, na parede, abre espaço para o reconhecimento do seu caráter artefatual. E o que enseja a compreensão da imagem como artefato? Sobretudo para nós, historiadores/as, que tendemos a limitar o produto visual à condição de documento, perceber a imagem como artefato signifi ca operar paradoxalmente a sua “desdocumentalização”. Ou seja, realizar um procedimento de investigação que leve em conta a vida pregressa da imagem, os caminhos que ela percorreu, os fi ns a que serviu, antes de receber o status de documento. Utilizaremos o exemplo dado por Meneses para interpelar uma fotografi a em modelo 3x4, no caso, que consta no passaporte de Albert Einstein. FIGURA 6 – PASSAPORTE DE ALBERT EINSTEIN FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. 25 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 Considerando apenas o contexto, fi ca claro que o uso da fotografi a de Einstein em seu passaporte difere da mesma imagem em uma carteira, que simboliza sua lembrança para uma pessoa querida, que a guarda consigo. Outro signifi cado teria a mesma fotografi a, se exposta em um porta-retrato em seu escritório, que reportaria ao reconhecimento daquele espaço enquanto seu lugar, ou seja, remete à ideia de pertencimento. Na parede da Academia de Ciências de Berlim, onde lecionou, abandonando-a para exilar-se nos Estados Unidos, a fotografi a possui valor de memorial, valorização e de continuidade institucional. Na fi gura anterior, em que pese o enorme valor enquanto artefato histórico, por ser um documento antigo de uma fi gura ilustre, a fotografi a cumpriu uma função social prática: reconhecer o detentor do documento, permitindo seu deslocamento para fora do seu país de origem, a Alemanha. A imagem como documento consiste no fi nal de um ciclo de vida do artefato imagético, que então se insere numa nova dinâmica – o seu descarte da vida social e a sua apropriação enquanto documento. Está claro que o procedimento de arquivamento ou musealização de uma imagem não esgota sua vida pregressa. Antes o contrário, historicizar sua vida social evita que a imagem seja esvaziada quanto à participação em múltiplas esferas da vida, para além do arquivo/ documento e limitada à função de representação (o que teremos a oportunidade de analisar melhor no último momento deste capítulo). Aqui a principal referência talvez seja Igor Kopytoff (2008) e sua “biografi a cultural das coisas”, no campo dos objetos/artefatos visuais. Sugestão de atividade de estudo: vocês, acadêmicos, conseguiriam escolher um objeto-documento e investigar a sua biografi a, os usos e fi ns a que serviu antes de tornar-se objeto museal, por exemplo? Utilizem as experiências de vocês em espaços de memória, museus e arquivos para escolher o objeto a ser investigado neste exercício. Como objeto de análise, apreciação artística, artefato, documento, entre outros, a imagem, ou o produto visual, oferece-se à teorização de distintos campos do conhecimento: da antropologia à neuroestética, das artes visuais à psicanálise. A celeuma em relação ao campo historiográfi co se insere, como sugerimos já noutras oportunidades, à alforria incompleta do documento visual. Isto porque, ainda com base em Meneses (2012), se por um lado ninguém nega que a imagem pode servir de fonte histórica, por outro, tratá-la em pé de igualdade com outras tipologias de fontes ainda é problemático. Para este historiador, a 26 Linguagem Visual na HistoriograFia razão para a cidadania de segunda classe conferida ao documento visual está no cerne da formação básica do historiador/a, ainda exclusiva ou preponderantemente logocêntrica, que trata com desconfi ança aquilo que possui caráter etéreo ou afetivo. À justifi cativa acima descrita agregamos outra, que se vincula a nossa formação na erudição escrita. Como aprendemos, o nosso ofício, senão através da leitura, seja de outros trabalhos historiográfi cos ou dos documentos que analisamos? Também nossa forma de expressão é a palavra escrita, já que o produto, o resultado do metier histórico ainda são textos escritos. Pouco familiarizados com as teorias da imagem e também porque não conseguimos moderar a contento a identidade da imagem visual, transformamos a imagem em palavra, esvaziando assim sua natureza visual. Noutras palavras, observamos os objetos e as formas, desprezamos a materialidade do não verbal e transformamos a imagem num discurso verbalizável, apreendendo na imagem um signifi cado dado a priori. Desprezamos saber que tanto a ideia produz a forma, quanto é produzida por ela. A questão que nos fi ca deste problema, que é específi co do campo da História, é saber se podemos fazer diferente; se podemos realizar uma abordagem da imagem como documento visual que expresse um pensamento que só pode perfazer-se adequadamente de modo visual. E, claro, como incorporamos esta perspectiva na construção do conhecimento histórico, tendo em vista ainda os diferentes suportes imagéticos – artes, fotografi a, cinema, publicidade, dentre outros. Para o historiador que vem nos inspirando nestes debates, Ulpiano Bezerra de Meneses, a alternativa consentânea aos papéis desempenhados pela imagem e seu poder de produzir efeitos seria estudar qualquer problemática da disciplina histórica introduzindo a dimensão da visualidade, sem que o foco gravitacional desta utilização seja a imagem como documento. Quer dizer, as imagens devem ser tratadas também como componentes do jogo social, junto a outras fontes capazes de encaminhar a problemática da investigação – social, cultural, econômica, das mentalidades – e não como um feudo com personalidade própria que só serve e só embasa problemáticas oriundas do campo visual. A título de síntese, recordemoso que foi visto nesta primeira seção do Capítulo I. Introduzimos a discussão sobre a leitura de imagens a partir do campo em que esta perspectiva fl oresceu, o mundo das artes, expondo e realizando exercícios de leitura com base na proposta metodológica de Ott, Housen (ambas sintetizadas por Sardelich) e Rossi. Vimos, a partir desta última proposta, como a semiótica fi ssurou a concepção formalista de análise de imagens, propondo como base para este exercício as noções de conotação e denotação. Depois, abordamos a contribuição de relevo de Panofsky para uma ciência da arte ou da imagem, que se baseia em três níveis de apreciação (proposta que goza de muito 27 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 prestígio entre historiadores/as, embora criticada com a mesma intensidade). Também houve espaço para destacarmos, brevemente, as teorias investigativas do campo visual, abertas por ele e seus itinerários, conforme a sugestão de Meneses – os estudos de cultura visual, a antropologia da imagem e a imagem como artefato. Introduzimos as tensões que envolvem a concepção da imagem como documento, o que terá continuidade a seguir, nas seções 3 e 4 deste capítulo. Sugestão de atividade de estudo: utilizando os critérios de análise propostos por Sardelich (2006), cada um dos acadêmicos deve selecionar um par de obras de arte com as quais tenha familiaridade. Em seguida, para exercitar, observá-las sob outras perspectivas: a espacial, a cenográfi ca, a lumínica, a simbólica, a gráfi ca e a relacional. O resultado do exercício pode ser compartilhado com os/ as colegas nos fóruns de discussão e mídias do grupo. 3 A IMAGEM COMO FONTE HISTÓRICA: CRÍTICA E MÉTODO Constitui ponto pacífi co para o saber histórico que uma imagem, qualquer que seja, pode vir a ser utilizada enquanto fonte documental para a escrita da história. Menos consensual, no entanto, seria a maneira de lidar com distintas tipologias de imagens na operação historiográfi ca. Longe de ousarmos diluir as tensões em relação à utilização de imagens na escrita da história. Fiquemos, então, no campo das certezas: como qualquer outra fonte documental, as imagens devem ser submetidas à análise crítica em relação ao seu lugar de produção, ao seu contexto e aos seus usos. Veremos, no último apartado deste capítulo, as especifi cidades da imagem enquanto evidência histórica, segundo leituras singulares do nosso campo. Antes, parece necessário fazer considerações acerca do método historiográfi co. Documentos e relatórios de Estado, fotografi as, diários íntimos, processos judiciais, objetos pessoais, monumentos, equipamentos, jornais, revistas, documentários, prontuários, autobiografi as, certidões de batismo, casamento, atestados de compra e venda, cartas de alforria, correspondências pessoais, memórias, tratados militares, políticos, manifestos, tapeçarias e as paredes de uma caverna são algumas das tantas fontes possíveis de inquirição pelo conhecimento histórico. A metodologia empregada em cada uma dessas tipologias, cujas 28 Linguagem Visual na HistoriograFia diferenças são signifi cativas, possui, porém, dois pressupostos em comum: o procedimento judicioso em relação a sua produção; e o questionário ao qual a fonte deve ser submetida. Utilizaremos nesta incursão sobre o método crítico o programa esboçado por Marc Bloch (2001). Como é sabido, Bloch redigiu a referida obra sob condições dramáticas há mais de 70 anos. Sua longeva validade reside tanto na qualidade de suas assertivas quanto na construção de um guia sobre como e com quais limites devemos trabalhar enquanto historiadores e historiadoras, como mulheres e homens de ofício. Em que pese a possível existência de manuais mais recentes, que apresentem outros problemas – por exemplo, em relação às fontes digitais – sua obra é uma referência para a nossa profi ssão e ousamos dizer que se trata de um estudo precursor da história como ciência que possui suas teorias, métodos e legitimidade próprios, em relação às demais Ciências Humanas. Procedimento em relação a sua produção e submissão a um questionário. Do primeiro pressuposto temos que, antes de tudo, a fonte deve ser inquerida quanto ao seu lugar de produção e funções: aqui importa saber quem produziu ou construiu dada fonte documental, em que contexto político, subjetivo ou em relação a que processos. Com quais fi nalidades foi construída? Para um uso administrativo, de controle, para ser apreciada publicamente? Com quais intenções ou interesses? Quem a produziu, no sentido do seu lugar social? Quais foram os possíveis fi ltros aos quais foi submetida? Pertence a algum campo de conhecimento ou institucional específi co? Qual foi o caminho percorrido até a sua salvaguarda? Quais foram as condições de possibilidade de sua aparição e da sua transformação em documento? Investigar o lugar de produção das fontes documentais requer do/a historiador/a um conjunto de deduções: que os textos, imagens e objetos mentem sua proveniência e que seus vestígios podem ser falsifi cados, manipulados ou ingênua e equivocamente produzidos. Neste último caso insere-se a situação, por exemplo, da fabricação de atos com a fi nalidade de repetir peças autênticas que haviam sido perdidas – um “falso-falso” (BLOCH, 2001, p. 97). Ou ainda, o fato de que muitas testemunhas – termo que aqui denota não apenas o testemunho narrado, pessoal, mas o testemunho documental de uma época ou acontecimento – se enganam de boa-fé. Parece evidente, no caso de um testemunho oral, por exemplo, a necessidade de investigar o contexto de produção do depoimento: considerar as emoções, as tensões e as implicações do testemunho na análise das hipóteses levantadas. A inexatidão ou mesmo o embuste são construídos com base em aspectos psicológicos, como o cansaço, as ameaças ou a perda de um ente querido. Um testemunho perante o operador do direito, em que a vida da testemunha está em 29 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 jogo, não tem o mesmo peso e consequência do que o relato confi denciado por uma mulher a sua vizinha ou o narrar de acontecimentos por uma menina em seu diário íntimo. Mas tal relativização, aplicável de maneira distinta a cada um dos documentos, não possui valor em si mesma, já que a crítica é instrumento do método e não o fi m do método em si. A erudição, por maior que seja, cai no vazio quando se limita a detectar o contexto da produção documental sem investigar seus motivos, sem disto produzir conhecimento, mesmo quando “falsos”. No caso das inconsistências da natureza humana, fi quemos com o exemplo dado por Bloch (2001): confi aríamos mais no diagnóstico de um médico, que analisou com cuidado a situação de seu paciente, ou na sua descrição dos móveis do quarto em que se encontrava o enfermo? Ou este: ou as nuvens mudaram de forma desde a Idade Média, já que as descrições de então revelam visões de cruzes e espadas, ou o relato informa não sobre o que se viu na realidade, mas sobre o que, em sua época, era estimado natural ver. E mesmo no caso da falsifi cação e da manipulação sua existência interpela uma atmosfera social que assume ela mesma um valor documental, ou seja: a falsifi cação pode, igualmente, dar-se à utilização como fonte documental. Aproximamos as contribuições de Bloch à discussão sobre o uso de imagens na ofi cina da história, através da seguinte assertiva: na base da crítica ou do método crítico está um trabalho de comparação. Embora o pressuposto seja válido para qualquer tipologia de fontes, para qualquer testemunho, poderemos dar exemplos concretos do método em relação ao campo visual. São três os princípios que compõem seu programa do método crítico: o princípio da contradição, o princípio da discrepância e o princípio da semelhança limitada. Para abordarmos o princípio da contradição, consideremos a seguinte hipótese: suponhamos que haja uma imagem sem referências precisas, em queuma pessoa parece estar sendo nomeada, empossada, coroada ou coisa que o valha. A pessoa é identifi cada como sendo uma dada personagem histórica pela origem do desenho e pelas suas características físicas. Como verifi car o episódio? Há que recorrer a outros testemunhos: de imagens semelhantes, artefatos do período, informar-se sobre o “aparecimento” desta imagem, o que se sabe sobre ela. Suponhamos que haja, neste vasto corpus documental levantado, uma discrepância que arruíne um dos testemunhos que embasaram a hipótese prévia. Pelo princípio da contradição, um dos dois deve sucumbir, pois um acontecimento não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Como escolher qual testemunho será rejeitado e qual deve subsistir? Há muitas gradações entre o infi nitamente provável e o apenas verossímil. Algum vestígio entre a documentação levantada se aproximará de uma das 30 Linguagem Visual na HistoriograFia probabilidades, aumentando seu coefi ciente de certeza. No caso hipotético citado acima consistir em demasiada abstração, fi quemos com outro: duas fotografi as similares, registradas em um mesmo local, remetem a datas diferentes entre si. Como uma pessoa não pode estar em um mesmo lugar, da mesma maneira, duas vezes, uma das datações está equivocada – ou mente. Se pessoa pública, buscaremos sua agenda ofi cial, as entrevistas concedidas às mídias em busca de informações. Compararemos as vestimentas, o corte de cabelo em relação a outras fotografi as da mesma época, investigaremos quem são as pessoas que também aparecem na imagem. Objetos, veículos e o ambiente ao redor podem ser de grande ajuda. O exemplo é pueril, mas permite expressar a ideia de forma clara: é pouco provável que, no universo de fontes consultadas, os indícios se aproximem com a mesma precisão de ambas as datas sugeridas para a fotografi a. Alguma há de destacar-se. O princípio da discrepância, por sua vez, baseia-se na ideia de que o diferente se delata. Em uma mesma geração, de uma mesma sociedade e, sobretudo, em um mesmo suporte, “reina uma similitude de hábitos e técnicas muito grande para permitir a qualquer indivíduo afastar-se sensivelmente da prática comum” (BLOCH, 2001, p. 110). Eis o exemplo de um documento, supostamente do século XVIII, que esteja escrito em papel ao invés de pergaminho, em grafi a destoante e com fi guras de estilo raras, para não dizer ausentes, em outros documentos de sua mesma época. Pelo princípio da discrepância, a estranheza do feito aspira a que dele se duvide. Talvez o caso do estilo, na arte, seja um exemplo palpável desta discrepância. Vejamos as fi guras 7, 8 e 9. Trata-se de um exercício de análise no âmbito mais elementar. As três fi guras trazem a fi gura da Madonna ou a Virgem Maria, em português, junto ao menino Jesus. Ao mesmo tempo em que, tão somente com uma primeira olhada, já sabemos que as fi guras 7 e 8 não pertencem ao mesmo contexto histórico, a similaridade da temática, técnica, estilo e elementos, conforme expressa nas fi guras 8 e 9, saltam aos olhos. 31 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 FIGURA 7 – MADONNA COL BAMBINO, (C. 1230), BERLINGHIERO DE LUCCA FIGURA 8 – MADONNA DEL GAROFANO, (1478-80), LEONARDO DA VINCI FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. 32 Linguagem Visual na HistoriograFia FIGURA 9 – ALDOBRANDINI MADONNA, (C. 1509-10), RAPHAEL SANZIO FONTE: . Acesso em: 6 nov. 2019. A primeira das três fi guras é uma obra de Berlinghiero de Lucca, pintor italiano que viveu no começo do século XIII. A obra é uma referência importante da arte bizantina, estilo artístico que foi além dos muros do império homônimo. Percebemos na fi gura que a perspectiva e o volume parecem ignorados. A representação humana é realizada frontalmente, com uma inclinação leve que sugere certa espiritualidade (diga-se, inclinação que está presente em todas as três imagens). O dourado-ouro abunda, como se a nobreza do metal refl etisse a dos personagens representados. Para além dos traços fi nos característicos, destaca-se a representação do menino Jesus: a criança não é mais do que um corpo adulto em escala inferior. A Figura 8 é a reprodução de um painel de Leonardo Da Vinci representando uma das inúmeras Madonnas que produziu durante sua vida. Nela vemos a Virgem Maria oferecendo um cravo ao menino Jesus, mote que intitula a obra (cravo, garofano, em italiano). Não é preciso ser um especialista na arte renascentista para observar algumas especifi cidades do artista, a exemplo do ambiente escuro no qual se inserem as fi guras principais, o rechonchudo menino Jesus, a expressão ímpar de Maria, neste caso, um tanto melancólica, entre atenta e desinteressada. Maria fora destacada por Da Vinci tanto pela expressão singular quanto pela vestimenta opulenta, adornada pelo broche de topázio e também pelo requintado penteado dos cabelos. Tudo isso conduz ao entendimento de que Maria fora representada como uma rainha. 33 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 A terceira desta série de três fi guras, a de número 9, é de outro artista renascentista, Raphael Sanzio, cuja Madonna apresenta também suas particularidades. Apesar da iluminação dotar esta obra de outra “cara”, da presença de um terceiro personagem – João Batista –, da expressão de Maria se inclinar à passividade e, claro, dos halos, a pintura possui inúmeros sinais de que pertence ao mesmo período da anterior. Reparem no signo da fl or, presente em ambas as pinturas; nas janelas, a dotar de perspectiva e profundidade o cenário; ou nas cores do manto da Madonna em cada uma das representações. As semelhanças continuam: nos traços de Maria, na centralidade do corpo, na cena cotidiana. Mesmo se tudo isso fosse diferente, ainda assim identifi caríamos o período das obras pelo seu estilo, pois sua visualidade os aproxima. A primeira fi gura, no entanto, é discrepante neste sentido, embora apresente o mesmo tema e as mesmas fi guras representadas. O princípio da semelhança limitada consiste no terceiro dos princípios do método crítico no interior de um primeiro postulado, que se refere à produção do testemunho. Trata-se de uma inferência relacionada à similitude entre um ou mais documentos: ela deve existir, já que nenhum testemunho brota de uma ilha, sem relação, aproximação ou parecenças com os demais, mas deve, porém, guardar em relação a eles suas singularidades. Em que pese a uniformidade de um agrupamento social, esta não detém força sufi ciente para que não se produza testemunho algum fora dela – mas tampouco que se produza testemunhos idênticos. Se tomarmos o caso da escrita, hieroglífi ca ou grafêmica como exemplo, o argumento fi ca transparente: diferentes sociedades desenvolveram esta faculdade, em diferentes lugares, momentos e não necessariamente mediante contato, mas nenhuma delas se operou através do mesmo sistema simbólico. De acordo com Bloch, a crítica deve mover-se entre estes dois extremos: a similitude que justifi ca e a que desacredita. Com esta ressalva, o autor atentava para o fato de que, em que pese inúmeras semelhanças e mesmo a possibilidade da livre inspiração de um documento, imagem ou artefato, com base em um modelo (ou ainda, que tenham bebido na mesma fonte) são muitas as combinações no mundo para que seja possível produzir provas idênticas, sem que por um ato voluntário de imitação. Isto talvez seja mais notável em relação ao campo das artes plásticas, e mais problemático, por exemplo, no tempo presente, em relação ao universo digital. Na velocidade com que a informação se projeta, como atestar de quem é a autoria de dado texto, esboço ou identidade visual? Quem o publicou primeiro? Enfi m, de qualquer maneira, a crítica do testemunhoapoia-se na lógica do semelhante e do dessemelhante, do um e do múltiplo. A título de síntese, temos que a produção de um testemunho deve passar pelo crivo do/a historiador/a em relação ao princípio da contrariedade (se existem outros testemunhos que o invalidem ou questionem), ao princípio da discrepância 34 Linguagem Visual na HistoriograFia (que os testemunhos de um mesmo tipo ou época se parecem, pois a originalidade individual é sempre circunscrita a uma realidade ou contexto) e ao princípio da semelhança limitada (por mais que um conjunto de testemunhos compartam uma gramática, um vocabulário e um estilo, não existem dois testemunhos idênticos). Para amarrar os três princípios, lembremos que todo fenômeno humano é um elo de uma série que atravessa temporalidades. Nenhum homem e nenhuma mulher podem, apenas com a força de seu gênio, substituir gerações inteiras em dado processo ou campo do conhecimento. Em tese, isso signifi ca que se parecem mais os testemunhos de épocas próximas do que dois testemunhos de realidades apartadas temporalmente. Isto fi ca evidente no caso das Ciências Biológicas ou Físicas, por exemplo. Há, em cada sociedade, um “legado” do qual a seguinte se apropria ou rechaça, de acordo com os seus valores e conveniências, mas que faz, de qualquer forma, referência à cadeia anterior, continuando-a ou interrompendo-a. Mas a herança pode, de maneira consciente, ativa ou não, romper-se, já que as sociedades e seu complexo sistema cultural não são imortais. Outra colocação de destaque se refere à necessidade de analisar o documento, mas além dele. Tomemos o exemplo do/a historiador/a da antiguidade. Através da erudição própria do campo, este profi ssional de ofício deve converter- se, para bem fazer o seu trabalho de compreender e interpretar, em especialista na semântica grega antiga, caso trabalhe com escrituras, por exemplo. Neste contexto, as palavras ainda hoje em curso possuíam signifi cados distintos. Não atentar para a sua transformação resultaria em análises anacrônicas, possivelmente, informando sobre valores e experiências que não eram do período analisado, mas sim do nosso tempo. Vejamos um exemplo conhecido. Dentre os conceitos mais polissêmicos do mundo contemporâneo está o de democracia, que para os gregos, conforme narrou Tucídides na obra A Guerra do Peloponeso, designava um sistema de governo que não dependia de poucos, mas da maioria. A etimologia da palavra infere também a um “governo do povo”. Sabemos hoje que a noção de cidadania, que embasava a participação democrática ateniense, muito pouco se assemelha ao seu uso no tempo presente. Como a própria noção de “povo” se modifi cou, ampliando-se cada vez mais no sentido de incorporar a totalidade dos cidadãos – e também de conferir a todos e todas a insígnia da cidadania – a democracia grega (ou ateniense) soa para nós demasiadamente excludente, já que limitava-se a incorporar homens, fi lhos de atenienses e maiores de 21 anos. Seria correto “ler” na forma de governo grega uma falsa democracia, já que, se comparada à nossa, mostra-se não inclusiva? Ou, de outra forma, entender a sociedade ateniense como participativa e igualitária, porque a isso aspira a “nossa” democracia? Parece claro que ambas as proposições são problemáticas e estão equivocadas. 35 HISTÓRIA E LINGUAGEM VISUAL Capítulo 1 Da mesma maneira, uma análise crítica do campo visual prescinde o conhecimento da linguagem visual em seus signos, símbolos e mecanismos de produção de sentidos. Desse empenho saberá o/a historiador/a apreender que um homem sentado expressa, se político ou estadista, o seu entronamento, o exercício de um lugar de poder, o que por sua vez o vincula a uma cadeia de soberanos na qual se incorpora como último elo. Saberá distinguir, igualmente, quando esta posição houver sido uma escolha que informa sobre o seu caráter impassível ou simplesmente buscou encobrir um considerado tipo físico desprivilegiado. Disto só saberá se, para além de conhecer os signos, o/a historiador/a seja profundo conhecedor do período em que tal personalidade foi retratada; das pretensões da pintura em relação a sua memória histórica; dos usos da pintura em dado contexto e da fi nalidade daquela, em específi co; do estilo e das preferências do pintor; da comparação com outras pinturas de mesma temática do período, mas também no conjunto das pinturas do representado etc. Dada a trajetória do estudo das artes pelo saber historiográfi co parece certo afi rmar ser mais profícua a análise de séries de documentos de um mesmo tipo, que pertençam a um mesmo contexto ou temática, do que um artefato singular. Ou, melhor ainda, o cruzamento de documentos de distintos suportes e tipos. Caso contrário, tendemos a adotar o quadro, imagem etc., como um todo signifi cante no conjunto de suas partes. Como pontuamos anteriormente, nem tudo o que compõe uma obra foi logicamente posto nela a fi m de produzir um sentido. Além disso, no caso do campo visual, o estilo e as ideias podem ser dos seus autores, individuais, portanto, mas a “gramática”, a linguagem através da qual se expressa ou produz sentido, é do seu tempo, deixando-se ver melhor em perspectiva comparada. Em História, entretanto, por mais que o/a historiador/a “saiba”, nunca será sufi ciente se não puder convencer o leitor ou leitora do conhecimento produzido. A imperiosa necessidade de demonstrar “como sei o que estou afi rmando”, tornou- se a base do método historiográfi co, como ele vem sendo construído ao longo do século XX. Isto porque o destaque que conferimos às fontes documentais – expresso nas listas de fontes utilizadas, ao fi nal dos trabalhos, na referência a cada um dos arquivos consultados e nas incontáveis notas de rodapé ao longo da narrativa – baseia-se no preceito moral de que os dados possam ser verifi cados e, assim, a consistência das afi rmações que produzimos. Cabe-nos indicar “o mais brevemente possível, sua proveniência, ou seja, o meio de encontrá-lo equivale, sem mais, a se submeter a uma regra universal de probidade” (BLOCH, 2001, p. 94-95). Como medievalista escrevendo no meado do século XX, Bloch nos lega a preocupação com a falsifi cação documental no sentido jurídico do termo. No 36 Linguagem Visual na HistoriograFia caso da História da Arte, essa discussão ainda é bastante viva e, no terreno aberto pelas fontes digitais do tempo presente, ainda mais – vide, por exemplo, as fake news. No entanto, em que pese o resíduo de contingências que nosso exercício jamais poderá eliminar – pequenas dissimulações e conveniências que passam despercebidas por nossos instrumentos de análise – há outros sentidos possíveis para a noção de falso/verdadeiro. Além da questão da veracidade de um documento, imagem, objeto e o que ele informa, o método crítico da ciência histórica enseja fazer o testemunho falar o que não tencionava dizer. Ou seja, o que pode dizer sobre meu problema de investigação dado testemunho, para além do que diz, efetivamente? Isto nos remete ao segundo pressuposto metodológico: o questionário de submissão das fontes. Toda investigação histórica supõe, desde os seus primeiros passos, que a pesquisa já tenha uma direção. Vejamos bem: direção e não resposta. Assim como, se ao nos lançarmos à pesquisa em busca de respostas a uma tese a se confi rmar, analisaríamos o objeto de forma míope, iniciá-la com a atenção aberta, o foco em tudo, à espera de uma questão norteadora também não resultaria em uma investigação honesta. Numa adequação dos conceitos, diríamos que é necessário um problema histórico a guiar o caminho, uma hipótese a ser investigada. Como pontuava nosso guia nesta análise crítica do método historiográfi co, Marc Bloch, até mesmo naqueles testemunhos mais voluntários, que tudo parecem dizer, de cara, temos a necessidade e mesmo o gosto de investigar o que ele nos deixa entender, sem pretender fazê-lo. Quer dizer,