Prévia do material em texto
GEOGRAFIA DA SAÚDE AULA 4 Prof. Thiago Kich Fogaça 2 CONVERSA INICIAL O registro das doenças e as políticas públicas de saúde Estudamos sobre a importância da Geografia no planejamento das sociedades e nas intervenções para subsidiar ações para melhoria da saúde das populações. Para tanto, nesta aula, discutiremos o conceito de políticas de saúde, que são mecanismos para gerir os territórios e garantir acesso aos serviços. Na história das civilizações, o papel das políticas foi primordial no que diz respeito à criação de normas e leis para o benefício das coletividades e, dessa forma, abordaremos esse contexto histórico. Passando a retratar o cenário brasileiro, demonstraremos como ocorreu o desenvolvimento das primeiras políticas públicas de saúde dos dois últimos séculos para podermos, em seguida, tratar da criação e das atribuições do Sistema Único de Saúde (SUS), que é a base dos serviços de saúde do país e que acabou se tornando referência internacional; retrataremos também conflitos e dificuldades encontrados atualmente. TEMA 1 – GEOGRAFIA, PLANEJAMENTO E POLÍTICAS DE SAÚDE – CONCEITO Ao longo de nossos estudos, visualizamos as concepções de saúde e de doença que foram moldando as relações sociais no decorrer da história das civilizações. Agora, devemos pensar na consolidação da Geografia e sua aplicabilidade no diagnóstico do meio ambiente e das relações sociais para subsidiar ações, ou seja, as políticas para o meio ambiente, urbanização e saúde, por exemplo. Para esta aula, vamos buscar entender as políticas como um conjunto de ações para organizar o espaço geográfico. Devemos ter em mente que a criação das políticas perpassa por questões identitárias – e interesses –, muitas vezes, de parcela pequena da população, mas que detém o poder e as condições de determinar os rumos da sociedade. Já estudamos sobre os estudos geográficos de diagnóstico de determinadas doenças, bem como sua relação com o modo de vida das populações. Além disso, apresentamos os mecanismos para aquisição de dados 3 de saúde. O fato do pesquisador ter acesso aos dados já significa mecanismo legal (políticas) para o manuseio dessas. Assim, introduzimos a reflexão das políticas nos estudos geográficos. Qualquer pesquisador, independentemente do nível de titulação, terá acesso aos dados de saúde se atender aos requisitos mínimos, como a aprovação em um conselho de ética e estar atrelado a alguma instituição de ensino e pesquisa. Este fato está associado ao conjunto de políticas que permitem o acesso aos dados para pesquisadores brasileiros. Outros aspectos que representam relações entre a Geografia da Saúde e as políticas públicas estão na organização das cidades. A abordagem da vulnerabilidade é a mais comum em estudos de doenças transmissíveis nas cidades, pois proporcionam análises com diferentes contextos e atores envolvidos. Porém, populações vulneráveis a determinada doença estão inseridas em uma dinâmica social e de modo de vida, que as coloca em risco de contaminação. Esta noção é importante para que se entenda a doença e sua difusão mediante a análise de diferentes condicionantes geográficos. Nesse sentido, é improvável que temas de estudo da Geografia da Saúde não apresentem o contexto das políticas, ora na obtenção dos dados, ora para diagnosticar uma localidade com problemas de saúde. Ou seja, alguma relação com a estrutura das políticas públicas será evidenciada e necessária para compreender os processos que caracterizam a vulnerabilidade de determinados locais, por exemplo. Portanto, esperamos que, com esta aula, você possa entender melhor o funcionamento das políticas públicas de saúde e sua relação com a Geografia e com o planejamento das ações. TEMA 2 – POLÍTICAS DE SAÚDE NO MUNDO – HISTÓRICO Ao tratarmos do contexto das doenças na Antiguidade, foi possível identificarmos algumas ações organizadas para a manutenção da vida nas cidades, por exemplo. O saneamento foi uma das políticas criadas para melhorar as condições de vida das populações. No entanto, para essa aula, nos deteremos ao século passado (século XX) para destacarmos algumas importantes organizações preocupadas com a manutenção da saúde das populações. 4 Logo no início do século XX, em 1902, foi criada a Organização Pan- Americana da Saúde (OPAS), após reuniões dos países das Américas ocorridas no final do século XIX, cujo objeto central foi a abordagem de aspectos da regulamentação sanitária e sua importância no comércio entre os países membros. Dessa forma, já podemos visualizar parte das discussões que deram origem à OPAS. Entre os dias 2 e 5 de dezembro de 1902, ocorreu a Primeira Convenção Sanitária Internacional das Repúblicas Americanas, realizada em Washington, D.C. (Estados Unidos), que possibilitou a fundação do Escritório Sanitário Internacional. Sobre esse tema, veremos suas funções preconizadas no início do século passado, mas que já refletiam a preocupação com as fronteiras de saúde. As funções do Escritório Sanitário Internacional apresentadas em 1902 foram: • Solicitar que cada país atendido envie pronta e regularmente ao Instituto todos os dados relativos ao estado sanitário de seus portos e do território nacional; • Obter toda a ajuda possível para fazer estudos científicos completos sobre surtos de doenças contagiosas que podem ocorrer nos países; • Oferecer sua maior ajuda e experiência para obter a melhor proteção possível para a saúde pública dos países, a fim de alcançar a eliminação da doença e facilitar o comércio entre as nações; • Incentivar, ajudar ou impor todos os meios legais à sua disposição para a saneamento dos portos marítimos, incluindo a introdução de melhorias sanitárias nas estradas, sistema de drenagem, drenagem do solo, pavimentação e eliminação da infecção dos edifícios, também como a destruição de mosquitos e outros insetos nocivos. (OPAS, 2021; tradução nossa) Hoje, no século XXI, já temos exemplos de surtos de doenças transmissíveis de diferentes magnitudes, como a dengue, o Zika vírus e, mais recentemente, o Coronavírus, que se tornou uma pandemia em 2020. É interessante, para nossa discussão, o texto apresentado em 1902, que já apresentava as fronteiras de saúde diferentemente das fronteiras políticas e, desse modo, exigindo intervenções de ordem estrutural e de saúde para impedir o progresso de doenças. Prosseguindo com eventos importantes no século XX, temos a constituição da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial de Saúde (OMS). Sobre a formação da ONU, devemos comentar que foi em decorrência de suas reuniões que surgiram as primeiras iniciativas para a criação da OMS. A ONU foi criada em 1945, logo após o final da Segunda Guerra 5 Mundial. Naquele momento, vários países sofriam os impactos da guerra e precisariam de ajuda para sua reconstrução. Assim, levando em consideração o contexto daquele período, a ONU buscou a paz e a cooperação entre os países para o desenvolvimento mundial. Segundo os registros históricos (OMS, 2021), foi na Conferência de Criação da ONU (1945) que representantes da China e do Brasil abordaram a necessidade de pensar as questões de saúde de forma integrada. Assim, resultante das reuniões que a sucederem, foi constituída a OMS, em 1946. Sua importância, em âmbito mundial, está presente nas ações de controle e mediação das ações para combater problemas de saúde. Na website oficial da organização, são apresentados os valores da OMS: A OMS, como autoridade de direção e coordenação em saúde internacional dentro do sistema das Nações Unidas, adere aos valores da ONU de integridade, profissionalismo e respeito pela diversidade. Além disso, os valores da força de trabalho da OMS refletem os princípios de direitos humanos,universalidade e equidade estabelecidos na Constituição da OMS, bem como os padrões éticos da Organização. Esses valores são inspirados pela visão da OMS de um mundo em que todos os povos alcancem o mais alto nível de saúde possível e nossa missão de promover a saúde, manter o mundo seguro e servir aos vulneráveis, com impacto mensurável para as pessoas em nível nacional. Estamos individual e coletivamente comprometidos em colocar esses valores em prática. (WHO, 2021) É importante destacarmos o contexto que levou à criação da ONU e da OMS, e os desdobramentos da guerra. Com o término da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se a Guerra Fria, cuja força motriz esteve no confronto entre capitalismo (EUA) e socialismo (URSS), iniciando a corrida espacial e o desenvolvimento de políticas armamentistas. Foi no período pós-Segunda Guerra que o termo vigilância passou a ser adotado para questões de saúde. Na atualidade, possuímos setores estratégicos nas secretarias estaduais e municipais que trabalham na vigilância em saúde e epidemiológica. Naquele período, no entanto, outros assuntos preocupavam os países, com destaque para os Estados Unidos, que adotaram a vigilância como estratégia de saúde e inteligência, devido à presença de risco relacionada às guerras química e biológica (conceituadas atualmente como bioterrorismo) (Augusto, 2003). Nas décadas de 1960 e 1970 ocorreram importantes eventos que alteraram e/ou aperfeiçoaram o trato das questões de saúde e doença das populações. O primeiro destaque está na interferência da África na OMS, na 6 década de 1960, devido à emergência de novos países no pós-guerra e sua inserção na OMS. Logo, trouxeram à tona a necessidade de pensar no desenvolvimento de políticas públicas para áreas rurais como as da África. Além disso, ressalta-se também que foi na década de 1960 que surgiu o conceito de Atenção Primária de Saúde (APS), relacionado aos serviços básicos e essenciais para a saúde das populações (Viegas, 2014). Em 1977, a OMS apresentou o slogan “Saúde para todos no ano de 2000”, relevando a preocupação com a saúde no mundo e na promoção de serviços de saúde. Nas próximas décadas, diferentes encontros passaram a aprimorar as discussões sobre a saúde das populações, inserindo novos contextos, como o ambiental, socioeconômico e cultural como elementos essenciais das políticas públicas (Brasil, 2002). Aproveitando as discussões do final do século XX, devemos destacar o conceito de doenças emergentes e reemergentes da década de 1990. Como o próprio termo sugere, são aquelas que, ou surgiram recentemente nas populações humanas, ou são aquelas já conhecidas, mas que se tornaram problema de saúde devido ao seu avanço nas últimas décadas. Um exemplo didático consiste na dengue, que reemergiu como problema de saúde no Brasil no final do século passado, e tem mantido altos índices de infecção hoje. Além disso, quanto às doenças emergentes e reemergentes, os geógrafos da saúde têm estudado a propagação da AIDS, da doença de Chagas e da tuberculose, por exemplo. Outra questão de âmbito internacional consiste nos diferentes problemas de saúde gerados pelo modo de vida das populações. No século XX, vimos o maior desenvolvimento de tecnologias e produtos cujas matérias-primas dependem dos recursos naturais. Além disso, a estrutura das sociedades, baseadas no valor de mercado (capitalismo), suscitou o agravamento de diferentes problemas socioambientais, como a grave segregação socioespacial, dividindo o mundo entre países desenvolvidos e não desenvolvidos, que impactam diretamente na saúde das populações. Nesse cenário, fortaleceu-se a discussão sobre a ecologia política por geógrafos da saúde, devido à necessidade de estudar, diagnosticar e propor ações para minimizar e/ou mitigar diferentes problemas socioambientais. Um exemplo é a proliferação do HIV, que no final do século passado era mais registrado nas mulheres e associado à prostituição, por exemplo (King, 2010). 7 Para finalizarmos o roteiro de fatos selecionados sobre o processo de saúde e doença das populações e as políticas públicas do século XX, trataremos de dois assuntos: a saúde ambiental e o conceito de biopoder. A saúde ambiental (environmental health) é resultante dos impactos ambientais associados ao modo de vida e intensa utilização de recursos naturais como combustível das atividades humanas; como exemplos, há os complexos industriais, o desmatamento, a perda de qualidade da água potável, entre outros. Logo, pensar na saúde ambiental tornou-se necessário para a manutenção do meio ambiente e da saúde da população. Para falarmos do conceito de biopoder, é necessário contextualizarmos com dinâmicas populacionais internacionais, como a dos refugiados, asilados e pessoas carentes. Diferentes fluxos pelas fronteiras e processos socioeconômicos e ambientais condicionam o modo de vida das populações. Logo, o biopoder, com base na biopolítica, apresentou-se como alternativa para coordenar e/ou controlar as pessoas negligenciadas pelo Estado (Connell; Walton-Roberts, 2016). Com esse tópico, apresentamos diferentes fatos que ilustram o desenvolvimento de políticas públicas de saúde em contexto mundial. Porém, ressaltamos os estudos geográficos sobre saúde e doença das populações e sua capacidade de auxiliar no planejamento das políticas públicas. TEMA 3 – AS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL – SÉCULOS XIX E XX O desenvolvimento de políticas públicas está enraizado na dinâmica e no modo de vida, e sofre influências externas que podem facilitar ou impedir a geração de ações para o coletivo. Esse contexto é importante para conseguirmos relacionar o surgimento das primeiras políticas de saúde no país e qual ou quais fatos desencadearam essa preocupação. Para tanto, precisamos nos remeter ao período do Brasil colonial, mais precisamente, ao início do século XIX, quando a família real portuguesa chegou ao Brasil (em 1808), surgindo, então, uma demanda sobre questões de saúde para a realeza e para as pessoas (mão de obra) envolvidas com a coroa. Em paralelo à vinda da coroa para o Brasil, também devemos mencionar os problemas de saúde daquele período, pois a malária e a febre amarela ameaçavam os brasileiros. Além disso, são doenças tropicais e de países menos desenvolvidos, não sendo uma realidade na Europa, ou seja, tornaram-se 8 desafio para os médicos portugueses e demandaram ações para seu controle (Baptista, 2007). Temos, então, a construção da primeira Faculdade de Medicina, em Salvador (Bahia), no ano de 1808, e os primeiros incentivos para a construção de hospitais públicos. Em 1852, foi construído o primeiro hospital psiquiátrico do país, na cidade do Rio de Janeiro, com enfoque no tratamento de doenças mentais (Brasil, 2011; Baptista, 2007; Polignano, 2001). Vale ressaltar que não será possível detalhar todos os fatos que culminaram em avanços nas políticas de saúde do Brasil, mas algumas leis e personagens merecem destaque. O que nós conhecemos hoje como Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) surgiu em 1900, com a criação do Instituto Soroterápico Federal (que foi renomeado para Instituto Oswaldo Cruz), com intuito inicial de fabricar soros e vacinas, principalmente contra a peste bubônica. Entre os anos de 1903 e 1904, Oswaldo Cruz iniciou o processo de reforma da saúde e propôs um código sanitário, com o objetivo de fiscalizar ambientes insalubres, e também tornando a vacinação obrigatória no país. Oswaldo Cruz se consagrou como personagem-chave para o desenvolvimento de políticas públicas de saúde, preconizando ainda ações de combate à febre amarela, que no início do século XX estava sem controle no Rio de Janeiro. No entanto, ele possuía postura autoritária e não fazia uma gestão transparente, fatos estes que desagradaram a população, culminando com o evento conhecidocomo a “Revolta da Vacina”. Os registros indicam que mesmo com os conflitos sobre a vacinação, foi possível erradicar a febre amarela do Rio de Janeiro (Polignano, 2001; Baptista, 2007). Outro fato que ilustra o desenvolvimento de políticas públicas de saúde no país ocorreu em 1918, quando uma forte epidemia de gripe espanhola infectou muitos brasileiros. Um ponto importante dessa epidemia é o fato de ela ter infectado pessoas ricas (a elite) e, dessa forma, impulsionou o debate sobre a saúde pública do país. Esse não é um fato isolado ou exclusivo do Brasil, pois as populações com maior poder aquisitivo tendem a influenciar o planejamento das cidades e em diferentes seguimentos. A década de 1920 ficou conhecida pelas campanhas de saúde realizadas pelo Governo Federal. A partir da década de 1930, com o presidente Getúlio Vargas e seu governo ditatorial, as questões de saúde se concentraram na área de higiene pública. Esse fato foi considerado negativo pelos pesquisadores, que relatam que as políticas públicas preventivas foram anuladas (Pessoto; Ribeiro; 9 Guimarães, 2015). Foi também no início do governo Vargas que foram criados o Ministério de Educação e Saúde e o Departamento Nacional de Saúde e Assistência Médico-Social, em 1937 (Sarreta, 2009). A partir da década de 1950, no período pós-guerra, fortaleceu-se o conceito de bem-estar social na Europa que, por um lado, estava vivenciando os impactos da guerra e, de outro, se preocupava para frear o possível avanço do comunismo. No entanto, foi considerado benéfico para as políticas públicas ao pretender-se proporcionar bem-estar socioeconômico para a população. Diferentemente da Europa, no Brasil da década de 1950, a maior preocupação era com o desenvolvimento industrial. No período que compreende os anos de 1945 e 1964, as políticas públicas de saúde foram influenciadas pelos estadunidenses, culminando com a construção de grandes hospitais. Os autores, porém, salientam que ocorreu priorização da assistência médica individual, diminuição dos recursos para a saúde e, consequentemente, diminuição das ações para a atenção básica (Sarreta, 2009). É seguro afirmar que a segregação socioeconômica e espacial crescente no país contribuíram para um cenário de mercantilização da saúde, tornando-a inacessível às populações mais pobres. Na década de 1960, o principal fato histórico ocorrido foi o golpe militar (1964) que alterou os rumos do país. No contexto da saúde pública, apenas as pessoas que estivessem devidamente cadastradas e contribuindo com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) teriam direito aos serviços de saúde. O INPS foi criado em 1966, com objetivo de concentrar as políticas previdenciárias do país. Ou seja, ocorreram muitas restrições aos serviços de saúde (Baptista, 2007; Sarreta, 2009). Na década de 1970, o país já se encontrava enfrentando crises de ordem política, econômica e institucional, como reflexo das ações autoritárias dos militares. Porém, é possível evidenciarmos avanços nas políticas de saúde, com a criação da Superintendência de Campanhas da Saúde Pública (Sucam), do Sistema Nacional de Saúde (1975) e do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE), todos objetivando melhorias nos serviços de saúde e fiscalização sanitária. Ainda na década de 1970, ocorreu a criação do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), que incluiu no planejamento das ações as questões 10 sociais. Outro fato importante é o fortalecimento dos movimentos sociais, que só foi possível devido à política de abertura do governo (Baptista, 2007). A década de 1980 foi decisiva para mudanças nas políticas públicas do país. Na área de saúde surgiram críticas à centralidade das ações na União, que possibilitaram as discussões sobre a descentralização para as outras esferas de governo (estadual e municipal). Com a Constituição de 1988, foi legalizada a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). TEMA 4 – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) – CONCEPÇÃO E CRÍTICAS O SUS é resultado de políticas públicas inclusivas que foram discutidas na década de 1980 e legalizadas com a Constituição de 1988. Por se tratar de um sistema de abrangência nacional, reúne diferentes atributos e funções, divididos em setores, mas conectando-os ao sistema maior. A primeira informação a ressaltar é o conceito de saúde apresentado na Constituição de 1988, que reforça o direito de todos os brasileiros aos serviços de saúde, os quais deverão ser mantidos pelo Estado com a promoção de seu acesso universal e igualitário. A organização das atividades atreladas ao SUS ocorre mediante relações estabelecidas em um sistema hierárquico contemplando as três esferas de governo. A Figura 1 apresenta o esquema hierárquico do SUS e é necessária para entendermos sua organização inicial. Figura 1 – Hierarquia da estrutura do SUS 11 O Quadro 1, a seguir, apresenta uma síntese da função de cada elemento apresentado na Figura 1. Quadro 1 – Estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) Ministério da Saúde Gestor nacional do SUS, formula, normatiza, fiscaliza, monitora e avalia políticas e ações, em articulação com o Conselho Nacional de Saúde. Atua no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) para pactuar o Plano Nacional de Saúde. Integram sua estrutura: Fiocruz, Funasa, Anvisa, ANS, Hemobrás, Inca, Into e oito hospitais federais. Conselhos de Saúde O Conselho de Saúde, no âmbito de atuação (Nacional, Estadual ou Municipal), em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo. Cabe a cada Conselho de Saúde definir o número de membros, que obedecerá à seguinte composição: 50% de entidades e movimentos representativos de usuários; 25% de entidades representativas dos trabalhadores da área de saúde e 25% de representação de governo e prestadores de serviços privados conveniados, ou sem fins lucrativos. Comissão Intergestores Tripartite (CIT) Foro de negociação e pactuação entre gestores federal, estadual e municipal, quanto aos aspectos operacionais do SUS Secretaria Estadual de Saúde (SES) Participa da formulação das políticas e ações de saúde, presta apoio aos municípios em articulação com o conselho estadual e participa da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) para aprovar e implementar o plano estadual de saúde. Comissão Intergestores Bipartite (CIB) Foro de negociação e pactuação entre gestores estadual e municipais, quanto aos aspectos operacionais do SUS Secretaria Municipal de Saúde (SMS) Planeja, organiza, controla, avalia e executa as ações e serviços de saúde em articulação com o conselho municipal e a esfera estadual para aprovar e implantar o plano municipal de saúde. Fonte: Ministério da Saúde, 2021. Podemos perceber que os Conselhos de Saúde, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) representam a necessidade de comunicação entre os gestores para adequar as ações para as necessidades da população. Esse fato é melhor evidenciado quando analisamos os princípios do SUS, conforme o Quadro 2. 12 Quadro 2 – Princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) Universalização A saúde é um direito de cidadania de todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar este direito, sendo que o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais ou pessoais. Equidade O objetivo desse princípio é diminuir desigualdades. Apesar de todasas pessoas possuírem direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades distintas. Em outras palavras, equidade significa tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a carência é maior. Integralidade Este princípio considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades. Para isso, é importante a integração de ações, incluindo a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Juntamente, o princípio de integralidade pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, para assegurar uma atuação intersetorial entre as diferentes áreas que tenham repercussão na saúde e qualidade de vida dos indivíduos. Princípios organizativos: Regionalização e hierarquização: os serviços devem ser organizados em níveis crescentes de complexidade, circunscritos a uma determinada área geográfica, planejados a partir de critérios epidemiológicos e com definição e conhecimento da população a ser atendida. A regionalização é um processo de articulação entre os serviços que já existem, visando o comando unificado destes. Já a hierarquização deve proceder à divisão de níveis de atenção e garantir formas de acesso a serviços que façam parte da complexidade requerida pelo caso, nos limites dos recursos disponíveis numa dada região. Descentralização e comando único: descentralizar é redistribuir poder e responsabilidade entre os três níveis de governo. Com relação à saúde, descentralização objetiva prestar serviços com maior qualidade e garantir o controle e a fiscalização por parte dos cidadãos. No SUS, a responsabilidade pela saúde deve ser descentralizada até o município, ou seja, devem ser fornecidas ao município condições gerenciais, técnicas, administrativas e financeiras para exercer esta função. Para que valha o princípio da descentralização, existe a concepção constitucional do mando único, onde cada esfera de governo é autônoma e soberana nas suas decisões e atividades, respeitando os princípios gerais e a participação da sociedade. Participação popular: a sociedade deve participar no dia a dia do sistema. Para isso, devem ser criados os Conselhos e as Conferências de Saúde, que visam formular estratégias, controlar e avaliar a execução da política de saúde. Fonte: Ministério da Saúde, 2021. Com as informações disponíveis no website do Ministério da Saúde, podemos verificar que a transparência e participação popular são essenciais para a formulação de ações e a garantia de melhoria do SUS. A descentralização se apresentou como avanço, por permitir que aspectos locais pudessem ser 13 privilegiados. Um exemplo de demanda diferenciada é a presença de determinadas doenças: a malária é um problema encontrado na Amazônia, enquanto a dengue está presente em todos os estados; entretanto, algumas cidades da região Sul, devido ao clima frio, ainda não são impactados pela doença. Ou seja, é necessário visualizar ações que atendam às demandas locais. TEMA 5 – POLÍTICAS DE SAÚDE: SÉCULO XXI Para finalizarmos esta aula sobre políticas de saúde, é importante destacarmos os avanços produzidos pela criação do SUS, assim como os desafios impostos por novas doenças. Para tanto, falaremos sobre a questão ambiental, o pacto pela saúde e a questão do Coronavírus, surgida em 2020. A problemática da questão ambiental está presente em diversos seguimentos da sociedade. Atualmente, o comércio de produtos tem se preocupado com a preservação ambiental (certificação ambiental), por exemplo. Desse modo, é importante estabelecermos relações entre o meio ambiente e os problemas de saúde das populações. Diferentes impactos ambientais podem condicionar a transmissão de doenças, como as enchentes urbanas, que passaram a ser evidenciados no planejamento das políticas públicas de saúde. O Pacto pela Saúde consiste em um conjunto de ações propostas para as três esferas de governo no aprimoramento do SUS, e foi assinado em 2006. Estados e municípios passaram a receber os recursos federais por meio de seis blocos de financiamento: Atenção Básica; Atenção de Média e Alta Complexidade; Vigilância em Saúde; Assistência Farmacêutica; Gestão do SUS e Investimento. (Teston, 2016, p. 109) Por fim, a pandemia do Coronavírus trouxe à tona uma série de questões que envolvem a ações do SUS. O Governo Federal não acreditou na força da pandemia e demorou para tomar atitudes para combater a doença, disparando, muitas vezes, ataques e ofensas aos governos estaduais. Alguns destes, contrariando o Governo Federal, adotaram medidas para diminuir o contágio, como a obrigatoriedade do distanciamento social, que não foi adotado por todos os municípios. A descentralização das ações permite aos governos municipais adotarem medidas isoladamente, como a seleção de setores da economia que se tornaram essenciais, mesmo que não fossem justificados com critérios estabelecidos com base em diretrizes mundiais (orientações da OMS foram 14 ignoradas, por exemplo). A pandemia iniciou-se no ano de 2020, e serão necessários vários anos de estudo para compreender a dinâmica das políticas públicas e o aperfeiçoamento do SUS para preparar o país para enfrentar epidemias e pandemias futuras. NA PRÁTICA Considerando as políticas públicas de saúde e sua real efetivação, faça uma pesquisa sobre como está a saúde no Brasil em pelo menos duas regiões, apontando quais as principais falhas e necessidades dessas populações. Você poderá optar por um setor da saúde (infância, atenção básica, traumas etc.). FINALIZANDO Nesta aula, tratamos da questão do planejamento das ações para o bem- estar e saúde das populações. Inicialmente, discutimos o papel dos estudos geográficos e o planejamento das sociedades, como subsídio para estratégicas de diagnóstico e prevenção de doenças. Além disso, apresentamos aspectos da história das políticas públicas de saúde no mundo, com a criação de organizações de extrema importância, como a OMS e a OPAS. Acerca do Brasil, abordamos o processo de legalização das ações, iniciado no processo de colonização, mas que se intensificou a partir do século XIX. No fim do século XX, vimos a criação do SUS e como suas leis alteraram a dinâmica de pensar o planejamento das cidades, descentralizando as ações e atribuindo responsabilidades à participação popular. Por fim, já no século XXI, abordamos o contexto dos avanços no trato da saúde e da doença, evidenciando os problemas na real efetivação do SUS. 15 REFERÊNCIAS AUGUSTO, L. G. S. Saúde e vigilância ambiental: um tema em construção. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 12, n. 4, p. 177-187, 2003. BAPTISTA, T. W. F. História das políticas de saúde no Brasil: a trajetória do direito à saúde. In: MATTA, G. C.; PONTES, A. L. M. (Org.) Políticas de saúde: organização e operacionalização do sistema único de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; Fiocruz, 2007. p. 29-60. BAPTISTA, T. W. F.; MACHADO, C. V. O Legislativo e a saúde no Brasil. In: MATTA, G. C.; PONTES, A. L. M. (Org.) Políticas de saúde: organização e operacionalização do sistema único de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV; Fiocruz, 2007. p. 81-114. BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão e Investimento em Saúde. Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem. Profissionalização de auxiliares de enfermagem: cadernos do aluno: saúde coletiva. 2. ed. revista. Brasília: Ministério da Saúde; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva, Subsecretaria de Assuntos Administrativos. SUS: a saúde do Brasil. Brasília: Ed. do Ministério da Saúde, 2011. BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema Único de Saúde (SUS): estrutura, princípios e como funciona. Brasília: Ministérioda Saúde, 2021. Disponível em: . Acesso em: 5 dez. 2022. CONNELL, J.; WALTON-ROBERTS, M. What about the workers? The missing geographies of health care. Progress in Human Geography, v. 40, n. 2, 2016, p. 158-176. KING, B. Political ecologies of health. Progress in Human Geography, v. 34, n. 1, 2010, p. 38-55. OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde. História da OPAS (em espanhol). Disponível em: . Acesso em: 5 dez. 2022. 16 PESSOTO, U. C.; RIBEIRO, E. A. W.; GUIMARÃES, R. B. O papel do Estado nas políticas públicas de saúde: um panorama sobre o debate do conceito de Estado e o caso brasileiro. Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 1, 2015, p. 9-22. POLIGNANO, M. V. História das políticas de saúde no Brasil: uma pequena revisão. Cadernos do Internato Rural, Faculdade de Medicina/UFMG, v. 35, 2001. Disponível em: Acesso em: 5 dez. 2022. SARRETA, F. O. As políticas públicas de saúde. In: SARRETA, F. O. Educação permanente em saúde para os trabalhadores do SUS. São Paulo: Ed. UNESP; Cultura Acadêmica, 2009. VIEGAS, L. L. A reforma da organização mundial da saúde: processo, tendências atuais e desafios no período 1998-2013. Dissertação (Mestrado profissional em Saúde Pública) – Fundação Oswaldo Cruz; Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca. Rio de Janeiro: 2014.WHO – World Health Organization. History of WHO. Disponível em: . Acesso em: 5 dez. 2022.