Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
M 345.8107 • M827e 1 ysGí LI H Compra-se livros usados, paga- se bem e atende-se a domicilio LIVROS N O V O S EM GERAL Vendas a Prazo sem Fiador A Casa do Livro Lrda. RUA SÃO JOSÉ, 61 Tels. 22-8631 - 42-4747 RIO DE JANEIRO ^>^ÍHS^?.'^^Si\->/V-!í^V^!^A'3Eíi mm fm EVARISTO DE MORAES UM ERRO JUDICIÁRIO o ca PONTES m o A R I E L 1934 UM ERRO JUDICIÁRIO : 0 CASO PONTES VISGUEIRO OBRAS E OPUSCULOS DO AUTOR O Jury c a Nova Escola Penal — 1894. Estudinhos de Direito: o Jury — 1896. A Questão das Prostitutas — 1897. O Processo Basilio de Moraes perante o Jury — 1897. O Processo Basilio de Moraes perante a Corte de Appellação — 1897. Estudos de Direito Criminal — 1898. Contra os Artigos de Guerra — 1898. Marcelino Bispo (Estudos de Psychologia Criminal) — 1898. O Processo Abel Parente — 1901. La teoria Lombrosiana Del Delincuente — 1902. Médicos e Curandeiros — 1902. Creanças Abandonadas e Creanças Criminosas — 1902. Apontamentos de Direito Operário — 1905. O Crime das Degolladas — 1907. Enrico Ferri — 1910. A Moral dos Jesuítas — 1911. U m caso de Homicídio por Paixão Amorosa — 1914. Criminalidade da Infância e da Adolescência, 1* edição, 1916; 2" edição, 1927. Extincção do Trafico de Escravos no Brasil — 1916. A Lei do Ventre-Livre — 1917. Os accidentes do Trabalho e a sua Reparação — 1919. Problemas de Direito Penal e de Psvchologia Crimi- nal, Ia edição — 1920; 2° edição, 1924. Ensaios de Pathologia Social — 1921. Reminiscencias de u m Rábula Criminalista — 1922. Brancos e Negros — 1922. Prisões e Instituições Penitenciárias no Brasil — 1923. A Campanha Abolicionista •— 1924. Criminalidade Passional — 1932. Embriaguez e Alcoolismo — 1933. A Escravidão Africana no Brasil — 1934. EVARÈSTO DE MORAES (Do conselho technico da Sociedade Brasileira de Criminologia) UM ERRO JUDICIÁRIO : 0 ARIEL EDITORA LTDA. RIO DE JANEIRO 1934 LA TROBE l JNIVEnSlTY ! LIBRAR Y I; Reservados os direitos de reproducção, traducção e adaptação para todos os paizes. A' MEMÓRIA — D O — J U I Z - C R I M I N O L O G O FRANCISCO JOSÉ VIVEIROS DE CASTRO, primeiro a vislumbrar a causa mórbida no crime de Pontes Visgueiro Offerece, dedica e consagra O AUTOR. DUAS PALAVRAS DE EXPLICAÇÃO Havendo intencionado evocar e com- mentar alguns celebres processos crimi- naes, escolhi, para inicio da série, o que foi instaurado, em 1873, contra o desem- bargador Pontes Visgueiro. Tive para a escolha duas boas ra- zões. Primeira foi esta: encerrar o proces- so, além de momentosos problemas jurídi- cos e medico-legaes, a singularidade de, com elle, haver o Supremo Tribunal de Justiça julgado, em única instância, um membro da alta magistratura, accusado de crime commum e dos mais violentos e objectivamente horrorosos. Consistiu a segunda razão da escolha em estar eu sinceramente convencido do 8 EVARISTO DE MORAES erro judiciário que enviou para a Corre- cção uma creatura irresponsável. Os elementos judiciários, de que me utilizei, foram quasi todos colhidos na excellente revista "O Direito", do Dr. J. J. do Monte (vol. 4o), a qual publicou, "ipsis verbis", todas as peças do processo, bem como os discursos de accusação e de defesa. Lamentável é não se encontrarem, no archivo do Supremo, nem no Archivo Na- cional, os autos originaes. Acredito que a forma pela qual expuz os factos, e abordei as varias questões le- vantadas no processo e nos debates, é a mais accessivel. Tal seja a acceitação desta obra, não demorarei a entrega ao editor de novo trabalho, já bem adeantado, versando o processo, não menos ruidoso, a que res- pondeu o advogado e poeta-comediogra- pho judeu Antônio José, natural do Rio de Janeiro, queimado em Lisboa, por con- demnação do Santo Otticio. EVARISTO DE MORAES I A PESSOA DO CRIMINOSO E OS PRECEDENTES DO FACTO Filho do casal constituído pelo abas- tado lavrador Manoel do Nascimento Pontes e D. Adriana Maria Pontes, nasceu José Cândido de Pontes Visgueiro, na vil- la de Maceió, da, então, comarca de Ala- goas, ligada á provincia de Pernambuco, a 13 de outubro de 1811. Acommettido, aos 18 mezes, de uma febre maligna, não falou, nem ouviu, até os cinco annos, quando re- cobrou a vóz e a audição. Tornou, porém, a ensurdecer aos quinze annos. Na idade adulta passou a ouvir mal, durante algum tempo, sobrevindo-lhe, cerca dos quaren- ta annos, surdez definitiva. Fora, adolescente, mandado para o 10 EVARISTO DE MORAES Seminário de Olinda, mas não lhe sorrira a carreira ecclesiastica e, sim, a juridica, ingressando, em 1830, na Academia de Di- reito de Olinda. Travara relações, em Maceió, por oc- casião das férias do seu 2o anno, com uma moça de distincta família, e, pretendendo casar-se, adeantára-se... Não se realizou, a despeito do aconte- cido, o desejo de Pontes Visgueiro, em virtude de fortíssima opposição paterna. Determinou essa opposição a sua transfe- rencia para a Academia de S. Paulo, em a qual se bacharelou (1834). (1) Antes de diplomado, já tinha sido eleito deputado provincial. Formado, en- trou para a magistratura. Foi juiz de di- reito em Maceió. Candidatou-se á deputação geral para a legislatura de 1838 a 1841. Estava, então, o Brasil sob a atormentada regência inte- rina do senador Pedro de Araújo Lima, (marquez de Olinda).Circumstancia digna de nota: — os cinco deputados eleitos por Alagoas eram, todos, magistrados. Cha- mavam-se: José Cândido de Pontes Vis- gueiro, Rodrigo de Souza Silva Pontes, (1) V. Almeida Nogueira. TRADIÇÕES E REMINIS- CENCIAS, vol. VI, 1912, pags. 98 a 101. O CASO PONTES VISGUEIRO 11 Matheus Casado de Araújo Lima, Antô- nio Luiz Dantas de Barros Leite e Fran- cisco Joaquim Gomes Ribeiro. Durante aquella legislatura, foi inten- sificado o conflicto entre as tendências partidárias de que sahiram os chamados partidos constitucionaes, o conservador e o liberal. Contemporaneamente, governaram três ministérios, nelles figurando algu- mas personalidades que, depois, tiveram marcada influencia na politica brasileira. Travávam-se renhidas polemicas em torno da interpretação do Acto Addicio- nal, da maioridade de Pedro II, da refor- ma judiciaria e processual-criminal. Na legislatura de 1838 a 1841, figura- ram, como deputados, entre outros já também notáveis, ou que posteriormente se notabilisáram: Bernardo de Souza Franco (depois visconde de Souza Fran- co), Joaquim Nunes Machado, João Mau- rício Wanderley (depois barão de Cote- gipe), Miguel Calmon du Pin e Almeida (depois marquez de Abrantes), Paulino José Soares de Souza (depois visconde de Uruguay), Joaquim José Rodrigues Tor- res (depois visconde de Itaborahy), José Clemente Pereira, Antônio Paulino Lim- 12 EVARISTO DE MORAES po de Abreu (depois visconde de Abae- té), Manoel Vieira Tosta (depois mar- quez de Muritiba), Francisco Gê Acayaba Montezuma (depois visconde de Jequiti- nhonha), Bernardo Pereira de Vascon- cellos, Theophilo Benedicto Ottoni, Ho- norio Hermeto Carneiro Leão (depois marquez do Paraná), Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Antônio Carlos Ri- beiro de Andrada. Quem se dér á canseira de consultar os Annaes da Câmara verá que foi desta- cada a intervenção de Pontes Visgueiro nos trabalhos legislativos. Na sessão de 20 de maio de 1840, pronunciou elle longo discurso, de cunho independente, combatendo a politica do ministério, em geral, e, em especial, a sua actuação em Alagoas, bem como certos actos administrativos dos occupantes de cada uma das pastas. Advertira, de inicio: — "Só quero estar bem com mi- nha consciência e não com governoalgum — declaro-o alto e bom som. Eu disse, desde a O CASO PONTES VISGUEIRO 13 primeira vez em que me sentei na casa: ninguém se fie em mim, hei-de só votar por aquillo que fôr justo; nada ha contra a minha maneira de pensar que me obri- gue a fazer o contrario." ( A N N Á E S do cit. anno, pags. 381-396). Noutra sessão, ruidosissima e memo- rabilissima, dera o deputado alagoano prova convincente da sua energia. Vale a pena demorar um pouco a attenção no epi- sódio. — Foi a 20 de julho do mesmo anno. Pretendia-se, naquelle dia, evitar debate acerca da ardente questão da maioridade do Imperador. Não estavam por isto os propugnadores da importante providen- cia, considerada imprescindivel para a acalmação das paixões e, quiçá, para man- tença da monarchia. Assim falou o deputado Antônio Na- varro de Abreu, representante de Matto Grosso: "Sr. Presidente, não sei o que me parece a maneira insólita por que, em objecto de tanta trans- cendência, quando a attenção pu- 14 EVARISTO DE MORAES blica, quando nós todos estamos dominados pelo enthusiasmo que se tem apoderado de nós na ques- tão da maioridade do Sr. Pe- dro II, porque, digo, ainda com artificios e manobras, uma cama- rilha pérfida quer subjugar-nos ! Eu não sei, senhores, como é que nós havemos deixar de tratar do objecto da maioridade do Sr. Pedro II, para irmos tratar da lei de fixação de forças ! Quem não vê que este resto corrompido e infame de ministério... (muito sussurro)." O PRESIDENTE:— O Sr. deputado está fora da ordem. MUITAS VOZES:— Ordem, ordem. O SR. NAVARRO:—(com vehemen- cia) Estou na ordem; bem sei que estou falando sobre a urgência, mas ás vezes escapam expressões mais fortes. Quem não vê, senhores, que é essa camarilha prostituída que quer embaraçar com adia- mentos, com commissões, com a presença do ministro e com tudo mais, esta dis- cussão ? Por ventura, elles ainda se acham O CASO PONTES VISGUEIRO 15 com força para obstar á maioridade de Sua Magestade ? U M SR. DEPUTADO:— Não. O SR. NAVARRO:— Por ventura ainda temos governo ? Nós não temos go- verno; não é possível mais hoje uma com- binação ministerial com o actual regente; não é possível. Elles o atraiçoam... (vi- rando-se para o Sr. Honorio): Sim, vós atraiçoais, e esta é a causa de vossa der- rota. O SR. PRESIDENTE:—Isto não está na discussão. O SR. NAVARRO (para o Sr. Hono- rio): (2) Vós atraiçoastes o vosso com- panheiro fiel, o chefe da administração de 19 de setembro. . . Vós atraiçoastes para cumulo de vossa infâmia. .. MUITAS VOZES:— Ordem, ordem. O SR. PRESIDENTE:— O Sr. depu- tado está fora da ordem. O SR. N A V A R R O : (levantando a vóz para cobrir a agitação que reina na casa): Sim, vós atraiçoastes a deputação da Ba- hia, vossa alliada fiel. O SR. PRESIDENTE:— O Sr. depu- tado Navarro está fora da ordem. (2) Honorio Hermeto (depois marquez do Paraná"). 16 EVARISTO DE MORAES O SR. NAVARRO:— (com vehe- mencia e dirigindo-se para as galerias): Fora a camarilha ! Viva a maioridade de Sua Magestade Imperial o Sr. Pedro II ! Aos repetidos vivas do Sr. deputado res- pondem os espectadores das galerias agi- tando lenços; quasi todos os Srs. deputa- dos se levantam, á excepção do Sr. Presi- dente, que procura em vão manter a or- dem. O Sr. Navarro, continuando a dar vi- vas á maioridade, leva a mão ao peito e dá um passo para onde está o Sr. Carneiro Leão. Os Srs. deputados, que estavam ao pé do Sr. Navarro, retiram-se apressada- mente, sem sahir do salão, e o Sr. Pontes Visgueiro, abraçando-o pelas costas, le- va-o para outro banco e faz esforços para o fazer sentar. Continuam, entretanto, os vivas a Sua Magestade, dados pelo Sr. Na- varro, acenando com um lenço, vivas res- pondidos e repetidos muitas vezes pelos espectadores das galerias. No meio desta scena de confusão e tumulto, ouve-se constantemente a vóz do Sr. Presidente, que procura, mas em balde, restabelecer a ordem. Os gritos de ordem, silencio, par- tem de todos os lados. O Sr. Penna toca a campainha. O Sr. Limpo recommenda ao Sr. Presidente que não levante a sessão. O Desembargador José Cândido Pontes Visgueiro O CASO PONTES VISGUEIRO 17 Muitos Srs. deputados gritam para os es- pectadores das galerias que se conte- nham e se conservem silenciosos. Depois de algum tempo, restabelece-se finalmen- te a ordem, e os Srs. deputados sentam-se. Entre parenthesis:— é ou não é ad- mirável a maneira descriptiva do chro- nista official ? Dá ou não dá a impressão de uma reportagem do nosso*tempo ? Prosigámos, porém, na transcripção fidelissima dos A N N Á E S . O SR. C A R N E I R O L E à O : — Senho- res, si não queremos dar um exemplo ter- rível ao paiz, devemos pôr termo a estas scenas escandalosas. O Sr. deputado não está em estado de deliberar, o Sr. depu- tado deve soffrer um exame, Sr. Presi- dente, é necessário calma, é necessário que a nossa deliberação não appareça co- m o arrancada pela violência. O Sr. depu- tado metteu hoje a mão no seio, como ti- rando um punhal; ha muitos dias que o Sr. deputado não emprega senão insultos, que o Sr. deputado anda com uma faca. Elle diz em publico: quero dar uma bofe- tada em fulano, e depois acabal-o a faca- das. O SR. N A V A R R O : — O nobre depu- 2 18 EVARISTO DE MORAES tado é que me prometteu facadas; eu é que fui ameaçado. O SR. CARNEIRO L E à O : — Ainda hoje varias pessoas viram que elle estava mostrando um punhal. Eu não tinha pu- nhal na mão, nem dei vivas desentoados... E continuou a commentar o que se passara. A propósito do incidente, falou outro deputado, dirigindo-se ao Presidente. O SR. BARRETO PEDROSO:— Pedi a palavra pela ordem e é pela ordem que falo. V. Ex. disse em sua defesa que tinha procurado manter a ordem; entre- tanto, a ordem por mais de uma vez tem sido perturbada de uma maneira gravís- sima, bastante escandalosa. Senhores, eu não tenho medo de sacrificar a minha existência quando deste sacrifício prove- nha alguma utilidade ao paiz, porque te- nho obrigação de dar a vida por elle, e já a tenho arriscado para este fim, mas não estou disposto a barateal-a, quando desse sacrifício não provenha utilidade publica. Entretanto, vimos, um deputado, vizinho deste banco, ameaçando com um punhal ! Mão violenta se alçou sobre um depu- tado pacifico que se sentava do meu lado esquerdo; recebi-o em meus braços, e vi- O CASO PONTES VISGUEIRO 19 me na necessidade de retirar-me para de- fender a minha vida.. . E continuou o deputado Pedroso a tocar a mesma tecla, censurando o proce- der do collega Navarro. Foi quando se er- gueu Pontes Visgueiro. Ouçamol-o: — "Pedi a palavra pela ordem para dizer alguma coisa sobre duas proposições do Sr. Carneiro Leão e do Sr. Barreto Pedroso; elles quizeram dizer que o deputado Sr. Navarro tinha puxado um punhal ! Ora, senhores, parece que a Câmara se lembrará de que quem foi pegar no Sr. Navarro fui eu; estava longe delle dois passos, e tomei este expediente porque os Srs. deputados fugi- ram do Sr. Navarro; mas os no- bres deputados hão-de convir que isto não foi senão um terror pâ- nico, porque eu que o fui agarrar achei que elle puxava do seio um lenço com que depois acenou para as galerias." O SR. N A V A R R O : — Apoiado. O SR. PONTES VISGUEIRO:— "Como é que elle, com um lenço na mão, 20 EVARISTO DE MORAES tinha u m punhal empunhado ? Declaro que peguei no Sr. Navarro immediata- mente que vi fugirem os outros, e não lhe vi punhal. Eu não defendo; não affirmarei que o Sr. Navarro ou algum outro, menos eu (abrindo a casaca) não traga punhal para a casa; mas, si se desse uma busca aqui, ha 18 ou 15 dias, vêr-se-hia quemtrazia o punhal; não era o Sr. Navarro. O Sr. Navarro é impetuoso, é capaz de ir a mãos, mas punhal não traz. Estou na ri- gorosa obrigação de defender o Sr. Na- varro nesta parte; quanto ao mais, não approvo; porque, posto que a casa saiba qual é a minha opinião a respeito da maio- ridade, todavia não a quero por estes meios, não a quero por meio de vivas aqui dentro do recinto da Câmara." (ANNÁES de 1840, pags. 312 a 317). Não foi, cremos, ociosa a rememora- ção do episódio parlamentar. O que elle offerece de prestante para a psychologia de Pontes Visgueiro, (pelo menos na- quella phase da sua vida publica) não terá escapado á perspicácia dos leitores. Re- vela, de par com a sua bravura pessoal, a serenidade com que sustentava as suas opiniões, não as querendo vencedoras pela violência. O CASO PONTES VISGUEIRO 21 Na legislatura de 1843 a 1844 veio elle, de novo, eleito por Alagoas, tendo, já, no seu activo politico os votos favorá- veis á Maioridade e desfavoráveis á Inter- pretação do Acto Addicional e á lei reac- cionaria afinal promulgada a 31 de de- zembro de 1841. Retomando as funcções judiciarias, foi juiz de direito na provincia do Piauhy, durante nove annos, de 1848 a 1857. Quando ascendeu ao cargo de desem- bargador, com exercicio no Maranhão, es- tava totalmente surdo. Comprehende-se como se lhe tornara difficil, para não di- zer impossivel, seguir os debates e respon- der aos collegas. Informado o Governo, foi encontrada a solução, que se concretisou na seguinte carta, dirigida a Pontes Visgueiro pelo ministro da Justiça, Sayão Lobato: — "Sabendo dos embaraços que V. Ex. sente na discussão dos feitos da Relação por causa da surdez de que tem sido acommet- tido, lembrei-me de conciliar es- sa deplorável circumstancia com o serviço da administração da justiça, propondo a sua nomea- 22 EVARISTO DE MORAES ção para o lugar de fiscal do Tri- bunal do Commercio dessa pro- víncia, onde, me parece, os bons serviços de V. Ex. podem ser aproveitados sem a mesma diffi- culdade que experimenta na Re- lação. Communicando a V. Ex. este acto, que o Governo Imperial acaba de decretar, e a razão que o ditou (acto que concilia, como é possível, o serviço publico com o bem estar de um digno magis- trado), eu renovo os protestos de estima e consideração com que sou de V. Ex. amigo, collega e attento criado.—Francisco Paula de Negreiros Sayão Lobato, Corte, 3 de novembro de 1861." Dez annos depois, em documento of- fícial, o presidente do Tribunal do Com- mercio do Maranhão, desembargador Ma- noel de Cerqueira Pinto, attestava que o seu collega Pontes Visgueiro vinha exer- cendo os cargos de fiscal e de adjuncto do Tribunal, com distincção, por ser magis- trado intelligente e probo. Isto quanto á vida publica. O CASO PONTES VISGUEIRO 23 No tocante á particular, até meiado de 1872, não constavam, na capital mara- nhense, factos que pudessem escandali- sar aquella sociedade provinciana. Conti- nuava o desembargador celibatario. Ti- nha, porém, familia, em S. Luiz: uma fi- lha natural, reconhecida, casada com o desembargador Basilio Quaresma Tor- reão, e duas netas, já casadas, tam- bém. (3) Não foi sem pasmo que se veio obser- vando o procedimento do velho magis- trado nas suas relações amorosas com Ma- ria da Conceição, rapariga de costumes hcenciosos, precocemente prostituída e explorada pela própria mãe. E m junho de 1872, quando Pontes Visgueiro — que a conhecera creança, pe- dindo esmolas pelas ruas — encetou aquellas relações, estaria ella com 15 ou 16 anncs. Já grangeára, segundo o dizer de testemunha fidedigna, o appellido de Mariquinhas Devassa. . . E tudo indica que bem o merecera. O desembargador não fazia mysterio da- quelles extranhos amores; antes, os ex- (3) Basilio Torreão tinha sido deputado na legislatura de 1838 a 1841, representando a província do Rio Grande do Norte, e, na Câmara, estreitara amizade com Pontes Visgueiro. 24 EVARISTO <DE MORAES hibia, com todas as suas características de paixão desvairada e surtos freqüentes de atroz ciúme. Visitava Maria da Conceição a Pon- tes Visgueiro, quer de dia, quer de noite. Não raramente, dormia em casa delle. E elle não se vexava de procural-a nas casas de companheiras de devassidão, para onde ella marcava encontros com diversos amantes. Pelo que se deprehende do pro- cesso, a mãe-proxenêta, tirando proveitos seguros da amasiação da filha com o rico desembargador, reprovava as outras liga- ções. . . Demais, as manifestações de amor e de zelos por parte de Pontes Visgueiro eram tamanhas que Luiza Sebastiana de Carvalho, mãe de Mariquinhas, tinha mo- tivos para crer que elle se casasse com a filha ! Si delle ouvira phrases como esta, dirigida á rapariga: — "Minha filha, con- serva-te por uns dias que eu caso com- tigo"... Havia mais de uma scena de ciúmes augmentado a publicidade daquella união vergonhosa. Commentadissima fora a succedida em outubro de 1872, por occasião da festa de Nossa Senhora dos Remédios, quando O CASO PONTES VISGUEIRO 25 o desembargador, encontrando Mariqui- nhas a conversar com um official do Exer- cito, atirou-se a este, em louca exaltação. Conseqüências: Mariquinhas, apavo- rada, foi passar a noite num hotel e Pon- tes Visgueiro, sósinho, passou-a na casa delia. E m começo de 1873, exasperado por maiores abusos, inclusive o furto d'algu- mas centenas de mil réis, praticado na sua residência, pensou Pontes Visgueiro na applicação de uma surra na amante, en- carregando o tenente Antônio Feliciano Peralles Falcão — typo acabado de pa- rasita social — de arranjar quem exe- cutasse o. . . serviço. (4) Pouco depois, resolveu pedir licença, indo visitar amigos em Piauhy. A' propó- sito, depoz o negociante Ricardo de Souza Dias, casado com uma das suas netas. (5) — "Cedendo a admoestações da familia, de amigos e ao seu (4) Eis a sua qualificação constante do inquérito: "Perguntado qual o seu nome, sua idade, naturalidade, estado e profissão ?_ Respondeu chamar-se Antônio Feliciano Pe- ralles Falcão, ter idade de cincoenta e nove annos, casado, natural do Maranhão, filho do cirurgião- mór Manoel Rodrigues da Silva Sarmento, e que vive de suas agencias." (5) A outra neta era casada com Ignacio Frazão da Costa. 26 EVARISTO DE MORAES próprio impulso, realizou uma viagem ao centro do Piauhy para o fim de esquecel-a. Durante o decurso da viagem por terra, vol- tava o animal, que cavalgava, para retroceder; mas teve força de suffocar a paixão, e conti- nuou." Partindo em abril, deixara o desem- bargador recommendadas as despezas de Maria da Conceição e de Luiza Sebas- tiana. Voltou a S. Luiz a 30 de julho. Re- novaram-se os encontros e as dormidas de Mariquinhas na casa delle. Não voltara só o desembargador; trouxera, sem ne- cessidade apparente, como empregado, o pardo Guilhermino, homem forte, de 30 annos de idade. Logo nos primeiros dias de agosto, praticou Pontes Visgueiro actos que vere- mos apontados como outros tantos indí- cios de premeditação criminosa. Encommendou ao funileiro Antônio José Martins de Carvalho um caixão de zinco e ao mestre carapina Boaventura Ribeiro de Andrade um caixão de cedro. Por esta fôrma referiu o facto Martins de Carvalho, depondo em juizo: O CASO PONTES VISGUEIRO 27 "Pelo réo foi-lhe encommen- dado o caixão de zinco em que foi posto o corpo da assassinada, o que affirma por ter visto e re- conhecido dito caixão na Secre- taria da Policia; o caixão era im- permeável, por isso que o réo, depois de o haver recebido, fel-o voltar, afim de tapar todo e qual- quer orifício; o preço do caixão foi de 18$640." Narrou o mestre carapina o seguinte:— "No dia Io de agosto de 1873, o desembargador Visgueiro lhe encommendára um caixão de 5 palmos de comprimento, 2 de largura ei 1|2 de altura, para que ficasse prompto no mesmo dia, pois queria utilisal-o na remessa de alguns volumes para fora. Não o podendo apromptar em tão pouco tempo, ficou convencio- nado que, no dia seguinte, a tes- temunha o mandaria levar á ca- sa do funileiro Carvalho, o que fez. Alguns dias depois, foi-lhe devolvido o caixão para cortar pouco mais ou menos duas polle- gadas no comprimento e uma na 28 EVARISTO DE MORAES altura, o que fez apromptar sem demora, por haver o desembar- gador Visgueiro zangado, exi- gido pressa. Depois, viu na poli- cia esse caixão, que reconheceu, embora esbandalhado, e que era o mesmo que contivéra o cadá- ver de Maria da Conceição." Accresciam duas circumstancias, communicadas pelo chefe de policia de Piauhy: — em Therezina adquirira o des- embargador certa quantidade de chloro- formio e pretendera fazer fabricar um cai- xão em determinado estabelecimento de instrucção profissional. Verdade é, porém, que, como o reco- nheceram a mãe e as companheiras de Maria da Conceição, continuaram sem in- cidentes as relações delia com o desem- bargador, até o dia 10 de agosto. Nesta data verificou-se um facto por vários mo- tivos interessante. Exposto por testemunha intimamen- te ligada a Maria da Conceição, deixa en- trever a vida torturada do homem que a paixão prendera á precoce prostituta. Textualmente, diz o depoimento judicial de Anna Rosa Pereira, de 19 annos de idade, costureira: O CASO PONTES VISGUEIRO 29 "Suas relações com Maria da Conceição habilitam-n'a a in- formar que ella era de uma vida inteiramente livre; o desembar- gador Visgueiro, seu amante, tra- trava-a muito bem, pagava-lhe aluguel de casa e dava-lhe di- nheiro para outras despezas; quando elle foi para Piauhy, dei- xou ordem para se pagar o alu- guel da casa em que morava a mãe delia; logo no dia em que voltou, ella dormiu em casa delle, e depois desse dia até 14 de agos- to de 1873, dormiu com elle va- rias vezes; o desembargador sempre andava brigando com ella por ciúmes, briga que, entretanto, não excedia de um ou dois dias. No dia 10 de agosto, a testemu- nha, achando-se na porta de sua casa, á 1 hora da tarde, mais ou menos, sentada de costas para a rua, foi surprehendida pelo des- embargador que, dando um pulo sobre sua cabeça, entrou em casa, havendo apenas tempo para gri- tar, avisando Maria da Concei- ção, que ahi se achava com o es- 30 EVARISTO' DE MORAES tudante Costa; o estudante cor- reu para a varanda e ella metteu- se embaixo da cama, no quarto em que estavam. O desembarga- dor buscou o estudante, deu-lhe conselhos e mandou-o embora; dirigiu-se a Maria da Conceição, pediu-lhe que sahisse de debaixo da cama por causa da humidade, pois elle não pretendia fazer-lhe mal, mas ella, que estava nua, não accedeu ao pedido, e o des- embargador foi-se embora." Qualquer commentario a este depoi- mento nada accrescentaria ao seu valor, como expressivo da situação deprimente a que fora arrastado Pontes Visgueiro. Deante delle ganhariam credito, si já não o possuíssem pela condição dos depoen- tes, os testemunhos (tomados a requeri- mento do desembargador) do tenente-co- ronel José Carlos Pereira de Castro, con- tador da thesouraria da fazenda do Ma- ranhão; do secretario do Tribunal da Re- lação, Adriano Augusto Bruce Barradas; do Io conferente da Alfândega, Francisco Gaudencio Sabbas da Costa. U m o des- crevera "já maior de 60 annos, e em tão O CASO PONTES VISGUEIRO 31 vantajosa posição social, correndo pelas ruas atraz de Maria da Conceição, mulher de costumes os mais depravados"; outro tinha conhecimento de actos de verda- deira loucura praticados pelo desembar- gador, que chegara a fazer promessa de casamento á amante; ainda outro obser- vara Pontes Visgueiro a beber cognac re- petidas vezes, para se atordoar, "inteira- mente apaixonado pela mulher perdida, que era Maria da Conceição." Idêntica expressão têm, ainda, dois trechos das declarações policiaes da ci- tada Anna Rosa Pereira. Depois de haver referido que, antes de partir para Piauhy o desembargador, ia Maria da Conceição dormir, quasi todas as noites, na casa delle, fazendo-se sempre acompanhar de outra rapariga, e que pernoitavam todos no mesmo quarto, explicou: — Maria e a companheira deitavam-se, mas o desembarga- dor levava toda noite acordado, passeando pelos diversos apo- sentos da casa, e, de vez em quan- do, se ajoelhava junto ao leito de Maria, permanecendo em con- templação das suas fôrmas." 32 EVARISTO DE MORAES NOTA ADDENDA Pessoa contemporânea dos factos e conhecedora de circumstancias que o pro- cesso não podia esclarecer forneceu-nos alguns informes acerca do estudante com quem o desembargador surprehendêra Maria da Conceição, quatro dias antes do crime. O rapaz (que se chamava Joaquim Pinheiro da Costa e chegou a bacharelar- se em Direito e advogar no Rio de Janei- ro) era, áquelle tempo, alumno do Colle- gio da Immaculada Conceição, em S. Luiz, tendo, por condiscipulos, entre outros, os futuros próceres políticos Urbano dos Santos e Benedicto Leite, o professor He- meterio José dos Santos e Gabriel Henri- que de Araújo, este filho de um fazendeiro de Piauhy e afilhado de Pontes Visguei- ro. Costumava o desembargador visitar o Collegio, conversando, sobre os estudos, com os alumnos, por meio de uma ardosia, em a qual escrevia as perguntas e recebia as respostas, dada a impossibilidade de proceder por outra fôrma, tão surdo elle era. O encontro de Pontes Visgueiro com o estudante Costa foi, logo, conhecido por >:*w : •-. Maria da Conceição O CASO PONTES VISGUEIRO 33 seus collegas, não só porque eram já sabi- das as relações delle com a amante do desembargador, como, também, porque voltara para o Collegio em ceroulas e ca- miseta, e só calçado de meias. Diverge do que consta dos autos a informação em dois pontos: — o facto te- ria acontecido á noite, e não á hora allu- dida pela testemunha Anna Rosa Pereira; outrosim, o rapaz teria sido castigado com puxões de orelha e cascudos, e obrigado a fugir naquellas ridículas condições. A menos que se tivessem dado dois encontros da mesma espécie... 3 II O CRIME Embora já tivessem occorrido factos semelhantes ao do dia 10 de agosto e os protestos violentos do velho amante tra- indo durassem, apenas, algumas horas, não realizando elle as ameaças feitas, fi- cara a infidelissima Maria da Conceição, daquella vez, mais apprehensiva do que nunca. Convidada, com insistência, para a casa do desembargador, lá não fora, até o dia 14, quinta-feira, cerca de duas horas da tarde, quando ali entrou em compa- nhia da joven amiga e comadre Thereza de Jesus Lacerda, com quem morava. Ser- viram-se de doces; depois, mostrou Pon- tes Visgueiro desejo de permanecer a sós com Maria da Conceição, a quem disse, 36 EVARISTO DE MORAES pretendia offerecer um presente. Descon- fiada, puxava a rapariga pelo vestido de Thereza, afim de que não a deixasse, mas o desembargador teimava, e as duas se separaram, marcando encontro para a oc- casião de jantar. Thereza viria buscar a comadre. Foi ter, então, Visgueiro com Gui- lhermino Borges, recente empregado, tra- zido de Piauhy. Aproveitemos a narração de Guilhermino, porque não foi desmen- tida por nenhum outro elemento de con- vicção : — "Em uma quinta-feira de agosto, desceu o desembargador as escadas, foi procural-o a um quarto do pavimento térreo, onde estava deitado em uma rede, e disse-lhe: "Guilhermino, quero dar uma surra em uma mulher e quero que a agarres,porque que- ro amordaçal-a e dar-lhe uma sova, por me ter feito muitos desaforos." Nada respondeu-lhe. O desembargador subiu. Pouco depois de uma hora, voltou, e dis- se-lhe: "a mulher está ahi, acom- panha-me". Sahiram do quarto, O CASO PONTES VISGUEIRO Í7 e, ao subirem a escada, o desem- bargador mandou que elle tirasse as botinas e andasse de mansi- nho, atraz delle. Guiou-o o des- embargador até um quarto, onde se achava uma moça sentada em um bahú, e, agarrando-a com a mão esquerda pela guélla, com a direita puxou uma toalha, que estava em um armário, lançou-a na bocca da moça, dizendo: "Eu não te disse que te dava um co- nhecimento ?" Esta moça era Maria da Con- ceição. Por ordem do desembar- gador, a testemunha segurou com a mão direita a toalha, que estava na bocca da moça, e com a esquerda o seu hombro. Metteu o desembargador a mão no bolso, tirou um vidro, que desarrolhou com a bocca, e derramou o liqui- do, que continha, sobre o nariz de Maria da Conceição. Ella desfal- leceu. Nisso, o desembargador mandou que elle se retirasse, e fosse vêr si havia gente no corre- dor. Fechou a porta do camarim, á chave. Voltando para commu- 38 EVARISTO DE MORAES nicar que não havia gente no cor- redor, ouviu barulho de bater de pé e ouviu dizer: "Meu bem, não me mates.— Não te dizia sempre que me havias de pagar ?". De- pois, foi, pouco a pouco, cessando o barulho, abriu-se a porta e ap- pareceu-lhe o desembargador com um punhal na mão, todo en- sangüentado, dizendo-lhe: "Gui- lhermino, a raiva foi tamanha que não pude deixar de matal-a; agora, vamos tratar de encobrir o crime". Achava-se elle nos trajes com que havia entrado no quar- to, em mangas de camisa, com calça de riscado. Mandou que pe- netrasse no quarto. Viu Maria da Conceição estirada no meio do soalho com os pés para a porta e a cabeça para a parede. O des- embargador foi sobre ella, mor- deu-a no peito e deu-lhe uma pu- nhalada no lado opposto ao em que ella já tinha outra, e ella ainda abriu a bocca. Puxou o desembargador um caixão gran- de, que estava ali encostado, e os O CASO PONTES VISGUEIRO 39 dois lançaram o cadáver dentro, o qual ficou com as pernas da parte de fora e a cabeça um pou- co inclinada. Tendo elle ido bus- car, por ordem do desembarga- dor, uma lata de cal, que estava na sala de jantar, e comprar, com 2$000, que elle lhe deu, solda e ferro de soldar, encontrou, vol- tando, a perna do cadáver amar- rada á coxa com uma corda, que, depois, o desembargador cortou para pôr a perna em condições de decepal-a, como o fez, afim de melhor arrumar o cadáver no cai- xão, o que feito, enterrou um trinchete no ventre do cadáver." Até aqui temos a impressionante nar- ração do co-autor do crime. (6) Reconstituamos o que succedêra de- pois. (6) Guilhermino fora inquerido no inquérito nada menos de quatro vezes, e suas declarações, cada vez mais minuciosas, não divergem, fundamentalmente, do depoi- mento judicial que reproduzimos no texto. Ha, apenas, a assignalar que em juizo elle procurou diminuir, de muito, a sua participação no crime. Damos, em nota addenda, no fim do capitulo, as ultimas declarações de Guilhermino no inquérito. Pintam, mais ao vivo do que o depoimento ju- dicial, o que realmente se passara, e explicam certas cir- cumstancias só em apparencia contradictorias. 40 EVARISTO DE MORAES Conseguindo introduzir o cadáver, horrivelmente mutilado — conforme o comprovou o auto de corpo de delicto — no caixão de zinco, soldou-lhe Pontes Vis- gueiro, tant bien que mal, a respectiva tampa, encerrando-o no caixão de cedro. Retirando-se do sinistro gabinete, preparou-se para um jantar festivo em casa do genro, seu collega Torreão. De- veria comparecer, também, o presidente da província, Dr. Silvino Elvidio Carneiro da Cunha. Foi, effectivamente, seriam quatro horas, e manteve-se, naquelle meio familiar, sem quaesquer signaes de per- turbação ou inquietação, até cerca de 10 horas da noite. Havia, antes de ir para casa do genro, mandado chamar Amancio da Paixão Cearense á sua casa. Tal como procedemos com o de Gui- lhermino, ajudemo-nos com o depoimento do prestimoso compadre. Nenhum outro se nos afigura mais elucidativo da tragédia. Perguntado pelo nome, idade, estado e profissão, respondeu: — "Amancio José da Paixão Cea- O CASO PONTES VISGUEIRO 41 rense, 40 annos, casado, negociante ma- triculado. (7) "Perguntado o que sabe a respeito do facto dado em casa do desembargador Visgueiro, de cuja instrucção se trata ? Respondeu que na segunda-feira da semana atrazada, mais ou menos, recebeu um convite de seu amigo e compadre, o desembargador Visgueiro, para lhe falar, e, indo á sua casa, este, abraçando-o, con- vulso, lhe disse que poderia ter precisão de seus serviços, e perguntou-lhe se podia contar com elle. Precedendo uma resposta affirmativa, desejou saber o meio de po- del-o encontrar com facilidade, ao que, accedendo elle interrogado, deu um car- tão, sobre o qual o desembargador escre- veu seu próprio nome por extenso, e lhe disse, que, na occasião em que recebesse aquelle cartão, viesse, porque era signal de que precisava de seus serviços. Estra- nhando o estado de exaltação em que en- controu o desembargador, e receiando que alguém lhe houvesse dado, e que elle pre- cisasse vingar-se, tratou de prevenir ao desembargador Torreão, e depois de o (7) Era Amancio cstahelecido com funilaria na rua Grande, actualmente rua Oswaldo Cruz, no prédio em que, depois, esteve a "Pharmacia Garrido" e actualmente existe unia loja de fazendas, do syrio João Miguel. 42 EVARISTO DE MORAES pôr ao facto do que se havia passado, pro- curou a policia e com o seu chefe enten- deu-se também a respeito. Sahindo d'ahi, e de accordo com a autoridade, foi em busca de Mariquinhas, no intuito de saber o que poderia haver. Encontrou-a na praia de Santo Antônio, no meio de um grupo de raparigas, e, chamando-a de parte, lhe disse: "venho encarregado de uma com- missão especial; quero saber o que houve com o desembargador e si se tem de re- ceiar qualquer desgraça"; respondeu-lhe Mariquinhas que nada havia, que dias an- tes estava ella em casa com um estudante de nome Costa, e que na occasião em que estavam juntos, ouviram dizer na porta da rua que elle ahi vinha. De facto, apre- sentou-se immediatamente o desembar- gador Visgueiro e com a sua apparição, o collegial Costa metteu-se debaixo da ca- ma, e ella fugiu para o quintal. O desem- bargador, indo a procurar no quintal, trou- xe-a para dentro de casa e prescrutando os aposentos desta, encontrou o collegial Costa debaixo de uma cama, de onde o ti- rou pelas orelhas e no meio do aposento admoestou-o, dizendo-lhe que não vol- tasse áquelles logares, que era muito criança e não se perdesse e que elle nada O CASO PONTES VISGUEIRO 43 lhe fazia, porém, advertia-lhe para que elle se emendasse. Narrada, assim, a oc- correncia havida entre Mariquinhas e o desembargador, elle interrogado socegou, e propôz a esta a sua partida para o Rio de Janeiro, ou para qualquer outra capi- tal, onde o meio de vida que ella levava é mais prospero e lhe podia abrir melhor fu- turo. Por essa occasião, disse-lhe que ella teria uma passagem d'Estado, se lhe for- neceriam os meios necessários para ella ter roupa decente e até de luxo; e á obje- cção, que apresentou, de ficar sua mãe ao desamparo, respondeu que se lhe poderia arranjar uma pensão. E m vista destas pro- messas, Mariquinhas annuiu em partir. Concluida que foi esta conferência, elle interrogado procurou o chefe de policia, ás 10 horas da noite, e communicou o re- sultado de sua missão, dizendo-lhe que nada havia, que a menina seguiria, e dei-xou o mesmo chefe socegado, como elle próprio o estava. Ao sahir desta conferên- cia, dirigiu-se á casa do desembargador Torreão — nessa mesma noite, que foi quarta-feira — tranquilisou-o, narrando- lhe toda a conversa que tinha tido com Mariquinhas. Com o espirito socegado, passaram dias, quando esse socego foi in- 44 EVARISTO DE MORAES terrompido, na quinta-feira da semana ultima, dia em que, chegando elle interro- gado á casa, já noite, entregaram-lhe duas cartas, das quaes uma era das Sras. Abran- ches, que o convidavam para o seu con- certo, outra era do desembargador Pontes Visgueiro, que lhe dizia ter necessidade dos seus serviços, como lhe havia pedido, e que precisava muito falar-lhe, das 10 ás 11 horas da noite. Que embora muito can- çado, pois que acabava de um diverti- mento, ignorando para que o desembarga- dor poderia desejar falar-lhe, foi á casa do chefe de policia, e mostrou-lhe a carta, nada, porém, dizendo a respeito do que se tratava; vae depois á casa do desembar- gador Torreão, previne-o também de que tinha sido chamado; pergunta-lhe mesmo si o Visgueiro lá estava, e dirige-se para casa deste. Ahi chegando, perguntou ao preto Luiz por seu senhor, e dizendo-lhe este que ainda não o tinha visto, dirigiu- se a quatro mulheres que estavam assen- tadas defronte da casa, e lhes perguntou o que ahi faziam. Responderam ellas que iam embarcar para Vinhaes, ao que elle interrogado replicou que a maré estava ainda muito baixa e ahi ficou em conversa com ellas. Chegando pouco tempo depois O CASO PONTES VISGUEIRO 45 o desembargador Visgueiro, com quem el- le interrogado conversou, dirigiu-se ás mulheres e perguntou-lhes o que era feito delia. Ditas estas palavras pelo desem- bargador, subiram elle interrogado e este para o andar superior da casa, e chegados que foram á sala de jantar, disse-lhe o des- embargador que se puzesse á fresca, o que elle interrogado fez, sacando o paletot e ficando em mangas de ca- misa. Sentado em uma cama e neste vestuário permanecia elle interrogado, que até essa hora ignorava completamen- te tudo quanto se havia passado, e até mesmo si Mariquinhas havia desappare- cido; notava, entretanto, a posição affli- ctiva do desembargador, seus passos rá- pidos por todos os aposentos, e, em ma- dura contemplação estava, quando curva- se perante elle o seu velho amigo e com- padre e afflicto se chama desgraçado e lhe roga que o salve. Depois de lhe haver elle dito estas palavras, pergunta-lhe de que se trata, e o velho desembargador lhe confessa que havia apunhalado a sujeita. Com tão triste quão inesperada noticia, elle interrogado atira o chapéo que tinha na cabeça no chão, e, chamando-lhe mise- rável, coJloca a fronte sobre os pulsos, e 46 EVARISTO DE MORAES lastima comsigo não ter podido salvar a rapariga, por ter a carta lhe chegado ás mãos tão tarde, pois sabia só então a no- ticia e já ella era cadáver. Entretanto, a amizade que tributava ao desembargador lhe faz pensar que era chegada a occasião de lhe ser útil, este lhe pedia que o salvasse e entre a necessidade de auxilial-o e o horroroso da posi- ção estranha em que se achava collocado, meditava ainda, quando o desembargador lhe pergunta si porventura havia-lhe fal- tado o animo; elle interrogado lhe res- ponde que não, e lhe pergunta o que que- ria. Então, o desembargador, chamando-o para uma saleta contigua á sala de visi- tas, e que se achava quasi ás escuras, lhe mette um ferro na mão, na outra dá-lhe outros objectos e lhe diz: "aqui está a sol- da", e o convida para pegar no caixão, o que elle fez, e, auxiliado pelo desembarga- dor, trouxe o caixão para a sala de jantar. Ahi reconheceu elle que o ferro que tinha na mão era uma tesoura, «s, tendo lhe dado o desembargador carvão e um fogareiro de barro, pediu-lhe que fizesse a solda. Elle interrogado, que ainda ignorava o que continha o caixão e não podia vêr, metteu a mão dentro e sentiu alguma cou- O CASO PONTES VISGUEIRO 47 sa que lhe fez desconfiar, sem, entretan- to, lhe dar noticia da triste verdade. Ten- do de virar a tampa notou que esta estava um pouco suada, o que lhe fez augmentar a desconfiança. Lutava ainda entre o de- ver da amizade, e o desejo de não ter par- te em cousa que lhe causava tanta repu- gnância. Sua posição, porém, se havia tor- nado mais critica. O desembargador ha- via fechado a sahida dos aposentos do andar superior, estava a sós com elle; an- dava rapidamente e sem destino por to- dos os aposentos da casa, e de quando em vez descia para o pavimento térreo e lá dizia alguma cousa. Pouco depois, ouve barulho em baixo, sente mesmo que o al- çapão se abre, desconfia, e sua imagina- ção se persuade que sua existência pode- ria correr risco; trabalha, então, com mais actividade, quer espaçar o trabalho para o outro dia, pretexta que o ferro de soldar não está convenientemente preparado e que era mister limal-o; o desembargador lhe apresenta limas, e forçoso foi conti- nuar no trabalho. Para logo, o desembar- gador lhe pergunta se com effeito o tra- balho estará acabado até de manhã e lhe pergunta se elle desanima, ao que res- ponde que não. Felizmente, o trabalho 48 EVARISTO DE MORAES chega a seu termo, e ás quatro horas es- tava terminado. Era occasião de sahir e elle immenso o desejava, mas o desem- bargador não lhe quer consentir e insta para que tome café; a recusa segue ao of- ferecimento, e o desembargador continua a instar para que elle se utilisasse do café. Esta insistência o faz ainda descon- fiar mais, e, então, sob o pretexto de que tinha necessidade de ir com Gil, seu filho, ao Anil, consegue a sua sahida. Passa-se o dia de sexta-feira, nas at- tribulações de espirito que tão extraordi- nária occorrencia lhe deveria suscitar. A' noite volta para sua casa, não pôde conci- liar o somno. Pela manhã, quando, recos- tado sobre a rede, tendo parte delia co- brindo seu corpo, uma mão lhe tira a rede de cima e, ao abrir os olhos, reconhece o desembargador Pontes Visgueiro, que está na sua vista. Nessa occasião sua mu- lher traz ao seu compadre o seu afilhadi- nho, que estava com um tumor; o desem- bargador ainda aconselha que não o fure, antes deixe vir á supuração; e logo após, estando a sós com elle, o exhorta, em no- me da mais viva amizade, para que o sal- vasse, indo, uma segunda vez, pois lhe parecia que o caixão exhalava mau chei- O CASO PONTES VISGUEIRO 49 ro. Ainda a voz da amizade o faz ir á casa do desembargador, e, ahi chegando, viu pela primeira vez, Guilhermino. Mandou a este que cheirasse por onde sahia o mau cheiro; á medida que este lhe designava um orificio, o soldava. Nessa occasião, desceu o desembar- gador para o pavimento térreo. Sacando do punhal com que ia armado, mettendo-o na manga da camisa, chama a si Guilher- mino, e, com voz de autoridade, lhe per- gunta: "quem era, d'onde tinha vindo, si já tinha servido no Exercito, e si havia sido quem apunhalara aquella infeliz; elle lhe respondeu que tinha vindo do Piauhy, em companhia do desembargador, que, de facto, tinha servido no Exercito, que não a havia apunhalado, mas, sim, que a havia segurado, emquanto o desembargador a apunhalava, e que por este serviço o des- embargador lhe havia promettido cem mil réis. A uma outra sua pergunta sobre o vestuário da infeliz, respondeu-lhe que estava com vestido branco e chinellos ver- melhos, e que, na occasião em que a agar- rou, ella correu, perdeu um chinello e deu um grito. A' subida do desembargador elle in- terrompeu o interrogatório, e estando o 4 50 EVARISTO DE MORAES serviço feito e o caixão de zinco abaulado, o desembargador calcou sobre elle as mãos e ajudou a ser pregado o caixão de madeira. Nessa occasião subia o preto Luiz,que é innocente em tudo isto; e seu senhor disse-lhe que havia lhe promet- tido passar a carta de liberdade. Tal era, porém, a repugnância e o desgosto de que se achava possuído o escravo Luiz, que nem teve forças para pegar no caixão. (8) O desembargador Visgueiro foi bus- car duas cordas de sedenho, e, amarran- do-as nas alças do caixão, disse-lhe que tinha outra idéa, qual era de enterral-o; e, assim amarrando o caixão, o preto e Gui- lhermino pegaram na corda em um dos lados e elle fazendo pegar a outra também pelo desembargador Visgueiro, auxiliou a trasladação para o pavimento térreo. Ali, deixando o desembargador com os seus fâmulos, retirou-se. Declara que a segunda vez que veiu á casa do desembargador foi no sabbado; que no dia de quinta-feira, eíle passou todo dia fora de casa. Jantou (8) Eis o theor da "carta de liberdade", passada pelo desembargador Visgueiro a favor do seu escravo I.uiz: — "Pela presente carta declaro que liberto o meu es- cravo Luiz, crioulo, que arrematei da massa fallida de Pe- dro dos Santos, e pôde gosar da sua liberdade como lhe convier. Maranhão, 17 de agosto de 1873.—José Cândido Pontes Visgueiro." O CASO PONTES VISGUEIRO 51 com o seu compadre e amigo João da Ro- cha Santos, e durante parte da noite pas- sou-a com o seu amigo Pedro José dos Santos, que o havia ido procurar. Declara também que a primitiva idéa do desem- bargador era conservar o caixão no armá- rio da sala de jantar, e, passados seis me- zes, leval-o comsigo para as Alagoas e en- terral-o convenientemente. Tal é a fiel narração deste triste acontecimento, do qual a voz da amizade forçou ser sabedor e hoje lastima profundamente que Deus não lhe permittisse occasião azada de sal- var a vida da infeliz." Não é preciso encarecer a intensidade verdadeiramente dramática destas decla- rações de Amancio. Empolgam, por si mesmas. E são deveras expressivas nos pontos que apropositadamente sublinhá- mos. De uma parte, se sentem as appre- hensões da autoridade publica, na digna pessoa de Miguel Calmon, incumbindo o compadre e intimo de Pontes Visgueiro de afastar, a todo preço, Maria da Concei- ção da cidade de S. Luiz. Por outro lado, tem-se, nitida, a impressão do desespero em que se encontrara o declarante naquel- la noite sinistra. Nem se supponham 52 EVARISTO DE MORAES exaggerados os temores que assaltaram Amancio e se reflectiram em varias das suas attitudes, inclusive na suggestiva recusa de tomar o café offerecido pelo desembargador. De que elle não se arre- ceiava sem motivo foi-nos fornecida pre- ciosíssima demonstração. Contava o historiographo José Ri- beiro do Amaral, contemporaneamente morador em S. Luiz e amigo de Amancio, que este, dias depois de haver sido invo- luntariamente envolvido no caso san- grento de que fora protagonista o seu compadre Visgueiro, tinha sido aggre- dido, por mandado do mesmo desembar- gador, nas proximidades do Campo de Ourique (hoje Parque Urbano dos San- tos) . Voltavam Amaral e Amancio de uma festa, á meia noite, quando se verifi- cou o assalto, armado de faca o mandatá- rio. Refugiaram-se ambos no quartel das forças do Exercito (5o Batalhão de Infan- taria), conferenciando Paixão Cearense com o official de pernoite, que lhe assegu- rou garantia de vida. Saibamos que mulheres eram as com quem falaram Amancio e Pontes Visguei- ro, naquella noite, horas depois do crime, O CASO PONTES VISGUEIRO 53 e o que faziam ellas defronte da casa do desembargador. Temos noticia de três:— Luiza Sebastiana de Carvalho, Thereza de Jesus Lacerda e Adozinda Avelina Bel- leza, as duas primeiras já nossas conheci- das. Eis o que, a respeito, narrou Luiza Sebastiana (mãe de Maria da Conceição) e foi plenamente confirmado pelas outras: — "Quando soube que sua filha não era encontrada depois de ter entrado em casa do des- embargador, dirigiu-se á casa deste e falou com o preto Luiz, que lhe disse que ella ali não es- tava e que o seu senhor, o desem- bargador, tinha sahido para jan- tar fora. A depoente sentou-se, então, defronte da porta da rua da casa do desembargador, onde se lhe juntaram outras mulheres, que andavam á procura de Maria da Conceição. A' noite approxi- mou-se Paixão Cearense da casa do desembargador, falou com o preto Luiz, e, depois, dirigiu-se a ellas. Conversavam quando, ás 10 horas e meia, appareceu o des- embargador, que se dirigia para 54 EVARISTO DÊ MORAES casa. Paixão Cearense foi ter com elle no meio da rua, mas o desembargador disse-lhe: "—Es- pera, que quero dar attenção a estas senhoras." Dirigindo-se á depoente, lançou um joelho em terra, e, levantando as mãos pos- tas para o ar, disse: "Minha se- nhora, nossa filhinha Mariqui- nhas ainda não appareceu ? Res- pondeu-lhe: "Sr. desembargador, tem cara de ainda perguntar por minha filha, quando o senhor já a matou ?" Elle disse que jurava não ter feito tal; que ella estivéra na sua casa, mas sahira ás 4 ho- ras, levando 5$000 para comprar fitas, afim de ir á festa de S. Ma- noel. Depois, o desembargador entrou para casa, com Cearense, fechou a porta da rua; ella per- maneceu, com as outras, no mes- m o logar, e notaram que andava gente no quarto, por causa de pi- sadas e da claridade da luz; de- pois das 3 horas da manhã, reti- ráram-se." Não pararam ahi, entretanto, as dili- gencias da mãe e das amigas de Maria da O CASO PONTES VISGUEIRO 55 Conceição. Ainda na mesma sexta-feira e pela manhã do dia seguinte, foram, varias vezes, á residência do desembargador. Elle as tratava bem, franqueava-lhes toda a casa, abrindo armários, chorava, dava punhadas na cabeça. Aventava, então, a idéa de ter-se a ra- pariga retirado para o Pará. No sabbado occorrêra um facto, cuja narração é imprescindivel. Soccorrámo-nos, novamente, das de- clarações judiciarias de Guilhermino, con- firmadas por Amancio: — "No sabbado, o desem- bargador chamou-o á sala de jan- tar, onde se achava Amancio da Paixão, e indicou-lhe o caixão, Puxou o depoente o caixão do armário, e Amancio aperfeiçoou a solda, feito o que, os três e mais o escravo Luiz, previamente cha- mado, conduziram o caixão para um quartinho do pavimento tér- reo. Retirou-se Amancio. O des- embargador deu ordem ao de- poente e a Luiz para abrirem uma cova no quintal, onde foi enter- rado o caixão, sobre o qual, de- 56 EVARISTO DE MORAES pois, deviam fazer um canteiro, com garrafas, e plantar uma hor- ta. A cova foi aberta, o caixão en- terrado, mas o canteiro não se fez." Porque não se fez o canteiro ? Não houve tempo. No próprio sabbado, 16 de agosto, Thereza, a afflicta comadre de Maria da Conceição, dera denuncia á Policia do ex- tranho desapparecimento da sua amiga. NOTA ADDENDA 4o e ultimo interrogatório policial de Guilhermino — Perguntado se não assistiu ao as- sassinato de Maria da Conceição e como este teve lugar ? Respondeu, que no dia 14 do corrente, elle interrogado, como já disse no seu 2o interrogatório, foi para a saleta próxima á sala de visitas e quando entrou Mariqui- nhas, o desembargador, que atraz delia vinha, agarrou-a pela garganta e tapou- O CASO PONTES VISGUEIRO 57 lhe a bocca com a toalha; mandou que elle interrogado segurasse a toalha emquanto, tirando um frasco com chloroformio, deu- lhe a cheirar por duas vezes. Que, tendo ella cahido por cima de um bahú que es- tava coberto com um capote e adorme- cendo, o desembargador ordenou que se retirasse. Perguntado se a victima não deu gri- tos, antes de ser agarrada, e se não batia com as pernas ? Respondeu, que logo que Mariqui- nhas viu elle interrogado por detraz da porta emparelhar com o desembargador, deu um grito, e foi depois desse grito que elle agarrou-apela guéla e tapou-lhe a bocca com a toalha, agarrando-a elle inter- rogado, pelas espaduas, emquanto o des- embargador lhe applicava o chloroformio. Disse que o desembargador, segurando-a pelo pescoço, de bruço sobre ella, tinha as pernas mettidas entre as suas e que quan- do a victima começou a bater com ellas o desembargador as segurou entre as suas. Apenas adormecida a victima, o desem- bargador atirou-se ao cadáver e morden- do-o dizia: — "não te havia dito que te daria um conhecimento pelo pouco caso 58 EVARISTO DE MORAES que de mim fazias com o teu amigo Joa- quim ? (9) Perguntado o que d'ahi seguiu ? Respondeu que o desembargador o mandou retirar-se para a sala; chaman- do-o pouco depois, elle interrogado viu então o cadáver de Mariquinhas estendido no chão da saleta, sobre um capote preto forrado de panno escocez, do uso do des- embargador, tendo dois ferimentos de pu- nhal no peito. Desses ferimentos sahia pouco sangue e ao passo que este extrava- sava, o desembargador ia limpando com a própria camisa e com as vestes da offen- dida. Chegando a esta saleta, o desembar- gador mandou-lhe que segurasse pelas pernas do cadáver e assim carregado foi mettido no caixão e porque ficassem as pernas de fora, o desembargador toman- do das cordas de que elle interrogado já falou no seu 3o interrogatório, amarrou ambos os pés e fazendo voltar a perna es- querda para debaixo da coxa a enleiou, mandando que elle interrogado fizesse o mesmo na perna direita; o que feito, o ca- dáver estufou dentro do caixão e porque não pudesse ser pregado assim, o desem- (9) Recorde-se que Joaquim era o prenome do estu- dante Costa. O CASO PONTES VISGUEIRO 59 bargador cortando as cordas que ligavam a perna direita a estendeu de novo para fora do caixão e com o trinchete, que ha- via feito amolar por elle interrogado, dias antes, deu um golpe na curva, no intuito de fazel-a virar sobre a coxa pelo lado de cima, mas, como isso não pudesse obter, deitando a perna pendurada no caixão, fez a sua deslocação. Perguntado o que fez elle interrogado depois desta operação ? Respondeu que continuou a ficar em pé, junto do caixão e do cadáver, e viu o desembargador pegar a cabeça da victima pelos cabellos e cortar-lhe o pescoço, pa- ra poder collocal-a dentro do caixão, findo o que mandou-lhe buscar uma lata de cal, que estava na sala de jantar do andar su- perior, e assim que a trouxe, o desembar- gador com uma cuia pequena tirou a cal e começou a deitar sobre o cadáver. Foi nessa occasião que mandou a elle interro- gado que fosse comprar a solda e o ferro de soldar. Perguntado o que fez o desembarga- dor da perna direita da victima ? Respondeu que a collocou dentro do caixão, a um lado do mesmo. 60 EVARISTO DE MORAES Perguntado a que hora acabou toda esta operação ? Respondeu que ás três horas da tar- de, pouco mais ou menos. Perguntado se ainda vivia Mariqui- nhas quando o desembargador atirou-se sobre ella e a mordeu ? Respondeu que ainda estava viva e apenas adormecida. Perguntado como explica ter-se en- contrado rota e cheia de sangue a camisa com que estava vestido nesse dia ? Respondeu, que na noite de quinta- feira, tendo brigado com uma pessoa na occasião em que passeava com outros, sa- hiu dessa briga ferido e com a camisa rota e por essa razão está suja de sangue e rota. Perguntado se Mariquinhas quando agarrada por elle interrogado e pelo des- embargador não procurava livrar-se ? Respondeu que Mariquinhas pro- curava com uma das mãos retirar a mão do desembargador que lhe agarrava as guellas e que com a outra procurava tirar de cima de si o mesmo desembargador, mas que este, agarrando a 2a mão, pren- deu-a debaixo do pé direito, que estava descalço e em cima de um bahú. Perguntado se elle interrogado não O CASO PONTES VISGUEIRO 61 estava mascarado quando se occultou na saleta para onde entrou Mariquinhas ? Respondeu que o desembargador ha- via preparado uma mascara de panno pre- to com três buracos pela frente, mas que elle interrogado delia não usou, porque o desembargador esqueceu de lh'a dar an- tes de entrar para o quarto. Sabia que exis- tia essa mascara, porque a viu na mão do desembargador quando este, depois de tudo acabado, a guardou. Perguntado como elle explica o seu dito acima, quando relata que, antes de metter o cadáver no caixão, tinha o cadá- ver dois ferimentos, ao passo que na au- tópsia foram encontrados quatro ? Respondeu que o ferimento do estô- mago foi feito pelo desembargador quan- do elle interrogado foi comprar a solda e depois de estar o cadáver no caixão, o que sabe porque, na volta, quando entrou na saleta, para entregar a solda, viu o estô- mago do cadáver e as vísceras que tinham sahido com muito sangue. Perguntado se o chão da saleta não ficou ensangüentado ? Respondeu que não, porque, além de ter o desembargador o cuidado de ir en- xugando o sangue das primeiras feridas 62 EVARISTO DE MORAES como acima já disse, chamou-o para dei- tar o cadáver no caixão, afim de que não escorresse sangue senão dentro deste. Disse mais que, estando o cadáver sobre o capote, como acima já disse, só neste deve haver algum sangue. Perguntado onde está a roupa do desembargador que ficou ensangüentada? Respondeu que está dentro de um bahú preto, que tem um fundo de segredo e que dentro do segredo está a roupa. E por nada mais dizer nem lhe ser perguntado, deu-se por findo este depoi- mento." III ACTIVIDADES POLICIAES Ia intensa agitação na cidade de São Luiz, em o domingo 17 de agosto de 1873. Logo pela manhã, tinham affluido muitos populares para defronte da casa do desembargador Pontes Visgueiro, na rua S. João. (10) Falava-se no desappare- cimento de Maria da Conceição, amante conhecidissima do velho magistrado. No meio dos populares apontavam-se a mãe da desapparecida e as suas amigas mais intimas. (10) A via publica, em que morava o desembargador Pontes Visgueiro, chamou-se, depois, rua Antônio Raiol, e, ainda depois, recebeu o nome actual —• rua Treze de Maio. O prédio, em o qual o crime se deu tem, hoje, o numero 126. E' de dois pavimentos, e no térreo, muito tempo após o facto delictuoso, se installou uma casa de commercio — A Cosmopolita, letreiro ainda visível. U m dos nossos in- formantes —• Sr. Wilson Soares — ouviu do já citado his- toriographo José Ribeiro do Amaral que, em 1873, o as- pecto da casa era o que ella ultimamente apresentava. 64 EVARISTO DE MORAES Dentro em pouco, começou a ser sa- tisfeita a curiosidade, circulando o boato do encontro de um cadáver, desenterrado do quintal daquella casa. Romperam gritos de indignação e manifestações de espanto, confundidos com os ruidosos lamentos da mãe da pre- sumida victima e das suas companheiras. Sabia-se que no interior da casa esta- vam, desde 4 1|2 da manhã, as autoridades, ás quaes se foram juntar, depois do des- cobrimento macabro, os médicos da Po- licia. (11) Ao sahirem todos, seguiram, presos, alguns homens de côr. Ao mesmo tempo era o lugubre acha- do conduzido para o Hospital da Miseri- córdia, onde se ia proceder á pericia me- dico-legal. No auto de corpo de delicto, assi- gnado pelo chefe de policia Dr. Miguel Calmon du Pin e Almeida e pelos peritos Drs. Santos Jacintho, Jauffret, Faria de (11) A casa tinha sido cercada desde 1 hora. A's 4 1|2 apparecêra na porta, querendo sahir, o desembargador. Fez-lhe vêr o chefe de policia — que dirigia a diligencia— estar ali com o intuito de proceder á busca. Allegou Pon- tes Visgueiro que não podia demorar; ia ao Cutim, mas voltaria logo. Ordenou, então, o Dr. Miguel Calmon a en- trada na casa. Lavrou-se de todo o oceorrido o auto ne- cessário,devidamente testemunhado. O CASO PONTES VISGUEIRO 65 Mattos e Júlio Mario, foram assim descri- ptas, por estes, as diligencias prelimina- res da pericia: — "No quintal da casa do des- embargador José Cândido de Pontes Visgueiro, junto á escada que para ahi deita, viram uma co- va, dentro da qual se achava, um palmo abaixo, uma caixa de ce- dro, pintada de branco, com duas alças de ferro nas duas ex- tremidades, a tampa fechada com pregos, tendo 110 centímetros de comprimento, 40 de largura e 30 de fundo. (12) Tirada a tampa, encontraram uma caixa de zinco com as mesmas dimensões, e com toda a justeza accommodada den- tro e bem soldada. Fizeram con- duzir para o Hospital da Miseri- córdia, onde se encontravam as condições necessárias para o exa- me. Ahi, abriram a caixa de zin- co, encontraram uma camada de (12) Merece annotação o procedimento "prematura- mente technico" da policia maranhense, já em 1873 con- vocando os medicos-peritos para esta diligencia inicial, e não se limitando a lhes pedir a intervenção, tão somente, para a necropsia. 5 66 EVARISTO DE MORAES : gazetas, cobrindo o conteúdo, e quatro travessas de madeira col- locadas de distancia em distan- cia, com o fim de sustentar a tampa, no acto de soldal-a. Con- tinuaram a descobrir e encon- traram dentro um cadáver, que reconheceram logo ser de mu- lher. Estava com a cabeça do- brada sobre o hombro esquerdo, e a perna esquerda dobrada so- bre a nádega, afim de caber na caixa, e ao lado direito do peito estava collocada a perna direita, que tinha sido desarticulada pelo joelho.. Os interstícios estavam cheios de cal. Tirado o cadáver, collocado sobre a mesa das dissecções e la- vado, viram e acharam o se- guinte : Era o cadáver de uma mulher de cor branca, que representava ter 15 annos de idade, estatura regular e medianamente gorda, . cabellos negros, lisos e compri- dos, tendo uma camisa de panni- O CASO PONTES VISGUEIRO 67 nho, anagua de bico, vestido de cassa chitada e uma fita de vel- ludo preto em roda do pescoço; todo elle estava tumefacto, lar- gando a epiderme das mãos e dos pés; os olhos estavam fora das orbitas, rotos e alterados pela pu- trefacção, de maneira que não se poude reconhecer a sua cor. Ha- via duas manchas lividas no lado esquerdo do cadáver, uma si- tuada na face externa da perna, outra sobre as costellas, e cada uma dellas com um decimetro de diâmetro; incisadas, não apre- sentavam ecchymoses nos teci- dos subjacentes. Na região epigastrica apre- sentavam-se de fora, e formando uma grande elevação, o intestino colon transverso e intestinos del- gados, que sahiram por uma inci•• são vertical de um decimetro de comprimento, praticada na dire- cção da linha branca do appen- dice xiphoide, para baixo. Ao lado esquerdo, immediatamente , -..--_; abaixo da mama - corresponden- 68 EVARISTO DE MORAES te, estava uma solução de conti- nuidade de dois centimetros de largura, que penetrava na caixa thoraxica; do lado direito via-se outra de igual dimensão e collo- cada symetricamente em relação á primeira, e que também atra- vessava a parede do thorax. O pescoço estava cortado circular- mente, ficando ligado ao tronco unicamente pela columna verte- bral. Foram chamadas a mãe da assassinada e uma companheira de casa, que reconheceram a identidade da pessoa, não só pela physionomia, mas também pelos vestidos." Feito, em seguida, o exame interno, concluiram os peritos que a morte fora causada por feridas penetrantes do cora- ção e do estômago. E' de admirar a perfeita concordância das verificações periciaes — no tocante ao exame exterior do cadáver — com as de- clarações de Guilhermino Borges. O inquérito, sempre dirigido pelo chefe de policia, e movimentado dia e noi- O CASO PONTES VISGUEIRO 69 te, deixou patentes, incontestáveis, os fa- ctos expostos no capitulo anterior. Logo a 20 de agosto, três dias após o inicio das diligencias policiaes, apresen- tava o chefe o seu primeiro relatório, de- terminando fossem os autos, em original, remettidos ao Supremo Tribunal de Jus- tiça (único competente para o processo e julgamento do desembargador) e o respe- ctivo translado ao juiz de direito do 3o dis- tricto criminal de S. Luiz. (13) Proseguindo em inquirições, elabo- rou o chefe de policia outro relatório, en- dereçado ao presidente da província. En- tendia a suprema autoridade policial do Maranhão estar deante do crime "mais celebre nos annaes judiciários do Impé- rio", e ponderava: (13) Lia-se no Diário do Maranhão: — "Pelo vapor "Bahia" seguiram já para o Rio de Janeiro, todos os interrogatórios e mais peças officiacs, aqui feitos pelo Sr. Dr. chefe de policia para esclarecer-se o crime horroroso que lia dias preoccupa o espirito publico. Desde o mo- mento em que se descobriu o fio deste crime, nunca mais tiveram descanso nem o presidente da província, e nem o Dr. chefe de policia, e feliz- mente todos os esforços e dedicações foram co- roados de êxito, pois pôde considerar-se o crime descoberto, bem como todos os seus principaes in- cidentes. Dignas, portanto, são de todo o elogio estas duas autoridades, e na verdade, só com muito esforço, tino e força de vontade poderia em três dias concluir-se uma diligencia tão impor- tante." 70 EVARISTO DE MORAES "Sim, em face das circum- stancias que levam o crime de ho- micídio ao art. 192 do Código Criminal, verá a população um velho magistrado, encanecido na sciencia de julgar, com assento no mais alto gráo da hierarchia da magistratura, subir ao pati- bulo, e, com o seu próprio sangue, lavar a toga maculada com o san- gue da victima. (14) Desculpa-se o empolado das phrases pela impressão dolorosa que as ditou, ma- ximé considerando-se a impossibilidade, áquella época, de acertar um bacharel em direito, embora culto, com a interpretação psycho-pathologica do horrível assassi- nio. A' distancia dos factos, tendo-se de os apreciar através do processo, da tradi- cção oral e dos commentarios da impren- sa, não ha como regatear louvores ao so- (14) Theor invocado do art. 192 do Cod. Criminal do Império: — "Matar alguém, com qualquer das circumstancias aggravantes mencionadas no art. 16, ns. 2, 7, 10, 11, 12, 13, 14 e 17: Penas: — de morte, no gráo máximo; galés perpétuas, no médio; de prisão com trabalho por vinte annos, no mí- nimo." O CASO PONTES VISGUEIRO 71 brinho e homonymo do marquez de Abrantes, pela serena imparcialidade com que procedeu, garantindo a vida e a pro- priedade do criminoso contra a sanha da população indignada, e, ao mesmo tempo, reunindo, em três dias, todos os elementos de convicção, mantida, em torno da pes- soa do desembargador, discreta vigilância, para lhe evitar a fuga, caso pretendesse tental-a. NOTA ADDENDA Ao chefe de policia do Maranhão, que presidiu o inquérito contra Pontes Vis- gueiro e seus cúmplices, alludiu, ultima- mente, Pedro Calmon, quando, na obra O M A R Q U E Z D E ABRANTES, falando dos últimos dias desse Marquez, disse: "Tem ao lado o sobrinho, que é como fi- lho, relíquia da sua grei, a quem educara para a administração e a magistratura: é seu homonymo" (pag. 295). A respeito do mesmo chefe de policia colhemos os seguintes dados biographi- cos:— Nasceu no município de Santo 72 EVARISTO DE MORAES Amaro, província da Bahia, a 19 de abril de 1843, tendo vindo, menino, para o Rio de Janeiro, aos cuidados do seu tio e pa- drinho, do mesmo nome, depois Marquez de Abrantes. Bacharelou-se em S. Paulo, seguindo, desde logo, a carreira judicia- ria, como promotor em Cabo Frio. Depois de algum tempo fora da ma- gistratura, voltou a ella, sendo nomeado juiz de direito em varias comarcas.Foi chefe de policia, não só no Maranhão, co- m o em Santa Catharina e no Rio de Ja- neiro (Corte). Aqui prestou serviços de certa importância, entre os quaes a crea- çâo do Asylo de Mendigos, sendo-lhe con- cedidas honras de desembargador. Ainda aqui exerceu a judicatura em uma vara commercial. E m 1885, estando no poder o minis- tério Cotegipe, foi nomeado presidente da província do Ceará. Sob o mesmo ministério, e em plena "questão militar", quando se tratou de es- colher quem tivesse o tacto necessário para afastar do Rio Grande do Sul o ge- neral Deodoro, (que, sendo ali comman- dante das armas, estava no exercício da vice-presidência da província e se tinha O CASO PONTES VISGUEIRO 73 manifestado ruidosamente na alludida "questão") — voltaram-se as vistas do governo para Miguel Calmon. Embora enfermo, deante da insistên- cia do convite, acceitou a difficil tarefa, que levou a bom termo. Aggravaram-se, entretanto, seus padecimentos, e morreu o sobrinho querido do marquez de Abran- tes, em Porto Alegre, aos 43 annos de idade, a 30 de dezembro de 1886, deixando a família em honrosa pobreza. IV A ATTITUDE DA IMPRENSA LO- CAL E A POLEMICA JURÍDICA EM TORNO DO CASO Ao tempo em que occorreu o crime, estava todo o paiz agitado pela questão religiosa, ou, mais propriamente, pela "questão episcopo-maçonica". O ministério presidido pelo visconde do Rio Branco, e do qual era João Alfredo figura proeminente, tinha, em harmonia com o pensar de Pedro II, reagido contra a attitude de dois bispos, que, mais obe- dientes á Igreja do que ao Estado, haviam desrespeitado leis do Império e determi- nações de autoridade competente. Ia accesa a polemica no Rio de Ja- neiro e os seus reflexos se estendiam ás 76 EVARISTO DE MORAES cidades capitães, apaixonando a im- prensa. Os jornaes das províncias, quando não tomavam partido, abriam, pelo me- nos, suas columnas ás publicações offi- ciaes. Nestas condições estavam, no de- curso do mez de agosto de 1873, O PAIZ e o "OBSERVADOR MARANHENSE, diários editados em S. Luiz. O PAIZ, "órgão especial do commer- cio", segundo declaração do seu cabeça- lho, no mesmo dia (18 de agosto), em que principiava a se occupar com o assassinio de Maria da Conceição, divulgava a "Con- sulta da Secção dos Negócios do Impé- rio do Conselho de Estado sobre o re- curso interposto pela Irmandade do S. S. da Igreja Matriz da Freguezia de Santo Antônio, da cidade do Recife, contra o acto pelo qual o Rvmo. bispo de Olinda a declarou interdicta". Quanto ao crime da rua S. João, delle tratou O PAIZ, sob a epigraphe CRIME HORROROSO, que, aliás, foi, também, adoptada pelo O B S E R V A D O R MARA- NHENSE. Ha trechos em o artigo d'0 PAIZ que, traduzindo uma das correntes da opi- O CASO PONTES VISGUEIRO 77 nião publica, merecem transcripção lite- ral. (15) Este, para exemplo: — "Nem o autor do indigi- tado crime, nem outros que di- zem ser seus cúmplices, foram ainda presos e isto tem causado certa extranheza, comparando com a louvável actividade do Sr. Dr. chefe de policia, a qual mani- festa o seu desejo de ficar bem patente o crime. Somos dos que entendem que a lei deve ser igual para todos, sem a minima excepção. Como raio que fere o mais alto carvalho e vem tocar a relva mais rasteira, a lei deve punir ou proteger o grande e o pequeno, da mesma fôrma. Vamos mais longe: que- remos que a applicação delia seja ainda mais rigorosa contra o rico e poderoso, o homem de saber, porque aquelle fia-se no poder do seu dinheiro, e este não se pôde desculpar com a igno- (15) Era director d'0 PAIZ o seu proprietário Tlie- mistocles Aranha. . .' 78 EVARISTO DE MORAES rancia e o pouco cultivo da intelli- gencia. Pela nova reforma judi- ciaria (lei 2.033, de 20 de setem- bro de 1871) a prisão, fora do caso de flagrante delicto, só pôde ser effectuada nos casos estabe- lecidos no § 2o do art. 13 e nos do art. 29, §§ Io e 2o ,do regulamento de 21 de novembro de 1871, expe- dido para execução da mesma lei." Passava o articulista á transcripção dos dispositivos invocados, em virtude dos quaes somente seria a prisão preven- tiva executada mediante mandado do juiz competente. E continuava: "Ora, tendo os desembarga- dores foro privilegiado, devem ser julgados pelo Supremo Tri- bunal de Justiça; só por ordem ou á requisição desse tribunal pôde ser effectuada a prisão an- tes da culpa formada. A missão da policia, para o caso vertente, limita-se, quanto ao indigitado réo principal, a fazer os inquéri- tos e mais diligencias e remetter O CASO PONTES VISGUEIRO 79 o resultado para o Supremo Tri- bunal, que terá de formar a culpa e julgar. Entretanto, si por essa disposição de lei fica o principal criminoso em plena liberdade, os seus cúmplices, si cúmplices tem, podem ser presos, visto que, sendo processados no foro com- mum, o juiz formador da culpa aqui está para requisitar-lhes a prisão. O clamor publico, não essa grita da turba atraz do cri- minoso, mas o brado da indigna- ção que revela o horror que sente o povo, pede a prisão do crimi- noso. Para esta effectuar-se, só si se pudesse considerar, atten- tas as vehementissimas provas, como em flagrante delicio; po- rém, rigorosamente tal classifi- cação não se lhe pôde dar. Certa- mente, si a prisão se effectuasse, a opinião publica applaudiria, mas não é esta bastante; acima delia está a lei. Dura lex, sed lex. Os autores da reforma judiciaria ... não previram .casos destes, em o... v„ .que,.:pela immunidade do. réo, 80 EVARISTO DE MORAES pôde a acção da justiça ser bur- lada. Deante de crimes taes, com- mettidos a sangue frio, com de- morada premeditação, acompa- nhados de um cortejo de circum- stancias que revelam uma dureza de coração elevada ao ultimo gráo, no caso de sermos autori- dades, correríamos o risco de in- correr em responsabilidade, mas havíamos de proceder de modo que a sociedade ficasse plena- mente desaffrontada. Sujeitar-nos-iamos a um pro- cesso, mas seria um processo glo- rioso. Entretanto, esta nossa opinião particular não envolve a mínima censura ao distincto Sr. Dr. chefe de policia, cujo proce- dimento, neste negocio, tem sido o mais recto que se pôde desejar, e acima de qualquer considera- ção. S. Ex. curva-se ás disposi- ções da lei; si não vae mais lon- ge, é só por que não pôde." Ahi se accentuava a rara habilidade do jornalista, não desagradando a opinião O CASO PONTES VISGUEIRO' 81 collectiva, nem atacando quem cumpria sizudamente os seus deveres funccionaes. No mesmo numero iniciava O PAIZ a publicação das declarações prestadas no inquérito. Ainda no supplemento daquelle nu- mero, e sob a epigraphe A' U L T I M A HO- RA, lia-se esta noticia: — "Recusando-se o desem- bargador a ir á policia, e respon- dendo, segundo se diz, que o pre- sidente e o chefe de policia, eram muito baixos para poder interro- gal-o, resolveu o Sr. chefe de po- licia ir pessoalmente á casa delle. Ali chegando, foi recebido pouco convenientemente, continuando o desembargador na obstinação de nada dizer, declarando mais que ia responder no tribunal que o pôde julgar, para onde seguirá no próximo vapor. A multidão, indignada com esta resposta, apedrejou a casa e conserva-se na proximidade delia." Mas não ficou inactivo o Dr. Miguel Calmon. Mandou dispersar o povo, e " •"' 6 " 82 EVARISTO DE MORAES guardar a habitação de Pontes Visgueiro por um official e seis praças. (16) No dia 20, ao encerrar o primeiro in- quérito, dirigiu-se, por escripto, ao desem- bargador, convidando-o, de novo, a pres- tar esclarecimentos, ou, pelo menos, a ex- plicar a situação de
Compartilhar