Prévia do material em texto
1 2 amor... de todos os lados A décima segunda edição da ComTempo vem recheada de informação, histórias, opiniões e, acima de tudo, amor. Nessas 35 páginas que foram elaboradas por uma equipe comprometida, profi ssional e voluntária, você vai encontrar motivações para amar, seja uma causa, uma pessoa, um projeto ou uma fi cção. O amor que estampa A ComTempo é uma revista independente que aborda temas pouco explorados pela mídia ou que merecem outras perspectivas. Trabalhamos por um jornalismo cada vez mais plural, sério e verdadeiro. DIRETORIA KIMBERLY SOUZA MARCOS PITTA MARIANA VALVERDE EQUIPE DE REDAÇÃO BRUNA CAGNIN LAIZA CASTANHARI LUIS HENRIQUE DE MELO LÍVIA RÉGIS ALINE ANTUNES SÉRGIO FRAGA MARIANA PADILHA RODRIGO FOLTER MARCIA MORENO BRUNA VOLTOLINI THALITA VIEIRA CAIO BARROSO DIRETOR DE MÍDIAS SOCIAIS HENRIQUE ESCHER EQUIPE DE MÍDIAS SOCIAIS TATIANA CONSTANTINI PÂMELA PITTA KETLYN PITTA JARDEL OLIVEIRA PEDRO LEAL FERNANDO RAVANELLI DIRETORA DE ARTE MARÍLIA TOFFOLI AUDIOVISUAL CAROLINA VIEIRA JOSÉ PIUTTI CAIO SIQUEIRA AUGUSTO MARINHEIRO GABRIEL ZANON CARLOS TOMAZELLI TIAGO RODRIGUES ATUALIZAÇÃO VINICIUS SARTORI Os artigos publicados nas edições, bem como em nosso site, são de total responsabilidade de seus au- tores. Toda a equipe é composta por profi ssionais voluntários(as). FALE CONOSCO revistacomtempo@gmail.com CHEFE DE REDAÇÃO GABRIELA BRACK esse título começa justamente pela própria revista. A ComTempo, como mencionado anteriormen- te, foi toda produzida por volun- tários e isso é a maior prova viva de amor, neste caso, à profi ssão e ao exercício de ser e fazer jor- nalismo. Essa edição de número 12, inclusive, vai valer até no- vembro, isso porque em agosto vem mais uma edição do Ca- derno Cultural. Com essa matemática, é possível saber que essa será a edição da Com- Tempo que esta- rá em vigor na data dos seus três anos, em julho, e por isso precisa ser mais do que especial. O que en- tão, de mais es- pecial poderia ser importante do que o amor? A capa desta vez é so- bre AME, Atrofi a Muscular Es- pinhal, doença c o n s i d e r a d a rara. Na repor- tagem você vai conhecer a história do João Pedro, de Jaboticabal-SP e da Anne Ma- ria, de Porto Alegre-RS. As duas crianças foram diagnosti- cadas com AME e precisam to- mar uma dose de Zolgensma, COMTEMPO um remédio com custo milionário que se aproxima da casa dos R$ 12 milhões. Familiares, amigos, se- guidores e até famosos se empe- nham em divulgações e doações constantes para ajudar não so- mente esses dois personagens que vamos mostrar, mas tantos outros espalhados pelo Brasil. O intuito da ComTempo em contar essas histórias é espalhar amor e ver como cada uma des- sas crianças precisam ser ama- das, não importa como, mas pre- cisam de amor. Portanto, leia a reportagem à partir da página 6. Da capa para a contra- capa, nós também falamos de amor. No fi nal desta edição, lan- çamos uma campanha contra o Projeto de Lei 504/2020 que proíbe a publicidade, através de qualquer veículo de comuni- cação e mídia de material que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre di- versidade sexual relacionados a crianças no Estado de São Pau- lo. Esse PL foi protocolado por Marta Costa (PSD) que está em seu segundo mandato como de- putada estadual. A ideia desta represen- tante é tão equivocada que não acrescenta em absolutamente nada na vida dela e da popula- ção que ela deveria amar, afi nal foi eleita para servir e cuidar do povo, mas esse dever do políti- co, com certeza passa longe das políticas desta mulher. Por isso, essa edição está aqui para ensinar a deputa- da uma coisa que ela, provavel- mente, ao autorar este Projeto de Lei, não entende, não sabe e não sente, o amor. Fica o convite para ela ler a ComTempo, não só essa edição, mas todas as ou- tras onze, incluindo o Caderno Cultural. Fica o convite também para ela se preocupar com o va- lor do medicamento para uma criança com AME conseguir um tratamento adequado, isso sim merecia uma atenção política. Boa leitura a todos. 3 ARTIGO A luz no fim do túnel quei- mou? Pois não estou con- seguindo enxergá-la. Digo isso, pois tem sido difícil manter a esperança em tempos tão difíceis, incertos e sombrios. Mor- tes, sofrimento, desespero, fome, pobreza, violência, desrespeito, de- sumanidade, (...). Lágrimas que não secam. Todos os dias no noticiário e à nossa volta. Todos estão sofren- do de alguma maneira. Quem não está vendo ou percebendo, está negando a realidade. Diante de tantos ruídos e de tanta escuridão, às vezes fica di- fícil se situar em tempos tão com- plexos. Encontro nos livros e nos textos acadêmicos que leio focos de luz que me ajudam a compre- ender, aos poucos, os caminhos que nos trouxeram até aqui. É sis- têmico, é projeto, é intencional, é interseccional (como nos apontam muitas pensadoras feministas). O Brasil me faz querer estudar! Pois não existem respostas fáceis, cami- nhos óbvios, explicações prontas. São muitas as questões que pre- cisamos superar e resolver coleti- vamente, e é preciso comprometi- mento, seriedade, embasamento e humanidade. Precisamos de ética! Mas não qualquer ética. A escritora estadunidense e pensadora feminista bell hooks em seu livro “Tudo sobre o amor: novas perspectivas” (2021) nos apresenta uma definição de ética do amor: “Abraçar uma ética amoro- sa significa utilizar todas as dimen- sões do amor - “cuidado, compro- misso, confiança, responsabilidade, respeito e conhecimento” - em nosso cotidiano. Só podemos fa- zer isso de modo bem-sucedido ao cultivar a consciência. Estar cons- ciente permite que examinemos A luz no fim do túnel queimou? ARTHUR FACHINI nossas ações criticamente para ver o que é necessário para que possa- mos dar carinho, ser responsáveis, demonstrar respeito e manifestar disposição de aprender” (p. 130). Não é exatamente disso que precisamos? Amor: e todo o conjunto que o acompanha nesta definição. Mas parece que as pes- soas não compreendem nem o “amar ao próximo como a si mes- mo”. Estaríamos dispostos a der- rubar os muros que nos separam? Estaríamos dispostos a identificar o que precisamos desconstruir e construir em nós mesmos? Estarí- amos dispostos a viver através da ética do amor? Em tempos tão sombrios, são livros como este de bell hooks, e tantos outros, que não só me dão esperança, como também me nutrem de conhecimento e ideias para poder refletir e compreender a nossa realidade, a fim de sonhar com um futuro diferente. Livros, in- formações e conhecimento são os focos de luz que nos guiarão em qualquer desafio. E não nos faltam desafios a serem superados no nosso país. E ainda querem dificul- tar o acesso aos livros! A quem isso interessa? Defendamos os livros! Se tudo indica que a luz do fim do túnel queimou, precisamos trocar a lâmpada. Não dá mais para ficarmos no escuro. Nós sabemos que o caminho não é nada fácil, e que este precisa ser um movimento coletivo, sem deixar ninguém para trás. Precisamos pôr em prática essa ética do amor defendida por hooks. Ninguém solta a mão de ninguém?! Estamos coletivamente determina- dos a cumprir essa promessa? Referência: HOOKS, bell. Tudo so- bre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante, 2021. BIT.LYY3VMF5L4 ACESSE: FUTURO DO JORNALISMO? LEIA NO NOSSO SITE TODOS OS EPISÓDIOS GRATUITAMENTE! QUAL É O A ComTempo prepa- rou uma série de reportagens com 6 episódios exploran- do o impresso, o rádio, a televisão e a internet e conversou com profissionais que opinaram sobre os caminhos que a pro- fissão está tomando. https://revistacomtempo.com/category/reportagens-especiais/futuro-do-jornalismo/ 4 Encontrar um nódulo na mama é sinal de alerta para as mulheres. Geralmen- te, o medo e as incertezas são uma das principais reações, por temerem ser um câncer de mama. No entanto, além dos nó- dulos malignos, mais conhecidosobrigada a cuidar.” Auxílio Kétani lembra que, no come- ço da pandemia, o auxílio emergencial A psicóloga Rafaela Cortez. (Foto: Arquivo Pessoal) 21 a ajudou. “Como eu era sozinha, rece- bia R$ 1.200,00. Perdi meu emprego, mas o auxílio supriu”. A estudante de- clara, porém, que, na Educação, o go- verno falhou. Benício reaparece quando es- tamos conversando sobre uma possível volta às aulas e se ela deixaria os filhos retornarem. Envergonhado, depois de dizer um oi, ele permanece atrás da mãe. “Me questiono sobre isso. De ver- dade, não sei responder. Às vezes fico pensando que seria bom. A rotina da escola faz falta pra eles. Mas, ao mesmo tempo, não sei se seria bom. Crianças não tomam cuidado, né? Tanto para eles quanto para os professores, que, geralmente, são mais velhos.” A conversa termina com Kéta- ni receosa sobre o futuro. Ela não sabe se tudo voltará ao “normal”. Longe de casa É uma tarde de quarta-feira quando falo com Poliana Araújo, de 27 anos. Em Franca, os termômetros mar- cam 29 graus. Enquanto a espero termi- nar o almoço, reviso as perguntas que pretendo fazer. A conversa, por telefone, começa minutos depois. Poliana mora em Presidente Prudente, a 535 quilô- metros de Franca. É mãe de Pedro e de Felipe, de 8 e 6 anos, respectivamente. Após ganhar uma bolsa de estudo pelo Prouni, Poliana se mudou de Franca para Presidente Prudente para cursar Agronomia. Nesse proces- so, perdeu a guarda do primogênito. O pai da criança tinha uma estabilidade financeira melhor. O juiz determinou que era melhor a criança ficar com ele, enquanto a mãe terminava o curso. Já Felipe, seguiu com ela. Os meninos são filhos de pais diferentes. Poliana conta que o de Feli- pe é ausente. Apenas manda a quantia da pensão no final do mês. Em com- pensação, a avó paterna gosta muito do neto. Apesar de morar longe do filho mais velho, a estudante confia na rede de apoio. E no próprio Pedro, que, desde o princípio, compreendeu que a mãe precisava estudar. “Desde quando me mudei, ele entendeu que a mamãe estava indo pra ter uma vida melhor. E como ele é próximo do pai, não sentiu tanta diferença. O que foi pesado pra ele foi se afastar do irmão.” Mãe e filho conversam todos Vivian e Caio. (Foto: Arquivo Pessoal) os dias por telefone. E jogam um game que ficou bastante famo- so na quarentena, o Amoung Us, em que uma tripulação preci- sa descobrir quem é o impostor e expulsá-lo. Sobrecarga Um dos primeiros efeitos da pandemia na vida de Poliana foi o fecha- mento da universi- dade. “Fechou antes mesmo da es- cola do Felipe. Agora, fican- do em casa, achei que daria tudo certo. Mas está tudo corrido. Es- tou no últi- mo semestre. Tem TCC, horas extras para entre- gar, estágio. Depois que comecei a ter aulas online, a escola do Felipe fechou.” A fala é cortada pela do filho, que a chama. Poliana pede licença e diz que vai ajudar o pequeno. Logo, volta partindo de onde paramos a conversa. “A professora fez um grupo e começou a mandar as atividades. Mas, para mim, é muito complicado auxiliá-lo, porque tenho aula online todos os dias, das sete e meia da manhã às seis da tarde. E ele tem uma dificuldade gigante de se concentrar. Na escola, é mais fácil, pois tem os amiguinhos fazendo. Isso o es- timula. Aqui em casa, sou só eu. Tento fazer, mas é bem difícil. Ele ficou com bastante atividade atrasada.” A professora Vivian Delfino lembra que, quando as atividades pararam, as mães foram impactadas financeiramente. “Você tem que atender uma deman- da de filhos que ficam em casa, que vão comer mais, gastar mais energia, vão exigir que você consiga providen- ciar uma distração. E tem a questão da escola virtual, que exige que essa mãe tenha condição de ofertar: um com- putador, um celular ou os dois, além de uma internet capaz de manter uma aula online, a assistência da realização dos trabalhos ou, então, arcar com o ônus de ver seu filho não estudando.” Vivian ainda destaca que, ao ficarem em casa, as pessoas perceberam a importância dos cuidados, e, no caso das mães solo, isso significou uma so- brecarga maior. “As crianças ficaram em casa e exigem um cuidado 24 ho- ras, não só de cozinhar, passar… É de olhar, de atender, ser requisitada muito mais vezes. O fato de não ter o tempo da escola fez com que elas tivessem uma sobrecarga imensa. Exigem que tenham paciência para estar sempre à disposição de atender o ‘mãe’ que vai vir durante todo o dia.” Com a quarentena, Felipe, por exemplo, ficou bastante ansioso. Poliana conta que ele engordou e tem que fazer uma dieta por estar acima do peso. “Ele passa por uma psicólo- ga, também faz tratamento com uma fono, porque tem deficiência auditiva.” No aspecto financeiro, Polia- na recebe uma bolsa de R$ 400,00 da universidade, além da pensão do filho. E também conseguiu o auxílio emer- gencial de R$ 300,00 reais. Pelo fato de o cadastro único estar em conjun- 22 to com o da mãe, que é aposentada, não teve a ajuda inicial de R$ 1.200 paga pelo Governo Fe- deral. Um dia de cada vez Ao mesmo tempo que Poliana dis- serta que os estudos pesam até mais do que cuidar dos filhos, se ouve a voz de Felipe ao fundo. Ele brinca com algum objeto perto da mãe. “No meu curso, muita coisa é aula prática e a gente não está apren- dendo direito. Ainda bem que minha facul- dade oferece terapia de graça. Faço toda sema- na, senão tinha surtado ainda mais. Evito sair de casa, mas isso me sufoca um pouco. Sou uma pessoa sociável, gosto de encontrar os amigos. São coisas que estou evitando. Mas a gente vai levando, um dia de cada vez.” O tempo que consegue para ela é na hora de dormir. Após terminar os estudos, por volta das seis da tarde, dá banho em Felipe, arruma a cozinha, faz janta. Às vezes, ainda brinca um pouco com o filho ou assiste a um de- senho. Com a voz demonstrando o cansaço de um dia que está longe de acabar, diz que o que mais deseja é uma vacina. “Para poder voltar tudo ao nor- mal. Ano que vem, saio para o estágio, e provavelmente não vai ser aqui [em Presidente Prudente], nem em Franca. De novo, terei que ficar longe das crian- ças. O Felipe é muito sentido com essas coisas.” Mesmo que o “normal” não seja o de antes, ela espera que, pelo menos, a rotina seja diferente. “Que a gente consiga voltar um pouquinho da nossa vida. Que eu consiga trabalhar e dar início ao que eu vim buscar quan- do vim fazer faculdade, que é ter uma estabilidade financeira e dar uma vida melhor para os meninos.” A última festa Vivian Delfino, que, durante a entrevista, revelou também ser mãe solo, aceitou dar seu depoimento so- Poliana com os filhos, Pedro e Felipe. bre isso. Por causa dos compromissos dela, combinamos outra data para que a conversa continuasse. Mas foi difícil. Mãe, professora e doutoranda, não ti- nha dias compatíveis com os meus. Na agenda dela, muitos congressos e pa- lestras. Depois de muito tentar, consi- go para um dia que chovia muito, em São Paulo, onde ela mora, e em Franca. Vivian se mostra preocupada. A energia oscila na cada dela, o que também é uma preocupação da minha parte. Mas o universo comanda e, no final, corre tudo bem. No início, quando vieram as primeiras notícias sobre um vírus que circulava na China, Vivian não se preo- cupava. Não fazia ideia de que chegaria ao Brasil. A família comemorava o ani- versário de Caio, o filho único dela, que completava 13 anos naquele janeiro de 2020. A vida antes da chegada do novo co- ronavírus era como um filme clichê. As ruas cheias, crianças brincando nos playgrounds, amigos se juntando para o churrasquinho de domingo, os bares lotados. Os corredores das escolas e universidades contavam histórias por meio dos falatórios, risadas e cochichos. Haveria tempo, ainda, para a última festa antes do distanciamento social. O aniversário da mãe de Vivian, em 7 de fevereiro. “Pouco tempo depois, o Caio parou de ir à escola. Já fechou tudoe, quando teve o primeiro caso de mor- te aqui, ele ficou muito angustiado. Eu também. Mas a gente achava que ia passar rápido.” Mesmo de longe, já que a entrevista é via WhatsApp, é possível identificar o cansaço na voz de Vivian, prin- cipalmente quando lembra o começo da pandemia. No primeiro mês, o sentimento foi de surpresa, que, com o passar do tempo, foi virando medo e apre- ensão. “O problema mesmo começou a ficar punk quando chegou no meio do ano e nada tinha mudado, quando deu um semestre en- fiado em casa. O que o Caio teve muito no início foi medo de pegar, que os avós ficassem doentes.” Relação mãe e filho Entre as mães entrevistadas para a reportagem, Vivian é a única de um menino entrando na adolescência. Antes da pandemia, eles saíam muito juntos. A praia e o cinema estavam en- tre os passeios prediletos. E não é difícil visualizá-la curtindo um dia com o filho. Nas poltronas do cinema, rindo com uma comédia ou tapando os olhos em um filme de terror, com ele rindo do medo que ela sente. Ou um domingo na areia, com raios de sol que confor- tam e aquecem, como um convite para um banho de mar. Caio fazia muitas atividades. Aulas de bateria e marimba, jogar fute- bol, reunir um grupo grande de amigos para dormir na casa dele ou de outro. Vivian também levava amigos para a fazenda da família, em Mairinque-SP. “Quando isso começou a faltar, foi so- frido pra ele. Com dois meses, começou a ficar muito triste, e a gente começou a discutir muito.” Ela se deparou com outro Caio. Não era mais aquele menino alegre e ativo., estava sem ânimo para nada. “Não queria ler, fazer as coisas da escola. Tive que aprender a lidar com essa nova realidade. Estava prostrado, só jogava videogame e dizia que era a única coisa legal para fazer. O quarto dele virou uma caverna. Foi horrível.” 23 A chuva em São Paulo continua forte. É possível ouvir as trovoadas pelos áu- dios que Vivian manda. Um reflexo da vida dela, que se viu no meio de um temporal: cuidar do filho enquanto o volume de trabalho aumentava absur- damente. “No mundo pré-pandemia, o Caio ia para a aula à tarde. Quando começou o ensino a distância, a escola mudou as aulas para o período da ma- nhã. Então, ele teve que levantar cedo. Achou super legal, mas, em 15 dias, os alunos passaram a desligar a câmera.” A própria Vivian testemunhou o filho várias vezes voltando a dormir. “Essa ausência do convívio, da dinâmi- ca da sala de aula, não refletia a escola. Eu tinha que convencê-lo a ir pra aula. Lição não fazia, estudar não estudava, coisas que ele nunca me deu trabalho. Não tive trabalho de colocá-lo na frente do celular. Tive trabalho pra fazer com que ele entendesse que aquilo era a escola agora e, infelizmente, aceitasse.” Caio passou a odiar os estu- dos e arrumar intriga com os profes- sores. As notas caíram. Conhecendo a área educacional e preocupada com o rumo que as coisas tomavam, Vivian entrou em contato com a escola, fa- lou sobre a quantidade de atividades e opinou que a forma de aprender deve- ria ser diferente. “No começo, os pro- fessores, com receio, sabendo que os alunos não estavam indo para a aula, mandavam um monte de trabalhos. Ele chorava para fazer. Eu e outras mães conversamos na escola para reduzirem o número de atividades.” O apelo foi ouvido. A escola marcou algumas aulas para a tarde, para que os alunos não ficassem qua- tro horas seguidas online. “Fiz alguns trabalhos com ele, para que ficassem mais lúdicos. Mas confesso que, para os adolescentes, as coisas bateram di- ferentes. A convivência, o grupo, são muito importantes.” Para Vivian, o filho ainda não teve oportunidades de viver fases típi- cas da adolescência, como aprender a andar pela cidade sozinho e paquerar. “A escola é o ponto em que isso acon- tece, e tudo pra ele rolou online. Está perdendo essa coisa de a escola ser mais que estudar.” Autocuidado Um estrondo reverbera pela casa dela. A chuva ainda está forte. É possível escutar Caio gritando que a energia acabou e voltou em segundos. Vivian ri e começa a contar como ficou seu trabalho e a saúde mental. “Sei que estou totalmente descompensada com essa pandemia”. No Instituto Federal, foi con- templada com afastamento remu- nerado para cursar o Doutorado, em Campinas. Mesmo na correria do dia a dia, com todos os afazeres de casa e do trabalho, a viagem era um momento prazeroso. “Quando eu pegava o carro e dirigia uma hora e vinte minutos, ia escutando música e cantando dentro do carro. Pensava na vida, conversava comigo mesma”. Lembra, com entu- siasmo, do ambiente universitário, do qual sente falta. “Estava adorando ir pra aula. Pra mim, era massa.” Para ela, também não foi fácil. Logo, o semestre começou online, com aulas três vezes na semana, quatro ho- ras por dia. Não bastasse isso, o Insti- tuto Federal precisou de um apoio dos professores afastados. Na Unicamp, assumiu a coor- denação de um grupo de trabalho. Ti- nha que escrever muito e publicar. “Me empolguei. Na minha cabeça, como trabalho em São Roque, que fica a 60 quilômetros da minha casa, e estudo em Campinas, que é mais 90 quilôme- tros, em casa eu teria tempo sobrando. Doce ilusão. Comecei a trabalhar mais.” Como antes, a carreira pro- fissional estava entrelaçada à vida do- méstica, mas agora ambas exigindo mais, gritando, sem dar tempo para refletir. A vida se tornou um malaba- rismo: cuidar da casa, do trabalho, do filho, da mãe idosa. “Trabalho o dia in- teiro, essa é a verdade. Continuo em home office, mas não tem um dia que não esteja trabalhando. Sábado e do- mingo, é tudo igual. No meu celular, recebo em torno de 200, 300 men- sagens para responder, todo dia. Um monte de e-mails. E, em meio a isso, vieram os convites para participar de lives. Uma virou duas, dez. Quando vi, todo dia estava fazendo lives. Cheguei a fazer três no mesmo dia.” Procurou ajuda, mas a terapia online não deu certo. “Preciso de um profissional que se encaixe comigo. Meu cérebro não relaxa, não desliga”. Ela con- ta que não tem mais hora certa pra dor- mir, passou a ter vício com o celular e insônia, além de ansiedade. “Tenho que me controlar. Caso contrário, como o dia inteiro. Estou sempre com a sensação de estar atrasada, que estou devendo. O turbilhão de informações sobre cursos sempre me dá impressão de que estou perdendo uma oportunidade, mas, na verdade, não tenho mais condição de fazer nada. É angustiante. Não tenho ideia de como vai ser quando retornar ao processo presencial.” Lamenta não ter tempo para se cuidar. “Acho que tem uns cinco meses que não faço a unha, só corto. Faço o básico, lavo o cabelo, tomo banho, escovo os dentes, uso desodorante. Tem dias que uso hidratante, dias que não consigo. O tempo pra mim é zero.” Também precisa zelar pelos pais, idosos. A mãe, que mora com ela, era ativa, saía muito para dançar e, de repente, se viu presa em casa. Também perdeu muitas amigas para a Covid-19. Vivian teme pela saúde dela. “Tinha dia que eu acordava e ela estava triste. Eu perguntava o que tinha acontecido e ela falava que uma amiga dela tinha fa- lecido. Pelo que acompanho, ela perdeu cinco ou seis amigas. Ainda tem isso, né? A pessoa vê outras da sua idade indo.” Vivian é a pessoa que mais conversa com a mãe. Mesmo com muitos traba- lhos, não deixa que ela fique num canto sozinha. “Quando vou comer ou no fim do dia, quando sento pra assistir televi- são, converso com ela. É necessário que eu converse. E todos os dias ligo para o meu pai. Estou no computador, mas es- tou falando com ele.” Para a professora, a ideia de normal mudou. “A vida antes da pan- demia acabou. Agora, vamos construir um novo processo de vida, que não sei como vai ser”. Entre todos os desejos dela, está o de poder sair de casa. “Não para aglomerar ou fazer festa, mas ir ao cinema, o que eu gostava muito antes da pandemia. Às vezes, vinha do trabalho e pegava uma sessão às novee meia da noite. O shopping é perto de casa. Vou passar a dar mais valor a essas coisinhas sabe, como ir a uma praia também.” OUÇA NOSSO PODCAST SOBRE ESSE TEMA. CLIQUE AQUI https://open.spotify.com/episode/21rvtvhpOQJkoqgG6JnHl3%3Fsi%3DSpc3vrQMRly3xrSCrlPaxA https://open.spotify.com/episode/21rvtvhpOQJkoqgG6JnHl3%3Fsi%3DSpc3vrQMRly3xrSCrlPaxA https://open.spotify.com/episode/21rvtvhpOQJkoqgG6JnHl3%3Fsi%3DSpc3vrQMRly3xrSCrlPaxA 24 O mercado editorial começou a respirar em 2020 e a se acomodar, depois de anos em queda. Embora alguns editores estejam esperançosos com a possibilidade de uma retomada ao hábito de leitura, com as pessoas aproveitando o tempo isoladas para ler mais, a conclusão é unânime en- tre todos: o impacto será devastador. O ano de 2020 foi desafiador para o mercado editorial brasileiro, que viu todas as livrarias físicas fechadas por conta da pandemia. Mesmo sem sa- ber o que aconteceria no mundo dali pra frente, as editoras resolveram de- sacelerar seus trabalhos e cancelar ou adiar seus projetos. E, mesmo sendo contra todas as expectativas, o mer- cado acabou fechando o ano recupe- rado. Um levantamento feito pelo 13° Painel do Varejo de Livros no Bra- sil de 2020, pela Nielsen Bookscan e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), aponta que o mês de dezembro foi o período com maior registro de vendas do ano, apresen- tando 4,98 milhões de livros vendidos e faturamento de R$ 197,81 milhões, mostrando um crescimento de 7,6% comparado com o mesmo período em 2019. Ainda que ao longo dos anos o preço médio do livro tenha diminu- ído 34%, o número de volumes ven- didos aumentou no Brasil entre 2016 e 2018. Contrariando todas as aflições desses últimos anos, livrarias menores abriram as portas, clubes de leitura deram nova vida ao hábito, e as edi- toras médias e pequenas começaram a surgir e crescer. Esse foi o caso da Editora Flyve, criada por um escritor em busca de contratos mais justos MERCADO&LITERATURA Como os livros e escritores sobreviveram às sucessivas crises no mercado editorial no Brasil? BRUNA VOLTOLINI para os jovens autores brasi- leiros. “Eu errei muito, e foi aprendendo que quis abrir uma editora que impedisse que os autores brasileiros er- rassem como eu. É muito fá- cil a gente de- sistir quando as coisas dão errado, e às vezes a gente acha que não tem opção. Na época não tinha, mas começaram a nascer e a Flyve foi uma delas”, conta o editor da Flyve, Lucas de Lucca, so- bre a ideia de abrir a editora. Pequenas editoras, grandes negócios Editoras de pequeno porte tendem a pensar mais no conteúdo que querem produzir do que no lu- cro que podem alcançar, tendo uma diversidade de livros maior e de forma menos massificada. Além de ser possí- vel encontrar livros em um estilo mais livre e diferente, é muito mais comum que editoras menores tenham um re- lacionamento mais próximo com os escritores. “Nós fornecemos para os autores uma formação técnica. Então, eles têm cursos, e-books e aulas online (...). Além dessa formação toda, o autor tem acesso direto a mim, o editor, a equipe de produção e ao nosso time de marketing para que ele consuma o conteúdo pronto e nos apresente a sua ideia.”, diz Lucas sobre o contato e ajuda que os autores da casa editorial recebem. “Baseado no que eles falam, a equipe ajuda esse autor a melhorar o plano dele”, conclui. E foi pensando no melhor para todos os tipos de escritores que a Flyve criou a Voe, um selo dentro da editora que permite a publicação de autores que acreditam em seu material, mas são impedidos pela falta de dinheiro. “A Voe é um selo que vai investir no seu livro e tirar o seu sonho do papel. Só que o único responsável pelo seu su- cesso continua sendo você, e a gente deixa isso muito claro o tempo inteiro. A primeira coisa que acontece quan- do a pessoa envia a inscrição é a ava- liação do perfil do escritor. E às vezes esse autor não está pronto para pu- blicar um livro, e quando percebemos isso, falamos: você não está pronto, não quero o seu dinheiro, quero que você tenha uma experiência legal”, Lucas explica. Foi com a Voe que a escritora Rafae- la Amaral conseguiu lançar seu livro, Lucas de Lucca, editor da Flyve que nasceu com objetivo de propo- rionar contratos mais justos para os jovens autores brasileiros. 25 Festival das Estrelas, em 2020. “Eu assinei o contrato com a editora uns 20 dias antes do início da pandemia. (...) O livro teve uma pré-venda onli- ne, assim como toda a divulgação que eu fiz nas minhas redes sociais. Até hoje eu não pude fazer nenhum evento desses que eu gostaria, e nem sei quando poderei. Mas, mesmo de ‘leia nacionais’ ou ‘leia mulhe- res, ‘leia mulheres vivas’. Essa é uma parte da nossa luta, mas ela é muito maior que isso. Existe um palco muito grande para autores gringos. Sempre serão deles os hypes, os livros mais vendidos e melhor avaliados, e isso é meio que um ciclo sem fim, pois a cabeça dos leitores acaba ficando fe- chada para livros brasileiros, por eles não figurarem nessas listas quase nunca”, diz Rafaela, que mostra seu ponto de vista como autora sobre essa desigualdade cada vez mais aparente. É preciso se abrir mais para as obras produzidas no nosso país, não podendo se limitar a ler somente literatura estrangeira, tendo em mente que nem todos os livros pro- duzidos no mesmo ambiente são iguais. “Hoje, como auto- ra, vejo o quanto é difícil atingir leitores aqui. Tem perfil literário do instagram que vem pedir meu livro para parceria, e daí eu vou ver, a pessoa compra horrores de livros gringos, mas os nacionais ela quer de graça, sabe? Livro gringo a galera compra, livro nacional eles procuram um e-book pirata para ler sem pagar. Ainda falta muito incentivo, muito mesmo, e eu sei que não é do dia para a noite que a cabeça dos leitores vai mudar no Brasil, mas precisamos seguir tentando. Não dá para desistir, não”, conclui. Existe uma necessidade de incentivar o hábito da leitura, principalmente com os livros produzidos no nosso país, permitindo que se crie uma co- nexão não só com as palavras mas também com o nosso território. Outro incentivo que temos visto com mais frequência no merca- do literário é o crescimento dos clubes do livro, que vieram como uma alter- nativa cômoda para alimentar o hábi- to de leitura durante o confinamento. Com o objetivo de unir esse hábito de leitura com autores nacionais, foi cria- do O Clube de Leitura Flyve, que teve início em abril desse ano, estreando com o livro “O Corvo Negro” do escri- tor e editor Lucas de Lucca. O clube foi pensado pelo autor e advogado Adam Mattos em parceria com a editora com a ideia de promover a leitura de autores na- cionais contemporâneos de diversos gêneros. Os escritores que terão seus livros lidos dentro do clube não são to- dos da mesma editora, o que faz com que o grupo promova a leitura de au- tores nacionais com trajetórias diversas. “A ideia da casa foi exatamente com o que a gente quer. Porque a Flyve não tem como objetivo ser uma editora que vai colocar livros em todas as livra- rias do país e vai vender um milhão de livros. O nosso foco é ser um celeiro de autores. (...) O que a Flyve quer como empresa dentro desse mercado edito- rial é que os autores brasileiros entrem mais, que eles tenham mais espaço (...) Como o nosso objetivo é esse, não faz sentido nenhum a gente ser egoísta e focar só em nós.”, fala Lucas sobre o clube de leitura. Os interessados nesta inicia- tiva podem entrar em um grupo do aplicativo Telegram que já está aberto ao público e a participação é comple- tamente gratuita. Uma editora do novo normal Atualmente, o e-commerce permite comprar diretamente pela internet, e centenas de editoras co- meçaram a apresentar catálogos diferenciados, com autores que não frequentam os circuitos mais comer- ciais da literatura. Segundo a Neo- trust/Compre&Confie, empresa de inteligênciade mercado focada em e-commerce, foram realizadas, em 2020, 14,2 milhões de compras onli- ne dessa categoria, valor 44% maior em relação ao ano anterior. Com todas as dificuldades que o mercado editorial vem sofren- do, algumas livrarias e editoras têm recorrido a métodos alternativos nos negócios para a recuperação de suas vendas. Muitas delas estão de olho nas novas tendências de mercado para conquistar leitores e manter a relevân- cia. Uma dessas tendências é o estímu- lo da tecnologia na indústria literária. Com a pandemia pegando todos de surpresa, as editoras deci- diram redesenhar suas estratégias de lançamentos e vendas, migrando para o digital, e fazendo com que o futuro desse mercado e talvez a sua retomada seja por meio de uma “li- vraria digital”. Rafaela Amaral, autora do livro ‘Festival das Estrelas’, lançado em 2020. durante a pandemia, o livro foi super bem recebido pelas pessoas que me conhecem e as que não conhecem também. Só na pré-venda, que du- rou 30 dias, eu vendi quase 100 livros. Isso foi incrível”, conta sobre a publi- cação de seu livro. Incentivo O hábito da leitura foi sendo deixado de lado nos últimos anos de- vido ao aumento da tecnologia. Mes- mo com todo esse distanciamento entre as pessoas e os livros, ninguém pode negar que a cultivação des- se hábito traz inúmeros benefícios. A leitura nos proporciona liberdade de pensamento, de informação e de criatividade. Além da empatia sen- tida por diversos personagens, pois somos colocados em realidades dife- rentes da nossa e aprendemos a nos colocar no lugar do outro. No Brasil, é possível se notar que a maioria das estantes em livra- rias e nas casas dos leitores são es- trangeiros. “Nós, escritores brasileiros, sempre acabamos naquele discurso 26 O seu fone de ouvido nunca esteve tão cheio de conteúdo! Ouça na sua plataforma de áudio favorita. Não se esqueça de curtir o nosso perfil para ficar por dentro de todos os nossos programas. TaComTempo TÁ COM TEMPO? 3 VEZES NÃO! A CPI da Covid é o assunto do momento, só se fala disso no âmbito político. Os depoimentos coletados pelos senadores despertam sentimentos como indignação e medo. Medo do que vem pela frente. Afinal, onde vamos parar com tudo isso que está acontecendo? O presidente da Pfi- zer na América Latina, Carlos Murilo, dis- se que a farmacêutica fez três ofertas de vacina em 2020 e o governo brasileiro não aprovou e nem desaprovou, ou seja, a resposta foi não para a vacina naquelas ocasiões. Fomos renegados 3 vezes... Se bobear, até mais do que isso. ACABA OU NÃO? Hoje em dia, quase que 100% dos professores de jornalismo devem apontar o fim do impresso como um fato consumado. Só que isso está ‘perto de acontecer ‘desde 2014 quando eu iniciava a graduação. Falavam-se em cinco anos para o findar do jornalismo impresso. Já se passaram 7 e ele se mos- tra resistente. Durante a produção da série especial para o site da ComTempo, em conversa com profissionais, nos bastido- res, é notável que essa questão divide opi- nião. A leva de episódios sobre o futuro desta profissão serviu para mostrar uma coisa: é impossível prever como será a luz que brilha no túnel chamado jornalismo. DESINFORMAÇÃO Ao desenvolver a reportagem que ilustra a capa des- ta edição sobre a AME, ficou claro que muitas pessoas ainda têm dúvidas so- bre a doença. Um dos propósitos da ComTempo com essa pauta é esclarecer todas as esferas da doença considerada rara. Um dos questionamentos feitos pela reportagem é do motivo pelo qual o Zolgensma, medicamento que pode ser indicado a esses pacientes, é tão caro. Tivemos essa resposta da farmacêutica Novartis. No entanto, em contrapartida, o Ministério da Saúde retornou nosso e-mail, mas respondeu tudo em curtas palavras, falando mais do mesmo e sem se aprofundar nas explicações Mais uma da pasta à favor da desinformação. Não podemos esperar muito mesmo, basta ver como a pandemia é comandada. TÓ PICO.. POR MARCOS PITTA 27 . Ni Una Menos é um movi- mento contra a violência sexista e o feminicídio que teve origem na Argentina e conquistou adeptos em outros países da América Latina e Europa. A onda de protestos cresceu após o assassinato da jovem de apenas 14 anos Chiara Páez em 2015. Ela esta- va grávida de seu namorado de 16 anos, que a matou e enterrou em seu jardim com a ajuda de seus pais. Um tweet da jornalista Marcela Ojeda foi o pontapé ini- cial que futuramente desencade- aria na mobilização. “Nem uma SOCIEDADE A nova onda feminista da América Latina veste verde JOÃO LUCAS DA SILVA, JÚLIA KOPP WAGNER, LUÍS HENRIQUE DE MELO E MARÍA BELEN FERREYRA Manifestantes ocupam o Congressional Plaza, parque público de frente para o Congresso Argentino em Buenos Aires. mulher a menos, nem mais uma morte” foi e ainda é a reivindi- cação das mulheres argentinas tendo em vista os números alar- mantes do feminicídio do país, em que a cada 30 horas uma mulher é assassinada. A onda verde O lenço verde passou a ser um símbolo, das mulheres ar- gentinas, pela luta pelo direito de decidir sobre o próprio corpo. Em dezembro de 2020 o objeto se tornou símbolo de conquista após a aprovação da Lei do Aborto, as- sim, a Argentina se tornou o pri- meiro país da região a conquistar o aborto legal, seguro e gratuito. Mas por que um lenço e de tom verde? O lenço é símbolo de resis- tência política na Argentina desde 1977. Quem o utilizava eram mães que tiveram os filhos desapareci- dos durante a ditadura militar ins- taurada no país no ano de 1976. As mulheres protestavam em frente à Casa Rosada, sede da presidência, e para reconhecerem umas às outras elas começaram a utilizar um pano branco na cabeça. No início, eram fraldas de bebês, logo depois se tornaram lenços com os nomes dos filhos desaparecidos bordados no tecido. Essas mulheres e mães fica- ram conhecidas como Las Madres de Plaza de Mayo. O movimento “Ni Una Menos” teve início em 2015 na Argentina e, após cinco anos de luta, o aborto legal, seguro e gratuito foi aprovado no país. 28 sociais Twitter, Facebook e WhatsApp são os primeiros canais a se expressar, compartilhar suas opiniões, mensa- gens e se organizar. A primeira cha- mada foi organizada pelo Facebook desde que nasceu o canal oficial do Ni Una Menos naquela rede. Mas depois de cinco anos consecutivos de orga- nização e preenchimento das praças, acontece algo que paralisa o mundo, uma pandemia. Em 21 de março, o presidente Alberto Fernandez decre- tou a quarentena no país. O que deu origem a dois acontecimentos imedia- tos: não foi possível festejar e reclamar como todos os 3Js, mas foi instado a “seguir nas redes” e foi acrescentada uma nova reclamação, o aumento das reclamações. O isolamento social, pre- ventivo e obrigatório obrigou as víti- mas de violência de gênero a conviver 24 horas com seus agressores. Todos os encontros que aconteceram até então na seguinte ordem: • 3 de junio de 2015 #Niunamenos; • 3 de junio de 2016 #Vivanosque- remos; • 3 de junio de 2017 Basta de femi- cidios, el gobierno es responsable; Mulheres se emocionam com a aprovação da Lei do Aborto no país. • 4 de junio de 2018 Sin #AbortoLe- gal no hay ##NiUnaMenos, No al pacto de Macri con el FMI; • 3 de junio de 2019 “Ni Una Menos por violencias sexistas, económicas, racistas, clasistas a las identidades vulneradas. Aborto legal ya y abajo el ajuste del gobierno y el FMI”; • 3 de junio de 2020 #Vivas, Libres y Desendeudadas Nos Queremo; Uma das maneiras de convi- dar todos a se reunirem foi através de posts no Facebook. A vigília verde Apesar das medidas de saúde contra a Covid-19, o movimento feminista Ni Una Menos e a Campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito se reuniram novamente no dia 29 de de- zembro de 2020. Em um dia de mais de 20 horas se encontraram para ver a transmissão ao vivo da sessão ex- traordinária em tela gigante da apro- vação da lei. Uma vigíliafoi realizada com barracas, cobertores, fogueiras e música ao vivo. Nas redes, uma cam- panha forte com as hashtags #EsAho- raSenado #AbortoLegal2020 #Que- SeaLey encheu as redes novamente. Já o tom verde foi escolhido em 2003 pelo movimento feminista. O motivo? Praticidade. A cor não era usa- da no país para outros movimentos po- líticos e as próprias feministas utilizavam e utilizam a cor lilás para o feminismo, então o verde foi escolhido para repre- sentar a luta das mulheres em decidi- rem sobre os próprios corpos. Praças, avenidas e redes. A primeira reunião do Ni Una Menos foi no dia 3 de junho de 2015. O local acertado foi o Congresso Na- cional da província de Buenos Aires. Por que aquele lugar? Porque ali foi promulgada, em 2009, a Lei 26.648 de Proteção Integral à Mulher, que a po- pulação entendeu como ineficaz. De acordo com estatísticas de ONGs, os assassinatos de mulheres com média de 1 morte a cada 36 horas causaram indignação popular. Naquele dia, cer- ca de 250.000 pessoas compareceram voluntariamente. A convocatória se espalhou por meio de redes sociais em outras 12 capitais argentinas, onde as principais praças e avenidas esta- vam repletas de milhares de mulheres vítimas e familiares, artistas e atrizes reconhecidas, funcionários públicos e estudantes militares. Um fato surpre- endente foi a quantidade de jovens adolescentes que estavam nas ruas. Pandemia, redes e movimento. Dos espaços virtuais o movi- mento feminista também esteve pre- sente. Desde aquele primeiro tweet da jornalista Marcela Ojeda, as redes 29 Conquistas Nos últimos 5 anos, o movimento feminista e outras organizações finalmente posicio- naram o debate feminista como um eixo central na sociedade ar- gentina. Muitos falaram a favor e contra. Embora possamos falar de mais acertos do que erros, como a criação de um Observatório da Violência de Gênero, Centros de cuidado feminino, debates para equalização de salários, assistên- cia às mulheres em todas as áre- as, educação sexual abrangente, discussão por uma linguagem inclusiva e atualmente um Esta- do separado da Igreja. Tem duas frentes de oposição, o movimento Pró-Vida contra o aborto e em de- fesa da vida e os partidos políticos de direita e as multinacionais. No que diz respeito à legislação, ob- teve-se a aprovação dos seguin- tes projetos: LEI DE PARIDADE (2017): Esta- belece que a real igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no acesso aos cargos eletivos e partidários será garan- tida por ações positivas na regu- lação dos partidos políticos e no regime eleitoral. LEI DA MICAELA (2018): Capa- citação sobre gênero e violência contra a mulher. Obriga todas as pessoas que trabalham nos 3 ra- mos do Estado Nacional a receber formação em questões de gênero e violência contra a mulher. Algu- mas províncias fazem uso desta lei em ambientes acadêmicos supe- riores e nas forças policiais. LEI DA BRISA (2019): Estabelece que filhos e filhas de mulheres ví- timas de feminicídio ou homicídio no contexto de violência domésti- ca e/ou de gênero devem ser pro- tegidos para que possam crescer em um ambiente saudável e livre de violência. Por isso, têm direito ao recebimento de uma remune- ração econômica mensal, ao aces- so à cobertura integral de saúde e ao acompanhamento integral durante sua formação. LEI DE INTERRUPÇÃO VOLUN- TÁRIA DA GRAVIDEZ (2020): Estabelece que as mulheres e as pessoas com outras identidades de gênero com capacidade para engravidar têm direito a: a) De- liberar sobre a interrupção da gravidez de acordo com; b) Re- querer atendimento nos serviços do sistema de saúde; c) Receber atenção pós-aborto nos serviços do sistema de saúde; d) Prevenir gravidezes indesejadas por meio do acesso à informação, educação sexual abrangente e métodos an- ticoncepcionais eficazes. Uma pedagogia da crueldade Rita Segato, antropóloga argen- tina que reside há décadas no Brasil, é uma das vozes mais lú- cidas para pensar sobre a política de violência contra as mulheres na América Latina. Para Segato, toda essa violência não pode ser desconectada das estruturas ca- pitalistas que depredam o corpo e o senso de empatia das pesso- as — uma “pedagogia da cruel- dade”, conforme suas palavras. Em uma entrevista para o jornal argentino Página 12, Manifestantes com os lenços verde, símbolo de luta e conquista. Segato afirma que o corpo das mulheres é o suporte privilegia- do para se escrever e transmitir a mensagem violenta por parte do patriarcado, que conta com o apoio também da violência midi- ática que afirma recorrentemente os padrões de beleza a serem se- guidos por todas elas. Segato foi a pioneira em colocar uma hipótese política e econômica na violência femini- na na América Latina, principal- mente em seu país de origem, a Argentina. Em seu livro “As Estru- turas Elementares da Violência” (2003) ela já induzia o leitor a pensar sobre a “violência expres- siva” nos mais variados crimes de gênero. No posfácio da obra que dá continuidade ao trabalho, “As novas formas de guerra e o cor- po da mulher”, ela e a escritora Raquel Gutiérrez escrevem: “Há uma novidade, mesmo em sua repetição. A guerra assume no- vas formas, assume roupas des- conhecidas. E a metáfora têxtil não é por acaso: seu principal marco nessa época é o corpo fe- 30 minino. Texto e território de uma violência que ali se escreve privi- legiadamente. Uma guerra de um novo tipo. A dificuldade de com- preensão, acreditamos, deve ser analisada como um elemento es- tratégico da novidade: como uma verdadeira dimensão da contra insurgência” “Acho que um primeiro pano de fundo que precisa ser esclarecido é a atual fase de ex- ploração, que envolve uma espé- cie de retorno ao trabalho servil, semiescravo e até escravo, pro- duzido pela queda da centralida- de dos salários”, afirma Rita à jor- nalista Verônica Gago, do Página 12. “Esse modo de sujeição das pessoas como mercadorias exi- ge uma insensibilidade particular […] Refiro-me a uma nova fase de conquista dos territórios, de sa- queio de tudo, sem limites legais”. Para ela, o momento vi- vido é comparável à época do reinado: a Coroa passou a ter o poder centralizado, suspenden- do leis e códigos de justiça no momento. O vivenciado no hoje não é diferente, pois a ferocidade mercantilista escorada nos mais diversos governos garante a to- mada de territórios, despejando seus povos de seus espaços de convivência. “Muitas vezes essa crueldade é exibida ainda mais no corpo das mulheres. É o que ocorre, por exemplo, no desloca- mento de populações no Pacífico colombiano”, complementa. A América Latina Segato contextualiza as ações de discriminação que ocor- rem em toda a nossa América La- tina, visto que há forte influência estatal-mercantilista por quase todo seu território. Segundo ela, o espaço comunitário está cada vez mais sendo tomado pelo poder do Estado-Mercado, des- truindo todos os laços coletivistas e empáticos. Essas apropriações geram tensões à medida que o poder do Estado não é somente estatal, mas sim estatal e midiáti- co, fazendo frente aos interesses empresariais. O papel da subjetividade masculina “Obviamente a masculi- nidade está mais disponível para a crueldade porque treinar para se tornar masculino força o de- senvolvimento de uma afinidade significativa, ao longo da história da espécie, entre masculinidade e guerra, entre masculinidade e crueldade, e entre masculinidade e capitalismo’, enfatiza Rita Sega- to. Essa relação da subjetividade masculina não significa não con- siderar fora de seu contexto his- tórico, não assistindo somente como uma relação entre homens e mulheres, mas como essas re- lações são vivenciadas diante das circunstâncias históricas. O feminismo como frente da realidade Segato acredita que as mulheres nunca puderam usu- fruir de tantos direitos, leis, po- líticas públicas e instituições de apoio como no século XXI. Mas nisso há um entrave:esses di- reitos não podem ser comple- tamente utilizados porque “na cama em que estão inscritos há uma pressão na direção oposta”, segundo suas próprias palavras. “Então, ou atacamos esse pro- jeto histórico da capital ou não vamos resolver o problema das mulheres. O feminismo hege- mônico apostou todas as suas fichas na conquista de direitos. Isso mostra uma forte influência europeia, onde a relação entre Estado e sociedade é bastante diferente por razões históricas”, afirma. No recorte histórico, a América Latina os estados repu- blicanos foram construídos pelas elites crioulas, e até hoje somos descendentes do modo adminis- trativo colonial que nos criou. “A luta não pode ser essa [na Amé- rica Latina], porque já tivemos muitas vitórias nesse campo e, ainda assim, o Estado em nossas sociedades tem seu foco na pro- teção da propriedade e não deu mostras de ser capaz de proteger as mulheres e as pessoas”. A solução Por fim, Rita traz como so- lução que as mulheres precisam sair do campo do Estado. Isso não significa abandoná-lo, mas sim realizar outras lutas, somente as lutas das mulheres e em outros campos, principalmente nas áreas “marginais”, como o próprio Esta- do denomina. “Precisamos de la- ços mais fortes entre as mulheres, laços que protejam os espaços de nossas vidas, independentemente de leis e instituições, e que rom- pam o modelo de família nuclear”. Mulheres se emocionam com a aprovação da Lei do Aborto no país. 31 O plano de vacinação dos estados, no Brasil, continua lento pelo nú- mero baixo de vacinas disponíveis para a população. Por isso, mesmo já tendo conseguido tomar as duas doses do imuni- zante contra a Covid-19, os ido- sos ainda não podem voltar para as atividades sociais que partici- pavam antes da pandemia. Depois de todo esse tem- CORONAVÍRUS Idosos pós-vacina e a volta para a vida em sociedade ALINE ANTUNES po isolado, surge a preocupação por parte da família e cuidado- res de como conseguir continuar mantendo seus senhores e se- nhoras em casa, e como vai ser a volta desse grupo para a rotina que tem feito tanta falta também na vida dessas pessoas. Do ponto de vista clínico, ainda é mais seguro continuar respeitando as medidas sanitá- rias. “Uma vez imunizado, o idoso ainda pode se contaminar e apre- sentar sintomas leves e modera- dos da doença, o que pode tra- zer desconforto, além de poder, mesmo imune, ao entrar em con- tato com alguém infectado, car- regar o vírus e ser o transmissor dele para outro indivíduo ainda não vacinado”, explica a geriatra e professora da pós-graduação em Geriatria e Gerontologia da Faculdade IDE (Instituto de De- Especialistas explicam como continuar cuidando desse grupo e como vai ser voltar dessa população para a vida social. 32 senvolvimento Educacional), San- dra Brotto. Os cuidados não ficam apenas com o corpo, mas tam- bém com a mente dessas pesso- as, que sofrem ainda mais com os impactos de uma pandemia. “O envelhecimento, por si só, contri- bui para desencadear ou agravar as condições de saúde mental, entre as quais se tem ansiedade e depressão, sendo consideradas as mais graves e mais inciden- tes no idoso, merecendo ainda mais destaque neste período de pandemia. Isso nos faz pensar e refletir o quão importante é a participação e o convívio desses idosos no meio social”, obser- va a psicóloga e pós-graduanda em Neuropsicopedagogia, Ema- nuella Gouveia. “A vacina vem como um alento no meio disso tudo, e a ansiedade por se proteger faz parte da natureza humana, prin- cipalmente nos idosos, por ser o grupo de maior risco. Estratégias como prática de meditação e ati- vidade física, alimentação leve e balanceada, vídeo-chamada com familiares e amigos, além de ati- vidades de lazer e de estimulação cognitiva podem ajudar a passar o tempo com qualidade como, por exemplo: leitura, trabalhos manu- ais, dança, canto, quebra-cabeça, palavras cruzadas, caça-palavras, bordado e pintura, dentre tantas outras”, orienta Sandra. Daqui para frente, os fa- miliares e amigos serão os gran- des aliados dos anciões. “Cada família, em conjunto com o ido- so, precisa refletir e discutir as estratégias importantes para o seu contexto. Nesse momento de pandemia, o afastamento físi- co reflete ato de amor, carinho e consideração, além de ser estra- tégia de proteção. A família e a sociedade podem se tornar um sistema de apoio ao idoso, reco- mendando-se um relacionamen- to permeado por respeito e ativi- dades diárias de apoio”, esclarece a profissional de psicologia. A ansiedade é muito gran- de para poder voltar a frequentar os lugares que antes faziam parte da rotina, e muitos se questio- nam quando isso vai acontecer. “Acredito que todo recomeço é um processo gradual, afinal esta- mos lidando todos os dias com o desconhecido, desde o início da pandemia. Porém, quando atin- girmos 75% da população vaci- nada e a transmissão começar a cair, o que observaremos com a redução de hospitalizações e morte pela Covid, creio que a se- gurança voltará, assim como toda a agenda social dos idosos, que retornarão aos seus pilates, cur- sos, bailes, trabalho e viagens. A família e os amigos serão primor- diais na recuperação dessa socia- lização”, relata a professora. Essa volta vai precisar de bastante cuidado pois, com o isolamento, alguns transtornos podem ter sido desencadeados. “Situações como a quarentena tendem a despertar sentimentos como solidão, estresse, ansieda- de, tristeza, depressão, entre vá- rios outros transtornos mentais. É importante ficar atento a qual- quer sinal que indique algum dos sintomas. O fator emocional dos Sandra Brotto, geriatra. Emanuella Gouveia, neuropsicopedagoga. idosos em tempos de coronaví- rus e pós-pandemia necessita de atenção”, finaliza Emanuella so- bre a cautela que vai precisar ter quando o antigo normal estiver de volta. 33 Evandro Marcelo de Castro, o entrevistado desta edição do Perso- na, é um psicólogo que, na ânsia de ajudar o próximo, atravessou fronteiras geográficas, sociais e emocionais, e estabeleceu para si o propósito de vida de servir usando de sua formação acadêmica. Apoia-se na Psicologia Positiva para auxiliar com eficácia no desenvol- vimento e valorização da felicidade, trabalhando com a positividade ou com as emoções positivas por meio do otimismo aprendido. PERSONA Um psicólogo dedicado a dar sentido à vida dos fragilizados MÁRCIA MORENO ComTempo - Quem é Evandro? Evandro de Castro - Sou, antes de tudo, uma pessoa dedicada ao que faço, gosto de ver resultados, emo- ciono-me com as mudanças que vejo nas pessoas e nos movimentos, tenho uma sensibilidade bem aguça- da para identificar as necessidades, os conflitos, os problemas, as dificul- dades para, assim, poder ajudar as pessoas. Gosto de servir aqueles que me pedem ajuda. Sou bastante criativo, apre- cio a beleza da vida, tenho coragem para enfrentar desafios e sou muito otimista. Não desisto e não me entre- go com facilidade diante dos obstá- culos da vida. Dedico-me a projetos de prevenção ao suicídio, ao uso abu- sivo de drogas, a questões relacio- nadas a sexualidade, a mobilização social de organizações não-governa- mentais (ONGs), a gestão de pessoas, a orientação profissional, a jovens in- gressantes no mercado de trabalho e muitos outros... CT - Qual a sua formação? Evandro - Sou psicólogo, pedago- go, professor, mestre em Psicologia Clínica, tenho MBA em Coaching e Liderança, especialista em Gestão de Pessoas, tutor em Educação a Distân- cia, voluntário de inúmeros projetos sociais e também atendo em consul- tório de Psicologia Clínica na cidade de Ribeirão Preto-SP. CT - Você queria ser padre quan- do era criança? Evandro - Verdade! Eu queria ser padre. Sempre admirei bastante a mística católica dos jesuítas e os san- tos, tais como São Francisco de Assis, Santo Inácio de Loyola e Nossa Se- nhora de Guadalupe, mas não me adaptei ao rigor dos seminárioscató- licos porque sou muito independen- 34 te, mas encontrei outras maneiras de me dedicar ao sacerdócio ao ajudar as pessoas. A Igreja Católica me inspira muito, o Papa Francisco principal- mente... Os movimentos católicos nos oferecem grande oportunidade de dedicar-se ao próximo. Desde o Movimento Vicentino de apoio aos pobres, a Toca de Assis que ampara pessoas em situação de rua e as con- gregações com seus carismas e pas- torais. Participo de muitas iniciativas e isso me faz muito bem. CT - O que te levou a formar-se em Psicologia? Evandro - Antes de desejar ser psi- cólogo, as pessoas me diziam que eu tinha que ser psicólogo porque sabia ouvir, aconselhar e apoiar as pessoas em crises. Sempre fui líder nos grupos que participava e sempre tomava ini- ciativas que, normalmente, as pessoas não estavam dispostas. Daí refleti e concluí que devia ser psicólogo e esta decisão foi a melhor que tomei em toda a minha vida. CT - Qual a sua orientação teórica na Psicologia? Evandro - Tenho simpatia pela Psi- canálise porque Sigmund Freud é de um brilhantismo ímpar, mas a prática levou-me para a Psicologia Positiva, movimento científico capitaneado por Martin Seligman que preconiza a valorização dos potenciais humanos, daquilo que temos de melhor e o seu constante florescimento. CT - Como foi sua estada em Ha- vana, Cuba por dois anos e meio? Evandro - Fiz mestrado em Psico- logia Clínica na Universidade de Ha- vana. Foi uma experiência incrível tanto nos aspectos cultural, social, educacional, humano, espiritual, po- lítico, etc. Conhecer a realidade dos cubanos com tamanha dificuldade econômica, a falta de liberdade, os conflitos da ilha caribenha e a cultu- ra resiliente dos cubanos me emo- cionou profundamente. O cubano é um forte. Mesmo não estando mais lá, ainda admiro profundamente esta Psicologia Comunitária Cubana que é de fácil acesso a toda sua popula- ção e está inserida em toda a rede de saúde pública, realidade esta que nós não temos no Brasil. Eu mesmo sem- pre estou aberto a convites de proje- tos comunitários. CT - Fale sobre a sua atuação como no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Evandro - Foi uma entrega profis- sional imensa a pessoas em diversas situações de vulnerabilidade. Apren- di muito, servi bastante e sempre fui acessível e aberto. Lembro-me com um certo orgulho de poder ter ajudado no dia em que o bispo da cidade pediu que eu fosse ao hospital local convencer uma re- cém parturiente a entregar seu bebê natimorto para ser velado pois ela se recusava a soltar do colo a pequena criatura sem vida. Ninguém conse- guia fazê-la resignar-se com a situ- ação dramática. Eu disse a ela: “Seus outros filhos estão te esperando em casa, estão sentindo a sua falta e você precisa ajudá-los. Vamos entregar este bebezinho a Deus. A vida precisa continuar”. Foi difícil, mas deu certo. CT - Como é seu engajamento como psicólogo voluntário em instituições, escolas, igrejas, etc? Evandro - Minha missão sempre foi a de fazer diferença e apoiar àqueles que muitas vezes não têm acesso a este tipo de atendimento. Um psi- cólogo tem inúmeras ferramentas técnicas para apoiar àqueles que enfrentam um sofrimento psíquico, tais como depressão, ansiedade, an- gústia, incerteza, insegurança, etc. Eu estou aberto aos movimentos sociais que apoiam os Direitos Humanos. São, realmente, projetos sensacio- nais e tenho muito interesse em estar sempre engajado. CT - Como você ingressou na Educação? Evandro - Comecei como professor de espanhol. Somos poucos e as es- colas começaram a pedir para eu dar aula. Eu já tinha a licenciatura em Psi- cologia e então fiz Letras Português/ Espanhol. Foi um ótimo começo. Continuo lecionando espanhol e, re- centemente, concluí a terceira facul- dade: Pedagogia. CT - Fale sobre seu segundo livro, “Florescendo o Seu Pro- pósito de Vida - Em Busca de Autorrealização”. Evandro - Este meu trabalho veio reforçado pela Escrita Tera- pêutica como técnica a ser uti- lizada de forma multidisciplinar dentro da abordagem da Psico- logia Positiva. É um conjunto de exercí- cios temáticos que ajuda demais na reflexão e na intervenção, tan- to individual como grupal. Muitos profissionais usam o meu livro em suas práticas e me elogiam pelo apoio do livro. Pessoas que estão em busca de autoconhecimento sentem-se muito satisfeitas com meu livro. CT - Você tem um propósito de vida definido? Evandro - Sim. Meu propósito de vida é servir por meio da Psico- logia, amenizando o sofrimento psíquico das pessoas, ajudando -as a encontrar caminhos e solu- ções para seus problemas. CT - Como devemos enfrentar este momento desafiador cha- mado de “novo normal” no qual estamos submersos? Evandro - O momento é desafia- dor, mas não tem volta. Se temos que mudar... vamos mudar... não há escolha! A questão é: como vamos fazer? Cada um terá sua maneira peculiar e vitoriosa de superar cada momento. O futuro é incerto para todos, mas o presente tem que ser feito de boas escolhas. Temos que ter fé, otimismo, esperança, abertura ao novo, flexibilidade e acreditar que tudo vai dar certo. CT - Uma reflexão para nossos leitores. Evandro - Vamos seguir em frente. Não importa de que maneira. Muitas pessoas dependem da nossa decisão de não desistir, de continuar a cumprir com o propósito de nossas vidas. CT - Evandro por Evandro. Evandro - Evandro é uma pessoa que vale a pena ter por perto. 35 https://revistacomtempo.com/colunas/como câncer, existem os nódulos benignos, que são mais comuns em adolescentes e jovens com menos de 30 anos, mas podem também ser encontrados em mulheres de qualquer idade. Esse tumor é classifi cado como fi broa- denoma. O real motivo pelo qual esses nódulos surgem ainda é desconhecido. O fi broadenoma pode ser detec- tado através da palpação das ma- mas, complementado por exame de ultrassom, e o diagnóstico de certeza é realizado através de exame histológico. Geralmen- te, o nódulo tem uma caracte- rística ovalada com as margens regulares, movem-se facilmen- te pela pele, com tamanhos de aproximadamente 2 a 3 cm, mas existem casos excepcionais que podem chegar até 8 cm, sendo denominados como fi broade- noma gigante. Os nódulos que surgem ainda na adolescência são chamados de fi broadenoma juvenil, costumam crescer rápi- do, causando desconforto e al- teração estética da mama. Nesse caso, o aconselhável é a cirurgia para a retirada dos nódulos. De acordo com informações di- vulgadas pela Febrasgo (Fede- ração Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), a presença do fi broadenoma não aumenta o risco de se tornar um câncer de mama, apenas 0,1% a ARTIGO Fibroadenoma: devo me preocupar? ELENILDE CORRÊA 0,3% dos casos apre- sentam uma transfor- mação maligna. Diagnóstico O diagnóstico do nó- dulo pode ser feito através do exame de ultrassom das ma- mas, porém a bióp- sia é importante para determinar o grau de benignidade. A bióp- sia é realizada com o auxílio de uma agulha que retira fragmentos do tecido do nódulo. Tratamento O acompanhamen- to clínico realiza-se a cada seis meses. Caso o nódulo não apresen- te nenhum desconfor- to, pode ser mantido sem a necessidade da paciente se submeter a uma cirurgia para a retirada dos fi broade- nomas existentes na mama. No entanto, se o nódulo mamário classifi cado como fi - broadenoma aumen- tar de tamanho, tor- nando-se incômodo, o recomendado pelos ginecologistas é a reti- rada. De acordo com Rodri- go Colmanetti, gine- cologista e obstetra, o fi broadenoma não é considerado uma le- são pré-maligna. “Mulheres com diag- nóstico de fi broade- noma devem, inicial- mente, consultar seu ginecologista semes- tralmente até a estabi- lização do crescimen- to desses nódulos e, posteriormente, ter consultas anuais sem- pre complementadas por exames radiológi- cos”, orienta o médico. 5 De tempos em tempos, nos deparamos com alguma produção – seja um filme ou livro – que coloca nossa percepção sobre a realidade em xeque. A pandemia tem sido um perí- odo de fertilidade para isso, proporcio- nando inúmeras revisões de obras que, até então, eram consideradas como ficção (científica ou não), algumas até sofríveis, fazendo com que a categoria dessas narrativas chegasse a um novo patamar muito superior e, também, duvidoso: tornaram-se “premonições”. Do ponto de vista coletivo, espera-se que seja um evento passa- geiro (o efeito “premonição”; a pan- demia é algo muito mais complexo!), logo caindo no esquecimento, uma moda promovida por explorações excessivas da mídia e do mercado. É possível que o maior destaque seja Dan Brown, ao conseguir esse feito com primor no seu livro “O Código da Vinci”. Considero um exercício de- licioso de imaginação e criatividade, um jogo linguístico, principalmente por fazer com que tantos componen- tes distantes entre si, no tempo e no espaço, unam-se em uma narrativa convincente. Uma parcela significativa de leitores se entregou ao conto dos descendentes de Maria e Jesus, bus- cando mais informações a respeito COLUNISTA Limites: ficção ou realidadeCÉSAR BELARDI de seitas obscuras, signos espalhados pelo mundo e as figuras históricas que construíram tudo isso. E, para o prazer desses leito- res curiosos, incluindo este que vos es- creve, havia uma profusão de subpro- dutos disponíveis para suprir os mais ávidos teóricos da conspiração. Não foi um grande problema, afinal ne- nhum estrago permanente foi cau- sado e, logo, essa diversão curiosa foi caindo no esquecimento. Houve um breve retorno quando da estreia do filme, mas o terreno já estava bastante ressecado para dar mais algum fruto. O mesmo pode acontecer com outros temas. Discos voadores, por exemplo. Alienígenas são um cardápio básico, mas se colocar um tempero novo, voilà! Temos uma nova corrente conspiratória, com novos livros, revistas, podcasts, documen- tários e tudo o mais que for possível receber uma grife. Pode fazer a lista: meteoros apocalípticos, criaturas das profun- dezas-das-montanhas-das-geleiras ou de onde quer que você imaginar, vírus + bactérias + epidemias, fantas- mas e assombrações... E é aqui que vou parar! Não em uma categoria espe- cífica, do “sobrenatural”, mas em uma categoria que coloca em dúvida nossa percepção da realidade individual- mente, não apenas como um coletivo. Socialmente, podemos até entender e participar de eventos de catarse como “Corra!” ou “O Poço”, instigantes e perturbadores em uma certa dose que funciona para o coletivo. Nesse ambiente, poderão surgir discussões as mais diversas sobre as motivações e conflitos propostos pelas obras, mas com uma certa parcimônia. Sempre haverá alguém a discutir com maior profundidade, sob o olhar psicológi- co, sociológico, antropológico aquela narrativa. Mas, e na intimidade? Qual o motivo de você ter perdido o sono depois de ver “Midsommar”? Afinal, não é só um filme? Algumas das provocações promovidas por poucas obras nos fa- zem adotar um olhar de dúvida, qua- se desconfiança, direcionado para os outros quando, na verdade, o impasse está dentro de nós, nos fazendo en- frentar nosso íntimo com questiona- mentos no lugar de um personagem específico, nem sempre o herói. Quer continuar mergulhado nesse universo? A continuação deste texto (partes 2 e 3) você encontra no nosso site, na coluna Belardi ComTempo. https://revistacomtempo.com/category/belardi-comtempo/ 6 Heitor, João Pedro, Anne Ma- ria, Sarah, Eloá, Miguel, Ga- briella, Gabriel, Manuela, João Guilherme, Sofia Helena, Isis, Cecília, Giovanna, Heloisa, Lavínia, An- tony, Aghata, Jamilly, Joaquim, Lucas, Bianca, Maria Alice, Davi… Todos eles clamam por amor, um pouquinho a mais, e este pedido vem por um gesto e pode ser dado pela atenção ou um olhar mais apurado para cada uma destas vidas. Todos estes nomes e tantos outros são de crianças diagnosticadas com AME, a Atrofia Muscular Espinhal, doença rara que, de acordo com o Ministério da Saúde, entra nessa clas- sificação atingindo 65 a cada 100 mil pessoas. Ainda no site do MS, é apon- tado que, “de acordo com estudos, 80% das doenças raras decorrem de fatores genéticos e 20% estão distri- buídas em causas ambientais, infec- ciosas e imunológicas”. A AME, segundo o Iname (Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal), afeta até 1 em cada 11 mil nascimentos, mas também é a princi- pal causa genética de morte infantil. Nesta reportagem, a ComTempo vai lhe contar a história de algumas des- tas crianças citadas no início do texto, através de seus familiares que lutam, diariamente, em campanhas nas redes sociais e nas ruas para conseguirem valores milionários para salvar a vida de cada uma. Você também confere en- trevistas com grupos voluntários que auxiliam estas famílias e vai entender quais são os tipos da doença, quem ela afeta em suas variações e conhecer os medicamentos disponíveis. SAÚDE AME-OS MARCOS PITTA O que é a AME O Iname disponibiliza um li- vro que explica a AME como: “uma doença genética que causa fraqueza dos músculos que controlam o mo- vimento e a respiração. A doença é progressiva, o que significa que os sin- tomas pioram com o tempo. A AME é causada pela degeneração progressi- va dos neurônios motores da medu- la espinhal e dos núcleos motores de nervos cranianos”. A explicação no livro continua enfatizando que “os neurônios moto- res são as células que controlam as ati- vidadesmusculares essenciais como andar, falar, engolir e respirar. Eles li- gam a medula espinhal aos músculos do corpo. Uma pessoa nasce com to- dos os neurônios motores que ela terá durante toda a sua vida. Neurônios motores são células que não se rege- neram, logo, quando morrem, não se desenvolvem novamente. TIPO INÍCIO DOS SINTOMAS SINTOMAS Hipotonia profunda e insuficiência respiratória grave já ao nascimento. Não consegue sentar sem apoio. Permanece sentado de forma in- dependente, porém não consegue andar dessa mesma forma. Anda de forma independente, porém pode perder esta habilidade com a progressão da doença. Anda e não perde esta habilidade, podendo apresentar certa fraqueza muscular. mais de 21 anos mais de 18 meses menos de 18 meses 0 a 6 meses Pré-natal0 1 2 3 4 Causas e tipos da AME Uma mutação no gene SMN1, no cromossomo 5, faz com que sejam produzidos baixos níveis de proteína de sobrevivência do neurô- nio motor, o SMN. É justamente essa proteína, a responsável por ajudar a manter saudáveis os neurônios moto- res que estão na medula espinhal. Por conta da baixa produção, eles começam a se degenerar e, con- sequentemente, os músculos ficam fracos e, com o tempo, atrofiam-se, o que gera fraqueza nos braços e per- nas, além da dificuldade em engolir e até respirar. Na explicação do livro pre- parado pelo Iname, entende-se que a doença geralmente ocorre em pesso- as que herdam duas cópias defeituo- sas do gene SMN1, uma vem do pai e a outra da mãe. 7 Medicamentos para tratamento da AME Ainda no texto elaborado pelo Iname, independente do tipo de tratamento recomendado, é importante ser iniciado o mais rapidamente possível. “O início precoce da terapia é a única maneira de evitar a de- generação dos neurônios. Em ensaios clínicos de terapias baseadas em SMN, os pacientes que iniciaram o tratamento mais cedo tiveram melho- res resultados do que aqueles que iniciaram o tratamento mais tarde”. Alguns medicamentos já estão aprovados para uso, são eles: Spinraza, Risdiplam e Zolgensma. Spinraza O medicamento foi aprova- do pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a forma de administração é intratecal e deve ser conduzida por profis- sionais. Mais conhecido por seu nome comercial, Spinraza é uma terapia que aumenta a produção da proteína SMN funcional pelo gene SMN2. O tratamento consiste em duas fases: na chamada fase de ata- que, são administradas 4 doses por 2 meses. Na fase de manutenção, que se inicia a partir da 5ª dose, o paciente deve receber a aplicação a cada 4 meses, pelo resto da vida. Portanto, no primeiro ano de trata- mento, o paciente recebe seis do- ses. A partir do segundo ano, rece- be três doses por ano. O Spinraza é disponibilizado pelo SUS desde 2019 por meio do PCDT (Protocolos Clínicos e Dire- trizes Terapêuticas) para pacientes diagnosticados com AME Tipo 1. Embora existam evidências de que a medicação traga benefício para pa- cientes de todos os tipos e idades, o protocolo tornou o nusinersena Risdiplam Este medicamento é uma terapia que atua no gene SMN2. É uma molécula pequena que faz com que esse gene produza uma proteína SMN mais completa. É administrado via oral, atravessa a barreira hematoencefálica e tem ampla distribuição tecidual. O Ministério da Saúde afirma que a Anvisa registrou o produto “con- forme as normas da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 205/2017, que estabelece procedimento especial para o registro de medicamentos destina- dos ao tratamento de doenças raras, como é o caso da AME”. Zolgensma É este o medicamento herói dos pacientes com AME, e custa valor milionário em dólares que, convertidos em reais, apro- xima-se hoje da casa dos R$ 12 milhões. É o Zolgensma que está na vaquinha online das campa- nhas de doações do João Pedro e da Anne Maria. É também o medicamento do tão esperado Dia Z do João Emanuel, persona- gens que você irá conhecer, nas suas histórias adiante. Este medicamento me- lhora os níveis de proteína SMN funcional através da introdução na célula do paciente de um novo gene SMN1. A terapia gênica Zol- gensma, cuja via de administração é endovenosa, em dose única, foi aprovada pela Anvisa em agosto de 2020. Nesta terapia, uma có- pia do gene SMN1 é inserida em um vetor viral AAV9 não replican- te. No DNA viral, eliminam-se os genes que permitem replicação e patogenicidade do vírus e, no lugar, é inserido o transgene hu- mano normal com o respectivo promotor. O vetor AAV9 é capaz de atravessar a barreira hemato- encefálica, permitindo assim a ad- ministração endovenosa. Como o fragmento de DNA inserido fica retido no núcleo da célula de for- ma permanente, o medicamento é aplicado em uma só dose. É este o medicamento que o João Pedro precisa. (nome oficial do medicamento) dis- ponível na rede pública para pacien- tes pré-sintomáticos com até 3 có- pias do SMN2, e para pacientes com AME do Tipo 1 com início dos sin- tomas antes de 6 meses de idade e sem necessidade de ventilação me- cânica permanente, como também para pacientes com diagnóstico molecular em fase pré-sintomática e até 3 cópias do gene SMN2. An- tes de qualquer movimentação para buscar o tratamento com Spinraza, é preciso confirmar o diagnóstico através do exame de DNA. De acordo com o site do Ministério da Saúde, o processo de registro deste medicamento foi priorizado na análise assim que foi protocolado junto à Anvisa, “com o imediato início da avaliação tan- to da documentação referente à comprovação de segurança e efi- cácia, quanto do dossiê de tecno- logia farmacêutica’’. Na ocasião, o diretor-pre- sidente da Anvisa, Jarbas Barbo- sa, dizia: “É um medicamento que muda a história da AME, dando uma possibilidade concreta de melhora significativa na qualidade de vida dos portadores dessa do- ença”. O MS ainda elucida: “Como se trata de uma substância inédi- ta no país, foi um processo mais complexo, envolvendo a avalia- ção crítica de informações legais e técnicas. Mesmo assim, dado o caráter prioritário que a Anvisa im- pôs, a análise foi feita de maneira célere, com o registro sendo con- cedido em cinco meses, desde sua solicitação junto à Agência”. 8 Ame o João Pedro O João Pedro é de Jaboti- cabal, no interior de São Paulo, e é o primeiro personagem real a en- trar nesta reportagem. Os pais, em entrevista a ComTempo, contam que o diagnóstico de AME Tipo 2 foi confirmado após teste genético: “Percebemos que ele não firmava as pernas quando estava com 9/10 meses e não engatinhava. Ficamos preocupados e procuramos um neuropediatra que, de cara, já ficou desconfiado e pediu o teste que confirmou a doença”. Para a mãe de João Pedro, sua rotina é de muito empenho para conciliar todas as atividades que ele precisa fazer durante a se- mana: “Nós não podemos parar, são graças a estas ações diárias que ele ainda está bem. O nosso dia a dia na convivência com a doença é normal, dentro do cro- nograma dele. De segunda a sexta ele faz as terapias: três vezes por semana tem fisioterapia; duas ve- zes por semana tem terapia ocu- pacional; uma vez é atividade com fono e, outro dia da semana, ele faz uma terapia que se chama bo- bath. Além disso, o João tem, duas vezes por semana, hidroterapia”. A mãe explica que, exceto a hidro, todas as outras terapias são realizadas pela APAE de Jaboticabal: “Os profissionais são maravilhosos e ele gosta muito”, completa. O Zolgensma, medicamen- to que ele precisa para conti- nuar vivendo, precisa ser apli- cado antes dele completar 2 anos de vida, é o que conta a mãe na entrevista: “A aplica- ção do medicamento é feita no Brasil, o remédio vem para cá e é feita num hospital em São Paulo, com a médica dele. Trata-se de uma aplicação sim- ples, intravenosa, com duração de mais ou menos uma hora”. Para que João consiga o medicamento, familiares, amigos, conhecidos e muitas pessoas se mobilizaram em campanhas como vakinha vir- tual,pedaladas, lives, feiras, venda de copos e camisetas e diversos outros meios para arrecadarem o total de R$ 12 milhões: “As arrecadações es- tão indo bem, as pessoas têm ajudado bastante. Para quem quiser contribuir, temos as pla- taformas digitais, como o face- book e instagram e as pessoas podem entrar, seguir e contri- buir. Se não puder contribuir, pode ajudar divulgando para amigos e conhecidos. Isso já ajuda muito. O prazo final de arrecadação é setembro, no máximo outubro”, enfatiza a mãe de João Pedro. O custo do medicamento é elevado mesmo e a família nunca recebeu parecer oficial sobre o motivo pelo qual Zol- gensma é tão caro: “Ele resti- tui o gene que a pessoa com AME não tem. É muito estudo envolvido, acredito ser por isso o custo tão elevado do medicamento”. Ajude o João Pedro. Clique aqui. https://www.instagram.com/ameojoaopedro/ 9 O que diz a farmacêutica Novartis é a farmacêutica responsável pelo Zolgensma que explica: “Este é um medicamento classificado como terapia avançada e tem mecanismo de ação único, não existindo, atualmente, no mer- cado brasileiro, medicamento que trate a AME com terapia gênica”. A farmacêutica conversou com a ComTempo para explicar que Zolgensma é uma terapia ino- vadora que agrega valor aos pa- cientes que sofrem de uma doen- ça genética grave e progressiva e abre novas possibilidades devido ao potencial de tratar doenças até então com poucas opções tera- pêuticas, melhorando a qualidade de vida dos pacientes por evitar a progressão de sintomas degene- rativos característicos da doença; contribuindo também para a so- ciedade em geral, na medida que reduz os impactos na saúde. A reportagem procurou entender também como é a pro- dução do medicamento, compo- sições e benefícios do Zolgens- ma para os pacientes com AME e de acordo com a resposta da farmacêutica, esse remédio é “o único tratamento para AME de- senvolvido para abordar direta- mente a causa raiz da doença, fornecendo uma cópia funcional do gene SMN1. Por se tratar de uma terapia gênica baseada em um vetor viral adeno-associa- do, o Zolgensma é administrado por meio de uma injeção intra- venosa única, em procedimento hospitalar conduzido por médi- co especialista, conforme méto- dos estabelecidos — enquanto outras terapias disponíveis para AME são de uso crônico. A admi- nistração necessita de uma série de preparos e exames prévios e posteriores à infusão, de forma a garantir que o paciente esteja em condições clínicas adequadas para receber o tratamento e que, posteriormente, continue sendo monitorado por seu médico”. A explicação continua: “Zolgensma é uma inovação que traz novas possibilidades para o tratamento da AME. Ao inter- romper ou evitar a progressão da doença, os tratamentos mul- tidisciplinares complementares passam a visar a melhoria contí- nua dos pacientes. Até o presente momento, o tratamento demons- trou durabilidade sustentada de 5,2 anos após a administração, sendo que o paciente mais velho tratado tem 6,7 anos de idade. As evidências científicas sobre a eficácia e durabilidade do efeito de Zolgensma têm aumen- tado gradativamente, demons- trando benefícios em relação à melhora da sobrevida, função motora, conquista e manutenção de marcos do desenvolvimento, função respiratória e bulbar”. Outro questionamento foi a precificação do medicamen- to no Brasil, caso haja aprovação para colocá-lo à venda aqui no país. A explicação foi a seguinte: “Tendo sempre em vista a reali- dade socioeconômica local, foi realizado um grande esforço pro- pondo que o preço lista, que é o (maior preço possível de ser uti- lizado), de Zolgensma no Brasil, seja o menor preço lista praticado no mundo. Uma vez que o pro- cesso de definição final do preço lista seja finalizado, a empresa pretende ofertar ao setor público, condições diferenciadas, de forma a reduzir o impacto orçamentário e viabilizar o acesso dessa terapia reconhecidamente inovadora aos pacientes, no país”. Questionada sobre o núme- ro de pedidos para o medicamento no Brasil, a Novartis disse que a em- presa não comenta o assunto. O que diz o SUS A ComTempo procurou o Ministério da Saúde e questionou quantos pacientes são atendidos pelo SUS e recebem o tratamento gratuitamente para AME. O MS retornou nossa pergunta espe- cificando: “O medicamento nusi- nersena 2,4 mg/ml foi distribuído em novembro de 2019 e, desde então, foram atendidos 201 pa- cientes, sendo que, desse total 169 continuam ativos. Portanto, não existem pacientes diagnos- ticados com AME tipo 1 em lis- ta de espera para recebimento deste medicamento. A partir do momento em que as Secretarias Estaduais de Saúde (SES) e do Distrito Federal encaminhem as informações sobre cada paciente novo com AME tipo 1 cadastra- do no Componente Especializa- do da Assistência Farmacêutica (CEAF), o medicamento é envia- do imediatamente”. Nós também pergun- tamos como as famílias destes pacientes recebem o tratamen- to: “Para ter acesso aos medica- mentos, o paciente deve se en- quadrar nos critérios de inclusão, condutas descritas nos Protoco- los Clínicos e Diretrizes Terapêu- ticas (PCDT) de Atrofia Muscular Espinhal (PCDT) e apresentar os seguintes documentos: • Cópia do Cartão Nacional de Saúde (CNS); • Cópia de documento de iden- tidade; • Laudo para Solicitação, Ava- liação e Autorização de Me- dicamentos do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (LME), adequa- damente preenchido e assi- nado pelo médico prescritor; • Prescrição médica devida- mente preenchida; • Demais documentos e exa- mes exigidos no PCDT de AME 5q tipo 1, publicado pelo Ministério da Saúde. O Ministério da Saúde informou ainda, que em relação aos pacien- tes com AME Tipos 2 e 3, o me- dicamento nusinersena não foi incorporado no âmbito do SUS. Quer saber mais sobre a AME? Clique neste quadro e se informe! https://iname.org.br/ 10 Ame a Anne Maria Borboletinha. É assim que a pequena Anne Maria é conhecida nas redes sociais, pela campanha para arrecadar os mesmos R$ 12 milhões que João Pedro precisa. Anne é de Porto Alegre-RS e a mãe dela também conversou com a ComTempo para contar a história desta guerreira que luta contra a AME: “Quando nasceu, ela estava bem, não apresentava nada que nos chamasse a atenção e, por isso, foi para casa com dois dias de vida”. A mãe continua con- tando que, antes mesmo de completar 1 mês de vida, a pe- quena tinha um ronco no pei- to e ao ser amamentada, esse ronco aumentava e a deixava preocupada e frustrada: “Eu le- vava no posto e eles só me da- vam soro fisiológico pra por no nariz dela e essa rotina foi se repetindo por mais ou menos um mês, até que marcaram pediatra no ambulatório, em 26 de fevereiro [de 2021]. Foi o dia em que Anne nunca mais voltou pra casa, pois ficou in- ternada porque engasgava-se muito no peito e apresentou uma hipotonia, uma paralisia nos músculos”. A partir disso, Anne passou fazer, todos os dias, exa- mes diversificados, e os médi- cos não encontravam nada que pudesse orientá-los, segundo relato da mãe, que continua: “Foi, então, que eles partiram para o lado das doenças raras e foi realizado um exame e, de cara, já diagnosticou AME Tipo 1 severa. Esse resultado preci- sou vir de São Paulo e demorou cerca de três semanas”. A mãe de Anne Maria conta que ao ser confirmada a AME, os médicos logo solicita- ram vaga no Hospital das Clí- nicas: “O problema é que ela já estava na UTI e encontrar uma vaga foi difícil, demorou para encontrar um leito. Ela estava entubada e precisaram retirar o tubo para colocar o bipap, no formato de girafinha para ela continuar respirando. Com isso, foi solicitada vaga na enfermaria do HC de Porto Alegre e conseguimos”. A mãe da Anne conta ain- da que, no mês de maio, pouco antes do fechamento desta edição, já haviam sido aplicadas três doses do Spinraza e ela já havia notado diferença nos braços da filha:“Os médicos dizem que para confir- marem algo no quadro dela, só é eficaz depois de 2 ou 3 meses de aplicação. Ela passou por duas ci- rurgias recentemente, uma gastro e outra para corrigir o refluxo”. Até o fechamento desta reportagem, Anne permanecia no hospital e, de acordo com a mãe, poderia receber alta a qualquer momento para con- tinuar o tratamento em casa. Para ajudar a Anne Maria, clique aqui. https://www.instagram.com/ameannemaria/ 11 João Emanuel teve seu dia “Z” Dia “Z” é como as famí- lias denominam o dia em que o paciente vai, finalmente, receber a aplicação do Zolgensma. Quem conseguiu o medicamento foi João Emanuel, do Rio Grande do Sul, que teve seu dia “Z” em 4 de maio de 2021. Para entender como foi a história do João até a tão aguar- dada aplicação, nós conversamos com os pais que contaram como o diagnóstico surgiu: “Aos 4 meses percebemos fraqueza muscular, então foi coletado exame de san- gue, que deu positivo para AME Tipo 1”, explicam os pais que nos falam também da arrecadação: “A campanha teve duração de 1 ano. Iniciou pequenininha e no início foi bem difícil. Tínhamos poucos voluntários e já estávamos na pan- demia. Mas, com o esforço das pessoas que chamamos de “Anjos do João” conseguimos alcançar o Brasil e até o mundo. Então, a his- tória do João se espalhou e a cam- panha cresceu. O valor necessário foi conquistado através da ajuda de muitas pessoas, que doaram, fizeram rifas, eventos, caixinhas de troco solidário, pedágios, lives, teve também um grupo que bus- cou apoio de artistas, e muito mais. Os voluntários ajudaram de todas as formas, e somos imensamente gratos a eles”. A ComTempo quis saber a sensação dos pais quando soube- ram que Zolgensma seria possível: “Uma mistura de emoções como esperança, alegria, gratidão, amor e muita felicidade. O coração ficou a mil. A notícia nos mostrou que quando temos fé em Deus, tudo é possível, e o sentimento de grati- dão ficará pra sempre em nossos corações”, emocionam-se os pais. Após a aplicação do medicamento, os pais contam que “ainda são ne- cessárias as terapias que João con- tinua fazendo: fisioterapia, acom- panhamento com fonoaudiólogo, nutricionista, pneumologista. As terapias são necessárias para que os músculos sejam exercitados e, aos pouquinhos, os movimentos perdidos possam voltar”. Como mensagem final às famílias que estão passando pelo tratamento da AME ou para aque- las que ainda estão no estágio inicial, acompanhando a arrecada- ção, os pais do João Emanuel di- zem que, em primeiro lugar, deve vir a confiança em Deus: “Ter fé e esperança que tudo dará certo apesar de parecer quase impossí- vel; confiar nas pessoas que estão com vocês nessa luta e passar con- fiança em tudo; ser muito transpa- rente em tudo”, finalizam. 12 Como age Zolgensma no cor- po: explica quem entende ComTempo conversou com Ana Lúcia Langer, médica, pediatra e Presidente da Associa- ção Paulista de Distrofia Muscu- lar. A especialista começa di- zendo o que é importante: “É bas- tante importante que o pediatra acompanhe o desenvolvimento neurológico do paciente, qual- quer atraso é preciso que seja identificado e investigado. Uma criança que demora para se sen- tar, uma cabeça que demora para se fixar no pescoço, uma demo- ra na marcha, tudo isso precisa ser investigado”, explica a médi- ca, que continua: “Muitas vezes, a gente percebe que os médicos taxam as crianças de preguiço- sas, começam fisioterapia para estimular e, na verdade, o diag- nóstico é colocado em segundo plano”. Segundo Langer, sobre o diagnóstico da AME, “a primei- ra coisa que eu falo, se eu tenho alguma suspeita de hipotonia ou atrofia, é ir direto para um diag- nóstico genético para pesquisar AME. Alguns colegas dosam a en- zima creatinofosfoquinase, uma enzima dentro do músculo que pode estar aumentada nas formas menos severas, como a AME Tipo 3, quando o paciente chega a ter marcha, por exemplo”. A médica diz ainda que outro exame pedido por médicos é a eletroneuromiografia: “Isso acontece quando os médicos es- tão mais perdidos nos casos. Para realizar este exame, são colocadas duas agulhas dentro dos múscu- los, por onde passa uma corrente elétrica e, através disso, pode-se saber se a doença investigada en- contra-se no músculo ou no mo- tor”, detalha. No entanto, Langer res- salta que o padrão ouro para diagnosticar a AME, atualmente, é o exame genético: “Muitas as- sociações têm se esforçado para colocar esse exame dentro do teste neonatal, para um diagnós- tico precoce que possibilite tratamento prévio que os danos sejam menores às crianças”. Zolgensma no corpo do paciente e o diag- nóstico da AME atra- vés do gene SMN1 Langer explica que existem duas di- ferenças de aprovação do uso do Zolgensma em pacientes. A primeira é pela Agência Regulatória Ameri- cana e a segunda pela Agência Europeia de Medicamentos: “Para que o paciente tome Zolgensma, a partir das exigências do corpo americano, o paciente precisa ter o diagnóstico de AME Tipo 1 ou 2 até os dois anos de idade. Já pelo corpo europeu, não existe limite de idade, mas uma exigência de tomar o medicamento até que a criança alcance os 21 quilos”, ex- plica a médica. Apesar desta diferença, as famílias das crianças com AME ainda precisam entender os pro- tocolos rígidos para aplicação do medicamento. Langer explica a recomendação: “O uso concomi- tante de corticoide desde alguns dias antes da aplicação até algum tempo depois. É um protocolo clí- nico e existe a possibilidade tam- bém de efeitos colaterais, princi- palmente relacionados ao fígado, então é necessário uma monito- rização desses pacientes, através de enzimas hepáticas para que estes efeitos sejam controlados. Por isso, os corticoides são pres- critos”. Sobre a atuação do me- dicamento, a médica explica, de- talhadamente, como é o funcio- namento do organismo de um paciente com AME, comparando com quem não tem a doença: “Existe uma proteína no neurô- nio motor chamada SMN1 e essa proteína é codificada pelo gene de mesmo nome. Do lado desse gene existe um outro gene meio defeituoso que é o SMN2 que, provavelmente, durante a evolu- ção, foi perdendo a importância. Quando se compara esses dois genes, percebe-se que o SMN1 fabrica 100% de proteínas funcio- nais e o SMN2 é truncado, é de- feituoso e só fabrica 10% de pro- teína funcional e 90% de proteína truncada. Uma pessoa que não tem AME, possui o gene SMN1 e fabri- ca essa proteína. Quando se tem AME, o paciente apresenta defei- to na produção desse gene SMN1 e só pode contar com o SMN2 e quanto mais cópias SMN2 o pa- ciente tiver, melhor será o fenóti- po dela. Então, quando se tem en- tre uma e duas cópias de SMN2, o diagnóstico é do tipo grave, a AME 1; de duas a três cópias, po- de-se diagnosticar a AME de tipo 2 e; quando se tem mais de três cópias, é possível diagnosticar o tipo 3”. Langer segue seu racio- cínio dizendo que o Zolgensma, para atuar no organismo, como está prescrito na bula: “É neces- sário pelo menos 3 cópias do SMN2”, e continua: “Zolgensma pega o gene SMN1 e injeta na criança. Então, o paciente vai fabri- car o SMN1 e, quanto mais preco- ce isso acontecer, melhores serão os efeitos. Portanto, eu vou dar para o paciente o gene SMN1 que é exatamente a causa da doença e quanto mais precocemente eu der esse gene, mais próximo do nor- mal eu vou ter essa criança”. 13 Zolgensma para todos A reportagem entrevistou, ainda, Carina Galvão Freitas, idealiza- dora do Movimento Zolgensma para Todos. Abaixo, você confere a íntegra da entrevista com a coordenadora que explica a ideia deste grupo de voluntários, cujo único objetivo é: dar esperança às famílias dos pacientes com AME através de muita ajuda. ComTempo - Como e quando sur- giu o movimento Zolgensma para Todos? Carina Galvão Freitas - A ideia do Movimento nasceu após o término da Campanha da Antonella de Blu- menau-SC,primeiro bebê com AME a conseguir comprar o Zolgensma através de Campanha. Eu, Carina, fui voluntária na campanha dela, pois a causa era muito nobre: uma família lutando para salvar sua filha da do- ença genética que mais mata bebês no mundo, contra o remédio mais caro do mundo. Quando ela conse- guiu alcançar o valor, foi um grande milagre (véspera de Natal de 2019), mas ao mesmo tempo, sentíamos apagar um incêndio na floresta com um balde d’água, pois ela apresentou a nós (através de sua página) outras 6 crianças que iniciaram o mesmo tipo de campanha. E entendemos que, a partir da vitória dela, tantas outras apareceriam, e se demoramos quase 1 ano para ajudá-la alcançar o medi- camento, escolher a próxima criança também significava deixar todas as outras “pra morrer de AME”. Senti- mos que tínhamos que ajudar todas! Não dava pra escolher apenas uma e permitir que a história se repetisse infinitas vezes. A ideia surgiu em janeiro de 2020 e se consolidou a partir de mar- ço do mesmo ano, quando come- çamos a fazer contato com políticos que pudessem ajudar e a formar o grupo voluntariado. Em dezembro de 2020 fizemos nosso 1° manifes- to presencial em diversas cidades de cinco estados do país. CT - Qual o foco deste grupo de voluntários? Carina - Nossa luta é voluntária e tem foco em políticas públicas, que deem acesso ao medicamento. Nosso lema costuma ser “Não queremos seu di- nheiro, queremos a sua voz” porque é através da consciência e pressão popular que podemos cobrar das autoridades, providências. Uma vez que uma campanha de arrecadação expõe a criança, sacrifica a família a julgamentos e é incerta. Entendemos que o direito à vida, à dignidade e à saúde está garantido às nossas crian- ças pela Constituição, pelos Direitos Humanos e pelo ECA. Lutamos burocraticamente, na prática, desde março de 2020 por: • Registro do Zolgensma no Brasil (ocorreu em agosto de 2020); • Precificação do Zolgensma no Brasil (estamos nessa etapa); • Inserção do Zolgensma no SUS; • Diagnóstico precoce (AME no teste do pezinho, aprovado dia 21 deste mês no senado, faltan- do sanção do presidente, no mo- mento); • Capacitação de profissionais na especialização de AME; • Que a Novartis abaixe o preço! CT - Quantas crianças diretamente vocês conseguem ajudar? Existe número aproximado? Carina - Sobre o número de crianças, é difícil definir pois, a AME, no teste do pezinho, por exemplo, é algo que vai impactar milhares de AME que ainda nem nasceram. Temos uma lista de cadastra- mento de crianças que buscam Zol- gensma, seja por campanha ou via judicial. Ela se mantém, no momento, na média de 50 crianças no Brasil. Po- rém, é importante entender que nas- ce 1 AME para cada 10 mil nascidos vivos no Brasil. Estima-se que cerca de 250 a 300 bebês ao ano. Muitos acabam falecendo antes mesmo do diagnóstico (pois a doença atrofia músculos e prejudica o funciona- mento de órgãos, principalmente o pulmão). Sua detecção, normalmen- te, é pelo avanço e a criança está so- frendo intercorrências em casa. Então, o número de crianças que buscam o tratamento pode ser muito maior. Como nosso foco são pe- los direitos dos AME de acesso ao diagnóstico precoce e ao melhor tra- tamento precoce, se conseguirmos avançar nas políticas públicas que permitem esse acesso, o número de crianças ajudadas ao longo do tempo é incontável. CT - Vocês têm uma campanha nacional para tratamento gratuito da AME. Já obtiveram algum re- torno? Quando montaram a cam- panha? Carina - Temos um abaixo-assinado nacional pelos direitos que reivindica- mos. Estamos aguardando obter 100 mil assinaturas (porém a meta é 1 mi- lhão, atualmente tem cerca de 70 mil) para protocolarmos nos órgãos com- petentes. Sabemos que abaixo-assi- nado não é instrumento jurídico, mas é instrumento de pressão e expressa a vontade do povo. Acreditamos que todo poder emana do mesmo, como diz nossa Constituição, por isso a ideia é registrar esse pedido! Ainda não obtivemos retor- no porque não o protocolamos, a intenção é que seja em agosto, ape- sar de muitas das nossas bandeiras já estarem sendo conquistadas no país. O abaixo-assinado é de julho de 2020. 14 O papel do Iname Outra entrevista que a Com- Tempo traz para finalizar essa repor- tagem sobre a AME é com Juliane Arndt de Godoi, diretora do Instituto Nacional de Atrofia Muscular Espi- nhal, o Iname. Godoi conta sobre o papel do Instituto, os pacientes ca- dastrados e como funciona o projeto que eles fazem acontecer dentro dos hospitais, capacitando profissionais para lidarem com a doença. ComTempo - Qual o papel do Ina- me? Juliane Arndt de Godoi - O papel do Iname, como associação, é atuar na busca de tratamento e cuidados ade- qua Aedos para todos os portadores da doença no Brasil, bem como no suporte incondicional às necessidades das famílias, desde o diagnóstico até a rotina diária de atuação multidiscipli- nar. Para isso, atuamos em 3 frentes principais: assistência a famílias com AME; advocacia, que é a busca por políticas públicas para AME; e tam- bém na capacitação de profissionais. CT - Quantos pacientes com AME o Iname têm cadastrados atualmen- te? Juliane - Hoje, em nossa base de dados, temos 1.316 pacientes, entre crianças e adultos com todos os tipos de AME. CT - Quantas pessoas já foram aju- dadas com o projeto RespirAME? Como ele começou? Juliane - O projeto RespirAME sur- giu pela necessidade que víamos de pacientes recém diagnosticados que não tinham acesso rápido aos respi- radores e, com isso acabavam, agra- vando o quadro clínico e muitas vezes indo para UTI. Através desse progra- ma, nós alugamos os equipamentos e emprestamos para as famílias sem nenhum custo, por um período de 3 meses, para que o paciente comece usar rapidamente a ventilação quan- do é necessária e, nesse meio tempo, consiga seu próprio equipamento. Já atendemos por esse projeto 38 pa- cientes, entre crianças e adultos, for- necendo equipamentos, máscaras e ambu. CT - Como funciona o projeto Ina- me nos Hospitais? E o que precisa ser feito para uma instituição re- ceber este treinamento? Juliane - O projeto Iname nos Hos- pitais é uma capacitação local para hospitais que atendem pacientes com AME. Já levamos esse projeto para São Luís-MA, Natal-RN e Ca- choeiro de Itapemirim-ES. Devido à pandemia, este ano estamos fazen- do de forma online, então, todos os hospitais do Brasil podem participar, basta fazer a inscrição dos profissio- nais pelo site: eventos.iname.org.br Este projeto tem por objetivo capa- citar profissionais de saúde que atu- am em equipes multidisciplinares de Hospitais que atendem pacientes com AME: médicos, fisioterapeutas, profissionais de enfermagem, fo- noterapeutas, nutricionistas, entre outros. CT - Quantos voluntários com- põem o Iname, atualmente? Como o Instituto consegue se manter ati- vo? Juliane - Hoje temos 13 voluntários no Iname, que compõem a diretoria, conselho e representantes regionais. Para o instituto se manter ativo, rece- bemos doações espontâneas que são direcionadas aos nossos projetos. Capa do livro desenvolvido pelo Iname. https://eventos.iname.org.br/ 15 A cultura pode trazer para a população o acesso ao la- zer, ao conhecimento e ao prazer. A sociedade adquire novas tradições, consegue combater graves problemas socioeconômicos, além de fortalecer os aspectos e a identidade pessoal e social de cada indivíduo. E é justamente esse segmen- to um dos mais prejudicados pela pandemia de Covid-19. Segundo uma análise das medidas de governos, para socorrer o setor em vários países, feita pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cul- tura (Unesco), em dezembro de 2020, durante seis meses de confinamento social, a área de produção musical, por exemplo, pode ter perdido mais de US$ 10 bilhões em patro- cínio e apoio institu- cional. No Brasil, a Lei Aldir Blanc foi san- cionada pelo presi- dente JairBolsonaro, em junho de 2020, com intuito de apoiar profissionais da área que sofreram com impacto das medidas de distanciamento social por causa do coronavírus. O total do repasse previsto era de R$ 3 bilhões. Com ob- jetivo de entender como alguns setores da cultura estão so- brevivendo à crise, a CULTURA A cultura resiste SÉRGIO FRAGA Segundo o dicionário Aurélio, um dos significados da palavra cultura é o complexo dos padrões de comportamentos, das crenças, das instituições, das manifestações artísticas e intelectuais, transmitidas coletivamente e típicas de uma sociedade. Espetáculo Natal Encantado - 2019, do grupo Carroça Teatral. Foto: Arquivo Prefeitura de Barueri. ComTempo conversou com membros de três segmentos diferentes. O grupo Carroça Teatral, o Museu da Vida e a banda Detonautas Roque Clube. De repente uma pandemia O grupo Carroça Teatral surgiu em 2014 em uma comunhão dos alu- nos, jovens e adolescentes, e do profes- sor de uma oficina de teatro, Paulinho do Boi, ministrada em uma Organiza- ção não Governamental (ONG) na pe- riferia da cidade de Sete Lagoas-MG. Paulo Henrique de Souza (o Paulinho do Boi) é artista e diretor artístico do grupo. Ele comenta que os trabalhos de formação foram iniciados em praças da cidade e, logo em seguida, ocupa- ram o quintal da sua residência, criando o primeiro espetáculo de repertório “O Auto do Boi da Manta – De Repente o Milagre da Ressurreição”. Com a chegada da Covid-19, tudo ficou mais difícil e o Paulinho do Boi nos relata como foi a reação do grupo aos acontecimentos. “No primeiro momento, a pandemia nos deixou pouco apreensivos. Tínhamos esperança de que tudo voltasse ao normal após a primeira parada de 14 dias (lockdown). Até então, não co- nhecíamos as vítimas, e as imagens mais fortes estavam na Itália. Está- vamos criando a expectativa de nos apresentar em Portugal nos próximos anos, mas essa foi a nossa primeira frustração”. Para o diretor, por falta de manejo social e político, a cidade onde mora resolveu abrir tudo e voltar ao normal. Estarrecidos com a situação reportada em Manaus, São Paulo e Rio de Janeiro, em agosto de 2020, começaram a esbarrar com uma rea- lidade mais próxima. Amigos de gru- pos teatrais desses locais começaram a mandar mensagens com fotos e ví- deos de parentes e colegas falecidos. “Após uma tentativa de fun- cionar normalmente, perto das elei- ções, a pandemia tomou proporções maiores no estado e chegou até a gente. Toda nossa agenda, inclusive do espetáculo natalino que apresen- tamos em Barueri-SP, em 2019, já tinha sido cancelada por completo e, junto 16 a esse desespero, aprofundaram-se as dificuldades financeiras. O que estava longe chegou perto demais da gente e as mães de duas atrizes do grupo ti- veram Covid-19. Uma delas chegou a ser entubada, mas se recuperou. Mo- mento difícil demais para nosso elen- co. Nos vemos impotentes diante da situação”, desabafa o diretor. Através da Associação Cul- tural Boi da Manta, mantenedora do grupo, eles conseguiram participar do edital da Lei Aldir Blanc em Sete La- goas. “Foi pouco, mas conseguimos, no ano passado, colocar as contas bá- sicas em dia. Entramos também em um edital da Câmara Municipal, o que nos possibilitou uma ajuda nas con- tas pessoais do elenco. Nossa cidade não absorve políticas culturais para a promoção do setor, a lei de incentivo à cultura nunca saiu do papel duran- te 26 anos de existência. Estamos so- frendo com o desmanche em plena pandemia”, pontua Paulinho. Ainda se adaptando a todos esses acontecimentos, uma das coi- sas que eles mais sentem falta é o calor humano de uma plateia, pres- tigiando os espetáculos do grupo, já que eles trabalham com o teatro popular na rua. “Sem plateia tudo se agrava, já que afeta também a ques- tão financeira. Estamos reunidos em coletivos de artistas para exigir do poder público o direito constituído ao povo de acesso pleno às expres- sões culturais, bem como da manu- tenção dos mesmos. Estamos sem cachês, para se ter uma ideia nossas despesas eram cobertas com venda de ingressos, pastel e souvenir dos espetáculos. Tudo que surge como alternativa a gente experimenta criando vídeos. Nossa direção agora tem que se preocupar com o posi- cionamento de câmeras e com o distanciamento”, explica o diretor. “Criamos vídeos e adap- tamos filmagens de espetáculos para compor os editais do gover- no. Partimos para as redes sociais e experimentamos a concorrência dos algoritmos. Estamos, ainda em franca formatação de possibilidades, na tentativa de driblar a situação. O grande plano do momento é poder chegar com vida até 2022”, conclui o Paulinho do Boi. Adaptação: alternativas para se manter ativo na pandemia O Museu da Vida é um espa- ço de integração entre ciência, cultura e sociedade. Inaugurado em 25 de maio de 1999, ele está localizado em Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, dentro do campus da Funda- ção Oswaldo Cruz (Fiocruz) — uma das maiores instituições de ciência e saúde da América Latina — e tem a missão de promover a participação da população nas questões ligadas a esses temas. Ele está vinculado à Casa de Oswaldo Cruz, um instituto dedicado à preservação da memória da Fiocruz e às atividades de pesquisa, ensino, documentação e di- vulgação da história da saúde pública e das ciências biomédicas no Brasil. Héliton Barros, biólogo e co- ordenador do Serviço de Educação do museu, nos conta como eles se adap- taram a essa crise sanitária. “Estamos 100% no formato virtual por meio do site e principalmente através das redes sociais. O sucesso do nosso trabalho é basicamente medido pela capacidade de aglomerar pessoas, seja nos espa- ços do campus da Fiocruz, em Man- guinhos, nas exposições itinerantes que viajam todo o país ou por meio do museu itinerante Ciência Móvel - Arte e Ciência sobre Rodas, que percorre a região Sudeste do Brasil. Desde o fe- chamento ao público, em março de 2020, aguardamos ansiosamente o momento do retorno, já temos todos os procedimentos planejados, mas só vamos reabrir quando tiver certeza de que é realmente seguro, para o público e para a nossa equipe”. O biólogo explica que “passa- do o primeiro impacto do fechamento total do Museu da Vida, percebemos que era preciso nos manter conectados de alguma maneira com o nosso pú- Atividade interativa desenvolvida no Museu da Vida. Foto: Renata Fontanetto. blico. Ainda não tínhamos a dimensão do que estava por vir, mas começamos a nos organizar para trabalhar remota- mente e continuar fazendo o que sabe- mos fazer de melhor, que é a divulga- ção e a popularização da ciência. Aos poucos fomos ajustando as equipes e replanejando nossas atividades”. Segundo Hélito, o Museu da Vida já tinha uma presença ativa nos meios digitais. E isso facilitou um pou- co, porém, não se tratava de simples- mente intensificar essa presença virtual. Boa parte da equipe se dedicava às ati- vidades presenciais com o público, mas com o tempo eles foram potencializan- do o que já era feito e criando novas atividades que contam com grande engajamento. “Hoje, as redes sociais da Fiocruz estão ainda mais conectadas. Como o Museu da Vida é o braço de divulgação científica da Fundação, esta- mos sempre reverberando tudo o que há de mais importante acontecendo na instituição. Também estamos promo- vendo a campanha ‘Se liga no Corona’, feita com a participação de coletivos e comunicadores de favelas e periferias, entre outras, com articulação do Museu da Vida”, pontua o coordenador. O biólogo ainda comenta que o museu não fazia muitas lives em canais oficiais (Instagram e YouTube), porém, além de se tornarem mais fre- quentes, eles também apostaram na produção de vídeos. “Acho que as lives, que foram realizadas com diferentes temáticas, talvez tenham sido o grande diferencial, principalmente nos primei- ros meses da pandemia. Mas eu gosta- ria de destacar a série de vídeosintitu- lada ‘Experimentando com o Museu da Vida’, que teve bastante engajamento. Em breve teremos muitas novidades, como a Websérie ‘Invasores’ que será 17 divulgada por meio do nosso YouTube”. Para o coordenador, a essência do museu é estar próximo das pessoas. Ver o estabelecimento e as atividades fora dele cheias é sempre um motivo de orgulho para os colaboradores. No entanto, alguns projetos que foram de- senvolvidos somente para os ambien- tes virtuais vão sim continuar. Pois, eles aproximaram o museu a um público que não têm a oportunidade de estar presencialmente no Rio de Janeiro, ou mesmo recebendo algumas das ativi- dades itinerantes. “O Museu da Vida Fiocruz se- gue o seu plano de expansão. Mesmo na pandemia, nós continuamos traba- lhando no planejamento das novas áre- as de visitação que já estavam previstas. Estamos articulando também, com a participação de outros museus, a cria- ção de uma agenda para comemorar o bicentenário da Independência do Brasil, em 2022. Portanto, em breve te- remos muitas novidades para os nossos visitantes”, conclui Hélito. Aprendendo a se reinventar O grupo Detonautas Roque Clube, formado por Tico Santa Cruz (músico e vocalista), Fábio Brasil (bate- ria), André Macca (baixo), Phil (guitarra e vocais) e Renato Rocha (guitarra, vio- lões, teclados e vocais), surgiu em 1997. É a primeira banda do mundo constitu- ída pela internet que conseguiu chegar a uma grande gravadora e se desenvol- ver em uma carreira do meio streaming. Luís Guilherme Brunetta, o Tico Santa Cruz, nos relata como foi a rea- ção do grupo à chegada da Covid-19. “Num primeiro momento, ficamos na expectativa para saber qual seria a di- mensão da pandemia. Em março do ano passado, eu falei para eles que não voltaríamos em 2020 e que talvez a gente pudesse começar a pensar em voltar em março de 2021. Naquele pe- ríodo, eu comecei a compor e escrever muito, e nos concentramos em traba- lhar em um disco de músicas inéditas que acabou sendo produzido no perí- odo de abril até julho. E, depois disso, em agosto, surgiu a música ‘Carta ao Futuro’, que acabou ditando a nova fase do grupo, com as composições ‘Miche- que’, ‘Kit Gay’, ‘Político de Estimação’, ‘Mala Cheia’ e ‘Racismo é Burrice’ [com Gabriel O Pensador]. Apesar de tudo que estamos enfrentando, em termos de produção, a banda avançou bastan- te em 2020, e está avançando bastante em 2021. Até nas formas de produção e na criação de novos métodos de tra- balho, por conta do distanciamento”. O último lançamento da banda, antes do fechamento da edição, aconteceu em 21 de maio, com “Roqueiro Reaça”. Para Tico, o Detonautas en- tende que o setor deles será o último a voltar. Pois, eles precisam esperar que pelo menos 70% da população seja vacinada, para conseguir pensar em como eles podem voltar a traba- lhar. “É muito triste, é muito angus- tiante, mas a gente entende que nesse momento de pandemia é impossível aglomerar as pessoas, o risco é muito grande para todos nós, tanto para os trabalhadores quanto para os fãs. É uma pausa muito grande e sabemos que isso traz prejuízos irremediáveis e imensuráveis na vida das pessoas, dos trabalhadores, das nossas equipes, de todos esses setores. Então, é muito di- fícil lidar com isso, ainda mais saben- do que o governo não tem nenhuma política pública eficiente para atuar na nossa área, que possa resguardar to- dos os profissionais”. Segundo o músico, os técnicos e ou- tros profissionais da banda consegui- ram receber uma verba, durante alguns meses, através de um fundo criado pela Live Nation (maior produtora de eventos do mundo). E, individualmente, alguns deles conseguiram uma repara- ção através da Lei Aldir Blanc. “O grupo entendeu que preci- sávamos buscar outras alternativas, mas todas dentro do universo que a gente vive. Então, eu mesmo, por minha con- ta, fiz algumas lives para fazer doações para a Central Única das Favelas (CUFA), para o AfroReggae, para uma série de ONGs e também para nossa equipe. Depois, eu comecei a entender que pre- cisava fazer alguns movimentos, cada membro do grupo fez o seu. O Fábio, por exemplo, tem o estúdio; o Renato também tem um e eles trabalham com trilhas, com outras coisas relacionadas à música no âmbito do entretenimento; já o Phil montou um restaurante. Enfim, cada um deu uma alternativa para sua profissão, para sua atividade, porque como não estamos trabalhando com o que a gente, efetivamente se sustenta, tivemos que rever todo o nosso crono- grama”, explica o vocalista. Tico Santa Cruz pontua que todos os brasileiros, todas as pessoas do mundo e eles também sofreram com o impacto da pandemia na vida pessoal e profissional, porém o Deto- nautas conseguiu se adaptar de forma rápida. “Através do grupo de WhatsA- pp a gente mandava as ideias, os ar- ranjos e cada um gravava da sua casa, mandando de volta o projeto pronto. Eu gravava voz, a galera mandava para um estúdio de mixagem e masteriza- ção, depois seguia com os clipes, junto com as produtoras, fazendo esse tra- balho de produção para poder conse- guir adaptar a essa nova realidade”. “Aprendemos a reinventar a banda, a reinventar a nossa forma de produzir, a nossa forma de criar. Estamos passando por um momento que não sabemos até quando vai durar. Então, a gente aprendeu a ter paciência, a controlar a ansiedade, a se juntar, a se unir cada vez mais e a repensar certas questões que são importantes para conseguir se reestruturar num momento de crise” acrescenta o músico. Para concluir, o vocalista des- taca que o plano da banda é voltar a tocar e fazer shows. “Temos um disco inédito para lançar esse ano e ainda temos mais quatro músicas desse dis- co que estamos lançando desde 2020. Ainda temos muita coisa e quando vol- tar ou sair da pandemia, bom, a gente tem grandes projetos para apresentar, junto com a Sony Music, a nossa gra- vadora. Então, fiquem atentos que, em breve, a gente tem novidades”. “Dentro do nosso trabalho, em termos de lançamentos e produção, a gente avançou bastante e o Detonau- tas, com certeza, sai muito maior da pandemia do que ele entrou”, Tico Santa Cruz. Foto: Bruno Kaiuca 18 A COMTEMPO É QUE UMA REVISTA DIGITAL MUITO + Agora, colunistas trazem análises, entrevistas e muita opinião em quadros que são exclusivos para usuários do nosso site. REVISTACOMTEMPO.COMMCOLUNASM ACESSE LÁ, É GRATUITO! WWW.REVISTACOMTEMPO .COM 19 “A pandemia do novo coronavírus certamente visibilizou e deixou à mostra o quanto as mulheres es- tão em uma situação de fragilidade e, ao mesmo tempo, de sobrecarga de trabalho, que tem a ver com questões de gênero, raça, e também com seu direito de uso da cidade, sua posição geográfica, sua posição no coletivo onde mora: se ocupa um espaço de poder, mesmo que seja em um coleti- vo periférico, como uma comunidade rural, um grupo de mulheres, se está ou não em uma rede de interação social. A pandemia explicitou o quanto é impor- tante o trabalho dos cuidados.” A reflexão é de Vivian Delfino, que mora em São Paulo, é doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas-SP (Unicamp) e docente no Instituto Federal de Educa- ção, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), em São Roque-SP. Segundo ela, o cuidar, que, no caso das mães, não é visto como um trabalho, mas como uma obrigação, é economicamente fundamental para a manutenção da sociedade. E, quando a mulher que fica em casa por causa da Covid-19 é uma mãe solo, passa a ter sobrecarga ainda maior: além de casa e emprego, os fi- lhos demandam atenção intensa. O termo “mãe solo” é usado para designar mulheres inteiramente responsáveis pela criação dos filhos. Com ele, o conceito de “mãe solteira” caiu em desuso, já que estar ou não em um relacionamento não quer dizer, ne- cessariamente, compartilhar a missão de cuidar. Quatro histórias. Quatro mães MATERNIDADE Mães solo JÚLIA PAIVA Mulheres que cuidam sozinhas dosfilhos relat- am trabalho e apreensão aumentados durante a pandemia de Covid-19. solo contaram à reportagem suas vi- vências durante a pandemia. Medos, receios, ansiedade, angústia… são te- mas comuns a elas. E a expectativa é que a Covid-19 dê uma trégua, para que possam respirar. Nem que seja um pouco. O começo Franca-SP está ensolarada. Enquanto me preparo para conver- sar com Daniele Lima, que mora em Iguatu-CE, arrumo a casa. Sinto o suor pingando. Duas horas da tarde e está muito calor. Não sou mãe e a rotina já é dura. Me imagino no lugar dela, que coloca o filho para brincar antes de falar comigo. “Chamada de vídeo? Não posso responder em áudio? É melhor pra mim. Meu filho é 24 horas no meu pé”, pede Daniele. Digo que sim, ao perceber, também, que ela é tímida. Ao ficar confortável, poderia me contar so- bre a vida dela de forma mais aberta. Daniele tem 28 anos e um dia a dia que não é nada remoto. Pas- sa o tempo inteiro em casa com José Kauan, de 5 anos, brincando, ajudando nas atividades escolares e cuidando da casa. “Sou uma pessoa extremamente nervosa. Então, evito sair de casa, prin- cipalmente com ele. Só se for algo ur- gente. As pessoas da minha cidade não têm respeito.” Era março do ano passado quando começaram os alertas sobre o novo coronavírus. O que parecia ser apenas um resfriado encheu ainda Kétani com os filhos, Valentina e Benício. (Foto: Arquivo Pessoal) mais os hospitais, que já eram lotados. Não havia leito para todo mundo. Co- mércios foram fechados, trabalhadores dispensados. As escolas pararam. As recomendações eram evitar aglomera- ções e usar máscara e álcool em gel. “Entrei em pânico”, lembra Da- niele. A maior preocupação era com o pequeno José Kauan, que tem autismo. Tem a imunidade baixa. Já teve pneu- monia e come muito pouco de comida saudável. “Até hoje estou assustada. Cheguei a fazer terapia, porque real- mente me encontrei com medo. Foi e ainda é bastante complicado.” Tudo no seu tempo, meu filho O menino, que estuda em es- cola particular, passou a receber as ati- vidades em casa. Mas, segundo Danie- le, é preciso seguir o tempo dele para cumpri-las. “Tiro o tempo em que ele está apto. Quando está com vontade de fazer a tarefinha, faz direitinho. Ago- ra, se estiver irritado, já fica complicado de ensinar, porque, geralmente, quan- do erra alguma coisa, fica agitado, quer rabiscar a tarefa toda. Sempre procuro o horário em que ele está mais calmo. Não importa se é manhã, tarde ou noi- te.” Para cuidar do filho, Daniele até recebe a ajuda da mãe dela, mas só quando ele está a fim de ficar com outra pes- soa. Enquanto ela limpa a casa, a avó de José Kauan fica com o neto. Mas, quando ele só quer a mãe, não tem jeito: Daniele precisa estar disposta a tudo. A psicóloga Rafaela Cortez, de 20 Ribeirão Preto-SP, diz que, nesses ca- sos, uma rede de apoio é fundamental. “Geralmente, essa rede é a família. Todo esse conjunto e esse contexto acabam contribuindo.” Entretanto, a psicóloga destaca que as mães devem estar abertas a essa ajuda. “Existe muito na cabeça da mãe que ela precisa tomar conta de tudo, mas está tudo bem se não conseguir. É muita coisa, muito pesado. E não é só ter à disposição essa rede. Temos um ponto importante aqui: saber até onde consigo ir e até onde não consigo, reco- nhecendo que preciso de auxílio.” Enquanto conversamos, é pos- sível ouvir a voz de José Kauan ao fun- do, cantando. Sinto que, em algum mo- mento, vai chamar pela mãe. E chama. Daniele o atende, encerrando o áudio. Tudo vai passar Apesar de morar com a mãe, a irmã, um sobrinho de 13 anos e o filho, Daniele se sente sozinha. Ainda mais sendo a maior responsável por José Kauan. Nos primeiros segundos de um de seus áudios, de três minutos, a voz dela está embargada. Ela para pra respirar e volta a falar. “Sim… ele é uma criança que é indecisa, às vezes quer fa- zer tudo ao mesmo tempo. Quer coisas que não pode. Tem dias que estou can- sada, mas não fisicamente, psicologica- mente.” Os momentos em que o filho vê objetos na internet e deseja tê-los estão entre os mais difíceis. Explicar que não tem condições de dar ou que, ali onde moram, não tem o que o filho de- seja, a deixa exausta. A situação piora porque ele não entende o “não”. Daniele segue o que a psicólo- ga do filho, Nathalia, orientou para essas situações: substituir o “não” por outras pa- lavras. “É o que exige muita paciência. Tem que sentar, explicar, acalmar. E você tem que ser uma pessoa bem trabalhada.” Todo dia é de cansaço. Difícil lidar com tudo à volta. A preocupação de adoecer, do filho ou de qualquer ou- tra pessoa dentro de casa recai, sobre ela. “Faço sempre o possível pra ele ficar dentro de casa, longe de poeira. Tem dias que deito e estou exausta. Tenho crises de ansiedade, gastrite nervosa. Fiz um tempo de terapia online para ajudar a trabalhar isso tudo.” O filósofo sul-coreano Byung- Chul Han, no livro “Sociedade do can- saço”, afirma que a busca implacável pelo “seu melhor”, “dando tudo de si”, leva ao adoecimento psicológico. Han argumenta que são comuns, em nossa sociedade, a depressão e a Síndrome de Burnout, uma condição que afeta as pessoas que se submetem ao can- saço constante. Nesse caso, os sintomas recor- rentes são a insônia (ou excesso de sono sem descanso) e o estresse contínuo, que também aparecem na depressão e na síndrome do pânico. Desse modo, o indivíduo não possui mais amarras que o prendem fisicamente, mas um siste- ma em que ele perde a liberdade sem que perceba. Para a psicóloga Rafaela, a saúde mental dessas mães é um caos, pois tudo é responsabilidade delas. “O lado que vejo que foi mais prejudicado foi a autoestima. Elas priorizam tudo e acabam se deixando por último. E, nas 24 horas, muitas vezes não dá tempo de chegar nesse último. O que tem acontecido é essas mães, por exemplo, começarem a ver que não estão dando conta dessas crianças”. Ainda conforme a psicóloga, “elas se olham no espelho e não se sentem mais poderosas, donas de si mesmas, suficientes, capazes. E isso tudo acaba prejudicando.” Entre chuva e relâmpagos São quase dez horas da noite quando começa a chover em Franca. A internet da minha casa começa a oscilar. Fico apreensiva. O bairro onde moro, o City Petrópolis, na zona norte, não pode ver uma chuva que a energia cai. Ape- sar de morarmos na mesma cidade, a entrevista será feita remotamente, por preocupação com saúde das duas e de todos ao nosso redor, e devido ao fato de Kétani Amaral trabalhar e estudar. Kétani me manda o link de uma sala no Google Meet para que possamos conversar. Ela está no quar- to dela. O filho, em pé ao lado, desvia o olhar do celular que segura para a câ- mera do computador. “Benício, vai ver no seu quarto”, pede a mãe. O garoti- nho atende e sai. Kétani tem 25 anos, trabalha numa grande rede de lojas e estuda Direito. Tem dois filhos: Valentina, de 9 anos, e Benício, de 5. No começo da pandemia, trabalhava em outra empresa e conta que foi complicado. Morava no centro da cidade com os filhos e preci- sava deixá-los na casa da mãe e do pa- drasto. Depois de ficar desempregada, tinha dificuldade para conciliar o trabalho doméstico, a faculdade, pela qual passou a ter aulas online, e o cuidado com os fi- lhos. Ainda mais morando sozinha com eles. “Não tínhamos nenhuma rotina. Eles em casa só queriam ficar assistindo televisão, deitados. Não queriam brincar e, muito menos, fazer as atividades da escola. Tento fazer uma coisa diferente, incentivar, mas é muito difícil mesmo”. Com o aumento no número de casos de Covid-19, a mãe e o padrasto foram morar com ela. Um alívio. Para a professora Vivian Del- fino, a rede de apoio familiar deve ser, também, uma rede de afeto. “Geral- mente, as mães solo contam com um elemento-chave, que é a avó materna das crianças. Muitas vezes parceira, apoia a criação dos netos de forma afe- tuosa e não joga na cara que é