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ESTRUTURAS MORFOLÓGICAS DO PORTUGUÊS LIVRO-BASE: GONÇALVES, Carlos Alexandre. Morfologia. São Paulo: Parábola, 2019. LIVROS COMPLEMENTARES: AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. CAMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. 41. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. HENRIQUES, Cláudio Cezar. Morfologia: estudos lexicais em perspectiva sincrônica. 5. ed. atual. Rio de Janeiro: Alta Books, 2021. KEHDI, Valter. Morfemas do português. São Paulo: Ática, 2004. Morfemas lexicais e gramaticais Os morfemas podem ser divididos em dois grupos principais: os lexicais e os gramaticais. Os primeiros veiculam conteúdo que diz respeito ao universo biossocial, como se vê na sequência a seguir, cujos conteúdos principais são modificados pela ideia constante de presente do subjuntivo: cant-e; estud-e; compr-e, esmagu-e; suj-e. Os conteúdos principais encontram-se nas partes em negrito. Os morfemas gramaticais, por sua vez, dizem respeito a significados que especializam as noções veiculadas pelos lexicais, como é o caso, por exemplo, das informações de número singular, nos nomes, e futuro do pretérito, nos verbos (ou futuro do subjuntivo, como nos exemplos acima). Assim, dá-se o nome genérico de morfema gramatical a todos os formativos que orbitam em torno do lexical. Radical e raiz Damos o nome de radical (ou morfema lexical, ou nuclear) ao elemento originário ou irredutível que concentra a significação dos vocábulos formais. Desse modo, é a partícula comum a todas as palavras da mesma família, ditas cognatas, como camp-, em ‘campo’, ‘acampamento’, ‘campista’, ‘campina’, ‘campestre’, entre outras. Obtém-se o radical eliminando-se todos os demais morfemas gramaticais a ele associados. Assim, radical é a palavra despojada de todas as suas marcas flexionais e derivacionais, como garot-, forma a que se chega extraindo-se as marcas de diminutivo, feminino e plural de ‘garotinhas’. Em geral, o termo raiz está associado a uma perspectiva diacrônica, razão por que devemos evitar essa designação, embora alguns autores a usem no mesmo sentido de radical ou, então, fazem uma distinção que não diz respeito à diacronia. Na perspectiva da diacronia, deveríamos buscar a raiz no étimo da palavra. Por exemplo, a palavra ‘rival’ etimologicamente remete à noção de “rio” e apresenta a raiz latina riv-, do latim rivus. Hoje, o radical é, sem dúvida alguma, ‘rival’, porque essa forma sequer é um adjetivo e está longe de ser interpretada como “relativo ao rio”, como acontece nos adjetivos X-al, conforme os exemplos a seguir: ‘abdominal, estomacal, mortal, filial, vital, dental’. Em todas essas palavras, o radical pode ser isolado com a retirada de -al, o que não acontece com ‘rival’, hoje indecomponível. Vogal temática e tema A vogal temática, ao lado do radical, será, na língua portuguesa, o elemento indicador do tema, permitindo a imediata inserção dos elementos derivacionais ou flexionais. Nos verbos, tais vogais são bem nítidas, caracterizando-se como os morfemas indicadores das três conjugações (cantAr, vendEr, partIr). O verbo irregular ‘pôr’ e seus derivados pertencem à segunda conjugação. No português arcaico, apresentava-se como ‘poer’. Reminiscência dessa forma arcaica é o adjetivo ‘poente’. Além disso, na própria conjugação dos verbos em -or, encontramos a vogal que caracteriza a segunda conjugação: ‘supõEs’, imporEs’, ‘repusEr’, ‘transpusEsse’, ‘expusEra’. Nos nomes, apesar de vermos normalmente referência também a três vogais temáticas (-a, -e e -o átonas finais), há quem prefira não as incluir, justamente por não ser possível, como nos verbos, formalizar distinções entre três grupos, determinando assim seu papel gramatical, ou seja, ao lado do radical, formar o tema. Não há acordo entre os linguistas quanto à inclusão das vogais temáticas entre os morfemas nominais. Alguns, entre os quais Bechara, preferem usar a denominação atualizador lexical. Vogais temáticas nominais (ou atualizadores lexicais) As vogais temáticas nominais têm muitas diferenças em relação às VTs verbais, que são elementos morfológicos com função de distribuir as palavras de uma dada classe em grupos formais bem definidos, como as conjugações (primeira, segunda e terceira). As VTs nominais do português, ao contrário das existentes em línguas como o latim e o grego, não definem declinações, pois não constituem variações dos nomes correspondentes ao diversos casos, de acordo com a função sintática na frase. Em português, sequer são componentes obrigatórios, pois há vários nomes atemáticos, como nos exemplos: anel, ímpar, luz, caqui, sofá, glacê, maçã, ímã, totem, rei, pai, céu. Depreende-se desses exemplos que são temáticas apenas as palavras terminadas em vogal átona e oral. Os nomes, assim, dividem-se em temáticos (com VT) e atemáticos. Substantivos e adjetivos terminados em vogal tônica, semivogal ou consoante, como ‘cajá’, ‘pai’ e ‘mar’ são desprovidos de VT. Os atualizadores lexicais têm a função de completar a palavra, fazendo com que radicais presos se transformem em livres. Por esse motivo, radicais livres dispensam esse constituinte. VTs nominais e gênero Os atualizadores lexicais -a e -o exercem uma função secundária: a categorização da palavra quanto ao gênero. Ao contrário das formas terminadas em -e, que não apresentam correlação direta com as especificações masculino ou feminino, as formas em -o são quase categoricamente masculinas e as em -a, maciçamente femininas. Excetuando-se as formas oriundas de encurtamento (como ‘foto’, ‘moto’, ‘expo’ e ‘rádio’) e as seguintes abaixo, a associação entre a vogal -o e o gênero masculino é inteiramente previsível: a tribo, libido, virago, soprano, imago. Também é previsível a relação entre a vogal final -a e gênero feminino, mas, nesse caso, os contraexemplos são um pouco mais numerosos. Vejamos os seguintes casos: (a) casos em que essa vogal faz parte de um sufixo erudito formador de nomes femininos: -ema: o morfema, fonema, lexema, grafema -oma: o carcinoma, genoma, leucoma, fibroma -eta: o planeta, gameta, cometa, profeta, poeta VTs nominais e gênero (b) palavras complexas terminadas em formativos como -grama e -cida: o cardiograma, fluxograma, espectograma / o inseticida, pesticida, raticida, germicida (c) palavras complexas terminadas em formativos como -ista e -nauta, que apresentam oposição sintática de gênero, não sendo inerentemente femininas ou masculinas: o/a marxista, linguista, skatista, kardecista / o/a astronauta, aeronauta, internauta (d) palavras simples terminadas em -a, mas comum de dois, isto é, sem gênero inerente, assim como as anteriores: o/a colega, sovina, careca, coringa, camarada (e) nomes – a maioria de origem grega – contendo terminações não morfêmicas em que o a é precedido da nasal labial /m/: o drama, trauma, trema, problema, dogma, panorama, sistema, poema, clima, estigma, magma, esperma, programa (do grego) o azáfama, carma, brama (de outras línguas) VTs nominais e gênero Como se vê, a lista de casos excepcionais se reduz, restringindo-se apenas a nomes como os a seguir listados, em que a palavra termina em a, mas não remete ao gênero feminino: o mapa, papa, dia, gorila Por outro lado, o gênero não constitui propriedade gramatical determinada pela vogal final (atualizador léxico), uma vez que formas atemáticas também portam essa informação (‘o anel’, ‘a romã’; ‘o/a mártir’). Nesse sentido, pode-se considerar secundária a atribuição de gênero dos atualizadores lexicais a e o. As formas em -e ficam de fora, por não possibilitarem qualquer inferência quanto ao gênero dos nomes, sendo, por isso mesmo, de natureza mais idiossincrática: femininos: ponte, sorte, fonte, peste masculinos: pente, porte, bonde, poste VTs verbais Como vimos, as VTs verbais distinguem os três grandes conjuntosde verbos. As chamadas conjugações constituem disposições sistemáticas das formas flexionadas de um verbo (C1 com vogal a; C2 com vogal e; C3 com vogal i). Uma diferença formal entre as conjugações verbais, determinadas pelas VTs, é a irregularidade, muito mais presente na C2 e na C3. Os verbos da C1 são mais regulares. De fato, verbos irregulares, como ‘trazer’, ‘caber’, ‘sentir’ e ‘dormir’, que apresentam mais de uma forma de raiz (‘trago’, ‘coube’, ‘sinto’, ‘durmo’), pertencem à C2 ou à C3. Além disso C2 e C3 podem se envolver num fenômeno chamado de neutralização, que consiste na perda de contraste gramatical, como acontece no presente do subjuntivo e no imperfeito do indicativo: C1: cant-e, cant-a-va C2: vend-a, vend-ia, C3: part-a, part-ia VTs verbais No particípio passado, o contraste também ocorre apenas entre ado e ido: cantado, vendido, partido. Todo verbo apresenta VT, ainda que ela possa não se manifestar foneticamente. A primeira pessoa do presente do indicativo e todas as formas do presente do subjuntivo não exibem esse constituinte, por conta de uma regra fonológica de apagamento na fronteira com o elemento seguinte, uma marca flexional também expressa por vogal: cant+(a)+o vende+(e)+o part+(i)+o cant+(a)+e vende+(e)+a part+(i)+a Nesses casos, o uso dos parênteses indica que a VT só não se atualiza porque foi apagada. Não constitui propriamente um zero, pois só não se manifesta por questões de natureza fonotática (distribuição dos segmentos sonoros na cadeia fônica). Diferenças entre VTs nominais e VTs verbais VT verbal VT nominal obrigatoriedade obrigatória não obrigatória posição na palavra medial final acento tônicas ou átonas sempre átonas função distribuir os verbos em classes completar a palavra unidades estatuto nas derivações cantaremos, venderemos, partiremos sempre utilizada nas formações deverbais: anular > anulação; reger > regência; preferir > preferível casa, tomate, livro não utilizada nas formações denominais: casa > caseiro; tomate > tomatal; livro > livraria Afixos São unidades que se juntam ao radical para formar novas palavras; são partículas regidas por restrições posicionais, aparecendo em posição predeterminada na estrutura das palavras, vindo daí os vários tipos encontrados nas línguas do mundo: prefixo, sufixo, infixo, circunfixo, transfixo, suprafixo, interfixo, confixo. Veremos somente os que ocorrem na estrutura morfológica do português. O prefixo é a forma que aparece antes da base, como em ‘pré-pago’ e sufixo, o elemento anexado após esse constituinte, como ‘dol-eiro’. Mais adiante, falaremos das outras várias diferenças entre esses dois principais afixos do português. O circunfixo, bastante usual nas línguas germânicas, é um tipo de afixo que “cerca” a palavra, ou seja, é um afixo com duas partes: uma colocada no início da palavra e outra no seu final. Em português, os casos envolvem a adição simultânea de uma forma de prefixo e outra de sufixo para efeitos de alteração categorial (um adjetivo passa a verbo) e expressão do significado “mudança de estado” (“tornar-se X”): entristecer, envelhecer, ensurdecer etc. Afixos Os suprafixos são afixos de natureza prosódica, como o acento nos pares ‘fábrica/fabrica’, ‘íntimo/intimo’ e ‘cúmulo/cumulo’, entre tantos outros. Nesses pares, o acento determina a classe a que a palavra pertence, se nome (proparoxítono) ou verbo (paroxítono). Mais adiante, voltaremos ao assunto. Interfixos são elementos relacionais que aparecem entre duas unidades morfológicas, como será detalhado mais à frente, quando abordarmos as vogais e consoantes de ligação. O termo confixo remete a um formativo caracterizado por oscilação posicional, podendo ocorrer tanto na margem esquerda quanto na margem direita de uma palavra complexa, a exemplo de fono-, que, como se vê nos dados a seguir, pode expressar diferentes significados relacionados à noção genérica de “som”: Borda esquerda: fonoteca, fonética, foniatria, fonologia Borda direita: francófono, lusófono, telefone, acrofonia Diferenças entre prefixo e sufixo Mudança de classe Prefixos não determinam a categoria lexical da palavra complexa que formam, ou seja, são categorialmente neutros: [re[pensar]V]V [des[crente]Adj]Adj [pré[vestibular]S]S A sufixação, ao contrário, pode promover mudanças variadas de classe: V ➝ S Adj ➝ S V ➝ Adj S ➝ Adj S, Adj ➝ V Adj ➝ Adv -mento -tório -ice -idade -vel -nte -ense -ar -izar -escer -mente merecimento esquisitice gerenciável canadense agilizar felizmente lavatório lealdade estafante hospitalar florescer certamente Diferenças entre prefixo e sufixo Essas são tendências gerais. Mas há casos em que os sufixos não mudam classes: [[jornal] ista], [[gord] inho], [[papel] ada], entre outros. Por outro lado, casos de alteração categorial em formas prefixadas são muito raros: [a [moral]S]Adj; [anti [rugas]S]Adj. Especificação de gênero Ao contrário dos prefixos, os sufixos quase sempre determinam o gênero da palavra resultante. Por sua posição à esquerda, prefixos jamais respondem por esse tipo de informação. Exemplos: Femininos: abolição (sufixo -ção); delegacia (sufixo -ia); tolice (sufixo -ice) Masculinos: ferimento (sufixo -mento); fichário (sufixo -ário); escritório (sufixo -tório); Diferenças entre prefixo e sufixo Elaboração de paráfrases Os sufixos constituem a peça-chave na interpretação de uma palavra. Por exemplo, na paráfrase de uma forma sufixada, o significado do sufixo geralmente é colocado em primeiro plano, equivalendo ao de um substantivo. Prefixos, ao contrário, são modificadores, pois são sempre parafraseáveis por advérbios e adjetivos: dentista - profissional que cuida dos dentes martelada - golpe dado com o martelo paraense - indivíduo nascido no estado do Pará refazer - fazer novamente sobrepeso - peso a mais megashow - grande show Diferenças entre prefixo e sufixo Bases a que se adjungem Outra diferença entre prefixos e sufixos diz respeito à variável lexical que selecionam. Prefixos combinam-se com palavras e, por isso mesmo, são menos aderentes, podendo ser retirados sem resultar numa forma presa. Sufixos denominais, por sua vez, agregam-se predominantemente a radicais. Desse modo, a retirada do sufixo resulta numa forma presa: in-feliz des-leal a-normal pré-teste sub-gerente apit-aço bel-eza paraib-ano paul-ista tim-inho Expressividade Prefixos se caracterizam pela falta de função expressiva de avaliação. A sufixação, ao contrário, pode externar juízos de valor e sinalizar impressões subjetivas do falante, como ocorre, por exemplo, nas formações ‘livreco’, ‘gentinha’, ‘velhota’ e ‘peçonhento’. Impressões positivas são também encontradas na sufixação: ‘apartamentaço’ e ‘carrão’ qualificam os referentes (entidade referida). Na prefixação, há casos de gradação intensiva, expressos por elementos como super-, mega-, ultra- e hiper-, que são casos também de modalização apreciativa. Há também formações como ‘desgoverno’, em que o falante põe em xeque a eficiência do administrador público, mas de modo geral, prefixos, por terem significados mais gramaticais, não têm essa função modalizadora. Diferenças entre prefixo e sufixo Projeção de palavras prosódicas Do ponto de vista fonológico, a maior parte dos prefixos projeta palavra prosódica independente, fazendo com que a construção morfológica resultante se realize sob dois acentos. À exceção de in-, des- e re-, prefixos fonologicamente funcionam como palavras autônomas, isto é, portam acento próprio. Para a representação dos graus de acento em português, eles têm sílaba com grau 2: pré-vestibular pró-reitor submundo 2 1 1 1 3 2 1 3 2 3 0 Ao contrário, a maior parte dos sufixos não projeta palavras prosódicas independentes, realizando-se, com a base a que se anexam, sob um único acento: malandragem certeza 1 1 3 0 1 3 0 Diferenças entreprefixo e sufixo Possibilidade de truncamento A possibilidade de determinados prefixos comportarem-se como formas livres pelo processo de truncamento (encurtamento em que uma parte da palavra vale pelo todo) decorre da diferença prosódica. A depender do contexto de uso, eles podem ser empregados isoladamente: Já estou quase terminando a pós. Maria reatou com o ex. Minha vice é excelente. Consegui comprar meu micro. Meu time agora é tri. O professor agora é meu co. Sufixos não se submetem ao truncamento. Ao que tudo indica, o único que é forte o suficiente para atuar como forma livre é -ismo, no plural: “Comunismo, epicurismo, estoicismo, cristianismo, historicismo, capitalismo, socialismo, imperialismo, marxismo etc. são alguns dos inúmeros ‘ismos’ das ciências sociais”. Diferenças entre prefixo e sufixo Equivalência sintático-semântica Do ponto de vista semântico, prefixos assemelham-se a adjetivos, já que contribuem para qualificar/caracterizar, como em ‘subumano’, ‘minimercado’, ‘ex-mulher’ e ‘megaempreendimento’; advérbios, pois servem para expressar a circunstância que cerca a significação da base, aqui entendida como qualquer particularidade que determina um fato, ampliando a informação nele contida, como em ‘recompor’, ‘antessala’, ‘pré-natal’, e ‘pós-operatório’; e preposições, por emprestarem à base a ideia de posição ou movimento no espaço:’sobreloja’, ‘entressafra’, ‘coautoria’, ‘intravenoso’. Noções como “posição ou movimento no espaço”, “ausência, negação”, “oposição”, “intensidade” e “repetição”, típicas dos prefixos, diferem consideravelmente das veiculadas pelos sufixos, que, embora também possam atualizar conteúdos desse tipo, são mais densos semanticamente: expressam noções como “profissão” (‘vitrinista’), “instrumento” (‘batedeira’), “local” (‘borboletário’), “nacionalidade” (‘francês’), “apreciador” (‘cervejeiro’), “ato ou efeito” (‘anulação’) e, até mesmo, “prato culinário” (‘feijoada’). Equivalem em termos semânticos a substantivos. Os afixos de uma língua têm duas funções bem diferentes. A primeira é participar da formação de novas palavras. Os afixos que fazem isso são chamados derivacionais, como nos exemplos vistos. O outro tipo de afixo, que não participa da formação de palavras, é chamado flexional e recebe o nome mais clássico de desinência. Desinências As desinências indicam as flexões que nomes e verbos podem apresentar e se subdividem em dois tipos: as desinências nominais marcam o gênero e o número das palavras que apresentam essas variações, como em ‘prim-a-s’, que exibe a marca gênero feminino e a de número plural. As desinências verbais correspondem às variações de tempo (presente, pretérito, futuro) e modo (indicativo, subjuntivo e imperativo), de um lado, e de número (singular, plural) e pessoa (1ª, 2ª e 3ª), de outro, como em ‘list-e-mos’, em que o -e manifesta a ideia de presente do subjuntivo e -omos a de 1ª pessoa do plural (P4). Uma primeira diferença entre desinências nominais e verbais é o fenômeno da cumulação, típico das flexões verbais, quando uma forma una comporta mais de um significado. Toda a flexão verbal do português é marcada pela presença de elementos cumulativos, uma vez que a informação temporal se superpõe à de modo e aspecto, da mesma forma que a de pessoa aparece fundida com a de número. Um elemento como va, por exemplo, expressa a noção de “pretérito imperfeito do indicativo”, referindo-se a um fato ocorrido no passado (tempo pretérito), mas não completamente terminado, dando ideia de continuidade e de duração (aspecto imperfectivo). Simultaneamente, também expressa o modo indicativo, pois é usado para transmitir um acontecimento certo e real, em oposição a algo incerto ou desejável (como é o caso do subjuntivo). Zeros morfológicos Trata-se de uma unidade semântica que não se expressa fonologicamente na palavra. O morfema Ø é uma forma depreendida a partir do contraste com formas abertas, ou seja, que se manifestam fonologicamente. Em português, são detectados Øs nas formas de masculino e singular nos nomes e nas formas de presente do indicativo e 3ª pessoa do singular (P3), nos verbos. Assim, palavras como ‘carro’ e ‘cantamos’ apresentam Øs porque não se valem de formas abertas para representar, nesta ordem, as categorias gramaticais SINGULAR e PRESENTE DO INDICATIVO. Há, nessas palavras, conteúdos que não se materializam fonologicamente, o que sugere a existência de vazios significativos (ausências que atualizam conteúdos). Em linhas gerais, Øs são empregados para caracterizar unidades de flexão, as chamadas desinências, sendo postulados para representar elementos não marcados de determinada categoria linguística. Quando dizemos que uma forma é não marcada, significa ser este o caso mais comum e esperado. Entende-se como marcado algo que é menos geral e, por isso mesmo, mais relevado. Zeros morfológicos Øs atualizam categorias gramaticais conceitualmente mais neutras. Por exemplo, pode-se usar o presente com valor de passado ou de futuro, como nos exemplos: No décimo corte consecutivo, Copom baixa juro básico para 7% ao ano. Vence no próximo mês o prazo estipulado para que a concessionária universalize o abastecimento de água. Nas duas notícias, foi empregado o presente do indicativo, mas a primeira faz referência a algo que já aconteceu (trata-se de um “presente histórico”) e a segunda, a algo que ainda está por vir (futuro). Por ser o marco zero da enunciação e por ser desprovido de marca morfológica, o presente do indicativo é uma espécie de coringa, encerrando bem menos a ideia de tempo que, por exemplo, o imperfeito do indicativo (‘falava’) ou o futuro do pretérito (‘falaria’), caracterizados pelas desinências va e ria. Também o masculino é uma forma menos marcada na língua. Se uma forma recebe marca do feminino, descarta-se a possibilidade de referência ao masculino. O termo ‘alunas’, por exemplo, cobre apenas as mulheres de uma classe. Já uma forma no masculino não implica, obrigatoriamente, alusão a indivíduos do sexo masculino: o termo ‘alunos’ pode abranger os homens e as mulheres de uma turma. Zeros morfológicos O masculino é também usado como o termo genérico que engloba os dois gêneros. ‘Todos’ inclui homens e mulheres; ‘todas’ só inclui as mulheres. Em muitas línguas, o gênero não marcado é o masculino, e “isso não significa uma relação de poder do homem sobre a mulher” (Gonçalves está citando um artigo de opinião publicado em um jornal de Porto Alegre em 2015). Mattoso Camara Jr., no livro Estrutura da língua portuguesa (cf. bibliografia), propõe uma descrição que destoa de algumas gramáticas tradicionais: a ideia de um masculino em Ø (não marcado), em contraste com um feminino em -a (marcado), numa oposição semelhante à de número, em que um -s de plural se opõe à sua ausência no singular (Ø). O principal argumento de que Mattoso se vale na defesa do Ø de masculino é o seguinte: não se deve considerar -o uma desinência, pois esse raciocínio levaria o -e a ser igualmente interpretado como tal, em casos como ‘mestre’ e ‘monge’, que se opõem a ‘mestra’ e ‘monja’. Isso sem contar os diversos pares em que o -a de feminino já contrasta com sua ausência (‘juiz’/’juíza’; ‘cantor’/’cantora’; ‘peru’/’perua’). Zeros morfológicos Se é fácil associar -o a masculino, o mesmo não se dá com -e. Nesse caso, a vogal final das formas masculinas é interpretada como temática (atualizador lexical), tendo o -o de ‘primo’ e o -e de ‘monge’ o mesmo estatuto morfológico. Resumindo, aparecem os Øs em português para representar as seguintes categorias gramaticais: gênero masculino, número singular; presente do indicativo; terceira pessoa do singular; pretérito perfeito do indicativo (à exceção de P6); primeira pessoa do singular (à exceção do presente do indicativo, pretérito perfeito e futuro do presente). Com exceção do gênero masculino, nos outros casos, a postulação de zerosé bastante consensual. Muitos autores, como Kehdi, no livro Morfemas do português (cf. bibliografia), optam por analisar -o como desinência de gênero. De fato, falantes tendem a estabelecer conexão entre construções em -o e gênero masculino. Como observa Kehdi, há na linguagem popular espontânea criações que opõem formas masculinas em -o a outras em a originalmente femininas: “corujo, crianço, madrasto, coiso”. Zeros morfológicos Outro argumento de Khedi é que quando se acrescenta a uma forma feminina uma terminação que contenha -o, essa palavra passa a masculina. Ex: mulher/mulheraço; cabeça/cabeçalho. Para esse autor o Ø é uma variante (alomorfe) da desinência -o em casos como peru/perua e autor/autora. Henriques (cf. bibliografia), considerando que há uma grande divergência entre os autores quanto a essa identificação, faz um levantamento entre os que têm uma “posição contra a marca desinencial de masculino” e que têm uma “posição a favor da marca desinencial de masculino”. Entre os primeiros, a posição pode ser assim resumida: o masculino e o singular em português caracterizam-se pela ausência de marca, isto é, por um morfema Ø. Entre os segundos, a posição pode ser assim resumida: desinências nominais são: gênero masculino -o, gênero feminino -a. Para esses autores, o caso de nomes masculinos não marcados pelo -o apresenta uma variante Ø, como em ‘chinês’. Zeros morfológicos Henriques alinha-se entre os segundos e propõe o seguinte padrão: Entretanto, Gonçalves [autor do texto-base que estamos seguindo] opta pela representação do masculino como não marcada, embora reconheça a forte conexão entre o -o e o gênero masculino. Mantém a ideia de Ø como desinência do masculino, assumindo que a flexão nominal como um todo envolve oposição do tipo privativa (caracterizada pelo contraste entre presença e ausência de marca). Terminação Oposição de gênero Análise -a (átono) existe DG -a (átono) não existe VT -e (átono) (irrelevante) VT -o (átono) existe DG -o (átono) não existe VT Zeros morfológicos Como os Øs se manifestam no contraste entre formas linguísticas, nomes podem exibir dois desses elementos, caso haja oposição entre masculino/feminino, de um lado, e singular/plural, de outro. Tal é o caso, por exemplo, de ‘peru’, ‘primo’ e ‘monge’, morfologicamente analisadas como peru+Ø+Ø, prim-o+Ø+Ø e mong-e+Ø+Ø. Quando não há contraste de gênero, o nome apresenta só o Ø de singular, como ‘árvore’, ‘prato’ e ‘véu’ (árvor-e+Ø, prat-o+Ø e véu+Ø). Do mesmo modo, formas verbais também podem apresentar dois zeros, como é o caso de ‘vende’ (pres. ind.), segmentada como vend-e+Ø+Ø. No caso de ‘venda’ (pres. subj.), a segmentação é vend+(e)+a+Ø. Não pode haver zero na posição de VT simplesmente porque o Ø é uma ausência significativa. VTs, como vimos, são unidades desprovidas de conteúdo (assemânticas). Elementos não morfêmicos Se, por um lado, unidades de conteúdo podem não ser representadas fonologicamente, como é o caso dos Øs morfológicos, por outro, sequências fônicas segmentáveis podem não ser associadas a unidades de conteúdo. Tem-se, nessa situação, o que se pode chamar de elementos não morfêmicos. Quando dividimos as palavras em morfes, muitas vezes despontam elementos de expressão que não satisfazem uma ou mais condições necessárias à noção de morfema. São unidades caracterizadas pela falta de conteúdo e pela não recorrência. São entidades de vários tipos. Vogais e consoantes de ligação Essa classe de elementos, tradicionalmente chamados de interfixos, vem representados por segmentos fônicos que entram em determinados contextos para possibilitar junturas, de acordo com os padrões sonoros da língua. Interfixos têm caráter meramente formal, já que surgem por imposições de natureza fonológica. São semanticamente nulas. Elementos não morfêmicos Há análises que não consideram isoláveis constituintes dessa natureza, interpretando-os como parte do elemento precedente ou subsequente. Por exemplo, pode-se pensar na sequência -al como sufixo responsável pela noção de “lugar em que se concentram plantações de X”, como ocorre em ‘pessegal’, ‘laranjal’ e ‘coqueiral’. Em ‘cafezal’, ‘capinzal’ e ‘manguezal’, pode-se pensar na existência de um -z- como uma espécie de ponto (ou “cola morfológica”) entre as bases e o sufixo -al. Também é possível admitir a alternância entre as formas variantes -al e -zal na manifestação desse morfema. A primeira análise parece mais vantajosa porque o elemento epentético (consoante inserida), embora desprovido de significado, é recorrente na língua, aparecendo junto a outros sufixos, como -ão, -ete, -eiro e -inho, entre outros: anelzão, paizão, peruzão; neymarzete, luanzete, kakazete; ingazeiro, açaizeiro, cacauzeiro; jejunzinho, cafezinho, maçãzinha. A presença do -z- serve para impedir a adjacência vocálica e, consequentemente, minimizar o aparecimento de hiatos. Os elementos relacionais encontrados nas formas do português são -z- e -d-, considerados as consoantes epentéticas por excelência. A primeira aparece em formações denominais (‘cafezinho’, ‘cafezal’) e a segunda, em formações deverbais (‘escorregador’, ‘escorregadio’), que, como vimos, valem-se de temas para formar novas palavras. Elementos não morfêmicos A título de exemplificação, as formas a seguir apresentam conteúdo de instrumento, mas são terminadas em -eira, -zeira e -deira: iogurteira cuscuzeira batedeira inhoqueira arrozeira descascadeira omeleteira guizeira escarradeira licoreira pozeira fritadeira vaporeira pãozeira frigideira É mais tentadora a ideia de estarmos diante de um único sufixo e de duas diferentes colas morfológicas (Z e D) com a mesma função fonológica: organizar melhor os segmentos em sílabas, evitando hiatos, por exemplo. Outros casos são considerados resíduos históricos, como consoantes de ligação que ocorrem em palavras isoladas, como ‘cafeteira’, que pode ter sido criada por analogia com leiteira, em que o /t/ é parte do radical ‘leite’. No exemplo de ‘paulada’, a presença do -l- pode ter sido motivada pela adjacência com a semivogal posterior /w/ na base, para melhor eufonia. Elementos não morfêmicos Hápax afixais O termo grego hápax faz referência a uma palavra com uma única abonação nos registros da língua. Corresponde a elementos formais não recorrentes e confere à palavra complexa sentido exclusivo, específico e não previsível. Hápax afixais constam de palavras nas quais a segmentação é possível graças à alta transparência das bases, vinculadas a uma forma livre no curso da língua. Tal é o caso de ‘bebum’, em que a sequência final -um, apesar de interpretável não é propriamente um sufixo, por ser de uso exclusivo dessa formação. Nos exemplos a seguir, as bases são transparentes, embora os elementos a que elas se adjungem não sejam recorrentes: casebre felizardo corpanzil fogaréu longínquo pelanca boliche carnaval colorau espantalho peitoril riacho bocarra copázio pedregulho Elementos não morfêmicos Unidades expletivas Há determinadas formas que aparecem no interior do vocábulo sem qualquer motivação fonológica e sem atualizar significado algum. Tal é o caso da vogal a em advérbios como ‘amplamente’ e ‘historicamente’, pois não tem sentido classificá-la como marca do feminino num vocábulo invariável (caso dos advérbios). Ainda mais que, nesse caso, seria uma flexão supérflua, colocada antes da derivação. Tal também é o caso da presença das primitivas vogais temáticas em formações deverbais: -a- (‘implicância’, ‘retomada’); -e- (‘atendente’, ‘lambeção’); e -i- (‘conferível’, ‘discernimento’). São elementos formais que não são considerados do ponto de vista do significado, embora sejam formalmente obrigatórios e indispensáveis. Em ‘impetuoso”, ‘usual’ e ‘vestiário’, as vogais antepostas aos sufixos -oso, -al e -ário finalizamos temas das palavras primitivas ‘ímpeto’, ‘uso’ e ‘vestir’. Por razões variadas, acabaram sendo incorporadas à palavra derivada, sobrando quando efetuada a segmentação: impet-u-oso; us-u-al; vest-i-ário. Elementos não morfêmicos Há casos em que a segmentação deixa uma sequência residual não correspondente a qualquer instância de significado. Por exemplo, quando aplicamos a técnica da comutação às formas abaixo: agilizar hostilizar oficializar finalizar colonizar banalizar claramente reconhecemos o sufixo -izar como formador de verbos a partir de adjetivos com o sentido de “tornar, fazer, transformar”. Esse mesmo significado se manifesta em verbos como ‘neutralizar’ (‘ficar neutro”) e ‘ridicularizar’ (“tornar ridículo”). Nessas construções, no entanto, sobra uma sequência inteira que não é interpretável: -al-, no primeiro caso, e -ar-, no segundo. Nos dados a seguir, aparecem várias sequência expletivas. Nessas palavras, as bases e os sufixos, isto é, as formas realmente recorrentes, são grafadas em negrito: mat-ag-al fri-or-ento beb-err-ão sab-ich-ão temp-or-al dorm-inh-oco son-ol-ento peg-aj-oso temp-or-ário com-il-ão milh-ar-al corp-ór-eo Processos morfológicos não concatenativos As operações não concenativas são caracterizadas pela falta de linearidade, isto é, quando há uma informação morfológica que não se dá pela adição. Mutação vocálica Em português, há mudanças na qualidade da vogal, que aparece, por exemplo, na flexão nominal. Nos pares ‘av[o]’ e ‘av[ɔ]’ (e seus derivados), temos uma alternância morfêmica que carrega informação de gênero. Nesse caso, há uma única raiz, que não pode ser segmentada. Há outros casos de flexão nominal em que a abertura acompanha outra marca morfológica e não se apresenta como principal vetor da informação morfológica. Por exemplo, em ‘p[o]rco’; ‘p[ɔ]rca’ e ‘p[ɔ]rcos’, há uma marca aditiva específica, ou seja, concatenativa, que, por si só, expressa o morfema de feminino e o morfema de plural, além da mutação vocálica, que funciona como informação secundária, ou submorfema. Essa mudança na qualidade da vogal se encontra em um número restrito de palavras, o que pode sugerir a não regularidade do padrão: grosso > grossa, grossos; ovo > ova, ovos; novo > nova, novos. Processos morfológicos não concatenativos Há, no entanto, uma situação em que a mutação vocálica é previsível e sistemática, tanto para o plural quanto para o feminino. Trata-se do sufixo de origem latina -oso, que forma adjetivos a partir de substantivos: saboroso > saborosa, saborosos; bondoso > bondosa, bondosos. Radicais também podem se modificar para expressar a categoria sintática da palavra. É o que acontece na sistemática oposição de classes a seguir, em que o nome é sempre caracterizado pela vogal média fechada [o, e], em oposição à forma verbal, representada pela média aberta [ɔ, ɛ]: o esf[o]rço / eu esf[ɔ]orço o tr[o]co / eu tr[ɔ]co o ap[e]lo / eu ap[ɛ]lo o ap[e]rto / eu ap[ɛ]rto O falante, ciente desse padrão, contraria a norma e pronuncia aberta as vogais tônicas de, por exemplo, ‘espelho’ (“me esp[ɛ]lho muito em Fulano”); ‘veleja” (“Fulano vel[ɛ]ja pela baía”) e ‘fecho’ (“eu f[ɛ]cho o vestido”). Do mesmo modo, as monotongações a seguir levam a diferentes vogais, caso o item em questão seja um nome ou uma forma verbal: o roubo do jogo / eu roubo no jogo o estouro da bola / eu estouro a bola Como se vê nos exemplos mais acima, a mutação vocálica na flexão verbal está relacionada à manifestação do presente. Há outros casos de mutação vocálica relativos à manifestação de número e pessoa na conjugação verbal. Processos morfológicos não concatenativos Mutação consonantal Nos verbos, a mudança na pronúncia de consoantes (de ponto, modo de articulação e/ou vozeamento) também está a serviço da informação de tempo presente. Na C2, verbos como ‘perder’, ‘poder’, ‘dizer’, ‘fazer’ e ‘trazer’ têm uma forma de raiz que informa a P1 do presente do indicativo e, por conseguinte, o presente do subjuntivo. A consoante da raiz funciona como submorfema da informação gramatical: perc- (de perder): eu perco, que ele perca poss- (de poder): eu posso, que nós possamos dig- (de dizer): eu digo, que tu digas faç- (de fazer): eu faço, que eu faça trag- (de trazer): eu trago, que vós tragais Processos morfológicos não concatenativos Suprafixos Em português, os chamados suprafixos (que se manifestam prosodicamente) servem para expressar diferenças de tempo e mudanças de classe. A oposição entre futuro do presente e pretérito-mais-do-que-perfeito, como em ‘cantará’ vs. ‘cantara’, evidencia que a informação quanto ao acento deve estar contida no formativo -ra: se átono ou tônico. Nos pares abaixo, que opõem formas verbais a nomes deverbais, o acento sinaliza a categoria sintática da palavra: o verbo é paroxítono, em oposição ao nome, sempre proparoxítono: calculo / cálculo duvida/ dúvida pratica/prática vinculo/vínculo Por essa razão, o falante – que domina os padrões linguísticos muito mais do que imagina –, contrariando a norma, diz, por exemplo, que irá apor sua “rúbrica” no documento. Desse modo, ele regulariza uma palavra anômala. Pares verbo/nome podem diferir pelo acento e pela qualidade vocálica (timbre). Nesses casos, o acento constitui informação morfológica primária (indicação da classe a que a palavra pertence), enquanto a mudança de timbre é o submorfema (informação secundária): negocio/negócio; rotulo/rótulo; formula/fórmula; historia/história Alomorfia Entendida como fenômeno de variação na conformação física de morfemas, a alomorfia ocorre quando um mesmo significado se manifesta por formas foneticamente diferentes. Não deve, portanto, ser confundida com modificações de natureza ortográfica, como em ‘trancar’/’tranquei’, par em que não ocorre alomorfia, pois é a representação gráfica de /k/ diante de vogais anteriores. Nesse caso, a forma fonética do radical não sofre nenhum tipo de modificação, já que não há qualquer alteração na pronúncia. O mesmo pode ser dito em relação aos diversos modos de se grafar o sufixo formador de substantivos a partir de verbos, cuja pronúncia, nos exemplos a seguir, é sempre a mesma: anulação concessão imersão produção transgressão expansão rendição regressão extorsão Alomorfia Nos exemplos a seguir, por outro lado, a variação é de natureza sonora, o que configura alomorfia: invasão, alusão, decisão, divisão, adesão, ilusão. Há variação fonética em praticamente todos os tipos morfológicos: prefixos, bases nominais e verbais, sufixos, desinências verbais, flexões nominais de gênero e de número. Os dados a seguir demonstram alomorfia em radicais: vida/vital/vitalício/vidinha; cabe/coube/caibo/cabemos. Muitas palavras derivadas preservam a forma de raiz importada diretamente do latim no Renascimento (sécs. XIV-XVI), incorporada à língua sem sofrer os processos fonológicos por que passaram as formas mais antigas, como a sonorização de surdas intervocálicas, como em uitam, em latim, para ‘vida’, em português. Essa situação é abundante na formação de adjetivos a partir de substantivos, o que se observa com vários sufixos: -ino, -do, -udo, -eo, -ense, -ário e -al: touro>taurino árvore>arborizado nariz>narigudo pedra>pétreo Portugal>portucalense ordem>ordinário estado>estatal estômago>estomacal fruta>frugal Alomorfia Nos exemplos ‘cabe/coube/caibo/cabemos’, a raiz verbal apresenta três diferentes formas: cab-, coub- e caib-, resultando na fusão do conteúdo lexical CABER com conteúdos gramaticais de tempo-modo-aspecto. A forma caib-, por exemplo, associa-se diretamente à primeira pessoa do singular (P1) no presente do indicativo e, por conseguinte, ao presente do subjuntivo, pois esse tempo deriva diretamente da P1 do presentedo indicativo, como se vê, também, nos seguintes casos: MEDIR eu meço meça, meças, meçamos, meçam VALER eu valho valha, valhas, valhamos, valham SERVIR eu sirvo sirva, sirvas, sirvamos, sirvam Do mesmo modo, as formas de raiz que aparecem no pretérito perfeito, além de sinalizar essa informação gramatical, também indicam imperfeito do subjuntivo. Generalizando, o significado da raiz (de natureza lexical, portanto) funde-se, numa espécie de cumulação, com o de tempo-modo-aspecto. Alomorfia FAZER eu fiz fizesse, fizessem, fizéssemos QUERER eu quis quisesse, quisessem, quiséssemos TRAZER eu trouxe trouxesse, trouxessem, trouxéssemos Por fusão, portanto, devemos entender os casos em que o radical sofre alomorfia, mas também incorpora noções gramaticais. A título de ilustração, vejamos as diferentes formas de raiz do verbo ‘pôr’: /poN/ ponho, põe, ponha, ponhamos /puN/ punha, púnhamos, punham /puS/ puséramos, pusemos, puséssemos, puser /poR/ porei, poríamos, poremos, poria As bases manifestam significados lexicais e gramaticais, simultaneamente. A forma /puN/, além de veicular a informação de “colocar, agrupar, botar”, também expressa a noção de tempo, haja vista ser usada somente no imperfeito do indicativo. Alomorfia A mesma afirmação vale para a variante /poN/, sempre associada ao presente, nos modos indicativo, subjuntivo e imperativo. Assim, formas com a sílaba seguida de nasal palatal, como ‘ponho’, ou de semivogal, como põe, mesclam o significado de “pôr” com o de tempo presente, de modo que o conteúdo gramatical aparece fundido com o lexical. Como todas as formas verbais com /poN/ remetem ao presente, essa noção de tempo se manifesta no próprio radical do verbo. Formas com /poR/ sempre veiculam a noção de futuridade (remetem ao futuro do presente ou do pretérito, nos modos indicativo e subjuntivo). [Nota: o autor parece ter-se equivocado, pois o futuro do subjuntivo, por derivar do pretérito perfeito, se realiza com /puS/: ‘quando eu puser’ etc.] Por fim, /puS/ se associa ao pretérito perfeito e ao mais-que-perfeito. Portanto, as várias realizações da raiz não são fortuitas: também expressam tempo/modo/aspecto, significados relevantes para o conteúdo do verbo. Alomorfia Vejamos, agora, os seguintes exemplos, onde cada coluna ilustra a atuação da alomorfia num diferente constituinte morfológico: injusto garota casas palatal andava ilegal órfã mares dental sondava inapto leoa canis hospitalar sorria inútil europeia papéis escolar vendia Na primeira coluna, há alomorfia no prefixo de negação. A forma do prefixo alterna entre vogal nasal (‘injusto’) e oral (‘ilegal’) e presença/ausência de consoante nasal (‘ilegal’ vs. ‘inapto’). Nas duas colunas seguintes, verificam-se modificações de gênero (2ª) e de número (3ª). Na primeira situação, o acréscimo da marca de feminino leva a modificações na base, sobretudo quando termina em segmento nasal, podendo perder a nasalidade, como em ‘leoa’ e ‘patroa’,ou reduzir seu corpo fônico (‘órfã’). Quando finaliza em -eu, abre a média, que passa de [e] no masculino (‘ateu’, ‘hebreu’, ‘plebeu’) a [ɛ] no feminino (‘ateia’, ‘hebreia’, ‘plebeia’), além de desenvolver a semivogal [j] no lugar de [w]. Alomorfia No caso do plural, a anexação do -s pode levar a uma série de mudanças fonológicas: desde a epêntese vocálica em palavras terminadas em consoantes (‘mar’/ ‘mares’; ‘vez’/ ‘vezes’) até o apagamento das líquidas laterais (‘canil’/ ‘canis’), podendo envolver a inserção de [j] (‘papel’/ ‘papéis’). Na quarta coluna, a forma do sufixo varia entre -al e -ar, alternância determinada pela presença ou não de uma líquida lateral (/l/) no final da base, num processo de dissimilação, que consiste em tornar diferente um som foneticamente semelhante ao outro. Por fim, a desinência de imperfeito do indicativo pode ser -va ou -ia, a depender da conjugação a que o verbo pertence. Como se observa pelos exemplos, há dois tipos mais comuns de condicionamento para a alomorfia: o fonológico e o morfológico. Na alomorfia fonologicamente condicionada, a adjunção de formativos pode (a) criar combinações de segmentos em desacordo com os padrões sonoros da língua, (b) levar à adjacência de sons que favoreçam a aplicação de um processo fonológico regular ou (c) trazer à tona padrões sonoros que a língua tende a rejeitar. Vejamos os seguintes casos: Alomorfia mar+s / freguês+s cant+á+va+is / cant+a+i passe+o / café+al No primeiro par, a adjacência de duas consoantes em final de palavra não é permitida no português; por isso, uma epêntese vocálica é necessária. No segundo, a desinência verbal do imperfeito do indicativo, -va, e a vogal temática de C1, -a, ficam contíguas à vogal -i, marca de número-pessoa. Em ambos os casos, a vogal baixa se atualiza como média, [e], segmento com articulação mais próxima à da vogal subsequente, a que inicia o morfema de número-pessoa (P5, em ‘cantáveis’, e P1, em ‘cantei’). No terceiro par, a alomorfia deriva da tendência que o português apresenta de evitar hiatos: o encadeamento dos formativos leva à adjacência de duas vogais, situação resolvida com a epêntese vocálica de -i-, realizado como [j], no primeiro caso (‘passeio’), e a epêntese consonantal, no segundo (‘cafezal’). Esses dois segmentos igualmente se classificam como elementos de ligação (“colas” morfológicas). Alomorfia Na alomorfia morfologicamente condicionada, a justificativa da alteração não é de natureza sonora. Por exemplo, na expressão do imperfeito do indicativo, a mudança na forma da desinência é condicionada pela classe temática (determinada pela VT) a que o verbo pertence. Assim, -va, que aparece na C1 (‘cantava’), concorre com -ia nas demais conjugações (‘bebia’, ‘sentiam’). Outro exemplo de alomorfia condicionada morfologicamente aparece a seguir: amável amabilidade amabilíssimo amavelmente rentável rentabilidade rentabilíssimo rentavelzinho Observa-se uma previsível alteração na forma do sufixo formador de adjetivos a partir de verbos: quando em final de palavra ou precedendo -mente e -zinho, tal afixo se manifesta como -vel; diante dos demais sufixos, como -íssimo, por exemplo, a forma usada é -bil. Podemos assumir que -vel e -bil se distribuem em função do ambiente em que se encontram: essa alternância é morfologicamente condicionada, pois depende diretamente do sufixo que eventualmente venha depois. Homomorfia e polissemia afixal Se a alomorfia envolve uma variação na forma e invariância no conteúdo, na homomorfia ocorre exatamente o contrário: há uma única forma associada a diferentes significados. Esse é, por exemplo, o caso do s, que pode ser marca de plural, nos nomes (as fala-s), e desinência de segunda pessoa do singular, nos verbos (tu fala-s). Outro exemplo de homomorfia é o caso do a, que pode ser marca de gênero nos nomes (estudios-a) e vogal temática de primeira conjugação nos verbos (fal-a-r). Também aparece associado à noção de presente do subjuntivo (que ele venç-a) e vogal temática nominal (vid-a). A homomorfia, do mesmo modo que a homonímia, deve ser restrita ao caso em que não há extensão de sentido. A título de exemplo, o sufixo -eiro pode formar agentes profissionais ou habituais, como em ‘jornaleiro’ e ‘fofoqueiro’, respectivamente. Fato similar se dá com outros sufixos agentivos, como -nte (‘gerente’ vs. ‘vigente’), -ista (‘musicista’ vs. ‘progressista’) e -dor (‘trabalhador’ vs. ‘ligador’). Desse modo, se há extensão do significado, seja por metáfora ou por metonímia, trata-se de uma relação de polissemia afixal – e não de homomorfia.