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1 Manoella Evelyn | P7 – UC19 | Tutoria – problema 2 A gota decorre da elevação nos níveis de ácido úrico que acarreta a formação de cristais de monourato de sódio em diversos tecidos, destacando-se, pela frequência, as articulações, as estruturas periarticulares, os rins e o tecido subcutâneo. Caracteriza-se clinicamente por surtos agudos da artrite, geralmente envolvendo uma ou poucas articulações, e por formação de cálculos urinários. Outra característica da doença é o desenvolvimento de grandes acúmulos de cristais de urato denominados tofos, localizados principalmente nos tecidos periarticulares e subcutâneo. EPIDEMIOLOGIA É notória a forte predominância no sexo masculino, que é acometido em uma proporção de 7:1 a 9:11 incidindo dos 30 aos 60 anos de idade, com pico aos 40 anos. No sexo feminino, a maior incidência ocorre entre os 55 e 70 anos, principalmente após a menopausa, em decorrência da perda do efeito uricosúrico secundário do estrogênio. Existe forte influência hereditária na transmissão da gota, sendo verificada antecedentes familiares em 10 a 80% dos pacientes. FISIOPATOLOGIA A base do ataque articular da gota decorre da resposta celular desencadeada por cristais. Estes, ao se formarem abaixo da membrana sinovial, são opsonizados com IgG10, acarretando sua fagocitose por células com receptor de Fc e formação de fagolisossomos. Outros peptídios também podem aderir à superfície do cristal. Já a apolipoproteína E pode inibir a fagocitose. A presença ou não desses opsonizantes pode determinar a interrupção da aderência celular e, consequentemente, da inflamação. Esse fenômeno pode explicar os cristais no tofo e no líquido sinovial de articulações normais sem desencadear inflamação. Participam do processo, basicamente, neutrófilos, monócitos, fibroblastos, linfócitos e sinoviócitos. As enzimas lisossômicas degradam a IgG dos cristais, ocorre liberação de hidrogênio por estes e atividade membranolítica, rompendo a célula e derramando enzimas no tecido comprometido. A migração celular aumenta pela ação de substâncias quimiotáxicas. Mediadores inflamatórios, como prostaglandina E2, leucotrienos, citocinas IL-1 e IL-6 e espécies ativas de oxigênio amplificam o processo inflamatório, causando congestão vascular, proliferação sinovial, infiltração neutrofílica e dano tecidual. QUADRO CLÍNICO O espectro clínico da gota pode ser didaticamente di-vidido em 5 grupos: 1. Hiperuricemia assintomática. 2. Artrite aguda. 3. Período intercrítico. 4. Gota tofácea crônica. 5. Gota renal e urolitíase. HIPERURICEMIA ASSINTOMÁTICA A constatação de níveis persistentemente elevados de ácido úrico, na realidade, não faz parte do espectro clínico da gota, e sim representa uma situação de maior risco para o seu surgimento. Caracteriza-se por indivíduos que apresentam níveis elevados de ácido úrico sérico, sem apresentar manifestação de doença. O ácido úrico é um produto do catabolismo das purinas, excretado basicamente pelo rim. Em concentrações de até 7 mg/dL no soro, na temperatura de 37°C, apresenta-se solúvel nos fluidos fisiológicos. Acima desse nível, aumenta progressivamente a possibilidade dessa substância depositar-se nos tecidos sob a forma de cristais. Por esse motivo, define-se hiperuricêmico o indivíduo com nível sérico de ácido úrico superior a 7 mg/dL. Indivíduos hiperuricêmicos têm maior chance de desenvolver gota que normouricêmicos, e essa evolução é diretamente proporcional ao nível do ácido úrico. ARTRITE AGUDA A crise aguda da gota manifesta-se por uma monoartrite em 85 a 90% dos casos, predominantemente nos membros inferiores. Tem início repentino e rápido, além do desenvolvimento de dor intensa, edema, aumento de temperatura e eritema, por vezes violáceo. 2 Manoella Evelyn | P7 – UC19 | Tutoria – problema 2 A resposta ao tratamento tende a ser rápida, mas, mesmo quando não tratadas, as crises resolvem-se espontaneamente em um período de 3 a 10 dias, podendo mais raramente estender-se além de 2 semanas. As articulações mais comumente afetadas são: MEMBROS INFERIORES: joelhos, tornozelos, tarso, me- tatarsofalângicas e interfalângicas. O envolvimento da primeira articulação metatarsofalângica é o mais típico da gota e ocorre em 50% dos casos na crise inicial e em 90% na evolução da doença. Nesse local, a artrite denomina-se podagra. MEMBROS SUPERIORES: cotovelos, punhos, metacarpo- falângicas e interfalângicas. Surtos poliarticulares podem ocorrer em 2 a 13% dos casos, inclusive na primeira crise, sendo mais frequentes quando a gota é secundária à doença linfo ou mieloproliferativa e em transplantados renais sob uso de ciclosporina. Irritabilidade, febre e poliúria podem ocorrer raramente, tanto antes como durante a crise. Após a crise aguda, pode ocorrer descamação epidérmica, mas apenas sobre o local afetado. Os fatores desencadeantes mais frequentes da crise aguda são: Ingestão de bebida alcoólica Uso de fármacos como diuréticos, tuberculostáticos e salicilatos Trauma Infecção Cirurgia Estresse emocional Ingestão excessiva de carne e leguminosas (feijão, ervilha, lentilha). As crises também podem ser desencadeadas durante a introdução ou a interrupção dos uricorredutores. Nos indivíduos mais idosos, a crise da gota pode assumir uma forma atípica, sendo menos intensa e de início mais insidioso, assumindo por vezes um padrão poliarticular, especialmente nas mulheres, nas quais é mais frequente o acometimento das falanges das mãos e formação de tofos nessa localização. PERÍODO INTERCRÍTICO Entre os ataques agudos, nos primeiros anos da doença, os pacientes ficam assintomáticos e comumente sem nenhuma sequela articular, caracterizando o período intercrítico da gota. Habitualmente, os ataques se sucedem a cada 1 a 6 meses em média. Com a evolução da doença, as crises se tornam mais frequentes, menos intensas e mais prolongadas e, em alguns casos, envolvendo mais de uma articulação. Alguns pacientes podem apresentar apenas uma ou poucas crises ao longo da vida. GOTA TOFÁCEA CRÔNICA Nessa fase da doença, verificam-se tofos (depósitos de urato) em vários tecidos, principalmente o subcutâneo periarticular e articular. Ocorre em pacientes com doença de longa evolução, após muitos surtos de artrite. O intervalo entre o primeiro surto e o surgimento de tofos é variável, porém, em média, é de 11 anos. Os locais mais afetados são: Bursa olecraneana Cotovelo Tendão do calcâneo Superfícies extensoras das mãos, punhos, pés, joelhos e tornozelos Superfície ulnar dos antebraços Orelha externa. Podem atingir grandes dimensões em pacientes não tratados. GOTA RENAL E UROLITÍASE O envolvimento das vias urinárias na gota vem em terceiro lugar em frequência, atrás das articulações e do subcutâneo. 3 Manoella Evelyn | P7 – UC19 | Tutoria – problema 2 Existem 3 tipos de acometimento nessa esfera: a urolitíase, a nefropatia úrica aguda e a nefropatia úrica crônica. 1. UROLITÍASE: cálculos no trato urinário são observadas em 10 a 25% dos pacientes com gota. São formados por ácido úrico ou podem ser mistos de ácido úrico e outros sais, como o oxalato de cálcio. Decorre basicamente do baixo pH verificado na urina desses pacientes, o que diminui a solubilidade do ácido úrico. Em segundo lugar em frequência, a urolitíase pode ser desencadeada pela quantidade e concentração do ácido úrico excretado ou pela influência de ambos os mecanismos. 2. NEFROPATIA ÚRICA AGUDA: ocorre pela hiperuricemia aguda e grave decorrente do tratamento quimioterápico de doença linfo ou mieloproliferativa. Existe precipitação de grande quantidade de cristais de ácido úrico nos ductos coletores e ureteres levando à insuficiência renal agudade padrão obstrutivo. 3. NEFROPATIA ÚRICA CRÔNICA: decorre provavelmente da deposição dos cristais de urato no parênquima renal, que pode levar à reação inflamatória com a participação de células gigantes, causando proteinúria e incapacidade de concentração da urina. 4. DOENÇAS ASSOCIADAS: estão frequentemente associadas à gota, como hipertensão arterial sistêmica, diabete, hipercolesterolemia, hipertrigliceridemia, insuficiência coronariana e outras doenças vasculares. A investigação dessas condições deve ser sempre realizada nos pacientes com gota, independentemente das manifestações. CLASSIFICAÇÃO E ETIOPATOGENIA A gota pode ocorrer por dois mecanismos básicos: Aumento na produção de ácido úrico: idiopático, defeito enzimático, turnover elevado de ácidos nucleicos, estresse (trauma, cirurgia, infecção) e dieta rica em proteína. Eliminação diminuída de ácido úrico pelos rins. Aproximadamente 85% dos pacientes com gota apresentam um defeito específico na eliminação de ácido úrico (que independe da função renal). Em alguns pacientes, o mecanismo desencadeante é misto. Quanto à ETIOPATOGENIA, a gota pode ser classificada em primária ou secundária. No primeiro grupo, enquadram-se a gota idiopática e a gota associada a defeito enzimático. A gota secundária pode ocorrer por: Elevação do turnover de ácidos nucleicos, como em neoplasias, tratamento quimioterápico (no qual há muita morte celular), hiperparatireoidismo, psoríase, estresse físico (cirurgia, exercício físico intenso etc.), estresse emocional etc. Eliminação diminuída de ácido úrico por insuficiência renal e uso de determinados fármacos (diuréticos, ácido acetilsalicílico, tuberculostáticos), ingestão de álcool, intoxicação por chumbo e distúrbio ácido metabólico (infecção, jejum etc.) EXAMES COMPLEMENTARES A gota caracteriza-se pela elevação persistente no nível sérico do ácido úrico. Define-se o nível normal do ácido úrico com base na sua solubilidade nos fluidos biológicos, ou seja, até 7 mg/dL. Acima desse nível, aumenta a probabilidade de precipitação cristalina. A excreção do ácido úrico nas 24 horas deve sempre ser aferida. Os valores normais vão de 200 a 300 mg até 700 a 800 mg. O clearance do ácido úrico deve ser calculado, pois muitos pacientes “normoexcretores” em termos absolutos podem apresentar um clearance de ácido úrico rebaixado. O clearance de ácido úrico normal é acima de 6 a 7 mL/min. IMAGEM Na radiografia convencional, verificam-se múltiplas erosões ósseas em saca-bocado com bordas escleróticas e espiculadas como se fossem as valvas de uma concha (imagem em “concha”). Habitualmente, o osso afetado é mais denso. Há cistos ósseos. O espaço articular pode ficar reduzido em fases mais avançadas da doença. 4 Manoella Evelyn | P7 – UC19 | Tutoria – problema 2 Os tofos podem ser vistos como uma opacificação tênue e raramente tornam-se calcificados. Com o evoluir da doença, surgem lesões líticas ósseas disseminadas, perda do espaço articular, osteófitos e, na fase terminal, anquilose e osteopenia. Recentemente, a identificação de cristais vem sendo realizada por tomografa computadorizada de dupla energia. A ultrassonografia também pode identificar cristais na superfície da cartilagem e tecidos moles intra e periarticulares, e pode ser utilizada também como um recurso diagnóstico complementar. DIAGNÓSTICO A gota é uma artropatia que se caracteriza por manifestações bastante típicas. Episódios de monoartrite sucessivos, podagra, sexo masculino, idade acima dos 40 anos, história familiar de gota e urolitíase são elementos que sugerem fortemente o diagnóstico. A hiperuricemia levanta a suspeita, porém, até 25% dos pacientes apresentam nível normal durante uma crise aguda. O achado de cristais de monourato de sódio com birrefringência fortemente negativa no microscópio de luz polarizada nos tofos e líquido sinovial (principalmente se intracelulares) é um dado confirmatório. O exame radiográfico é também um importante auxiliar no diagnóstico, mostrando principalmente erosões em saca- bocado, cistos e aumento da densidade óssea adjacente à lesão. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL ARTRITE SÉPTICA Quando um indivíduo apresenta uma primeira crise de monoartrite, é fundamental a punção articular para descartar um processo infeccioso, o qual também se manifesta como monoartrite aguda. O líquido sinovial apresenta caracteristicamente padrão inflamatório com contagem de células elevadas, o que também pode ocorrer no quadro de gota aguda. No entanto, na gota, o Gram e as culturas são negativos, e a pesquisa de cristais com luz polarizada mostra cristais em forma de agulha com birrefringência negativa. As duas condições podem coexistir. ARTRITE REUMATOIDE Nesta, o processo inflamatório é poliarticular, simétrico e crônico, e mais frequente em mulheres. O fator reumatoide é positivo e a imagem radiográfica mostra cistos e erosões apenas nas margens articulares (na gota, pode ocorrer também fora dessa região), uma osteopenia periarticular e perda do espaço articular já nas primeiras fases da doença. ESPONDILOARTRITES Nesse caso, a artrite é crônica, normalmente oligo e poliarticular e com envolvimento frequente da coluna e articulação sacroilíaca. ARTROPATIA POR DEPÓSITO DE PIROFOSFATO DE CÁLCIO Pode ser confundida com a gota quando evolui sob a forma de crises inflamatórias agudas recorrentes, sendo inclusive 5 Manoella Evelyn | P7 – UC19 | Tutoria – problema 2 denominada pseudogota. A diferenciação é feita pelo achado de cristais de pirofosfato de cálcio com aspecto romboide e birrefringência positiva à luz polarizada. Na radiografia, verifica-se uma linha de densidade cálcica no espaço articular. TRATAMENTO Os objetivos primários do tratamento são: prevenir as crises, evitar a formação de cálculos renais, reduzir o tamanho dos tofos e evitar a destruição articular. O objetivo secundário é manter o nível do ácido úrico abaixo de 6 mg/dL. O tratamento da gota divide-se em abordagem da crise aguda e a terapêutica uricorredutora. TRATAMENTO DA CRISE ARTICULAR Recomenda-se a utilização dos anti-inflamatórios não hormonais (AINH) como primeira opção terapêutica. Dentre as opções, o diclofenaco de sódio na dose de 50 mg 3 vezes/dia, o cetoprofeno 50 mg também 3 vezes/dia ou o naproxeno 500 mg 2 a 3 vezes/dia destacam-se pelo potencial analgésico. Os inibidores específicos da cicloxigenase 2 também mostraram-se eficazes, como o etoricoxibe na dose de 90 mg 1 vez/dia. O tratamento deve durar até 1 a 2 dias após o término da dor, o que ocorre habitualmente em 3 a 7 dias. O corticosteroide deve ser reservado para os casos refratários ou aqueles que apresentem intolerância ou contraindicação ao uso dos anti-inflamatórios convencionais. Entre as opções, pode-se utilizar a prednisona e a prednisolona na dose de 10 a 20 mg/dia e a dexametasona na dose de 2 a 4 mg/dia. O uso também pode ser parenteral, destacando-se apresentações injetáveis de depósito como o fosfato dissódico 2 mg e o dipropionato 5 mg de beta-metasona pela comodidade (aplicação única) e eficácia. A colchicina é o fármaco mais tradicional para o tr-tamento da crise aguda, porém, é também o que apresenta efeitos colaterais mais frequentemente nas doses terapêuticas para a crise de gota; os mais comuns são a diarreia e as cólicas, que muitas vezes obrigam a descontinuação do tratamento. A dose recomendada é de 0,5 mg 2 a 3 vezes/dia. Pode ser dada associada com antiinfla-matórios e corticosteroides. TRATAMENTO PROFILÁTICO DIETA A ingestão de grande quantidade de carnes e leguminosas em uma mesma refeição deve ser evitada. FÁRMACOS URICOSÚRICOS A medicação mais utilizada no nosso meio é a benzobromarona (Narcaricina®), na dose de 25 a 200mg/dia (o comprimido tem 100 mg). Ela age inibindo a reabsorção tubular de ácido úrico. É o mais potente uricorredutor disponível. É indicada a priori na maioria dos normo e hipoexcretores de ácido úrico. Deve ser evitada na urolitíase, pois o aumento na uricosúria aumenta a probabilidade de deposição de cristais de ácido úrico nos rins e a formação de cálculos. FÁRMACOS INIBIDORES DA SÍNTESE DO ÁCIDO ÚRICO O alopurinol é um inibidor por competição da enzima xantina oxidase, impedindo assim a metabolização das purinas em ácido úrico. É utilizada na dose de 100 a 600 mg/dia (em média 300 mg), uma única vez. Está indicado basicamente nos casos de pacientes hiperexcretores ou com urolitíase. A dose deve ser corrigida segundo a função renal. O febuxostate, outro inibidor da xantina oxidase, é uma alternativa recente ao uso do alopurinol, com resultados similares ou superiores. O tratamento da hiperuricemia não deve ser iniciado nem ser suspenso durante uma crise articular, pois a oscilação dos níveis de ácido úrico pode desencadear ou agravar uma crise. A hiperuricemia assintomática, em geral, não deve ser tratada, a não ser durante quimioterapia de neoplasia ou em indivíduos com ácido úrico muito elevado (maior que 13 mg/dL em homens e 10 mg/dL em mulheres), pelo risco de lesão renal pelo ácido úrico