Prévia do material em texto
Parte III FILÓSOFOS Breves reflexões SUMÁRIO: 1. Sócrates (?-399 a.C.) – 2. Platão (427-347 a.C.): 2.1 Textos de Platão – 3. Aristóteles (384-322 a.C.): 3.1 Textos de Aristóteles – 4. Santo Agostinho (354-430): 4.1 Vida e obra; 4.2 A lei eterna e a lei natural; 4.3 As leis humanas; 4.4 Pensamento político agostiniano; 4.5 Filosofia social; 4.6 A Cidade de Deus e a Cidade dos Homens; 4.7 A Justiça; 4.8 A República Cristã; 4.9 A Guerra Justa; 4.10 A Propriedade; 4.11 Textos de Santo Agostinho – 5. Santo Tomás de Aquino (1224/1225-1274): 5.1 Vida e obra; 5.2 Filosofia e Teologia: 5.3 A ética tomista; 5.4 O direito natural; 5.5 O direito de resistência; 5.6 Textos de Santo Tomás de Aquino – 6. Emmanuel Kant (1724-1804): 6.1 Vida e obra; 6.2 Um pouco de Kant; 6.3 Adentrar ao mundo de Kant; 6.4 Textos de Emmanuel Kant – 7. Hegel (1770-1831): 7.1 Vida e obra; 7.2 A lógica de Hegel; 7.3 A razão e seus atributos; 7.4 Hegel, Platão e Kant; 7.5 Realidade/Aparência; 7.6 Prioridade lógica e cronológica; 7.7 O direito para Hegel; 7.8 Textos de Hegel – 8. Kierkegaard (1813-1855): 8.1 Vida e obra; 8.2 Atualidade de Kierkegaard; 8.3 Aceitar o sofrimento; 8.4 Textos de Kierkegaard – 9. Nietzsche (1844–1900): 9.1 Vida e obra; 9.2 Moral de Nietzche; 9.3 Os estilos de Nietzche; 9.4 O eterno retorno; 9.5 Uma filosofia para espíritos livres; 9.6 Textos de Nietzche – 10. Max Weber (1864- 1920): 10.1 Vida e obra; 10.2 A importância de Weber; 10.3 Textos de Max Weber – 11. Bergson (1859-1942): 11.1 Vida e obra; 11.2 A intuição; 11.3 Bergson, a moral e a religião; 11.4 Textos de Bergson – 12. Wittgenstein (1889-1951): 12.1 O pensamento de Wittgenstein; 12.2 Textos de Wittgenstein – 13. Hannah Arendt (1906-1975): 13.1 Vida e obra; 13.2 Cumprir sua sina; 13.3 Textos de Hannah Arendt – 14. Jacques Derrida (1930-2004): 14.1 Vida e obra; 14.2 A Desconstrução; 14.3 Textos de Derrida – 15. Claude Lévi-Strauss (1908-2009): 15.1 Vida obra; 15.2 O estruturalismo; 15.3 Um espírito inquieto; 15.4 Nada obstante, acadêmico!; 15.5 Textos de Lévi-Strauss. 1. Sócrates (?-399 a.C.) Ateniense, de humilde origem, manteve-se pobre e austeramente durante toda a sua vida, direcionada à busca da verdade. Nunca escreveu nada mas legou o ponto de partida para inúmeras escolas filosóficas. Exerceu considerável influência sobre Platão e também para as escolas posteriores. É personagem de relevo da filosofia grega. Sábio e humilde proclamava nada saber. Sua preocupação era o bem e o justo. Preferia a morte a causar qualquer mal. Platão foi o discípulo que mais falou nele. Mas também se encontram citações de Sócrates em Xenofonte, Aristófanes, em As Nuvens, outros cômicos como Cratino, Êupolis, Ameipsias, Teopompo, os oradores: Isócrates, Esquines e Andócides. Foi em seu tempo que surgiu algo que se poderia chamar de educação superior para jovens abonados das melhores famílias. “Era proporcionada pelos sofistas, os professores viajantes da arte do êxito na vida pública, a cobrar altos proventos e pretendendo produzir resultados rápidos e certos”.1 Por não se interessarem por valores religiosos ou morais absolutos, mas pregassem que eles resultavam de convenções, não eram estimados por Sócrates. Na verdade, “é impossível conhecer ao certo o verdadeiro Sócrates, atrás dos escritos de seus amigos e admiradores. O Sócrates que conhecemos melhor, o que está presente na mente e na imaginação dos europeus desde o século IV a.C, é o que surge dos diálogos de Platão”.2 Platão foi quem legou, ao mundo, a imagem que de Sócrates se conserva. “Talvez os detalhes a seu respeito de que podemos ter segurança sejam os seguintes: ele julgava que a coisa mais importante da vida do homem era saber o que era e a que se destinava e cuidar de sua alma para torná-la o melhor possível; acreditava que ‘a virtude é conhecimento’ – se um homem sabia realmente o que era o bem, ele o praticaria”.3 Aristóteles não o conheceu pessoalmente, pois nasceu quinze anos depois da morte de Sócrates. Os sucessores fazem sua apologia. Platão o considerava encantador4 e sábio.5 Chegou a comparar Sócrates a uma raia marinha: “ousarei dizer, se tu me permitires uma brincadeira, que tu te pareces, pelo aspecto e por tudo, com esse grande peixe do mar que se chama raia. Esta paralisa imediatamente quem quer que se aproxime e a toque; tu me fazes experimentar um efeito semelhante. Sim, estou verdadeiramente paralisado de corpo e alma, e sou incapaz de responder-te”.6 A imagem pretende evidenciar o quão encantador era Sócrates para quem privava de seu convívio. Sócrates não aceitava bem essa comparação com a raia. Rechaçou–a para afirmar que, se paralisava os discípulos, era porque também se encontrava paralisado: “no que me concerne, se a raia, antes de paralisar os outros, está ela própria em estado de paralisia, eu me assemelho a ela; se não, não. Eu não sou um homem que, seguro de si, embaraça os outros; se embaraço os outros, é porque estou, eu mesmo, no mais extremo embaraço”.7 Observação que enfatiza a característica mais evidente da filosofia. É a procura incessante. A busca permanente. Não a resposta às inquietações, mas perguntas que se sucedem e quase nunca podem ser satisfatoriamente respondidas. Sócrates costuma ser designado como “o parteiro das almas”. A conotação com a profissão de sua mãe Fenareta serve para demonstrar que o acesso à ciência deve ser feito pela via interior. Assim como a mãe, parteira de profissão – função sacerdotal à época, exercida sob a proteção da irmã do deus Apolo, chamada Ártemis – Sócrates dava a luz à consciência humana. A luz chegava mediante o autoconhecimento. Daí a relevância do “Conhece-te a ti mesmo” délfico. Sócrates tomou esse dístico, inscrito no frontão do templo de Delfos, como lema de sua filosofia. Um texto platônico pode auxiliar a reflexão. Sócrates teria afirmado: “Tenho, de fato, a mesma impotência que as parteiras. Parir com sabedoria não está em meu poder – e a crítica que muitos já me infamaram, que aos outros colocando questões eu jamais apresento minha própria opinião sobre nenhum assunto e que a causa disso está no vazio de minha própria sabedoria, é uma crítica verídica. A verdadeira causa, ei-la aqui: partejar os outros é a obrigação que o deus me impôs; procriar é poder que ele me retirou. Não sou eu mesmo sábio em nenhum grau e não tenho, em minha posse, nenhuma criação qualquer que seja e que minha alma tenha ela mesma parido. Mas aqueles que vêm à minha procura, num primeiro contato, parecem, alguns totalmente, nada saber. Ora, todos, à medida que avançam suas relações e à medida que o deus lhes seja favorável, maravilhosa é a rapidez com que eles progridem, segundo seu próprio julgamento e o dos outros. É claro, no entanto, que eles não aprenderam nada de mim e que eles somente, em seu próprio interior, conceberam essa riqueza de belos pensamentos que eles descobrem e atualizam”.8 O que significa a explicação de Sócrates sobre o seu método, a maiêutica? A parteira não dá a vida à criança. Ela apenas ajuda o nascituro a sair do útero. Assim também, o filósofo – e o professor – libertam o discípulo da ignorância. A aquisição do conhecimento não depende do mestre. Condiciona-se à potencialidade vital do interior da consciência do aluno. Interessante a comparação socrática de que muita mulher com gravidez psicológica procura a parteira e, obviamente, não dará a luz. Assim também, aquele que não estiver imbuído da sabedoria intuitiva, nada conseguirá aprender. Ventres desprovidos de vida e consciências estéreis de conhecimento não atingirão a verdade, que é a luz. Sócrates concluiu que existem normas de conduta de validade absoluta, acessíveis a todos quando a si mesmos se interrogam ou quando conferem os seus juízos com os dos demais. Se houver intenção reta de atingir a verdade, se houver reflexão e se houver diálogo, qualquer pessoa normal chegará a conhecer a verdade. “O que Sócrates procura é a verdade. Ele é possuído pela busca da verdade. Pouco antes de sua morte, diz a seu amigo Criton: ‘Não temosabsolutamente de nos preocupar com o que muitos dizem sobre nós, senão com o que diz aquele que entende do justo e do injusto: o Um e a verdade mesma”.9 O conhecimento era a maior virtude. E tamanha a sua fé na virtude do conhecimento, que “a moral reduz-se ao conhecimento do bem; só por ignorância se comete o mal; porque, em última análise, o bem confunde-se com a utilidade bem entendida”.10 A ética, para Sócrates, tem por finalidade o aperfeiçoamento interior. Para ele, é melhor sofrer a injustiça do que cometê-la. E se alguém comete alguma infração, a alternativa é aceitar a sanção, remédio para a alma. O homem precisa encontrar o equilíbrio, e o caminho é a justiça e temperança. A harmonia, resultante do equilíbrio, é condição para se atingir a felicidade. Foi polêmico e tornou-se sinal de contradição. Ao constatar e disseminar a superficialidade intelectual de homens poderosos, Sócrates conquistou inimigos. Foi acusado de corromper a juventude e condenado a beber cicuta. Poderia ter escapado da morte, mas sua coerência não o permitiu. Haver sido incompreendido e condenado é fato do mais relevante significado: “toca a essência da filosofia. Pois filosofar significa problematizar, e quanto mais filosófico for um filósofo, tanto mais radicalmente ele põe as coisas em dúvida. Mas quando se torna duvidosa, a realidade subsistente é simultaneamente ameaçada. Deve-se, pois, censurar os partidários da realidade subsistente por tudo fazerem para calar o filósofo e seu inquietante perguntar?”.11 Morreu acreditando que o papel da filosofia é auxiliar o homem a obter a maior perfeição possível na vida e na morte e sua morte completa, em plenitude, a vida devotada à missão de formar espíritos retos, homens virtuosos, cidadãos capazes. Os últimos instantes de sua vida são narrados por Platão em Fédon. Eles traduzem sua crença na imortalidade da alma e na justiça divina. Com sua vida e com sua morte, Sócrates provou a fé profunda em sua tese de que injustiça não deve ser combatida com injustiça. O seu estilo de fazer pensar continua atual e válido. Ante a qualquer indagação, respondia com outra pergunta. Melhor: retrucava a mesma questão para quem a formulara. Todos têm alguma ideia daquilo sobre o que nutrem uma curiosidade. A intuição serve para forçar a reflexão. Paul Ricoeur assinala o que isso significa: “Pense-se em Sócrates interpelando seus concidadãos, com perguntas do tipo ‘o que é…?’. O que é a virtude, a coragem, a piedade? A separação torna–se completa em relação ao uso familiar com questões de elevado grau como as seguintes: O que é o ser? O que é o conhecimento, a opinião, o saber, a verdade? O que é um objeto, um sujeito? O que é o a priori? O que é o pensamento?”.12 É assim que se começa a pensar seriamente no mundo. Ou, como salienta Paul Ricoeur: “É uma história filosófica do questionamento filosófico. Disso resulta que o afastamento entre os valores de uso dos vocábulos de uma língua natural e as significações geradas em seu âmago pela problemática filosófica constitui em si mesmo um problema filosófico”.13 Por isso é que se tem de iniciar pelo começo. De indagação em indagação, compreendendo não apenas o étimo, procurando apreender o significado das palavras, até assimilar a multiplicidade de seus conteúdos. 2. Platão (427-347 a.C.) Discípulo e profundo admirador de Sócrates, coube a Platão elaborar a síntese daquilo que no mestre era gérmen e potência. Integrante de família tradicional de Atenas, com vasta participação na política, à militância na vida pública promissora, preferiu a poesia e o teatro. Aos 20 anos, encontrou-se com Sócrates e isso imprimiu novo rumo à sua vida. Desiludido com a morte de Sócrates, deixou Atenas e viveu em Mégara antes de viajar pelo Egito e Cirene, Itália e Sicília. Permaneceu algum tempo na corte de Dionísio I, de Siracusa e, amigo de Díon, cunhado e genro do tirano, atraiu sua ira. Platão, contra a sua vontade, foi embarcado por Dionísio num navio de Égina, cidade em luta contra Atenas e cujo comandante o vendeu como escravo. O cirenaico Aníceris o resgatou e depois disso conseguiu voltar para Atenas. Em 387 a.C., foi fundada a Academia, primeira instituição de ensino superior do Ocidente. Seu nome deriva de situar-se nas proximidades do santuário do herói ático Academos. A Academia durou quase um milênio, pois apenas em 529 Justiniano a dissolveu. Ali ele permaneceu durante todo o tempo, com a única interrupção de duas viagens a Siracusa, em 367 e 361, por insistência de Dionísio II. Não conseguiu fazer com que o tirano adotasse a sua orientação e novamente frustrou-se na esperança de ver os seus princípios concretizados na administração racional de um Estado. De sua obra conservaram-se os diálogos. Mesmo estes são polêmicos. Não se conhece a ordem cronológica de sua produção. Alguns são considerados apócrifos ou duvidosos. Daí a dificuldade na apreensão sistemática do pensamento platônico. Os diálogos mais importantes para a filosofia jurídica são A República (Politeia), O Político (Politikós) e As Leis (Nomoi). Centra-se na reflexão da Justiça, daí sua relevância fundamental para a filosofia do Direito e da Política. Importante observar que a sua experiência pessoal da mesquinharia política em Atenas, culminada com a injustiça perpetrada contra Sócrates, levou-o a desacreditar da vida pública, tal como vivenciada. Constatou, em dolorosa experiência, não haver possibilidade de ética na política. Concluiu que o mau governo era a regra e acreditou que só a filosofia poderia trazer ordem e justiça para as pessoas. Enquanto jejunos em filosofia viessem a exercer o poder, o mundo continuaria a exibir as misérias tão frequentes. Os políticos profissionais só pensam no seu próprio interesse. A única alternativa seria unir política e filosofia. Em termos mais singelos, fazer com que a política se amparasse e se fundamentasse no saber. Platão iniciou sua filosofia com a distinção entre opinião e conhecimento racionalmente fundamentado. A opinião é a doxa. Daí a palavra “paradoxa” ou “paradoxo” – asserção que se afasta da opinião corrente. Em contraposição a ela, Platão propõe o episteme, a ciência a que se atinge porque se a procura. A Filosofia é o saber encontrado após a busca. É aquilo que resulta da procura. E essa procura tem um método. Não é uma busca irracional. Pode-se atribuir, a Sócrates, a instituição do método científico. Ao especular sobre as virtudes morais, foi o primeiro a questionar as definições universais dos objetos. Seus estudos fundamentaram a ideia da investigação lógica e o ideal ético para o conhecimento das virtudes morais. A ciência é o caminho natural para chegar à virtude. Esse caminho é denominado maiêutica. O método da maiêutica é o diálogo. Daí os Diálogos de Platão que, na verdade, são diálogos de Sócrates. Para Platão, a verdadeira ciência não tem, como objeto, os seres cambiantes do mundo de Heráclito – ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. O objeto da ciência é algo imutável, eterno e real. Além e acima da realidade sensível – a opinião – deve existir uma realidade inteligível – a verdade atingida pela razão. Se for possível revestir de singeleza o pensamento platônico, afirme-se que ele reconhece vários graus do conhecimento. Ao nascer, o homem está encadeado pelos laços da ignorância no fundo de uma caverna. Na medida em que adquire conhecimentos culturais de sua época, o ser humano se supera. Libera-se da prisão da falta de conhecimento, até chegar finalmente ao mundo das ideias, que é o mundo do bem. Todo homem possui o conhecimento racional e a intuição. O conhecimento racional é o termo médio entre a opinião e a intuição. O mundo das ideias está adormecido na alma humana. A missão dos homens é recordar as ideias. A alma não constrói ideias, mas as encontra, porque estão esquecidas. Saber é recordar. A ciência equivale a uma recordação. No mundo ideal, nada se cria. Tudo se redescobre. Aprender é desvendar aquilo que sempre existiu e que se encontra oculto para o homem que não estudapara descobri-lo. O mundo sensível, para Platão, não é a realidade autêntica. É um reflexo muito pálido da realidade superior: o mundo inteligível. O mundo sensível é a instância do mutável, do relativo e contingente. O mundo inteligível é o espaço do imutável, do absoluto e do necessário. A expressão mais instigante dessa vertente do pensamento platônico está na alegoria da caverna, no Livro VII da República. Vê-se nela que “o mundo sensível, que desliza entre o ser e o não ser, só tem realidade na medida em que participa do mundo inteligível; as coisas singulares, que nos rodeiam, são como as sombras das ideias, isto é, das suas formas primordiais e arquétipos eternos. Daí que os sentidos não forneçam um saber verdadeiro, mas apenas uma mera opinião, uma doxa. O saber verdadeiro é uma árdua conquista da razão, quando em luta com os sentidos, consegue superar as enganosas aparências e elevar-se até à contemplação das ideias”.14 A consequência dessa filosofia impregna profundamente e se detecta até hoje no pensamento ocidental. Se as ideias são a realidade verdadeira, a mais relevante delas é a ideia do Bem. Para o mundo inteligível, o Bem é como o Sol para o mundo sensível. Daí a identidade entre o Bem e Deus. O fim supremo do homem é aproximar-se de Deus. Como é que ele faz isso? A criatura precisa dominar os sentidos, – falsa realidade – e levar uma vida virtuosa calcada na sabedoria. Platão acredita na imortalidade da alma e na recompensa ultraterrena. O espaço destinado ao homem na permanente busca do Bem (Deus) é a cidade. A missão da cidade é tornar o homem virtuoso e criar todas as condições para o seu aperfeiçoamento. É uma concepção pedagógica da comunidade política. Uma escola permanente para melhorar as pessoas. A única e verdadeira educação seria o civismo. Aprender a conviver, a cooperar, a resolver gregariamente os problemas comuns. A educação platônica é o instrumento da consecução da felicidade humana. Para ele, “o homem pode converter-se no mais divino dos animais, sempre que se o eduque corretamente; converte-se na criatura mais selvagem de todas as criaturas que habitam a terra, em caso de ser mal educado”.15 As ideias pedagógicas de Platão nunca foram tão atuais. É atemporal a convicção humana, ao menos intuível pelos mais sensíveis, de que o autoaprendizado é missão perpétua. O sequioso de clareza nutre o sentimento humano da imprescindibilidade de se caminhar rumo ao saber: “o ser humano, na crueza de seu ser, se percebe como um eu que não está pronto. Vive sua vida segundo o reino das possibilidades, cresce no ser e seu existir manifesta-se como um constante fazer-se num eterno vir-a- ser”.16 A criatura humana é potencialidade em curso, nunca está acabada. E isso toda criatura normal vivencia e sente: “o homem experimenta seu próprio ser como um eterno advento, isto é, como algo diante dele, que deve ser buscado, realizado. Sua existência se manifesta, assim, não simplesmente como um fato, mas como uma tarefa, como uma permanente interpelação a ele mesmo. Neste sentido, o homem é um ser da passagem, um ser em constante fazer-se, um vir-a-ser em processo. Portanto, o homem não é uma realidade fixa, definida uma vez por todas, mas essencialmente transcendência. É o movimento, o superar-se, o que o constitui como homem, e por isso ele é processo”.17 O filósofo, para Platão, é o modelo mais adequado do estágio de perfectibilidade que a educação humana pode atingir. “O amigo da sabedoria é aquele que vive feliz porque é virtuoso, possui como ideal de vida viver a justiça tanto individual quanto coletiva, seu objetivo é chegar à verdade que se manifesta na transparência das coisas, por meio de uma consistente formação dialética”.18 Por isso é que o filósofo é o único habilitado a governar a cidade com justiça. Como conseguir filósofos? Educando. E educar não é propiciar aquisição de conhecimentos técnicos. Ensinar a decorar ou a colecionar informações. Educar é formar um homem virtuoso. O que é virtude para Platão? Os predicados morais, na visão platônica, representam o tesouro mais valioso, a coisa mais importante da vida. Eloquente o texto em que evidencia o seu apreço pelos atributos humanos: “Todo o ouro da terra e debaixo da terra não alcança o valor da virtude”.19 A pessoa virtuosa é a pessoa boa. Todos têm uma intuição do que seja virtude, embora difícil conceituar virtude. A virtude é um ideal a ser atingido, insere-se na esfera da teleologia. Pois “a virtude é aquilo que deve ser. O mundo que de fato existe, como ele está aí em frente de nossos olhos, nem sempre coincide com aquilo que deve ser. O dever-ser é o ideal a ser atingido, o dever-ser é a Ideia. Nasce assim a ideia platônica. A condenação injusta e a morte de Sócrates mostraram com clareza a Platão que o mundo- que-de-fato é, nem sempre coincide com o mundo ideal que deve ser”.20 Há uma interminável discussão a respeito da viabilidade de se ensinar alguém a ser virtuoso. A virtude é suscetível de se ensinar? Alguém pode transmitir a outrem a sua virtude? Na educação platônica, o estudo é lúdico. Aprende-se como num jogo, não como servidão. Diz ele: “não eduques as crianças no estudo pela violência, mas a brincar, a fim de ficares mais habilitado a descobrir as tendências naturais de cada uma”.21 A mocidade deve ser iniciada no processo educativo através da música e da ginástica. Em seguida, a matemática e depois a dialética. Só por meio desta se alcançará a filosofia. O tirocínio, esse aprendizado prático, se fará até os cinquenta anos de idade. Só a partir daí é que alguém poderia estar habilitado a exercer o governo da cidade. O governante ideal seria o filósofo-rei. Ele deveria ser educado por um processo que Platão explicitou em A República e que pode ser resumido como segue: “os mais bem dotados dos guerreiros são escolhidos entre os vinte e os trinta anos, e submetidos a uma particular educação científica. Quem nela se distinguir é tomado e introduzido na terceira classe, a dos “perfeitos guardiões”. E agora percebemos propriamente a alma do Estado platônico. Pois esses perfeitos guardiões devem tornar-se perfeitos filósofos para estabelecer o Estado platônico nos seus fundamentos de verdade e idealidade. Passam logo a estudar, durante cinco anos, filosofia, matemática, astronomia, belas-artes, sobretudo dialética filosófica, para se capacitarem de todas as leis, verdades e valores do mundo. Passam depois, durante quinze anos, em altos cargos políticos, para aprender a conhecer praticamente o mundo e a vida. Aos cinquenta anos, esse círculo de escolhidos se retira, vivendo então somente na contemplação do bem em si e presta o superior serviço de expor as grandes ideias pelas quais o Estado deve dirigir-se”.22 Paradoxalmente, o filósofo é o mais indicado a exercer o poder, justamente por ser aquele a quem o poder não seduz. Ou seja: o poder só pode ser bem manejado por quem não o aspire. O filósofo é o mais indicado a assumir o poder, porque é o menos enamorado dele.23 Mesmo porque, governar é servir. É colocar-se, devotadamente, a serviço dos demais. A educação, para Platão, é a arte do desejo do bem.24 E a aprendizagem é recordar-se daquilo que já se conhecia na transcendência e de que se esqueceu ao nascer. É a recuperação de um conhecimento que permanece adormecido mas que será recobrado pela reminiscência. Encontra-se em Fédon esta passagem eloquente: “Se em verdade antes de nascer já tínhamos tal conhecimento e o perdemos ao nascer e, depois, aplicando nossos sentidos a esses objetos voltamos a adquirir o conhecimento que já possuímos num tempo anterior: o que denominamos aprender será a recuperação de um conhecimento muito nosso. A este processo dá-se o nome de reminiscência”.25 Um processo educacional bem sucedido tornaria supérfluas as instituições humanas destinadas a corrigir os homens e seus males. Quanto mais educada a sociedade, menos cárceres ela teria. Mas também teria menos hospitais. É o que se constata num trecho de A República: “E acaso se arranjará prova maiordo vício e da educação vergonhosa numa cidade do que serem necessários médicos e juízes eminentes, não só para as pessoas de pouca monta e os artífices, mas também para os que se dão ares de terem sido criados em grande estilo? Ou não julgas uma vergonha e um grande sinal de falta de educação ser-se forçado a recorrer a uma justiça importada de outrem, como se eles fossem amos e juízes, por falta de justiça própria?”.26 A concepção platônica não é necessariamente elitista, ou o seu elitismo é relativo. Ele mostra a tendência “a estender mais amplamente a possibilidade de um tipo autônomo de felicidade, uma tendência que parece salvá-lo, por assim dizer, das limitações de sua abordagem elitista na República. Embora permaneça ainda verdadeiro que somente uns poucos estejam talhados para ser filósofos profissionais, para os quais pode ser preservada uma forma distintiva de felicidade, é agora possível para a maioria das pessoas atingir a felicidade recebendo educação em disciplinas cujo alvo é promover uma compreensão da coerência racional e um amor por ela”.27 É suficiente atentar para o que acontece hoje em nossa sociedade, todos os dias e ininterruptamente, para constatar a atualidade e a oportunidade dos ensinamentos de Platão. “Talvez a maior contribuição de Platão para o nosso tempo, que influenciou grandemente a história do Ocidente, seja justamente esta: construir mais justiça, tentar em todas as partes impor a harmonia sobre o caos, quer dizer, mudar o mal em bem, porque todo o conhecimento e toda a educação são, efetivamente, bondade. E, caso isso não seja possível, resta ainda para o educador platônico, representado na figura do filósofo, o refúgio na solidão do ser, onde, com toda a dignidade, segundo Sócrates, citado por Platão no Fédon, o filósofo aprenderá a arte última, pois aprendeu, com a sophia, que a Filosofia, como possibilidade de educação do homem, é a arte de aprender a morrer”.28 Se a Filosofia não repercutir para mudar a sociedade, ao menos tranquilizará o filósofo, que não temerá o encontro definitivo e incontornável com a sua morte. A filosofia platônica é otimista. Embora reconheça que as condições ideais para transformar o mundo estão longe de ser facilmente atingíveis, o universo é apresentado “como um contexto para o florescimento humano, contexto disponível a todos, mesmo na ausência de uma boa forma de governo”.29 Conseguir a felicidade pessoal é um empenho dissociado de preocupações políticas. A educação – o autodidatismo, principalmente – é uma forma de compensação ante as más formas de governo. Todos os humanos são cidadãos do universo, irrelevantes as distinções convencionais, mas efetivamente importantes o diálogo e a reflexão filosófica, alavancas para obter a felicidade humana possível. 2.1 Textos de Platão O PRAZER HUMANO – “Como parece aparentemente desconcertante, amigos, isso que os homens chamam de prazer! Que maravilhosa relação existe entre a sua natureza e o que se julga ser o seu contrário, a dor! Tanto um como a outra recusam ser simultâneos no homem; mas procure-se um deles – tenhamos preso um deles – e estaremos sujeitos quase sempre a encontrar também o outro, como se fossem uma só cabeça ligada a um corpo duplo!”.30 FILOSOFAR É APRENDER A MORRER – “Receio, porém, que quando uma pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer e em estar morto! Se isso é verdadeiro, bem estranho seria que, assim pensando, durante toda sua vida, que não tendo presente ao espírito senão aquela preocupação, quando a morte vem, venha a irritar-se com a presença daquilo que até então tivera presente no pensamento e de que fizera sua ocupação”.31 O ÓDIO: SENTIMENTO HUMANO – “O ódio aos homens, a misantropia, penetra nos corações quando confiamos demais numa pessoa, sem nos acautelarmos; quando acreditamos que uma pessoa é boa, sincera, honesta, e vimos a descobrir mais tarde que tal não é, que pelo contrário é má, desonesta e mentirosa; e se isso acontecer repetidas vezes a um mesmo homem, e justamente a propósito daquelas pessoas a quem considerava como seus melhores e mais sinceros amigos, esse passará finalmente a odiar todos os homens, persuadido de que em ninguém há de encontrar a menor qualidade boa”.32 A FILOSOFIA NÃO PODE SER OBJETO DE UM TRATADO – “De minha parte, ao menos, não existe e não existirá certamente nenhuma obra sobre semelhantes assuntos. Não existem meios, de fato, de colocá-las em fórmulas, como se faz com outras ciências, mas é quando se tem durante muito tempo enfrentado esses problemas, quando se viveu com eles, que a verdade brota subitamente na alma, como a luz jorra da faísca, e em seguida cresce por si mesma. Sem dúvida, sei bem que, se fosse necessário expô-la por escrito ou de viva voz, sou eu quem melhor o faria; mas sei também que, se a exposição fosse incorreta, sou eu quem sofreria mais do que qualquer um. Se eu tivesse acreditado que se pudesse escrevê-las e exprimilas para o povo de uma maneira satisfatória, que poderia eu realizar de mais belo na minha vida do que manifestar uma doutrina tão salutar aos homens e de lançar luz para todos sobre a verdadeira natureza das coisas?”.33 3. Aristóteles (384-322 a.C.) Dante chamava Aristóteles de “o Mestre dos que sabem. (…) Mestre, porque foi o primeiro a aceitar uma clarificação das condições lógicas do conhecimento, a sujeitar-se a uma revelação das exigências formais do raciocínio, a submeter-se com humildade às leis da linguagem e da razão. Explorador múltiplo, prudente, aberto, este espírito universal é todo o contrário de um dogmático”.34 Natural de Estagira, cidade Macedônia de população grega, filho de Nicômaco, médico do rei, Aristóteles recebeu educação esmerada e aos dezessete anos foi viver em Atenas. Procurou a Academia do sexagenário Platão e ali permaneceu até a morte do mestre, ou seja, por vinte anos. Após a morte de Platão, aceitou a missão confiada por Filipe da Macedônia, de educar o príncipe herdeiro, Alexandre. Quando o pupilo passou a reinar, rompeu com Aristóteles. A ingratidão não é datada. Sempre existiu e sempre existirá. É própria à natureza humana. O preceptor ainda acreditava na solução da polis – uma comunidade racional e autárquica – e o ambicioso Alexandre sonhava com um império universal. Aristóteles regressa a Atenas em 335 e funda o Liceu, escola situada num pequeno bosque consagrado a Apolo Lício e às Musas. Dedica-se à docência e à investigação. Aristóteles era intelectualmente independente de Platão. O mestre nutria um intransigente idealismo ético. O discípulo cultivava o realismo de moderado meio termo e espírito analítico baseado sobre os fatos. A vasta obra aristotélica centra-se na ética – Ética nicomaqueia ou Ética de Nicômaco, Ética de Eudemo, Grande Ética ou Ética Maior – e em A Política. Em lugar de procurar o mundo inteligível para além do mundo sensível, como Platão, Aristóteles procura a essência universal das coisas nas próprias coisas. A realidade sensível é também inteligível e o entendimento humano é capaz de descobrir a ideia oculta no objeto sensível, por meio da abstração. A plenitude da essência é o bem. Todo ser tende para esta plenitude. Não se conforma o ser humano ao sentir-se ainda incompleto. Não descansa enquanto não conseguir se completar. O homem tem consciência do que é o bem, dispõe-se a alcançá-lo e estabelece uma hierarquia. Essa pauta de valores imprimirá o ritmo de sua existência. Só que ao buscar a realização de seus bens, alcança uma felicidade imperfeita e transitória. A felicidade plena só conseguirá ao atingir o bem supremo. O bem supremo é a finalidade última do ser humano. Consiste na felicidade. Todavia, felicidade não é a relativa consecução de algumas finalidades tópicas. Não guarda a menor similitude com o alcançar alguns bens da vida, próprios à sociedade consumista, materialista e egoísta em que está imersa grande parte da população terrestre neste início de séc. XXI. Felicidade, para Aristóteles,é a contemplação da verdade e a adesão à verdade. O ser humano existe para a verdade. Toda espécie de falsidade ou mentira aproxima a espécie dos escalões inferiores. Só o compromisso da verdade tipifica o verdadeiro homem. Como se alcança a felicidade – ou a verdade? Mediante o caminho das virtudes. Virtudes são hábitos ou disposições do homem graças às quais saberá realizar as obras que lhe são próprias. Aristóteles construiu a teoria do justo meio, muita vez incompreendida ou, pelo menos, não inteiramente compreendida. “A virtude consiste neste meio que se relaciona conosco e que é regulado pela razão – meio entre dois vícios, que pecam, um por excesso, outro por defeito. O vício consiste em transgredir a medida, quer a respeito das nossas ações, quer a respeito dos nossos sentimentos”.35 Costuma-se explicar a teoria do justo meio como se a virtude fosse o justo meio, ou o equilíbrio, entre dois polos antagônicos e oscilantes. Entre a preguiça e a hiperatividade, a virtude está no meio termo. Entre a avareza e a prodigalidade, a virtude situa-se a meio caminho. A crítica é que o meio também faz lembrar mediocridade. Por isso, em lugar do “justo meio”, é mais conveniente falar-se em “equilíbrio”. As virtudes aristotélicas são dianoéticas, ou intelectuais e éticas, ou morais. Não constituem dons inatos, equivalentes ao patrimônio genético ou talentos com os quais as pessoas nascem. Ao contrário, consistem as virtudes em hábitos resultantes do esforço humano para submeter os seus atos à razão e aos fins supremos da sua natureza. Assim, não se é virtuoso por dom divino. É-se virtuoso porque se pratica a virtude como hábito. Como o hábito é uma segunda natureza, quem pratica reiteradamente a virtude torna-se virtuoso. Enquanto aquele que pratica maldades contínuas converte-se em alguém mau, maldoso, perverso. As virtudes dianoéticas ou intelectuais, por radicarem-se no entendimento, são adquiridas pela via teorética, mediante o ensino. As virtudes éticas ou morais têm raiz na vontade e é pelo exercício da vontade que elas começam a existir. Basta querer e alguém será ético. É suficiente a vontade para impedir que a pessoa cometa imoralidades. A chave da perfectibilidade humana é domínio do próprio homem. Não depende de concessão exterior. Aristóteles reforça a ideia de livre arbítrio. Toda criatura normal tem liberdade para ser virtuosa. E um lugar de realce dentre as virtudes éticas ele destina à justiça. Justiça, para Aristóteles, seria a síntese de todas as virtudes em relação ao próximo. Por isso é que a justiça tem conotação com alteridade. Fala-se em justiça apenas em relação a outrem. Não se concebe a virtude da justiça para consigo mesmo. Em sentido estrito, justiça é virtude ética particular aplicada em relação a outrem e com a qual se realiza o princípio da igualdade, como fundamento da coesão e harmonia na vida social. Concebe-se a igualdade sob duas vertentes. Daí derivam duas espécies de justiça: a distributiva e a corretiva ou sinalagmática, esta subdividida em comutativa e judicial. A justiça distributiva tem por objeto a repartição das honras e dos bens entre a comunidade e reclama que cada qual receba a parcela correspondente a seus méritos. A justiça distributiva contém uma nota de desigualdade. Se os méritos se distinguem, distintos serão os prêmios. Por isso é que a justiça distributiva é uma relação proporcional que Aristóteles qualifica de proporção geométrica. A justiça corretiva ou sinalagmática se baseia nas coisas e não nas pessoas. Não se avaliam méritos, mas é avaliado o benefício ou prejuízo que o sujeito pode experimentar. Concebem-se as pessoas como se fossem iguais e consideram-se os atos no seu valor efetivo ou intrínseco. A proporção aqui é aritmética. A justiça distributiva ordena as relações entre a sociedade e seus membros. A justiça corretiva ordena as relações entre as pessoas. Quando nela intervém, como elemento principal, a vontade dos interessados, chama- se comutativa. Quando se impõe contra a vontade de um deles, por decisão do juiz, chama-se judicial. Aristóteles elabora a ideia distintiva entre justo natural e justo legal. O justo natural independe da vontade humana e é considerado justo aprioristicamente, em todos os tempos, por todos os povos, em todos os lugares. Já o justo legal resulta da convenção humana. Torna–se justo por vontade da sociedade. Completa o raciocínio aristotélico a ideia de equidade. A epieikeia consiste na estratégia de adaptação da lei às necessidades do caso concreto. A lei, produzida em caráter genérico e de forma abstrata, não contempla todas as modalidades de ocorrência da hipótese a cuja disciplina ela se preordena. Incumbe eliminar a tensão entre a generalidade abstrata e artificial da lei e a singularidade concreta e real dos casos submetidos ao juiz. A equidade flexibiliza e o rigor da lei atendem às exigências da justiça natural. Em A Política, Aristóteles parte da concepção natural da sociedade humana. O homem é o zoon politikon, o animal político, social por natureza, chamado a viver na polis por força de sua própria essência. Muitas sociedades animais são sociais. Mas a sociedade humana é também política. Viver na polis, em sociedade, é mais natural ao homem do que qualquer outro tipo de associação. A vida gregária permite ao homem desenvolver-se em plenitude, realizar todas as suas potencialidades, atingir os limites inimagináveis. Todo homem normal depende da polis para se realizar. Fora dela, só os infra- homens – a patologia de quem não consegue conviver – ou os super-homens – aqueles que constituem primícias da natureza e não precisam dos demais semelhantes para atingir a plenitude possível. Seria o caso dos eremitas, dos anacoretas, dos santos solitários. O instinto natural do homem para a vida em sociedade parte da constatação de que o filhote humano é o único animal a não sobreviver sem o amparo materno. A família é o primeiro grupo, essencial à subsistência da espécie. Em seguida, vêm as aldeias, e a polis é a máxima exteriorização da vida em sociedade. Pois a polis é a única sociedade perfeita, provida de autossuficiência, a autarkeia, e que se distingue – não apenas quantitativa, mas qualitativamente – da aldeia e da família. A polis é a comunidade perfeita. Comunidade de homens livres, aptos à vivência autônoma e completa. Tal forma suprema de convivência humana tem por princípio a justiça e por vínculo fundamental a amizade. Existe uma conexão essencial entre as virtudes da justiça e da amizade. A amizade é mais abrangente do que a justiça. Se os homens são realmente amigos, não há necessidade de justiça. A amizade efetiva dispensa a justiça. Já a justiça não pode dispensar a amizade. Não é porque existe justiça na polis que os homens vão renunciar à amizade. Mesmo com justiça, continua a existir a necessidade da amizade. Notável a contribuição aristotélica para a teoria das formas de governo. Há três formas puras – monarquia, aristocracia, democracia – e três impuras – tirania, oligarquia, democracia radical, no sentido equivalente à demagogia. A oligarquia é o governo da minoria rica – na realidade, uma plutocracia. A demagogia, o governo da maioria pobre. A democracia, o governo da classe média. 3.1 Textos de Aristóteles A AMIZADE – Diz-se que aqueles que são perfeitamente felizes e se bastam a si mesmos não têm nenhuma necessidade de amigos: eles já possuem os bens da vida e, em consequência, bastando-se a si mesmos, não têm necessidade de mais nada; ora, o amigo, que é um outro eu, tem o papel de fornecer o que se é incapaz de encontrar com seus próprios meios. Daí o adágio: “Quando a sorte nos é favorável, para que precisamos de amigos?”.36 No entanto, parece estranho que, ao atribuir todos os bens ao homem feliz, não se lhe atribuam amigos, cuja possessão é considerada, em geral, como o maior dos bens exteriores. Ademais, se o que é próprio de um amigo é antes fazer o bem do que receber, e o que é próprio do homem de bem e da virtude de espalhar os benefícios,e se enfim é melhor fazer o bem a amigos que a estranhos, o homem virtuoso terá necessidade de amigos que receberão dele provas de sua beneficência. E é por esta razão que se coloca ainda a questão de saber se a necessidade de amigos é sentida mais na prosperidade ou na adversidade, considerando-se que, se o infeliz tem necessidade de pessoas que lhe darão ajuda, os homens cuja sorte é feliz têm necessidade de pessoas às quais se dirigirão seus benefícios. E, sem dúvida, é estranho também fazer do homem perfeitamente feliz um solitário: ninguém, de fato, escolheria possuir todos os bens desse mundo para usufruir só, pois o homem é um ser político e naturalmente destinado a viver em sociedade. Por conseguinte, mesmo o homem feliz possui essa característica, pois ele possui vantagens que são boas por natureza. E é evidentemente preferível passar seu tempo com amigos e homens de bem que com estranhos ou companheiros ocasionais. É preciso então ao homem feliz ter amigos.37 Os PRAZERES – Acerca dos prazeres peculiares, são muitos os que erram, e de muitas maneiras. Dizemos que alguns têm uma predileção obsessiva por algo ou porque se regozijam com o que não se deve, ou porque se regozijam mais do que a maioria, ou então de uma maneira diferente de como deve ser. Os devassos cometem excessos, segundo todas estas categorias. E alguns, na verdade, regozijam-se com algumas coisas com as quais, por serem abomináveis, é completamente errado regozijar-se. E se é lícito tirar prazer de algumas delas, eles gozam mais do que é devido ou, então mais do que a maioria.38 PRODIGALIDADE E AVAREZA – O esbanjamento e a avareza a respeito da riqueza são respectivamente as disposições do excesso e do defeito. Atribuímos a disposição da avareza àqueles que zelam sempre pela riqueza mais do que devem; empregamos o termo “esbanjamento” por vezes numa rede de acepções mais complexa. Dizemos que os que não têm autodomínio e se consomem na devassidão são esbanjadores. É por isso que parecem ser do tipo mais ordinário que há. São portadores de muitas perversões em simultâneo. Não são, portanto, assim chamados de acordo com uma disposição peculiar para o mal. Esbanjador quer dizer aquele que tem uma perversão específica, o destruir suas posses. O que se destrói pelos seus próprios meios é esbanjador, e parece ser a sua própria ruína, isto é, a destruição das suas posses e meios, na medida em que estes são meios de assegurar a subsistência. É neste sentido que entendemos o termo “esbanjamento”.39 GENEROSIDADE – A generosidade é entendida de acordo com a posse de cada um. O ato generoso não consiste no montante ou na quantidade das doações, mas na disposição que constitui o caráter do doador. Ora, a disposição constitutiva da generosidade faz dar de acordo com a posse. Nada impede, portanto, que quem dá pouco seja mais generoso, caso dê do pouco que tem para dar. Porém, parecem ser mais generosos não os que adquiriram as suas posses, mas os que as herdaram, porque estes não sabem o que é ter falta de alguma coisa, e todos têm uma grande afeição pelas suas criações, como é o caso dos pais pelos filhos e dos poetas pelos seus poemas. Por outro lado, não é fácil para o generoso enriquecer, uma vez que não é dos que gostam muito de aceitar ou dos que são capazes de poupar. É antes dos que estão prontos a gastar e não dão valor às riquezas só por si, mas em vista do dar como tal. Por isso também se diz mal da sorte, porque os mais valorosos são os menos ricos de todos.40 AMOR PRÓPRIO – Na verdade, nós criticamos as pessoas que se amam a si próprias, dizendo delas depreciativamente que estão “apaixonadas por si próprias”. Também parece que o vil faz tudo por paixão por si, e quanto mais depravado for, tanto mais está apaixonado por si – há queixas contra ele por não ser capaz de fazer nada que se desvie do seu interesse. Mas o que é excelente age em vista da nobreza da ação e quanto melhor for a pessoa, tanto mais age com esse objetivo em vista. Age em vista do si de outro amigo, deixando o seu próprio si de lado.41 FELICIDADE – Sólon descreveu corretamente em que é que consistia ser feliz ao dizer que tinham sido felizes aqueles que ele pensava que tinham sido dotados de modo suficiente com bens exteriores, tinham realizado feitos nobres e tinham levado uma vida com temperança. É possível, pois, aos que têm posses moderadas fazer o que é devido. Também Anaxágoras tinha para si que um humano feliz não possuía riqueza nem era poderoso, dizendo que não era de espantar que o feliz parecesse absurdo aos olhos de muitos. Porque estes ajuízam a partir do que é exterior, sendo isso a única coisa que conseguem perceber.42 4. Santo Agostinho (354-430) 4.1 Vida e obra Pai pagão, mãe cristã, Agostinho (13.11.354-28.08.430) participou das duas tradições em luta. Natural de Tagaste, norte da África, estudou em Cartago. Espírito inquieto, leu a Bíblia e não se encantou. Tornou-se maniqueísta e partiu para Roma, onde o ceticismo o atraiu por um tempo. Obteve uma cátedra em Milão e conheceu Santo Ambrósio, cuja pregação, aliada à leitura de Plotino, o fez converter-se em 386. A partir daí, consagrou sua vida e dotes intelectuais à defesa da sua fé contra o paganismo e as heresias. Foi ordenado sacerdote e depois bispo de Hipona, cidade em que morreu quando os vândalos a cercaram. Descreve seu itinerário espiritual nas Confissões. Escreveu ainda Retractationes, Contra Academicos, De Beata Vita, Solliloquia, De Immortalitate animae, De quantitate animae, De Musica, De Magistro, De vera religione, De Trinitate, De libero arbítrio, De Ordine e sua obra-prima é De Civitate Dei (413-426). A obra se compõe de 22 livros, foi escrito entre 413-426 e os 10 (dez) primeiros livros contêm uma apologia do cristianismo contra as acusações dos gentios. O restante é um amplo tratado de Teologia da História. Tem uma produção imensa e em parte nunca mais localizada. Sabe-se que escreveu Contra Faustum Manichaeum, Comentários aos Salmos, Comentários às Epístolas, Sermões e outros. 4.2 A lei eterna e a lei natural Santo Agostinho integrou, ao Cristianismo, a teoria platônica das ideias. Ideias eram modelos eternos das coisas na mente divina. A Lei eterna era a Parte III Filósofos – Breves reflexões 1. Sócrates (?-399 a.C.) 2. Platão (427-347 a.C.) 2.1 Textos de Platão 3. Aristóteles (384-322 a.C.) 3.1 Textos de Aristóteles 4. Santo Agostinho (354-430) 4.1 Vida e obra 4.2 A lei eterna e a lei natural 4.3 As leis humanas 4.5 Filosofia social 4.9 A guerra Justa 4.10 Propriedade 4.11 Textos de Santo Agostinho 5.1 Vida e obra 5.2 Filosofia e Teologia 5.4 O direito natural 6.1 Vida e obra 6.2 Um pouco de Kant 6.3 Adentrar ao mundo de Kant 6.4 Textos de Emmanuel Kant 7.1 Vida e obra 7.7 O direito para Hegel 7.8 Textos de Hegel 8.1 Vida e obra 8.2 Atualidade de Kierkegaard 8.3 Aceitar o sofrimento 8.4 Textos de Kierkegaard 9.1 Vida e obra 9.2 Moral de Nietzsche 9.3 Os estilos de Nietzsche 9.4 O eterno retorno 9.6 Textos de Nietzsche 10.1 Vida e obra 10.3 Textos de Max Weber 11.1 Vida e obra 11.4 Textos de Bergson 12.1 O pensamento de Wittgenstein 12.2 Textos de Wittgenstein 13.1 Vida e obra 13.2 Cumprir sua sina 13.3 Textos de Hannah Arendt 14.1 Vida e obra 14.3 Textos de Derrida 15.1 Vida e obra 15.2 O estruturalismo