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Parte III
FILÓSOFOS
Breves reflexões
SUMÁRIO: 1. Sócrates (?-399 a.C.) – 2. Platão (427-347 a.C.): 2.1 Textos
de Platão – 3. Aristóteles (384-322 a.C.): 3.1 Textos de Aristóteles – 4. Santo
Agostinho (354-430): 4.1 Vida e obra; 4.2 A lei eterna e a lei natural; 4.3 As
leis humanas; 4.4 Pensamento político agostiniano; 4.5 Filosofia social; 4.6
A Cidade de Deus e a Cidade dos Homens; 4.7 A Justiça; 4.8 A República
Cristã; 4.9 A Guerra Justa; 4.10 A Propriedade; 4.11 Textos de Santo
Agostinho – 5. Santo Tomás de Aquino (1224/1225-1274): 5.1 Vida e obra;
5.2 Filosofia e Teologia: 5.3 A ética tomista; 5.4 O direito natural; 5.5 O
direito de resistência; 5.6 Textos de Santo Tomás de Aquino – 6. Emmanuel
Kant (1724-1804): 6.1 Vida e obra; 6.2 Um pouco de Kant; 6.3 Adentrar ao
mundo de Kant; 6.4 Textos de Emmanuel Kant – 7. Hegel (1770-1831): 7.1
Vida e obra; 7.2 A lógica de Hegel; 7.3 A razão e seus atributos; 7.4 Hegel,
Platão e Kant; 7.5 Realidade/Aparência; 7.6 Prioridade lógica e cronológica;
7.7 O direito para Hegel; 7.8 Textos de Hegel – 8. Kierkegaard (1813-1855):
8.1 Vida e obra; 8.2 Atualidade de Kierkegaard; 8.3 Aceitar o sofrimento; 8.4
Textos de Kierkegaard – 9. Nietzsche (1844–1900): 9.1 Vida e obra; 9.2
Moral de Nietzche; 9.3 Os estilos de Nietzche; 9.4 O eterno retorno; 9.5 Uma
filosofia para espíritos livres; 9.6 Textos de Nietzche – 10. Max Weber (1864-
1920): 10.1 Vida e obra; 10.2 A importância de Weber; 10.3 Textos de Max
Weber – 11. Bergson (1859-1942): 11.1 Vida e obra; 11.2 A intuição; 11.3
Bergson, a moral e a religião; 11.4 Textos de Bergson – 12. Wittgenstein
(1889-1951): 12.1 O pensamento de Wittgenstein; 12.2 Textos de
Wittgenstein – 13. Hannah Arendt (1906-1975): 13.1 Vida e obra; 13.2
Cumprir sua sina; 13.3 Textos de Hannah Arendt – 14. Jacques Derrida
(1930-2004): 14.1 Vida e obra; 14.2 A Desconstrução; 14.3 Textos de
Derrida – 15. Claude Lévi-Strauss (1908-2009): 15.1 Vida obra; 15.2 O
estruturalismo; 15.3 Um espírito inquieto; 15.4 Nada obstante, acadêmico!;
15.5 Textos de Lévi-Strauss.
1. Sócrates (?-399 a.C.)
Ateniense, de humilde origem, manteve-se pobre e austeramente
durante toda a sua vida, direcionada à busca da verdade. Nunca escreveu
nada mas legou o ponto de partida para inúmeras escolas filosóficas.
Exerceu considerável influência sobre Platão e também para as escolas
posteriores. É personagem de relevo da filosofia grega. Sábio e humilde
proclamava nada saber. Sua preocupação era o bem e o justo. Preferia a
morte a causar qualquer mal.
Platão foi o discípulo que mais falou nele. Mas também se encontram
citações de Sócrates em Xenofonte, Aristófanes, em As Nuvens, outros
cômicos como Cratino, Êupolis, Ameipsias, Teopompo, os oradores:
Isócrates, Esquines e Andócides.
Foi em seu tempo que surgiu algo que se poderia chamar de educação
superior para jovens abonados das melhores famílias. “Era proporcionada
pelos sofistas, os professores viajantes da arte do êxito na vida pública, a
cobrar altos proventos e pretendendo produzir resultados rápidos e certos”.1
Por não se interessarem por valores religiosos ou morais absolutos, mas
pregassem que eles resultavam de convenções, não eram estimados por
Sócrates.
Na verdade, “é impossível conhecer ao certo o verdadeiro Sócrates,
atrás dos escritos de seus amigos e admiradores. O Sócrates que
conhecemos melhor, o que está presente na mente e na imaginação dos
europeus desde o século IV a.C, é o que surge dos diálogos de Platão”.2
Platão foi quem legou, ao mundo, a imagem que de Sócrates se
conserva. “Talvez os detalhes a seu respeito de que podemos ter segurança
sejam os seguintes: ele julgava que a coisa mais importante da vida do
homem era saber o que era e a que se destinava e cuidar de sua alma para
torná-la o melhor possível; acreditava que ‘a virtude é conhecimento’ – se
um homem sabia realmente o que era o bem, ele o praticaria”.3
Aristóteles não o conheceu pessoalmente, pois nasceu quinze anos
depois da morte de Sócrates.
Os sucessores fazem sua apologia. Platão o considerava encantador4 e
sábio.5 Chegou a comparar Sócrates a uma raia marinha: “ousarei dizer, se
tu me permitires uma brincadeira, que tu te pareces, pelo aspecto e por tudo,
com esse grande peixe do mar que se chama raia. Esta paralisa
imediatamente quem quer que se aproxime e a toque; tu me fazes
experimentar um efeito semelhante. Sim, estou verdadeiramente paralisado
de corpo e alma, e sou incapaz de responder-te”.6 A imagem pretende
evidenciar o quão encantador era Sócrates para quem privava de seu
convívio.
Sócrates não aceitava bem essa comparação com a raia. Rechaçou–a
para afirmar que, se paralisava os discípulos, era porque também se
encontrava paralisado: “no que me concerne, se a raia, antes de paralisar os
outros, está ela própria em estado de paralisia, eu me assemelho a ela; se
não, não. Eu não sou um homem que, seguro de si, embaraça os outros; se
embaraço os outros, é porque estou, eu mesmo, no mais extremo
embaraço”.7 Observação que enfatiza a característica mais evidente da
filosofia. É a procura incessante. A busca permanente. Não a resposta às
inquietações, mas perguntas que se sucedem e quase nunca podem ser
satisfatoriamente respondidas.
Sócrates costuma ser designado como “o parteiro das almas”. A
conotação com a profissão de sua mãe Fenareta serve para demonstrar que
o acesso à ciência deve ser feito pela via interior. Assim como a mãe,
parteira de profissão – função sacerdotal à época, exercida sob a proteção
da irmã do deus Apolo, chamada Ártemis – Sócrates dava a luz à
consciência humana. A luz chegava mediante o autoconhecimento. Daí a
relevância do “Conhece-te a ti mesmo” délfico. Sócrates tomou esse dístico,
inscrito no frontão do templo de Delfos, como lema de sua filosofia.
Um texto platônico pode auxiliar a reflexão. Sócrates teria afirmado:
“Tenho, de fato, a mesma impotência que as parteiras. Parir com sabedoria
não está em meu poder – e a crítica que muitos já me infamaram, que aos
outros colocando questões eu jamais apresento minha própria opinião sobre
nenhum assunto e que a causa disso está no vazio de minha própria
sabedoria, é uma crítica verídica. A verdadeira causa, ei-la aqui: partejar os
outros é a obrigação que o deus me impôs; procriar é poder que ele me
retirou. Não sou eu mesmo sábio em nenhum grau e não tenho, em minha
posse, nenhuma criação qualquer que seja e que minha alma tenha ela
mesma parido. Mas aqueles que vêm à minha procura, num primeiro
contato, parecem, alguns totalmente, nada saber. Ora, todos, à medida que
avançam suas relações e à medida que o deus lhes seja favorável,
maravilhosa é a rapidez com que eles progridem, segundo seu próprio
julgamento e o dos outros. É claro, no entanto, que eles não aprenderam
nada de mim e que eles somente, em seu próprio interior, conceberam essa
riqueza de belos pensamentos que eles descobrem e atualizam”.8
O que significa a explicação de Sócrates sobre o seu método, a
maiêutica? A parteira não dá a vida à criança. Ela apenas ajuda o nascituro
a sair do útero. Assim também, o filósofo – e o professor – libertam o
discípulo da ignorância. A aquisição do conhecimento não depende do
mestre. Condiciona-se à potencialidade vital do interior da consciência do
aluno.
Interessante a comparação socrática de que muita mulher com gravidez
psicológica procura a parteira e, obviamente, não dará a luz. Assim
também, aquele que não estiver imbuído da sabedoria intuitiva, nada
conseguirá aprender. Ventres desprovidos de vida e consciências estéreis de
conhecimento não atingirão a verdade, que é a luz.
Sócrates concluiu que existem normas de conduta de validade absoluta,
acessíveis a todos quando a si mesmos se interrogam ou quando conferem
os seus juízos com os dos demais. Se houver intenção reta de atingir a
verdade, se houver reflexão e se houver diálogo, qualquer pessoa normal
chegará a conhecer a verdade. “O que Sócrates procura é a verdade. Ele é
possuído pela busca da verdade. Pouco antes de sua morte, diz a seu amigo
Criton: ‘Não temosabsolutamente de nos preocupar com o que muitos
dizem sobre nós, senão com o que diz aquele que entende do justo e do
injusto: o Um e a verdade mesma”.9 O conhecimento era a maior virtude. E
tamanha a sua fé na virtude do conhecimento, que “a moral reduz-se ao
conhecimento do bem; só por ignorância se comete o mal; porque, em
última análise, o bem confunde-se com a utilidade bem entendida”.10
A ética, para Sócrates, tem por finalidade o aperfeiçoamento interior.
Para ele, é melhor sofrer a injustiça do que cometê-la. E se alguém comete
alguma infração, a alternativa é aceitar a sanção, remédio para a alma.
O homem precisa encontrar o equilíbrio, e o caminho é a justiça e
temperança. A harmonia, resultante do equilíbrio, é condição para se atingir
a felicidade.
Foi polêmico e tornou-se sinal de contradição. Ao constatar e
disseminar a superficialidade intelectual de homens poderosos, Sócrates
conquistou inimigos. Foi acusado de corromper a juventude e condenado a
beber cicuta. Poderia ter escapado da morte, mas sua coerência não o
permitiu. Haver sido incompreendido e condenado é fato do mais relevante
significado: “toca a essência da filosofia. Pois filosofar significa
problematizar, e quanto mais filosófico for um filósofo, tanto mais
radicalmente ele põe as coisas em dúvida. Mas quando se torna duvidosa, a
realidade subsistente é simultaneamente ameaçada. Deve-se, pois, censurar
os partidários da realidade subsistente por tudo fazerem para calar o filósofo
e seu inquietante perguntar?”.11
Morreu acreditando que o papel da filosofia é auxiliar o homem a obter
a maior perfeição possível na vida e na morte e sua morte completa, em
plenitude, a vida devotada à missão de formar espíritos retos, homens
virtuosos, cidadãos capazes.
Os últimos instantes de sua vida são narrados por Platão em Fédon.
Eles traduzem sua crença na imortalidade da alma e na justiça divina. Com
sua vida e com sua morte, Sócrates provou a fé profunda em sua tese de que
injustiça não deve ser combatida com injustiça.
O seu estilo de fazer pensar continua atual e válido. Ante a qualquer
indagação, respondia com outra pergunta. Melhor: retrucava a mesma
questão para quem a formulara. Todos têm alguma ideia daquilo sobre o
que nutrem uma curiosidade. A intuição serve para forçar a reflexão. Paul
Ricoeur assinala o que isso significa: “Pense-se em Sócrates interpelando
seus concidadãos, com perguntas do tipo ‘o que é…?’. O que é a virtude, a
coragem, a piedade? A separação torna–se completa em relação ao uso
familiar com questões de elevado grau como as seguintes: O que é o ser? O
que é o conhecimento, a opinião, o saber, a verdade? O que é um objeto, um
sujeito? O que é o a priori? O que é o pensamento?”.12 É assim que se
começa a pensar seriamente no mundo. Ou, como salienta Paul Ricoeur: “É
uma história filosófica do questionamento filosófico. Disso resulta que o
afastamento entre os valores de uso dos vocábulos de uma língua natural e
as significações geradas em seu âmago pela problemática filosófica
constitui em si mesmo um problema filosófico”.13 Por isso é que se tem de
iniciar pelo começo. De indagação em indagação, compreendendo não
apenas o étimo, procurando apreender o significado das palavras, até
assimilar a multiplicidade de seus conteúdos.
2. Platão (427-347 a.C.)
Discípulo e profundo admirador de Sócrates, coube a Platão elaborar a
síntese daquilo que no mestre era gérmen e potência.
Integrante de família tradicional de Atenas, com vasta participação na
política, à militância na vida pública promissora, preferiu a poesia e o
teatro. Aos 20 anos, encontrou-se com Sócrates e isso imprimiu novo rumo
à sua vida.
Desiludido com a morte de Sócrates, deixou Atenas e viveu em Mégara
antes de viajar pelo Egito e Cirene, Itália e Sicília. Permaneceu algum
tempo na corte de Dionísio I, de Siracusa e, amigo de Díon, cunhado e
genro do tirano, atraiu sua ira. Platão, contra a sua vontade, foi embarcado
por Dionísio num navio de Égina, cidade em luta contra Atenas e cujo
comandante o vendeu como escravo. O cirenaico Aníceris o resgatou e
depois disso conseguiu voltar para Atenas.
Em 387 a.C., foi fundada a Academia, primeira instituição de ensino
superior do Ocidente. Seu nome deriva de situar-se nas proximidades do
santuário do herói ático Academos. A Academia durou quase um milênio,
pois apenas em 529 Justiniano a dissolveu.
Ali ele permaneceu durante todo o tempo, com a única interrupção de
duas viagens a Siracusa, em 367 e 361, por insistência de Dionísio II. Não
conseguiu fazer com que o tirano adotasse a sua orientação e novamente
frustrou-se na esperança de ver os seus princípios concretizados na
administração racional de um Estado.
De sua obra conservaram-se os diálogos. Mesmo estes são polêmicos.
Não se conhece a ordem cronológica de sua produção. Alguns são
considerados apócrifos ou duvidosos. Daí a dificuldade na apreensão
sistemática do pensamento platônico.
Os diálogos mais importantes para a filosofia jurídica são A República
(Politeia), O Político (Politikós) e As Leis (Nomoi). Centra-se na reflexão
da Justiça, daí sua relevância fundamental para a filosofia do Direito e da
Política.
Importante observar que a sua experiência pessoal da mesquinharia
política em Atenas, culminada com a injustiça perpetrada contra Sócrates,
levou-o a desacreditar da vida pública, tal como vivenciada. Constatou, em
dolorosa experiência, não haver possibilidade de ética na política. Concluiu
que o mau governo era a regra e acreditou que só a filosofia poderia trazer
ordem e justiça para as pessoas.
Enquanto jejunos em filosofia viessem a exercer o poder, o mundo
continuaria a exibir as misérias tão frequentes. Os políticos profissionais só
pensam no seu próprio interesse. A única alternativa seria unir política e
filosofia. Em termos mais singelos, fazer com que a política se amparasse e
se fundamentasse no saber.
Platão iniciou sua filosofia com a distinção entre opinião e
conhecimento racionalmente fundamentado. A opinião é a doxa. Daí a
palavra “paradoxa” ou “paradoxo” – asserção que se afasta da opinião
corrente. Em contraposição a ela, Platão propõe o episteme, a ciência a que
se atinge porque se a procura.
A Filosofia é o saber encontrado após a busca. É aquilo que resulta da
procura. E essa procura tem um método. Não é uma busca irracional.
Pode-se atribuir, a Sócrates, a instituição do método científico. Ao
especular sobre as virtudes morais, foi o primeiro a questionar as definições
universais dos objetos. Seus estudos fundamentaram a ideia da investigação
lógica e o ideal ético para o conhecimento das virtudes morais.
A ciência é o caminho natural para chegar à virtude. Esse caminho é
denominado maiêutica. O método da maiêutica é o diálogo. Daí os
Diálogos de Platão que, na verdade, são diálogos de Sócrates.
Para Platão, a verdadeira ciência não tem, como objeto, os seres
cambiantes do mundo de Heráclito – ninguém se banha duas vezes no
mesmo rio. O objeto da ciência é algo imutável, eterno e real. Além e acima
da realidade sensível – a opinião – deve existir uma realidade inteligível – a
verdade atingida pela razão.
Se for possível revestir de singeleza o pensamento platônico, afirme-se
que ele reconhece vários graus do conhecimento. Ao nascer, o homem está
encadeado pelos laços da ignorância no fundo de uma caverna. Na medida
em que adquire conhecimentos culturais de sua época, o ser humano se
supera. Libera-se da prisão da falta de conhecimento, até chegar finalmente
ao mundo das ideias, que é o mundo do bem.
Todo homem possui o conhecimento racional e a intuição. O
conhecimento racional é o termo médio entre a opinião e a intuição.
O mundo das ideias está adormecido na alma humana. A missão dos
homens é recordar as ideias. A alma não constrói ideias, mas as encontra,
porque estão esquecidas. Saber é recordar. A ciência equivale a uma
recordação. No mundo ideal, nada se cria. Tudo se redescobre. Aprender é
desvendar aquilo que sempre existiu e que se encontra oculto para o homem
que não estudapara descobri-lo.
O mundo sensível, para Platão, não é a realidade autêntica. É um
reflexo muito pálido da realidade superior: o mundo inteligível. O mundo
sensível é a instância do mutável, do relativo e contingente. O mundo
inteligível é o espaço do imutável, do absoluto e do necessário.
A expressão mais instigante dessa vertente do pensamento platônico
está na alegoria da caverna, no Livro VII da República. Vê-se nela que “o
mundo sensível, que desliza entre o ser e o não ser, só tem realidade na
medida em que participa do mundo inteligível; as coisas singulares, que nos
rodeiam, são como as sombras das ideias, isto é, das suas formas
primordiais e arquétipos eternos. Daí que os sentidos não forneçam um
saber verdadeiro, mas apenas uma mera opinião, uma doxa. O saber
verdadeiro é uma árdua conquista da razão, quando em luta com os
sentidos, consegue superar as enganosas aparências e elevar-se até à
contemplação das ideias”.14
A consequência dessa filosofia impregna profundamente e se detecta
até hoje no pensamento ocidental. Se as ideias são a realidade verdadeira, a
mais relevante delas é a ideia do Bem. Para o mundo inteligível, o Bem é
como o Sol para o mundo sensível. Daí a identidade entre o Bem e Deus. O
fim supremo do homem é aproximar-se de Deus. Como é que ele faz isso?
A criatura precisa dominar os sentidos, – falsa realidade – e levar uma vida
virtuosa calcada na sabedoria. Platão acredita na imortalidade da alma e na
recompensa ultraterrena.
O espaço destinado ao homem na permanente busca do Bem (Deus) é a
cidade. A missão da cidade é tornar o homem virtuoso e criar todas as
condições para o seu aperfeiçoamento. É uma concepção pedagógica da
comunidade política. Uma escola permanente para melhorar as pessoas. A
única e verdadeira educação seria o civismo. Aprender a conviver, a
cooperar, a resolver gregariamente os problemas comuns.
A educação platônica é o instrumento da consecução da felicidade
humana. Para ele, “o homem pode converter-se no mais divino dos animais,
sempre que se o eduque corretamente; converte-se na criatura mais
selvagem de todas as criaturas que habitam a terra, em caso de ser mal
educado”.15
As ideias pedagógicas de Platão nunca foram tão atuais. É atemporal a
convicção humana, ao menos intuível pelos mais sensíveis, de que o
autoaprendizado é missão perpétua. O sequioso de clareza nutre o
sentimento humano da imprescindibilidade de se caminhar rumo ao saber:
“o ser humano, na crueza de seu ser, se percebe como um eu que não está
pronto. Vive sua vida segundo o reino das possibilidades, cresce no ser e
seu existir manifesta-se como um constante fazer-se num eterno vir-a-
ser”.16 A criatura humana é potencialidade em curso, nunca está acabada. E
isso toda criatura normal vivencia e sente: “o homem experimenta seu
próprio ser como um eterno advento, isto é, como algo diante dele, que
deve ser buscado, realizado. Sua existência se manifesta, assim, não
simplesmente como um fato, mas como uma tarefa, como uma permanente
interpelação a ele mesmo. Neste sentido, o homem é um ser da passagem,
um ser em constante fazer-se, um vir-a-ser em processo. Portanto, o homem
não é uma realidade fixa, definida uma vez por todas, mas essencialmente
transcendência. É o movimento, o superar-se, o que o constitui como
homem, e por isso ele é processo”.17
O filósofo, para Platão, é o modelo mais adequado do estágio de
perfectibilidade que a educação humana pode atingir. “O amigo da
sabedoria é aquele que vive feliz porque é virtuoso, possui como ideal de
vida viver a justiça tanto individual quanto coletiva, seu objetivo é chegar à
verdade que se manifesta na transparência das coisas, por meio de uma
consistente formação dialética”.18 Por isso é que o filósofo é o único
habilitado a governar a cidade com justiça.
Como conseguir filósofos? Educando. E educar não é propiciar
aquisição de conhecimentos técnicos. Ensinar a decorar ou a colecionar
informações. Educar é formar um homem virtuoso. O que é virtude para
Platão? Os predicados morais, na visão platônica, representam o tesouro
mais valioso, a coisa mais importante da vida. Eloquente o texto em que
evidencia o seu apreço pelos atributos humanos: “Todo o ouro da terra e
debaixo da terra não alcança o valor da virtude”.19
A pessoa virtuosa é a pessoa boa. Todos têm uma intuição do que seja
virtude, embora difícil conceituar virtude. A virtude é um ideal a ser
atingido, insere-se na esfera da teleologia. Pois “a virtude é aquilo que deve
ser. O mundo que de fato existe, como ele está aí em frente de nossos olhos,
nem sempre coincide com aquilo que deve ser. O dever-ser é o ideal a ser
atingido, o dever-ser é a Ideia. Nasce assim a ideia platônica. A condenação
injusta e a morte de Sócrates mostraram com clareza a Platão que o mundo-
que-de-fato é, nem sempre coincide com o mundo ideal que deve ser”.20
Há uma interminável discussão a respeito da viabilidade de se ensinar
alguém a ser virtuoso. A virtude é suscetível de se ensinar? Alguém pode
transmitir a outrem a sua virtude?
Na educação platônica, o estudo é lúdico. Aprende-se como num jogo,
não como servidão. Diz ele: “não eduques as crianças no estudo pela
violência, mas a brincar, a fim de ficares mais habilitado a descobrir as
tendências naturais de cada uma”.21 A mocidade deve ser iniciada no
processo educativo através da música e da ginástica. Em seguida, a
matemática e depois a dialética. Só por meio desta se alcançará a filosofia.
O tirocínio, esse aprendizado prático, se fará até os cinquenta anos de
idade. Só a partir daí é que alguém poderia estar habilitado a exercer o
governo da cidade.
O governante ideal seria o filósofo-rei. Ele deveria ser educado por um
processo que Platão explicitou em A República e que pode ser resumido
como segue: “os mais bem dotados dos guerreiros são escolhidos entre os
vinte e os trinta anos, e submetidos a uma particular educação científica.
Quem nela se distinguir é tomado e introduzido na terceira classe, a dos
“perfeitos guardiões”. E agora percebemos propriamente a alma do Estado
platônico. Pois esses perfeitos guardiões devem tornar-se perfeitos filósofos
para estabelecer o Estado platônico nos seus fundamentos de verdade e
idealidade. Passam logo a estudar, durante cinco anos, filosofia,
matemática, astronomia, belas-artes, sobretudo dialética filosófica, para se
capacitarem de todas as leis, verdades e valores do mundo. Passam depois,
durante quinze anos, em altos cargos políticos, para aprender a conhecer
praticamente o mundo e a vida. Aos cinquenta anos, esse círculo de
escolhidos se retira, vivendo então somente na contemplação do bem em si
e presta o superior serviço de expor as grandes ideias pelas quais o Estado
deve dirigir-se”.22
Paradoxalmente, o filósofo é o mais indicado a exercer o poder,
justamente por ser aquele a quem o poder não seduz. Ou seja: o poder só
pode ser bem manejado por quem não o aspire. O filósofo é o mais indicado
a assumir o poder, porque é o menos enamorado dele.23 Mesmo porque,
governar é servir. É colocar-se, devotadamente, a serviço dos demais.
A educação, para Platão, é a arte do desejo do bem.24 E a aprendizagem
é recordar-se daquilo que já se conhecia na transcendência e de que se
esqueceu ao nascer. É a recuperação de um conhecimento que permanece
adormecido mas que será recobrado pela reminiscência. Encontra-se em
Fédon esta passagem eloquente: “Se em verdade antes de nascer já
tínhamos tal conhecimento e o perdemos ao nascer e, depois, aplicando
nossos sentidos a esses objetos voltamos a adquirir o conhecimento que já
possuímos num tempo anterior: o que denominamos aprender será a
recuperação de um conhecimento muito nosso. A este processo dá-se o
nome de reminiscência”.25
Um processo educacional bem sucedido tornaria supérfluas as
instituições humanas destinadas a corrigir os homens e seus males. Quanto
mais educada a sociedade, menos cárceres ela teria. Mas também teria
menos hospitais. É o que se constata num trecho de A República: “E acaso
se arranjará prova maiordo vício e da educação vergonhosa numa cidade do
que serem necessários médicos e juízes eminentes, não só para as pessoas
de pouca monta e os artífices, mas também para os que se dão ares de terem
sido criados em grande estilo? Ou não julgas uma vergonha e um grande
sinal de falta de educação ser-se forçado a recorrer a uma justiça importada
de outrem, como se eles fossem amos e juízes, por falta de justiça
própria?”.26
A concepção platônica não é necessariamente elitista, ou o seu elitismo
é relativo. Ele mostra a tendência “a estender mais amplamente a
possibilidade de um tipo autônomo de felicidade, uma tendência que parece
salvá-lo, por assim dizer, das limitações de sua abordagem elitista na
República. Embora permaneça ainda verdadeiro que somente uns poucos
estejam talhados para ser filósofos profissionais, para os quais pode ser
preservada uma forma distintiva de felicidade, é agora possível para a
maioria das pessoas atingir a felicidade recebendo educação em disciplinas
cujo alvo é promover uma compreensão da coerência racional e um amor
por ela”.27
É suficiente atentar para o que acontece hoje em nossa sociedade, todos
os dias e ininterruptamente, para constatar a atualidade e a oportunidade dos
ensinamentos de Platão. “Talvez a maior contribuição de Platão para o
nosso tempo, que influenciou grandemente a história do Ocidente, seja
justamente esta: construir mais justiça, tentar em todas as partes impor a
harmonia sobre o caos, quer dizer, mudar o mal em bem, porque todo o
conhecimento e toda a educação são, efetivamente, bondade. E, caso isso
não seja possível, resta ainda para o educador platônico, representado na
figura do filósofo, o refúgio na solidão do ser, onde, com toda a dignidade,
segundo Sócrates, citado por Platão no Fédon, o filósofo aprenderá a arte
última, pois aprendeu, com a sophia, que a Filosofia, como possibilidade de
educação do homem, é a arte de aprender a morrer”.28
Se a Filosofia não repercutir para mudar a sociedade, ao menos
tranquilizará o filósofo, que não temerá o encontro definitivo e
incontornável com a sua morte.
A filosofia platônica é otimista. Embora reconheça que as condições
ideais para transformar o mundo estão longe de ser facilmente atingíveis, o
universo é apresentado “como um contexto para o florescimento humano,
contexto disponível a todos, mesmo na ausência de uma boa forma de
governo”.29 Conseguir a felicidade pessoal é um empenho dissociado de
preocupações políticas. A educação – o autodidatismo, principalmente – é
uma forma de compensação ante as más formas de governo. Todos os
humanos são cidadãos do universo, irrelevantes as distinções
convencionais, mas efetivamente importantes o diálogo e a reflexão
filosófica, alavancas para obter a felicidade humana possível.
2.1 Textos de Platão
O PRAZER HUMANO – “Como parece aparentemente desconcertante,
amigos, isso que os homens chamam de prazer! Que maravilhosa relação
existe entre a sua natureza e o que se julga ser o seu contrário, a dor! Tanto
um como a outra recusam ser simultâneos no homem; mas procure-se um
deles – tenhamos preso um deles – e estaremos sujeitos quase sempre a
encontrar também o outro, como se fossem uma só cabeça ligada a um
corpo duplo!”.30
FILOSOFAR É APRENDER A MORRER – “Receio, porém, que quando uma
pessoa se dedica à filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram
que sua única ocupação consiste em preparar-se para morrer e em estar
morto! Se isso é verdadeiro, bem estranho seria que, assim pensando,
durante toda sua vida, que não tendo presente ao espírito senão aquela
preocupação, quando a morte vem, venha a irritar-se com a presença
daquilo que até então tivera presente no pensamento e de que fizera sua
ocupação”.31
O ÓDIO: SENTIMENTO HUMANO – “O ódio aos homens, a misantropia,
penetra nos corações quando confiamos demais numa pessoa, sem nos
acautelarmos; quando acreditamos que uma pessoa é boa, sincera, honesta,
e vimos a descobrir mais tarde que tal não é, que pelo contrário é má,
desonesta e mentirosa; e se isso acontecer repetidas vezes a um mesmo
homem, e justamente a propósito daquelas pessoas a quem considerava
como seus melhores e mais sinceros amigos, esse passará finalmente a odiar
todos os homens, persuadido de que em ninguém há de encontrar a menor
qualidade boa”.32
A FILOSOFIA NÃO PODE SER OBJETO DE UM TRATADO – “De minha parte, ao
menos, não existe e não existirá certamente nenhuma obra sobre
semelhantes assuntos. Não existem meios, de fato, de colocá-las em
fórmulas, como se faz com outras ciências, mas é quando se tem durante
muito tempo enfrentado esses problemas, quando se viveu com eles, que a
verdade brota subitamente na alma, como a luz jorra da faísca, e em seguida
cresce por si mesma. Sem dúvida, sei bem que, se fosse necessário expô-la
por escrito ou de viva voz, sou eu quem melhor o faria; mas sei também
que, se a exposição fosse incorreta, sou eu quem sofreria mais do que
qualquer um. Se eu tivesse acreditado que se pudesse escrevê-las e
exprimilas para o povo de uma maneira satisfatória, que poderia eu realizar
de mais belo na minha vida do que manifestar uma doutrina tão salutar aos
homens e de lançar luz para todos sobre a verdadeira natureza das
coisas?”.33
3. Aristóteles (384-322 a.C.)
Dante chamava Aristóteles de “o Mestre dos que sabem. (…) Mestre,
porque foi o primeiro a aceitar uma clarificação das condições lógicas do
conhecimento, a sujeitar-se a uma revelação das exigências formais do
raciocínio, a submeter-se com humildade às leis da linguagem e da razão.
Explorador múltiplo, prudente, aberto, este espírito universal é todo o
contrário de um dogmático”.34 Natural de Estagira, cidade Macedônia de
população grega, filho de Nicômaco, médico do rei, Aristóteles recebeu
educação esmerada e aos dezessete anos foi viver em Atenas. Procurou a
Academia do sexagenário Platão e ali permaneceu até a morte do mestre, ou
seja, por vinte anos.
Após a morte de Platão, aceitou a missão confiada por Filipe da
Macedônia, de educar o príncipe herdeiro, Alexandre. Quando o pupilo
passou a reinar, rompeu com Aristóteles. A ingratidão não é datada. Sempre
existiu e sempre existirá. É própria à natureza humana. O preceptor ainda
acreditava na solução da polis – uma comunidade racional e autárquica – e
o ambicioso Alexandre sonhava com um império universal.
Aristóteles regressa a Atenas em 335 e funda o Liceu, escola situada
num pequeno bosque consagrado a Apolo Lício e às Musas. Dedica-se à
docência e à investigação.
Aristóteles era intelectualmente independente de Platão. O mestre nutria
um intransigente idealismo ético. O discípulo cultivava o realismo de
moderado meio termo e espírito analítico baseado sobre os fatos.
A vasta obra aristotélica centra-se na ética – Ética nicomaqueia ou Ética
de Nicômaco, Ética de Eudemo, Grande Ética ou Ética Maior – e em A
Política.
Em lugar de procurar o mundo inteligível para além do mundo sensível,
como Platão, Aristóteles procura a essência universal das coisas nas
próprias coisas. A realidade sensível é também inteligível e o entendimento
humano é capaz de descobrir a ideia oculta no objeto sensível, por meio da
abstração.
A plenitude da essência é o bem. Todo ser tende para esta plenitude.
Não se conforma o ser humano ao sentir-se ainda incompleto. Não descansa
enquanto não conseguir se completar. O homem tem consciência do que é o
bem, dispõe-se a alcançá-lo e estabelece uma hierarquia. Essa pauta de
valores imprimirá o ritmo de sua existência. Só que ao buscar a realização
de seus bens, alcança uma felicidade imperfeita e transitória. A felicidade
plena só conseguirá ao atingir o bem supremo. O bem supremo é a
finalidade última do ser humano. Consiste na felicidade.
Todavia, felicidade não é a relativa consecução de algumas finalidades
tópicas. Não guarda a menor similitude com o alcançar alguns bens da vida,
próprios à sociedade consumista, materialista e egoísta em que está imersa
grande parte da população terrestre neste início de séc. XXI.
Felicidade, para Aristóteles,é a contemplação da verdade e a adesão à
verdade.
O ser humano existe para a verdade. Toda espécie de falsidade ou
mentira aproxima a espécie dos escalões inferiores. Só o compromisso da
verdade tipifica o verdadeiro homem.
Como se alcança a felicidade – ou a verdade?
Mediante o caminho das virtudes. Virtudes são hábitos ou disposições
do homem graças às quais saberá realizar as obras que lhe são próprias.
Aristóteles construiu a teoria do justo meio, muita vez incompreendida
ou, pelo menos, não inteiramente compreendida. “A virtude consiste neste
meio que se relaciona conosco e que é regulado pela razão – meio entre
dois vícios, que pecam, um por excesso, outro por defeito. O vício consiste
em transgredir a medida, quer a respeito das nossas ações, quer a respeito
dos nossos sentimentos”.35 Costuma-se explicar a teoria do justo meio
como se a virtude fosse o justo meio, ou o equilíbrio, entre dois polos
antagônicos e oscilantes. Entre a preguiça e a hiperatividade, a virtude está
no meio termo. Entre a avareza e a prodigalidade, a virtude situa-se a meio
caminho. A crítica é que o meio também faz lembrar mediocridade. Por
isso, em lugar do “justo meio”, é mais conveniente falar-se em “equilíbrio”.
As virtudes aristotélicas são dianoéticas, ou intelectuais e éticas, ou
morais. Não constituem dons inatos, equivalentes ao patrimônio genético ou
talentos com os quais as pessoas nascem. Ao contrário, consistem as
virtudes em hábitos resultantes do esforço humano para submeter os seus
atos à razão e aos fins supremos da sua natureza. Assim, não se é virtuoso
por dom divino. É-se virtuoso porque se pratica a virtude como hábito.
Como o hábito é uma segunda natureza, quem pratica reiteradamente a
virtude torna-se virtuoso. Enquanto aquele que pratica maldades contínuas
converte-se em alguém mau, maldoso, perverso.
As virtudes dianoéticas ou intelectuais, por radicarem-se no
entendimento, são adquiridas pela via teorética, mediante o ensino. As
virtudes éticas ou morais têm raiz na vontade e é pelo exercício da vontade
que elas começam a existir. Basta querer e alguém será ético. É suficiente a
vontade para impedir que a pessoa cometa imoralidades. A chave da
perfectibilidade humana é domínio do próprio homem. Não depende de
concessão exterior.
Aristóteles reforça a ideia de livre arbítrio. Toda criatura normal tem
liberdade para ser virtuosa. E um lugar de realce dentre as virtudes éticas
ele destina à justiça.
Justiça, para Aristóteles, seria a síntese de todas as virtudes em relação
ao próximo. Por isso é que a justiça tem conotação com alteridade. Fala-se
em justiça apenas em relação a outrem. Não se concebe a virtude da justiça
para consigo mesmo.
Em sentido estrito, justiça é virtude ética particular aplicada em relação
a outrem e com a qual se realiza o princípio da igualdade, como
fundamento da coesão e harmonia na vida social.
Concebe-se a igualdade sob duas vertentes. Daí derivam duas espécies
de justiça: a distributiva e a corretiva ou sinalagmática, esta subdividida em
comutativa e judicial.
A justiça distributiva tem por objeto a repartição das honras e dos bens
entre a comunidade e reclama que cada qual receba a parcela
correspondente a seus méritos. A justiça distributiva contém uma nota de
desigualdade. Se os méritos se distinguem, distintos serão os prêmios. Por
isso é que a justiça distributiva é uma relação proporcional que Aristóteles
qualifica de proporção geométrica.
A justiça corretiva ou sinalagmática se baseia nas coisas e não nas
pessoas. Não se avaliam méritos, mas é avaliado o benefício ou prejuízo
que o sujeito pode experimentar. Concebem-se as pessoas como se fossem
iguais e consideram-se os atos no seu valor efetivo ou intrínseco. A
proporção aqui é aritmética.
A justiça distributiva ordena as relações entre a sociedade e seus
membros. A justiça corretiva ordena as relações entre as pessoas. Quando
nela intervém, como elemento principal, a vontade dos interessados, chama-
se comutativa. Quando se impõe contra a vontade de um deles, por decisão
do juiz, chama-se judicial.
Aristóteles elabora a ideia distintiva entre justo natural e justo legal. O
justo natural independe da vontade humana e é considerado justo
aprioristicamente, em todos os tempos, por todos os povos, em todos os
lugares. Já o justo legal resulta da convenção humana. Torna–se justo por
vontade da sociedade.
Completa o raciocínio aristotélico a ideia de equidade. A epieikeia
consiste na estratégia de adaptação da lei às necessidades do caso concreto.
A lei, produzida em caráter genérico e de forma abstrata, não contempla
todas as modalidades de ocorrência da hipótese a cuja disciplina ela se
preordena. Incumbe eliminar a tensão entre a generalidade abstrata e
artificial da lei e a singularidade concreta e real dos casos submetidos ao
juiz. A equidade flexibiliza e o rigor da lei atendem às exigências da justiça
natural.
Em A Política, Aristóteles parte da concepção natural da sociedade
humana. O homem é o zoon politikon, o animal político, social por
natureza, chamado a viver na polis por força de sua própria essência.
Muitas sociedades animais são sociais. Mas a sociedade humana é também
política. Viver na polis, em sociedade, é mais natural ao homem do que
qualquer outro tipo de associação.
A vida gregária permite ao homem desenvolver-se em plenitude,
realizar todas as suas potencialidades, atingir os limites inimagináveis. Todo
homem normal depende da polis para se realizar. Fora dela, só os infra-
homens – a patologia de quem não consegue conviver – ou os super-homens
– aqueles que constituem primícias da natureza e não precisam dos demais
semelhantes para atingir a plenitude possível. Seria o caso dos eremitas, dos
anacoretas, dos santos solitários.
O instinto natural do homem para a vida em sociedade parte da
constatação de que o filhote humano é o único animal a não sobreviver sem
o amparo materno. A família é o primeiro grupo, essencial à subsistência da
espécie. Em seguida, vêm as aldeias, e a polis é a máxima exteriorização da
vida em sociedade. Pois a polis é a única sociedade perfeita, provida de
autossuficiência, a autarkeia, e que se distingue – não apenas quantitativa,
mas qualitativamente – da aldeia e da família.
A polis é a comunidade perfeita. Comunidade de homens livres, aptos à
vivência autônoma e completa. Tal forma suprema de convivência humana
tem por princípio a justiça e por vínculo fundamental a amizade.
Existe uma conexão essencial entre as virtudes da justiça e da amizade.
A amizade é mais abrangente do que a justiça. Se os homens são realmente
amigos, não há necessidade de justiça. A amizade efetiva dispensa a justiça.
Já a justiça não pode dispensar a amizade. Não é porque existe justiça na
polis que os homens vão renunciar à amizade. Mesmo com justiça, continua
a existir a necessidade da amizade.
Notável a contribuição aristotélica para a teoria das formas de governo.
Há três formas puras – monarquia, aristocracia, democracia – e três impuras
– tirania, oligarquia, democracia radical, no sentido equivalente à
demagogia. A oligarquia é o governo da minoria rica – na realidade, uma
plutocracia. A demagogia, o governo da maioria pobre. A democracia, o
governo da classe média.
3.1 Textos de Aristóteles
A AMIZADE – Diz-se que aqueles que são perfeitamente felizes e se
bastam a si mesmos não têm nenhuma necessidade de amigos: eles já
possuem os bens da vida e, em consequência, bastando-se a si mesmos, não
têm necessidade de mais nada; ora, o amigo, que é um outro eu, tem o papel
de fornecer o que se é incapaz de encontrar com seus próprios meios. Daí o
adágio: “Quando a sorte nos é favorável, para que precisamos de
amigos?”.36
No entanto, parece estranho que, ao atribuir todos os bens ao homem
feliz, não se lhe atribuam amigos, cuja possessão é considerada, em geral,
como o maior dos bens exteriores. Ademais, se o que é próprio de um
amigo é antes fazer o bem do que receber, e o que é próprio do homem de
bem e da virtude de espalhar os benefícios,e se enfim é melhor fazer o bem
a amigos que a estranhos, o homem virtuoso terá necessidade de amigos
que receberão dele provas de sua beneficência. E é por esta razão que se
coloca ainda a questão de saber se a necessidade de amigos é sentida mais
na prosperidade ou na adversidade, considerando-se que, se o infeliz tem
necessidade de pessoas que lhe darão ajuda, os homens cuja sorte é feliz
têm necessidade de pessoas às quais se dirigirão seus benefícios. E, sem
dúvida, é estranho também fazer do homem perfeitamente feliz um
solitário: ninguém, de fato, escolheria possuir todos os bens desse mundo
para usufruir só, pois o homem é um ser político e naturalmente destinado a
viver em sociedade. Por conseguinte, mesmo o homem feliz possui essa
característica, pois ele possui vantagens que são boas por natureza. E é
evidentemente preferível passar seu tempo com amigos e homens de bem
que com estranhos ou companheiros ocasionais. É preciso então ao homem
feliz ter amigos.37
Os PRAZERES – Acerca dos prazeres peculiares, são muitos os que
erram, e de muitas maneiras. Dizemos que alguns têm uma predileção
obsessiva por algo ou porque se regozijam com o que não se deve, ou
porque se regozijam mais do que a maioria, ou então de uma maneira
diferente de como deve ser. Os devassos cometem excessos, segundo todas
estas categorias. E alguns, na verdade, regozijam-se com algumas coisas
com as quais, por serem abomináveis, é completamente errado regozijar-se.
E se é lícito tirar prazer de algumas delas, eles gozam mais do que é devido
ou, então mais do que a maioria.38
PRODIGALIDADE E AVAREZA – O esbanjamento e a avareza a respeito da
riqueza são respectivamente as disposições do excesso e do defeito.
Atribuímos a disposição da avareza àqueles que zelam sempre pela riqueza
mais do que devem; empregamos o termo “esbanjamento” por vezes numa
rede de acepções mais complexa. Dizemos que os que não têm autodomínio
e se consomem na devassidão são esbanjadores. É por isso que parecem ser
do tipo mais ordinário que há. São portadores de muitas perversões em
simultâneo. Não são, portanto, assim chamados de acordo com uma
disposição peculiar para o mal. Esbanjador quer dizer aquele que tem uma
perversão específica, o destruir suas posses. O que se destrói pelos seus
próprios meios é esbanjador, e parece ser a sua própria ruína, isto é, a
destruição das suas posses e meios, na medida em que estes são meios de
assegurar a subsistência. É neste sentido que entendemos o termo
“esbanjamento”.39
GENEROSIDADE – A generosidade é entendida de acordo com a posse de
cada um. O ato generoso não consiste no montante ou na quantidade das
doações, mas na disposição que constitui o caráter do doador. Ora, a
disposição constitutiva da generosidade faz dar de acordo com a posse.
Nada impede, portanto, que quem dá pouco seja mais generoso, caso dê do
pouco que tem para dar. Porém, parecem ser mais generosos não os que
adquiriram as suas posses, mas os que as herdaram, porque estes não sabem
o que é ter falta de alguma coisa, e todos têm uma grande afeição pelas suas
criações, como é o caso dos pais pelos filhos e dos poetas pelos seus
poemas. Por outro lado, não é fácil para o generoso enriquecer, uma vez que
não é dos que gostam muito de aceitar ou dos que são capazes de poupar. É
antes dos que estão prontos a gastar e não dão valor às riquezas só por si,
mas em vista do dar como tal. Por isso também se diz mal da sorte, porque
os mais valorosos são os menos ricos de todos.40
AMOR PRÓPRIO – Na verdade, nós criticamos as pessoas que se amam a
si próprias, dizendo delas depreciativamente que estão “apaixonadas por si
próprias”. Também parece que o vil faz tudo por paixão por si, e quanto
mais depravado for, tanto mais está apaixonado por si – há queixas contra
ele por não ser capaz de fazer nada que se desvie do seu interesse. Mas o
que é excelente age em vista da nobreza da ação e quanto melhor for a
pessoa, tanto mais age com esse objetivo em vista. Age em vista do si de
outro amigo, deixando o seu próprio si de lado.41
FELICIDADE – Sólon descreveu corretamente em que é que consistia ser
feliz ao dizer que tinham sido felizes aqueles que ele pensava que tinham
sido dotados de modo suficiente com bens exteriores, tinham realizado
feitos nobres e tinham levado uma vida com temperança. É possível, pois,
aos que têm posses moderadas fazer o que é devido. Também Anaxágoras
tinha para si que um humano feliz não possuía riqueza nem era poderoso,
dizendo que não era de espantar que o feliz parecesse absurdo aos olhos de
muitos. Porque estes ajuízam a partir do que é exterior, sendo isso a única
coisa que conseguem perceber.42
4. Santo Agostinho (354-430)
4.1 Vida e obra
Pai pagão, mãe cristã, Agostinho (13.11.354-28.08.430) participou das
duas tradições em luta. Natural de Tagaste, norte da África, estudou em
Cartago. Espírito inquieto, leu a Bíblia e não se encantou. Tornou-se
maniqueísta e partiu para Roma, onde o ceticismo o atraiu por um tempo.
Obteve uma cátedra em Milão e conheceu Santo Ambrósio, cuja pregação,
aliada à leitura de Plotino, o fez converter-se em 386. A partir daí,
consagrou sua vida e dotes intelectuais à defesa da sua fé contra o
paganismo e as heresias. Foi ordenado sacerdote e depois bispo de Hipona,
cidade em que morreu quando os vândalos a cercaram.
Descreve seu itinerário espiritual nas Confissões. Escreveu ainda
Retractationes, Contra Academicos, De Beata Vita, Solliloquia, De
Immortalitate animae, De quantitate animae, De Musica, De Magistro, De
vera religione, De Trinitate, De libero arbítrio, De Ordine e sua obra-prima
é De Civitate Dei (413-426). A obra se compõe de 22 livros, foi escrito
entre 413-426 e os 10 (dez) primeiros livros contêm uma apologia do
cristianismo contra as acusações dos gentios. O restante é um amplo tratado
de Teologia da História. Tem uma produção imensa e em parte nunca mais
localizada. Sabe-se que escreveu Contra Faustum Manichaeum,
Comentários aos Salmos, Comentários às Epístolas, Sermões e outros.
4.2 A lei eterna e a lei natural
Santo Agostinho integrou, ao Cristianismo, a teoria platônica das ideias.
Ideias eram modelos eternos das coisas na mente divina. A Lei eterna era a
	Parte III Filósofos – Breves reflexões
	1. Sócrates (?-399 a.C.)
	2. Platão (427-347 a.C.)
	2.1 Textos de Platão
	3. Aristóteles (384-322 a.C.)
	3.1 Textos de Aristóteles
	4. Santo Agostinho (354-430)
	4.1 Vida e obra
	4.2 A lei eterna e a lei natural
	4.3 As leis humanas
	4.5 Filosofia social
	4.9 A guerra Justa
	4.10 Propriedade
	4.11 Textos de Santo Agostinho
	5.1 Vida e obra
	5.2 Filosofia e Teologia
	5.4 O direito natural
	6.1 Vida e obra
	6.2 Um pouco de Kant
	6.3 Adentrar ao mundo de Kant
	6.4 Textos de Emmanuel Kant
	7.1 Vida e obra
	7.7 O direito para Hegel
	7.8 Textos de Hegel
	8.1 Vida e obra
	8.2 Atualidade de Kierkegaard
	8.3 Aceitar o sofrimento
	8.4 Textos de Kierkegaard
	9.1 Vida e obra
	9.2 Moral de Nietzsche
	9.3 Os estilos de Nietzsche
	9.4 O eterno retorno
	9.6 Textos de Nietzsche
	10.1 Vida e obra
	10.3 Textos de Max Weber
	11.1 Vida e obra
	11.4 Textos de Bergson
	12.1 O pensamento de Wittgenstein
	12.2 Textos de Wittgenstein
	13.1 Vida e obra
	13.2 Cumprir sua sina
	13.3 Textos de Hannah Arendt
	14.1 Vida e obra
	14.3 Textos de Derrida
	15.1 Vida e obra
	15.2 O estruturalismo

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