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Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? Au la 2 Meta da Aula Desconstruir a ideia que todos os conflitos são “tratáveis” e que é válido reconhecer outra categoria para os conflitos socioambientais, a saber, os conflitos “intratáveis”. Ao final dessa aula esperamos que você seja capaz de: 1. Identificar alguns tipos de conflitos, como os “dramas sociais” e os “conflitos tratáveis” que podem ter uma solução que ponha fim as disputas inerentes a cada um deles. 2. Questionar se os dispositivos legais – leis, decretos, normas, e outros instrumentos – conseguem de fato atingir seus objetivos quando se propõem a solucionar, por fim ao conflito, e produzir a paz social. 3. Conceituar uma outra categoria de conflitos, a partir das reflexões sobre a natureza de algumas disputas em nossa sociedade, que seriam os conflitos intratáveis, aqueles que resistem aos mecanismos de sua “solução”. 4. Reconhecer que os conflitos socioambientais se enquadram na categoria de “conflitos intratáveis”. Atenção! O texto desta aula e das seguintes não está formatado no padrão do CEDERJ. Entretanto, o conteúdo é exatamente o mesmo que vocês receberão no livro texto. Pedimos desculpas, mas temos certeza que eventuais dificuldades serão superadas com a qualidade da discussão com os tutores! Boas aulas. Professores Conteudistas e Tutores. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Nesta aula construiremos uma tipologia dual para a análise dos conflitos. Para tanto, usaremos conceitos que devem ser entendidos como categorias analíticas. Vocês devem ter visto em Sociologia Jurídica que, para Émile Durkheim, as categorias seriam a “ossatura da inteligência”. Seria a partir delas que poderíamos enquadrar, ordenar, classificar o mundo a nossa volta. Tais “categorias” não seriam universais nem existiriam a priori, como propusera o filósofo alemão Immanuel Kant. Para Durkheim, as categorias seriam uma construção social, ou seja, as categorias são determinadas social e historicamente. Mas outra definição nos ajuda a compreender o mundo que nos cerca. É reconhecer que temos categorias de síntese e categorias de análise, ou analíticas. As categorias de síntese corresponderiam aos conceitos que usamos para construir um determinado cenário ou contexto. Por exemplo, se nos propusermos em montar um pen drive para ouvir músicas no carro, um bom caminho seria organizar as músicas por gênero musical – samba, MPB, pagode, sertanejo, rock, metal, clássico – ou por década. Mas também poderíamos escolher organizar nosso arquivo por músicas para meditar, músicas para ficar acordado, ou outra forma qualquer de categorizar nosso acervo. Em qualquer alternativa estaremos usando categorias de síntese, pois estaremos construindo nosso sistema. Passado algum tempo, poderíamos observar nosso pen drive com outro olhar. Poderíamos ordenar nosso acervo por critérios seletivos, do tipo gostei mais, ouvi mais, não quero ouvir sempre, etc. Tais categorias de análise não são as mesmas das de síntese, mas guardam certa afinidade. Não faria sentido analisar o acervo organizado em nosso dispositivo de armazenamento em categorias tipo “comprei com dinheiro”, “paguei com cartão de débito”, “parcelei em dez vezes sem juros”. Tais categorias de análise seriam úteis para nosso sistema de controle orçamentário, porém de pouca valia para nosso acervo musical. Em muitos casos, a pouca adequação das categorias de síntese com as categorias de análise se constitui em uma fonte inesperada de conflitos! INTRODUÇÃO Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Trabalharemos com duas categorias: os conflitos tratáveis e os conflitos intratáveis. Sugeriremos que os primeiros podem, sob determinadas condições serem tratados pelas ferramentas tradicionais de “pacificação” de conflitos, como o tratamento jurídico das disputas. Entretanto, como há outros tipos de conflitos que resistem à resolução, mesmo que judicializados, utilizaremos outra categoria, os conflitos intratáveis, que incluem, de forma inequívoca, os conflitos socioambientais. Vejamos, em primeiro lugar, os conflitos tratáveis. Vamos começar? Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Os conflitos tratáveis possuem uma gradação que pode ser percorrida em sua integridade ou em saltos. Na aula anterior vimos o caso do conflito ocorrido na Marina de Arraial do Cabo. Mas conhecer uma taxionomia dos conflitos é bastante útil para, às vezes, se identificar um conflito até antes de sua eclosão. Uma primeira etapa de um conflito tratável pode ser identificada quando atores sociais iniciam um processo de evitação recíproca. Os laços de sociabilidade são cortados, parcial ou integralmente. O segundo momento corresponde a uma escalada em relação ao primeiro, já que enseja o fim das relações cordiais entre as partes. Aqui, não apenas laços sociais são quebrados, mas há o surgimento do embrião de uma animosidade que aumentará com o tempo. A terceira fase do conflito acontece quando uma das partes, já estabelecido o clima de animosidade, tenta, através da coerção, se sobrepor à outra. Assimetria de poder, individual, situacional ou contextual pode ser decisiva para o fim do conflito acontecer nesta etapa, quando uma das partes efetivamente se impõe à outra. A próxima fase ocorre em um ambiente dialógico, ou seja, tem início um processo se negociação direta entre as partes. O que pretendem seria alcançar um resultado favorável para ambas, não em termos de regras, lei ou regulamentos, mas a partir de mecanismos através dos quais podem organizar suas relações mútuas. Quando surge uma terceira parte para a resolução do conflito temos uma mediação. O característico deste processo é que a intervenção do mediador vai na direção de construir um resultado que será aceito por todas as partes envolvidas no conflito. Uma outra forma possível de atuação de uma terceira parte se dá na forma de arbitragem, que deve ser vista como um processo de resolução de conflitos onde as partes voluntariamente se submetem ao julgamento de uma terceira, e cuja aceitação da solução apontada está implícita ao processo. Uma etapa final para um conflito tratável pode ser quando o Estado toma a si a administração do conflito. Necessariamente ocorre o exercício da 1. OS CONFLITOS TRATÁVEIS Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J autoridade de uma instância hierarquicamente superior às partes em conflito, e cujos resultados serão a eles impostos, mesmo que haja a necessidade do recurso ao uso da força. Uma forma “simplificada” de conflitos tratáveis, os “dramas sociais” foram conceituados pela primeira vez por Victor Turner, antropólogo inglês que estudou alguns grupos nativos africanos. Os dramas sociais são conflitos que eclodem quando alguém, ou um grupo, se comporte em desconformidade com normas sociais, ou seja as expectativas sociais foram quebradas. Em outras palavras os dramas sociais estão intimamente ligados à ordem social vigente. Dramas de pequena intensidade ocorrem no cotidiano das pessoas que acabam por se tornar familiares através de repetições. Os dramas sociais possuem uma "forma processual" que se desenvolve segundoum roteiro socialmente definido. A primeira fase corresponde a um momento de reconhecimento pelas partes da eclosão de uma crise, que já vinha dando sinais de existência, gerada pelas tensões inerentes às interações sociais. Em seguida ocorre o momento de ampliação da crise, com o chamamento por ambas partes de atores de suas relações sociais, o que acaba por provocar a aplicação da crise, envolvendo cada vez um número maior de litigantes. Na busca por uma composição, alguns atores se movimentam na direção de alternativas que possam conciliar as partes, com base em ações compartilhadas. A fase final apresenta duas possibilidades. Na primeira, caso os esforços iniciados na etapa anterior forem bem sucedidos, ocorre um rearranjo, com possíveis mudanças nas posições, relações e aspirações iniciais. Na segunda, caso esses esforços sejam mal sucedidos, pode ocorrer a cisão das relações sociais entre e nos grupos, provocando novos arranjos na estrutura social. Como se pode ver, um drama social pode ser considerado um tipo particular de interação social, como proposta por Georg Simmel, que acionam padrões particulares de regras e valores, necessitam de comportamentos orientados a determinados objetivos e formas específicas de comportamento social e que podem ser tanto conjuntivos, quando a coesão social é reforçada, quanto disjuntivos, quando ocorre uma cisão no grupo. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J A partir das ideias de Herbert L. A. Hart, Robert Shirley identificou a existência de regras primárias, que seriam aquelas dirigidas diretamente ao comportamento dos indivíduos, e de regras secundárias, que seriam mecanismos através dos quais a sociedade puniria aqueles que infringem as normas primárias. Nesta concepção, as instituições estatais são apenas um tipo de instituição responsável pela aplicação das regras secundárias. Em outras sociedades esta responsabilidade pode recair sobre outras instituições sociais, como a família, o clã, ou a própria sociedade como um todo. A figura 2, abaixo, o modelo proposto por Shirley a partir das ideias de Herbert Hart, Bohannan, que identificou uma característica do Direito, como o Ocidente o construiu, a saber, a dupla institucionalização. Em outras palavras, as instituições que elaboram as normas não podem ser as mesmas que cuidam que sejam cumpridas, ou apliquem sanções. Figura 2.1: O conceito de Direito, a partir de Herbert Hart (Fonte: Lobão, 2014) Outro antropólogo norte-americano, Shelton Davis, em seu livro Antropologia do Direito, no qual reuniu uma série de ensaios de autores como Paul Bohannan e os antropólogos ingleses Max Gluckman, Edmond Leach, compilou um conjunto de proposições sobre o Direito que pareciam ser consensualmente aceitas pelos antropólogos: “a) em toda sociedade existe um corpo de categorias culturais, de regras ou códigos que definem os direitos e deveres legais entre os homens; b) em toda sociedade disputas e conflitos surgem quando essas regras são rompidas; 2. A DIREITO E A PAZ SOCIAL (OU A PACIFICAÇÃO DO CONFLITO PELO DIREITO?) Highlight Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J c) em toda sociedade existem meios institucionalizados através dos quais esses conflitos são resolvidos e através dos quais as regras jurídicas são reafirmadas e/ou definidas” (Davis, 1973:10) Na Aula 1, ao discutirmos os Casos 1 e 2, vimos que como a dupla institucionalização, em nossa cultura jurídica se dá de forma mais ampla, podendo colocar o Estado contra o Estado, Ibama contra Prefeitura, juiz contra polícia. Pense nas regras que um órgão ambiental, no caso do Rio de Janeiro o Instituto do Ambiente (INEA) pode estabelecer para a visitação de um Parque (Unidade de Conservação da Natureza de proteção integral). Se um visitante infringir estas normas ele será “punido” pelos “guardas- parque”, que são vinculados ao INEA! Onde está a dupla institucionalização? Comentário De fato, em várias dimensões do Direito Ambiental a dupla institucionalização está ausente. Em alguns casos é ainda mais grave, como as regulamentações do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) que são aprovadas em um conselho que integra do Poder Executivo, sem delegação democrática do mandato de seus conselheiros. O antídoto para esta “falta” está no conceito de Direito Difuso, ou seja, que o Meio Ambiente, como representado no Artigo 225 da Constituição Federal de 1998, é um direito das gerações atuais e as futuras. Assim, os agentes do Estado, quaisquer que sejam, atuam com legitimação dupla. Entretanto, a partir deste “consenso”, surgiram novos “dissensos”. Com os antropólogos construindo seus objetos no interior das sociedades complexas, essas definições precisavam ser melhor explicitadas. Quais categorias representariam os “direitos e deveres legais” de outros direitos e deveres sociais; como identificar os rompimentos de regras que são pertinentes à esfera do Direito de regras que pertencem a outros setores da vida em sociedade? Estas respostas, bem como uma definição para o Direito que incluísse as sociedades complexas, não podiam prescindir da identificação e da descrição das instituições que comporiam o próprio Direito. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Foi nesse sentido que a antropóloga norte-americana Sally Falk Moore escreveu o livro “Direito como um Processo”, no qual discutiu uma visão mais precisa para uma eventual definição para o Direito (Moore, 1978). Se os quatro ingredientes sugeridos anteriormente para conformarem o universo do Direito, a saber, autoridade, intenção de aplicação universal das normas, obrigação e sanção, forem aplicados às sociedades contemporâneas, identificaríamos não só as normas do Direito, como também várias outras regras de comportamento de um sem número de corporações que compõem outras esferas da vida social. Moore propôs um conceito diferenciador para o que poderia ser considerado como uma lei, a saber, sua origem. Assim, pertenceriam ao Direito aquelas regras que emanassem das esferas governamentais especializadas, enquanto os regulamentos seriam seus correspondentes nos processos internos de quaisquer grupos sociais organizados. Entretanto, nesta perspectiva voltava-se à definição de direito através da delimitação de sua pertinência ao campo institucional, apesar de nesta formulação ele estar submetido a um componente dinâmico, ou mais precisamente, processual. Um jurista brasileiro, Miguel Reale, elaborou uma teoria tridimensional do Direito, no qual vincula valor, fato e norma de uma forma que leva em consideração as preocupações de Moore. Nesta teoria, intenções de valor na sociedade (V1, V2 e V3, na figura 3.2 abaixo) são dirigidas para um fato. Isso implica, que, do ponto de vista da sociedade, não há apenas uma única valoração para um fato. Como consequência, emanam do fato múltiplas direções normativas que são levadas a uma instituição autorizada pela sociedade a produzir normas (a letra P, na figura abaixo). A norma produzida (a letra N) será aplicada ao indivíduo. Cultura Jurídica O Conceito de Cultura Jurídica não deve ser compreendido como a junção dos dois termos em separado. Antoine Garapone Ioannis Papadopoulos definiram a Cultura Jurídica como aproximado ao de tradição jurídica, sem ser pensado como estático. Trata-se de um campo de tensões, dinâmico por excelência. A Cultura Jurídica corresponde às formas particulares de produção da verdade, dentro de diversas práticas internas do campo, entre elas o processo judicial e não por métodos científicos. Dentro destas práticas internas, algumas culturas jurídicas enfatizam a oralidade, como a norte- americana, ou a textualidade, como a brasileira. Para esses autores como a cultura jurídica corresponde a um meio de ajustamento, o processo judicial pode ser pensado como um lugar de visibilidade do político, e que a configuração judicial estaria na prática, não nos livros. C Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Figura 2.2: A Teoria Tridimensional do Direito, a partir de Miguel Reale Observe atentamente as figura 2.1 e 2.2 compare as duas. Construa paralelos e dissensos entre as duas representações sobre o Direito. Como você deverá notar, na figura 3.2, que representa uma imagem sobre a cultura jurídica brasileiro, filiada à “civil law tradition”, a “norma” (representada pela letra N) não é imputada a “ninguém”. Já na figura 3.1, que representa uma imagem sobre a cultura jurídica anglo saxã, filiada à “common law tradition”, as normas secundárias (aquelas produzidas pelas instituições autorizadas para tal), se dirigem universalmente aos indivíduos. Qual categoria sociológica poderia ser colocada como a destinatária da norma, em nossa cultura jurídica? Comentário Nas duas representações, as normas derivam de valores e exigências da sociedade sobre as instituições que o Estado acolheu para tal. São as “normas primárias” de Hart ou os “valores na sociedade” de Reale. A partir daí, uma enorme diferença se estabelece. Enquanto na common law, há um consenso sobre os fatos que representam esses valores, em nossa cultura jurídica, os valores que se dirigem aos fatos são múltiplos. Como resultado, múltiplas difrações dos fatos, resultantes de sua interação com os valores plurais são dirigidas a uma única instituição autorizada a produção da norma (o legislativo de cada esfera de governo – municipal, estadual ou federal). Nesta instância, a multiplicidade de valores na sociedade é reduzida a uma única, ou a uma síntese delas, ou até mesmo um novo valor, inexistente até então na sociedade, a “norma”. Assim, a norma não pode ser aplicada universalmente aos indivíduos, ela precisa ser interpretada por agentes legitimados para tal, porque será aplicada a pessoas, que se distinguem uma das outras em direitos e deveres. Afinal, vimos na Aula 1 que, para Rui Barbosa, “a verdadeira regra da isonomia é tratar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam.” Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Saiba Mais: Common Law & Civil Law Em geral, se diferenciam os dois sistemas jurídicos, Common Law e Civil Law, como sendo o primeiro vinculado aos países com vínculo com a Inglaterra (Estados Unidos, Austrália, etc.), e a fonte do Direito estaria vinculada mais à jurisprudência, ou às decisões judiciais, do que à Lei propriamente dita. Já a Civil Law, é vinculada ao “direito continental europeu” (Itália, Alemanha, França, etc.) e a fonte do direito é, necessariamente, a Lei. Os mesmos Antoine Garapon e Ioannis Papadopoulos propuseram pensar a Common Law, como uma cultura jurídica que teria as seguintes categorias: Civil Law Common Law Direito vem de cima Direito que impulsiona de baixo Centralidade Descentralização Verticalidade Horizontalidade Unidade da Verdade Concorrência de relatos Integração pelo interno Divisão Desconfiança sobre o indivíduo Confiança nos atores Passividade das partes Autonomia e ação das partes Direitos substanciais Normas processuais Direito pré-existente às relações Pré-existência das relações sociais Comando pelo Direito Regularidade social Poder incondicionado Poder condicionado Instituição Autonomia da sociedade / Direito Quem rompeu radicalmente com o conceito antropológico do Direito, desde a proposição inicial de Henry Maine - o Direito como reflexivo da vida social - foi Clifford Geertz. Com total propriedade apontou o debate - aqui parcialmente retratado - que marcou a Antropologia do Direito no século passado. Seria o Direito constituído “de instituições ou de regulamentos, de procedimentos ou de conceitos, de decisões ou de códigos, de processos ou de formas” (Geertz, 1999: 250), ou não? Estaria presente em todas as sociedades, ou não? A resposta de Geertz partiu do pressuposto que o Direito seria uma forma diferente de imaginar o real. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Haveria uma diferença de natureza entre o “fato” e a “lei”. Cada sociedade trabalharia esta dimensão arbitrária de sua própria maneira, o que levou ao primeiro postulado de Geertz, ao afirmar que o Direito seria “saber local”. E, neste sentido, “local” deve ser pensado como algo mais que lugar, que tempo, que classe social. Para Geertz, “local” corresponderia à esfera de predomínio de uma sensibilidade jurídica específica. Segue-se outro postulado, ou seja, que o “Direito, mesmo um tipo de direito tão tecnocrata como o nosso, é em uma palavra construtivo, em outra, constitutivo e em uma terceira, formacional... Essas noções são parte daquilo que a ordem significa; são pontos de vista da comunidade, e não seus ecos.” (Geertz, 1999: 329). Essa seria uma definição totalmente diversa das demais. O Direito deixaria de ser um “produto do desenvolvimento histórico das sociedades”, deixaria de ser um espelho da organização da sociedade, no que ela tem de mais estável e preciso, deixaria de ser um “reflexo da vida social”, para ser “construtivo, constitutivo e formacional” da vida em sociedade. Esta nova concepção teria fortes influências, não só no terreno das teorias como em aspectos metodológicos como se verá mais adiante. Consequentemente, ocorre uma guinada no olhar antropológico. Vários autores, como relatam June Starr e Jane Colier, passaram a tratar o Direito como uma forma de dominação simbólica, efetuada por grupos específicos, principalmente aqueles no poder. Neste sentido, o “Direito e as formas legais são consideradas como resultantes de negociações históricas particulares entre e de dentro de grupos, ou como resultante de sistemas hierárquicos particulares e de dominação” (Starr & Colier, 1989: 24). O direito foi reconhecido como dotado de uma tendência de se imiscuir em todas as formas de relações sociais, efetivamente representando um papel importante no processo de dominação ideológica. Foi explicitado o componente dinâmico da produção das relações de poder dentro do campo do direito, o que, mais do que nunca, reforça seu aspecto de processo social construtivo, não reflexivo de relações sociais. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Outro aspecto a ser destacado na formulação de Geertz é que não haveria defasagem temporal do Direito em relação às práticas sociais, como apontara Bohannan. Na verdade o Direito, entendido como processo, seria fruto das interações ideológicas na sociedade, dirigiria, através de sensibilidadesjurídicas específicas, o processo de mudança social, onde o aspecto institucionalizado seria apenas um dos seus aspectos, não correspondendo, de forma alguma, à sua totalidade. Um ponto central na proposta de Geertz diz respeito às “sensibilidades jurídicas” elemento central de um Direito “constitutivo, construtivo e formacional” da vida em sociedade. Por sua vez, o conceito de sensibilidade jurídica é equiparado por Geertz ao conceito de “discurso normal”, proposto por Richard Rorty, como sendo o discurso que opera entre os limites de um discurso normal, “aquele que é conduzido dentro de um conjunto combinado de convenções” e um discurso anormal, que é “ignorante a respeito dessas normas ou as [... coloca] de lado” (Rorty, 1994: 316). A figura 2.3 ilustra, para fins de comparação com a figura 2.1, um modelo de Direito reflexivo da vida social, e como se poderia pensar, a partir da Antropologia do Direito, em um Direito “constitutivo, construtivo e formacional” da vida em sociedade, e ao mesmo tempo identificar esse Direito em contextos de direito plural em um mesmo espaço estatal. Figura 2.3: Um modelo para um contexto de direito plural Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J O maior déficit cognitivo para os operadores do Direito é a pequena, ou quase inexistente, abertura do universo jurídico para a dimensão empírica dos conflitos que são levados às instâncias judiciárias. A Filosofia do Direito sequer reconhece a existência da “realidade”. A “dimensão fática” é, tão somente, aquela que está nos autos do processo. A solução da lide não tem como objetivo a pacificação da sociedade ou a restauração da ordem, mas apenas o fim dela mesma. Algumas imagens falam mais que muitas palavras. A Figura 2.4 apresenta em forma esquemática um desenho pintado na sala do antigo Supremo Tribunal Federal, hoje Centro Cultural da Justiça Federal, localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro. Figura 2.4: Esquema pintado no teto do antigo STF no Rio de Janeiro A posição das palavras latinas Lix (conflito) e Pax (paz) são emblemáticas: o conflito está na entrada, vindo da rua, enquanto a paz está localizada perto das cadeiras dos ministros do antigo Supremo Tribunal Federal. O caminho que transforma o conflito em paz, é conformado pela Lex (lei) e pela Jus (Justiça). Por outro lado, a paz não necessita voltar à rua, ela é produzida dentro do sistema jurídico porque foi “transformada” em uma lide, e a ele e somente a ele deve satisfazer. Entretanto, há uma outra dimensão dos conflitos, que vai para além do drama ou dos conflitos tratáveis e da lide. É o que veremos a seguir. Lide Segundo Fernanda Duarte, para o sistema judicial, o processo judicial é autônomo e apartado do conflito social. Ao produzir a redução da complexidade da vida para o ingresso no sistema judicial o conflito se reconfigura na Lide. É a Lide que deve ser solucionada, não necessariamente o administrado. A sentença comunica à sociedade o fim da Lide, não do conflito. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Os conflitos intratáveis são assim designados de acordo com os sentidos percebidos pelos atores envolvidos, com vistas à possibilidade de sua resolução ao longo de um processo. Outra característica da “intratabilidade” é que corresponde a um processo dinâmico em que as percepções acerca do conflito podem oscilar ao longo do tempo e variar entre episódios conflitivos de “tratabilidade” e “intratabilidade”. Ao perceber e rotular um conflito como intratável, os participantes podem, entretanto, estar rotulando-o como uma profecia autorrealizável. As partes agiriam em concordância quanto ao tratamento da disputa como não passível de solução. Uma resolução, neste caso, não significaria que o conflito foi solucionado, ao contrário, ela referiria à habilidade dos participantes em alcançar algumas decisões aceitáveis mutuamente, e mover-se em direção a questões mais centrais da disputa. As características da intratabilidade tanto podem ser sua longa duração ou a recusa em sua resolução. Além destas, podem ser destacados outros aspectos: divisibilidade, intensidade, abrangência e complexidade. Conflitos de longa duração são aqueles que possuem um passado extenso, um presente turbulento e um futuro obscuro. Um dos motivos pelos quais um conflito se torna intratável, ou sua inabilidade para a resolução é que várias intervenções, tais como negociações e mediações, muitas vezes resultam em um impasse. No caso de um litígio, ele somente cobre partes do problema. Conduzem à consequências inesperadas e um subsequente aumento de intensidade do conflito. Um segundo motivo é que os acordos já celebrados não se sustentam, isto é, outros participantes questionam as decisões tomadas. Um terceiro motivo é que os custos de uma solução superam aqueles que são percebidos com a continuidade da disputa. Conflitos são processos dinâmicos, e no caso de conflitos intratáveis, mesmo que os atores mudem, os contextos se modifiquem e as arenas nas quais as disputas ocorrem sejam trocadas, o conflito persiste. Uma corrente teórica vem estudando estes conflitos com o uso do conceito de 3. CONFLITOS INTRATÁVEIS Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J “frame” ou “significação”, que me parece bastante iluminador. Nesse modelo de análise de conflitos ambientais: – as significações agem como lentes através das quais os litigantes interpretam a dinâmica do conflito e são estas interpretações que fazem com que um conflito seja mais ou menos tratável; - as significações podem se manter extraordinariamente estáveis ao longo de várias disputas, e assim reforçar o conflito ao longo do tempo; - a interação entre significações pode tanto reforçar quanto reduzir a estabilidade de cada uma e a intensidade do conflito; - a diferença entre significações reforça a intratabilidade das seguintes formas: muitas vezes as partes não representam o problema subjacente da mesma forma, o que conduz a disputas que nunca se referem aos fundamentos do conflito; um limitado repertório de representações sobre as formas de lidar com o conflito, conduz as partes a adotar estratégias de administração de conflitos adversarial, que impedem sua resolução; o uso intenso e repetitivo de categorizações polariza relações já antagônicas; por fim, o uso de técnicas de administração de conflitos baseadas nas posições dos grupos, reforçam os movimentos de categorização; e desejasse. Saiba Mais: Administração de Conflitos Adversarial Roberto Kant de Lima chamou a atenção para distintos significados da expressão adversarial nos procedimentos judiciais brasileiros e norte-americanos. A ideia de “adversarial” no sistema americano é semelhante à barganha, onde a responsabilidade pelo estabelecimento de uma decisão é transferida para jurados. O sistema adversarial brasileiro estabelece uma disputa sem fim, pois está baseado no “contraditório”, no estabelecimento de teses contrárias, que não permitem barganhas ou aproximações entre elas. Em resumo, os conflitos “intratáveis” são aqueles que se assemelham aos procedimentos judiciais brasileiros, ou seja, estão baseados no contraditório. Frames Por que traduzo a expressão“frame” de Erving Goffman como “significação” e não como “quadro”, consagrada em outras traduções do conceito em português? Em primeiro lugar, devo ressaltar que a tradução do livro “Frame Analisys” para o francês, o como título, “Cadres de Experience”, acrescentando uma qualidade ao “quadro” que a remete à “experiência”. Entretanto, o uso consagrado do termo “quadro”, ou “moldura” em português, sugerem uma fixidez que não está presente no conceito original. Para Goffman, a definição de um “frame” está necessariamente vinculada ao contexto e ao envolvimento subjetivo dos atores sociais. Correspondem aos elementos básicos que podem ser identificados, ou seja, os significados. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Mais do que representar um modelo de administração de conflitos intratáveis, a ideia da significação diferenciada permite que se explicitem os conteúdos das disputas e os enunciados sobre elas. Evidenciam os recursos que são utilizados pelas partes na busca de potencializar seus argumentos. O que nos leva de volta para questões que envolvem poderes e potências com graus distintos de eficácia e alcance. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Voltemos ao conflito descrito na Aula 1, no Caso 1. Vimos a escalada de crescimento da disputa na Marina. Vimos que mesmo após a retirada do Trailer, as disputas não cessaram e o conflito continuou. Em setembro de 2006, o Juiz Federal de São Pedro da Aldeia manteve a cobrança da Taxa de Visitação, mas isso não significou que as disputas sobre a Resex tenha chegado ao um fim. no eixo hierárquico ameaça o próprio Estado, que é apropriado por aqueles que se encontram no topo da pirâmide. Outra evidência do nosso “dilema” é a existência de uma vertente ao mesmo tempo hobbesiana e estatofóbica em nossa sociedade. O “estado de natureza” de Thomas Hobbes, ou seja, a luta de todos contra todos, só existe no plano das igualdades, e não no eixo das estratificações, pois este é o império da ordem. Assim, o caráter estatofóbico só ocorre no plano da igualdade, pois como é a competição a responsável pela produção ordem, a presença do Estado pode trazer a desordem. Porém, no eixo da estratificação, a lógica hierárquica deve romper com a dimensão estatofóbica, pois a relação entre Estado e Sociedade é vital para conservação do modelo. Nesta vertente, a competição seria desagregadora e a presença do Estado é fundamental para a manutenção da ordem. Leia a Sentença da Justiça Federal em São Pedro da Aldeia, no ano de 2006! Compare com a descrição do conflito na Marina e reflita sobre a decisão e o que ela teria comunicado ao mundo empírico. Comentário Notem que apesar me mencionar a Taxa de Visitação, o incêndio do Trailer e outros aspectos vinculados ao episódio ocorrido em 2000 na Marina de Arraial do Cabo, a Sentença condena um Operador de Turismo que sequer esteve presente na disputa da Marina. E nada foi dito sobre as autoridades que abusaram de seu “poder” e obstaculizaram a eficaz proteção ambiental, o que caracterizaria um Crime Ambiental. 4. CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS SERIAM CONFLITOS INTRATÁVEIS? Taxa Uma Taxa é uma das espécies tributárias que o Código Tributário Nacional prevê. São tributos vinculados, ou seja, o estado deve retornar bens ou serviços anunciados quando da aprovação da Taxa. Em alguns casos uma Taxa pode ser transformada em um tributo indireto, no qual o contribuinte de fato não é o mesmo que o contribuinte de direito. No caso da Taxa de Visitação de Arraial do Cabo, o contribuinte de direito seria o turista, mas o contribuinte de fato, ou seja, de quem se estava cobrando o tributo eram os operadores de turismo, através das guias e dos mapas de bordo. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Façamos uma leitura do episódio ocorrido em 2000 à luz do conceito de conflito intratável, para ver sua adequação, ou não. Na disputa na Marina, quais eram os grupos em oposição? Em primeiro lugar, tínhamos a gestão da Resex, representada pelo gerente, alguns funcionários e o representante do CNPT. Além disso estava presente um fiscal do Ibama, com poder de polícia. Este grupo estava investido de autoridade vinculada à esfera federal. O significado da Taxa para este grupo era mais que justificado. A proteção e gestão da Unidade de Conservação deveria não só contemplar a cogestão com a população tradicional local mas ser co-financiada por outros atores que se beneficiavam da Resex, mas não eram “pescadores cabistas”. Em segundo lugar estavam presentes os destinatários da nova norma, os operadores de turismo, aqueles que teriam que pagar a Taxa. Este grupo estava longe de ser homogêneo. Havia aqueles que concordavam com a cobrança, pois vislumbravam alguma possibilidade de melhoria como um todo para seu negócio. Havia aqueles que aceitavam a cobrança pois não queriam problemas com a fiscalização. Como havia também, e este grupo era a maioria, aqueles que se colocavam contra a cobrança e contra o protagonismo da gestão da Resex por parte dos pescadores. Dentro deste grupo, alguns eram mais ostensivos e organizados, como aqueles que colocaram faixas pela cidade. Em terceiro lugar podemos destacar os representantes da municipalidade. O Vice- Prefeito à época, o Secretário de Segurança Pública e alguns guardas municipais. Estes atores significavam a situação, em um primeiro momento, a partir do sentimento de posse do espaço da Marina como um espaço público municipal e que deveria estar afeto apenas ao ordenamento local. Mas não paravam por aí. A Resex, vinculada ao governo federal e suas implicações na cidade fizera surgir uma representação que havia um Prefeito da Terra e um Prefeito do Mar, o gerente da Resex. Mas este grupo ainda significava o episódio como um momento de retaliar a clivagem que a Resex provocara entre os próprios pescadores, ao criar a condição de “pescador de fora”, não autorizado a pescar no cinturão de 3 milhas ao longo de litoral cabista, mas Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J que era morador do Arraial do Cabo, ou desembarcava seu pescado na Marina. Em quarto lugar, não por uma menor importância, mas por uma ausência visual, os pescadores cabistas, representada pela direção da Associação da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo (Aremac). O significado que estes construíram sobre a Taxa de Visitação era fluído. Por uma lado a viam como uma vantagem, pois a associação poderia ser beneficiada, como co- gestora da Resex. Por outro, não viam com bons olhos a disputa com a prefeitura da “terra”, pois recebiam, vez por outra, benefícios da municipalidade. Na quinta posição, mas longe de ser o último grupo com interesses na disputa tínhamos a Marinha de Guerra do Brasil (no episódio representada pelo submarino ancorado no molhe do Porto do Forno). Este grupo se insurgia com o que significava como um ingerência no controle sobre o mar, que sempre fora da Marinha desde a sua criação no século XIX. Na escalada do conflito que analisamos vimos que, aos longo do dia, algumas posições se modificaram e novos atores entraram em cena. Dois, em particular, vinculadas à esferaestadual, a saber: a Polícia Militar e a Polícia Civil. A primeira com a representação de eliminar o conflito e restabelecer a ordem social, construída a partir da significação de quem a chamou: o poder público municipal. A segunda, a Polícia Civil, com a tarefa de fazer a primeira redução da complexidade do episódio aos termos jurídicos, com uma chave de interpretação a partir da legislação vigente. No horizonte de curto prazo, o poder judiciário – com novas significações sobre o conflito – colocou o Trailer de volta na Marina e autorizou a cobrança de forma liminar. Os grupos contrários reagiram com alguma truculência, mencionada na sentença do juiz e outros com violência, ateando fogo ao Trailer do Ibama. Mas é claro que seria simplificar demais achar que esta atitude estava apenas vinculada à cobrança da Taxa de Visitação. Havia outras frentes de conflito com pescadores cabistas e não cabistas no espaço da Resex. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J No horizonte de médio prazo, seis anos depois, o Judiciário manteve a cobrança. Mas neste contexto muita coisa havia mudado na Resex. O Gerente da Resex não era o mesmo. A direção da Aremac havia mudado e um novo foco estava sendo dado a gestão, com o objetivo de reduzir a conflitualidade. Do “não pode” se buscava o “como pode”. No horizonte de longo prazo, cerca de quinze anos depois, com a ressignificação por parte de vários atores do lugar a Resex na vida do Arraial do Cabo e seus moradores, da Taxa de Visitação, logrou-se celebrar um Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) entre o Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Aremac para o acesso aos recursos naturais renováveis na Resex. Não há dúvida que se o CCDRU pôs fim a uma série de disputas, mas não seria descabido sugerir que novas disputas se iniciaram a partir de novas posições, fundadas em significações sore os objetos repactuados. Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Ao final desta aula podemos fazer uma revisão dos conceitos trabalhados até o momento. A ideia presente no imaginário sócio-jurídico brasileiro que o conflito é negativo e que uma ordem pretérita deve ser prontamente restabelecida não se comprova como eficaz. Ao contrário, a não explicitação dos significados em disputa pelas partes não permite que se faça uma adequação de medidas que possam ser adequadas para a sua administração. Tal explicitação permitiria avaliar se o conflito tem uma dimensão de tratabilidade que permitiria que fosse judicializado ou administrado pelos novos instrumentos de resolução alternativas de conflitos (tais como mediação, conciliação ou arbitragem, que veremos na Aula 4). Ou então, a multiplicidade de significados sobre o objeto em disputa indicaria que o conflito deveria ser conceituado como intratável e que os mecanismos mais adequados seriam sua administração – que trataremos mais adiante no curso. No momento, por definição e exemplificação, sugerimos que os conflitos socioambientais seriam conflitos intratáveis uma vez que, em sua grande maioria, não apresentam significados compartilhados pelos contendores, ou os significados mudam ao longo do tempo – em intervalos de tempo bastante variados – ou os contendores mudam no tempo e aportam novos significados em um conflito. CONCLUSÃO Highlight Highlight Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J Vimos que há conflitos que podem ser solucionados, os conflitos tratáveis ou os dramas sociais. Mas vimos que mesmos estes, quando submetidos a uma simplificação em sua transposição para o processo judicial, são transformados em uma categoria jurídica, a lide, que é o que a sentença consegue por fim, e não a “pacificação social”. Apresentamos um exemplo de conflito socioambiental no qual as mudanças de significado e dos atores em uma disputa sugere que além dos conflitos tratáveis, há uma outra categoria, os conflitos intratáveis, que resistem à sua “solução”, e que devem ser administrados de outra forma, que veremos mais adiante. RESUMO Administração de Conflitos Socioambientais | Todos conflitos são “tratáveis”? Há conflitos “intratáveis”? CEDER J BOHANNAN, Paul. 1965. The Differing Realms of the Law. In: American Anthropologist, 67, 6 (part 2, December 1965):33-42. DAVIS, Shelton H. 1973. 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