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O critério para definir cada tipo de mercantilismo foi a posse ou não de territórios coloniais e que tipo de produto forneciam. A expansão marítima europeia trouxe o domínio de novos territórios, novas fontes de riquezas e mão de obra à Europa. A estruturação do sistema de exploração colonial só foi possível após o entendimento da necessidade de gerar riqueza nesse território. Porém, se analisarmos a economia do período na Europa Ocidental, vemos uma série de características marcantes das estruturas econômicas feudais, reforçando o argumento de que a Idade Moderna é um período marcado por rupturas e continuidades coexistentes em relação ao medievo. Um dos aspectos dessa continuidade da estrutura feudal é a estrutura social: “[...] se o mercantilismo tem sua contraparte política no Estado absoluto, no campo social tem relação com a estrutura social comumente conhecida como sociedade do Antigo Regime. Ou seja, a estrutura social estamental, ainda baseada na sociedade de ordens do medievo, porém com novos elementos, dos quais a burguesia é o principal fator de diferenciação” (SILVA; SILVA, 2009, p. 283). Fatores culturais da formação do Estado Moderno e do sistema mercantilista Quando falamos em fatores culturais relacionados à formação do Estado Moderno e às práticas mercantilistas, compreendemos cultura de uma forma ampla, não apenas como expressão de certos artistas ou intelectuais. A ideia de cultura deve ser ampliada de forma a abarcar as transformações pelas quais passa a vida pública e privada, a conformação da ideia de indivíduo e coletividade, as novas formas de o ser humano conceber a si próprio e entender o mundo, entre outras, para além da cultura material de uma sociedade. Assim, salientamos que a expansão comercial mercantilista, fomentada por indivíduos, mas possibilitada pela existência do Estado, permitiu não somente o enriquecimento para os burgueses e o acesso a determinados produtos, mas também que grandes setores das sociedades da Europa Ocidental tivessem contato com costumes, hábitos e práticas de outros povos, como usavam esses mesmos produtos, de que forma se vestiam, influenciando profundamente a vida cultural europeia. Essas modificações alteraram a alimentação, as casas e as formas de habitar, a vestimenta, mas também as relações de trabalho, já que o “luxo” exigia transformações nos ofícios e na própria organização do trabalho. “Dentro de cada país, o luxo tem sempre seus defensores e seus inimigos, pois, enquanto estes apontam os malefícios que ele traz à degeneração A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime6 dos costumes, a quebra das hierarquias, os vícios , aqueles exaltam o fato de que é a produção do luxo que assegura emprego e sustento a milhares de pessoas que, de outro modo, ficariam ociosas e famintas” (FALCON, 1996, p. 76). A partir de 1650, o roupão se torna moda entre os homens. De cetim e marrom, bordado de flores na Europa setentrional, expressa uma nova alegria de viver ao mesmo tempo íntima e religiosa. [...]. O belo roupão novo exige um remanejamento total do quarto. O velho mobiliário é subs- tituído, os papéis e os livros são colocados numa "escrivaninha preciosa". As esculturas e os quadros, antes dispersos ou fixados sem moldura na parede, cedem lugar a outros a fim de criar um conjunto harmonioso, em conformidade com o gosto da época (RANUM, 2009, p. 230). O sociólogo polonês Norbert Elias (1994) nos ajuda a compreender a história dos costumes a partir da formação do Estado Moderno e suas influências na conformação do que era a “civilização”. Em outras palavras, há uma íntima relação entre o processo de centralização política e o surgimento do Estado Moderno e a conformação de determinada cultura e sociedade. Nos dois volumes da obra O Processo Civilizador, lançada em 1939, Elias contribui nas análises sobre os efeitos da formação do Estado Moderno nos costumes e na moral dos indivíduos. Vejamos o que diz o autor sobre a formação do Estado Moderno: Com a divisão de funções, aumentou a produtividade do trabalho. A maior produtividade era precondição para a elevação dos padrões de vida de classes que cresciam em número; com a divisão de funções, acentuou-se a dependência das classes superiores; e só num estágio muito adiantado dessa divisão de funções é que, finalmente, tornou-se possível a formação de monopólios mais estáveis de força física e tributação, dotados de administrações altamente especializadas, isto é, a formação de Estados no sentido ocidental da palavra, através dos quais a vida do indivíduo ganhou, aos poucos, maior “segurança”. O aumento da divisão de funções, porém, colocou também maior número de pessoas, e áreas habitadas sempre maiores, em dependência recíproca, exigiu e instilou maior contenção no indivíduo, controle mais rigoroso de suas paixões e conduta, e determinou uma regulação mais estrita das emoções e — a partir de determinado estágio — um autocontrole ainda maior (ELIAS, 1994, p. 256). 7A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime Em outras palavras, para o autor, a estrutura do comportamento dito “civi- lizado” está estreitamente inter-relacionada com a organização das sociedades ocidentais sob a forma de Estados. No primeiro volume, Elias dedica-se ao estudo das chamadas “boas maneiras”, dos costumes, hábitos e práticas presentes na estrutura emocional e mental da aris- tocracia que, no final da Idade Média, passam a ser apropriados pela burguesia, que precisa ser “civilizada”, trabalhando com os conceitos de “cultura” e “civilização” presentes em livros de boas maneiras, em obras de arte, em romances e outros documentos históricos da Alemanha, da França e da Inglaterra (ELIAS, 1994). Mas qual é a vinculação dessas mudanças comportamentais e de pensa- mento com a estrutura do Estado? Apesar desses costumes, hábitos e práticas nem sempre procederem do Estado (por meio de leis), alguns desses princípios impunham comportamentos e regras que, se não fossem seguidos, poderiam gerar certas penalidades, como desaprovação ou repreensão. A história das boas maneiras está diretamente relacionada às regras de com- portamento social. Essa história refere-se não apenas a questão da etiqueta, mas também diz respeito à moral, à ética, ao valor interno dos indivíduos e aos aspectos externos que se revelam nas suas relações com os outros. Todas as sociedades, ao longo da história, criaram normas e princípios com a finali- dade de orientar as relações entre grupos e pessoas (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2012, documento on-line). De acordo com Oliveira e Oliveira (2012, documento on-line), em relação às mudanças destacadas por Elias, “[...] no que diz respeito aos costumes, as transformações que ocorrem estão relacionadas à dinâmica das classes sociais, ou seja, quando a classe social superior procura distanciar-se das outras clas- ses sociais, criam-se novos padrões de comportamento que, historicamente, acabam por ser adotados pelas outras classes”. Com a passagem do tempo, os padrões de comportamento aprendidos deixam de ser conscientes e passam a ser naturalizados, conformando a personalidade dos indivíduos. Daí, surge o autocontrole, uma forma de introjeção de aspectos legais e normativos provenientes do exterior. Ou seja, ao mesmo tempo que a estrutura do comportamento “civilizado” está intimamente relacionada com a organização das sociedades ocidentais na forma de estados, na medida em que esses comportamentos esperados são introjetados, é cada vez menos necessária uma regulação do Estado nos costumes, nos hábitos e nas práticas dos indivíduos. O desenvolvimento da constituição psíquica dos indivíduos tem, então, uma relação direta com o desenvolvimento das estruturas sociais ocidentais modernas: A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime8 Os principais elementos deste processo de civilização foram: a formação do Estado, o que significa dizer o aumento da centralização política e adminis- trativa e da pacificaçãosob o seu controlo, processo em que a monopolização do direito de utilização da força física e da imposição de impostos, efetuada pelo Estado, constitui uma componente decisiva; um aumento das cadeias de interdependências; uma mudança que é inovadora no quadro de equilíbrio dos poderes entre as classes sociais e outros grupos, o que é o mesmo que dizer pelo processo de ‘democratização funcional’; a elaboração e o refinamento das condutas e dos padrões sociais; um aumento concomitante da pressão social sobre as pessoas para exercerem o autocontrole na sexualidade, agressão, emoções de um modo geral e, cada vez mais, na área das relações sociais; e, no nível da personalidade, um aumento da importância da consciência (‘supe- rego’) como reguladora do comportamento (ELIAS, DUNNING, 1992, p. 30). A partir dessa citação, torna-se explícita a compreensão do autor de que existe uma mútua influência dos níveis individual e coletivo, e do público e do privado, na configuração das relações sociais. Em relação ao período que estamos estudando, a formação dos Estados Modernos, acompanhamos o aumento do poder e do prestígio social da burguesia, que passa a realizar uma figuração da “sociedade de corte” e, ao mesmo tempo, uma proximidade entre a aristocracia e o rei, em função das atribuições de cobrança de impostos e da conformação dos exércitos profissionais. A pressão da vida de corte, a disputa pelo favor do príncipe ou do ‘grande’ e depois, em termos gerais, a necessidade de distinguir-se dos outros e de lutar por oportunidades através de meios relativamente pacíficos (como a intriga e a diplomacia), impuseram uma tutela dos afetos, uma autodisciplina e um autocontrole, uma racionalidade distintiva de corte (ELIAS, 1994, p. 18). As transformações ocorridas no âmbito privado também tiveram reflexos na esfera pública. Assim, houve uma preocupação de que as sedes administrativas das cidades e dos reinos fossem luxuosas, assim como as igrejas e outros espaços públicos, como as praças, os jardins e certas festas, com banquetes e desfiles. Os contatos estabelecidos com outros povos também permitiram a assimilação de saberes de outras culturas e fomentaram o desenvolvimento de novos conhe- cimentos na Europa Ocidental. Foi a partir da expansão europeia pelo mundo que houve o contato com povos cujos costumes, língua e produtos eram muito diferentes. Para alcançar esses povos — e, também, seus territórios, na lógica colonial europeia — foi necessário o desenvolvimento de saberes relacionados à cartografia e à geografia. Houve também uma transformação dos registros: grandes navegadores passaram a escrever “diários de bordo”, que serviam como orientações. 9A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime Do ponto de vista da compreensão do ser humano sobre si e sobre o mundo, houve: [...] o abandono de concepções e preocupações construídas em função de uma ordenação sobrenatural ou extraterrena do mundo e do homem, no homem em si mesmos [e] o avanço da secularização, quer dizer, o recuo das formas de pensamento e das instituições eclesiásticas, a afirmação do Estado como rea- lidade própria, o desenvolvimento de teorias científicas e filosóficas apoiadas no racionalismo e no humanismo, renegando a plano secundário o primado da teologia; [e] a afirmação, pouco a pouco, do individualismo burguês. Assim, durante o processo de transição, o universo ideológico medieval (ou católico- -feudal) cede lugar ao universo ideológico moderno (secular, imanentista, racionalista, individualista) ou burguês (FALCON, 1996, p. 37-38). O Antigo Regime A expressão “Antigo Regime” é facilmente encontrada na história da his- toriografi a, em livros didáticos e outros materiais encontrados na internet. Costumeiramente, é utilizada para se referir à organização econômica (mer- cantilismo), política (Estado absolutista) e social (sociedade estamental ou de ordens) surgida na Europa ao fi nal da Baixa Idade Média, consolidando-se no século XVII. Mas você sabe como surgiu o termo Antigo Regime e a partir de quando ele se consolidou na historiografi a? Para Florenzano (1996), foi Alexis de Tocqueville, na conjuntura posterior à Revolução Francesa (1789), que converteu a expressão “Antigo Regime” em um conceito, atribuindo a ele o caráter de anterioridade à Revolução, que não significou uma ruptura na realidade, mas, sim, nas “consciências”: É sabido que uma vez iniciada a Revolução francesa, isto é, pelo menos desde o mês de julho de 1789, os revolucionários logo batizaram de "Antigo" o "Regime" que eles estavam pondo à baixo. Em suma, desde a Revolução francesa, todos falam em Antigo Regime para designar o período imediatamente a ela anterior. Mas ninguém antes de Tocqueville havia dado ao termo o estatuto de um conceito, de uma categoria histórica definida. Já foi notado que o Antigo Regime tem um momento preciso de falecimento, isto é, julho-agosto de 1789, mas não tem um momento preciso de nascimento. (FLORENZANO, 1996, documento on-line). Durante esse período, a organização da sociedade foi marcada pela continuidade da sociedade estamental ou de ordens, característica da Idade Média, e que tinha como fundamento de diferenciação social o privilégio de nascimento, ou seja, a A formação dos Estados Modernos e o Antigo Regime10