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EXTINÇÃO DA PERSONALIDADE NATURAL 1. Modos de extinção Preceitua o art. 6º do Código Civil que “a existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”. Somente com a morte real termina a existência da pessoa natural, que pode ser também simultânea (comoriência). Doutrinariamente, pode-se falar em: morte real, morte simultânea ou comoriência, morte civil e morte presumida. 1.1. Morte real A morte real é apontada no art. 6º do Código Civil como responsável pelo término da existência da pessoa natural. A sua prova faz-se pelo atestado de óbito ou por ação declaratória de morte presumida, sem decretação de ausência (art. 7º), podendo, ainda, ser utilizada a justificação de óbito prevista no art. 88 da Lei dos Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), quando houver certeza da morte em alguma catástrofe, não sendo encontrado o corpo do falecido. A morte real — que ocorre com o diagnóstico de paralisação da atividade encefálica, segundo o art. 3º da Lei n. 9.434/97, que dispõe sobre o transplante de órgãos — extingue a capacidade e dissolve tudo (mors omnia solvit), não sendo mais o morto sujeito de direitos e obrigações. Acarreta a extinção do poder familiar, a dissolução do vínculo matrimonial, a abertura da sucessão, a extinção dos contratos personalíssimos, a extinção da obrigação de pagar alimentos, que se transfere aos herdeiros do devedor (CC, art. 1.700) etc. Lembra, todavia, Washington de Barros Monteiro, que “não é completo o aniquilamento do de cujus pela morte. Sua vontade sobrevive através do testamento. Ao cadáver é devido respeito, havendo no Código Penal dispositivos que reprimem crimes contra os mortos (arts. 209 a 212). Militares e servidores públicos podem ser promovidos post mortem e aquinhoados com medalhas e condecorações. A falência pode ser decretada, embora morto o comerciante (Dec.- Lei n. 7.661, de 21-6-1945, art. 3º, n. I e art. 9º, n. I). Por fim, existe a possibilidade de reabilitar-se a memória do morto”1. 1 Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., v. 1, p. 72; 1.2. Morte simultânea ou comoriência A comoriência é prevista no art. 8º do Código Civil. Dispõe este que, se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião (não precisa ser no mesmo lugar), não se podendo averiguar qual deles morreu primeiro, “presumir-se-ão simultaneamente mortos”. Idêntica solução encontra-se no Código alemão (art. 20), no Código italiano e no Código português de 1966 (art. 8º, n. 2). Alguns países, todavia, adotaram outros critérios. O direito romano estabelecia uma variedade de presunções que complicavam a solução. Acontece o mesmo com o direito francês. Ambos, baseados em fatores arbitrários, presumem que a mulher morre mais cedo do que o homem, que o mais velho morre antes do mais novo etc., chegando a entrar em detalhes sobre as diversas situações que podem ocorrer. No entanto, não há base científica para essas presunções. Se a morte é causada pelo mesmo evento, não há motivo para que se estabeleça uma presunção de sobrevivência em razão do laço de parentesco, do sexo ou da idade. Melhor, portanto, a solução do nosso direito2. Quando duas pessoas morrem em determinado acidente, somente interessa saber qual delas morreu primeiro se uma for herdeira ou beneficiária da outra. Do contrário, inexiste qualquer interesse jurídico nessa pesquisa. O principal efeito da presunção de morte simultânea é que, não tendo havido tempo ou oportunidade para a transferência de bens entre os comorientes, um não herda do outro. Não há, pois, transferência de bens e direitos entre comorientes. Por conseguinte, se morrem em acidente casal sem descendentes e ascendentes, sem se saber qual morreu primeiro, um não herda do outro. Assim, os colaterais da mulher ficarão com a meação dela, enquanto os colaterais do marido ficarão com a meação dele3. 2 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 150. 3 “Falecendo no mesmo acidente o segurado e o beneficiário e inexistindo prova de que a morte não foi simultânea, não haverá transmissão de direitos entre os dois, sendo inadmissível, portanto, o pagamento do valor do seguro aos sucessores do beneficiário. É preciso que o beneficiário exista ao tempo do sinistro” (RT, 587/121). Diversa seria a solução se houvesse prova de que um faleceu pouco antes do outro. O que viveu um pouco mais herdaria a meação do outro e, por sua morte, a transmitiria aos seus colaterais. O diagnóstico científico do momento exato da morte, modernamente representado pela paralisação da atividade cerebral, circulatória e respiratória, só pode ser feito por médico legista. Se este não puder estabelecer o exato momento das mortes, porque os corpos se encontram em adiantado estado de putrefação, por exemplo, presumir-se-á a morte simultânea, com as consequências já mencionadas. A situação de dúvida que o art. 8º pressupõe é a incerteza invencível4. Tendo em vista, porém, que “o juiz apreciará livremente a prova” (CPC, art. 131), cumpre, em primeiro plano, apurar, pelos meios probatórios regulares, desde a inquirição de testemunhas até os processos científicos empregados pela medicina legal, se alguma das vítimas precedeu na morte às outras. Na falta de um resultado positivo, vigora a presunção da simultaneidade da morte, sem se atender a qualquer ordem de precedência, em razão da idade ou do sexo. 1.3. Morte civil. A morte civil existiu na Idade Média, especialmente para os condenados a penas perpétuas e para os que abraçavam a profissão religiosa, permanecendo recolhidos, e que permaneceu até a Idade Moderna. As referidas pessoas eram privadas dos direitos civis e consideradas mortas para o mundo. Embora vivas, eram tratadas pela lei como se mortas fossem. Foi, porém, sendo abolida pelas legislações, não logrando sobreviver no direito moderno 5 . Pode-se dizer que há um resquício da morte civil no art. 1.816 do Código Civil, que trata o herdeiro, afastado da herança, como se ele “morto fosse antes da abertura da sucessão”. Mas somente para afastá-lo da herança. Conserva, porém, a personalidade, para os demais efeitos. Também na legislação militar pode ocorrer a hipótese de a família do indigno do oficialato, que perde o seu posto e respectiva 4 presunção legal de comoriência estabelecida quando houver dúvida sobre quem morreu primeiro só pode ser afastada ante a existência de prova inequívoca de premoriência” (RT, 639/62). 5 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., v. 1, p. 148; Washington de Barros Monteiro, Curso, cit., v. 1, p. 70. patente, perceber pensões, como se ele houvesse falecido (Dec.-Lei n. 3.038, de 10- 2-1941). 1.4. Morte presumida A morte presumida pode ser com ou sem declaração de ausência. Presume- se a morte, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva (CC, art. 6º, 2ª parte). O art. 37 permite que os interessados requeiram a sucessão definitiva e o levantamento das cauções prestadas dez anos depois de passada em julgado a sentença que concede a abertura da sucessão provisória. Pode-se, ainda, requerer a sucessão definitiva, provando-se que o ausente conta 80 anos de idade, e que de cinco datam as últimas notícias dele (art. 38). A declaração de ausência, ou seja, de que o ausente desapareceu de seu domicílio sem dar notícia de seu paradeiro e sem deixar um representante, produz efeitos patrimoniais, permitindo a abertura da sucessão provisória e, depois, a definitiva. Na última hipótese, constitui causa de dissolução da sociedade conjugal, nos termos do art. 1.571, §1º. Prescreve, com efeito, o aludido dispositivo legal que “o casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente”. Se este estiver vivo e aparecer, depois de presumida a sua morte e aberta a sucessão definitiva, com a dissolução da sociedade conjugal, e seu cônjuge houver contraído novo matrimônio, prevalecerá o último, diferentemente do que ocorre no direito italiano, que declara nulo o segundo casamento se o ausente retorna, sendo considerado, porém, casamento putativo, gerando todos os efeitos civis. A solução do Código Civil brasileiro mostra-se melhor, pois a esposa, em virtude da ausência, já constituiu nova família, sendo desarrazoado dissolvê-la para tentar restabelecer uma ligação já deteriorada pelo tempo. A lei que concedeu anistia às pessoas que perderam os seus direitos políticos por terem participado da Revolução de 1964 (Lei n. 6.683, de 28-8-1979) abriu uma exceção, permitindo aos familiares daqueles que desapareceram e os corpos não foram encontrados a propositura de ação de declaração de ausência para todos os efeitos, inclusive pessoais, sendo a sentença irrecorrível. O art. 7º do Código Civil permite a declaração de morte presumida, para todos os efeitos, sem decretação de ausência: “I - se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II - se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento”. Quando os parentes requerem apenas a declaração de ausência, para que possam providenciar a abertura da sucessão provisória e, depois, a definitiva (CC, art. 22), não estão pretendendo que se declare a morte do ausente, mas apenas que ele se encontra desaparecido e não deixou representante para cuidar de seus negócios. Na hipótese do art. 7º retrotranscrito, pretende-se, ao contrário, que se declare a morte que se supõe ter ocorrido, sem decretação de ausência. Em ambos os casos, a sentença declaratória de ausência e a de morte presumida serão registradas em registro público (CC, art. 9º, IV). A Lei dos Registros Públicos (Lei n. 6.015/73, art. 88) prevê um procedimento de justificação, destinado a suprir a falta do atestado de óbito, que não pode ser fornecido pelo médico em razão de o corpo do falecido não ter sido encontrado. Preceitua, com efeito, a referida lei: “Art. 88. Poderão os juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o cadáver para exame. Parágrafo único. Será também admitida a justificação no caso de desaparecimento em campanha, provados a impossibilidade de ter sido feito o registro nos termos do art. 85 e os fatos que convençam da ocorrência do óbito”. O Código Civil amplia, no art. 7º, I e II, as hipóteses de morte presumida, usando expressão genérica: “quem estava em perigo de vida”. Desse modo, abrange não somente aqueles que desapareceram em alguma catástrofe, como também os que estavam em perigo de vida decorrente de qualquer situação, sendo extremamente provável a sua morte. Nesse caso, somente poderá ser requerida a declaração de morte presumida “depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento”. 2. Da declaração de ausência A ausência compreende três fases: a) curadoria dos bens do ausente: nesta fase, o legislador se preocupa com a proteção dos bens do ausente. A curadoria tem, em regra, duração de 1 ano. Caso o ausente tenha deixado procurador, o prazo passa a ser de 3 anos. Essa fase se encerra, pela confirmação da morte do ausente; pelo seu retorno ou pela abertura da sucessão provisória. b) Na fase da sucessão provisória, os herdeiros podem entrar na posse dos bens do ausente, desde que prestem garantia da restituição deles, em caso de retorno do ausente. Essa fase, durará, em regra, 10 anos (contados do trânsito em julgado da decisão que abre a sucessão provisória). O prazo se reduz para 5 anos, se o ausente tiver mais de 80 anos e de mais de 5 anos datarem suas últimas notícias. Essa fase se encerra pela pela confirmação de morte do ausente, pelo seu retorno ou pela abertura da sucessão definitiva. c) Sucessão definitiva: nesta que é a última fase, os herdeiros podem solicitar o levantamento das garantias prestadas, adquirindo assim, o domínio dos bens deixados. No entanto, o domínio será resolúvel, uma vez que, caso o ausente retorne, terá seus bens de volta, porém, no estado em que se encontrarem. Todavia, é importante ressaltarmos que o ausente só terá esse direito, se retornar em até 10 anos contados da abertura da sucessão definitiva, depois disso, não mais terá direito aos bens.