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1 ANTROPOLOGIA BRASILEIRA Profª. Dra. Vanessa Sander 2 ANTROPOLOGIA BRASILEIRA PROFª. DRA. VANESSA SANDER 3 Diretor Geral: Prof. Esp. Valdir Henrique Valério Diretor Executivo: Prof. Dr. William José Ferreira Ger. do Núcleo de Educação a Distância: Profa Esp. Cristiane Lelis dos Santos Coord. Pedag. da Equipe Multidisciplinar: Profa. Esp. Imperatriz da Penha Matos Revisão Gramatical e Ortográfica: Profª. Esp. Izabel Cristina Revisão técnica: Profª. Pollyanna Nicodemos Revisão/Diagramação/Estruturação: Clarice Virgilio Gomes Prof. Esp. Guilherme Prado Lorena Oliveira Silva Portugal Design: Bárbara Carla Amorim O. Silva Daniel Guadalupe Reis Élen Cristina Teixeira Oliveira Maria Eliza P. Campos Victor Lucas dos Reis Lopes © 2023, Faculdade Única. Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem Autoriza- ção escrita do Editor. Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Melina Lacerda Vaz CRB – 6/2920. 4 ANTROPOLOGIA BRASILEIRA 1° edição Ipatinga, MG Faculdade Única 2023 5 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais em 2012/2. Mestre pelo Progra- ma de Pós Graduação em Antropolo- gia Social da Unicamp (2015). Douto- ra em Ciências Sociais também pela Unicamp, vinculada ao Núcleo de Es- tudos de Gênero PAGU, com pesquisa sobre os circuitos de criminalização e encarceramento de travestis e tran- sexuais. Atualmente, atua como Pro- fessora Substituta na Universidade Federal de Lavras. e. VANESSA SANDER Para saber mais sobre a autora desta obra e suas qua- lificações, acesse seu Curriculo Lattes pelo link : http://lattes.cnpq.br/6968972660737701 Ou aponte uma câmera para o QRCODE ao lado. 6 LEGENDA DE Ícones Trata-se dos conceitos, definições e informações importantes nas quais você precisa ficar atento. Com o intuito de facilitar o seu estudo e uma melhor compreensão do conteúdo aplicado ao longo do livro didático, você irá encontrar ícones ao lado dos textos. Eles são para chamar a sua atenção para determinado trecho do conteúdo, cada um com uma função específica, mostradas a seguir: São opções de links de vídeos, artigos, sites ou livros da biblioteca virtual, relacionados ao conteúdo apresentado no livro. Espaço para reflexão sobre questões citadas em cada unidade, associando-os a suas ações. Atividades de multipla escolha para ajudar na fixação dos conteúdos abordados no livro. Apresentação dos significados de um determinado termo ou palavras mostradas no decorrer do livro. FIQUE ATENTO BUSQUE POR MAIS VAMOS PENSAR? FIXANDO O CONTEÚDO GLOSSÁRIO 7 UNIDADE 1 UNIDADE 2 UNIDADE 3 UNIDADE 4 SUMÁRIO 1.1 Introdução .............................................................................................................................................................................................................................................................................................10 1.2 Os Pioneiros ...........................................................................................................................................................................................................................................................................................11 1.3 Nina Rodrigues ...................................................................................................................................................................................................................................................................................13 FIXANDO O CONTEÚDO .........................................................................................................................................................................................................................................................................16 2.1 O Modernismo ...................................................................................................................................................................................................................................................................................20 2.2 Gilberto Freyre ...................................................................................................................................................................................................................................................................................21 2.3 Sérgio Buarque de Holanda ...................................................................................................................................................................................................................................................23 FIXANDO O CONTEÚDO ........................................................................................................................................................................................................................................................................26 3.1 Sociologia e Antropologia nas Universidades .............................................................................................................................................................................................................31 3.2 Estudos de Comunidade ..........................................................................................................................................................................................................................................................32 3.3 Anos 60: Os Programas de Pós-Graduação ..............................................................................................................................................................................................................33 FIXANDO O CONTEÚDO ........................................................................................................................................................................................................................................................................36 MITOS DE ORIGEM IDENTIDADE NACIONAL E PENSAMENTO SOCIAL A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANTROPOLOGIA ACADÊMICA 4.1 A Formação Da Etnologia .........................................................................................................................................................................................................................................................40 4.2 Curt Nimuendajú .............................................................................................................................................................................................................................................................................41 4.3 Darcy Ribeiro .....................................................................................................................................................................................................................................................................................43 FIXANDO O CONTEÚDO .......................................................................................................................................................................................................................................................................45 A QUESTÃO INDÍGENA 5.1 O Antropólogo nas Cidades .....................................................................................................................................................................................................................................................51um estilo sui generis de ciência social, no qual uma di- mensão de alteridade assumisse a dupla função de produzir uma antropologia no Brasil e do Brasil. Nesse sentido, enquanto a antropologia clássica, ou Europeia, constitui-se a partir de estudos realizados geralmente em lugares distantes da realidade do observador, a an- VAMOS PENSAR? 35 tropologia brasileira foi tradicionalmente feita dentro de suas fronteiras nacionais, uma an- tropologia doméstica, ou da “diferença próxima” (PEIRANO, 2000). No entanto, nem por isso diferenças e desigualdades deixaram de emergir nas relações de pesquisador e pesqui- sado. O que nos convoca a pensar: qual perfil social daqueles que geralmente pesquisam e daqueles que são estudados? Quais regimes de alteridade se formam nesse contexto e qual impacto disso na produção do conhecimento? 36 FIXANDO O CONTEÚDO 1. O que nomes como Roger Bastide, Emílio Willems, Claude Lévi-Strauss, Herbert Baldus e Donald Pierson representam para o pensamento social brasileiro? a) Esses nomes representam a preponderância da influência francesa sobre a intelectualidade brasileira. b) Esses nomes representam a institucionalização das Ciências Sociais a partir de nomes importantes da elite nacional. c) Esses nomes representam o desenvolvimento precoce das universidades brasileiras. d) Esses nomes representam a entrada de debates contemporâneos sobre sociologia e antropologia no pensamento social brasileiro. e) Esses nomes representam as disputas entre europeus e americanos nas discussões sobre raça nos países emergentes. 2. Leia o texto abaixo e assinale a alternativa correta sobre a obra de Antônio Cândido. a) A obra de Antônio Cândido representa uma área da antropologia conhecida como etnologia indígena. b) A obra de Antônio Cândido foi escrita a partir de um levantamento quantitativo survey em um pequeno município no interior de São Paulo. c) A obra de Antônio Cândido defende o desenvolvimento agrário e a concentração de terras como medida para o desenvolvimeto nacional. d) A obra de Antônio Cândido descreve os modos de vida de camponeses no interior de Minas Gerais. e) A obra de Antônio Cândido apresenta o cotidiano de agricultores da cidade de Bofete. 3. Qual autor desenvolveu o conceito de fricção interétnica? a) Antônio Cândido. b) Roberto Cardoso de Oliveira. c) Mariza Peirano. “O despertar é geralmente às 5 horas, seguido de pequena ablução, consistindo num pouco de água pelos olhos. Segue a primeira refeição e a ração de milho às criações. Parte-se então para o local de trabalho, raramente encostado à casa, quase sempre distante 200 a 1.000 metros (e mais). A faina encetada vai até o pôr do sol, resultando uma jornada de 12 horas no verão, de 10 horas no inverno, interrompida pela altura das 8h30 por meia hora, para almoço, e cerca de uma hora pelo meio-dia, para merenda e repouso. Chegado em casa, o trabalhador dá milho às criações, lava as mãos, o rosto, os pés e janta, das 19 horas em diante. Às 22 horas ninguém mais está desperto. e a maioria já se deitou pouco depois das 20 horas”. (Antônio Cândido – Parceiros do Rio Bonito, 1964) 37 A hibridez descreve a cultura de pessoas que mantêm suas conexões com a terra de seus antepassados, relacionando-se com a cultura do local que habitam. Eles não anseiam retornar à sua “pátria” ou recuperar qualquer identidade étnica “pura” ou absoluta; ainda assim, preservam traços de outras culturas, tradições e histórias e resistem à assimilação. CASHMORE, E. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro, 2000 (adaptado). d) Florestan Fernandes. e) Gilberto Freyre. 4. Assinale quais afirmativas abaixo estão corretas. I. O estudo das áreas de fricção interétnica no Brasil caracterizou-se por uma continuidade com a noção de aculturação. II. Para Roberto Cardoso de Oliviera, os indígenas que viviam nas cidades eram completamente assimilados pela cultura branca. III. Grupos de imigrantes inspiraram os primeiros estudos sobre aculturação na antropologia. a) Apenas as alternativas I e II estão corretas. b) Apenas a alternativa III está correta. c) As alternativas I, II e III estão corretas. d) Apenas as alternativas I e III estão corretas. e) Apenas a alternativa I está correta. 5. (ENEM - 2010). Contrapondo o fenômeno da hibridez à ideia de “pureza” cultural, observa-se que ele se manifesta quando: a) Criações originais deixam de existir entre os grupos de artistas, que passam a copiar as essências das obras uns dos outros. b) Civilizações se fecham a ponto de retomarem os seus próprios modelos culturais do passado, antes abandonados. c) Populações demonstram menosprezo por seu patrimônio artístico, apropriando-se de produtos culturais estrangeiros. d) Elementos culturais autênticos são descaracterizados e reintroduzidos com valores mais altos em seus lugares de origem. e) Intercâmbios entre diferentes povos e campos de produção cultural passam a gerar novos produtos e manifestações. 6. (ENEM - 2013). A recuperação da herança cultural africana deve levar em conta o que é próprio do processo cultural: seu movimento, pluralidade e complexidade. Não se trata, portanto, do resgate ingênuo do passado nem do seu cultivo nostálgico, mas de procurar perceber o próprio rosto cultural brasileiro. O que se quer é captar seu movimento para melhor compreendê-lo historicamente. 38 (MINAS GERAIS. Cadernos do Arquivo 1: Escravidão em Minas Gerais. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1988.) Com base no texto, a análise de manifestações culturais de origem africana, como a capoeira ou o candomblé, deve considerar que elas a) Permanecem como reprodução dos valores e costumes africanos. b) Perderam a relação com o seu passado histórico. c) Derivam da interação entre valores africanos e a experiência histórica brasileira. d) Contribuem para o distanciamento cultural entre negros e brancos no Brasil atual. e) Demonstram a maior complexidade cultural dos africanos em relação aos europeus. 7. (MUNDO EDUCAÇÃO – 2020 – Adaptado). Os movimentos extremistas que surgiram na Europa, no século XX, pautavam-se pelo ideal de pureza e superioridade cultural de um grupo étnico. Entre eles, o nazismo é o mais lembrado em virtude do enorme impacto das atrocidades associadas a ele. Se os planos do regime nazista fossem concretizados e o extermínio da população judaica fosse uma realidade, todo e qualquer traço da cultura judaica estaria também exterminado. A afirmação anterior está: a) Correta, já que nenhuma cultura permanece sem um povo para mantê-la. b) Correta, uma vez que o extermínio da população judaica estava ligado ao expurgo dos traços culturais que cultivavam. c) Errada, já que era impossível exterminar todos os judeus que existiam no território alemão. d) Errada, pois sempre existirão traços remanescentes de uma cultura embebida em outra em razão do processo de troca e assimilação cultural. e) Correta, pois a aculturação é um fenômeno que se realiza completamente quando articulado a contextos bélicos. 8. Porque a antropologia brasileira é adjetivada como uma antropologia doméstica? a) Por causa do seu interesse nas relações de parentesco e na vida familiar. b) Por causa do seu foco na vida doméstica através dos estudos de comunidade. c) Por causa das suas investigações produzidas majoritariamente dentro das fronteiras nacionais. d) Por causa da sua afinidade disciplinar com a psicologia e seu foco no indivíduo. e) Por conceber a casa como locus central de produção e reprodução da cultura. 39 A QUESTÃO INDÍGENA 40 Segundo Alan Oliveira (2018), desde o período colonial, diversas obras e documentos foram produzidos a respeito do Brasil e de seus habitantes originários. Os inúmeros relatos escritos por viajantes construíram vários estereótipos sobre a sociedade nacional, muitos deles ainda bastante significativos na forma como os outros países do mundo veem o Brasil e também sobre como os povos indígenas são vistos atualmente. Tais descriçõesdas múltiplas sociedades indígenas que já habitavam o Brasil são marcadas por um olhar etnocêntrico orientado pelos interesses econômicos e religiosos dos europeus. Apesar disso, esses documentos históricos servem como fontes para o estudo dos povos indígenas brasileiras nos primeiros séculos da colonização. A liberdade, o seminomadismo, a integração com a natureza, o conhecimento sobre as plantas e os caminhos da floresta, a alimentação baseada nos frutos da terra, na pesca e na caça, a arte da navegação dos rios, a inexistência de acumulação de riquezas ou de organização hierárquica rígida nos grupos, dentre outras características atribuídas aos povos indígenas, foram consideradas pelo juízo português como modo de vida selvagem, inferior e incivilizado (OLIVEIRA,2018). Seguindo uma tendência mundial, a partir do século XVIII e no decorrer do século XIX, o Brasil se tornou alvo de expedições de naturalistas, imbuídos de um olhar mais científico do que os exploradores coloniais. Esse novo olhar se caracterizava por uma ênfase em classificações botânicas, zoológicas, geológicas e raciais. Sua observação era pautada pela ideia de taxonomia – prática que, a partir da segunda metade do século XVIII, tornou-se central na própria ideia de ciência. Com o passar do tempo, a ênfase dos naturalistas nos aspectos naturais do Brasil (botânica, zoologia e geologia) ganhou destaque, fazendo com o que o estudo das sociedades ditas “primitivas” se tornassem um campo autônomo: a etnologia indígena. 4.1 A FORMAÇÃO DA ETNOLOGIA Figura 9: Indígenas Yanomami registrados pela fotógrafa Claudia Andujar Fonte: Disponível em: https://bit.ly/31k4Wtd. Acesso em: 15 set. 2021. O estudo voltado ao registro e à documentação de diferentes costumes de sociedades consideradas “exóticas” e “primitivas” recebeu o nome de etnologia (o prefixo grego etno significa “nação”, e o sufixo logia, “estudo”). Foi no final do século XVIII que essa palavra começou a ser usada na Europa com esse significado. O interesse pelas sociedades in- dígenas da América do Sul foi particularmente intenso na França, onde foi fundada, em 1896, a Sociedade de Americanistas, que engloba pesquisadores de diversas áreas, entre elas a antropologia. O desenvolvimento da antropologia como ciência, a partir da segun- FIQUE ATENTO 41 Segundo Peirano (2000), se o diálogo externo de constituição da antropologia como disciplina deu-se com a sociologia, internamente às suas fronteiras, esse diálogo é rebatido como uma eventual distinção entre a etnologia indígena feita no Brasil e as investigações antropológicas sobre o Brasil. De acordo com a autora, da metade do século XIX, deu-se, de certa forma, a par das sociedades indígenas no Bra- sil. Apesar de sua posição mítica na história das reflexões sobre as diferenças humanas, esses povos só foram estudados sistematicamente a partir da década de 1960, quando começaram a ser fontes de elaborações teóricas centrais na disciplina. Atualmente, es- tudos feitos entre sociedades indígenas no Brasil se tornaram a base de discussões im- portantíssimas no interior da antropologia (OLIVEIRA, 2018). Os primeiros estudos etnológicos sobre sociedades indígenas no Brasil foram desenvolvidos por pesquisadores alemães a partir do final do século XIX. Destacam-se as expedições realizadas por Karl von den Steinem (1855-1929) à bacia do Rio Xingu, entre 1884 e 1888, que resultaram em publicações importantes sobre os modos de vida de várias sociedades indígenas e um longo trabalho sobre a língua bakairi. Trabalhos como esse deram à etnologia alemã o lugar de principal campo de estudos das sociedades indígenas brasileiras na virada do século XIX para o XX. Esse desenvolvimento da etnologia durou até a década de 1930, quando foi interrompido pela ascensão do nazismo (OLIVEIRA, 2018). Um nome muito importante dessa geração de alemães que se dedicaram a estudar povos indígenas no Brasil foi Curt Nimuendajú (1883-1945), cuja trajetória abordaremos a seguir. Na última década, a presença de um mínimo de espe- cialistas nas diversas temáticas – indígena, campone- sa, urbana, afro-brasileira e outras – vem sendo consi- derada exigência para a definição de um departamento de excelência em antropologia no Brasil. Para além da pesquisa indígena propriamente dita, uma antropo- logia feita no/do Brasil é uma aspiração comum. Em qualquer caso, os padrões inicialmente definidos pela sociologia de Florestan Fernandes continuam vigentes na agenda das ciências sociais no país: a excelência acadêmica como parâmetro – aí incluída a ambição teórica – e, sob perspectivas diversas de comprometi- mento, a temática nacional. (2000, p. 224) 4.2 CURT NIMUENDAJÚ Figura 10: Curt Nimuendajú Fonte: Fundo Documental Curt Nimuendajú – Museu Nacional 42 Em 1903, o jovem operário alemão então chamado Kurt Unkel aportou no Brasil. O destino de sua viagem foi escolhido após se encantar com histórias sobre os indígenas brasileiros, que leu na biblioteca da fábrica onde trabalhava, em Jena (GOMES, 2008). Aos 20 anos de idade e sem formação acadêmica, o alemão deixou um próspero emprego na fábrica de lentes da Zeiss e rumou para o Brasil com dinheiro emprestado pela irmã. Pouco se sabe sobre o que o jovem fez nos dois primeiros anos de sua estadia no país, embora haja indícios de que tenha trabalhado em uma loja de ferragens de um alemão e participado de uma expedição ao sertão paulista. Em 1905, ele finalmente se juntou aos apapocuva, povo guarani do estado de São Paulo que hoje é conhecido por nhandeva. Já em sua primeira imersão, que durou dois anos, o pesquisador produziu uma obra cujo valor é reconhecido até os dias de hoje, A lenda da criação e destruição do mundo na religião dos apopokuva-guarani, publicada em 1915. Depois de passar por um ritual de batismo nessa comunidade, ele recebeu o nome indígena que adotou oficialmente, Nimuendajú, que significa "aquele que fez sua morada". Seu primeiro nome foi "abrasileirado" para Curt, e, em 1922, ele se naturalizou brasileiro, tendo abandonado o sobrenome original. De 1905 a 1945, Nimuendajú produziu vários estudos sobre aspectos de diferentes povos indígenas, como os Guarani, os Apinajé, os Xerente e os Tenetehara (Tembé). Esses estudos foram publicados em revistas alemãs e estadunidenses, atraindo a atenção de antropólogos norte-americanos, como Franz Boas e seu aluno Robert Lowie (OLIVEIRA,2018). Embora não tivesse formação específica em antropologia e atuasse de forma independente, sem vínculos formais com instituições científicas, a profundidade do contato que estabeleceu com as comunidades estudadas o transformou em referência para o ofício etnográfico e para o estudo dos povos indígenas no Brasil. Os esforços de Nimuendajú em documentar as línguas e os costumes indígenas o colocaram como um expoente da observação participante de Malinowski e do particularismo histórico de Boas. Seu uso do método da observação participante corresponde ao entendimento de que cada cultura é incomparável, ou seja, só é explicável em seus próprios termos, já que suas instituições e signos existem e funcionam em conjunto, como um sistema relacional. Por exemplo, a pajelança dos Guarani descrita e analisada por Nimuendajú, com seus rituais, sua liturgia e seus objetos, é única e incomparável, mesmo em relação à pajelança de outros povos indígenas com culturas semelhantes. Nesse sentido, a tarefa hercúlea dos antropólogos seria estudar as culturas dando conta de todas as suas dimensões, aspectos e setores: como uma totalidade integrada (GOMES, 2008). Na III Conferência Curt Nimuendajú, organizada em homenagem ao etnólogo alemão, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro debate sobre as cosmologias indígenas (principalmente as guarani estudadas pelo autor), trazendo a obra de Nimuendajú para um debate contemporâneo sobre as crises ambientais e os modelos de desenvolvimento praticados pelo Ocidente e sua relação com os povos indígenas. Disponívelno Youtube: https://bit.ly/3RXhpsM. Mais detalhes da trajetória do intelectual alemão estão disponíveis no livro “Antropologia: ciência do homem, filosofia da cultura”, de Mércio Pereira Gomes, disponível na Bibliote- ca Digital Pearson: https://bit.ly/3mRqQvC. Acesso em: 15 set. 2021. BUSQUE POR MAIS 43 Mesmo antes da consolidação da etnologia no Brasil, algumas figuras importantes se dedicaram ao estudo das populações indígenas no território nacional, como destaca Mercio Pereira Gomes (2008). Ainda durante o Império, o governador de Goiás e general do exército, Couto Magalhães, passou um longo período junto aos povos indígenas do Rio Araguaia e Tocantins. Ele descreveu seus costumes e propôs políticas de integração do índio à sociedade brasileira. Couto Magalhães levou ao pé da letra a ideia de “civilizar o índio”, sem a ajuda da catequização cristã, aos moldes da política indigenista imperial. Por sua vez, João Barbosa Rodrigues, que foi diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, pesquisou a situação dos indígenas Waimiri-Atroari do rio Jauperi, no Amazonas, e propôs que esses e outros índios fossem “pacificados” ao invés de serem atacados, como era comum na época. Mais tarde, o general Cândido Rondon colaborou com a criação do Serviço de Proteção aos índios, que atencedeu a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em 1967. O ideário e a base filosófica de Rondom, que é a de que os indígenas são livres para defender seus territórios, perduraram como princípio da política indigenista oficial brasileira (GOMES, 2008). A partir desse breve recorrido, vemos como historicamente a questão indígena ocupou o centro do interesse antropológico nacional, bem como das políticas de Estado brasileiras. E um intelectual que se destacou nessa interface política e acadêmica das temáticas indígenas foi Darcy Ribeiro (1922-1997). Grande parte dos antropólogos, até meados da década de 1970, pensava que o destino final e inexorável dos povos indígenas era sua extinção, por morte ou por alguma forma de assimilação. O próprio Darcy Ribeiro, na pesquisa que realizou para a Unesco duas décadas antes, previa o desaparecimento contínuo das populações indígenas brasileiras. Essa opinião era partilhada pela imprensa, por missionários e por antropólogos. Afinal, eram mais de 400 anos de extermínio, de conversão, escravidão, massacres, conflitos, expulsões, epidemias e assassinatos de populações indígenas (CHICARINO, 2014). Contudo os povos indígenas sobreviveram, perseveraram e possuem, com direito constitucionalmente conferido, 10% do território nacional. A organização e luta desses povos, junto a atuação em sua defesa, foi fundamental para a constituição desse cenário. 4.3 DARCY RIBEIRO Figura 11: Darcy Ribeiro Fonte: Disponível em: https://bit.ly/34j52CE. Acesso em: 15 set. 2021. 44 A intervenção de Darcy Ribeiro, diretamente envolvido na fundação do Parque Nacional do Xingú e na demarcação de uma quantidade considerável de terras indígenas, colaborou para a mudança daquele panorama pessimista de erradicação cultural. O autor desenvolveu na época o conceito de transfiguração étnica, que asseverava que, do contato intercultural, os povos envolvidos não se extinguem ou simplesmente se transformam um no outro nos moldes da aculturação: surge algo novo, de maneira que suas características se fundem e se refundem, gerando possibilidades de sobrevivência mesmo para os povos com menor poderio econômico, social e bélico (CHICARINO, 2014). Segundo Gomes (2001), o próprio Estatuto do Índio, desenvolvido pela FUNAI em 1973, foi baseado nas ideias de Darcy Ribeiro. A situação passou de um contingente de 90 a 98 mil índios brasileiros em 1955, para uma população estimada em quase 897 mil índios em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o órgão, atualmente, o Brasil conta com aproximadamente 250 povos indígenas em seu território. Ainda que no senso comum a Floresta Amazônica apareça como o espaço indígena principal, isso é inexato, pois embora a região seja um espaço central na territorialidade de muitos povos indígenas, estes estão presentes em todo território nacional, inclusive em espaços urbanos. Apesar das projeções mais otimistas do contingente populacional indígena brasileiro, por um misto de pressão de interesses econômicos e políticos poderosos, a questão indígena no Brasil tem envolvido, nos últimos anos, uma escalada crescente de tensões e conflitos, sobretudo no tocante à demarcação de terras indígenas (OLIVEIRA, 2018). Em um artigo intitulado “Etnismo e Civilização”, de 1970, Darcy Ribeiro afirma que o racismo americano seria segregacionista, enquanto o racismo brasileiro seria assimilacionista, isto é, que aceita o outro conquanto ele se “mantenha em seu lugar”. Essa suposta tendêndia assimilacionista da cultura brasileira não rejeita, em princípio, as diferenças, seja de negros ou indígenas, mas as admite e acolhe positivamente na medida em que elas tendam a ser incorporadas no sistema cultural e social hegemônico. Nesse sentido, a hipótese de Darcy Ribeiro se inspira na famosa máxima modernista de Oswald de Andrade, de que a cultura brasileira é antropofágica: engole tudo que vem e digere o que quer (GOMES, 2008). Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar se demarcações de terras in- dígenas devem seguir o chamado “Marco Temporal”. Segundo esse critério, povos indíge- nas só podem reivindicar a demarcação de terras que estavam ocupadas por eles antes da data de promulgação da Constituição de 1988. Levando em conta que Darcy Ribeiro de- fendia que a sobrevivência dos povos indígenas no Brasil está invariavelmente vinculada à demarcação de suas terras, o que ele diria sobre a tese do Marco Temporal? E pensando que os indígenas detêm, constitucionalmente, o chamado “direito originário” sobre suas terras ancestrais (o que quer dizer que eles são considerados por lei os primeiros e naturais donos desse território), quem seriam os possíveis beneficiários dessa mudança de marco jurídico? VAMOS PENSAR? 45 1. (FUNAI – 2016 – Adaptado). Em texto clássico da etnologia indígena, publicado em 1979, os antropólogos Anthony Seeger, Roberto da Matta e Eduardo Viveiros de Castro argumentam a necessidade de focalizar a construção da pessoa nas sociedades indígenas. Assinale a opção que indica corretamente por que enfatizaram a construção da pessoa nas sociedades indígenas, em consonância com as proposições de Curt Nimuendajú a) Representa um esforço por parte destes antropólogos de nacionalizar a etnologia indígena que se faz no Brasil. b) Representa um esforço por parte destes antropólogos de transformar a etnologia indígena no Brasil em uma disciplina que poderia ser entendida pelos povos indígenas. c) Representa um esforço por parte destes antropólogos de incorporar uma nova perspectiva para a etnologia indígena que ajudaria a compreender as semelhanças entre as sociedades na América do Sul, na África e na Melanésia ao revelar a natureza universalista do pensamento humano. d) Representa um esforço por parte destes antropólogos de desvencilhar a etnologia indígena no Brasil dos modelos antropológicos formulados em outros continentes como a África e a Melanésia e partir de noções usadas pelos próprios índios para entender suas sociedades. e) Representa um esforço por parte destes antropólogos de incorporar modelos antropológicos formulados em outros continentes, como a África e a Melanésia para a etnologia indígena das sociedades indígenas nas planícies baixas da América do Sul. 2. (ENEM -2010). Coube aos Xavante e aos Timbira, povos indígenas do Cerrado, um recente e marcante gesto simbólico: a realização de sua tradicional corrida de toras (de buriti) em plena Avenida Paulista (SP), para denunciar o cerco de suas terras e a degradação de seus entornos pelo avanço do agronegócio. (RICARDO, B.; RICARDO, F. Povos indígenas do Brasil: 2001- 2005. São Paulo: InstitutoSocioambiental, 2006 (adaptado). A questão indígena contemporânea no Brasil evidencia a relação dos usos socioculturais da terra com os atuais problemas socioambientais, caracterizados pelas tensões entre a) A expansão territorial do agronegócio, em especial nas regiões Centro-Oeste e Norte, e as leis de proteção indígena e ambiental. b) Os grileiros articuladores do agronegócio e os povos indígenas pouco organizados no Cerrado. c) As leis mais brandas sobre o uso tradicional do meio ambiente e as severas leis sobre o uso capitalista do meio ambiente. d) Os povos indígenas do Cerrado e os polos econômicos representados pelas elites industriais paulistas. FIXANDO O CONTEÚDO 46 e) O campo e a cidade no Cerrado, que faz com que as terras indígenas dali sejam alvo de invasões urbanas. 3. (UFU -2015 - Adaptado). A questão da demarcação de terras indígenas tem ao longo do tempo suscitado diversos conflitos. Mais recentemente, observou-se a possibilidade de modificar os critérios de demarcação, pois, conforme seus críticos, os regulamentos vigentes possibilitariam a ação de “indígenas civilizados”, ou seja, aqueles que supostamente teriam perdido sua identidade indígena e que agora a reivindicavam com o intuito de obter terras. No centro desse debate, encontra-se a definição do que é ser indígena, enfim, a definição dos critérios definidores de uma etnia. Para os estudos antropológicos atuais, define-se uma etnia por meio da a) Identificação da presença de traços fenotípicos comuns a uma população, atrelados ao cultivo de uma tradição cultural. b) Ocupação territorial de um país específico e pela persistência de traços culturais tradicionais. c) Identificação de uma concepção, partilhada por uma população, da existência de uma trajetória histórica comum que funda uma identidade. d) Identificação de traços raciais comuns a uma população, aliados a elementos culturais específicos. e) Ocupação tradicional de um território associada a presença de traços de determinados fenótipos raciais. 4. (UNICAMP - 2019 - Adaptado). O texto a seguir foi retirado de um cartaz da campanha promovida pela FUNAI, em 2017, para combater o preconceito contra os povos indígenas. Leia-o e responda à pergunta. Qual das ideias preconceituosas abaixo o texto procura combater? a) “Eu queria ser índio também... ele é visto como ‘coitadinho’ e ainda tem terra de graça!” b) “Não tem mais índios de verdade, essa é a grande questão... esses que estão aí são todos falsos!” c) “O Brasil precisa progredir... e os índios são um obstáculo ao desenvolvimento do país!” d) “Nada contra os índios, mas eles são muito preguiçosos, não gostam de trabalhar!” e) “Agora todo mundo quer ser índio, é só falar que é índio e pronto!” Não há desenvolvimento que se perpetue sem meio ambiente preservado. Os saberes ecológicos indígenas, desenvolvidos geração a geração, são tecnologias essenciais para a proteção das matas, dos animais silvestres, dos mananciais de água, do solo e do subsolo. O índio não atrapalha o desenvolvimento. Como guardião da biodiversidade, gera condições para que ele aconteça. A um só tempo, o índio torna possível a preservação e o desenvolvimento. (FUNAI, 2019: 1) 47 De acordo com o excerto, a gênese do povo brasileiro está associada a) Ao propósito de ocupação de novos territórios pelos portugueses e à implantação de um empreendimento de povoamento, voltado à construção de um mercado interno amplo e diversificado. b) À conquista de novos territórios pelos povos africanos, ameríndios e europeus e à implantação de um modelo de desenvolvimento econômico autônomo, voltado a atender às demandas do mercado externo. c) Ao ímpeto pela descoberta de novos territórios pelos povos ameríndios e africanos e à implantação de um modelo de desenvolvimento social e econômico de inspiração europeia, dirigido ao progresso técnico e econômiconacional. d) Ao projeto de colonização de novos territórios e de seus respectivos povos pelos portugueses e à implantação de um empreendimento mercantil, voltado a atender às demandas do mercado externo. e) Ao propósito de conquista de novos territórios pelos europeus e à implantação de um modelo de desenvolvimento econômico autônomo, voltado a atender às demandas do mercado local. 6. (UNESP - 2015). De acordo com Darcy Ribeiro, dois movimentos caminharam concomitantemente ao longo do processo de formação do povo brasileiro: a) A produção de uma unidade étnica nacional e a conformação de uma cultura nacional homogênea. Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos. Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo. Novo porque surge como uma etnia nacional, que se vê a si mesma e é vista como uma gente nova, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras. Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo, como um implante ultramarino da expansão europeia que não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população. Sua unidade étnica básica não significa, porém, nenhuma uniformidade, mesmo porque atuaram sobre ela forças diversificadoras: a ecológica, a econômica e a migração. Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos de ser dos brasileiros: os sertanejos, os caboclos, os crioulos, os caipiras e os gaúchos. Todos eles muito mais marcados pelo que têm de comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma ou outra parcela da população. (RIBEIRO, Darcy. 1995: 23) 5. (UNESP - 2001). 48 b) A produção de uma sociedade nacional multiétnica e a coexistência de culturas regionais em extinção. c) A produção de uma sociedade nacional multiétnica e a conformação de culturas regionais transplantadas de outros países. d) A produção de uma unidade étnica nacional e a conformação de diversidades socioculturais regionais. e) A produção de uma sociedade nacional multiétnica e a coexistência de culturas regionais fragmentadas. 7. (Brasil Escola - Adaptado). Sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil, assinale V para as proposições verdadeiras e F para as proposições falsas. ( ) A Constituição Federal define terras indígenas como qualquer área habitada pelos índios nas quais são realizadas suas atividades produtivas e há preservação de suas culturas e tradições. ( ) Áreas indígenas no Brasil são propriedades da Funai. ( ) As áreas indígenas são de livre acesso e, para adentrá-las, é preciso apenas notificar a Funai caso não seja um membro da comunidade. ( ) No Brasil, existem aproximadamente 544 terras indígenas, segundo a Funai, estando a maior parte na Amazônia Legal. Assinale a alternativa correta. a) F-V-F-V. b) F-V-F-F. c) V-F-F-V. d) V-V-F-F. e) V-V-V-F. 8. (UNICAMP - 2019 - Adaptado). (1) Invasão de propriedade Projetos de lei que tramitam no Congresso pretendem endurecer as regras contra as invasões de propriedades rurais no Brasil. Pelas propostas, as invasões vão ser classificadas como terrorismo, com pena de até 30 anos de prisão e uso imediato da força policial. (Disponível em: https://bit.ly/3pRpjHy. Acesso em: 15 set. 2021.) (2) 49 Considerando o que se afirma no texto (1), as perguntas feitas pela menina indígena no texto (2) revelam a) A sua surpresa com o fato de que o Congresso brasileiro vai, finalmente, se preocupar com as terras indígenas. b) A contradição demonstrada pelo Estado brasileiro no que se refere à questão da ocupação de terras. c) O interesse dos políticos brasileiros em zelar pelo direito de todos os cidadãos do país à propriedade.d) A sua esperança de que também os invasores de terras indígenas venham a ser considerados terroristas. e) O papel fundamental da FUNAI na demarcação de terras indígenas em todo o território nacional. 50 ANTROPOLOGIA URBANA 51 Durante muito tempo parecia haver uma espécie de fronteira mais ou menos clara entre a sociologia e a antropologia: a primeira estudava as sociedades modernas, consideradas complexas, enquanto a última analisava as sociedades ditas primitivas ou tradicionais. Essa divisão de domínios disciplinares, que se manteve pelo menos até a década de 1950, se sustentava teoricamente através de ausências, ou seja, através da contraposição das sociedades modernas com as sociedades tratadas como desprovidas de Estado, de história ou de estrutura complexa. Contudo, a percepção antropológica de que também havia complexidade nas sociedades tradicionais fez com que esse panorama se modificasse gradualmente, à medida que a antropologia começa a desenvolver estudos em sociedades consideradas avançadas tecnologicamente, como o Japão e a China. Desse modo, junto aos estudos de comunidades rurais, a antropologia foi aos poucos se detendo sobre aspectos da vida urbana (CHICARINO, 2014). 5.1 O ANTROPÓLOGO NAS CIDADES Figura 12 Fonte: Maestro Virtuale Mércio Pereira Gomes (2008) defende que o passo metodológico fundamental que abriu o mundo urbano para a antropologia foi a formulação de um método de pesquisa, de- senvolvido por antropólogos ingleses, que ficou conhecido como rede social. Analisando os modos de vida da classe trabalhadora inglesa, os pesquisadores compreenderam que as pessoas imersas em contextos urbanos se relacionam através de uma miríade de conexões com pessoas de todo tipo, principalmente na medida em que o papel da família e do parentesco perdem a relevância social nas grandes cidades. Nesse sentido, o tecido urbano é composto por uma série de relações que vão além do parentesco for- mal, e mesmo da vizinhança e do trabalho, formando redes de relações individuais que se entrecruzam umas com as outras, não constituindo nem um grupo nem uma variante cultural, porque existiam em função de uma ou poucas pessoas. Contudo, ainda assim essas pessoas davam sentido social e psicológico a esses vínculos, constituindo sociabi- lidades que iam além da sociedade de classe e mostravam continuidades com o mundo rural — questões que despertaram interesse antropológico. A partir de década de 1960, o olhar da antropologia voltou-se com força para as sociedades, comunidades e grupos mais próximos. Essa mudança deu-se, em grande medida, por causa do próprio desenvolvimento da antropologia em países considerados periféricos, como o Brasil, México e Índia. No Brasil, uma tradição forte de estudos antro- FIQUE ATENTO 52 No início do século XX, a sociologia já vinha desenvolvendo uma linha de estudos urbanos por meio da chamada “Escola de Chicago”. Um de seus mais conhecidos membros, Robert Park (1864-1944), foi um pioneiro dos estudos urbanos, a partir da cidade de Chicago, utilizando métodos etnográficos (CHICARINO, 2014). Park defende que a cidade não é simplesmente um amontoado de prédios e pessoas, mas um produto da natureza humana. Na sua perspectiva, cada parte da cidade deve ser analisada, de maneira a dar sentido para a ocupação do espaço. Assim, lugares que eram vistos como essencialmente geográficos, são vistos a partir de sua história e das tradições dos indivíduos que os habitam e frequentam. O autor sugere várias áreas e temas urbanos que merecem ser estudados, como o crescimento das populações, os fluxos migratórios, as áreas de segregação populacional (chamados de guetos) e a interferência do valor da terra, da raça e classe social na distribuição da população pelos espaços da cidade, etc. Percebe-se que a etnografia pensada como uma imersão profunda na alteridade, que se tornou a marca metodológica da antropologia, transcendeu as fronteiras da disciplina. Uma obra clássica desses estudos de grupos e culturas urbanas é Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada, do sociólogo norte-americano William FooteWhyte, publicada em 1943. Para estudar as formas de sociabilidade entre jovens imigrantes italianos em um bairro pobre de Boston, o autor viveu nessa área durante três anos, realizando uma pesquisa de campo intensiva. No Brasil, o pensamento social sobre a temática urbana também foi produzido em uma área de confluência entre antropologia e sociologia. Junto aos estudos de comunidade, os estudos de grupos urbanos se desenvolveram no país desde a década de 1940. A partir dos anos 1970, surgiu uma autoproclamada antropologia urbana no Brasil, que constituiu um dos campos mais profícuos da disciplina no país, fortemente influenciado pelos pensadores da Escola de Chicago. Um marco importante dos primeiros estudos de sociologia e de antropologia urbana no Brasil foi a presença de professores norte-americanos na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Nomes como Samuel Lowrie, Horace Davis e Donald Pierson introduziram a agenda teórica e metodológica desenvolvida pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago (OLIVEIRA, 2018). O próprio Robert Park esteve no Brasil em 1937 para supervisionar o trabalho de campo de Donald Pierson, seu aluno de PhD na Universidade de Chicago, que estudava 5.2 A INFLUÊNCIA DA ESCOLA DE CHICAGO pológicos realizados em centros urbanos se formou na década de 1970, de maneira que os antropólogos começaram a estudar as relações sociais em conjuntos residenciais de metrópoles; as diversas práticas religiosas existentes no meio urbano; as práticas e signos ligados ao mundo do trabalho e do lazer; o consumo; as favelas e periferias, en- tre outros temas. Assim, houve uma dissolução da divisão do trabalho intelectual entre antropologia e sociologia, com os antropólogos adentrando lugares até então estudados pelos sociólogos e vice-versa. Atualmente, a antropologia não faz distinção do tipo de sociedade ou de coletividade que estuda. Isso significa que os antropólogos continuam estudando rituais no interior da África ou da Oceania, mas também procuram compreen- der os processos de modernização que afetaram esses lugares e as transformações daí advindas (OLIVEIRA, 2018). 53 Sob o comando de Pierson, a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo congregou diversos trabalhos de pesquisa antropológica e sociológica sobre o meio urbano que dialogaram com outras áreas do conhecimento, como a arquitetura, o urbanismo, o sanitarismo e a administração pública. Destacam-se a análise das relações de vizinhança, de Emilio Wilems (1941), o estudo sobre subúrbios em Mogi das Cruzes, de Osvaldo Xidieh (1947), e o recenseamento por quarteirões, do próprio Pierson. Além disso, muitos pesquisadores se atentaram para a divisão do meio urbano em agrupamentos étnicos, visto que a cidade de São Paulo era marcada pela presença de inúmeros imigrantes, como japoneses e italianos (OLIVEIRA, 2018). Foi na década de 1970 que a antropologia urbana brasileira ganhou corpo, desenvolvendo pesquisas em duas universidades que se tornaram referência na área: a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade de São Paulo (USP). Na UFRJ, as investigações desenvolvidas por Gilberto Velho e seus orientandos foram fundamentais para estabelecer um campo de estudos que combinava os investimentos metodológicos da Escola de Chicago com o interacionismo simbólico de Erving Goffman. Em 1973, Velho publicou sua dissertação de mestrado intitulada A utopia urbana, em que desenvolve um trabalho sobre as camadas médias residentes no bairro de Copacabana, desde uma etnografia feita no próprio edifício em que vivia. Seu interesse estava em analisar o crescimento populacional do bairro, e dos problemas decorrentes dessa alta densidade, atentando para as representações e estilos de vida de seus 5.3 DESENVOLVIMENTOS POSTERIORESas relações entre brancos e negros na Bahia. A viagem de Park ao Brasil é apontada como um acontecimento que fez com que as Ciências Sociais euro-americanas descobrissem a Bahia e a transformassem em uma espécie de laboratório social. Em 1939, Pierson assumiu a direção da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP) e se dedicou a disseminar entre seus alunos na cidade de São Paulo os ensinamentos da Escola de Chicago, principalmente de Robert Park, sobre a observação participante em contextos urbanos (CHICARINO, 2014). Robert Park e a Escola de Chicago mostraram como a segregação é um aspecto funda- mental e persistente da vida nas cidades. Como você percebe a reprodução da segrega- ção nos centros urbanos? A antropóloga Teresa Caldeira (1997) analisa o processo de ur- banização da cidade de São Paulo e argumenta que, nas últimas décadas, a cidade viveu uma escalada da segregação urbana com a produção de enclaves fortificados. Enclaves fortificados são espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho. Esses espaços, típicos das classes médias e altas, encontram no medo da violência uma de suas principais justificativas. Assim, as cidades contemporâneas são frequentemente marcadas por muros altos e grades, porteiros e seguranças armados, múltiplas tecnologias de vigilância (cercas elétricas, alarmes, câmeras de vídeo, etc.) e, principalmente, por contrastes impressionantes de riqueza ostensiva e extrema pobreza, muitas vezes convivendo lado a lado. Esse novo padrão de segregação espacial fragmenta as cidades e modifica drasticamente a circulação dos cidadãos e o caráter que dão ao espaço público. VAMOS PENSAR? 54 moradores. Tendo como lócus privilegiado o prédio em que habitava, seu objetivo era, no entanto, captar através deste questões mais amplas do bairro de Copacabana, em posição relacional com a cidade. Em 1975, o autor defendeu sua tese de doutorado intitulada Nobres e Anjos, em que estudou o consumo de drogas de jovens da classe média carioca. Nesse trabalho, sua principal influência são as pesquisas sobre “comportamentos desviantes” empreendidas pelo sociólogo norte-americano Howard Becker. Segundo Velho (2011), os “grupos desviantes” da cidade tornaram-se objeto privilegiado de pesquisa porque, de certa forma, representavam um tipo de alteridade radical, um “outro” que contrastaria com a normalidade convencional de uma moralidade de classe média. Assim, as prostitutas, homossexuais e usuários de drogas tornaram-se uma possibilidade de pesquisa e reflexão, em busca das diferenças internas a uma sociedade. A grande cidade era vista, portanto, como produto e produtora de heterogeneidade. A partir de sua obra, Velho estabeleceu o campo de pesquisa em antropologia urbana no Rio de Janeiro e popularizou a expressão antropologia das sociedades complexas, que tinha a ver com a diversidade de temas estudados em interconexão, que tinham como pano de fundo a sociabilidade e as interações do meio urbano. Em um exame crítico de seu próprio trabalho, o autor afirma que Dentre os trabalhos orientados por Velho, destacam-se a pesquisa de Maria Dulce Gaspar sobre garotas de programa em Copacabana; a investigação de Luiz Fernando Dias Duarte sobre os afetos e emoções das classes trabalhadoras urbanas na cidade do Rio de Janeiro; as análises de Hermano Vianna sobre o mundo do funk carioca, entre outros (OLIVEIRA, 2018). As pesquisas que fiz ou supervisionei foram feitas pre- dominantemente em grandes cidades, principalmente no Rio de Janeiro, mas certamente lidavam com ques- tões e temas que se aproximavam do que estava sendo conhecido como Antropologia das sociedades comple- xas. Esta classificação sempre foi muito problemática, pois fazia parte do ideário antropológico da época rea- gir contra o evolucionismo tradicional, salientando que nenhuma sociedade poderia ser considerada simples, mas procurou-se entender que a ideia de complexida- de remetia a uma combinação de dimensão, presença do Estado, heterogeneidade sociocultural e diferencia- ção social marcante. (VELHO, 2011. p. 164) Figura 13: Jardim Do Museu Nacional Fonte: Associação Brasileira de Antropologia 55 Por sua vez, a produção da linha de pesquisa em antropologia urbana da USP surgiu nos anos 1970 a partir da atuação de Eunice Durham (1966) e Ruth Cardoso (1995). Na esteira dos estudos sobre aculturação, as duas pesquisadoras foram orientadas, respectivamente, para investigar os imigrantes italianos e japoneses, pensando sobre grupos étnicos e suas formas de vida na cidade, bem como seu êxodo do mundo rural para o espaço urbano. Para as autoras, a questão da imigração italiana e japonesa era um tema relevante para tratar a partir do valor de conhecimento antropológico e fundamental para se entender o processo da urbanização e da industrialização, já que fazia parte da consolidação de uma nova elite econômica e da formação de uma massa de trabalho urbana etnicamente diferenciada (DURHAM, 1966; CARDOSO, 1995). Na década de 1980, quem deu continuidade ao trabalho de Durham e Cardoso foi José Guilherme Magnani. Um dos trabalhos deste autor, Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade, de 1984, tornou-se uma referência importante ao colocar em relevo o tema do lazer, temática muitas vezes considerada menor por uma sociologia mais voltada ao universo do trabalho (OLIVEIRA, 2018). A partir de categorias como circuito, pedaço e mancha, Magnani mostra a importância de pensar espaços urbanos em continuidade analítica, mesmo que estejam distantes geograficamente. Para saber mais sobre a trajetória de Gilberto Velho, suas investigações e aná- lises sobre a influência da Escola de Chicago na antropologia brasileira, leia o artigo do autor intitulado “Antropologia Urbana: interdisciplinaridade e fronteiras do conhecimento”, disponível em: https://bit.ly/32UA96M. Acesso em: 15 set. 2021. As contribuições de Velho para a antropologia brasileira são exploradas no livro “Antropologia: questões, conceitos e histórias”, de Allan de Paula Oliveira, dispo- nível na Biblioteca Digital Pearson: https://bit.ly/3HCmPDj. Acesso em: 15 set. 2021. BUSQUE POR MAIS 56 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (CETAP - 2010). No começo do século XX, Robert Ezra Park inaugura os Estudos de Comunicação da Escola de Chicago. Entre as novidades trazidas pelos teóricos, podemos destacar a cidade como laboratório social e a ecologia humana. Analise as afirmativas seguintes e aponte a alternativa CORRETA. I. O terreno de estudo da Escola de Chicago é a cidade com seus signos de desorganização, de marginalidade, de aculturação e assimilação. II. A ecologia humana estuda as relações de existência entre a sociedade e o meio ambiente, incluindo-se aqui os animais e a flora. III. Para Park, é a “luta pelo espaço” que rege as relações interindividuais. Competição e divisão do trabalho resultam em cooperação não-planificada na sociedade. IV. Os estudiosos da escola se baseavam na pesquisa etnográfica, isto é, entender no nível macro as relações sociais. V. A escola de Chicago nasceu para entender os fenômenos de recepção da TV colorida. a) Somente as afirmativas I, II e IV estão corretas. b) Somente as afirmativas I, III e IV estão corretas. c) Somente as afirmativas III e IV estão corretas. d) Somente as afirmativas III, IV e V estão corretas. e) Somente as afirmativas I e III estão corretas. 2. (CESGRANRIO - 2011). O surgimento da Escola de Chicago está diretamente ligado ao processo de desenvolvimento da cidade de Chicago no início do século XX. Como consequência, a Escola de Chicago a) Inaugurou um novo campo de pesquisa sociológica, centrado nos fenômenos urbanos. b) Desconsiderou a importância do uso sistemático dos métodos empíricos em suas pesquisas. c) Levou à constituição da chamada sociologia indigenista como ramo de estudos especializados. d) Tinha como principais objetos de estudo as relações sociais, o marxismo e a produçãocultural. e) Propunha um conceito de sociedade formado por instâncias autônomas e interdependentes. 3. (FCC - 2018). A escola sociológica de Chicago produziu diversas reflexões teóricas e metodológicas acerca do desenvolvimento das cidades norte-americanas e dos agrupamentos humanos a elas correspondentes. Os estudos iniciais de ecologia humana, em particular, propuseram inovadoras explicações da estrutura urbana, que ficaram conhecidas por 57 a) Considerarem a estrutura espacial da cidade como resultante do planejamento e da atuação científica dos técnicos governamentais. b) Realizarem uma crítica ao caos urbano e aos problemas sociais encontrados nas cidades, a partir da concepção marxista das classes sociais. c) Demonstrarem, segundo a proposição do sociólogo Robert Ezra Park, a tendência de expansão radial da cidade a partir de seu centro, conforme as variações internas dos cinco setores delimitados por ele, o que ficou conhecido como “modelo das zonas adjacentes”. d) Identificarem na disposição espacial dos assentamentos urbanos a forma da acomodação da organização social em relação ao meio ambiente físico. e) Estabelecerem os marcos da gestão democrática do espaço urbano, compreendendo a cidade a partir dos direitos dos cidadãos. 4. (INSTITUTO - AOCP). A escola de Chicago é reconhecida na sociologia como uma importante precursora de estudos que envolvem problemas urbanos, como pesquisas sobre conflitos étnicos, raciais, criminalidade, delinquência juvenil etc. Esses estudos demonstram de que modo os graves problemas presentes nas cidades podem ser estudados a partir de pontos de vistas dos indivíduos que são socialmente apontados como os principais responsáveis. A respeito de metodologia de pesquisa e análise de dados, assinale a alternativa correta. a) A escola de Chicago demonstrava, em 1927, que os métodos de estatísticas (quantitativos) e os estudos de caso eram conflitivos e mutualmente não complementares. Além disso, a utilização dos dois métodos juntos poderia ser metodologicamente inconclusiva. b) As recomendações da escola de Chicago são de que os estudos de caso (qualitativo) não devem ser sugestionados por pesquisas quantitativas de mapeamento, haja vista que o próprio estudo de caso tem como característica o diagnóstico social que dá luz aos processos sociais. Em suma, nesses casos, os indicadores estatísticos não seriam adequados. c) Segundo Mirian Goldeberg, é necessário seguir estritamente regras estabelecidas para um estudo de caso, pois cada entrevista e/ou observação deve ser encarada como uma pesquisa científica que tem como objetivo produzir resultados precisos e generalizantes. d) Segundo a bibliografia especializada, um estudo de caso deve durar, no máximo, semanas, pois, caso esse tempo seja excedido, o pesquisador estará abrindo a possibilidade para uma grande variedade de problemas teóricos e descobertas inesperadas, o que pode invalidar seu objeto de estudo. e) Os dados coletados em uma pesquisa qualitativa podem ou não ser generalizados, uma vez que as pesquisas que buscam a compreensão sobre os fatos sociais encaram a representatividade dos dados a partir de um paradigma diferente do positivismo. 5. Leia o texto abaixo e assinale a alternativa correta a respeito do trabalho de Gilberto Velho sobre a influência da Escola de Chicago. 58 Como já tive oportunidade de comentar, sabe-se que a Escola de Chicago não apresentava uma unidade de doutrina, mas era constituída por uma rede de profissionais com tipos e graus diferentes de ligação com o interacionismo, o pragmatismo, a fenomenologia, a ecologia e mesmo o marxismo (ver Velho, 2005). O que os aproximava mais era o interesse pela pesquisa dos mais variados tipos, destacando-se o trabalho de campo e a observação participante. Desse modo, mesmo quando separadas formalmente em dois departamentos, as disciplinas antropologia e sociologia mantinham-se em permanente interação, confirmada com o desenvolvimento das carreiras de várias gerações. Os objetos de estudo, por sua vez, apresentaram enorme variedade, mas eram, sobretudo, selecionados no meio urbano, em grande parte na própria Chicago, que tornou-se o laboratório urbano, por excelência. Mas sua atuação estendeu-se, como já foi dito, por todos os Estados Unidos e para outros lugares do mundo. (Gilberto Velho, 2011: 3) a) Gilberto Velho foi um grande crítico da Escola de Chicago, principalmente de suas preferências metodológicas. b) A Escola de Chicago colaborou com uma separação disciplinar clara entre sociologia e antropologia nas Ciências Sociais brasileiras. c) Robert Park foi o supervisor do trabalho de Gilberto Velho e sua principal referência intelectual. d) Gilberto Velho combinou a metodologia da Escola de Chicago com o interacionismo simbólico. e) As proposições da antropologia urbana brasileira incorporaram vários princípios evolucionistas de autores como Herbert Spencer. 6. Complete as lacunas da frase abaixo: a) Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo / Ruth Cardoso / Eunice Durham b) Universidade de São Paulo / Ruth Cardoso / Eunice Durham c) Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Eunice Durham/ Ruth Cardoso d) Universidade de São Paulo / Eunice Durham/ Ruth Cardoso e) Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo/ Eunice Durham/ Ruth Cardoso 7. Assinale a alternativa correta a respeito da obra de Gilberto Velho. a) Seu livro “Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade” foi fundamental para trazer discussões sobre lazer na cidade. b) O autor era contrário à realização de pesquisas em pequenas unidades de análise, tais como bairros e vizinhanças. c) Uma de suas grandes influências foi o trabalho de Howard Becker sobre “grupos desviantes”. A antropologia urbana se consolidou na ¬¬¬¬____________ a partir de duas figuras: _________ e __________, que estudaram, respectivamente, a migração japonesa e italiana na cidade de São Paulo. 59 d) A maioria de seus orientandos não seguiu sua tradição de pesquisa em temáticas urbanas. e) Seu conceito de antropologia das sociedades complexas tinha a ver com questões quantitativas de densidade populacional. 8. (CESPE - 2010). Acerca das migrações e da perspectiva sociológica, assinale a opção correta. a) Os processos de aculturação na situação migratória não afetam a relação de dominação entre os homens e as mulheres. b) A migração constitui um estado, isto é, uma característica permanente em alguns dos grupos humanos. c) Os sociólogos da Escola de Chicago estudaram as migrações analisando diversos problemas, entre eles, os fenômenos de segregação e aculturação. d) A figura dominante do imigrado na França na década de 60 do século XX era a de um homem de meia idade, casado, integrante de mão de obra qualificada. e) A imigração hoje é concebida na Europa como processo de povoamento, vocação de estabelecer-se no país e não como migração de trabalho, de passagem. 60 ESTUDOS DE GÊNERO 61 6.1 FEMINISMOS E ACADEMIA Figura 14: Feminismos e Academia Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3FR05yR. Acesso em: 15 set. 2021. O Brasil contou com movimentos de mulheres organizadas em luta pelo sufrágio universal, direito à educação e abolição da escravidão pelo menos desde o século XIX. Contudo, foi nas décadas de 1960 e 1970 que o feminismo brasileiro eclodiu e movimentou uma vívida cena de debates. Esse cenário estava relacionado a mudanças efetivas na situação da mulher no Brasil a partir da década de 1960, propiciadas pela modernização que o país passava, pondo em questão hierarquias tradicionais de gênero. Ao mesmo tempo, esse processo desenrolou-se no contexto adverso das ditaduras latino-americanas, que reprimia vozes opositoras. O feminismo militante no Brasil, que começou a aparecer nas ruas, dando visibilidade à questão da mulher, surge, naquele momento, sobretudo, como consequência da resistência das mulheres a esse autoritarismo (SARTI, 2004). Nesse mesmo momento, observamos também a inserçãodos estudos feministas, ou estudos de mulheres, nas Ciências Sociais, mostrando como o discurso antropológico não é puramente acadêmico, mas permeado e reformulado por novas reflexões e debates públicos, que muitas vezes se originam fora de seus limites organizacionais. Ademais, o feminismo brasileiro contou, desde sua origem, com uma quantidade expressiva de mulheres acadêmicas (SARTI, 2004). Segundo Bila Sorj e Maria Luiza Heilborn (1999), algumas versões da história consideram que o feminismo brasileiro apareceu primeiro na academia e, só mais adiante, teria se disseminado entre mulheres com outras inserções sociais. As acadêmicas estavam numa posição privilegiada para receber, elaborar e divulgar as novas questões levantadas pelo feminismo já no final da década de sessenta no contexto euro-americano, já que estavam mais expostas a ideias que circulavam internacionalmente. Assim, quando o movimento de mulheres no Brasil adquire visibilidade, muitas das suas ativistas já estavam inseridas nas universidades. As abordagens feministas desenvolvidas internacionalmente após finais da década de 1960 compartilham algumas ideias centrais. Em termos políticos, consideram que as mulheres ocupam lugares sociais subordinados em relação aos mundos masculinos (PISCITELLI, 2002). A partir disso, diversas pesquisadoras – tais como Verena Stolcke, Zahidé 62 Machado, Lélia Gonzalez, Mariza Corrêa, entre outras – começaram a se perguntar se as diferenças e desigualdades entre homens e mulheres eram universais, se poderiam ser observadas em todo e qualquer contexto e como operavam no Brasil. Nesse sentido, a antropologia mostrou-se uma ferramenta importante para os estudos feministas, já que o trabalho etnográfico mostrava que havia maneiras muito diversas de conceber o masculino e o feminino em diferentes culturas (SARTI, 2004). No Brasil, os “Estudos sobre Mulher” foi a denominação mais comum dessa área de pesquisa até a década de 1980. Depois disso, o termo mulher (categoria empírica) foi gradativamente substituído pelo termo gênero (categoria analítica). Essa mudança favoreceu a rejeição do determinismo biológico implícito no uso dos termos sexo ou diferença sexual e enfatizou os aspectos relacionais e culturais da construção social do feminino e masculino (SORJ e HEILBORN, 1999). Assim, a designação Estudos de Gênero tornou-se a identificadora de uma determinada área de estudos, voltada para preencher as lacunas do conhecimento sobre a situação/opressão das mulheres na sociedade brasileira, bem como sobre as relações entre homens e mulheres, ou entre masculinidades e feminilidades. A seguir, apresentaremos a obra de duas antropólogas brasileiras que se destacaram nessa área do conhecimento: Lélia Gonzalez e Mariza Corrêa. Lélia Gonzalez foi, além de antropóloga, filósofa, professora e militante do movimento negro e feminista, constituindo-se como uma das mais importantes intelectuais brasileiras do século XX, com atuação incisiva na luta contra o racismo estrutural e na articulação das relações entre gênero e raça em nossa sociedade. Por isso, considera-se que ela foi uma precursora do conceito de interseccionalidade, muito importante para a análise social contemporânea. 6.2 LÉLIA GONZALEZ Figura 15: Feminismos e Academia Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3pPTK19. Acesso em: 15 set. 2021. O termo interseccionalidade foi cunhado pela afro-americana Kimberley Crenschaw em 2002. Tal conceito propicia a observação do entrelace e interlocução de distintos marca- dores sociais, como raça, gênero, classe, geração, sexualidade, etc. O pioneirismo de Lélia Gonzalez é apontado justamente porque a autora, já nas décadas de 1970 e 1980, propu- nha pensar raça, classe e gênero não como reinos distintos da experiência sobrepostos FIQUE ATENTO 63 Em seu ensaio intitulado “E a trabalhadora negra, cumé que fica?”, publicado originalmente em 1982 na Revista Mulherio, Gonzalez denuncia o tratamento dispensado às mulheres negras no mercado de trabalho. Com uma linguagem acessível e irônica, a autora mostra como os imbricamentos entre raça, classe e gênero proporcionam distintas experiências na busca por emprego, gerando desigualdades. Segundo Gonzalez: Lélia Gonzalez elaborou um diálogo profícuo com o pensamento social brasileiro: foi uma importante crítica do elogio da Mestiçagem de Gilberto Freyre e uma interlocutora da escola paulista de sociologia, analisando os trabalhos dos estudiosos que investiram no entendimento das relações raciais no Brasil, liderados por Florestan Fernandes. A autora também estabeleceu um rico diálogo com autores africanos, como Amilcar Cabral, bem como com intelectuais latino-americanos, caribenhos e estadunidenses pan-africanistas. Dessas trocas vieram reflexões importantes para Gonzalez desenvolver suas críticas ao colonialismo e pensar sobre formas de resistir a ele. Da Europa vieram três influências fundamentais para suas formulações: o feminismo (principalmente através da obra de Simone de Beauvoir), o marxismo (fundamental para pensar sobre classes sociais) e a psicanálise, sobretudo no que diz respeito ao aspecto cultural da dominação e da subversão, em particular por meio da linguagem (RIOS e LIMA, 2020). como peças de um lego, e tampouco idênticos ou redutíveis entre si, mas operando em uma espécie de imbricamento indissolúvel. Assim, esses elementos existem em relação entre si e através dessa relação, mesmo que de modos contraditórios e conflitivos. Aquele papo do “exige-se boa aparência”, dos anún- cios de empregos, a gente pode traduzir por: “negra não serve”. Secretária, recepcionista de grandes em- presas, balconista de butique elegante, comissária de bordo etc. e tal são profissões que exigem contato com o tal do público “exigente” (leia-se: racista). Afinal de contas, para a cabeça desse “público”, a trabalhadora negra tem que ficar “no seu lugar”: ocultada, invisível, “na cozinha”. Como considera que a negra é incapaz, inferior, não pode aceitar que ela exerça profissões “mais elevadas”, “mais dignas” (ou seja: profissões para as quais só as mulheres brancas são capazes. E esta- mos falando de profissões consideradas “femininas” por esse mesmo “público” (o que também revela seu machismo). (GONZALEZ, 2020: 218). 64 Para saber mais sobre a trajetória de pesquisa e militância de Lélia Gonzalez, es- cute o episódio 5 do Podcast Vidas Negras. Disponível em: https://spoti.fi/3HzU- RaW. Acesso em: 18 out. 2021. Ver também o livro “Lélia Gonzalez”, de Alex Ratts e Flávia Rios, que versa sobre a história de vida, produção intelectual e ativismo político da autora. Disponível na Biblioteca Virtual Pearson https://bit.ly/3JDdh- cH. Acesso em: 18 out. 2021. BUSQUE POR MAIS 6.3 MARIZA CORRÊA Mariza Corrêa foi professora do Departamento de Antropologia da Unicamp durante 30 anos e foi a primeira mulher a dirigir o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma Universidade. Também presidiu a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) entre os anos de 1996 e 1998 e deixou um importante legado à antropologia que se faz no Brasil. Atuou principalmente na área de estudos de gênero e foi fundadora e pesquisadora do PAGU/ Núcleo de Estudos de Gênero, referência no Brasil e no exterior. Sua obra mais importante, “Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais”, publicada em 1983, analisa os crimes de homicídio e tentativas de homicídio, ocorridos em Campinas nas décadas de 1950 e 1960. Tais crimes eram chamados de “crimes da paixão” ou “crimes passionais”, por envolverem a morte de um dos cônjuges de um casamento, na maioria das vezes as mulheres. Os julgamentos dos mesmos eram pautados por um arranjo particular da lógica jurídica e dos valores dominantes que definiam o papel de homens e mulheres na sociedade brasileira do período (PONTES, 2018). Elaborando uma concepção relacional do gênero, Corrêa (1983) argumenta que os processos de homens que mataram suasmulheres precisam ser justapostos com os processos de mulheres que mataram seus maridos. Esse exercício revela como gênero é codificado pela ordem jurídica: das mulheres o atributo mais exigido era a fidelidade, de maneira que os homens poderiam punir seu descumprimento. Contudo, para exigir esse direito, eles deveriam se adequar à figura de provedor do lar. Quando eram considerados “bons maridos”, constatava-se que haviam matado suas esposas pela defesa da honra. A tese da legítima defesa da honra era uma fundamentação jurídica que justificava ser aceitável o comportamento do réu de assassinar ou agredir sua parceira caso ela fosse adúltera, pois o adultério teria ferido sua honra. Portanto, essa argumentação era uma forma de o agressor atribuir a motivação de seu ato criminoso ao comportamento da vítima, culpando-a pelo que ele mesmo cometeu, imputando à mulher a causa de sua própria morte ou de seus ferimentos. Em contrapartida, a autora aponta que os casos em que a legítima defesa era usada no caso das mulheres acusadas de matarem seus companheiros, tinha a ver com a resposta a um ciclo de violências iniciado pelo cônjuge, em que a reação delas era apontada como uma resposta possível para lutar pela sobrevivência. 65 Figura 16: Mariza Corrêa Fonte: Cadernos Pagu Em um levantamento de 2020, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) destacou que os casos de feminicídio cresceram 22,2%, entre março e abril deste ano, em 12 estados do Brasil, comparativamente ao ano passado. A pesquisa aponta que, com a pandemia de Covid-19, aprofundaram-se as situações de convivência mais próxima com os agressores, de maneira que as mulheres ficaram mais facilmente impedidas de irem a uma delegacia ou outros lugares que prestam socorro às vítimas. Quais medidas e políticas públicas po- deriam ser desenvolvidas para combater o feminicídio e a violência doméstica? VAMOS PENSAR? 66 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (IDECAN – 2016 - Adaptado). De acordo com a afirmativa anterior, pensar em “diversidade” neste contexto significa: a) Implica em pensar em um único lugar para a mulher no mundo, esquecendo que apesar da diversidade, as experiências femininas têm algo em comum, ou seja, são construídas e significadas socialmente em relação ao sexo oposto. b) Implica em questionar que a mulher é sempre pensada em relação a um outro, que é o tipo humano absoluto, ou seja, o masculino. A mulher não se vê, portanto, como sujeito de si. O modelo patriarcal impõe a ela a condição de objeto. c) Implica em refletir que o sexo diz respeito às características fisiológicas e de reprodução. Essa diversidade é uma forma simbolizada de identificar, agrupar e compreender o conjunto normativo de ações e papéis atribuídos aos homens e às mulheres em uma dada sociedade. d) Implica questionar o que é ser mulher ocidental ou oriental, pobre e asiática, pobre e brasileira, rica e americana, deficiente e negra etc. Ficando claro que a situação econômica, geográfica, o contexto sócio-histórico, político e cultural, a raça, a etnia, a afiliação religiosa e a idade são dimensões fundamentais para compreender o ser mulher. e) Implica a defesa de que a opressão feminina é universal e inata, repetindo-se em diversos contextos históricos e geográficos. 2. (SEJUDH - 2017). O tema da violência contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros, grupo conhecido como LGBTs, ainda é relativamente novo, tanto no mundo acadêmico, quanto na esfera das políticas públicas no Brasil. O conceito de Gênero baliza discussões acerca dos direitos humanos para a população LGBT e pode ser entendido como: a) Imagem fixa e preconcebida acerca do sexo de alguém cujo fundamento são crenças e preconceitos. b) A atração que um indivíduo sente por outro indivíduo, sendo heterossexual aquele que orienta seu desejo para pessoas do sexo oposto ou homossexual para pessoas do mesmo sexo. c) Situado no plano biológico, na diferenciação cromossômica entre indivíduos, sendo a “O termo ‘condição feminina’ remete-nos à indagação: o que é ser mulher e que implicações decorrem desse fato. O que se pretende problematizar quando falamos de condição feminina é a complexidade do ser mulher em diversos contextos sócio-históricos, em distintas culturas, em que a apropriação de diferentes significados identitários e de papéis sociais parece invalidar a existência de uma única vivência feminina.” (Almeida, 2006: 215) 67 junção dos cromossomos sexuais “x” e “y” resulta em um indivíduo do gênero masculino e a constituição genética “xx" em um indivíduo do gênero feminino. d) Percepção do indivíduo sobre seu sexo. e) Relações estabelecidas a partir da percepção social das diferenças biológicas entre os sexos. 3. (IDECAN – 2016 - Adaptado). No que se refere à variável gênero nos estudos antropológicos, marque V para as afirmativas verdadeiras e F para as falsas. ( ) O foco em atitudes facilita a determinação da subordinação gênero, posto que quando expressas são relativamente estáveis, embora também sejam sensíveis às mudanças no clima político. ( ) As variações de gênero através da cultura podem ser tais que no gênero adulto há variantes em que a preferência cultural pode criar outros papéis ou as pessoas podem transicionar entre gêneros. ( ) A subordinação de gênero é evidenciada quando as mulheres são destituídas e/ ou não possuem acesso ao controle de instituições determinantes das políticas que afetam as mulheres, tais como os direitos reprodutivos ou a paridade nas práticas de emprego. ( ) O foco do estudo da subordinação de gênero deve ser, principalmente nas relações políticas e econômicas e não na atitude, levando em consideração seu caráter simbólico e de expressão em relações de complementariedade, mesmo que na antropologia isso não seja comum, visto que as teorias centralizam seus estudos no indivíduo. a) F-V-V-V. b) V-F-V-F. c) F-V-F-V. d) V-V-V-F. e) F-V-V-F. 4. (VUNESP- 2019). No contexto atual, o termo gênero é usado em contraste com os termos sexo e diferença sexual com o objetivo de criar um espaço no qual as diferenças de comportamento entre homens e mulheres, mediadas socialmente, possam ser: a) Exploradas independentemente das diferenças biológicas. b) Eliminadas, para o surgimento de um padrão único de conduta. c) Desvinculadas das ordens social, econômica e política estabelecidas. d) Atribuídas às características determinadas pela bagagem genética. e) Entendidas como uma inabilidade para o desempenho dos papéis sociais. 5. (Udesc - 2019). Vários foram os movimentos sociais que ganharam força e visibilidade a partir dos anos 60. O movimento feminista é, reconhecidamente, um deles. As questões de gênero, bastante debatidas nos dias atuais, advêm das pautas e das reivindicações deste movimento. A respeito das questões de gênero e com base nas informações acima, assinale a alternativa correta. 68 a) As discussões sobre gênero visam instaurar uma supremacia do feminino sobre o masculino. b) As relações de gênero são fundamentadas, exclusivamente, na biologia e podem ser compreendidas como sinônimo de “sexo”. c) As chamadas relações de gênero são constituídas por elementos de ordem política, econômica e social. d) As questões de gênero desconsideram os aspectos históricos, que fundamentam uma sociedade. e) As questões de gênero não possuem relação com os movimentos feministas. 6. (UEL - 2016). Leia o texto a seguir. Em sua obra, Virginia Woolf (1997) reflete sobre a condição social das mulheres. Tal condição foi historicamente abordada com base no pensamento binário, a exemplo da díade masculino-feminino, também presente na oposição entre ordem e caos, o que pode ser encontrado em diferentes culturas e no pensamento científico. O binarismo, no entanto, é uma forma de racionalização da vida social criticada por diferentes correntes teóricas. Com base no texto e nos conhecimentos sobre as críticas ao pensamento binário aplicado às explicações das relaçõessociais de gênero, considere as afirmativas a seguir. I. Nesse trecho, Virginia Woolf invoca o paradigma do construtivismo social e entende que os posicionamentos sociais das mulheres e dos homens são fruto de forças sociais que tendem a transcender as vontades individuais e a gerar opressões. II. Para Virginia Woolf, as separações entre o mundo dos homens e o mundo das mulheres são intransponíveis, havendo correspondência real entre as representações sociais e as práticas dos sujeitos empreendidas na experiência concreta. III. As evidências de que diferentes sociedades atribuem posição de domínio ao masculino fornecem a comprovação de que os valores culturais são determinados pelas diferenças biológicas entre os sexos, o que se expressa em uma cultura universal. Inevitavelmente, nós consideramos a sociedade um lugar de conspiração, que engole o irmão que muitas de nós temos razões de respeitar na vida privada, e impõe em seu lugar um macho monstruoso, de voz tonitruante, de pulso rude, que, de forma pueril, inscreve no chão signos em giz, místicas linhas de demarcação, entre as quais os seres humanos ficam fixados, rígidos, separados, artificiais. Lugares em que, ornado de ouro ou de púrpura, enfeitado de plumas como um selvagem, ele realiza seus ritos místicos e usufrui dos prazeres suspeitos do poder e da dominação, enquanto nós, “suas” mulheres, nos vemos fechadas na casa da família, sem que nos seja dado participar de nenhuma das numerosas sociedades de que se compõe a sociedade. (WOOLF, V. Trois Guinées. Paris: Éditions des Femmes, 1997. p.200. apud Bourdieu, P. A Dominação Masculina. 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p.4.) 69 Lélia Gonzalez pode ser considerada uma importante crítica da ideia de democracia racial subjacente a obra de ____________. O marxismo, a _________ de Jaques Lacan e o feminismo de ___________ foram influências fundamentais para a construção de seu pensamento. Lélia Gonzalez (1935–1994) teve um papel pioneiro na criação de uma teoria do feminismo negro brasileiro. O momento mais intenso de sua militância ocorreu durante a Ditadura Militar (1964–1985), que coibiu a organização política da sociedade civil. A Lei de Segurança Nacional, de setembro de 1967, estabelecia que era crime “incitar publicamente ao ódio ou à discriminação racial”. O que, na verdade, poderia ser usado contra o movimento negro, uma vez que denunciar o racismo e expor o mito da democracia racial poderia ser considerado uma ameaça à ordem social, um estímulo ao antagonismo e uma incitação ao preconceito. (BARRETO, Raquel. Memória – Lélia Gonzalez. Revista Cult 247. São Paulo, julho, 2019.) IV. Pelos exemplos históricos conhecidos, os esquemas binários de representação do masculino e do feminino produzem hierarquias entre esses dois termos, de modo a reservar um status superior aos atributos classificados como masculinos. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afirmativas I e II são corretas. b) Somente as afirmativas I e IV são corretas. c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. 7. Complete as lacunas da frase abaixo sobre a obra de Lélia Gonzalez: a) Gilberto Freyre/ psicanálise/ Simone de Beauvoir b) Florestan Fernandes/ psicanálise/ Karl Marx c) Gilberto Freyre/ análise estrutural/ Amilcar Cabral d) Amilcar Cabral/ psicanálise/ Simone de Beauvoir e) Florestan Fernandes/ análise estrutural/ Simone de Beauvoir 8. (UNICAMP - 2021 - Adaptado). A partir do excerto sobre Lélia Gonzalez e seu contexto histórico, assinale a alternativa correta. a) A Ditadura Militar perseguiu o feminismo negro no Brasil por ele pregar a supremacia das mulheres negras. b) A Ditadura Militar criou mecanismos para recolher denúncias contra a discriminação e combater o racismo estrutural no país. c) A Lei de Segurança Nacional criou instrumentos jurídicos que possibilitavam a 70 criminalização de denúncias contra o racismo. d) A Lei de Segurança Nacional possibilitou a harmonia das relações étnico-raciais e a igualdade de gênero no Brasil. e) A atuação das feministas negras foi estritamente acadêmica, pensando a articulação entre gênero e raça na teoria social. 71 RESPOSTAS DO FIXANDO O CONTEÚDO UNIDADE 1 UNIDADE 3 UNIDADE 5 UNIDADE 2 UNIDADE 4 UNIDADE 6 QUESTÃO 1 D QUESTÃO 2 A QUESTÃO 3 A QUESTÃO 4 B QUESTÃO 5 E QUESTÃO 6 A QUESTÃO 7 B QUESTÃO 8 E QUESTÃO 1 E QUESTÃO 2 D QUESTÃO 3 C QUESTÃO 4 E QUESTÃO 5 E QUESTÃO 6 D QUESTÃO 7 A QUESTÃO 8 E QUESTÃO 1 D QUESTÃO 2 E QUESTÃO 3 B QUESTÃO 4 B QUESTÃO 5 E QUESTÃO 6 C QUESTÃO 7 D QUESTÃO 8 C QUESTÃO 1 D QUESTÃO 2 A QUESTÃO 3 C QUESTÃO 4 C QUESTÃO 5 D QUESTÃO 6 D QUESTÃO 7 C QUESTÃO 8 B QUESTÃO 1 E QUESTÃO 2 A QUESTÃO 3 D QUESTÃO 4 E QUESTÃO 5 D QUESTÃO 6 B QUESTÃO 7 C QUESTÃO 8 C QUESTÃO 1 D QUESTÃO 2 E QUESTÃO 3 E QUESTÃO 4 A QUESTÃO 5 C QUESTÃO 6 B QUESTÃO 7 A QUESTÃO 8 C 72 BARROS, G. da S. 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Recriando5.2 A Influência da Escola de Chicago ...................................................................................................................................................................................................................................52 5.3 Desenvolvimentos Posteriores .............................................................................................................................................................................................................................................53 FIXANDO O CONTEÚDO .......................................................................................................................................................................................................................................................................56 HOMOMORFISMOS DE ANÉIS UNIDADE 5 6.1 Feminismos e Academia ............................................................................................................................................................................................................................................................61 6.2 Lélia Gonzalez ...................................................................................................................................................................................................................................................................................62 6.3 Mariza Corrêa ..................................................................................................................................................................................................................................................................................64 FIXANDO O CONTEÚDO.........................................................................................................................................................................................................................................................................66 RESPOSTAS DO FIXANDO O CONTEÚDO.......................................................................................................................................................................................................................................71 REFERÊNCIAS ...............................................................................................................................................................................................................................................................................................72 ESTUDOS DE GÊNERO UNIDADE 6 8 UNIDADE 1 A Unidade I explora as condições de possibilidade do surgimento da antropologia brasileira: a preocupação a respeito da miscigenação decorrente do processo de colonização e ocupação do país, e os intelectuais de diferentes nacionalidades e filiações disciplinares que foram pioneiros ao estudar esse cenário. UNIDADE 2 A Unidade II apresenta um movimento intelectual que foi fundamental para refletir sobre a identidade nacional do Brasil, o modernismo, e também as contribuições de dois intelectuais que foram importantes para pensar as especificidades e diferenças nacionais: Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. UNIDADE 3 A Unidade III analisa a consolidação da antropologia enquanto campo disciplinar autônomo, ainda que em relação íntima com a sociologia. Apresentamos, ainda, o contexto de criação dos primeiros programas de pós-graduação na área e a constituição de uma vertente de pesquisa conhecida como Estudos de Comunidade. UNIDADE 4 A Unidade IV aprofunda a discussão sobre a importância da questão indígena para a antropologia brasileira, trazendo os primeiros estudos etnológicos sobre sociedades indígenas no país, além de apresentar a trajetória de dois importantes intelectuais que se dedicaram a essa temática: Curt Nimuendajú e Darcy Ribeiro. UNIDADE 5 A Unidade V apresenta uma importante subárea da antropologia brasileira: a antropologia urbana. A partir de uma discussão sobre a influência dos estudos urbanos da Escola de Chicago, exploramos os principais desenvolvimentos antropológicos realizados nas cidades do Brasil. UNIDADE 6 A Unidade VI explora as relações entre feminismos e academia na constituição de um importante campo de estudos antropológico: os Estudos de Gênero. Dentro desse tema, apresentamos as principais contribuições de duas autoras fundamentais, Lélia Gonzalez e Marisa Corrêa. C O NF IR A NO LI VR O 9 MITOS DE ORIGEM 10 1.1 INTRODUÇÃO No Brasil, foi apenas nas décadas de 1960 e 1970 que a antropologia se constituiu enquanto um campo relativamente independente das Ciências Sociais, e não mais como um ramo da sociologia dominante dos anos 1940 e 1950. Contudo, mesmo antes disso, a disciplina já se gestava sob a influência de intelectuais de diferentes formações, nacionalidades e filiações institucionais. Essa diversidade torna difícil definir a gênese da antropologia brasileira, por isso a origem formal da disciplina ganhou múltiplos marcos, histórias e narrativas. Assim, tal qual um mito, a história da antropologia no/do Brasil ganhou várias versões (LARAIA, 2014). Há quem atribua esse nascimento à Semana de Arte Moderna de 1922, onde o escritor Mario de Andrade consagrou sua obra literária e também suas pesquisas de campo, intituladas “aprendizado de turista”, que foram pioneiras ao apontar a Amazônia como centro de interesses culturais e políticos (OLIVEIRA, 2018). Há quem marque as origens disciplinares antes ainda: em 1835, com a descoberta do material ósseo de Lagoa Santa pelo paleontólogo Peter W. Lund. Na ocasião, o cientista dinamarquês descobriu mais de 12 mil peças fósseis em cavernas no interior de Minas Gerais, que permitiram escrever a história do período pleistocênico brasileiro, o mais recente na escala geológica (MORELO, 2013). Entre as descobertas de Lund, figura um fóssil denominado o Homem de Lagoa Santa, que revelou a presença humana no local há mais de dois mil anos. Sua coleção também inclui exemplares de espécies como o tigre-dente-de-sabre, da preguiça gigante e do tatu gigante, entre outras. Essas descobertas e suas análises foram a base para a construção de uma série de teorias sobre os processos evolutivos dos homens, plantas e animais no Brasil (MORELO, 2013). As ossadas encontradas por Lund não foram, contudo, os vestígios mais antigos das formas de vida humana existentes em períodos geológicos passados em nosso continente. Décadas depois, em 1975, a arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire encontrou um fóssil humano em um sítio arqueológico no município de Pedro Leopoldo, também em Minas Gerais. O crânio pertenceu a uma mulher jovem e foi batizado como o fóssil de Luzia, que se tornou conhecido por ser o fóssil humano mais antigo encontrado nas Américas, com cerca de 12.500 a 13.000 anos. Luzia se converteu em um símbolo de uma nova teoria de povoamento das Américas: a de que o continente teria sido colonizado por duas levas de Homo sapiens advindas da Ásia e da África. A primeira migração teria ocorrido há cerca de 14 mil anos, por indivíduos semelhantes a Luzia. Um segundo grupo de humanos teria entrado aqui há 12 mil anos (MORELO, 2013). Figura 1: Brasil e seu passado (pré) histórico Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3ztisHO. Acesso em: 12 set. 2021. 11 A partir dessas descobertas importantes, é necessário pontuar que as pesquisas brasileiras de cunho arqueológico e antropológico só se ampliaram a partir da década de 1970, com a vinda de estrangeiros para expedições na Amazônia e com as atividades do Museu Nacional. Com a Proclamação da República, começaram a atuar nessas áreas de investigação também o Museu Paulista, em São Paulo, e o Museu Paraense, em Belém. Contudo, a tradição de arqueologia humanista, que se desenvolveu desde os museus, foi interrompida, em 1964, pelo golpe militar que implantou a ditadura no Brasil e restringiu consideravelmente as pesquisasa (categoria) Mulher?”. In: Leila Algranti (org.) “A prática Feminista e o Conceito de Gênero”. Textos Didáticos, nº 48. Campinas, IFCH-Unicamp, 2002. RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro. A formação e o Sentido do Brasil. – 1 ª ed. 1995 – 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. RIOS, F. e LIMA, M. Introdução, in GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. PONTES, H. Da morte em família à babá de Freud: homenagem a Mariza Corrêa. Cadernos Pagu (54), 2018. POZ, J. A etnia como sistema: contato, identidade e fricção no Brasil indígena. Revista Sociedade e Cultura, v.6, nº2, 2003. RODRIGUES, M. F. 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Os inícios da antropologia brasileira, suas descobertas mais recentes e sua resistência diante do autoritarismo formam uma linha do tempo interessante para pensar sobre a formação desse campo disciplinar no contexto brasileiro. No Brasil, inicialmente, por antropologia entendia-se, de forma dominante, o estudo canônico de “sociedades tribais”. Essa antropologia, quase sempre de origem germânica, se situava no contexto mais amplo da paleontologia, da antropologia física, da arqueologia, e encontrava-se, sobretudo, nos museus (PEIRANO, 2005). Essa trajetória singular deve-se, principalmente, ao fato de que no nosso país as universidades surgiram muito tardiamente, se o comparamos com outros países latino-americanos. Portanto, essa lacuna teve que ser preenchida pelos museus, por exemplo, enquanto a primeira universidade brasileira foi criada apenas em 1934, o Museu Nacional foi fundado em 1818. Assim, a pesquisa antropológica já dispunha de um espaço institucional desde o final do século XIX (LARAIA, 2014). Não obstante, como veremos, a disciplina tomou rumos diversos. Assim como os antropólogos Mariza Corrêa (2013) e Roque Laraia (2014), traçaremos uma genealogia da antropologia do/no Brasil a partir de outro personagem, que foi um dos grandes fundadores da disciplina no país, o médico Raimundo Nina Rodrigues. A partir de sua trajetória, apresentaremos uma outra versão da origem formal da antropologia brasileira. Os inícios da antropologia no Brasil são frequentemente intitulados como a fase dos pioneiros. Esse período é compreendido entre os anos de 1835 e 1933, quando a presença de antropólogos brasileiros era irrisória. As investigações eram realizadas, sobretudo, por europeus em expedições temporárias pelo território nacional (CORDOVIL, 2008). Desde o século XVI, o Brasil ocupa um lugar especial no imaginário europeu, seja por sua natureza tropical exuberante, ou por sua população racialmente diversa, produzindo curiosidades e reflexões aos olhos do Velho Mundo até o século XIX, pelo Para saber mais sobre as origens e desenvolvimentos posteriores da arqueo- logia brasileira, ver o livro de Pedro Paulo Funari (2012), intitulado “Arqueologia”, disponível na Biblioteca Pearson. https://bit.ly/3FKC5xf. Acesso em: 12 set. 2021. BUSQUE POR MAIS 1.2 OS PIONEIROS 12 menos (GOMES, 2008). Vários relatos naturalistas de pesquisadores que chegavam ao país manifestavam preocupação com a mestiçagem que observavam nessa sociedade. A característica miscigenada de nossa população foi vista como um laboratório ao mesmo tempo curioso e degradante das raças (SCHWARCZ, 1996). Nesse contexto, os médicos foram figuras importantes dentre os intelectuais convocados a pensar sobre essas questões. Ainda que pareçam profissões muito distantes hoje em dia, os médicos tiveram um papel fundamental na história de nossa disciplina. Laraia (2014) conta uma anedota curiosa sobre a ocasião em que o termo antropologia foi utilizado formalmente pela primeira vez em relação ao Brasil. Foi em um livro do explorador britânico Richard Burton, intitulado “Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho”, de 1869. Em um dado momento da obra, ele apresenta suas observações “sobre a antropologia descritiva de Minas Gerais”. Nesse texto, Burton lança mão de conceitos de uma antropologia biológica da primeira metade do século XIX, que acreditava na influência fenotípica nas diferentes formas de comportamentos. Diz ele, então: Em seguida, comparando os mineiros com os ingleses, o explorador afirma: “Entre nós (os ingleses) o temperamento nervoso é mais conhecido pelo cabelo sedoso e fino, aqui temos o mesmo acompanhado por um topete” (LARAIA, 2014). Esse trecho é bastante revelador do discurso cientificista, marcado pelo racialismo dogmático, em voga no século XIX, bem como da importância do papel dos médicos na história da disciplina. Foram eles os fundadores ou incentivadores da antropologia em diversas regiões do país. Assim foi com Roquette-Pinto e Arthur Ramos, no Rio de Janeiro; Nina Rodrigues e Thales de Azevedo, na Bahia; Oswaldo Cabral, em Santa Catarina; José Loureiro Fernandes, no Paraná, e René Ribeiro, em Pernambuco (LARAIA, 2014). Os debates que mobilizavam a intelectualidade brasileira no fim do século XIX e início do XX, marcados pelo longo histórico nacional de escravidão, expressam a medida da dificuldade de se formular, à época, interpretações do país e, sobretudo de sua composição étnica, que não tivessem uma forte carga racista. Com efeito, o apoio nas teorias raciais populares naquele momento parecia definir o próprio estatuto de cientificidade. Segundo Lilia Schwarcz (1993), as teorias raciais propostas pela academia se sobrepuseram aos dogmas religiosos reinantes até então, e deram status científico às desigualdades entre os seres humanos. Desse modo, por meio do conceito de raça, A tez do mineiro é de um pardo escuro morno, rara- mente corado na face, e muitas vezes perturbado pela secreção de bílis, ou pela obstrução dos condutos. É na realidade, a cor do português do Algarves, onde o mou- ro viveu durante tanto tempo (in LARAIA, 2014:12). Para conhecer em linhas gerais as teorias desses estudiosos, ver livro “Antro- pologia: questões, conceitos e histórias”, de Allan de Paula Oliveira, disponível on-line na Biblioteca Pearson. https://bit.ly/3JNa1fc. Acesso em: 12 set. 2021. BUSQUE POR MAIS 13 Gobineau escreveu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, publicado em 1855, obra fundamental no estabelecimento de teses racistas e da ideia de eu- genia (purificação racial). O autor permaneceu no país por pouco mais de um ano e viu no Brasil a prova irre- futável de suas teses racistas: ele previu, em um texto de 1874, que os brasileiros seriam uma raça extinta no prazo de 200 anos (OLIVEIRA, 2018: 244). puderam classificar a humanidade, fazendo uso de sofisticadas taxonomias. Na virada do século, o conceito de raça era pensado como se fosse uma formulação de ordem natural, objetiva ou biológica, que determinava a esfera sociocultural. Nessa perspectiva, a raça emergiu como instrumento de classificação de grupos humanos, fazendo com que a humanidade se convertesse em um objeto de estudo da biologia. As teorias raciais que emergiram então baseavam-se na ideia de que a humanidade está dividia em raças, de maneira que as diferentes raças constituem uma hierarquia biológica, na qual os brancos ocupam posição de supremacia. No Brasil, o racismo científico ganhou contornos específicos, estando especialmente interessado em discussões sobre a mistura de raças e os riscos de degeneração decorrentes dela (Schwarcz,1993) Como o Brasil era considerado um verdadeiro “caldeirão de raças”, esse ideário encontrou solo fértil no meio intelectual local. Em 1869, chegou ao Brasil o diplomata francês Arthur de Gobineau, um dos principais nomes do pensamento racialista daquele século e grande defensor da “purificação racial”. Segundo Allan de Oliveira, As ideias defendidas por Gobineau tiveram grande impacto no pensamento social brasileiro, de maneira que a mestiçagem passou a ser vista como um grande entrave para o desenvolvimento do país. Essa perspectiva catalisou uma série de políticas públicas pautadas pelo desejo de “melhorar” a composição racial da sociedade nacional, como o incentivo financeiro para o recebimento de imigrantes italianos e alemães. Acreditava- se que o branqueamento da população gerado por essa importação humana poderia reverter o quadro de “degeneração” causado pela mestiçagem da sociedade brasileira (OLIVEIRA, 2018). 1.3 NINA RODRIGUES Figura 2: Retrato de Nina Rodrigues Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3mU8Kcp. Acesso em: 12 set. 2021. 14 A ideia central das formulações de Nina Rodrigues era a relação entre raça e compor- tamento inato. A partir daí, desenvolveram-se ideias de que determinadas raças esta- riam mais predispostas ao crime. Nessa perspectiva, a antropologiacriminal brasileira era convocada a pensar a desordem social do país. Sua referência principal era o italiano CesareLombroso, que no século XIX se tornou um mestre em técnicas que, supostamente, poderiam oferecer provas empíricas de predisposição para o crime, tais como a antropo- metria (a medição física de certas partes do corpo) e a frenologia (medição específica do crânio). FIQUE ATENTO O termo raça, entendido como um conceito morfobiológico - isto é, aplicado a povos distintos para explicar ou explicitar diferenças fenotípicas e caracteres somáticos - emergiu com força em meados do século XIX como parte de um discurso cientificista construído pela classe letrada ocidental, sobretudo europeia. Na esteira dessa produção intelectual, Raimundo Nina Rodrigues foi um conhecido médico maranhense, radicado na Bahia, que no final do século XIX interessou-se pelos estudos raciais a partir da Medicina Legal. Produziu diversas obras nas quais busca explicar e analisar o que ele considerava provas irrefutáveis da inferioridade da raça negra. Assim, Nina Rodrigues se debruçava sobre casos de crimes, de loucura, de crenças religiosas, sempre na busca de pistas que pudessem comprovar suas teorias sobre a inferioridade racial no contexto brasileiro (CORRÊA, 2013). Como o tema da miscigenação constituía um campo híbrido, em que biologia e sociologia se entrecruzavam, vários autores, em especial os médicos, foram convocados para pensar sobre a questão racial e seus efeitos sobre a sociedade brasileira. Nesse cenário, Nina Rodrigues se tornou o precursor em um campo recente, visto como uma nova ciência: a antropologia criminal (OLIVEIRA, 2018). Em 1894, Nina Rodrigues publicou o livro “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, que tinha como propósito apresentar as modificações que as reflexões sobre raça imprimiriam à responsabilidade penal, assim como criticar o Código Penal Brasileiro de 1890. Seu argumento parte do pressuposto de que haveria uma diferença Figura 3: Frenologia Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3HwSNRi. Acesso em: 12 set. 2021. 15 fundamental entre as raças no que se referia à sua constituição mental, fazendo com que os negros, caracterizados pelo “atraso cultural”, tivessem uma tendência biológica para o crime. Por isso, o autor propõe um tratamento diferenciado no Código Penal Brasileiro para negros, indígenas e mestiços, que concebe como raças inferiores. Sua perspectiva, claramente identificada com o darwinismo social e teorias eugenistas, sustenta que os crimes cometidos por esses grupos sociais só poderiam ser analisados a partir de um ponto de vista racial que levasse em conta os valores morais e as noções de justiça vigentes nas suas respectivas comunidades. Assim, a sugestão proposta por Nina Rodrigues foi de que cada região do país possuísse seu próprio código, adaptado às condições raciais e climáticas de cada uma delas, abandonando a unidade legal que era defendida pelo direito clássico (RODRIGUES,2015). Desde sua atuação como professor na Faculdade de Medicina na Bahia, Nina Rodrigues teve o ímpeto de observar in loco os costumes e as práticas da população negra local. Por isso, ele ficou conhecido como um grande frequentador de candomblés e bairros de população majoritariamente negra em Salvador. Durante toda a década de 1890, ele observou e coletou informações diretas sobre a cultura negra na cidade, produzindo obras importantes como “O animismo fetichista dos negros baianos”, de 1900, e “Os africanos no Brasil”, publicada postumamente, em 1932 (CORRÊA, 1993). A despeito de suas visões racistas e etnocêntricas, esses livros constituem registros históricos importantes sobre práticas da cultura negra, especialmente das religiões afro-brasileiras. Por causa disso, e pelo seu diálogo com autores capitais da antropologia, como Edward B. Tylor (1832-1917) a Gabriel Tarde (1843-1904), Mariza Corrêa (2013) aposta que Nina Rodrigues deixou fissuras em algumas das premissas do racialismo e em seus próprios ideais, cedendo espaço para que seus discípulos criassem um quadro teórico distinto, pautado na valorização da mestiçagem. Pesquisas sociológicas contemporâneas (BARROS, 2008) mostram que as abordagens po- liciais operam com uma filtragem racial, em que pessoas negras são preferencialmente abordadas e vítimas de violência letal pelas forças de segurança do Estado. Nesse sentido, pode-se dizer que o ideário defendido por Nina Rodrigues tem consequências persistentes até os dias de hoje? VAMOS PENSAR? 16 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (FGV - 2018 - Adaptado). A importância do achado se deve ao fato de: a) Tratar-se de uma das poucas peças recuperadas do incêndio do museu. b) Permitir a continuidade das pesquisas. c) Haver possibilidade de completa restauração. d) Representar uma peça emblemática do museu e da antropologia. e) Ser um fóssil das américas com 2.000 anos. 2. (INSTITUTO EXCELÊNCIA – 2018 - Adaptado). Recentemente, com o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro, a comunidade científica perdeu o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo das Américas. Segundo Walter Neves (2006) o crânio de Luzia foi descoberto na década de 1970 a partir de escavações na região de Lagoa Santa em Minas Gerais. Com a descoberta da expedição franco-brasileira, levantou-se amplo debate sobre a chegada do ser humano às Américas. Sobre isto assinale a alternativa CORRETA. a) A descoberta do fóssil de Luzia com mais de onze mil anos, colocou em cheque a teoria de que o ser humano chegou as Américas por meio do estreito de Bering no mesmo período. b) A referida descoberta foi a responsável pela legitimação da teoria de Clóvis, que afirma que os primeiros humanos teriam chegado na costa do Pacífico por intermédio de uma espécie rudimentar de barco. c) A tese de que o ser humano teria chegado às Américas por meio do estreito de Bering se encontra completamente descartada, por conta das irrefutáveis provas empreendidas pela arqueologia brasileira. d) Pesquisas mais recentes dão conta que, na verdade, o fóssil de Luzia é um caso isolado e pode ser descartado na tentativa de compreender a origem do homem nas Américas. e) A exposição do fóssil de Luzia no Museu Nacional diz muito sobre os primórdios das pesquisas antropológicas realizadas nas precoces universidades brasileiras. 3. (UNCISAL - 2018). No Brasil pós-abolição, na virada do século XIX para o século XX, O Museu Nacional anunciou, nesta sexta-feira (19), que conseguiu resgatar o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo das Américas. A peça é uma das mais emblemáticas do acervo incendiado em 2 de setembro. O crânio foi e encontrado fragmentado, mas a restauração é possível, segundo os cientistas. A reconstrução depende de repasse de verba do Governo Federal para reabrir o laboratório do museu, que é gerido pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). (UOL Notícias, 20/10/2018) 17 Mas era nas faculdades de medicina e psiquiatria que as convicções eugenistas atingiam seu estado mais avançado. ___________ – que até hoje dá nome ao Instituto Médico Legal (IML) de Salvalvador e a um hospital em São Luís do Maranhão – foi quem começou a adaptar à realidade brasileira as ideias racistas de teóricos como ___________, criador da teoria do “criminoso nato”. Em Mestiçagem, Degenerescência e Crime, o autor um conjunto de teorias raciais foi elaborado pelos intelectuais da época com o intuito de explicar a formação nacional brasileira. Dentre as teorias elaboradas, a que mais ganhou destaque nesse momento foi a do médico Raymundo Nina Rodrigues (1862- 1906), que afirmava a determinação da hereditariedade biológica sobre as instituições sociais da nação brasileira. É correto afirmar que uma das consequências desse tipo de pensamento se manifestou: a) Na política do branqueamento da população brasileira e na adoção de mão de obra de origem imigrante europeia na lavoura brasileira no início do século XX. b) No estabelecimentode ações afirmativas e na criação de cotas para a população negra no serviço público, durante toda a vigência da Primeira República. c) Na defesa do africanismo como sistema cultural brasileiro, amplamente difundido no sistema escolar da época. d) No desenvolvimento das chamadas epistemologias do sul no pensamento filosófico produzido no Brasil no final do Segundo Império. e) Na produção de um código civil segregacionista, instaurando oficialmente o apartheid em todo o Brasil a partir da proclamação da República. 4. Os profissionais de diversas áreas que empreenderam as primeiras pesquisas de cunho antropológico no Brasil são frequentemente chamados de: a) Os colonizadores. b) Os pioneiros. c) Os estruturalistas. d) Os mestiços. e) Os sociólogos. 5. Com a influência das ideias de Arthur de Gobineau, como a mestiçagem passou a ser apreendida no Brasil? a) A mestiçagem passou a ser vista como a porta de entrada para a evolução cultural. b) A mestiçagem passou a ser vista como um exemplo diplomático de capacidade brasileira de se comunicar. c) A mestiçagem passou a ser vista como uma possibilidade de união entre diferentes povos. d) A mestiçagem passou a ser vista como a melhor saída para aumentar a densidade populacional e ocupar o país. e) A mestiçagem passou a ser vista como um entrave para o desenvolvimento do Brasil. 6. Complete as lacunas do texto abaixo: 18 descreve o mestiço e o negro como “naturalmente delinquentes”. Com base nisso, ele propôs uma reforma penal que atribuísse penas mais rígidas para africanos e seus descendentes. (Fonte: Revista Super Interessante, 2019.) a) Raimundo Nina Rodrigues / Cesare Lombroso b) Arthur de Gobineau/ Nina Rodrigues c) Nina Rodrigues/ Arthur Ramos d) Arthur Ramos/ Cesare Lombroso e) Cesare Lombroso/ Arthur de Gobineau 7. Assinale quais afirmativas abaixo estão corretas. I. Os médicos tiveram um papel primordial na antropologia brasileira. II. A antropologia sempre se pautou em princípios antirracistas e na defesa da diversidade cultural. III. Nina Rodrigues relacionava traços raciais ao comportamento inato dos indivíduos. IV. O Brasil ocupava um lugar inexpressivo no imaginário europeu. a) Apenas as afirmativas I e II estão corretas. b) Apenas as afirmativas I e III estão corretas. c) Apenas as afirmativas I, III e IV estão corretas. d) Apenas as afirmativas II, III e IV estão corretas. e) Todas as afirmativas estão corretas. 8. Assinale quais afirmativas a respeito da trajetória de Nina Rodrigues estão corretas. I. Nina Rodrigues foi professor na Faculdade de Medicina da Bahia. II. Nina Rodrigues utilizava métodos antropométricos em suas investigações. III. Nina Rodrigues foi o precursor da antropologia criminal. IV. Nina Rodrigues produziu registros de grande importância histórica da cultura negra local. a) Apenas as afirmativas I e III estão corretas. b) Apenas as afirmativas I, II e III estão corretas. c) Apenas as afirmativas I, III e IV estão corretas. d) Apenas as afirmativas II, III e IV estão corretas. e) Todas as afirmativas estão corretas. 19 IDENTIDADE NACIONAL E PENSAMENTO SOCIAL 20 Na unidade anterior, vimos que o pensamento social brasileiro, na virada do século XIX para o XX, buscava compreender o que singularizava a sociedade brasileira diante de outras sociedades. No esforço de pensar as especificidades e diferenças nacionais, as questões relacionadas à raça emergiram com força nos trabalhos de diversos autores, como Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Arthur de Gobineau. De maneira geral, a visão mais corrente à época era marcada pelo racismo explícito e por uma crítica à mestiçagem, recaindo frequentemente em proposições eugenistas. Contudo o movimento intelectual chamado de modernismo, que veio num primeiro momento (década de 1920) no campo das artes, até atingir o pensamento social brasileiro (anos 1930), inverteu o modo como a mestiçagem era percebida em relação à singularidade da sociedade brasileira. Segundo Allan de Oliveira, O pensamento romântico deslocava o foco na noção iluminista de indivíduo para uma ideia de grupo, de coletivos sociais, para sua linguagem e subjetividade. Esse foco na análise social dos conjuntos de valores nacionais ou da marca espiritual de um determinado povo foi importante para a noção moderna de cultura. Nesse sentido, o modernismo deslocou o debate sobre a singularidade da sociedade brasileira a partir de uma ênfase na ideia de cultura brasileira. E, nessa ênfase, foram produzidas obras que se tornaram canônicas no pensamento social brasileiro, cujos autores de maior destaque apresentaremos nessa unidade. Assim, a prática modernista de mobilizar a cultura para a conformação da identidade nacional foi incorporada pelo projeto de construção nacional, seja pelos meios de comunicação de massa ou pelo Estado, que nos anos 1930 cria suas primeiras universidades e institucionaliza o ensino de Ciências Sociais no Brasil. 2.1 O MODERNISMO Se antes a mistura racial era vista como a grande fonte dos males que assolavam o Brasil, os modernistas in- verteram essa premissa e defenderam a mestiçagem como um valor positivo da sociedade brasileira e o ve- tor de sua originalidade. Essa inversão de perspectiva tem raízes profundas que remetem ao fortalecimento do romantismo como tendência intelectual do fim do século XIX (OLIVEIRA, 2018: 250). O movimento antropofágico do modernismo brasileiro tinha o mote de assimilar criticamente as influências internacionais e valorizar as manifestações culturais locais. O uso da noção de “antropofagia” tem a ver com o ato de comer a carne de outra pessoa em atos ritualísticos, em que determinados povos originários acreditavam estar adquirindo também as suas habilidades. Nessa perspectiva, o movimento promovia reflexões para “engolir as influências estrangeiras” para, a partir delas, enxergar a realidade única do Brasil, com o intuito de desenvolver uma nova cultura com a cara do país. Para saber mais, ver “História e Modernis- mo”, de Mônica Pimenta Velloso. Disponível na Biblioteca Virtual Pearson. Dispo- nível em: https://bit.ly/3JzPJpl. Acesso em: 15 set. 2021. BUSQUE POR MAIS 21 Abaporu, pintura clássica do modernismo, da artista Tarsila do Amaral. O nome da obra é de origem tupi-guarani e significa "homem que come gente" (canibal ou antropófago). O título da tela é resultado de uma junção dos termos aba (homem), pora (gente) e ú (comer). Se o Brasil se sentia inferior e atrasado nos primeiros anos do século XX, ele foi sacudido pela Semana de Arte Moderna, em 1922, que interpelou seu “complexo de vira- lata”. Aos poetas e escritores geniais, como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, se juntaram figuras como os folcloristas Azevedo Amaral e Câmara Cascudo, e foi-se desencadeando o projeto de modernização cultural da nação. Seus trabalhos constituem um rico acervo sobre culturas tradicionais, sobretudo de matriz rural, e apresentam análises sobre os efeitos que processos de urbanização e modernização tinham sobre os modos de vida tradicionais. Isso implicava o autoconhecimento da cultura brasileira, que se baseava em estudos e pesquisas sobre os costumes do povo no seu passado e presente (GOMES, 2008). Um personagem importante nesse processo foi Gilberto Freyre, sociólogo e antropólogo que nasceu em Pernambuco no ano de 1900. Durante sua trajetória profissional, ele se tornou uma figura importante para a institucionalização das Ciências Sociais, já que criou várias cátedras de Sociologia nas primeiras universidades 2.2 GILBERTO FREYRE Figura 4: Abaporu Fonte: Tarsila do Amaral (1928) Figura 5: Gilberto Freyre Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3pQTz5m. Acesso em: 15 set. 2021. 22 brasileiras, como na Universidade do Distrito Federal, fundada em 1935. Em 1933, Freyre publicou o célebre livro “Casa Grande & Senzala”, no qual apresentou as características específicas da colonização portuguesa, a formação da sociedade agrária nordestina, o uso do trabalhoescravizado e, principalmente, como a mistura de raças ajudou a compor a sociedade brasileira. Com argumentos antropológicos trazidos de seu aprendizado nos Estados Unidos, junto ao “pai” da antropologia norte- americana moderna, Franz Boas, o autor contrapôs o paradigma da mestiçagem como forma de degeneração da nação. Freyre propõe um caminho inverso, mais afeito aos ideais modernistas, valorizando as características do índio, do negro e do português e acrescentando ainda a ideia de que a mistura dessas raças seria a grande força de nossa cultura. Assim, ele forneceu, para o seu tempo, uma nova maneira de conceber a identidade nacional brasileira (OLIVEIRA,2018). No livro, Freyre relata, com estilo um tanto literário, ambientes, festas, indumentárias, comidas e rituais de comensalidade. Com um olhar iconográfico marcante, ele explora a pintura e o desenho como elementos de representação cultural. Sua preocupação centrava-se na interpretação do Brasil, o que ele operacionalizou principalmente por meio da questão racial, sem ignorar outros elementos sociais e políticos que se coadunassem com sua elaboração em torno da singularidade cultural brasileira (OLIVEIRA,2019). Segundo o autor: Na perspectiva de Freyre, a colonização portuguesa trazia elementos bastante específicos para a história brasileira, já que havia sido empreendida por colonizadores já marcados pela mistura étnica: europeus mestiços a partir do contato com os povos invasores da Península Ibérica, provenientes do Norte da África. Nesse sentido, o próprio passado étnico e cultural dos portugueses já os teria condicionado a não possuir restrições para “misturarem-se gostosamente” com outros povos não europeus. O autor também argumenta que Portugal sempre foi uma terra de população escassa, porém guiada por desejos expansionistas, de maneira que os relacionamentos inter-raciais entre homens portugueses com mulheres indígenas e, posteriormente, com mulheres africanas se tornaram meios de viabilizar a tarefa colonizadora dos trópicos. Portanto, A escassez de capital-homem supriram-na os portu- gueses com extremos de mobilidade e misciblidade, (...), em uma atividade genésica que tanto tinha de violentamente instintiva da parte do indivíduo quanto de política, de calculada, de estimulada por evidentes razões econômicas e políticas da parte do Estado. (...). Quanto a miscibilidade, nenhum povo colonizador dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto os portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e multipli- cando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas (...). A miscibilidade mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas (FREYRE, 2006, p. 70). 23 Por sua vez, Florestan Fernandes defendia que o racismo era um resíduo considerável da ordem escravocrata e um pilar da sociedade brasileira. Distanciando- se da ideia de miscigenação harmônica, o autor aposta que a desigualdade racial no Brasil é resultado direto das disparidades sociais entre pessoas brancas e não brancas na educação, no acesso ao mercado de trabalho, na economia, entre outras esferas da vida social. Suas formulações apontam que o Estado brasileiro não promoveu qualquer tentativa efetiva de integração da população negra, já que após a abolição da escravidão os negros e negras seguiram exercendo trabalhos precários semelhantes aos que já realizavam. Assim, a população negra continuou vivendo sem moradia adequada, com oportunidades laborais escassas e condições de vida miseráveis (FERNANDES, 1965). o processo de formação nacional composto por Freyre é considerado exitoso por ser apoiado em uma base racial heterogênea: a constituição de uma brasilidade mestiça seria a peça-chave para a construção da nação brasileira. Contudo, essa suposta “harmonia” racial descrita pelo autor foi bastante criticada posteriormente (MOURA E SILVA, 2015). Embora a sociedade descrita por Freyre seja um ambiente profundamente marcado pelo autoritarismo patriarcal, alguns autores importantes da sociologia, como Florestan Fer- nandes, defendem que seu retrato nacional, pautado pela influência de diversas raças para a formação de um caráter nacional, teria criado também uma imagem idílica do Brasil colonial, romantizando as hierarquias sociais. Essa narrativa de convivência pacífica entre portugueses, negros e indígenas ganhou a alcunha de mito da democracia racial. Nessa perspectiva, a mestiçagem seria produzida mais pelo signo das relações afetivas do que pelas relações de violência e desigualdade que estruturaram a escravidão. FIQUE ATENTO Figura 6: Um jantar brasileiro Fonte: Jean Baptiste Debret (1927) 2.3 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA 24 Figura 7: Sérgio Buarque de Holanda Fonte: Disponível em: https://bit.ly/3EQH2U3. Acesso em: 15 set. 2021. Além de Gilberto Freyre, outro autor importante na década de 1930 ao teorizar sobre a cultura brasileira e a identidade nacional foi Sérgio Buarque de Holanda, com sua célebre obra “Raízes do Brasil”, de 1936. No entanto, suas referências teóricas, bem como o peso heurístico do conceito de cultura nesse livro, diferem das de Freyre. Ainda assim, quando se pensa na forma como reflexões baseadas nas diferenças entre sociedades foram produzidas no Brasil, o período entre 1870 e 1930 se revela fundamental e as formulações de Buarque de Holanda se destacam, ainda que ele não fosse um antropólogo no sentido estrito do termo. Apesar de ter se formado em direito e atuado, na maior parte do tempo, como jornalista, suas análises tinham um caráter antropológico e propiciaram um campo para o surgimento de uma ciência social no Brasil, institucionalizada e preocupada com o desenvolvimento metodológico tanto da sociologia quanto da antropologia, mesmo que seus trabalhos assumissem uma forma menos empírica e mais ensaística (OLIVEIRA, 2018). O livro Raízes do Brasil foi publicado apenas três anos depois de Casa-Grande & Senzala e seis anos antes de Formação do Brasil Contemporâneo, do sociólogo Caio Prado Junior. Segundo Antônio Cândido, sociólogo e escritor carioca, esses três livros conformam uma tríade de obras seminais que foram fundamentais para que pudéssemos aprender a refletir e nos interessar pelo Brasil. Contudo, o livro de Buarque de Holanda segue uma orientação teórica distinta: em vez de optar pelo viés culturalista norte-americano de Freyre ou pelo fundamento marxista de Caio Prado Jr., o autor se orienta com muito rigor pela nova história social francesa, a sociologia cultural alemã e a etnologia (CHICARINO, 2005) Em Raízes do Brasil, Buarque de Holanda argumenta, sob influência do sociólogo alemão Max Weber, que a sociedade brasileira não poderia ser chamada categoricamente de uma sociedade capitalista, já que retinha elementos muito fortes de seu antigo estado, de ordem patrimonial, o que significava que o Estado era dominado por uma elite de origem agrária e por uma classe média que a acompanhava, as quais controlavam não apenas os aparelhos estatais, mas ampliavam seu campo de influência e dominação para a esfera privada da vida social (GOMES, 2008). A partir desse contexto, o autor apresenta um tipo ideal brasileiro: o homem cordial. E sse conceito tem pouco a ver com as boas maneiras ou o bom mocismo do cidadão brasileiro, mas refere-se ao fato de que, na história do nosso país, há um predomínio das vontades particulares – próprias da esfera doméstica e dos domínios rurais –, sendo estas pouco dispostas a obedecer a uma ordenação impessoal das relações sociais. São laços primários – de sangue e de coração – que fornecem o 25 modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós (CHICARINO, 2005). Nesse sentido, o homem cordial é aquele que busca sempre em suas relações sociaisum nexo de proximidade pessoal, fazendo tudo que é impessoal, como a burocracia, seu adversário. Tal atitude derivaria de um antagonismo inerente entre o Estado, como instância do público, portanto, do impessoal, e a família, como instância do privado, portanto, do pessoal, do próximo (GOMES, 2008). Sobre a palavra cordialidade, Sergio Buarque de Holanda afirma que Essa cordialidade brasileira nos tornaria pouco aptos para as relações impessoais que advêm da posição e função do indivíduo e não apenas de suas características pessoais e familiares, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários. Por isso, para o autor, essa característica poderia se tornar um obstáculo político para a consolidação do Estado e deveria ser combatida em prol do desenvolvimento nacional. Assim, ele dava uma resposta antagônica ao resgate positivo das tradições brasileiras proposto por Gilberto Freyre. Como aponta Tatiana Chicarino (2005), a característica de cordialidade desenvolvida por Buarque de Holanda mostra ter grande influência sobre o modo como as elites brasileiras tendem a entender e a se colocar na esfera pública, muito longe de um verdadeiro espírito democrático. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma es- pécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no 'homem cordial': é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a poli- dez é, de algum modo, organização da defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que per- mitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções (BUARQUE DE HOLANDA, 1995: 147). Para Sérgio Buarque de Holanda, um dos processos históricos conformadores desse modo de ser das elites brasileiras é a escravidão e a maneira como sua abolição foi conduzida no nosso país. Como você acha que essas relações sociais, que estão nas “raízes do Brasil”, conformam nossas relações sociais nos dias de hoje? VAMOS PENSAR? 26 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (UEL - 2007). Com base no texto e nos conhecimentos sobre o tema é correto afirmar: a) A produção cultural referente à época do modernismo caracterizou-se pela valorização da mestiçagem entre europeus e indígenas como elemento fundamental para o estabelecimento de uma identidade cultural homogênea aos países latino- americanos. b) No modernismo hispano-americano e brasileiro sobressaiu-se a tendência de linhas retas e pouco uniformes, herança ainda dos artistas pertencentes à Escola Francesa, trazida por D. João ao Brasil. c) A produção cultural relativa à época moderna foi influenciada pelo positivismo, permitindo que a “América” descobrisse a “América” através de novas formas de retratar os povos americanos. d) Vinculado a uma cultura universal, o modernismo não conseguiu tocar os imaginários sociais sobre a questão das características próprias de cada país, sendo que o olhar do europeu sobre a América é que se sobressaiu e foi valorizado nas obras deste período. e) O modernismo proporcionou aos artistas e intelectuais americanos a formação de uma consciência social, de caráter nacional-popular, produzindo uma contraposição à subordinação vivenciadas nesses territórios e valorizando a cultura nacional. 2. (IFB - 2017). A teoria da democracia racial, derivada a partir da hipótese de pesquisa desenvolvida por Gilberto Freyre, principalmente com sua obra “Casa-Grande e Senzala”, pode ser relacionada “A discursos contrários à política de cotas implementada nos institutos federais a partir da Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012. Dentre as opções abaixo, marque a CORRETA em relação aos conteúdos do enunciado acima. a) A teoria desenvolvida por Gilberto Freyre contribui para explicar a diferença entre os níveis de violência racial ocorridos nos EUA e no Brasil, bem como sustenta teoricamente a política de cotas raciais adotada em nosso país. b) A teoria da democracia racial, derivada da obra de Freyre, sustenta uma suposta convivência pacífica e democrática entre os negros, indígenas e brancos europeus, de modo a sustentar a política de cotas raciais. c) A teoria desenvolvida por Freyre atribui uma visão romantizada da realidade, tornando O modernismo induz intelectuais latino-americanos a redescobrir o povo, o que pode levá-los a descobrir camponeses e operários, ou índios e negros. O vínculo com a cultura universal não impõe necessariamente um caráter dependente ou ’alienado’ à totalidade de nossa cultura. (IANNI, O. apud. PINSKY, J. et al. História da América através de textos. São Paulo: Contexto, 1994. textos e documentos, v. 4, p. 88.) 27 “A autonomia da Sociologia – insistamos nesse ponto – baseia-se cada vez mais no fato de que a estrutura social não é puro efeito de condições econômicas; nem das predominantemente políticas ou religiosas; nem de determinações geográficas. Resulta de interações: interação entre o grupo social e o meio físico; entre os fatores políticos e os religiosos; ou entre os econômicos e os psíquicos. Às vezes de tal modo se intercondicionam que é difícil dizer qual a condição predominante”. invisíveis várias formas de violência praticadas por brancos europeus em relação aos negros. A política de cotas raciais, nesse sentido, visa validar a teoria de Freyre. d) A teoria da democracia racial, derivada da obra de Freyre, mascara em grande medida a violência praticada por brancos contra negros no Brasil, sustentando de certo modo parte das críticas atribuídas à adoção de cotas raciais no país. e) A teoria da democracia racial de Freyre tem por princípio desvelar todas as formas de violência de brancos contra negros no Brasil, amparando teoricamente a adoção de cotas raciais como forma de compensação histórica. 3. (NUCEPE – 2009 – Adaptada). O fragmento anterior foi extraído do livro Sociologia: introdução ao estudo dos seus princípios, de Gilberto Freyre. De acordo com as formulações do autor, os cursos introdutórios de Ciências Sociais deveriam abordar: I. As conexões entre o natural, o social e o cultural. II. A posição da sociologia entre os estudos do homem considerado unidade biossocial. III. A ausência das sociologias especiais, como a sociologia histórica. IV. O consenso de teoria dentro da sociologia geral. V. A valorização da diversidade e complexidade da realidade social. A respeito das afirmações dos itens I a V, marque a alternativa CORRETA. a) Apenas as afirmações constantes dos itens III e V estão corretas. b) Apenas as afirmações constantes dos itens I e IV estão corretas. c) Apenas as afirmações constantes dos itens I, II e V estão corretas. d) Apenas as afirmações constantes dos itens IV e V estão corretas. e) Apenas as afirmações constantes dos itens I, II e III estão corretas. 4. (CCV-UFC - 2012). A antropologia no Brasil, criada e desenvolvida a partir de núcleos institucionais e autorais diversos, se voltou desde o princípio a um exame de nossa formação histórica. Entre as mais respeitadas (e ao mesmo tempo controversas) interpretações desse processo, está a contribuição de Gilberto Freyre e seu entendimento de nossa realidade social de fundo colonial. Para esse autor, era fundamental redimensionar a leitura de nossa construção política inicial: a) Alternando as pesquisas entre exercícios de exame cultural e estudos de antropologia física. b) Negligenciando o papel da política portuguesa para criar um foco de pesquisa 28 adequado ao Brasil. c) Criticando a diferença dos grupos humanos brasileiros no que toca nosso desenvolvimento econômico. d) Buscando reforçar a validade dos estudos promovidos por euclydes da cunha e nina rodrigues sobre a ideia de cultura. e) Valorizando o aspecto cultural e histórico do brasileiro em detrimento de análises raciais simplistas e biologizantes. 5. (IFB - 2017). “A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudestão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro [...]” – HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo, 2011, pag. 146. O fragmento acima representa um conceito da obra de Sérgio Buarque de Holanda ao definir uma relevante característica sociocultural do povo brasileiro. A esse respeito, marque a alternativa CORRETA. a) Trata-se daquilo que atualmente é discutido como jeitinho brasileiro. b) Trata-se daquilo que atualmente é conhecido como capacidade empreendedora do povo brasileiro. c) Representa características do coronelismo praticado no Brasil ao longo do século XX. d) Descreve elementos ligados à grande capacidade cooperativa do povo brasileiro. e) Reflete o padrão civilizatório do povo brasileiro. 6. (UERR - 2018). Na análise do autor de Raízes do Brasil: a) A tensão entre as diversas raças que formaram o Brasil, corresponde a um tipo ideal. b) As diferenças entre classes sociais no Brasil contituem um tipo ideal. c) A cordialidade do brasileiro é um tipo ideal por ser uma simplificação exagerada das diferenças religiosas. d) O homem cordial corresponde a um tipo ideal sociopsicológico e a um padrão de sociabilidade. e) O homem cordial corresponde a um tipo ideal fundado da unidade étnica no Brasil. 7. (UFRN – 2012 - Adaptado). Na obra Raízes do Brasil, publicada pela primeira vez em “Em Raízes do Brasil, as possibilidades heurísticas do gênero ensaístico são exploradas ao máximo. A linguagem plástica escolhida por Sérgio Buarque de Holanda permite converter circunstâncias complexas em um vocabulário de compreensão geral. Assim, o autor faz uso de dualismos como trabalho e aventura, ou semeador e ladrilhador, para descrever e tipificar concisamente os padrões abrangentes de conduta. A propósito, a tensão entre estes dois polos geraria o movimento que levaria ao avanço da história. Neste caso, o autor recorre, claramente, tanto à metodologia dos tipos ideais de Weber quanto à dialética de Hegel” (Costa, Sérgio. O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, 2014). 29 1936, Sérgio Buarque de Holanda, ao analisar o processo histórico de formação da nossa sociedade, afirma: Desde o período colonial, para os detentores dos cargos públicos, a gestão política apresentava-se como assunto de seus interesses particulares. Isso caracteriza justamente o que separa o funcionário patrimonial e o puro burocrata. Para o funcionário patrimonial, as funções, os empregos e os benefícios que deles recebe relacionam-se a direitos pessoais dos funcionários e não a interesses objetivos, como ocorre no verdadeiro Estado burocrático. Assim, no Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Considerando as reflexões do autor e levando em conta práticas políticas constatadas no Brasil Republicano, é possível inferir que a) Os limites entre os domínios do público e do privado, no âmbito da administração pública, se confundem, não obstante as leis que visam a combater o patrimonialismo. b) O patrimonialismo está presente nas regiões mais carentes do país, em razão apenas do baixo nível de formação dos quadros da administração pública. c) As estruturas do poder administrativo no brasil permanecem as mesmas do período colonial, daí a manutenção do patrimonialismo disseminado na sociedade. d) O predomínio do interesse particular sobre o interesse público, no brasil, foi efetivamente rompido com o êxito da revolução de 1930. e) Virtudes tão elogiadas por estrangeiros como hospitalidade e generosidade representam um traço definido do caráter brasileiro. 8. (FUNCAB – 2010- Adaptada). No pensamento sociológico dos anos 1930 despontam os nomes de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, autores dos clássicos Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil, respectivamente. Essas obras têm como foco temático comum: a) A luta de classes na sociedade rural. b) A importância do estado nacional. c) A democratização do ensino. d) A democracia racial e social. e) A estrutura patriarcal brasileira. 30 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ANTROPOLOGIA ACADÊMICA 31 3.1 SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA NAS UNIVERSIDADES Como vimos, até a década de 1940 a Antropologia brasileira era majoritariamente exercida por intelectuais de procedências diversas, alguns médicos, outros advogados e literatos, com atitudes inusitadas e posicionamentos teóricos ecléticos. A institucionalização da disciplina em solo nacional começou ainda na década de 1930, com a criação da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESP) e da Universidade de São Paulo (USP), ambas localizadas na cidade de São Paulo, e da Faculdade de Filosofia e Letras que, junto ao Museu Nacional no Rio de Janeiro, compunham a base da antropologia acadêmica do Brasil. Para fazer frente à necessidade de professores, foram contratados vários mestres estrangeiros. Desse modo, figuras importantes como Roger Bastide, Emílio Willems, Claude Lévi-Strauss passaram a trabalhar na USP, enquanto Herbert Baldus, Donald Pierson, na FESP, onde Radcliffe-Brown esteve como professor visitante por um breve período durante a Segunda Guerra Mundial (OLIVEIRA, 2018). Essa presença de professores estrangeiros permitiu a entrada de debates contemporâneos sobre sociologia e antropologia no pensamento social brasileiro da época, principalmente questões ligadas a métodos de pesquisa. Desse modo, além de renovação teórica, a institucionalização dessas disciplinas no Brasil envolveu um maior cuidado empírico com a reflexão social. A partir daí, entre as décadas de 1940 e 1950, o pensamento social brasileiro se afastou do caráter ensaístico que, até então, o caracterizava e passou a ser produzido na forma de estudos orientados empiricamente (OLIVEIRA, 2018). Naquele momento, a antropologia era considerada uma espécie de subárea dentro da Sociologia, e as fronteiras disciplinares entre os dois campos mostravam-se bastante borradas. Ao longo das décadas seguintes, as disciplinas foram se separando, sobretudo em virtude da ênfase em determinadas temáticas, mas mantendo conexões teóricas e debates epistemológicos. Paralelamente aos intelectuais estrangeiros, alguns brasileiros também deixaram contribuições permanentes e relevantes. O principal deles talvez tenha sido Arthur Ramos (1903-1949), um médico alagoano que ocupou a cadeira de Antropologia Cultural da Faculdade de Filosofia e Letras do Rio de Janeiro e escreveu um reconhecido estudo introdutório do escopo da disciplina, além de ter contribuído para os estudos das religiões africanas no Brasil (GOMES, 2008). Para saber mais sobre a institucionalização da antropologia no país a partir da circulação internacional de intelectuais brasileiros, como Arthur Ramos, ver livro “Antropologia Social e Cultural”, de Tathiana Chicarino, disponível na Biblioteca Virtual Pearson: https://bit.ly/3Hvt9fB. Acesso em: 15 set. 2021. BUSQUE POR MAIS Decididamente, a Fundação Escola de Sociologia e Política (FESP) teve um papel fundamental na institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, já que foi responsável pela implementação das primeiras cátedras de ensino de sociologia e antropologia, e promoveu experiências inéditas de pesquisas de campo voltadas para a realidade nacional. A instituição foi fundada por setores da elite econômica e intelectual paulistana, 32 que buscavam a formação de quadros que atuassem nas instituições públicas que nasciam naquele momento, para que colaborassem com o planejamento econômico e o desenvolvimento social do país (CHICARINO, 2014). Para entender a importância da FESP nesse panorama, vale dizer que os estudos produzidos pelo seu corpo docente sobre o perfil socioeconômico dos trabalhadores brasileiros serviram de base para o primeiro cálculo do custo de vida e para a definição do salário mínimo nacional. Seus professores foram responsáveis também pela introduçãode métodos de pesquisa extremamente importantes, como a etnografia baseada em observação participante, consagrada pelo polonês Bronislaw Malinowski, praticada pelos antropólogos britânicos desde a década de 1910 e pelos sociólogos ligados aos estudos urbanos da Universidade de Chicago. Grandes intelectuais brasileiros foram alunos da instituição, tais como Sergio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro, cujas contribuições são abordadas neste livro. 3.2 ESTUDOS DE COMUNIDADE Um dos expoentes da Escola de Sociologia de Chicago que lecionou na FESP foi o sociólogo Donald Pierson. Quando ele assumiu a direção da instituição, em 1939, o foco investigativo concentrou-se nos Estudos de Comunidade. Tais estudos foram definidos por Júlio Simões (2001) como “pesquisas de campo em pequenas comunidades para compreender a chamada sociedade tradicional brasileira e seu processo de modernização”. A tradição dos Estudos de Comunidade, trazida dos Estados Unidos, onde pesquisas desse tipo se tornaram comuns, teve forte impacto sobre as Ciências Sociais de toda a América Latina. Desde as décadas de 1930 e 1940, as etnografias em comunidades indígenas, rurais e camponesas de países em desenvolvimento se tornaram um modo de trabalho comum, buscando apreender os modos de vida desses grupos tradicionais diante de processos crescentes de urbanização. No Brasil, essa tendência analítica é muito bem representada pela obra de Antônio Cândido intitulada “Os parceiros do Rio Bonito”, lançada em 1964. A partir de um longo trabalho de campo realizado no pequeno município paulista de Bofete entre 1943 e 1946, Cândido estuda as transformações do modo de vida caipira no interior de São Paulo promovidas pela expansão do capitalismo na região. O autor registra formas cotidianas de resistência a essas mudanças, descreve as práticas Figura 8: A mãe, a filha, a casa e a galinha, uma das bases da dieta caipira Fonte: Jornal da USP (2018) 33 3.3 ANOS 60: OS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO Mariza Peirano (2000) afirma que a antropologia brasileira se desenvolveu como uma “costela” da sociologia, que era a Ciência Social dominante e hegemônica nos anos 1940 e 1950. Apenas a partir da década de 1960 a antropologia no Brasil começou a se ver enquanto um campo disciplinar autônomo, ainda que a interlocução privilegiada com a sociologia nunca tenha deixado de ser uma marca importante. Se os primeiros antropólogos brasileiros se formaram no exterior, foi apenas com a reforma universitária nacional, em 1965, que teve início o processo de formação de antropólogos no país, já que ela possibilitou a criação de programas de pós-graduação no Brasil. O primeiro programa de pós-graduação em antropologia foi criado em 1968, no Museu Nacional. Depois, surgiram os mestrados da UNB e Unicamp em 1972. A criação destes programas chama atenção para o fato de que antes da antropologia ser percebida e ensinada como uma disciplina do curso de graduação em Ciências Sociais, a formação do antropólogo foi vista como algo que se atinge apenas quando o estudante obtém o título de mestre (PEIRANO, 2000). Nesse contexto de institucionalização e relativa autonomização da antropologia, o filósofo e antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira propôs um projeto intitulado cotidianas dos camponeses e, no final, sugere formas de preservar a integridade desses cidadãos – entre elas, a implementação da reforma agrária. Segundo Júlio Cezar Melatti (1984), os Estudos de Comunidade pretendiam chegar a uma visão geral da sociedade brasileira, através da soma de muitos exemplos distribuídos por diversas regiões do Brasil. Além desse objetivo geral, tais estudos estavam quase sempre voltados para a conexão dessas comunidades com algumas temáticas-chave, tais como: mudança cultural, persistência da vida tradicional, problemas de imigrantes, educação e vários outros. O foco nos processos de transformação de comunidades tradicionais a partir de sua relação com processos amplos de modernização e urbanização foi importante para o desenvolvimento de um conceito central nesse campo de estudos: o de aculturação. O conceito de aculturação foi inicialmente formulado pelos Estudos de Comunidade nor- te-americanos na tentativa de compreender os processos de transformação cultural vin- culados a imigrações ou ao contato entre culturas diferentes. Grupos de imigrantes que transformaram as grandes cidades dos Estados Unidos na virada do século XIX para o XX converteram-se em objetos de estudo, já que tiveram seus modos de vida e culturas transformados em decorrência do contato com a sociedade estadunidense. Nesse senti- do, muitos teóricos argumentavam que esses grupos sofriam processos de aculturação, ou seja, de perda ou transformação de sua cultura, podendo negar sua cultura de origem e absorver a norte-americana (assimilação), ou adaptar sua cultura de origem a seu novo modo de vida, o que chamavam de integração (OLIVEIRA,2018). No Brasil, esses conceitos também ficaram em voga na década de 1940 e foram apli- cados ao estudo de comunidades rurais, de povos indígenas ou, ainda, da história dos negros no país. FIQUE ATENTO 34 Estudo de áreas de fricção interétnica no Brasil, no qual desenvolveu o conceito de fricção interétnica. Desde suas pesquisas etnográficas, o autor privilegiou o enfoque na “interação social” entre povos indígenas e outros segmentos da sociedade brasileira — pauta antropológica e política importante da época. Segundo Cardoso de Oliveira, a fricção interétnica seria: Em seu trabalho de campo, o autor analisou a interação que ocorria entre os indígenas Terena e a população regional, mostrando os “mecanismos socioculturais” que influiriam no processo de “assimilação” em curso. As situações de contato interétnico são articuladas às dinâmicas de expansão da sociedade brasileira e sua fronteira pastoril e agrícola. Nesse sentido, seu novo conceito apareceu como uma espécie de crítica à noção de aculturação, que tinha como eixo de análise a transformação de elementos culturais tomados de forma isolada. Por sua vez, a fricção interétnica focava menos nos elementos culturais em processo de transformação e mais nas relações estabelecidas entre as sociedades em contato, atravessadas por questões sociais e econômicas amplas (POZ, 2003). No caso dos Terena, por exemplo, Cardoso de Oliveira defendia que a incorporação da mão de obra indígena no mercado regional havia resultado em um processo de integração econômica, mas nem por isso eles estavam em uma efetiva condição de “assimilados”. Em resumo, sua análise demonstra que, nas aldeias, os mecanismos aculturativos não se mostravam suficientes para que se extinguisse a coesão étnica, e tinham mais a ver com a inserção dos Terena em uma sociedade de classes (POZ, 2003). Essa articulação da identidade étnica com as estruturas sociais tem inspiração marxista influenciada pelo sociólogo Florestan Fernandes (1965). Assim como Florestan Fernandes (1965) significou a inserção da temática das relações raciais em uma abordagem marcada pela ideia de conflitos de classe, o conceito de fricção interétnica, de certa forma, constituiu a análise do contato entre sociedades indígenas e a sociedade nacional, tendo como pano de fundo também a ideia de conflito e as tensões entre os conceitos de etnia e classe. A aculturação e a assimilação deixavam de ser meros processos dotados de uma inevitabilidade e passavam a ser vistos em seu aspecto dinâmico e conflituoso (OLIVEIRA, 2018). [...] o contato entre grupos tribais e segmentos da so- ciedade brasileira, caracterizados por seus aspectos competitivos e, no mais das vezes, conflituosos, assu- mindo esse contato muitas vezes proporções totais, isto é, envolvendo toda a conduta tribal e não tribal que passa a ser moldada pela situação de fricção interétni- ca (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972, p. 128). Segundo Mariza Peirano (2000), para se constituir como antropologia nesse contexto, foi necessário manter e desenvolver