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_Coz e Ident Nacional (1)

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31
Cozinha e Identidade Nacional: notas sobre a culinária
na formação da cultura brasileira segundo Gilberto
Freyre e Luis da Câmara Cascudo
Rogéria Campos de Almeida Dutra
Professora de Antropologia Cultural no Departamento de Ciências Sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Doutoranda em Antropologia Social no Programa de pós-graduação em Antropologia Social no Museu Nacional, UFRJ.
Como todo ser vivo, os seres hu-
manos também se alimentam. Não obe-
decem, porém, a um padrão alimentar
uniforme, demonstrando-nos uma sur-
preendente criatividade na diversidade
do ato de se nutrir. A culinária não res-
ponde exclusivamente às necessidades
biológicas de sobrevivência, mas tam-
bém não é resultado somente cultural;
duas dimensões de um mesmo fenô-
meno, espaço privilegiado da media-
ção entre Natureza e Cultura. Um meio
pelo qual a natureza é transformada em
cultura, como diria Lévi-Strauss (1968).
Nossa recusa por certos tipos de alimen-
to – que classificaríamos como “não-
comestíveis” – não está, na maioria das
vezes, fundada na fisiologia, mas num
sentimento de ordem, que envolve as
dimensões ética, estética e dietética. Daí
podermos compreender a cultura como
fundadora de um critério de palatabili-
dade. É pela repetição incalculável dos
estímulos sápidos que se processa a fi-
xação do paladar. Fruto do hábito, ob-
jeto da memória, o paladar se constrói,
e valorativamente, pela combinação
imprevisível do que classificamos como
salgado, doce, ácido, amargo e pican-
te. Diversas vezes mencionada por via-
jantes que passaram pelo Brasil coloni-
al, temos como exemplo, a preferência,
tanto negra quanto ameríndia, pelo sa-
bor picante da pimenta. Em nossa pró-
pria cultura observamos como os sabo-
res amargo e azedo associam-se a algo
difícil, ruim, enquanto que o doce, que-
rido representa suavidade.
Neste sentido, o estudo da alimen-
tação tem local privilegiado na análise
cultural, na medida em que as preferên-
cias alimentares figuram entre traços dis-
tintivos e singularizantes. E não só varia
entre sociedades, grupos sociais, como
pode se diferenciar internamente a es-
ses grupos, como comida de homem/
de mulher, de criança/adulto, de ho-
mens/deuses. Sua abordagem nos con-
duz a questões múltiplas que envolvem
a ecologia, a técnica utilizada (no pre-
paro do alimento e sua conservação), a
vida familiar, as relações sociais, a ordem
simbólica. As predileções alimentares se
constroem a partir duma complexa tra-
ma entre “norma de uso” e “respeito a
tradição” (cf. Cascudo, 1983) Porém,
apesar de profundamente arraigadas
(não devemos nos esquecer que o
paladar é o último a se desnacionalizar)
não estão congeladas. Acompanham a
própria dinâmica da sociedade na qual
se inserem, estabelecendo o diálogo con-
tínuo entre o tempo (o processo histó-
rico) e o espaço (o espaço geográfico).
O contato cultural nunca deixou de
existir, e muito menos de contribuir para
a reconstrução da singularidade. Como
nos lembra R. Bastide (1973), a cultura
se desenvolve muito mais por interfe-
cundação do que por autofecundação.
Há de se considerar o contato cultural
não só como um processo de acultu-
ração (no sentido literal de perda e
anulação, e que de fato ocorreu, e vem
ocorrendo, muitas vezes de forma trá-
gica), como também de intercâmbio, res-
saltando o valor do encontro de dife-
rentes tradições.
Neste texto, pretendo destacar
como o processo de formação da socie-
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 32
dade brasileira pode se narrado pela constituição
dos hábitos alimentares de sua população, apesar
de ser um traço peculiar desta nossa sociedade a
coexistência da diversidade regional (os diferentes
sistemas ecológicos que definem o espaço) com o
descompasso temporal (o processo histórico dife-
renciado). Neste exercício reflexivo, centro-me
particularmente em dois autores, Gilberto Freyre e
Luis da Câmara Cascudo. Tal escolha deve-se pelo
destaque que ambos dedicam à questão alimentar
como fator constitutivo da identidade nacional.
Ressalvando-se as diferenças entre os dois autores
(inclusive por trajetórias distintas), podemos
considerá-los portadores, dentre outros, do proje-
to da inteligentsia brasileira, na primeira metade
do século passado, de construir a identidade naci-
onal valorizando exatamente o que era considera-
do o grande empecilho para nossa construção como
nação e para o “progresso” da sociedade brasilei-
ra: a mistura, a mestiçagem que nos distanciava do
padrão europeu de tradição, cujo prejuízo estaria
relacionado a fortes componentes raciais.
O CONTATO
Foram necessários mais de 30 anos para que
Portugal decidisse implementar uma política de
colonização na Terra de Santa Cruz. A falta de
grandes tesouros, e aparentemente, de riquezas
minerais, a coroa portuguesa decidiu-se por po-
voar este território a partir de uma estratégia ino-
vadora. Ao invés de manter-se no extrativismo
mercantilista, já experimentado tanto na sua pre-
sença na Índia quanto na África, instituiu uma nova
forma de permanência com uma atividade que
lhe fosse rentável, a “colônia de plantação”, base-
ada na agricultura. Esta realidade colonial agrária,
da monocultura da cana e a produção de açúcar
para “exportação” fundamentava-se na explora-
ção de mão-de-obra escrava (primeiramente
ameríndia e depois negra) e na necessidade de
fixação do português neste território. Uma outra
peculiaridade deste empreendimento da coroa
portuguesa é o fato de que se construiria pela ação
e investimento particular, de famílias de nobres
ou ricos comerciantes que se desfaziam de seus
bens no reino para investir, colonizar e proteger
esta terra ova. Assim instala-se, principalmente no
Nordeste, o complexo Casa-Grande & Senzala,
definindo-se por características tais como:
autárquica, produtiva, familial, hirárquica. Em
contraste ao nomadismo exploratório nas primei-
ras décadas do desenvolvimento – atividade mais
democrática, por sinal, dando chance aos aven-
tureiros, e que de alguma forma permaneceu
como tendência dominante na atividade dos ban-
deirantes na Capitania de São Vicente, – destaca-
se a “estabilidade secular” do senhor de engenho.
É neste cenário que se assiste o contato de
três culturas diferentes, a ameríndia, a africana e
a européia, interesse especial tanto de Freyre quan-
to de Câmara Cascudo. Procuram destacar as pos-
sibilidades de enriquecimento cultural que se deu
pela via do “empréstimo” e do “acréscimo”. A
tendência de combinação de traços de culturas
diferentes que resultariam em uma configuração
única, tornando-se um “complexo de cultura”.1
Este contato, no entanto, não se restringiu, no
caso brasileiro, “à esfera produtiva”. A composição
da sociedade brasileira se dá pela “hibridização”,
onde grande número de colonos constituíram famí-
lias com a ameríndia e a negra. Ambiente de escas-
sez feminina provocando uma certa “confraterniza-
ção” entre “vencedores e vencidos”.
Freyre empenha-se, de forma bem sucedida
por sinal, em inovar a leitura deste passado da so-
ciedade brasileira pela perspectiva “de dentro”,
através dos “estilos de residência, constantes de
existência e normas de coexistência” – definidores
estes, do “caráter” do povo brasileiro. Através de
uma introspecção quase que proustiana, ele se pro-
põe a uma “aventura da sensibilidade”, a penetrar
na intimidade deste passado. A casa, e o que se
passa na casa, como centro mais importante de
adaptação e acomodação do português, o negro e
o ameríndio. Pois que o complexo Casa-Grande
&Senzala, autarquia produtiva, dirigida por senho-
res rurais de autoridade inquestionável – “Dono
das terras. Dono dos homens. Dono das
Mulheres”(cf. Freyre, 1973a:lvii) – gira em torno
da família como base da colonização. Uma das
grandes forças permanentes, preservando e difun-
dindo valores. Vale ressaltar que essas categorias
“casa” e “família”não só definem uma qualidade
do espaço, ou da mistura sangüínea, mas o cenário
de relações interpessoais. Esta dimensão relacional,
__________________________
1 Destaca-se nesta forma de abordar a realidade cultural o
diálogo de Freyre com o que viria a se chamar de
Configuracionismo. Enquanto “traço” se definiria por ele-
mentos culturais, o complexo se caracterizaria como a reu-
nião dos vários “usos”, nos quais se faz presente este ele-
mento específico.
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 33
que acontece na esfera doméstica, transborda para
outras instâncias. Os personagens se definem e são
definidos uns em relação aos outros, numa relação
ao mesmo tempo fortemente hierárquica (envol-
vendo a subordinação e a coerção) e uma convi-
vência por demais íntima. Escrava, mas amante.
Filho, mas bastardo. Católico, mas polígamo. Da
família, mas mucama. As composições são intermi-
náveis, mas sempre paradoxais, inclusiva dos opos-
tos. A sociedade brasileira se constituindo baseada
no equilíbrio de antagonismos.
É a partir do mergulho nesta “petite histoire”,
de preocupações aparentemente “femininas em
torno de assuntos docemente inofensivos” (cf.
Freyre, 1968: LXX) que tocamos nos bastidores do
processo histórico de transformação de uma socie-
dade. Fundamental para Freyre é o uso dos senti-
dos para a sintonização daquele se cultural com
seu meio e com as pessoas: não só a visão, o diálo-
go de imagens, como o olfato, o paladar, o tato, a
audição. A percepção sensorial. Não é por acaso
que o sexo e a comida permeiam constantemente
as relações, intermediada por um personagem es-
pecialmente valorizado por Freyre, a mulher.
“O português encontrou no Brasil a mulher
fácil, abundante e amorosa” (Cascudo, 1983:172).
Freyre é de opinião de que a cunhã constituiu a
base física da família brasileira. Através dela, mais
do que do índio, caçador e devastador de flores-
tas, o europeu teve acesso à natureza cultivada,
domesticada, imprescindível para sua sobrevivên-
cia: dos frutos coletados e pequenas lavouras à
cerâmica e tecelagem. É da mulher gentia que vi-
eram remédios caseiros e o asseio pessoal ( o tão
comentado banho freqüente, parte dos processo
de higiene tropical desconhecido na época por
grande parte dos europeus). Não só foi a primeira
cozinheira, como também a primeira concubina:
ela representou com sua nudez e interesse sexual
em agradar o branco, o paraíso tropical para aque-
les que vieram de uma Europa medieval e uma
moral católica excessivamente rígida.
A desvalorização da cunhã é simultânea ao
desenvolvimento da indústria do açúcar, quando
surge a figura da mucama, que dominou de forma
mais intensa o ambiente doméstico, “discípula
maravilhosa em ambas as fórmulas do sabor culi-
nário e sexual solicitadas”(Cascudo, 1983:175).
Apesar de sua posição subjugada frente ao regime
escravocrata, Freyre destaca como esta íntima con-
vivência da negra contribuiu para relativizar a pró-
pria dureza da coerção: “Muita africana consegui-
ra impor-se ao respeito dos brancos; umas, pelo
temor inspirado por suas mandingas; outras, como
as Minas, pelos seus quindins e pela sua finura de
mulher” (cf. Freyre, l973a: 427). Já era comum em
Lisboa no século XVI, como o foi nas principais ci-
dades brasileiras do Brasil colonial, a presença de
negras na rua vendendo os mais diversos víveres,
na maioria a serviço de iaiás que preferiram se
manter no anonimato. Outras vezes, o valor
“quituteira/concubina” se destacava: as negras fre-
qüentando os quartos dos mascates portugueses nas
fazendas, por ordem do senhor interessado em
aumentar o plantel de mestiços, oferecendo-lhes
“mingauzinho dourado a ovos” (Freyre, 1968: 630).
Vale ainda destacar o entranhamento da mucama
na vida familiar, através da criação dos filhos de
seus senhores: da proximidade sangüínea, pelo se
papel de “cabra mulher”, amamentando a nume-
rosa prole da casa grande, à sua participação nas
cantigas de ninar, nas histórias que contavam, fe-
cundando a imaginação infantil, e na fala dengosa,
resumida, rapidamente assimilada pelos pequenos.
Freyre descreve a mulher portuguesa do pa-
triarcado rural da Casa-Grande como mulheres
gordas, com grande conhecimento de cozinha e
higiene da casa, “modos europeus e cristãos de
tratar menino e gente doente”(op.cit.: 32). Mãe
ignorante, cuja repercussão nos filhos não ultra-
passava à esfera sentimental, alheia ao mundo que
não fosse o da casa. Dedicava-se à sua adminis-
tração, acompanhando e fiscalizando inúmeros
criados em seus afazeres, seja nas costuras, no
preparo de velas, sabão, licores ou geléias. Com
sua sociabilidade restrita, exercitava o “saneamen-
to mental” nos confessionários. Tanto Freyre quan-
to Cascudo consideraram-na, a “iaiá”, a grande
estabilizadora da civilização européia no Brasil,
dado o seu papel conservador, estável, ordenador
e integralizador.
Às mulheres, coube uma posição especial
neste processo dinâmico de caldeamento cultu-
ral. Foram estrategicamente contemporizadoras,
mediadoras de conflitos latentes, atuando sem,
apesar da forma dissimulada, mas pressente e efe-
tiva. Algo como o poder dos fracos, ou das águas,
que lentamente envolve e domina o ambiente.
O europeu encontrou aqui o ameríndio com
uma alimentação baseada na caça, pesca, coleta e
uma lavoura ainda incipiente: mandioca, milho,
batata, feijão, pimentão, abóboras, cará, amendo-
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 34
im, palmitos, caju, abacaxi, goiaba, cajá, maracu-
já, mamão. Peixes e carnes assados no calor do
borralho, no moquem, enterrados sob a fogueira.
Bebidas elaboradas a partir da fermentação de fru-
tas, do milho, da mandioca. Não se utilizava o sal,
nem o óleo. Apesar da grande influência sobre a
alimentação do brasileiro, este não se utilizou da
totalidade de espécies vegetais incluídas no cardá-
pio ameríndio: bagas, raízes, frutos, o mingau de
caroço de algodão, os içás (fêmea da formiga saúva,
largamente apreciados no Brasil colonial, até mes-
mo por europeus) e as “rahu” (larvas de um estágio
de desenvolvimento de um certo tipo de maripo-
sa, comparadas por alguns viajantes como a mais
fina iguaria francesa). A vitória do complexo indí-
gena da mandioca sobre o trigo merece ser
relembrada: ela tornou-se base do regime alimen-
tar do colonizador, com exceção de alguns repre-
sentantes da elite portuguesa que insistiam em con-
sumir a “farinha do reino”. Vem do hábito alimentar
indígena a base da nutrição popular: mandioca,
milho, batata, decisivos na “predileção cotidiana”
do brasileiro. Do indígena herdamos o mingau, o
pirão, a paçoca, a pamonha, a canjica, a pipoca.
Formas culinárias originais que foram sendo lapi-
dadas pelo tempo, por mãos africanas e portugue-
sas para se chegar aos dias de hoje.
É também na culinária que vemos de forma
evidente a infiltração da cultura negra na nossa
cultura: o uso do azeite de dendê, a pimenta
malagueta, quiabo, gengibre, a variedade de fei-
jões, inhame, coco, das palavras presentes no
nosso vocabulário: quitutes, moleque, mocotó,
quindim, mungunzá, farofa, angu, fubá. Vale ain-
da destacar a doçaria de rua, das negras com seus
tabuleiros e caldeirões oferecendo mocotó, vatapá,
mingau, canjicas, acaçás, abarás, arroz de coco,
feijão de coco, angu, peixe frito, mungunzá, bolo
de milho, milho assado, tapioca molhada, acarajé.
Negra e mulata quente, voluptuosa, que abusava
dos “afrodisíacos do paladar” 2 .
De acordo com Câmara Cascudo (1983), a
mulher portuguesa prestou duas contribuições
básicas à alimentação brasileira no domínio do
paladar: valorizou o sal (praticamente desconhe-
cido entre os ameríndios e pouco utilizado por
africanos) e introduziu o açúcar. A ciência coloni-
zadora do português tem como um de seus ápi-
ces a transmissão de seu paladar aos habitantes
desta terra, pois o que era português tornou-se
brasileiro: toucinho,lingüiça, azeite, hortaliças,
vinagre. Devemos também à mulher portuguesa
a versatilidade do uso do ovo de galinha, a sua
combinação com farinha, leite e açúcar, ignorada
pelo africano e pelo indígena. Gilberto Freyre ain-
da destaca a influência árabe na culinária portu-
guesa que aqui também nos tocou: a preferência
por comidas oleosas, cheias de açúcar,
“condimentação afrodisíaca, vibração erótica”. Os
inumeráveis doces e bolos de conventos, com forte
apelo erótico, “...sussurrando nomes que eram
confissões, apelos, críticas, murmúrios de queixas”
(Cascudo, 1983: 344): Beijos, Suspiros, Abraços,
Saudades, Sonhos, Toucinho do Céu, Cabelos de
Virgem, Casadinhos, Barriga-de-Freira, Papo-de-
Anjo, dentre outros. Nas palavras de Freyre, “a
intenção afrodisíaca, o toque fescenino a confun-
dir-se com o místico (...) Levanta-velho, Língua-
de-moça, Baba-de-moça, Mimos de Amor”
(1973a: 250). Deve-se ainda às portuguesas o
hábito de fritar os alimentos, o arroz doce polvi-
lhado de canela, a arte do papel recortado.
Neste caldeamento cultural, apesar da rica
diversidade de ingredientes, observa-se que na so-
ciedade brasileira em geral, a base técnica mante-
ve-se portuguesa, pois foram essas mulheres que
ensinaram às cunhãs e mucamas a cozinhar na
casa-grande e no sobrado. Cascudo nos fala da
ocorrência de uma “aculturação compulsória”
portuguesa, utilizando as reservas amerabas e os
recursos africanos. Ressalta também que o pro-
cesso de integração de raízes alimentares distintas
teve caráter peculiar no caso brasileiro, compa-
rando-se às colônias portuguesas em território afri-
cano. Enquanto aqui verificou-se uma técnica
européia consagrando o produto nativo, no terri-
tório africano observa-se a pouca influência da
mulher européia, e a predominância da culinária
nativa com penetração dos pratos estrangeiros. A
mulher portuguesa fez o beiju ameríndio mais fino
e mais seco, molhou o polvilho de mandioca com
leite. Inventou comidas, doces, conservas com fru-
tos e raízes da terra, vinho e licor de caju, casta-
nha de caju no lugar da amêndoa, o cuscuz de
mandioca, a carne com cará, a canela e cravo
conferindo sabores nobres a frutos tropicais. A
própria feijoada, prato democraticamente presente
na mesa dos brasileiros, apesar de associar-se ao
escravo negro (era comida de senzala), “... é uma
__________________________
2 É curiosa a associação da situação, ou do objeto sexual-
mente excitante, com o sabor picante da pimenta.
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 35
solução européia elaborada no Brasil” (Cascudo,
1983: 502), pois utiliza-se a técnica portuguesa
da carne guisada com feijões. Porém, nem na Áfri-
ca, nem em Portugal (que já conheciam tipos de
feijões) ela tem esta popularidade que tem no
Brasil, sendo que aqui ainda associa-se à farofa, à
base da mandioca ameríndia.
A doçaria brasileira, dada sua particularida-
de, foi objeto específico de reflexão de Freyre. É
no livro “Açúcar” que ele analisa o doce brasileiro
como parte de um complexo cultural, expressão
de um processo de interpenetração de culturas3 .
Uma arte simbiótica que reúne “gostos tradicio-
nais europeus a sabores tropicais”: a combinação
de açúcar com frutas nativas como jenipapo, araçá,
mamão, goiaba, maracujá, jabuticaba. No Nor-
deste, em particular, verificou-se uma íntima cor-
respondência entre a sofisticação (no sentido de
diversidade) da arte da doçaria e a intensidade
regional da produção de açúcar. Não só o doce
como estética de sobremesa, como forma de ali-
mentação (a indispensável rapadura do sertanejo
nordestino é um exemplo), como também de re-
creação. Na arte da doçaria tradicional, verifica-
se com nitidez a relação do produto culinário com
o material técnico que o viabiliza: a colher de pau,
o tacho de cobre, a panela de barro (como as gran-
des cuscuzeiras baianas vedadas com massa de
farinha de mandioca), peças regionais que se apre-
sentam como indispensáveis ao preparo de
quitutes. Nesta íntima aliança entre alimento e
utensílio (ligado a uma técnica cultural, inserido
ecologicamente em seu meio), pode-se incluir tam-
bém a arte do papel recortado, herança portu-
guesa largamente utilizada no Brasil ainda agrário
e agreste, para enfeitar bolos, cobrir tabuleiros de
doceiras de rua, forrar prateleiras.
Para Freyre, o doce no Brasil vem adoçar as
bocas e, em certo sentido (que ele chamaria de
simbólico) adoçar o “coração e os humores”. Ao
doce associa-se o chamego e a meiguice, o amo-
lecimento das relações interpessoais. Aliás, ao re-
ferir-se ao açúcar como “complexo do açúcar”
como acima mencionamos, ele não está se refe-
rindo somente ao produto em si, o ingrediente,
mas considerando-o numa série de aplicações e
repercussões) na vida em grupo. Sem a escravi-
dão não se explicaria o desenvolvimento da arte
do doce, pois este tipo de confeitaria, com suas
exigências de mão-de-obra e mesmo de material
só foi possível pelas horas de ócio e lazer das sinhás
ricas e o trabalho fácil das escravas. As receitas
constituem um capítulo particular na história do
doce na sociedade brasileira. A imprecisão das
medidas numa sociedade ainda pouco envolvida
com a linguagem universal matemática – “um prato
fundo”, “uma garrafa”, “três palanganas” – , tanto
pode nos revelar a pouca instrução das sinhás,
como um certo cuidado em se resguardar as re-
ceitas. Observa-se freqüentemente a profusão de
ingredientes como os ovos (18, 30, até 36 ovos...):
origem aristocrática, ou talvez, o contexto rural
de abundância de certos víveres. Os nomes das
receitas também carregam significados que
extrapolam o universo da cozinha: intenções ve-
ladas (como já mencionei anteriormente), momen-
tos históricos (Bolo Abolicionista, Bolo Republica-
no), a realidade colonial (Beijos de Cabocla,
Arrufos de Sinhá).
As receitas pertenciam ao domínio das mu-
lheres. Segredos de família que lhe conferiam dis-
tinção. No Nordeste assumiram forma
emblemática como se fossem brasões de grandes
famílias. Fundavam-lhes a tradição, inacessível a
“qualquer um”. Bolos e doces que tomaram no-
mes de família, ou de engenho, mantendo-se as
receitas como segredo de família, Freyre nos fala
de uma “maçonaria” de mulheres guardando re-
ceitas e transmitindo-as entre gerações.
Compreender o “complexo do açúcar” im-
plica a atenção à suas aplicações. Quais frontei-
ras se estabelecem nesta profusão de doces, que
se tornam repetitivos ao paladar? Freyre nos cha-
ma a atenção para este detalhe, relembrando-se
de F. Boas, ao estudar a variedade de comidas
preparadas com azeite pelos Kwakiutl à base de
peixe, e que lhe pareciam, ao paladar do euro-
peu, monótonas: “sempre o mesmo gosto de
peixe no azeite”(1997:73). Obviamente, não aos
olhos do nativo. Assim também são os doces, par-
ticularmente os doces nordestinos, cuja diversi-
dade associa-se a uma etiqueta social: doces para
o almoço, outros para o jantar, doces de festa,
de casamento, de Natal, de São João. “Tudo açú-
car, mas dentro do gosto uma variedade e hie-
rarquia” (op.cit.:74).
__________________________
3 Gilberto Freyre nos fala de um paladar tropicalmente, eco-
logicamente condicionado a estimar o doce e até de abu-
sar. Há referências de vários depoimentos de estrangeiros
sobre o fato de os doces brasileiros serem excessivamente
doces, o qual Freyre associa à influência moura na cultura
portuguesa.
Anais do Seminário Gastronomia em Gilberto Freyre 36
Esta sociabilidade fraterna e popular, numa
sociedade hierárquica, como a brasileira, é tam-
bém vivenciada através dos “usos da comida”.
Estou me referindo particularmente à associação
entre a hospitalidade – arte de receber bem – e
refeição, a arte do bem oferecer. Como Freyre
destaca, fazia parte das “leis de nobreza à brasi-
leira”, na casa grande, receber o viajante a qual-
quer hora com um lugar à mesa. A mesa sempre
posta, patriarcal,prontificada a agasalhar paren-
tes, visitantes, afilhados.
A NARRATIVA GASTRONÔMICA DA
MODERNIZAÇÃO DA SOCIEDADE
A ênfase na autenticidade, a busca de raízes,
presentes tanto em Freyre como em Cascudo, faz
transparecer uma certa nostalgia quanto à origi-
nalidade do passado, um tanto quanto agreste e
tradicional, em processo de descaracterização fren-
te ao progresso, à urbanização, à sofisticação
tecnológica. Os signos da praticidade, da veloci-
dade, “desmoralizando” as demoradas prepara-
ções. Para Cascudo, a dita “cozinha internacio-
nal” seria principalmente indefinida, sem origem,
sem uso habitual. Uma estratégia de estímulo à
comercialização da produção enlatada.
É em Freyre (1968) que temos uma análise
detalhada dos impactos do processo de industria-
lização no Brasil do século XIX. Após três séculos
de relativa segregação do Brasil do mundo euro-
peu não-ibérico, a sociedade brasileira torna-se
mercado atraente para uma Europa em plena in-
dustrialização: dos tecidos aos alimentos em lata
e conservas. O processo de urbanização na socie-
dade brasileira pode ser representado pela passa-
gem da casa grande do engenho para os sobrados
da cidade. Nestes, vida mais social, mais munda-
na. O absolutismo do poder patriarcal se diluindo
pela presença do médico, do juiz, do chefe de
polícia. A máquina vai diminuindo a importância
do binômio senhor/escravo e valorizando, princi-
palmente, o mulato, capaz dela se ocupar com
sua técnica. A padronização empalidecendo o
asiático, o africano e o indígena em nossa socie-
dade: o brasileiro foi abandonado muito de seus
hábitos tradicionais, seja nas cores da moradia, na
forma de se vestir, no que comer. Franceses, in-
gleses, italianos, desvelando ao brasileiro novas
zonas de sensibilidade. Modelos cuidadosamente
seguidos, tanto mais alta a posição de prestígio na
sociedade. O mulato bacharel que deixa a cacha-
ça pelo vinho, o bredo pela carne. A valorização
social de novos elementos: o chá, a cerveja, o bis-
coito de lata, a batata inglesa, o pão, a manteiga.
Como se fosse vergonhoso o hábito agreste do
pirão, beiju, “os matos”. Desapareceu o sobrado
o costume português da horta junto ao jardim,
para que este fosse, enfim, ocupado por plantas
finas e européias. Confinadas aos mucambos, as
plantas nativas, africanas e asiáticas, úteis à casa,
profiláticas, “plantas de negro”, “de mucambo”.
A vaca lentamente substituindo a cabra para o
consumo de leite. A louça indiana e chinesa
trocada pela francesa e inglesa.
A cidade imperial oferece uma vida social
mais ativa, intensificando-se o contato, o lazer na
rua. Estamos numa época em que as cidades mai-
ores recebem doceiros e confeiteiros franceses e
italianos, vindo oferecer ao espaço público novas
possibilidades de sociabilidade. O gelado, os sor-
vetes em particular, marcam esta fase. Uma nova
vida, que aos olhos de Freyre e Cascudo contri-
buíram para a descaracterização de seu país e prin-
cipalmente, retiravam-lhe as cores, fazendo com
que, exatamente esta singularidade histórica – fruto
de confluências no processo de formação desta
nação – fosse desprezada, ou até esquecidas.
BIBLIOGRAFIA
BASTIDE, Roger. El projimo y el estraño. El encuentro
de las civilizationes. Buenos Aires: Ammnorritu, 1973.
CASCUDO, Luis da Câmara. História da Alimentação
no Brasil. São Paulo/Belo Horizonte: Editora USP/
Itatiaia, l983.
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Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
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logia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Formação da
Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1973a, 16ª ed.
FREYRE, Gilberto. Açúcar. Uma Sociologia do Doce,
com Receitas de Bolos e Doces do Nordeste do Brasil.
São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
LÉVI-STRAUSS, Claude. L’Origine des Manières de la
Table. Paris, Plon, 1968.

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