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SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA JURÍDICA SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA JURÍDICA ORGANIZADORES MARCUS VINÍCIUS DE FREITAS TEIXEIRA LEITE. ORGANIZADORES MARCUS VINÍCIUS DE FREITAS TEIXEIRA LEITE. Sociologia e Antropologia Jurídica GRUPO SER EDUCACIONAL Com o objetivo de proporcionar um panorama multidisciplinar do Direito, este livro vai abordar a Sociologia do Direito e a Antropologia Jurídica, dois campos de estudo social do Direito muito importantes. Aqui, essas duas ciências serão discutidas a partir das noções básicas, das perspectivas históricas e sociológicas, além de apresentar os autores mais importantes e in�uentes da área: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. A análise das noções de “globalização” e “multiculturalismo”, tão impor- tantes no mundo atual cada vez mais conectado, está presente neste livro também. O papel e o lugar do Direito em sua relação com a sociedade e a estrutura econômica e social a qual ele regula e qual a possibilidade de a prática jurídica promover ou barrar a mudança social serão temas também desta obra. Uma obra abrangente que aborda ainda a Sociologia da aplicação do Direi- to ou a Sociologia dos tribunais e o papel do Judiciário no desdobramento da cultura jurídica e na relação com os movimentos sociais. O estudo deste livro vai fazer a diferença na sua formação. Aproveite a leitura! gente criando futuro I SBN 9788522129669 9 788522 129669 > C M Y CM MY CY CMY K SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA JURÍDICA Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, do Grupo Ser Educacional. Diretor de EAD: Enzo Moreira Gerente de design instrucional: Paulo Kazuo Kato Coordenadora de projetos EAD: Manuela Martins Alves Gomes Coordenadora educacional: Pamela Marques Equipe de apoio educacional: Caroline Guglielmi, Danise Grimm, Jaqueline Morais, Laís Pessoa Designers gráficos: Kamilla Moreira, Mário Gomes, Sérgio Ramos,Tiago da Rocha Ilustradores: Anderson Eloy, Luiz Meneghel, Vinícius Manzi Leite, Marcus Vinícius de Freitas Teixeira. Sociologia e Antropologia Jurídica / Marcus Vinícius de Freitas Teixeira Leite. – São Paulo: Cengage, 2020. Bibliografia. ISBN 9788522129669 1. Direito. 2. Sociologia jurídica. 3. Antropologia jurídica. Grupo Ser Educacional Rua Treze de Maio, 254 - Santo Amaro CEP: 50100-160, Recife - PE PABX: (81) 3413-4611 E-mail: sereducacional@sereducacional.com “É através da educação que a igualdade de oportunidades surge, e, com isso, há um maior desenvolvimento econômico e social para a nação. Há alguns anos, o Brasil vive um período de mudanças, e, assim, a educação também passa por tais transformações. A demanda por mão de obra qualificada, o aumento da competitividade e a produtividade fizeram com que o Ensino Superior ganhasse força e fosse tratado como prioridade para o Brasil. O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – Pronatec, tem como objetivo atender a essa demanda e ajudar o País a qualificar seus cidadãos em suas formações, contribuindo para o desenvolvimento da economia, da crescente globalização, além de garantir o exercício da democracia com a ampliação da escolaridade. Dessa forma, as instituições do Grupo Ser Educacional buscam ampliar as competências básicas da educação de seus estudantes, além de oferecer- lhes uma sólida formação técnica, sempre pensando nas ações dos alunos no contexto da sociedade.” Janguiê Diniz PALAVRA DO GRUPO SER EDUCACIONAL Autoria Marcus Vinicius de Freitas Teixeira Leite Graduado e Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação complementar em Filosofia. É membro do Observatório para Qualidade da Lei (CNPq) e realiza pesquisas no Programa de Pós-Graduação da UFMG voltadas à Legística, processo legislativo e discurso parlamentar. Como bolsista de iniciação científica (PIQEG), participou do projeto Novas Perspectivas para a Educação Jurídica, sob orientação do prof. Aziz Tuffi Saliba. Foi monitor voluntário da disciplina Introdução à Ciência do Direito, fez intercâmbio internacional na Université Laval (Québec, Canadá), participou do Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP) como Diretor de Assistência, além de ter sido representante discente no departamento de Direito Penal da UFMG. Atuou como estagiário da Defensoria Pública da União (1º Ofício Regional) e como estagiário em escritório de advocacia especializado em Direito do Trabalho, onde também atuou como advogado. É também membro associado da Rede de Estudos Empíricos em Direito. Possui certificado em francês DALF C1 - Cadre européen commun de référence pour les langues. Tem como principais áreas de interesse: Filosofia do Direito; Legística; Educação Jurídica; Metodologia da Pesquisa; Filosofia da Linguagem; Linguística. SUMÁRIO Prefácio .................................................................................................................................................8 UNIDADE 1 - Introdução à antropologia e à sociologia jurídica ......................................................9 Introdução.............................................................................................................................................10 1. Significado, objeto e âmbito da Sociologia ....................................................................................... 11 2. Significado e objeto da Sociologia e da Antropologia do Direito ......................................................16 3. Paradigmas do pensamento social .................................................................................................... 21 PARA RESUMIR ..............................................................................................................................24 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................25 UNIDADE 2 - Perspectivas sociológicas ..........................................................................................27 Introdução.............................................................................................................................................28 1 Indivíduo, cultura e sociedade ........................................................................................................... 29 2 Crime e desvio social .......................................................................................................................... 34 3 Sociologia Funcionalista de Émile Durkheim ..................................................................................... 39 4 Sociologia compreensiva de Max Weber ........................................................................................... 43 5 Sociologia crítica de Karl Marx ........................................................................................................... 48 PARA RESUMIR ..............................................................................................................................53 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................54 UNIDADE 3 - Direito e sociedade ....................................................................................................57 Introdução.............................................................................................................................................58 1 Contribuição de outros teóricos para a Sociologia e a Antropologia do Direito ................................59 2 Globalização e Multiculturalismo ....................................................................................................... 64 3 Função da Sociologia do Direito eem dez anos, passando de 401,2 mil para 726,7 mil, entre 2006 e 2016. Desde os anos 1990, podemos observar um processo de ampliação da complexidade e da dureza da legislação penal e processual penal brasileira, ainda que o processo não seja unívoco, com a ampliação de alternativas penais, hipóteses de medidas cautelares e a instituição da audiência de custódia. Para compreender a política criminal contemporânea brasileira, sugerimos o documentário brasileiro Sem Pena (Dir: Eugenio Puppo, 2014), disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=b6RDgB8GVW8). 39 Figura 2 - Complexo policial de Teixeira de Freitas (BA) Fonte: Rido, Shutterstock, 2020 3 SOCIOLOGIA FUNCIONALISTA DE ÉMILE DURKHEIM Agora, nos deteremos sobre as principais correntes da Sociologia clássica, abordando sua relação com o Direito. Para tanto, veremos resumidamente como se fundaram os pensamentos de Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Estes três teóricos podem ser considerados os mais importantes da Sociologia moderna e influenciam até hoje outras tantas correntes teóricas em diversas áreas, tendo especial importância também para o estudo do Direito. Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 40 O francês Émile Durkheim (1858-1917) produziu obra de vasto e permanente impacto no campo da Sociologia, tendo contribuição central para a consolidação da disciplina e do caráter científico da mesma. O sociólogo buscou analisar fenômenos da vida social com maior rigor e objetividade em relação a outros pioneiros da área, como Auguste Comte, e implementou procedimentos científicos ancorados no empirismo, que conferiram à Sociologia uma discussão metodológica mais adequada e aprofundada. A Sociologia, na visão durkheimiana, é definida como a ciência da gênese e do funcionamento das instituições, sendo estas todas as crenças e comportamentos instituídos pela coletividade, as quais exercem funções que permitem a estabilidade e manutenção no tempo da coesão social (QUINTANEIRO et. al., 2003). 3.2 Durkheim e fato social Na obra de Durkheim, o conceito de fato social é primordial para compreendermos o arcabouço teórico produzido pelo autor. Para ele, fatos sociais são formas de agir e pensar externas aos indivíduos, aspectos da vida social que determinam ou condicionam a ação dos mesmos por diversas formas (DURKHEIM, 1999; GIDDENS, 2008). Isto se dá devido ao fato dos fatos sociais exercerem um poder coercitivo sobre os indivíduos, ainda que isso por muitas vezes ocorra de modo imperceptível ou naturalizado. O autor parte da perspectiva de que a sociedade não é resultado da soma ou da justaposição dos indivíduos que a compõem, mas uma síntese de ações e sentimentos particulares que criam um fenômeno específico e novo. Por esta razão, as explicações para os fatos sociais devem ser buscadas na coletividade. Os exemplos de fatos sociais envolvem desde fenômenos consolidados e de grande dimensão, como a economia e a religião, até aqueles fluidos e efêmeros, como movimentos sociais, correntes de pensamento e formas de expressão. Dentre as expressões do conjunto de fatos sociais, estão as representações coletivas e os valores. Um dos elementos a comprovar o fato de que aqueles tem caráter coercitivo e são externos aos indivíduos, Durkheim lembra que o não atendimento a estas convenções pode implicar diversos obstáculos, como a violação a uma lei. Entretanto, instituições são passíveis de mudança desde que um grupo de indivíduos, em ação combinada, apresentem comportamentos inovadores e produzam um produto novo que se constitua como um fato social (QUINTANEIRO et. al., 2003). Uma das formas de cristalização e reconhecimento desta mudança pode ser a alteração de normas jurídicas. Ainda que nas palavras do próprio autor “a primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas” (DURKHEIM, 2003, p. 15), estes são intangíveis e não observáveis diretamente. A pesquisa e a análise dos mesmos se dão por meio de uma investigação indireta, dos seus efeitos e de outras formas de representação dos mesmos, como, por exemplo, a 41 Constituição e as leis (no Direito) e os textos sagrados (no caso das religiões). 3.2 Solidariedade mecânica e orgânica Dentre os maiores interesses de pesquisa do sociólogo francês estava a compreensão de quais elementos eram responsáveis pela manutenção (ou pela quebra) da solidariedade e da ordem nas sociedades. Em sua visão, a primeira se mantém “quando os indivíduos se integram com sucesso em grupos sociais e se regem por um conjunto de valores e costumes partilhados” (GIDDENS, 2008, p. 9). Durkheim (1999) destacou, em sua conhecida obra Da Divisão Social do Trabalho, a existência de dois tipos de solidariedade, as quais estariam diretamente relacionadas com a forma de divisão do trabalho em uma determinada sociedade: a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. A primeira, característica de culturas mais tradicionais (ou primitivas) e de menor especialização e divisão do trabalho – onde os indivíduos possuem ocupações laborais semelhantes –, estaria sustentada na homogeneidade e no consenso em relação a crenças e costumes. A dissidência no interior destas sociedades seria reprimida pela comunidade por meio da força e do castigo aos indivíduos que não se adequam. A solidariedade orgânica, por sua vez, teria se desenvolvido em meio à rápida e profunda transformação social e econômica nas sociedades ocidentais, em meio aos processos de industrialização, complexificação econômica e urbanização. O desenvolvimento da sociedade capitalista implica na intensificação da interdependência econômica entre os indivíduos, ampliando relações de reciprocidade e reduzindo a importância de se partilhar crenças e costumes específicos. Um dos principais meios de se observar a predominância de um ou outro tipo de solidariedade nas sociedades contemporâneas seria, para Durkheim, o Direito. Segundo Quintaneiro et al. (2003, pp. 74-75): Durkheim utiliza-se da predominância de certas normas do Direito como indicador da presença de um ou do outro tipo de solidariedade, já que esta, por ser um fenômeno moral, não pode ser diretamente observada. Não obstante se sustente nos costumes difusos, o Direito é uma forma estável e precisa, e serve, portanto, de fator externo e objetivo que simboliza os elementos mais essenciais da solidariedade social. Por outro lado, as sanções que são aplicadas aos preceitos do Direito mudam de acordo com a gravidade destes, sendo assim possível estudar suas variações. O papel do Direito seria, nas sociedades complexas, análogo ao do sistema nervoso: regular as funções do corpo. Por isso expressa também o grau de concentração da sociedade devido à divisão do trabalho social, tanto quanto o sistema nervoso exprime o estado de concentração do organismo gerado pela divisão do trabalho fisiológico, isto é, sua complexidade e desenvolvimento. Enquanto as sanções impostas pelo costume são difusas, as que se impõem através do Direito são organizadas. Elas constituem 42 duas classes: as repressivas - que infligem ao culpado uma dor, uma diminuição, uma privação; e as restitutivas - que fazem com que as coisas e relações perturbadas sejam restabelecidas à sua situação anterior, levando o culpado a reparar o dano causado. A maior ou menor presença de regras repressivas pode ser atestada através da fração ocupada pelo Direito Penal ou Repressivo no sistema jurídico da sociedade A velocidade e intensidade destes processos na modernidade, porém, tem o poder de abalar costumes, valores e padrões de conduta (religiosos, morais etc.), sem que um outro arranjo ocupe estes espaços de forma decisiva, inclusive para direcionar ou circunscrever a conduta dos indivíduos. Este vazio de sentidos e objetivos em meio à vida social moderna é o que caracterizaria a anomia para o sociólogo francês. 3.3 Anomia e normas morais: o suicídio e a religião Esta perspectiva orientou o conceituado estudo do autor a respeitodo fenômeno do suicídio na obra O Suicídio, publicada pela primeira vez em 1897. Mais do que um ato pessoal e orientado pela angústia ou pelo desequilíbrio mental estrito dos indivíduos que o cometem, Durkheim optou por analisar esse ato como um fato social, passível de possuir padrões gerais observáveis e influenciado por fatores sociais. Em sua pesquisa, ele confirmou sua expectativa: verificou que determinados segmentos estavam mais vulneráveis ao suicídio do que outros: protestantes mais do que católicos, ricos mais do que pobres, homens mais do que mulheres. Além disso, guerras e mudanças econômicas também afetavam sensivelmente as estatísticas (DURKHEIM, 2000). Estes aspectos reforçaram a posição do autor sobre a condição anômica em relação à perda de pontos de referência e de fontes de regulação social, bem como a importância do enfraquecimento de laços sociais no caso dos chamados suicídios egoístas. Reforçou, portanto, a perspectiva de que fatores sociais externos ao indivíduo interferem de forma significativa em condutas antes vistas como atos estritamente pessoais. E que esta influência podia ser investigada por meio da análise sociológica. Também interessava ao autor a análise das normas morais das sociedades, que prescreveriam o modo como o sujeito deve se portar em determinadas circunstâncias e tem uma finalidade desejável e desejada por parte daqueles que se sujeitam a elas. Em sociedades menos complexas, a moral cívica teria maior nível de associação com a religião pública, levando, portanto, a um nível maior de controle e disciplina de seus indivíduos. As sociedades modernas, por sua vez, apresentam maior nível de complexidade, nas quais o Estado possui grande variedade de funções, mas convive com outros grupos (família, corporações, instituições religiosas). Nesta associação tendente ao equilíbrio, desenvolvem-se as liberdades individuais. A partir desta análise e reflexões, Durkheim empreende o estudo das religiões. O autor 43 analisou especialmente aquelas praticadas em sociedades menos complexas, compreendidas como um sistema de crenças e práticas relativas às coisas sagradas que é comum a todos aqueles que se unem numa comunidade moral, chamada por ele de igreja (DURKHEIM, 1996). Durkheim erigiu, portanto, um pensamento ancorado no método positivista e confiante na capacidade de convivência de indivíduos e grupos distintos nas sociedades modernas. Sua teoria do consenso e o funcionalismo foram especialmente influentes na antropologia e na sociologia norte-americana, aspecto que fora brevemente exemplificado na seção anterior. 4 SOCIOLOGIA COMPREENSIVA DE MAX WEBER Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: A obra do alemão Max Weber (1864-1920) abarcou diversas áreas do conhecimento, como Direito, Filosofia e História, sendo influente também em disciplinas que se desenvolveriam de forma mais nítida apenas posteriormente, como a Ciência Política. Entretanto, o autor refletiu acerca do papel e do objeto do estudo sociológico, buscando estabelecer a Sociologia como uma disciplina preocupada com a diferença e a particularidades culturais e sociais. Em seu texto A Ciência como Vocação, Weber discorre sobre o significado da ciência – vista como procedimento racional empreendido para explicar as consequências de determinados fenômenos –, e a respeito da postura do cientista frente ao seu ofício (WEBER, 2011). Este deve, em sua visão, selecionar e sugerir medidas com finalidade de solucioná-las, buscando respostas por meio do uso dos instrumentos metodológicos mais adequados (QUINTANEIRO et. al., 2003). O sociólogo alemão também discorreu sobre a relação entre valores que orientam o pesquisador e a pretensão de objetividade nas Ciências Sociais, ao considerar que os “valores devem ser incorporados conscientemente à pesquisa e controlados através de procedimentos 44 rigorosos de análise” (QUINTANEIRO et. al., 2003, p. 99). Uma atividade científica social que seja racional quanto às suas finalidades e valores não pode reduzir a realidade empírica a leis; a explicação de um determinado acontecimento envolve o agrupamento, por parte do cientista, do agrupamento da constelação de fatores que deem sentido ao mesmo. 4.1 Tipo ideal, ação social e relação social Para tornar compreensível a natureza das conexões que se estabelecem na observação científica empírica, Weber parte de um modelo de interpretação e investigação chamado tipo ideal, caracterizado pela unilateralidade, racionalidade e caráter utópico. Como resumido por Quintaneiro et al. (2003, p. 103), na concepção weberiana “um conceito típico-ideal é um modelo simplificado do real, elaborado com base em traços considerados essenciais para a determinação da causalidade, segundo os critérios de quem pretende explicar um fenômeno”. De forma resumida, Weber vê o tipo ideal como um “recurso técnico que facilita uma disposição e terminologia mais lúcidas” (WEBER, 1979, p. 372), instrumento útil para conduzir o autor na investigação de uma realidade complexa e multifacetada. Em Economia e Sociedade, Weber (2004a) desenvolve em maior profundidade o conceito de ação social, central em sua obra. A ação – conduta humana dotada de significado pelo indivíduo que a executa –, passa a ser definida como uma ação social quando esta se orienta para a ação de outros (seja um indivíduo, grupo específico ou a coletividade), de modo que tal conduta social tenha seu sentido partilhado. Esta noção é tão importante para a Sociologia weberiana que, na perspectiva do autor, a função do sociólogo é precisamente compreender e interpretar as ações sociais, observando suas características, efeitos, e verificando nexos causais que as determinam. Como desdobramento da lógica dos tipos ideais, o sociólogo desenvolveu quatro elaborações conceituais para classificar as ações sociais. Classificação das ações sociais Ação social afetiva: a conduta é movida por sentimentos, emoções e instintos . Ação social tradicional: tem como fontes motivadoras costumes ou hábitos arraigados - ligados à cultura consuetudinária –, ou a reação a estímulos usuais e naturalizados. Ação social racional com relação a valores, o agente se orienta conscientemente por crenças, convicções e princípios próprios. Ação social racional sem relação a fins: tomada com o mínimo de interferência de tradições e afetos, com alto grau de reflexão da adequação entre meios e fins. Weber ressalta, contudo, que estes são modelos conceituais ideais/puros, e que as ações 45 humanas geralmente se encaixam em mais de uma das categorias acima mencionadas. Ressalta ainda que elas não se confundem com ações reativas, instintivas, de imitação ou outras onde não há relação de sentido. Quando uma conduta social é plural e tem seu sentido ou significado partilhado e compreendido por diversos atores em uma sociedade, passa a se constituir uma relação social. Esta pode se estabelecer independentemente da correspondência por uma das partes ou da duração desta relação, desde que haja compatibilidade entre as expectativas dos indivíduos sobre o significado da mesma. Instituições como o Estado ou a família, para Weber, se caracterizam por ser desenvolvimentos específicos da ação social de indivíduos. A regularidade de certas condutas e relações pode ocorrer devido simplesmente a um hábito - que é classificado como uso -, que, quando duradouro, torna-se um costume. 4.2 Direito, poder, dominação e autoridade na Sociologia Weberiana Por outro lado, um modelo de conduta pode adquirir legitimidade quando é considerado válido para um ou mais agentes, seja por receio de reprovação da comunidade pela discordância a outro, caso no qual este modelo é denominado convenção. Ou por receio de se tornar uma ordem pela ameaça de coação ou sanção pelo descumprimento do que é visto como obrigação. Neste caso, a ordem é o direito. Aqui se inserem as questões do poder, da dominação e da autoridade no pensamento weberiano, chaves parao estudo sociológico. O poder para Weber significa a probabilidade, em uma relação social, de impor a vontade própria ao comportamento de terceiros, ainda que em face de resistência, e independente do fundamento de tal probabilidade (WEBER, 2004a). Os meios utilizados para alcança-lo são variados, abarcando desde a violência até procedimentos organizados. Há três formas de justificação da dominação legitimada: racional (dependente dos interesses, avaliações de vantagens e desvantagens no ato de obedecer); tradicional (orientada pelo FIQUE DE OLHO Em consonância com esta posição, a unidade fundamental da análise sociológica weberiana é o agente individual – concepção também denominada de individualismo metodológico. Esse conceito parte do pressuposto de que as consciências sociais são entidades capazes de conferir significado às próprias ações, e que estes sentidos podem ser compartilhados por um grupo de indivíduos (QUINTANEIRO et. al., 2003). É por meio das ações e sentidos que os agentes conferem às esferas da vida social que estas podem ter sua lógica modificada. 46 costume, hábito); e afetiva (fundada em afetos ou inclinações pessoais em relação à liderança). A elas correspondem os três tipos de dominação legítima: legal, tradicional e carismática. A primeira, relacionada à estrutura de dominação pela forma burocrática, é o domínio exercido pela administração moderna e racionalmente organizada do Estado. Nela a legitimidade se estabelece através da crença na legalidade das normas estatuídas e dos direitos de mando dos que exercem a autoridade (WEBER, 2004a). A luta pelo estabelecimento de uma forma de dominação legítima - de conteúdos considerados válidos pelos participantes das relações sociais -, marca a evolução de cada uma das esferas da vida coletiva em particular e define o conteúdo das relações sociais no seu interior (QUINTANEIRO et. al. 2003). A dominação não é um fenômeno exclusivo da esfera política, mas engloba e envolve a organização de regras para a mesma. O autor acresce, ainda, que nas relações entre dominantes e dominados a dominação costuma apoiar-se e fundar sua legitimidade interna em bases jurídicas. O abalo da crença nesta legitimidade pode acarretar consequências de grande alcance. 4.3 Classes, estamentos e partidos Segundo a concepção weberiana de sociedade, as diversas esferas da vida coletiva – econômica, política, jurídica, religiosa, cultural e social –, possuem lógicas particulares de funcionamento. Em diferentes momentos históricos, alguma (s) dessa (s) esfera (s) possuía dominância na definição das diferenças sociais. Nas sociedades capitalistas modernas o econômico (propriedade, riqueza) é o fundamento da posição especial, o principal elemento de classificação dos indivíduos. Classes, estamentos e partidos são conceitos estabelecidos pelo sociólogo alemão no plano coletivo para entender mecanismos diversos de distribuição de poder. Uma classe é um grupo de indivíduos que se encontram numa situação comum referente à propriedade de bens ou de trabalho. As ações de tais agentes têm um sentido definido, de forma comum, pela posição deles no mercado (WEBER, 2004a). Quando as ações individuais são condicionadas por critérios da ordem social, na aderência a modos de vida específicos e definidos, aí se estabelece a relação estamental. Estes estamentos podem ser fechados – quando sua posição se define por laços familiares, por exemplo –; ou abertos, sustentados por sentimentos comunitários ou de honra. Classes e estamentos tendem a se superpor, mas isto não ocorre em todas as ocasiões: tensões nesse sentido podiam ser verificadas tanto na época de Weber, entre a nobreza europeia tradicional, legada do período feudal, e a nova burguesia enriquecida; como hoje, nos atritos entre burguesia tradicional e os novos ricos. Membros de uma mesma classe, entretanto, geralmente empreendem ações sociais enquanto grupo baseados em interesses racionais em respeito a fins. Os conflitos e diferenças gerados na ordem econômica entre classes e na ordem social entre os estamentos produzem, na esfera 47 do poder social, os partidos. Estes são organizações que têm ação tipicamente racional e lutam pelo domínio da direção em uma associação ou comunidade (WEBER, 2004a; QUINTANEIRO et. al., 2003). Se dirigem a fins estabelecidos e à realização de programas de propósitos ideais ou materiais definidos. Classes, estamentos e partidos são, portanto, fenômenos de distribuição de poder no seio das sociedades e manifestações organizadas da luta cotidiana travada no interior destas pela imposição dos interesses e vontades de algumas das partes contra outras. Na visão weberiana, esta é a essência da política, da vida social e da lógica do mercado. 4.4 Desencantamento do mundo, religião e resignação A obra de Max Weber, por outro lado, também é marcada com um tom pessimista e resignado com o que ele via como consequências inevitáveis do processo de racionalização progressiva e burocratização modernas. A rotinização e racionalização ocorrem com tal força que mesmo lideranças carismáticas de cunho político ou religioso acabam sendo assimiladas pela “lógica férrea das instituições” (QUINTANEIRO et. al., 2003). Este processo de migração de sociedades marcadas pela ideia do sagrado, mágico e da espiritualidade para aquelas marcadas pela técnica e a ciência e orientada à materialidade é chamado de desencantamento do mundo. O autor se interessou pela Sociologia da religião ao perceber a relevância e o impacto das doutrinas religiosas em outras áreas da vida coletiva, especialmente por conta das consequências práticas da religiosidade no tecido social. Ao estudar religiões não-cristãs, como o confucionismo e o budismo, Weber se interessou especialmente pela capacidade de algumas religiões de, a partir de seu conteúdo, fomentar o racionalismo prático e metódico na conduta cotidiana dos indivíduos. Essas religiões seriam marcadas pelo ascetismo mundano à participação nos processos da vida, orientando seus impulsos naturais à doutrina religiosa. Nesta lógica se insere a famosa obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, escrita pelo autor em edições de 1905 e 1920. Se o desenvolvimento do Capitalismo estava vinculado à racionalização na vida prática, Weber identificou uma afinidade entre as disposições práticas dos indivíduos que se orientavam pela doutrina protestante calvinista. Esta rejeitava a contemplação, os instintos e prazeres instintivos, valorizando a atividade incessante e o trabalho como valor em si mesmo. Tal disposição implicava, na ordem econômica, na profunda dedicação de empresários orientados por essas doutrinas à produção de riqueza e de trabalhadores disciplinados (WEBER, 2004b). A valorização espiritual da prosperidade na vida terrena, associada com a restrição do consumo em paixões mundanas, teria provocado como consequência concreta a acumulação capitalista e a poupança privada (WEBER, 2004b). Esse “espírito religioso” que favoreceu o desenvolvimento capitalista tornou-se desnecessário com o posterior desenvolvimento do sistema, também admitindo a busca de riquezas para a saciedade de interesses materiais “mundanos”. 48 A concepção “liberal desencantada” weberiana permanece fortemente influente nas Ciências Sociais, contribuindo para a compreensão dos contínuos processos de burocratização e racionalização na vida social, inclusive com a ampliação, complexificação e variedade dos aspectos abarcados pelo Direito, a regulação e a normatividade na Contemporaneidade. 5 SOCIOLOGIA CRÍTICA DE KARL MARX Karl Marx (1818-1883) é um autor cuja obra não pode ser ligada a apenas uma área do conhecimento ou disciplina específica. O alemão, cujas referências teóricas e de pesquisa principais podem ser identificadas na filosofia hegeliana, na economia clássica inglesa (especialmente Adam Smith e David Ricardo) e no socialismo utópico francês – para divergir, em pontos distintos, de todos estes–, produziu extensos escritos nos ramos da Filosofia, da Economia e, no que interessa em especial para este tópico, produziu importantes reflexões sociológicas. A militância política e social e os interesses de pesquisa de Marx o levaram a refletir e teorizar acerca do surgimento e do desenvolvimento do Capitalismo na Modernidade. 5.1 Materialismo histórico: forças produtivas, relações sociais de produção e superestrutura jurídico-política O filósofo e sociólogo desenvolveu a concepção materialista e dialética da História, por meio da qual orientou seu olhar para a sociedade burguesa moderna, sem deixar de fazer a análise histórica de sistemas sociais anteriores. A tese que orienta o materialismo histórico, nas palavras de Friedrich Engels, grande amigo e colaborador em vida de Marx, é a de que “a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social” (ENGELS, 2011, p. 55). Neste esquema teórico, três conceitos são centrais: as forças produtivas, as relações sociais de produção, e a superestrutura jurídico-política. O conceito de forças produtivas em Marx, como abordado na Contribuição à crítica da economia política, envolve os recursos produtivos físicos para o trabalho humano -instrumentos, matérias primas, espaço físico (os meios de produção), e a força de trabalho -, o que inclui não apenas a força física dos indivíduos, mas também habilidades e conhecimento técnico aplicados no trabalho (COHEN, 2010). Envolve, portanto, o modo como os indivíduos obtém, num contexto específico, os bens de que necessitam. As relações sociais de produção, por sua vez, dizem respeito às formas estabelecidas de distribuição dos meios de produção e do produto e o tipo de divisão social do trabalho numa sociedade, em um período histórico determinado. Expressa as relações sociais que os indivíduos precisam se inserir para sobreviver e produzir. Apesar da sociedade ser o produto da ação recíproca dos homens, esta não opera de acordo com seus desejos particulares. 49 Desse modo, a estrutura de uma sociedade dependeria do estado de desenvolvimento de suas forças produtivas, em primeiro lugar; e das relações sociais de produção que lhes são correspondentes (QUINTANEIRO et. al., 2003). Este arranjo material é a base que orienta e sustenta a superestrutura jurídica e política dessas sociedades, bem como as expressões ideológicas e culturais das mesmas. A transformação dos sistemas sociais, em tal configuração, ocorre quando se modificam as condições das forças produtivas e, em seguida, das relações de produção de uma determinada sociedade, gerando tensionamentos com a superestrutura jurídico-política da mesma. Conflito este que pode se desdobrar de forma gradual ou por meio de uma mudança abrupta: as revoluções. Marx verificou este quadro ao analisar historicamente a passagem das sociedades de caçadores- coletores para os sistemas escravagistas arcaicos, seguida da transição para o Feudalismo e, por fim, da substituição deste pelo Capitalismo. O desenvolvimento da burguesia com a ampliação e a complexificação das relações comerciais, associadas ao impulso tecnológico essencial representado pela Revolução Industrial iniciada na Inglaterra no século XVIII, seguida por outras nações europeias no início do século seguinte, modificou de forma decisiva o arranjo social. A ordem feudal e a hegemonia da nobreza fundiária foram suplantadas, consolidando-se uma nova ordem social. Especialmente no Capitalismo, as relações de produção são relações de poder econômico sobre a força de trabalho e os meios de produção, de cujo privilégio alguns gozam, enquanto os demais carecem (COHEN, 2010). Sobre esta infraestrutura, erige-se uma superestrutura jurídico-política que é formada em função daquela. Isto significa que a explicação das formas jurídicas, políticas e das ideias que circulam numa sociedade se encontra na base econômica e material da mesma. Em tal problemática, insere-se o Direito: o sistema de normas de conduta e princípios regente sob uma sociedade capitalista se orienta para a cristalização e regulação de direitos de propriedade e relações comerciais sob este sistema econômico, geralmente sob a forma do contrato. 50 5.2 Capitalismo: estruturação econômica e social Marx se dedicou extensamente à análise do Capitalismo – para ele, a forma de organização mais desenvolvida e complexa existente até aquele momento histórico –, na sua grande obra O Capital, a qual o autor terminou de escrever apenas o primeiro volume. A unidade analítica base da sociedade capitalista e expressão da riqueza da mesma é a mercadoria, forma que é assumida pelos produtos e pela força de trabalho e compõe-se pelo valor de uso - necessita ser útil e se efetivar no consumo -, e valor de troca. O valor desta última é medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção em um momento determinado (MARX, 2013). Neste sistema, o capital é uma noção essencial: trata-se de qualquer ativo financeiro que possa ser utilizado ou investido para produção e reprodução de bens. Aqueles que detém esses meios de produção em abundância são os capitalistas, a classe burguesa, e eles ocupam a posição de dominância na sociedade moderna. Os proprietários dos meios de produção obtêm lucro por meio da apropriação do esforço dos indivíduos que oferecem sua força de trabalho. Ao observar esta relação, o autor alemão desenvolveu o conceito de mais-valia: quando a força de trabalho do trabalhador, negociada com o capitalista, produz mais riqueza do que seu próprio valor de troca, na qual se obtém um valor que é superior ao dos fatores (meios de produção e força de trabalho) consumidos no processo produtivo (QUINTANEIRO et. al., 2003). Os grupos e indivíduos que não possuem estes ativos, mas necessitam de encontrar formas para sua subsistência, se veem obrigados a oferecer sua força de trabalho aos detentores dos FIQUE DE OLHO demandas populares. Nesse contexto, as cartas de direitos surgidas no contexto iluminista se orientavam por uma ótica burguesa, restrita a direitos civis e políticos e de caráter excludente e individualista. Marx tem um objetivo mais profundo: deseja a emancipação humana, a qual não será atingida com a pretensa inclusão de uma população no Estado burguês da época, mas com o reconhecimento e organização, por parte dos homens, de suas forças próprias como forças sociais (MARX, 2010). As interpretações acerca da relação do marxismo com o Direito ensejaram grandes controvérsias nos movimentos socialistas e comunistas que reivindicavam o legado do autor alemão: desde perspectivas favoráveis à possibilidade de um “Direito socialista”, como Petr Stutchka, àqueles que consideravam o Direito como a forma jurídica específica do modo de produção capitalista, associando a primeira à forma mercadoria, como Evgéni Pachukanis. 51 meios de produção, um contrato que lega ao trabalhador o salário como contrapartida. Esta classe, a mais numerosa, surgiu especialmente por meio da migração de antigos camponeses que migraram para as cidades por conta de mudanças na regulação da terra no meio rural, devido ao cercamento dos campos. Os agora trabalhadores nas indústrias capitalistas acabaram por formar o que Marx denominou proletariado, a classe operária industrial urbana. O capitalismo erigiu, portanto, um sistema de classes marcado pelo conflito entre burguesia e proletariado, numa relação de mútua dependência, mas na qual os últimos se localizam numa situação de exploração e alienação estrutural. Para Marx, nesse sistema, os trabalhadores têm controle restrito ou nulo sobre o trabalho que exercem e de suas condições, estando numa condição de dominação por forças da sua própria criação, de modo a encarar o produto de seu trabalho como um poder estranho (MARX, 2008). 5.3 Luta de classes, revolução e comunismo Partindo desta abordagem, Marx concluiu que “toda a história humana é, até o momento, a história da luta de classes” (MARX, 1998) – uma classeé um conjunto de membros de uma sociedade identificados por compartilhar certas condições objetivas (QUINTANEIRO et. al., 2003). Na configuração do capitalismo, temos um modelo em cuja base estão, de um lado, os proprietários dos meios de produção, e, de outro, os que não os possuem. Entretanto, quando Marx empregou seu materialismo histórico para analisar os acontecimentos políticos de seu tempo, como em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, o autor identificou a presença de outras classes sociais relevantes para a análise da conjuntura. O modelo de sociedade que se estabeleceu após o Feudalismo, portanto, teriam apenas substituído as velhas condições de opressão por outras novas, mantendo o contexto de luta de classes. Para Marx, assim como ocorreu nos modelos anteriores, o Capitalismo estaria fadado ao seu esgotamento, devido às contradições inerentes ao sistema, entre as forças produtivas que emergem do mesmo e seu choque com as relações de produção, ou superestrutura, que acabariam por perpetrar um processo de revolução social. O proletariado, criado pelo Capitalismo e mantido em posição de exploração e alienação, é o agente transformador desta sociedade, força produtiva e a classe verdadeiramente revolucionária, a qual, por meio da consciência de sua situação social e a organização, tem as condições de abolir a propriedade privada dos meios de produção e abolir a sociedade civil burguesa estruturada em função desta. As características e a estrutura da futura sociedade comunista – e a socialista, estágio de transição posterior à revolução -, não foram tratados exaustivamente por Marx, que delineou alguns princípios e premissas destas sociedades em sua Crítica do Programa de Gotha, de 1871. A sociologia crítica marxista, assim, não apenas questiona teoricamente as premissas e o 52 funcionamento do sistema capitalista, mas também problematiza a postura dos intérpretes sociais anteriores e os de seu tempo, adotando uma postura militante e orientada à intervenção na realidade efetiva. Como dito pelo autor nas Teses sobre Feuerbach: “os filósofos (...) interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata é de transformá-lo” (MARX, 2001, p. 103). Ainda que Marx não tenha se preocupado especificamente com a consolidação da Sociologia como uma disciplina e ciência autônomas, o autor é considerado um dos autores clássicos da Sociologia graças à profunda influência de sua teoria e métodos de análise da realidade social na produção sociológica, e ao grande impacto social e político do pensamento marxista, tendo produzido um extenso e duradouro legado sociológico. 53 Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • Aprender as principais perspectivas no campo da Antropologia a respeito do concei- to de cultura (clássica, descritiva, simbólica, estrutural), bem como às relações entre cultura e sociedade no campo da Sociologia. • Analisar as abordagens históricas dadas ao desvio social, considerado amplamente, e suas manifestações no Direito na forma do delito e do crime. • Compreender os principais aspectos relativos à produção teórica de três dos maio- res e mais influentes nomes das Ciências sociais: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, bem como as implicações das reflexões destes autores para o Direito e a Sociologia Jurídica. PARA RESUMIR ANITUA, G. I. História dos Pensamentos Criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2007, BARATTA, A. Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1999. BECKER, H. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 [1963]. BITTENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal I. São Paulo: Saraiva, 2013, 19ª ed. BOURDIEU, P. Les trois états du capital culturel. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, n. 30, nov. p. 3-6, 1979. COHEN, G. A. Forças produtivas e relações de produção. Crítica Marxista, n.31, p.63-82, 2010. DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DURKHEIM. Da divisão do trabalho social.. São Paulo: Martins Fontes, 1999, 24ª ed. DURKHEIM. As formas elementares da vida religiosa.. São Paulo: Martins Fontes, 1996. DURKHEIM. O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ENGELS, F. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. São Paulo: Edipro, 2011. ENGELS. A ideologia alemã. 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Um Toque de Clássicos: Marx, Durkheim e Weber. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003 TAYLOR, I. et al. The New Criminology: For a Social Theory of Deviance. Londres: Routhledge, 2013 [1973]. THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social e crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 2000. TOURAINE, A. Um novo paradigma para compreender o mundo de hoje. 3ª Ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2007. WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. WEBER, Max. Economia e Sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 2004. WEBER. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 2011 WEBER. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: GERTH, Hans; MILLS, Wright. Max Weber. Ensaios de Sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. WHITE, L. A et al. O conceito de cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. UNIDADE 3 Direito e sociedade Você está na unidade Direito e Sociedade. Conheça aqui a importância de algumas abordagens sociológicas do Direito, tais como as teorias de Georges Gurvitch, Eugen Erlich, Leon Duguit e Clifford Geertz. A partir desses autores, você compreenderá a importância de tais perspectivas para o estudo sociológico do Direito. Além disso, analisaremos as noções de “globalização” e “multiculturalismo”, tão importantes no mundo atual cada vez mais conectado. Por fim, estudaremos a questão da eficácia do Direito a partir de uma abordagem sociológica. Bons estudos! Introdução 59 1 CONTRIBUIÇÃO DE OUTROS TEÓRICOS PARA A SOCIOLOGIA E A ANTROPOLOGIA DO DIREITO Algumas correntes específicas do Pluralismo Jurídico trataram o Direito sob uma perspectiva sociológica própria, como é o caso de Georges Gurvitch, Eugen Erlich, Leon Duguit e Clifford Geertz. Todas são teorias que de alguma forma colaboraram para refletir sobre o fenômeno jurídico de diferentes maneiras e trouxeram suas contribuições para o que será discutido ao longo desta unidade e da disciplina, como veremos a seguir. Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 1.1 Concepção e objeto da Sociologia Georges Gurvitch (1894-1965) foi um sociólogo e jurista nascido na Rússia e que, ao longo de sua vida, realizou diversos estudos no campo sociológico em geral e especificamente na Sociologia do Direito. A teoria de Gurvitch insere-se dentro da corrente do Pluralismo Jurídico, que simplificadamente compreende outras formas de existência de juridicidade fora do aparato estatal. Na concepção de Gurvitch, há uma verdadeira teoria do Direito, baseada em uma relação de complementariedade entre a Sociologia e a Filosofia: “(...) a Filosofia auxilia na diferenciação de fatos morais,de interpretação, estéticos e jurídicos enquanto a Sociologia ajuda a entender de forma fática a multiplicidade empírica desses aspectos na vida prática dos comportamentos sociais” (ROCHA, 2019. p. 200). Gurvitch percebe na Jurisprudência certa autonomia em relação à dogmática jurídica, por entender que aquela uma “engenharia social” adaptada às possíveis interpretações de necessidades específicas de sistemas jurídicos concretos em “sociedades totais”. Tais sociedades seriam “grandes esferas culturais localizadas em épocas diferentes”, como civilizações e países 60 culturalmente identificados (Estados Unidos, Império Romano, Inglaterra, dentre outros) (ROCHA, 2019. p. 200). que Gurvitch busca compreender a sociedade e seu dinamismo ao levar em conta os conflitos existentes, e a necessidade de solucioná-los, que seriam oriundos de choques de ordem moral, cultural, religiosa e estética. E, como forma de solução dos conflitos, o direito aparece enquanto intervenção regulativa (ROCHA, 2019. p. 202). Daí, então, a preponderância que Gurvitch dá à Jurisprudência, na medida em que é voltada à particularidade do fenômeno social sub judice, isto é, os fenômenos sociais que estão no âmbito do Poder Judiciário, sob a tutela de juízes. Tais fenômenos devem, portanto, ser analisados com auxílio da Sociologia do Direito e da Filosofia do Direito, que contribuíram para uma compreensão mais completa a respeito dos conflitos que caracterizam essencialmente o dinamismo social (ROCHA, 2019. p. 202). Gurvitch entende, ainda, que o direito nasce na sociedade, não no Estado, não sendo sequer necessário o Estado para a existência do Direito, o que implica na plena possibilidade de haver Direito sem que haja qualquer ato estatal. Para haver Direito, porém, é preciso que existam “fatos normativos”, que são considerados ideias-ações guiados por valores morais e jurídicos. Assim, sendo o Direito surgido da sociedade e dos fatos normativos que nela emergem, Gurvitch diz haver duas espécies de Direito: social e individual. O social é baseado “na coletividade organizada e se caracteriza por uma ordem normativa integradora”, enquanto o individual, “de base individualista, caracteriza-se por ordem normativa de exclusão”, pode ser considerado como consequências das condições sociais do liberalismo econômico (VIEIRA, 2015. p. 117). Embora Gurvitch tenha feito sua teoria com uma riqueza maior de detalhes e com outras diferenciações pertinentes, o que se percebe é que ele fundou sua tese a partir de um pluralismo antiestatal dialético, uma vez que extrai sua fonte normativa da coletividade, sobretudo dos fatos normativos já vistos. Por conseguinte, o Direito social por ele formulado se opõe ao individualismo liberal e estabelece uma relação de equivalência entre os direitos existentes (VIEIRA, 2015. p. 123). 1.2 Eugene Ehlich e o Direito vivo Eugen Ehrlich (1862-1918) foi um sociólogo e jurista nascido na Áustria e vinculado à chamada Escola do Direito Livre, que propunha uma maior liberdade ao juiz e intérprete da lei para sua aplicação, sem haver uma completa submissão à lei e com uma vinculação da aplicação à ideia de justiça. Para Ehrlich, o ponto central do Direito não se encontra na jurisprudência, nem na legislação ou na ciência jurídica, mas sim na própria sociedade. Trata-se, então, de um Direito vivo, que 61 embora não negue a existência do Estado, rejeita o monismo jurídico - fonte do direito como sendo apenas estatal -, e o paradigma formalista. Em sua teoria, o Estado seria apenas mais uma entre as tantas associações organizadas que compõem a sociedade (VIEIRA, 2015. p. 109). Além disso, segundo Ehrlich, todo Direito é social, de modo que não há Direito privado ou individual. Isso porque, para o autor, não há indivíduo fora de um contexto social mais amplo, sendo que tal contexto na verdade sempre abarca o indivíduo de alguma maneira (VIEIRA, 2015. p. 119). Assim, com o propósito de tentar compreender o funcionamento do Direito na vida social, Ehrlich funda a teoria do chamado “Direito vivo”, segundo a qual o Direito equivale às normas jurídicas de conduta, ou seja, aquelas regras que as pessoas de fato observam em seu cotidiano, na convivência social (KONZEN e BORDINI, 2019. p. 315). Nesse sentido, as relações humanas em geral “são determinadas por regras aceitas como vinculantes pelos integrantes das associações sociais e convertidas em ações efetivas no dia a dia”. Por isso, para que se possa de fato estudar esse Direito vivo, seria necessário analisar como tais associações se estruturam, quais são as regras seguidas pelos membros, qual seria sua ordem interna etc. (KONZEN e BORDINI, 2019. p. 315). Dessa forma, Ehrlich retira a centralidade do aparato estatal como fonte do Direito. Para ele, o Direito existe antes de sua positivação, já que é a partir das práticas existentes na convivência social, dos chamados “fatos do Direito”, que se dão as bases para a elaboração de legislações estatais. Diante disso, Ehrlich coloca um importante questionamento acerca dos motivos que levam as pessoas a seguirem determinadas regras. Segundo o autor, as pessoas levam em conta o pertencimento às associações sociais – a fim de evitar desentendimentos e desavenças, perda de emprego ou prejuízos à reputação, por exemplo –, de modo que seria questionável até que ponto decisões judiciais e uso de coerção pela força influenciam as pessoas a seguirem regras postas. (KONZEN e BORDINI, 2019. p. 316). Por fim, vale ressaltar que Ehrlich faz uma diferenciação entre normas e proposições jurídicas. As proposições seriam formulações precisas de um preceito legal previsto em um estatuto ou código, enquanto as normas jurídicas seriam comandos legais “(...) reduzidos a termos práticas para obter obediência, emanado de uma associação determinada, (...) mesmo sem nenhuma formulação em palavras” (COELHO, 2003. p. 428). Em outras palavras, as proposições seriam, por exemplo, instrumentos utilizados pelos tribunais encarregados de manter certa ordem jurídica. Assim, segundo Coelho, as proposições não são de conhecimento generalizado na sociedade, uma vez que processos em tribunais não são fatos absolutamente rotineiros na vida das pessoas, ao contrário do que ocorre em relação às normas jurídicas, já que cotidianamente as pessoas estabelecem inúmeras relações jurídicas 62 (COELHO, 2003. p. 428). Enfim, o que se pode ver é que Ehrlich valoriza a vivência da sociedade ao pensar o direito. Por esse motivo, conforme Coelho, sua teoria afasta uma grande relevância para o direito estatal, inclusive porque as relações jurídicas de uma sociedade sequer podem ser totalmente contempladas na legislação, na medida o dinamismo social pode rapidamente tornar a legislação antiquada para os fatos sociais (COELHO, 2003. p. 429). 1.3 Leon Duguit e o Direito como regra da vida social Leon Duguit (1859-1928) foi um jurista francês que ficou notabilizado por sua contribuição nas teorias do Direito Público e pelo desenvolvimento das noções básicas da teoria do Direito. Assim, diante da completude de suas obras, a teoria desenhada por Duguit reverberou nas mais diversas áreas do Direito. De início, vale ressaltar a diferenciação que Duguit faz entre Direito objetivo e Direito subjetivo. O primeiro “designa os valores éticos que se exige dos indivíduos que vivem em sociedade”, de modo que a observância à tal ética seria responsável por preservar o interesse comum. O Direito subjetivo, por sua vez, consiste em um poder do indivíduo que integra a sociedade. Este poder é o que torna possível ao indivíduo a obtenção de um reconhecimento social dos seus atos de vontade - desde que legitimados pelo Direito objetivo (DUGUIT, 2009. p. 15). Nesse sentido, Duguit considera equivocada a visão monista do Direito, segundo a qual só haveria Direito no Estado. Além disso, Duguit parte do pressuposto de que o ser humano é intrinsecamente social. Para ele, “a existência da sociedade é fatoprimitivo e humano, e não, portanto, produto da vontade humana”, de modo que todos nós, desde o nascimento, integramos algum agrupamento humano (DUGUIT, 2009. p. 39). Assim, o que explicaria os laços de integração entre os seres humanos seria, segundo Duguit, a solidariedade social. A solidariedade abrangeria toda a humanidade, embora sejam laços ainda frágeis, já que os laços de solidariedade geralmente são voltados entre os integrantes de um mesmo grupo social, sendo que a humanidade estaria dividida em muitos grupos, na visão de Duguit. Ainda segundo o autor, os seres humanos de um grupo são solidários pois possuem necessidades em comum e anseios diferentes que se satisfazem a partir de trocas recíprocas nos grupos (DUGUIT, 2009. pp. 39-41). Dessa forma, Duguit entende que o próprio Direito tem seu fundamento na solidariedade. Isso porque, como ressaltado, a sociedade se mantém a partir da solidariedade. Por isso, impõe-se uma regra de conduta aos seres humanos, que pode ser assim formulada: “(...) não praticar nada que possa atentar contra a solidariedade social sob qualquer das suas formas e, a par com isso, realizar toda atividade propícia a desenvolvê-la organicamente”. Para Duguit, o direito objetivo se 63 resume nesta fórmula e a lei deve ser a expressão deste princípio (DUGUIT, 2009. p. 45). É nesse sentido que Duguit considera o Direito como regra da vida social, já que: “A regra de direito é social pelo seu fundamento, no sentido de que só existe porque os homens vivem em sociedade”. Por fim, vale salientar que Duguit entende que a regra de Direito é ao mesmo tempo permanente e mutável, pois a solidariedade seria um elemento perene, mas oscila conforme as variações contextuais pela forma como a solidariedade se dá em cada grupo e momento (DUGUIT, 2009. pp. 45-46). 1.4 Geertz: fatos e leis em uma perspectiva comparativa Clifford Geertz (1926-2006) foi um antropólogo nascido nos Estados Unidos e é tido como um dos mais influentes de todo o século XX, sendo fundador da chamada Antropologia interpretativa, que até hoje possui grande relevância nos mais diversos campos do conhecimento. Na perspectiva interpretativa de Geertz, ele busca desmitificar os problemas colocados em relação ao relativismo cultural. O relativismo se contrapõe ao etnocentrismo, segundo o qual determinada cultura seria melhor que outra, adotando parâmetros próprios para avaliar diferentes padrões culturais. Assim, o relativismo surge como resposta, com o intuito de promover maior respeito à diversidade cultural e às diferenças entre os variados contextos e culturas existentes. O que ele busca fazer, então, é atacar as perspectivas anti-relativistas, sem, no entanto, adotar uma postura de defesa do relativismo. Seria, assim, um anti anti-relativismo. Segundo Heinen e Laurindo, ele critica a ideia de que o relativismo nos conduziria ao niilismo, ao nada, em que se perderia por completo as noções de verdadeiro e falso (HEINEN e LAURINDO, 2018. p. 66). Assim, ao combater o anti-relativismo, Geertz não pretende confirmar a noção de que tudo depende apenas da perspectiva adotada. De acordo com Heinen e Laurindo, uma de suas pretensões – e, talvez, a mais importante para o estudo jurídico – é a de atentar à alteridade, “(...) para reconhecimento do outro em seu mundo, para a efemeridade, para as mudanças culturais, para a falta de harmonia e para a ausência de solidez” (HEINEN e LAURINDO, 2018. p. 67). De um ponto de vista legal, então, as críticas de Geertz ao anti-relativismo servem para afastar a ideia de um Direito rigoroso, estrito e natural, que seria capaz de resolver todos os problemas. Seu olhar nos convida, na verdade, a pensar no Direito também em mutação constante, flexível e em movimento. Como consequência, o reconhecimento dessa mutabilidade implica também em reconhecer a pluralidade, inclusive em relação às questões jurídicas (HEINEN e LAURINDO, 2018. pp. 70-71). Além disso: “A visão do anti-relativismo através do espelho, como propõe Geertz, contribui, ainda, com o debate sobre a universalidade dos direitos humanos”. Ao colocar certa centralidade 64 nessas questões, Geertz colabora também para a consolidação do respeito à diversidade como um fundamento do Direito. E, aliás, faz com que esse processo seja de mão dupla, na medida em que um olhar crítico em relação a outra cultura sirva também como perspectiva para analisar a própria cultura (HEINEN e LAURINDO, 2018. p. 72). Dessa forma, a perspectiva comparativa e anti-relativista de Geertz possui grande valor para se pensar o mundo jurídico, pois nos permite compreender como a lei – embora congregue uma gama de valores morais, políticos, culturais etc. –, não é capaz de abarcar toda a complexidade e diversidade dos fatos. Por isso, é possível ter uma visão bem mais cuidadosa no que tange às particularidades e toda a complexidade que envolve a vivência humana em sociedade (HEINEN e LAURINDO, 2018. p. 72). 2 GLOBALIZAÇÃO E MULTICULTURALISMO Agora, analisaremos os controversos conceitos de Globalização e multiculturalismo, buscando notar mais especificamente sua influência no estudo do Direito. Atualmente, em um mundo que se apresenta cada vez mais complexo e conectado, com novas identidades e comportamentos sociais, compreender a globalização e o multiculturalismo enquanto elementos constituintes do mundo hoje em dia mostra-se fundamental. Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 2.1 Globalização Anthony Giddens considera que a Globalização significa, em termos simples, que em um único mundo. O autor acredita que a globalização, tal como a vivemos hoje, é multifacetada, na medida em que é econômica, política, tecnológica e cultural (GIDDENS, 2007. pp. 18-21). 65 Além disso, Giddens destaca que a Globalização não é apenas um processo que acontece fora do ser humano, mas também em aspectos tidos como íntimos, como os valores familiares. Trata- se então, de um processo repleto de complexidades, longe de ser singular. Por isso, há muitas nuances ainda difíceis de se compreender no processo de Globalização, como o ressurgimento de identidades culturais locais em resposta a ela, a perda de certo poder econômico das nações, a pressão por maior autonomia local, dentre tantos outros aspectos (GIDDENS, 2007. pp. 22-23). Nesse sentido, a Globalização implica também na fragilização dos limites geográficos, culturais, políticos e econômicos da sociedade. Com tal fragilização, todos esses fatores que constituem as sociedades passaram a ser mais confusos e misturados, sem distinções perfeitamente nítidas de um contexto para outro. Como consequência, é possível afirmar que o Estado nacional tem ficado enfraquecido diante das transformações que se colocam, o que leva a uma mudança também em relação ao seu próprio papel no mundo (BELTRAME et al., 2008. p. 21). A Globalização pode significar, também, a criação de uma sociedade global, cujo surgimento e fortalecimento é potencializado sobretudo pelos processos de comunicação a partir das novas tecnologias. Nesse caso, tem-se o desenvolvimento de múltiplas redes de poder, com distribuição do poder entre nações e organizações; a autonomia relativa de algumas organizações, “a formação de parlamentos e tribunais em conexão local e transnacional” e a formação de associações em outros espaços de poder local ou transnacional (BELTRAME et al., 2008. pp. 22-23). É preciso, contudo, ter ressalvas em relação a esse processo, já que ele não é total em relação à humanidade e não ocorre de maneira homogênea nas diversas partes do mundo. Nas questões jurídicas propriamente ditas, a Globalização tem trazido um intercâmbio cada vez maior entre os diferentes sistemas jurídicos mundo afora, bem como um diálogo constante entre os Estados e as organizações internacionais, que ilustram esse processo de conexão. E, como a Globalização se dá em termos políticos, econômicos, culturais e tecnológicos, passa a surgir também uma demanda a nível mundial emrelação à regulação jurídica das novas construções e comportamentos sociais que vêm surgindo com ela. 66 Figura 1 - Globalização Fonte: VectorMine, Shutterstock, 2020 #PraCegoVer Vemos na imagem pessoas de diferentes partes do mundo, conectadas graças ao sistema de telecomunicações e à Globalização. 2.2 Multiculturalismo Nesse contexto de Globalização, não se pode ignorar que existem muitas diferenças culturais relevantes e que tais diferenças estão mais em contato que nunca. Assim, o conceito de Multiculturalismo surge como sendo “a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades ‘modernas’”, embora hoje ele tenha se tornado “um modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global” (SANTOS, 2003. p. 26 apud BELTRAME et al., 2008. p. 25). Agora o indivíduo apresenta uma enorme capacidade de se mover entre diversas localidades e, consequentemente, ter contato com variadas culturas. Isso intensifica o processo de transformações das fronteiras e de mudanças culturais em escala global, o que é fortemente influenciado pela Globalização e as questões relativas às trocas econômicas e aos processos de comunicação atuais, conforme já mencionado (BELTRAME et al., 2008. p. 26). O multiculturalismo, portanto, tem a pretensão de construir uma política que respeite as diferenças e as pluralidades de cultura (BELTRAME et al., 2008. p. 27). Isso implica em um trabalho de fortalecimento dos direitos sobretudo das culturas marginalizadas e minoritárias, que frequentemente sofrem com a restrição do acesso aos direitos e à própria preservação cultural. Nesse sentido, a efetivação de uma política de multiculturalismo pode criar condições para um diálogo entre “o local e o global” que permita o reconhecimento das diferenças e a consequente aceitação do outro (BELTRAME et al., 2008. p. 28). No direito, o multiculturalismo foi incorporado 67 por vários sistemas jurídicos mundo afora como um princípio a ser seguido. Percebe-se, então, que no mundo globalizado em que vivemos, o multiculturalismo tem especial importância na preservação de valores culturais e no respeito à diversidade, o que impacta fortemente no direito, já que tais questões devem ser tuteladas juridicamente para a garantia da pluralidade cultural. Figura 2 - Grupo multiétnico de pessoas Fonte: Tartila, Shutterstock, 2020 #PraCegoVer Vemos na imagem um grupo de pessoas diferentes entre si, com diferentes idades, gêneros, traços étnicos e formas de se vestir, demonstrando o Multiculturalismo. 3 FUNÇÃO DA SOCIOLOGIA DO DIREITO E A EFICÁCIA DO DIREITO Como já vimos ao longo da disciplina, a Sociologia do Direito preocupa-se em analisar os FIQUE DE OLHO No Canadá, na Carta de direitos e liberdades, há expressa menção à valorização e promoção do patrimônio multicultural. Além disso, há uma lei específica sobre o multiculturalismo canadense, que propugna, como valores jurídicos, o reconhecimento da diversidade cultural e racial da sociedade canadense, o multiculturalismo como característica fundamental da identidade e do patrimônio canadense, a promoção da compreensão entre indivíduos e coletividades de diferentes origens, dentre outros tantos aspectos. 68 fenômenos jurídicos em funcionamento nos processos e estruturas sociais, ou seja, como o Direito surge e repercute na sociedade. O que analisaremos neste tópico, então, é mais especificamente como se dá essa abordagem sociológica do Direito, além dos efeitos sociais e a eficácia das normas, sua análise empírica e os fatores pertinentes à eficácia da norma jurídica. Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 3.1 Direito e a especificidade da abordagem sociológica Conforme dito, a grande relevância da Sociologia Jurídica consiste exatamente na análise dos processos de criação e aplicação do Direito na sociedade. Dessa forma, a Sociologia é uma disciplina que permite compreender, com mais completude, os efeitos dos fenômenos jurídicos na vida das pessoas, como elas alteram ou conformam estruturas etc. A autora Ana Lúcia Sabadell cita um exemplo que nos permite ilustrar como se dá concretamente a abordagem sociológica no Direito. No caso hipotético, situado quando o Código Penal brasileiro previa a prática de adultério como crime em seu artigo 240, ela descreve que em um caso de adultério, o advogado de uma mulher presa por essa prática iria pedir a absolvição sob o argumento de que o artigo 240 não era mais aplicado na prática. Na hipótese, o tribunal rejeita o argumenta e condena a mulher. Ao analisar o caso, um professor de filosofia do direito escreve um artigo afirmando que a punição por adultério é injusta e argumenta em relação à intimidade dos casais e da prática de adultério, concluindo que na verdade o tribunal deveria ter absolvido a mulher (SABADELL, 2002. p. 60). Diante de um cenário como esse, Sabadell questiona qual deve ser a postura do sociólogo do Direito. Ela entende, então que cabem duas etapas de para o estudo empreendido pela Sociologia Jurídica: i) realizar uma pesquisa empírica para ver em que medida o artigo do adultério é aplicado; e ii) “(...) analisar a relação entre o Direito e a evolução da sociedade, para, depois, tentar explicar porque a norma é aplicada ou não” (SABADELL, 2002. p. 61). 69 Sabadell (2002, p. 61) chama a atenção, ainda, para a neutralidade valorativa que o sociólogo do Direito deve ter ao estudar casos como esse: Ao realizar esta pesquisa o jurista-sociólogo não pode emitir juízos de valor sobre o tratamento jurídico e social do adultério. Sua função é a de compreender o pensamento e o comportamento do legislador, das autoridades e dos cidadãos, ou seja, as razões sociais que levam à elaboração de determinadas normas e sua aplicação. Por isto, deve deixar de lado sua opinião pessoal. Em outras palavras, o sociólogo do direito não julga, mas tenta compreender o fenômeno que se propõe analisar: deve buscar o sentido que as pessoas de uma determinada sociedade dão aos acontecimentos e às instituições sociais. É preciso, contudo, relativizar em alguma medida essa pretensão de neutralidade. Embora seja de fato necessário um distanciamento mínimo ao analisar uma questão como essa, todo estudo e pesquisa são permeados pelas cargas valorativas pessoais da pessoa que os realiza. Disso se depreende que a Sociologia do Direito não está interessada na justificação do Direito (justiça, moral, razão etc.), nem busca compreender a validade das normas, mas sim está ligada à eficácia do Direito, ou seja, à realidade social do Direito. Isso não quer dizer, é claro, que os outros aspectos não sejam relevantes. Trata-se apenas de uma questão de enfoque (SABADELL, 2002. pp. 61-63). O que se vê, portanto, é que em geral o sociólogo do Direito busca analisar o funcionamento das estruturas e processos normativos na sociedade, sobretudo a partir de um estudo empírico. Trata-se de uma análise realmente debruçada sobre fatos concretos e narrativas reais, voltada principalmente para a forma como os fenômenos jurídicos repercutem na vida social. Para isso, a Sociologia Jurídica pode fazer uso de metodologias próprias das ciências sociais, que permitem fazer as averiguações necessárias conforme as especificidades de cada caso e a perspectiva adotada. 3.2 Efeitos sociais, eficácia e adequação interna das normas jurídicas No que tange aos efeitos socias, à eficácia e à adequação interna das normas jurídicas, ainda na perspectiva de Ana Lúcia Sabadell, essas seriam as três dimensões possíveis de análise da repercussão social de uma norma (SABADELL, 2002. p. 64). Primeiramente, em relação aos efeitos da norma, a autora considera que qualquer repercussão social gerada por uma norma constitui um efeito social da mesma. Exemplificando, Sabadell cita um caso em que determinado Estado brasileiro promulga uma lei estabelecendo um aumento no imposto para empresas de capital estrangeiro. Como consequência, é notadauma migração das empresas para outros Estados com alíquotas menores. Não se trata, então, de descumprimento da lei, mas simplesmente de um efeito gerado (SABADELL, 2002. p. 64). A eficácia da norma, por sua vez, diz respeito ao “(...) grau de cumprimento da norma dentro da prática social. Uma norma é considerada socialmente eficaz quando é respeitada por seus destinatários ou quando sua violação é efetivamente punida pelo Estado”. O respeito espontâneo, 70 independente de coerção estatal, seria a eficácia primária, enquanto a eficácia decorrente de intervenção repressiva seria a eficácia secundária (SABADELL, 2002. p. 64). Já a adequação interna da norma seria a capacidade da norma para atingir a finalidade social previamente estabelecida pelos legisladores. Assim, uma norma seria internamente adequada quando suas consequências refletem os fins pretendidos pelos legisladores quando de sua elaboração. A questão, então, é analisar se o meio empregado (a norma jurídica criada) permite atingir os objetivos do legislador (SABADELL, 2002. pp. 65-67). É importante ressaltar, ainda, a existências das chamadas “leis simbólicas”. Tais leis são normas elaboradas de modo que dificilmente alcançarão os objetivos em tese estabelecidos, isto é, são normas cuja baixa eficácia está desde a sua elaboração prevista. Em geral, essas leis são feitas com o intuito de dar algum tipo de resposta a uma insatisfação colocada por grupos sociais, a fim de dar a impressão de que o legislador está agindo para resolver os problemas colocados (SABADELL, 2002. p. 67). Há, ainda, a adequação externa da norma. Nesse caso, os objetivos estabelecidos pelo legislador são analisados a partir de critérios de “justiça” (SABADELL, 2002. pp. 67-68), ou seja, segundo perspectivas muito mais filosóficas que sociológicas. Vale lembrar, por último, que a eficácia pode ser considerada uma qualidade dos efeitos da norma. Isso porque os efeitos podem ser basicamente compreendidos como os resultados gerados pela sua existência, sejam eles quais forem. Ao passar a análise para os termos da eficácia, a questão passa a ser a qualidade do efeito produzido, isto é, em que medida os objetivos pretendidos estão sendo alcançados (ROSA, 2004. pp. 104-105). É nesse sentido que se diz que uma lei é ineficaz: quando não serve para os fins para os quais foi criada. 3.3 Análise empírica da eficácia das normas jurídicas Diante de todo esse quadro, Sabadell considera que a Sociologia Jurídica permite um estudo empírico para analisar a eficácia das normas, contemplando basicamente quatro questões: A norma possui efeitos, eficácia e adequação interna? No Canadá, na Carta de direitos e liberdades, há expressa menção à valorização e promoção do patrimônio multicultural. Além disso, há uma lei específica sobre o multiculturalismo canadense, que propugna, como valores jurídicos, o reconhecimento da diversidade cultural e racial da sociedade canadense, o multiculturalismo como característica fundamental da identidade e do patrimônio canadense, a promoção da compreensão entre indivíduos e coletividades de diferentes origens, dentre outros tantos aspectos. Qual é a reação do legislador em relação à constatação dos efeitos, eficácia e adequação de 71 uma norma? E quais são as razões sociais para ela? 3.4 Fatores de eficácia da norma jurídica Sabadell nos apresenta os fatores considerados pelo Direito moderno como indicadores de eficácia da norma jurídica, segundo os quais quanto mais forte é a presença de tais fatores, maior é a possibilidade de eficácia da norma. A autora divide os fatores em instrumentais e referentes à situação social (SABADELL, 2002. p. 70). Os fatores instrumentais dependem dos órgãos de elaboração e aplicação do direito e são os seguintes: i) divulgação do conteúdo da norma para a população através dos meios adequados, de modo a empregar métodos educacionais e meios de propaganda política e comercial; ii) conhecimento efetivo da norma pelos destinatários, o que depende largamente do primeiro fator; iii) qualidade técnica da norma, envolvendo a clareza na redação, concisão e precisão do conteúdo, bem como sistematicidade, elementos fundamentais no processo de elaboração da lei e com claras consequências na aplicação e observância; iv) elaboração de estudos preparatórios a respeito do tema sobre o qual se pretende legislar (trata-se dos trabalhos feitos pelo parlamento, em suas comissões por exemplo; v) preparação dos ditos operadores do direito que serão responsáveis pela aplicação da norma; vi) consequências jurídicas adaptadas à situação e socialmente aceitas, ou seja, elaborar normas que estimulem de alguma forma a adesão dos cidadãos; e vii) expectativa de consequências negativas por parte dos cidadãos em caso de descumprimento, de modo a desestimular a inobservância a partir da aplicação das sanções previstas (SABADELL, 2002. p. 70). Os fatores ligados à situação social, por sua vez, dizem respeito ao sistema de relações sociais e atitudes do poder político em relação à sociedade civil, de modo a influenciar nas chances de aplicação das normas jurídicas, havendo quatro fatores: participação dos cidadãos no processo de elaboração das normas, coesão social, adequação da norma à situação política e à relações de força dominantes e contemporaneidade das normas com a sociedade (SABADELL, 2002. pp. 71-73). A participação dos cidadãos no processo de produção normativa tem como cenário a valorização das formas democráticas de exercício do poder. Isso significa que, se as pessoas participam ativamente dos processos de tomada de decisão, considerando que as instituições pertinentes permitam tal participação, certamente haverá maior adesão da população às normas criadas, aumentando a eficácia normativa (SABADELL, 2002. p. 71). De outro modo, podemos dizer que as normas em geral criadas pelo poder estatal possuem uma pluralidade enorme de destinatários. Por isso, é imprescindível que o processo de elaboração leve em conta minimamente as vozes das pessoas potencialmente afetadas pela norma. Isso pode resultar não só em uma maior adesão, como também em uma maior qualidade da norma. 72 O segundo fator, de coesão social, diz respeito à existência de conflitos na sociedade em dado momento. Para Sabadell, quanto menos conflitos são travados na sociedade, e quanto mais consenso houver entre os cidadãos e a política estatal, maior será a eficácia das normas. Há aqui, então, uma relação entre a legitimidade do Estado e a observância às normas (SABADELL, 2002. p. 72). Embora de fato este seja um fator relevante, é importante pontuar também que não se pode ignorar a existência natural do dissenso e das divergências em uma sociedade complexa. Não há problema, em si, nos interesses conflituosos de diferentes grupos sociais. A questão parece muito mais pertinente a respeito de como esses conflitos são colocados e se há um respeito concreto aos direitos garantidos por lei, sobretudo daqueles grupos com menos força política. Já no que tange à adequação da norma à situação política e às relações de força dominantes, Sabadell considera que “(...) a situação socioeconômica de um país e as forças políticas que se encontram no poder influem sobre a eficácia das normas jurídicas. Uma norma que corresponde à realidade política e social possui mais chances de ser cumprida” (SABADELL, 2002. p. 72). Por fim, a contemporaneidade das normas com a sociedade quer dizer, segundo Sabadell, que em geral as normas não são eficazes se exprimem ideias antigas ou inovadoras (SABADELL, 2002. p. 73). Assim, pode-se dizer que a eficácia está ligada também a uma certa harmonia com aquilo que a sociedade anseia em determinado momento. A partir do exemplo já citado nesta unidade, da tipificação do adultério como crime no Código Penal, temos a ineficácia da norma em razão também de sua inadequação aos valores atuais, ou seja, em algum momento a norma passou a exprimir algo tido como antiquado e inapropriado.FIQUE DE OLHO Ao se falar em eficácia das normas jurídicas, tem ganhado cada vez mais espaço no mundo jurídico, principalmente no contexto internacional, um ramo do Direito conhecido como Legística. A Legística ocupa-se do processo de produção normativa e é dividida entre “formal” e “material”. A legística material diz respeito aos estudos sobre o conteúdo da norma, sobretudo com a avaliação de impacto legislativo, enquanto a legística formal é pertinente aos processos de comunicação da norma, como sua redação. 73 Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • Compreender que o pluralismo formulado por Georges Gurvitch tem sua fonte nor- mativa na coletividade. Assim, trata-se de um Direito social que se opõe ao individu- alismo liberal. • Compreender que, na visão de Eugen Ehrlich, há uma clara valorização da vivência da sociedade ao pensar o Direito. Por isso, sua teoria não centraliza o direito estatal, mas destaca o dinamismo social, que pode rapidamente tornar a legislação antiqua- da para os fatos sociais. • Entender que a Globalização significa um processo de intercâmbio político, eco- nômico, tecnológico e cultural entre as sociedades, enquanto o multiculturalismo é uma forma de garantir o respeito à diversidade cultural e às particularidades de cada grupo. • Analisar a eficácia da norma em relação ao grau de cumprimento da lei na prática social, na medida em que ela é respeitada (ou não) pelos seus destinatários. • Compreender que a abordagem sociológica do Direito se concentra sobre a reali- dade social e os efeitos nela causados pela norma, sem com isso realizar juízos de justiça ou moral, mas sim buscando compreender o funcionamento dos fenômenos jurídicos na vida social. PARA RESUMIR BELTRAME, A. et al. O multiculturalismo e a globalização como princípios para uma internacionalização do direito. In: Padê, Brasília, v. 2, n. 1, p. 4-46, jan./jun. 2008. COELHO, L. F. Teoria crítica do direito – 3ª ed. rev., atual. e ampl. – Belo Horionte: Del Rey, 2003. DUGUIT, L. Fundamentos do direito. Trad. Marcio Pugliesi – São Paulo: Martin Claret, 2009 GIDDENS, A. Mundo em descontrole –Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. 6ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2007. HEINEN, L. R. et al. Interfaces entre a Antropologia e o Direito: uma discussão sobre o anti anti-relativismo de Clifford Geertz. In: Revista Videre, Dourados, MS, v.10, n.20, jul./ dez. 2018. KONZEN, L. P. et al. Sociologia do direito contra dogmática: revisitando o debate Ehrlich- Kelsen. In: Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 10, N.1, 2019, p. 303-334. ROCHA, J. M. de S. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras – 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. ROSA, F. A. de M. Sociologia do direito: o fenômeno jurídico como fato social – 17ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. SABADELL, A. L. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. – 2ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. VIEIRA, R. de S. Pluralismo Jurídico Clássico: A Contribuição de Ehrlich, Santi Romano e Gurvitch. In: Direito, Estado e Sociedade n. 47 p. 108 a 127 jul/dez 2015. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS UNIDADE 4 Controle social Olá, Você está na unidade. Nesta unidade, nos aprofundaremos na discussão acerca do papel e do lugar do Direito em sua relação com a sociedade e a estrutura econômica e social a qual ele regula, e o questionamento acerca da possibilidade da prática jurídica em promover ou em barrar a mudança social. Por fim, discutiremos temas afins à Sociologia da aplicação do Direito, ou a Sociologia dos tribunais; e o papel do Judiciário no desdobramento da cultura jurídica e na relação com os movimentos sociais. Bons estudos! Introdução 77 1 CONFLITOS, INTEGRAÇÃO E MUDANÇA SOCIAL: O PAPEL DAS NORMAS JURÍDICAS Se partirmos da premissa de que um dos principais objetivos do estudo sociológico é o de observar e analisar as regras que regem a interação entre pessoas e grupos (REHBINDER, 2000), ou seja, das relações sociais; o estudo das mesmas envolve analisar regras de organização social, dos conflitos e de mudanças sociais (SABADELL, 2002). Nesse sentido, as relações entre a Sociologia e o Direito, que visa estabelecer regras definidas e coerentes para regular o comportamento social, são evidentes. A Sociologia jurídica busca investigar a expressão justamente da forma pela qual se exprime no sistema jurídico os processos de conflito, integração e mudança que se desenvolvem no tecido social (SABADELL, 2002). Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 1.1 Anomia e regras sociais De acordo com Durkhein, o conceito de anomia se refere à falta de normas que vinculem as pessoas à estrutura social, usual em períodos de grande transformação e de questionamento de sistemas sociais decadentes ou em crise. A constatação de uma situação anômica poderia indicar a existência de um período de mudança social e analisar efeitos e causas de tal situação transitória (SABADELL, 2002). Ana Lúcia Sabadell (2002) identificou três usos possíveis para a construção teórica da anomia para a Sociologia do Direito. O primeiro diz respeito à possibilidade de a anomia causar a ineficácia de preceitos jurídicos devido à consideração, por parte dos indivíduos, que a norma descumprida é inadequada ou injusta, situação distinta de violações ocasionais da legislação que não questionam a validade da lei em questão. O Estado pode reagir a esta conduta de várias 78 formas: tolerando a violação e permitindo a ineficácia tácita da norma; modificando a legislação, visando aproximá-la das práticas sociais vigentes e então em conflito com as normas jurídicas; realizando campanhas informativas e propagandistas, com o objetivo de ampliar o apoio social às leis já vigentes; ou, por fim, usando a força e a repressão contra as tendências anômicas (SABADELL, 2002). Outras situações verificadas pela autora dizem respeito à heteronomia: quando a anomia não deriva da ausência de normas, mas do conflito entre os princípios e convicções do sistema jurídico oficial, e as normas às quais parte dos sujeitos subordinados pelo mesmo sistema jurídico aceitam se sujeitar; e o pluralismo cultural, onde a imposição, pelo direito estatal, de normas orientadas por uma visão específica num contexto de multiplicidade de valores e modos de vida existentes na sociedade incentiva comportamentos anômicos e crises de legitimação do direito (SABADELL, 2002). Quanto à teoria de Merton, embora ela tenha potencial explicativo razoável em relação ao cometimento de crimes patrimoniais por parte de indivíduos em situação socioeconômica desfavorável, além de crimes de motivação política e comportamentos autodestrutivos, como o vício em substâncias toxicodependentes, ela é vista por Sabadell (2002) como demasiadamente genérica, incapaz de apresentar uma chave explicativa e conceitual suficiente para determinados tipos de violação à lei, como, por exemplo, os crimes passionais e sexuais. As condutas anômicas (inovação, ritualismo, evasão, rebelião) são vistas como disfunções e patologias de origem eminentemente individual dentro de um sistema social presumido como estável e orientado para o equilíbrio (MARRA, 1991). Em outro sentido, também assume uma concordância geral na sociedade acerca das metas e objetivos sociais a serem valorizados – aqui associados à ideologia dominante nas sociedades capitalistas contemporâneas –, o que nem sempre é o caso e limita o potencial explicativo e a validade da teoria (PAVARINI, 1983). 1.2 Direito como propulsor e obstáculo da mudança social O campo que mobiliza o conceito de anomia e vê sua relação com a conformidade, ou não, às regras sociais vigentes, que tem como principal referência sociológica Émile Durkheim (2003), vê o Direito como um indicador privilegiado dos padrões de solidariedade social, sendo garantidor da acomodação e resolução harmoniosa dos conflitos em uma comunidade e instrumento de maximizaçãoa eficácia do Direito .....................................................................67 PARA RESUMIR ..............................................................................................................................73 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................74 UNIDADE 4 - Controle social ..........................................................................................................75 Introdução.............................................................................................................................................76 1 Conflitos, integração e mudança social: o papel das normas jurídicas ..............................................77 2 Controle social e Direito: cultura e normatização .............................................................................. 83 3 Sociologia dos tribunais e democratização da Justiça ........................................................................89 PARA RESUMIR ..............................................................................................................................96 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................97 Sociologia do Direito e Antropologia Jurídica são dois campos de estudo social do Direito muito importantes para que o estudante tenha um panorama multidisciplinar da área. Em quatro unidades, esta obra vai apresentar os principais aspectos para um estudo completo sobre o assunto, conforme indicado a seguir. A primeira unidade, introdução à Antropologia e à Sociologia vai apresentar o significado dessas duas ciências aplicadas ao Direito e discutirá sobre o objeto e o âmbito da Sociologia geral a partir de uma perspectiva histórica, além de abordar o objeto e o significado da Antropologia Jurídica e da Sociologia aplicada ao Direito. Depois de estudar as noções fundamentais você estará apto a aprender os conceitos que serão estudados ao longo do curso, mais especificamente da disciplina, além de melhorar o entendimento do fenômeno jurídico e suas implicações sociais. Na segunda unidade, perspectivas sociológicas de Sociologia e Antropologia Jurídica, destacaremos algumas nuances importantes para o estudo da Sociologia e Antropologia do Direito como a cultura por uma perspectiva antropológica; cultura e sociedade; crime e desvio social. Depois de uma breve apresentação das perspectivas de teóricos importantes a respeito da problemática do crime e do desvio social, estudaremos as perspectivas sociológicas de três dos autores mais importantes e influentes desta disciplina: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. As interseções da obra destes autores com o Direito também serão abordadas nesta unidade. A terceira unidade vai tratar de Direito e Sociedade. A importância de algumas abordagens sociológicas do Direito, tais como as teorias de Georges Gurvitch, Eugen Erlich, Leon Duguit e Clifford Geertz serão discutidas aqui e, a partir desses autores, desenvolveremos o tema discutindo a importância das variadas perspectivas para o estudo sociológico do Direito. Além disso, analisaremos as noções de “globalização” e “multiculturalismo”, tão importantes no mundo atual cada vez mais conectado. Por fim, estudaremos a questão da eficácia do Direito a partir de uma abordagem sociológica. Por fim, a quarta unidade discute aspectos do Controle Social. Qual o papel e o lugar do Direito em sua relação com a sociedade e a estrutura econômica e social a qual ele regula? Qual a possibilidade de a prática jurídica promover ou barrar a mudança social? São estas as questões abordadas nesta unidade, além de temas relacionados com a Sociologia da aplicação do Direito ou a Sociologia dos tribunais e o papel do Judiciário no desdobramento da cultura jurídica e na relação com os movimentos sociais. Um tema interessante e importante no estudo do Direito! Aproveite a leitura e bons estudos! PREFÁCIO UNIDADE 1 Introdução à antropologia e à socio- logia jurídica Olá, Você está na unidade. Conheça aqui as abordagens de dois campos de estudos: a Sociologia do Direito e a Antropologia Jurídica. Para tanto, estudaremos o significado, o objeto e âmbito da Sociologia geral, a partir de uma perspectiva histórica, além do objeto e do significado da Antropologia Jurídica e da Sociologia aplicada ao Direito. Essas noções serão fundamentais para os conceitos estudados ao longo da disciplina e também para uma melhor compreensão do fenômeno jurídico e suas implicações sociais. Bons estudos! Introdução 11 1. SIGNIFICADO, OBJETO E ÂMBITO DA SOCIOLOGIA Neste tópico, a proposta é compreender do que trata a Sociologia Geral, qual o seu objeto de estudo e o que ela aborda. Além disso, veremos sua origem histórica, com enfoque na figura de Augusto Comte e no Positivismo. Veremos que a Sociologia tem uma enorme relevância para os estudos sobre a sociedade, o que fortalece a pertinência da Sociologia do Direito para qualquer aprofundamento no campo jurídico. Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 1.1 Concepção e objeto da Sociologia A Sociologia pode ser considerada uma ciência que tem por objetivo analisar os processos e as estruturas sociais, ou seja, como se dá a vida humana em sociedade. A partir de diferentes perspectivas, o que os principais teóricos da Sociologia fizeram foi oferecer explicações para se compreender a sociedade como um todo, em análises sobre alguns aspectos da estrutura social e das relações que se estabelecem no seu interior. Ao estudar as formações sociais e suas causas, a Sociologia se insere em uma análise acerca do desenvolvimento histórico de tais formações, na medida em que tenta compreender os fatores que levaram a uma dada situação social vivida em determinados contextos. Assim, pode-se dizer que a Sociologia está comprometida com os processos de transformação social, desvendando mistérios da vida social do passado e, através desse conhecimento, intervindo na realidade e contribuindo para a compreensão e construção do futuro. Dito de maneira simplificada, o objeto de estudo da Sociologia seria, então, as formações sociais passadas, presentes e uma espécie de projeção sobre as futuras (ROCHA, 2019. p. 10). O sociólogo José Manuel de Sacadura Rocha destaca também necessidade de que a Sociologia, para ser ciência, seja pensada em um contexto de liberdade. Isso porque, para o autor, 12 como a Sociologia está comprometida com a reflexão sobre as transformações sociais, seria difícil defender esse papel de agente de mudanças em um contexto de autoritarismo e estados de exceção (ROCHA, 2019. p. 10). Além disso, é importante pontuar a extrema relevância da Sociologia para a compreensão do ser humano acerca de si mesmo. Historicamente, o ser humano constitui-se de maneira social, isto é, em relação com outros seres humanos e com o ambiente que os cerca. Essas relações ajudam a moldar, condicionar e até determinar a forma como agimos, vivemos e somos. Mesmo que nós possamos agir de maneira isolada e individual, o comportamento continua sendo social, na medida em que sobre ele “recai o peso da orientação coletiva de determinado grupo” (ROCHA, 2019. p. 11). Evidentemente, há sempre certo espaço para a ação individualizada e nem tudo é absolutamente determinado e condicionado socialmente. Mas não se pode negar a influência dos fatores sociais na constituição dos comportamentos humanos. Como exemplo, podemos pensar na forma de utilização do tempo pelas pessoas. Por que tantas pessoas habitualmente acordam em uma faixa de horário similar, se locomovem ao trabalho e retornam em horários semelhantes? A influência dos modos de produção de trabalho estabelecidos é perceptível, na medida em que somos condicionados a utilizar nosso tempo dessa forma. Assim, quando se diz que a Sociologia estuda processos e estruturas sociais, concretamenteda integração social e realização do bem comum (SANTOS, 1999). O lado oposto desta discussão, derivado especialmente do Marxismo, concebe o Direito como um instrumento de dominação econômica e política que é expressão dos interesses das classes dominantes. Sendo um componente da superestrutura da sociedade capitalista e derivado da conformação das forças produtivas e relações sociais de produção da mesma, o Direito opera como um sistema que transforma os interesses específicos das classes dominantes para positivá- 79 los na lei como se representassem um interesse coletivo e universal destas sociedades (MARX, 2001, 2010, 2013; SANTOS, 1999). Boaventura de Sousa Santos (1999) recorda que, nos debates afins à Sociologia Jurídica – que implica refletir acerca das articulações do campo do direito com as estruturas sociais e as condições em que este opera –, incide uma disputa de perspectivas derivada da polarização apresentada acima: o direito é variável dependente – ou seja, é fenômeno que se limita a acompanhar e incorporar valores sociais e padrões de conduta constituídos e disputados politicamente na sociedade –, ou é instrumento capaz de ser um promotor ativo de mudança social, na vida concreta e na disputa de ideias? No polo oposto, estão aqueles que atribuem ao Direito papel determinante no contexto social, tendo este a capacidade de atuar perante a realidade e modifica-la de forma autônoma. Nesta ótica, mudanças normativas de qualquer espécie tem condições de impor com sucesso determinados comportamentos aos membros da comunidade: o “dever ser” pode sempre direcionar o “ser”. Esta é a posição idealista. Antes de apresentar a última corrente, é necessário apontar que, de forma associada a esta problemática, incide outra divisão no campo da Sociologia jurídica sobre Direito e mudança social: a disputa entre aqueles que a) consideram que o direito é um freio às grandes mudanças sociais, reagindo às reivindicações populares de forma lenta e restrita (tendo, portanto, um papel essencialmente conservador); e b) a visão de que o Direito tem o condão de desempenhar uma função educadora e progressista, sendo instrumento eficaz e aberto para a realização de mudanças por meio de reformas legislativas (SABADELL, 2002). A autora supracitada apresenta uma terceira posição, intermediária, que conciliaria as duas visões antagônicas apresentadas. Para Sabadell (2002), o Direito é, de fato, configurado por interesses e necessidades sociais e produto em grande medida de um contexto econômico e FIQUE DE OLHO Ana Lúcia Sabadell (2002) entende que há três posições distintas acerca desta problemática nos debates acadêmicos. Inicialmente, há a corrente denominada “realista”, que compreende que o Direito é uma manifestação social determinada pelo contexto sociocultural. Desta forma, a sociedade produziria o Direito que convém à mesma. Quando este argumento é levado ao limite, o Direito é visto como a mera reprodução, em nível normativo, da dominação social e da imposição dos interesses dos grupos dominantes, visão compartilhada por algumas correntes marxistas e liberais. 80 social. Entretanto, o mesmo teria a capacidade de influir, de forma dinâmica, na realidade social, determinando e sendo determinado pela mesma ao mesmo tempo. Esta posição se associa à de Soriano (1997), que vê o Direito como possuidor de uma autonomia relativa em relação à estrutura sociocultural na qual está inserido. 1.3 Atuação do Direito como fator de mudança social Continuando a explorar esta corrente intermediária, que admite a possibilidade do Direito, considerado estritamente, provocar mudanças sociais – mas não de forma estrutural ou radical sem que esteja inserido e associado a um processo de mobilização e transformação política sistêmica, Soriano (1997) se interessa pela intensidade, o ritmo e as esferas de manifestação das mudanças passíveis de decorrer do sistema jurídico. Quanto ao primeiro aspecto, a intensidade da mudança por meio do Direito depende, segundo o autor e Sabadell (2002), de dois fatores: a natureza do sistema jurídico e a natureza do sistema político em que tais mudanças concretamente incidirão. No primeiro fator, a abertura, flexibilidade e abstração das normas jurídicas favorecem reformas de maior monta, enquanto a existência de fortes procedimentos de controle e rigidez normativa - ao, por exemplo, estabelecer “cláusulas pétreas” em uma Constituição -, minimizam as possibilidades de alterações sistêmicas. Em relação ao sistema político, um maior nível de concentração do poder e de quantidade de atribuições a entes específicos facilita a implementação de mudanças rápidas e de peso via alterações legislativas – o que também ocorre usualmente em situações de revolução social (SABADELL, 2002). Por outro lado, a pulverização do poder, a presença de fortes pesos e contrapesos, bem como a postura dos agentes políticos – seja pelo desinteresse em alterar o status quo, seja pela opção pela conciliação e acomodação de demandas -, também tem como consequência lógica um Direito que opera de modo a promover estabilidade. Nesta problemática, se inserem correntes teóricas no campo do Direito que acreditavam ser possível uma prática e interpretação jurídicas emancipadoras e favoráveis a grupos e classes sociais desfavorecidas, como no caso do “Direito alternativo”. Uma variação desta problemática no debate jurídico brasileiro, também valorizando e ampliando as possibilidades hermenêuticas dos aplicadores do Direito, é o chamado neoconstitucionalismo. As críticas a esta “instrumentalização” do Direito em prol da solidariedade e igualdade social vieram especialmente de tradições jurídicas afins ao positivismo e críticas à ingerência do Judiciário em funções de outros poderes (SARMENTO, 2007; STRECK, 2011) e também de grupos políticos alertas ao perfil cultural, econômico e social majoritário dos aplicadores do Direito em sociedades capitalistas e no Brasil, em específico (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018). 81 No primeiro caso, são alvo de críticas especialmente decisões que se baseiam em interpretações demasiadamente elásticas da legislação aplicável, quando não uma atuação contra legem. No segundo caso, a alegação é de que este tipo de atuação também pode ser utilizada com propósitos conservadores, corporativos ou proselitistas, considerando o fato da maioria do Judiciário e do Ministério Público no Brasil e em outros países ser ocupado pela elite econômica e cultural da sociedade, e tendente a enxergar o mundo e o labor jurídico diário por esta lente. Em relação às esferas de manifestação de mudanças, estas podem ocorrer de forma estritamente interna, abarcando o Direito nacional, bem como externamente, no caso do Direito internacional e/ou comparado (SABADELL, 2002). Nesse sentido, vale lembrar que mudanças e reformas jurídicas de destaque em determinados países por vezes ganham notoriedade e influência em sistemas jurídicos alienígenas. Por fim, cabe fazer breves considerações acerca dos diferentes ritmos de mudanças impulsionadas pelo Direito. A depender dos aspectos da vida social afetados por uma mudança na legislação, esta pode se dar de forma mais fácil e rápida, como em mudanças econômicas de grande aceitação pelo público alvo; ou sofrer fortes resistências, como, por exemplo, exemplo, normas que vão de encontro a práticas culturais ou religiosas fortemente arraigadas no tecido social. De qualquer forma, resta claro que nesta relação mútua entre Direito e sociedade, a mudança social através do Direito é um problema eminentemente político (SABADELL, 2002). 1.4 Pluralismo Jurídico O termo “pluralismo jurídico” diz respeito à perspectiva que defende a existência, em uma mesma comunidade e simultaneamente, de mais de um conjunto articulado de regras, princípios e instituições – ou seja, da pluralidade de ordens jurídicas no interior de um mesmo espaço geopolítico (CASTRO, 2013; SANTOS, 2011). Tal expressão surgiu em meadosdo século XIX como uma reação à visão monista do Direito, ainda predominante. O monismo está identificado à uma orientação exclusivamente centralizadora e estatal sobre quais normas são válidas em uma determinada sociedade. Em diversas sociedades, se viu um processo de supressão, marginalização ou assimilação de usos e costumes locais que entravam em conflito ou se localizavam fora do âmbito do direito estatal. Tal dinâmica pôde ser vista tanto em guerras e conflitos na Europa ocidental, como na colonização europeia na África e nas Américas. Ela foi e continua sendo alvo de resistência das populações locais, situação em que se estabelece um cenário de pluralidade de normatividades, ou “direitos”, observados pela comunidade. Historicamente, estas normas de conduta marginalizadas eram eventualmente alvo de 82 incorporação ou reconhecimento pelo Direito dos Estados das metrópoles ou em situação de dominância. Na visão de Sally Merry (1988), podem ser distinguidos dois períodos distintos de análise sobre o pluralismo jurídico: o clássico e o do novo pluralismo jurídico. O primeiro se referiria aos estudos aplicados às sociedades coloniais onde se verificava autonomia e interseção entre ordens jurídicas distintas – notadamente, o(s) Direito(s) dos indígenas e o Direito das colônias. A perspectiva relativa ao acesso diferenciado à justiça em comunidades tradicionais se desenvolveu nas últimas décadas e afastou a feição etnocêntrica, abrindo maior espaço para a resolução de conflitos por meio de processos de justiça comunitária adotando valores e símbolos caros a estes grupos específicos. O novo pluralismo diz respeito, na perspectiva da autora e de Santos (2011), ao contexto pós- colonial de sociedades urbanas industrializadas onde incide uma teia de legalidades entrelaçadas, e uma relação entre diferentes ordens normativas vista agora como interativa, e não segmentada. Nesse sentido que Castro (2013) aponta que a partir dos anos 1980 se intensificaram os debates que questionavam a posição de subordinação e dominação dos Direitos locais em detrimento do Direito “oficial”. A partir desta mudança, a academia passou a enfatizar as possibilidades de interações bidimensionais – destas diferentes fontes de normatividade –, ampliando o reconhecimento do pluralismo em contextos também não orientados pelo colonialismo ou pela vida rural. Amplificou-se, assim, o espaço às perspectivas que rejeitam a ideia de que apenas o Direito estatal deve ser considerado “Direito” e, portanto, única fonte legítima e válida de orientação de normas de conduta. Este processo ocorreu de forma concomitantes dentro dos marcos dos estados-nação e globalmente, com o declínio de construções jurídicas “clássicas” do Direito internacional e a fragmentação do Direito internacional (CASTRO, 2013). Dentre as principais referências contemporâneas no estudo e visibilidade do pluralismo jurídico no Brasil está o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Seu já clássico estudo realizado em uma favela do Rio de Janeiro nos anos 1970 identificou as diversas formas alternativas de definição de normas de conduta e de interpretação e construção da legalidade naquela comunidade. Este trabalho empírico que impulsionou os estudos sobre o pluralismo jurídico contemporâneo nas décadas seguintes. Outro fenômeno social que impulsionou as discussões sobre o pluralismo jurídico foi a emergência dos chamados “Estados plurinacionais” pelos processos constituintes na Bolívia e Equador nos anos 2000, que promoveram em seus textos constitucionais dispositivos reconhecendo a diversidade de ordens normativas internas ao Estado-nação e questionando o próprio modelo deste (AFONSO; MAGALHÃES, 2011). 83 Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 2 CONTROLE SOCIAL E DIREITO: CULTURA E NORMATIZAÇÃO O controle social diz respeito, em sentido amplo, a tudo aquilo que tem a capacidade de influenciar o comportamento dos indivíduos de uma sociedade (SABADELL, 2002); tecnicamente, é conceituado como “(...) qualquer influência volitiva dominante, exercida por via individual ou grupal sobre o comportamento de unidades individuais ou grupais, no sentido de manter-se uniformidade quanto a padrões sociais” (SOUTO; SOUTO, 1997, p. 177). O estudo das finalidades, dos elementos e dos meios em que a sociedade pressiona os indivíduos a seguirem os valores sociais dominantes foi de grande interesse da Sociologia ao longo do século XX. Nesse sentido, o campo da Sociologia do direito se interessa especialmente pelo controle social exercido por meio do Direito. Soriano (1997) e Sabadell (2002) destacam algumas diferenciações internas importantes relativas ao controle social. Inicialmente, apontam a possibilidade do exercício deste instrumento tanto para a mera orientação do comportamento social dos indivíduos, como para fiscalizar efetivamente a conduta dos mesmos (atuação, portanto, mais intrusiva). O controle pode variar também no que diz respeito aos seus destinatários: pode ser difuso, ou generalizado; como pode ser intensificado em certos grupos específicos de interesse – no qual é denominado controle localizado. Também variam os agentes que exercem o controle social: este pode ser promovido por meio de setores da sociedade, por meio da “opinião pública”, da família, do ambiente laboral; ou a fiscalização pode ser realizada diretamente pelo Estado e seus órgãos e agentes. Por fim, o escopo de atuação do controle pode ser de atuação direta ou indireta sobre os indivíduos e grupos: um policial que aborda um cidadão exerce controle direto; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e 84 o Ministério da Educação exercem indiretamente controle sobre conteúdo e estrutura do ensino nas escolas brasileiras. É importante ainda diferenciar algumas das diversas formas em que o fenômeno do controle social pode se manifestar. Primeiramente, este pode apresentar grau de organização maior ou menor, assumindo feições formais e/ou informais. Este se associa ao controle difuso e ao que é realizado pela sociedade, ao passo que o primeiro é realizado primordialmente pelo Estado, visto que usualmente é resultado de um processo de institucionalização do controle de comportamentos desviantes – espaço onde o Direito se encontra (SABADELL, 2002). Os meios de controle social também podem assumir feição negativa ou positiva. No primeiro caso, almeja-se alterar um comportamento indesejável por meio da reprovação do mesmo e da aplicação de sanções aos indivíduos que o cometeram, enquanto o controle positivo visa incentivar condutas vistas como adequadas pela persuasão e premiação àqueles que adotaram “bons” comportamentos (SABADELL, 2002). Figura 1 - Exemplo de meio de controle social: a polícia Fonte: Antonio Scorza, Shutterstock, 2020 #PraCegoVer: Vemos um policial observando um grupo de pessoas que formam uma fila para embarcar num bonde elétrico urbano. 2.2 Características do controle social por meio do Direito Como indicado na seção anterior, o Direito se caracteriza por ser uma forma de controle social formal, que determina normas de conduta que: i) são interpretadas e aplicadas por agentes do Estado designados com esta função; ii) caracterizam-se por serem explícitas – indicando o que fazer ou não fazer; e iii) cujo descumprimento implica na aplicação de sanções (SABADELL, 2002). As sanções ditadas pelo Direito oficial se diferenciam das sanções “sociais” ou informais por estarem formalizadas num código jurídico, delimitadas concretamente, circunscritas em 85 procedimentos definidos (que também servem como garantias e proteção contra a arbitrariedade) e aplicada por instituições competentes específicas para sua aplicação. Num sistema jurídico, há normas de organização que não estão associadas a sanções, voltadas para a organização da aplicação de outros dispositivos – estas são as normas processuais (SABADELL, 2002). Também há casos de normas que determinam obrigações, mas não impõem de formaconcomitante sanções no caso do descumprimento daquela. Podemos citar aqui condutas puníveis penalmente, mas cujos autores encontram-se em situações onde incide excludentes de culpabilidade, tipicidade ou ilicitude. Outros casos são normas que preveem incentivo no caso de seu cumprimento, mas não é de execução compulsória e, portanto, não admite coerção no caso de não observância. Exemplos são as legislações que admitem descontos no imposto de renda no caso do cumprimento de alguns critérios relativos a condutas estimuladas pelo Estado. Por fim, temos o caso de normas de Direito internacional, que geralmente não são vinculadas a sanções que envolvam coação devido à ausência de um poder político transnacional com a prerrogativa de executar sanções à força. Nesse caso, o cumprimento depende da discricionariedade dos Estados-nação, os quais podem ser alvo de pressões políticas e econômicas (SABADELL, 2002). A sanção jurídica é o elemento principal do exercício do controle social através do Direito. Esta pode ser definida, nos termos de Sabadell (2002), como uma consequência positiva ou negativa decorrente do cumprimento ou não de uma norma jurídica. Como já indicado anteriormente, sanções jurídicas podem ter um caráter positivo, associadas às chamadas normas promocionais; ou negativo, que consistem na privação ou restrição de Direitos dos indivíduos que infringem determinada norma, e podem envolver a liberdade de locomoção, de ofício ou implementar sanções pecuniárias. Sanções negativas podem ter caráter preventivo ou reparatório. As primeiras são raras e desaconselháveis no contexto de um Estado Democrático de Direito, mas no dia-a-dia podem ser vistas diversas medidas fiscalizatórias associadas à prevenção, tendo o objetivo de evitar a violação de normas jurídicas. Exemplos disso são: uma blitz policial, a revista corporal no momento de adentrar um recinto com regras específicas, dentre outras. As sanções reparatórias, por outro lado, são aplicadas contra o responsável por um dano determinado, provocado pela violação de uma norma jurídica. O objetivo das mesmas é o de buscar restaurar, quando possível, o status quo ante, e restabelecer a ordem lesada, bem como o de compensar ou minimizar as perdas daqueles que eventualmente possam ter sido prejudicados pela violação à norma. 86 Este tipo de sanção usualmente se divide, nos sistemas jurídicos das sociedades contemporâneas, em três categorias. Pode assumir a feição de um constrangimento que force cumprimento de uma obrigação, como no caso de uma sentença transitada em julgado que dispõe o dever de pagar uma dívida; também pode exigir o ressarcimento de um dano por meio do pagamento em dinheiro, via multa ou indenização (SABADELL, 2002); por fim, também se exprime no caso das sanções reparatórias penais, que pode assumir diversas funções e justificativas nos sistemas jurídicos modernos: neutralização, retribuição, ressocialização, dentre outros. Considerando a gravidade e a força da intervenção da norma penal sobre os indivíduos, os sistemas legais modernos limitam e circunscrevem esta possibilidade, orientando princípios básicos que devem ser observados em sua aplicação: legalidade, proporcionalidade, imparcialidade, dentre outros princípios. A amplitude e a restritividade destas orientações não apenas varia entre os diversos sistemas jurídicos nacionais, como é alvo de um intenso e duradouro debate no campo do direito penal e da criminologia. 2.3 Ótica funcionalista do controle social por meio do Direito Sabadell (2002) e Soriano (1997) dispõem que, pela perspectiva funcionalista da Sociologia do Direito, o controle social é realizado com base em algumas características chave: O Direito se expressaria por meio de uma linguagem conhecida por todos e de conhecimento da população, tendo alto grau de certeza na fixação de modelos de comportamento devido à clareza e publicidade do mesmo. Perspectiva de que os direitos culturais são exprimidos na defesa de atributos particulares, mas cuja defesa possui um sentido universal. Nestes estariam inseridos, segundo o autor, diversas das chamadas lutas “identitárias” modernas, de minorias étnicas, sociais, religiosas ou sexuais. As normas criam modelos gerais de comportamento, os quais devem ser observados por todos que se incluam nas situações-tipo, usualmente de forma independente de especificidades individuais, embora existam exceções. O respeito e o cumprimento das normas de conduta positivadas pelo direito é reforçado por órgãos de poder, instituições e agentes que velam pela observância do ordenamento jurídico, fazendo uso da persuasão, coação e, quando necessário, da violência contra os indivíduos desviantes. De forma alinhada à concepção weberiana, entende-se que o Direito regula cada vez mais esferas do comportamento humano e da vida social com o passar do tempo, fenômeno denominado “juridicização” ou “juridificação”. O Direito funciona como instrumento de controle social que se baseia em regras uniformes, 87 seja no âmbito nacional como no internacional – tal característica se associa à generalidade. O Direito é visto como sistema de controle social que exprime os valores e princípios hegemônicos de uma sociedade e que tem a finalidade de garanti-los, sancionando aqueles que lesionam direitos e bens coletivos e individuais. 2.4 Abordagem crítica do controle social por meio do Direito Esta perspectiva funcionalista fundada nas teorias do consenso, como abordado na unidade II, foi alvo de diversas críticas de perspectivas marxistas, liberais e anarquistas, devido ao fato das mesmas limitarem drasticamente as possibilidades de processos de ruptura, conflito e mudanças sistêmicas, vendo estas usualmente como patologias independentemente do conteúdo e das razões dos mesmos (SABADELL, 2002). Desse modo, o campo do funcionalismo seria demasiadamente estático, incapaz de interpretar processos sociais radicais e acabando por adotar uma postura, no limite, conservadora ou superficial sobre a dinâmica social. Às perspectivas do consenso, se opõem as teorias do conflito social. As várias teorias do conflito coincidem em compreender que a sociedade é composta por grupos de interesses estruturalmente opostos, que permanecem em constante situação de disputa pelo poder e geralmente em situação de desigualdade entre uns e outros (SABADELL, 2002). Neste sentido, os grupos detentores do poder em um determinado momento o reforçam por meio da coação e do condicionamento ideológico. Por esta ótima, crises e mudanças sociais são fenômenos comuns na sociedade, sendo expressões objetivas das disputas de interesses, ou da luta de classes, existentes numa comunidade. Sociólogos do conflito levantam uma série de críticas à perspectiva funcionalista, a começar pelo fato de que, na visão destes, há uma confusão entre as funções declaradas do controle social – especialmente aquele efetuado por meio do sistema penal –, relacionadas à dissuasão, à ressocialização e a proteção de bens jurídicos dignos de proteção, e as funções latentes, as finalidades a que concretamente se presta o controle social. Dentre as críticas empreendidas e/ou resgatadas por teóricos do conflito como Baratta (1999) e Anitua (2007), destaca-se primeiramente alegações de ilegitimidade do poder punitivo do Estado capitalista. O controle social, nesta perspectiva, estaria a serviço dos grupos de poder dominantes nesta sociedade, direcionando o sentido das normas em favor de seus interesses pessoais e, ao mesmo tempo, atuando de modo a fazer tais normas terem a aparência de um interesse geral e consensual da sociedade. Estas críticas se associam a uma desnaturalização do crime e do criminoso e concepções etiológicas e ontológicas destes fenômenos. Desvios e crimes são construções sociais contingentes, que variam com a evolução de fatores culturais e da conjuntura política. Eles não coincidem com 88 noções universais e imutáveis do “bem” ou do “mal”. Por exemplo,o tratamento legal dado ao ato de abortar, ou o de se relacionar sexualmente com pessoas do mesmo gênero variam entre diferentes Estados-nação, podendo ser condutas amparadas pela lei ou delitos. Também incidem questionamentos acerca da existência ou não da culpabilidade pessoal à transgressão de certas normas. Em um contexto de pluralismo cultural e disputas relativas a valores, bem como à influência do contexto na determinação das condutas dos indivíduos, questiona-se a justiça e a correção do exercício do controle social (SABADELL, 2002). 2.5 Ressocialização Dentre as diversas justificativas e “funções” dadas para a utilização da sanção de privação de liberdade, uma das mais disseminadas ao longo do século XX diz respeito à chamada prevenção especial positiva, ou à ressocialização. Esta é conceituada, segundo Luís Carlos Valois (2012, p. 79) como “(...) a reforma moral ou psicológica – aí dependendo daquilo que o reformador acreditar – do criminoso enquanto submetido às instituições punitivas do Estado”. A prisão seria vista, assim, como um recurso e um meio de correção do indivíduo e de preparação do mesmo para o futuro retorno ao convívio social. Esta perspectiva perpassa diversos dos dispositivos que orientam o direito penal brasileiro, como o Código Penal e a Lei de Execução Penal. Entretanto, nas últimas décadas se tornou lugar comum nos debates acadêmicos e jurídicos relacionados ao tema o fracasso, especialmente no caso brasileiro, do sistema penitenciário em alcançar este suposto fim com êxito. Há, no entanto, uma divisão entre setores que atribuem este fracasso à incompetência e à ineficácia da administração do sistema, enquanto outros reforçam a inviabilidade e a falta de respaldo científico inerente ao ideal ressocializador por meio do cárcere (VALOIS, 2012). Inicialmente, há um diagnóstico consolidado do perfil social, racial e econômico que domina as prisões no país: indivíduos em geral do sexo masculino, jovens, de baixa renda, escolaridade e de cor de pele negra. Esta constatação da seletividade estrutural do filtro do sistema penal demonstra e reflete, de saída, a falta de acesso a direitos e de um cenário de vulnerabilidade anteriores aos processos de criminalização. Somando este fato às características do dia-a-dia dos estabelecimentos prisionais do país – marcado por um histórico de violações de direitos humanos, violência, ausência de alternativas laborais, formativas e de lazer, bem como do enfraquecimento de relações familiares e sociais -, tem-se um resultado trágico, mas esperado: altos níveis de reincidência (IPEA, 2015), imposição de um “rótulo” de criminoso no egresso do sistema (questão que fora abordada na menção à teoria do labelling approach na unidade II) e retorno ao convívio social em condições de ainda 89 maior precariedade e vulnerabilidade. A partir desta constatação, o que fazer? Alessandro Baratta (1990) destaca a existência das posições realista e idealista a respeito à justificação da privação da liberdade face à crise do ideal ressocializador. A primeira propõe o abandono deste ideal com o foco no controle social baseado na neutralização e retribuição ao criminoso, tendo, portanto, viés repressivo. A segunda defende a manutenção da justificativa ressocializadora para evitar que seu abandono contribua para o recrudescimento do sistema. O autor rechaça ambas as posições, defendendo, ao mesmo tempo, o reconhecimento da inviabilidade do ideal ressocializador e a substituição do termo pela ideia de reintegração social. Sua ideia pressupõe maior comunicação e interação entre prisão e sociedade, bem como o incentivo a um processo de reconhecimento mútuo entre reclusos e sociedade “externa” à prisão (BARATTA, 1990). Figura 2 - Presos em Eunápolis (BA) Fonte: Joa Souza, Shutterstock, 2020 #PraCegoVer: vemos na imagem um grupo de presos numa prisão em Eunápolis (BA). 3 SOCIOLOGIA DOS TRIBUNAIS E DEMOCRATIZAÇÃO DA JUSTIÇA Ainda que a Sociologia jurídica tenha sido constituída como ramo especializado) apenas a partir de meados do século XX, Boaventura da Souza Santos (1999) recorda que o Direito é um fenômeno social objeto de séculos de produção intelectual e teórica associadas a disciplinas afins, como a Filosofia e a História do Direito. Este fato, associado à consolidação da Ciência Política como disciplina e ao interesse desta nos tribunais como instância de decisão e poder políticos, e ao desenvolvimento da orientação, 90 dentro da antropologia do direito, à análise dos processos e das instituições jurídicas e ao poder destes de estruturarem os comportamentos dos atores destes sistemas, formaram as condições teóricas e concretas para o desenvolvimento da sociologia dos tribunais (SANTOS, 1999). Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 3.1 Acesso à Justiça A expressão “acesso à justiça” pode assumir uma variedade de definições, mas Mauro Cappelletti (1988), afirma que a mesma pode assumir dois significados: inicialmente, refere-se à possibilidade dos indivíduos de reivindicarem direitos e buscarem a resolução de conflitos no âmbito do Judiciário; ao mesmo tempo, se associa à possibilidade das pessoas terem efetivo acesso a resultados justos para si e para o meio social. Trata, portanto, não somente da garantia concreta do Direito de recorrer aos tribunais, mas do atendimento à justiça social dentro e por meio deste espaço (FULLIN, 2013). Como indicado na seção anterior, o surgimento e a consolidação do acesso à justiça com o conteúdo amplo apontado acima dependeram de modificações e transformações históricas a respeito do entendimento inicial, no sentido de que os cidadãos tinham a liberdade e o direito para litigar em defesa de seus interesses (concepção liberal). A assunção de que o acesso à justiça implica na promoção da igualdade social e, portanto, na disposição de condições econômicas, culturais e institucionais concretas para a judicialização de demandas veio no bojo da adoção de políticas dos Estados de bem-estar social nos países ocidentais – normalmente revestidas de proteção legal (FULLIN, 2013). Esta positivação de direitos sociais e a regulamentação crescente das esferas da vida social por meio do Direito contribuiu para a intensificação do recurso aos tribunais para a obtenção de direitos conquistados, processo definido por autores como Vianna et. al (1997) como “a judicialização das relações sociais”. 91 O processo de judicialização se intensificou e adquiriu contornos mais conflituosos a partir das crises econômicas e do desmonte de políticas de bem-estar social nos países centrais a partir do final dos anos 1970. As expectativas da cidadania em pleitear direitos e políticas públicas sucateadas pelos próprios Estados (FULLIN, 2013), associadas ao crescente protagonismo do Judiciário como espaço para resolução de tais questões provocou o fenômeno denominado por Boaventura de Sousa Santos (1999) como “explosão de litigiosidade”. Entretanto, de forma concomitante a este processo, os próprios serviços judiciários destes países tiveram suas capacidades limitadas pela falta de investimento e recursos. A disparidade entre a estrutura existente do sistema e a grande demanda social de garantia de direitos por meio dos tribunais fomentou a “crise da administração da justiça” (FULLIN, 2013). Estes fenômenos estimularam as reflexões de governos em torno de medidas para mitigá-los, bem como fomentaram a investigação e a pesquisa social – onde se insere a Sociologia jurídica e, mais especificamente, a Sociologia dos tribunais –, para identificar e fazer prognósticos sobre gargalos e impedimentos, de ordem institucional, econômica, social ou cultural, ao acesso à justiça pelos cidadãos. Como resposta a estes desafios, intensificaram-se movimentos por reformas com o objetivo de enfrentar e mitigar as diversas barreiras e desigualdades de acesso à justiça. Mauro Cappelletti, processualista italiano, teve destaque neste processo e identificou a existênciade três conjuntos de reforma empreendidos sequencialmente no Ocidente com o objetivo de ampliar e qualificar o acesso à justiça, os quais ficaram usualmente conhecidos como “as ondas do movimento de acesso à justiça”. A primeira onda de aprimoramento do acesso à justiça teria sido representada pelas políticas de investimento público em assistência judiciária gratuita ao público necessitado, visando minimizar as barreiras de caráter econômico no sistema. Este tema foi introduzido no direito brasileiro a partir da Lei nº 1.060, de 1950. Para Cappelletti (1988), a segunda onda buscou enfrentar a questão da representação dos interesses difusos e coletivos, atribuindo legitimidade ativa para coletividades, grupos representativos e atores governamentais - no Brasil, especialmente o Ministério Público e em seguida a Defensoria Pública -, para ingressar em juízo em defesa dos direitos de uma multiplicidade de sujeitos. Por fim, a terceira onda do movimento estaria associada a um complexo de reformas visando modificar as formas de resolução de conflitos, tendo, como alguns de seus objetivos, a agilização, simplificação e a busca de soluções mais mediadas entre as partes (FULLIN, 2013). Nesta perspectiva, insere-se a ampliação da aplicação dos chamados meios alternativos de resolução de conflitos, como a justiça restaurativa, a mediação, a conciliação e a arbitragem. 92 Ainda que tenham sido observados avanços sensíveis no acesso à justiça às minorias sociais, o tema do acesso à justiça permanece um desafio para o Judiciário e para o campo da Sociologia do direito. A flexibilização e simplificação de procedimentos também podem promover e perpetuar assimetrias e desigualdades, o que exige contínua análise e reflexão sobre novos meios para promover a garantia de direitos e a resolução adequada de conflitos sociais. Figura 3 - Supremo Tribunal Federal em Brasília (DF) Fonte: Diego Grandi, Shutterstock, 2020 #PraCegoVer: Vemos na imagem o Supremo Tribunal Federal em Brasília (DF). Na frente do Tribunal, há uma estátua que simboliza a Justiça. 3.2 Tribunais e movimentos sociais A organização do Judiciário brasileiro, definida por Boaventura de Sousa Santos (2011), se estrutura de forma análoga à de uma pirâmide, onde a posição hierárquica define o prestígio e a influência dos indivíduos no sistema e na qual um pequeno número de juízes no alto desta hierarquia define quase integralmente a linha dos tribunais como um todo. O autor observa que, assim como em Portugal, a transição pós-ditadura destes países pouco modificou a estrutura organizacional dos tribunais, mantendo um cenário de insulamento burocrático, foco dos magistrados no “sucesso” individual de suas carreiras – medido aqui pela escalada hierárquica, não qualidade ou influência do conteúdo e da correção das decisões proferidas. Este cenário de isolamento social do Judiciário implicou, também, na falta de discussão de mecanismos de controle democrático da magistratura (SANTOS, 2011). Esta postura passou a ser cada vez mais alvo de críticas de movimentos sociais – como os movimentos negro, indígena e sem-terra –, em relação às insuficientes, atrasadas ou desiguais respostas jurisdicionais às suas demandas. Dentre os questionamentos realizados por estes movimentos, estão a falta de reflexão teórica e social a respeito de inovações e refinamentos nos debates políticos e jurídicos acerca de políticas e conceitos como as cotas raciais, a função social 93 da propriedade e aos direitos dos povos originários. Isso leva à morosidade ou ao desinteresse em proferir decisões liminares ou definitivas em tempo hábil; ou o tácito ou explícito favorecimento ao lado econômica e socialmente favorecido das demandas pela reprodução, no processo, de assimetrias e desigualdades entre as partes. Lidar com este problema implica numa profunda reflexão acerca da estrutura do sistema de justiça não apenas nos métodos de seleção dos profissionais que operam no mesmo, tampouco exclusivamente na atualização do processo formativo dos magistrados, mas também nos métodos de avaliação de desempenho e de definição da promoção na carreira (SANTOS, 2011). Nesse sentido, o cumprimento do potencial dos tribunais em prover materialmente a garantia dos direitos sociais e de mitigar desigualdades históricas que nossa Carta Constitucional se comprometeu a combater implica numa autorreflexão desta instituição acerca de suas funções e de sua responsabilidade sistêmica – mas realizada por meio de demandas individuais ou setoriais – de enfrentar conflitos estruturais existentes no tecido social. Isto implica também em acolher uma concepção atual e ampla de direitos humanos, concebida aqui para além de sua dimensão estritamente individualista, civil e política, incluindo também direitos sociais e econômicos coletivos e difusos. Na apreciação de conflitos relacionados à demandas étnico-raciais históricas, isto demanda a compreensão do papel estruturante da escravidão e do colonialismo na formação da sociedade brasileira, bem como da permanência de desigualdades sociais e econômicas entre brancos e negros no Brasil. Isto se associa inclusive à escassa presença da população negra no corpo burocrático do Judiciário, especialmente em cargos de maior prestígio. Por outro lado, no que diz respeito aos conflitos associados à terra e à propriedade nos meios rural e urbano, observa-se aqui uma atuação contínua de pelo menos quatro grupos numerosos de movimentos sociais, articulados de forma relativamente autônoma entre si. Além dos movimentos sem-terra, dos quilombolas e de povos indígenas, indicados por Boaventura de Sousa Santos (2011), emergiu com maior força na última década o movimento dos sem-teto e das ocupações urbanas. As demandas históricas destes grupos exigem dos membros do Judiciário sensibilidade e compreensão sistêmica do arcabouço jurídico erigido pós-Constituição de 1988 para uma avaliação parcimoniosa dos direitos de tais atores nas diversas demandas em que a posição dos tribunais será a palavra final. 3.3 Cultura jurídica e independência judicial Nesse sentido, Santos (2011) relaciona a necessidade de se buscar uma equalização entre a necessária garantia da independência do Judiciário e de seus atores – vista como importante conquista democrática –; e, concomitantemente, o desenvolvimento de mecanismos democráticos de controle externo da atividade judicial. 94 Isto se justifica pelo fato de que, na maioria das democracias modernas, o Judiciário é o único dos três poderes no qual seus agentes não obtêm seus cargos direta ou indiretamente relacionados à soberania popular, sendo membros não-eleitos. Este fato, associado a uma estrutura organizacional obsoleta e, no caso brasileiro, do direcionamento de vultuosos recursos financeiros para a administração da justiça (em porcentagem maior do PIB que todos os países desenvolvidos, bem como de outras nações latinoamericanas) – em especial voltada aos altos salários e “penduricalhos”, ou verbas e auxílios adicionais ao salário – contribui para o insulamento excessivo deste Poder e, em consequência, a exacerbação do corporativismo na instituição. Ao mesmo tempo, diversos estudos demonstraram a predominância, dentro do corpo de funcionários do Judiciário, de pessoas de origem social abastada e cujo ambiente familiar e social é, historicamente, afim ao da elite econômica e cultural brasileira. Esta condição pode produzir diversas implicações, como a falta de empatia com a condição de partes desfavorecidas em processos, bem como, numa perspectiva sistêmica, de um ethos conservador e tendente à manutenção do status quo, visto que os próprios juízes, desembargadores e promotores compõem a elite, com interesses materiais e posturas ideológicas conformes. Exemplos da influência de uma cultura jurídica particular, e geralmente conservadora, na prestação jurisdicional concreta não faltam. Um desdobramento marcante deste fenômeno foi observado a partir daampliação das hipóteses legais de alternativas à prisão no processo penal pátrio, com a inserção de novas possibilidades de medidas cautelares. Embora se esperasse um possível impacto da mudança legislativa na redução da população carcerária brasileira, pesquisas como a do Instituto Sou da Paz (2011) mostraram a permanência da preferência dos magistrados em designar a privação da liberdade de acusados na maioria dos casos, bem como de hipóteses antigas e restritas de medidas cautelares, como a fiança. Este resultado se relaciona diretamente com as os conceitos e preconceitos acerca da figura do acusado, de seu papel no sistema de justiça criminal e das funções do mesmo. Ao invés de julgador imparcial e desinteressado, muitos magistrados passaram a se considerar verdadeiros agentes de segurança orientados pela “luta contra o crime” (INSTITUTO SOU DA PAZ, 2011). Situação parecida foi observada por Santos (2011) após reforma similar ocorrida em Portugal. Nesse país, os pesquisadores captaram outro aspecto relevante que influía na baixa aplicação da medida de cumprimento de serviços à comunidade: o escasso diálogo e articulação do Judiciário luso com os programas de assistência social e organizações da sociedade civil. Desse modo, Santos (2011) e outros autores perceberam a relevância de se atentar à cultura jurídica para que mudanças sociais e reformas legislativas tenham os resultados concretos almejados: “(...) sem uma outra cultura jurídica não se faz nenhuma reforma” (SANTOS, 2011, p. 84). 95 Nesse sentido, o sociólogo português conclui: “(...) A nossa meta deve ser a criação de uma cultura jurídica que leve os cidadãos a sentirem-se mais próximos da justiça. Não haverá justiça mais próxima dos cidadãos, se os cidadãos não se sentirem mais próximos da justiça. ” (SANTOS, 2011, p. 84). 96 Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • Discutir o que é o Direito e quais as suas funções nas sociedades contemporâneas. • Estudar perspectivas que consideram o Direito como mecanismo de garantia da solidariedade social, e a daqueles que o veem como instrumento de dominação e consolidação do poder das classes dominantes. • Compreender outras discussões importantes na sociologia jurídica: a do nível de autonomia do direito face à realidade social, e às divisões acerca do papel predominante do ordenamento jurídico – se freio às mudanças sociais estruturais, ou mecanismo útil para a promoção de reformas. • Aprofundar aspectos relativos ao tema do controle social promovido pelo Direito, suas diferenciações internas, características, e abordamos com maior especificidade o formato deste controle social a partir da ótica funcionalista. • Estudar os questionamentos realizados ao controle social do direito – primeiro pelo questionamento e problematização realizada pelos estudiosos do pluralismo jurídico, e depois destrinchando críticas empreendidas por sociólogos do conflito em relação aos usos, funções e justificativas do poder punitivo do Estado, mostrando como exemplo o discurso relativo às funções de prevenção geral e especial da pena privativa de liberdade e a crise do ideal ressocializador • Compreender a sociologia da aplicação do direito e alguns de seus subtemas: a discussão acerca do acesso à justiça ao longo do século XX, o perfil e a estrutura do Poder Judiciário brasileiro e de seus integrantes, bem como as críticas e questionamentos de movimentos sociais em relação à (baixa) permeabilidade das instituições de justiça às demandas populares, bem como à origem social privilegiada da maioria dos juízes, promotores e desembargadores do país.. PARA RESUMIR AFONSO, H. W et al. O Estado Plurinacional da Bolívia e do Equador: matrizes para uma releitura do direito internacional moderno. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 17 – jan./jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: jul. 2017. ANITUA, G. I. História dos Pensamentos Criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2007, BARATTA, A. Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1999. BARATTA. Ressocialização ou controle social: uma abordagem crítica da “reintegração social” do sentenciado. 1990. BITTENCOURT, C. R.. Tratado de Direito Penal I. São Paulo: Saraiva, 2013, 19ª ed. CAPPELLETTI, M. et al. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1988. CASTRO, M. F. de. “Pluralismo jurídico: principais ideias e desafios”. In: SILVA, Felipe Gonçalves; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo, Saraiva, 2013, pp. 157-177. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018. 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Rio de Janeiro: Revan, 1997. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Com o objetivo de proporcionar um panorama multidisciplinar do Direito, este livro vai abordar a Sociologia do Direito e a Antropologia Jurídica, dois campos de estudo social do Direito muito importantes. Aqui, essas duas ciências serão discutidas a partir das noções básicas, das perspectivas históricas e sociológicas, além deapresentar os autores mais importantes e influentes da área: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. A análise das noções de “globalização” e “multiculturalismo”, tão importantes no mundo atual cada vez mais conectado, está presente neste livro também. O papel e o lugar do Direito em sua relação com a sociedade e a estrutura econômica e social a qual ele regula e qual a possibilidade de a prática jurídica promover ou barrar a mudança social serão temas também desta obra. Uma obra abrangente que aborda ainda a Sociologia da aplicação do Direito ou a Sociologia dos tribunais e o papel do Judiciário no desdobramento da cultura jurídica e na relação com os movimentos sociais. O estudo deste livro vai fazer a diferença na sua formação. Aproveite a leitura! Capa E-Book_Sociologia e Antropologia Jurídica_CENGAGE_V2 E-Book Completo_Sociologia e Antropologia Jurídica_CENGAGE_V2seu objeto está presente em comportamentos sociais variados, como os modos de produção, a utilização do tempo, as hierarquias sociais, as estruturas de raça e gênero, por exemplo, que implicam na vivência de determinadas experiências, as regras sociais tácitas e explícitas que ditam nossa forma de viver, dentre tantos outros exemplos possíveis. Todas essas condições da vida humana são construções realizadas ao longo do tempo pelo próprio ser humano, influenciado também pelas contingências contextuais. Isso traz à tona o papel constituinte do ser humano em geral, já que os grupos acabam por ter a capacidade de construir seu conjunto de regras, normas e comportamentos, que vão se modificando ao longo do tempo. Mesmo que seja possível entender o papel do ser humano nessas transformações de maneira muito distinta conforme a perspectiva sociológica adotada, o fato é que as sociedades são diferentes e sofrem modificações constantes (ROCHA, 2019. p. 12). Como essas transformações são absolutamente pertinentes ao estudo sociológico, não há como negar a importância crescente da Sociologia no contexto atual, tão marcado por mudanças e pelo dinamismo, através, sobretudo, das transformações tecnológicas. É nesse sentido que F. A. de Miranda Rosa (2004, p. 23) destaca a crise profunda em que se encontram as sociedades humanas, mas também o potencial transformador nelas existente: As contradições internas se manifestam em forma de explosões reveladoras de forças sociais imensas, represas ou em curso; as populações aumentam aceleradamente e com isso as tensões 13 internas dos grupos sociais, ou as tensões entre grupos diferentes; a ideologia se apresenta com enorme capacidade de polarização do pensamento e da ação; o sentido, mesmo, que deve ter a vida humana, é posto em questão; mas em meio aos problemas e aos conflitos, há uma vitalidade imensa, cheia de espírito criador, da solidariedade, em que um novo eclodir do humanismo se mostra, e quando a procura de unidade no essencial rivaliza com a afirmação das diferenças inerentes à personalidade. É notável, portanto, a importância que se deve dar à Sociologia no mundo atual. Ao vivermos tantas mudanças sociais, a tentativa de compreendê-las e sobre elas refletir é um imperativo. Diante de tamanha complexidade da vida humana em sociedade, especialmente nos dias atuais, o objeto de estudo da Sociologia mostra-se bastante abrangente. Para Anthony Giddens, então, a Sociologia é “o estudo da vida social humana, dos grupos e das sociedades”, ou seja, seu objeto está centrado no nosso próprio comportamento como seres sociais e sua abrangência é vasta, na medida em que inclui “desde a análise de encontros ocasionais entre indivíduos na rua até a investigação de processos sociais globais” (GIDDENS, 2005. p. 24). Ainda segundo Giddens, a Sociologia traz vantagens para as pessoas em geral, pois permite ao ser humano ter mais consciência das diferenças culturais, já que dá subsídios para que nós vejamos o mundo a partir de pontos de vista distintos do nosso. Além disso, o autor considera também que a Sociologia é uma importante aliada prática na avaliação dos resultados de iniciativas políticas, na medida em que considera vários fatores pertinentes à atuação estatal na construção de políticas públicas, por exemplo. Por fim, Giddens destaca que a Sociologia pode nos fornecer certo auto-esclarecimento: “ (...) quanto mais sabemos por que agimos como agimos e como se dá o completo funcionamento de nossa sociedade, provavelmente seremos mais capazes de influenciar nossos próprios futuros. ” (2005. p. 26). Percebe-se, portanto, que a Sociologia abarca uma variedade enorme de visões teóricas sobre a realidade, que enriquece as análises e formas de compreensão do mundo. A Sociologia não é, então, um campo intelectual abstrato, mas na verdade possui implicações prática de extrema relevância para a vida das pessoas, na medida em que se debruça sobre os comportamentos, processos e estruturas sociais (GIDDENS, 2005. p. 36). 14 Figura 1 - Sociedade Fonte: Karavai, Shutterstock, 2020 #ParaCegoVer: Vemos uma diversidade de pessoas diferentes, convivendo e interagindo no mesmo espaço, configurando o que chamamos de sociedade Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 1.2 Origem da Sociologia: Augusto Comte e o Positivismo Para entender a origem da Sociologia, é preciso primeiramente esclarecer o contexto em que ela surgiu, na França do século XIX. Àquela época, sentindo os efeitos da Revolução Industrial, a França se tornava pouco a pouco uma sociedade industrial, marcada pela exploração de mão de 15 obra barata, sobretudo de mulheres e crianças, em condições nítidas de precarização, além de um fluxo desordenado de pessoas que saíam do campo para as cidades, o que gerava problemas de habitação, higiene, alta mortalidade infantil, etc. (ROCHA, 2019. p. 14). Nesse contexto repleto de transformações e dificuldades sociais, surge a Sociologia, com o intuito de compreender, por exemplo, os motivos pelos quais a sociedade é estruturada assim e como e por que as sociedades mudam (GIDDENS, 2005. p. 28), questões pertinentes até hoje nos estudos sociológicos. Embora não seja possível atribuir a criação desse campo de estudo exclusivamente a uma pessoa, certamente o francês Augusto Comte (1798-1857) possui grande destaque na origem da disciplina, já que ele foi o primeiro teórico a usar o termo “Sociologia”. A perspectiva adotada por Comte é a da ciência positiva. Para o teórico, a Sociologia deveria adotar os mesmos métodos científicos que a Física ou a Química para o estudo do mundo físico. Assim, para o Positivismo, a ciência deve se preocupar apenas com aquilo que pode ser observável e conhecido através da experiência. Tendo por base as observações sensoriais, seria possível inferir as leis que regem as relações entre os fenômenos observados (GIDDENS, 2005. p. 28). Nas palavras do próprio Augusto Comte, “ (...) todos os bons espíritos repetem (...) que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados” (COMTE, 1978. p. 4). Segundo Comte, o pensamento humano teria passado por três estágios na tentativa de compreensão do mundo: teológico, metafísico e positivo. No plano teológico, os esforços eram guiados pelas ideias religiosas e crença segundo a qual a sociedade era a expressão da vontade divina. Já no estágio metafísico, ocorrido mais ou menos na época da Renascença, a sociedade passa a ser vista da perspectiva natural, e não sobrenatural. Por fim, no estágio positivo, influenciado pelas descobertas de Copérnico, Newton e Galileu, tem-se a aplicação de técnicas científicas (das ciências naturais) ao mundo social (GIDDENS, 2005. p. 28). Além disso, ainda no que diz respeito à primazia da experiência, preconizada por Comte, o autor considera importantes dois principais fatores: a observação em si, ou seja, “o exame direto do fenômeno tal como ele se apresenta naturalmente”, e a observação do fenômeno já “modificado em circunstâncias artificialmente construídas” (SOUZA, 2008. p. 139). Diante da influência decisiva das ditas “leis naturais”, a concepção positivista de Comte aduz que a evolução social está, na verdade sujeita, a essas leis naturais, que não podem ser modificadas pela natureza humana. Isso leva à inutilidade, do ponto de vista comteano, da resistência ao desenvolvimento inevitável da sociedade. Assim, como consequência lógica da teoria de Comte, chega-se a um dos pontos mais importantes e também mais polêmicos de sua teoria, que considera haver um determinismo no mundo social, em que os fatos estão “(...) rigorosamente encadeados uns aos outros, segundo leis naturais, que a observação filosófica do 16 passado pode descobrir, e determinam, para cada época, de maneira inteiramente positiva, os aperfeiçoamentos que o estado social deve experimentar” (SOUZA, 2008. pp. 139-140). De todo modo, a teoria positivista teve e ainda tem uma forte influência na concepçãode diferentes conceitos e teorias nas mais diversas áreas do conhecimento, incluindo o Direito. Embora haja um grande determinismo na explicação do mundo social, que deixa as análises herméticas em alguma medida, sem dúvida Augusto Comte possibilitou importantes formas de análise da sociedade e dos processos e estruturas sociais inerentes à vida humana. 2. SIGNIFICADO E OBJETO DA SOCIOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA DO DIREITO Agora, é importante nos determos mais sobre a Sociologia já no contexto do Direito. Como veremos, há uma enorme pertinência não só da Sociologia no campo jurídico, como também da Antropologia. Por isso, veremos o que cada um desses ramos tem por objeto e sua relevância para o Direito, além de diferenciarmos a Antropologia e a Sociologia do Direito. 2.1 Concepção e objeto da Sociologia do Direito Após tratarmos da Sociologia geral compreendendo seu escopo, seu objeto e sua origem, cabe agora melhor analisar sua pertinência no estudo jurídico propriamente dito. Como já vimos, a Sociologia se debruça sobre os comportamentos, as estruturas e os processos sociais, buscando entender o funcionamento da sociedade como um todo. Nas sociedades contemporâneas, o Direito é entendido também como o conjunto de normas que regulam a vida social, servindo para dirimir conflitos e estabelecer parâmetros de conduta (CAVALIERI FILHO, 2007. p. 7). Segundo José Manuel de Sacadura Rocha, a Sociologia aplicada ao Direito interessa-se pelo estudo do Direito com base nos fenômenos sociais. Isso porque as sociedades instituem regras e leis que orientam e obrigam os indivíduos em sua sobrevivência conjunta. Para o autor, “o objeto da Sociologia Jurídica é a contribuição que o determinado grupo humano empresta para a consagração e formalização dessas regras, ou seja, entender a norma, escrita (aparelho jurídico formal), ou não escrita (extrajurídico) ”, a partir de da relação dos fenômenos sociais com formações sociais específicas de cada sociedade (ROCHA, 2019. p. 23). Rocha (2019, p. 23) aponta algumas perguntas sobre as quais a Sociologia Jurídica busca refletir, tais como: qual a magnitude do Direito na sociedade?; o que existe no Direito além de códigos e dos conceitos meramente legislativos?; como e por que se cria um conjunto de normas? O que tem se observado já há bastante tempo é a insuficiência em relação à compreensão dos fenômenos sociais pelo Direito, o que frequentemente implica em erros de julgamento e 17 falhas sérias na efetivação da justiça. Isso se dá também com a efetividade das normas jurídicas, por vezes produzida e interpretada com certo distanciamento da realidade fática vivida pelas pessoas. Assim, é nítido que o Direito positivado – estabelecido em normas, leis e códigos – não contempla toda a complexidade da vida em sociedade. Os fenômenos sociais estão acima e antes dos códigos legislativos e da formalização no sistema jurídico (ROCHA, 2019. p. 23). Rocha chama atenção, ainda, às confusões comumente feitas em relação à Sociologia Jurídica. Segundo o autor, por vezes juristas tendem a subordinar a Sociologia ao Direito, o que implica em um privilégio equivocado da norma em detrimento da formação social. Para ele, “não é um erro simples; é, simplesmente, a supressão da ordem das coisas como estas são”, que pode resultar em um Direito desprovimento de movimento e flexibilidade para adequação à vida concreta (ROCHA, 2019. pp. 23-24). Erro semelhante é cometido, também, pelos cientistas sociais que retiram do Direito seu papel ativo na sociedade e submete-o integralmente aos fenômenos sociais, tratando-o de como um mero conjunto de normas para resolução de conflitos específicos (ROCHA, 2019. p. 24). Trata-se, igualmente, de uma visão reducionista e empobrecedora em relação ao Direito. A relação entre os objetos da Sociologia e o Direito é dialética e dialógica, de constituição mútua: da mesma forma que os fenômenos sociais constituem o Direito, tais fenômenos são por ele constituídos. O Direito faz parte da realidade social; não pode ser visto como letra fria e sem vida, como se sua existência não repercutisse diretamente na vida das pessoas: O Direito tem de observar de perto essa dinâmica, a interação entre sociedade e norma, encarar a mudança na medida exata da mudança das estruturas sociais e de seu aparato jurídico, diante das expectativas e tensões pertinentes na vida prática dos agentes sociais inseridos em um contexto de modernidade. E, de forma igual, a Sociologia há de reconhecer a penetração do Direito na vida social (ROSA, 2004. p. 25). Nesse sentido, apesar dessa relação indissociável entre a Sociologia e o Direito, é possível dizer que a Sociologia Jurídica goza de certa autonomia, já que seu objeto é mais específico em relação a outros campos do conhecimento. Segundo Cavalieri Filho, a Sociologia Jurídica tem por finalidade o estabelecimento de “(...) uma relação funcional entre a realidade social e as diferentes manifestações jurídicas, sob forma de regulamentação da vida social, fornecendo subsídios para suas transformações, no tempo e no espaço” (CAVALIERI FILHO, 2007. p. 58). É importante ter em mente, ainda, que a norma jurídica é resultado da realidade social. Conforme Rosa: “Ela emana da sociedade, por seus instrumentos e instituições destinados a formular o Direito, refletindo o que a sociedade tem como objetivos, bem como suas crenças e valorações”. Aliás, o próprio estudo histórico das sociedades comprova isso, na medida em que é facilmente observável a existência de estruturas jurídicas bem distintas no tempo e no espaço, conforme a realidade e o contexto do momento (ROSA, 2004. p. 44). Sem nos determos 18 sobre este ponto, basta pensarmos nas mudanças que o divórcio sofreu ao longo do tempo no sistema jurídico brasileiro, com uma aceitação muito maior em relação às décadas passadas, acompanhando também transformações sociais. Além disso, de Acordo com Rocha (2019), a Sociologia Jurídica tem algumas premissas que merecem ser destacadas brevemente: Premissas da Sociologia Jurídica • Pluralismo Jurídico, ou se, a diversidade de concepções do que vem a ser o Direito, das fontes do Direito e das formas de se sistematizar a juridicidade em uma sociedade. • Compreensão da função das normas • Eficácia normativa, ou seja, os efeitos produzidos pela norma. Assim, o que se percebe com essas premissas é uma relação mais concreta que a Sociologia Jurídica estabelece com os fenômenos jurídicos, já que se referem às formas de estruturação do Direito e às normas em sua realidade prática e os seus efeitos possíveis. A Sociologia Jurídica, mesmo que através de diferentes perspectivas teóricas, explora os fenômenos jurídicos em seus efeitos, causas, processos e estruturas sociais, focando o olhar para o funcionamento da normatividade (em sentido lato) na vida social. 2.2 Concepção e objeto da Antropologia Jurídica Além da Sociologia do Direito, há um outro campo de estudo social no Direito, a chamada Antropologia Jurídica. Da mesma forma que ocorre com a Sociologia, o objeto de estudo antropológico é abrangente e de difícil definição, já que se concentra também por aspectos da vida em sociedade. Olney Queiroz Assis e Vitor Frederico Kümpel destacam esse caráter diversificado da Antropologia, que aborda diferentes aspectos da realidade humana. No seu surgimento, em meados do Séxulo XIX, a Antropologia debruça-se sobre as sociedades primitivas (ASSIS et al.,2010. p. 17), a fim de entender suas formas de organização, costumes, evolução no tempo e no espaço etc. Posteriormente, já no século XX, a Antropologia amplia seu objeto e passa a analisar não apenas as sociedades primitivas, mas qualquer sociedade em qualquer tempo, de modo que seu objeto passaria a ser “o estudo do homem inteiro”. Assim, ela visaria o conhecimento por completo do ser humano, implicando no estudo do homem e da cultura em todas as suas dimensões (ASSIS et al.,2010. p. 17). Diante da complexidade da vida humana,a Antropologia se divide em alguns ramos, com 19 enfoques diferentes. O primeiro ramo é o da Antropologia cultural, que consiste segundo Assis et al. (2010, pp. 17-18): “ (...) no estudo de tudo que constitui as sociedades humanas: seus modos de produção econômica, suas descobertas e invenções, suas técnicas, sua organização política e jurídica, (...) suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia (...)”. Temos, ainda, a Antropologia biológica. Nesse caso, o enfoque de estudo está voltado para a evolução do homem, sua distribuição em grupos étnicos, além da análise de relações entre patrimônio genético e espaços geográficos. Já a Antropologia pré-histórica, por sua vez, envereda- se pelo estudo dos vestígios materiais deixados nos ambientes ocupados pelo ser humano, na busca da reconstituição de sociedades e grupos desaparecidos. Por fim, a Antropologia linguística ocupa-se da linguagem enquanto patrimônio cultural de sociedade, considerando a relevância dos processos comunicacionais para a expressão de pensamentos, crenças e valores (ASSIS et al., 2010). Evidentemente, todos esses ramos se entrelaçam de alguma maneira e possuem uma relação de complementaridade. Contudo, certamente os estudos da Antropologia cultural possuem maior repercussão no campo jurídico, já que seu objeto relaciona-se mais com o Direito e com as estruturas e formações políticas, normativas e sociais tão pertinentes ao Direito. Nesse sentido, a Antropologia cultural é dividida entre a Etnografia e a Etnologia, consideradas métodos da pesquisa antropológica. Segundo Assis et al. (2010), podemos defini-las como: • Etnografia diz respeito ao trabalho de campo de observação, descrição e análise de gru- pos humanos, considerando suas particularidades. • Etnologia busca utilizar comparativamente os documentos apresentados pelo etnógrafo, integrando conhecimentos de grupos, reconstituindo o passado de determinadas socie- dades. As conexões do Direito com a Antropologia são evidentes, visto que o ser humano constitui objeto central dessas duas áreas do conhecimento, motivo pelo qual temas como igualdade e diferença são, ao mesmo tempo, jurídicos e antropológicos. Além disso, o direito constitui um dos aspectos da cultura, e esta constitui objeto específico da antropologia cultural. A antropologia, tal como o direito, também se interessa pelos conflitos sociais, principalmente no que diz respeito à intervenção normativa na decisão jurídica desses conflitos, bem como pelo desdobramento da ordem jurídica diante das transformações culturais, sociais, políticas e econômicas. Quando inserida especificamente no estudo jurídico, então, a Antropologia tem por objeto o estudo do ser humano enquanto “ser normativo”, isto é, “(...) a utilidade e eficiência das regras de conduta a partir do conjunto de mecanismos culturais que cada grupo estabelece para sobreviver” (ROCHA, 2018. p. 36). Além disso, a Antropologia jurídica permite descobrir e compreender o Direito encoberto pela legislação, pela normatividade formal. Isso é importante também para que a sociedade acompanhe 20 as evoluções jurídicas para um Direito mais flexível e maleável, por exemplo. Nesse sentido, o Pluralismo jurídico (sobretudo do ponto de vista normativo) ocupa igualmente um espaço de relevância para a Antropologia, na medida em que se aceita com mais clareza a existência de normatividades diferentes daquelas legislativas e estatais (ASSIS, KÜMPEL, 2010. pp. 49-50). Como exemplo, Assis e Kümpel destacam a normatividade existente em favelas do Rio de Janeiro, onde há uma legalidade alternativa para resolução de conflitos e solução de outros problemas comunitários, o que representa o exercício de um poder político alternativo, mesmo que de forma incipiente. Segundo os autores, a preponderância de procedimentos com maior oralidade e informalidade tem inspirado mudanças no direito estatal, sobretudo em tribunais de pequenas causas e na aplicação das penas ditas alternativas (ASSIS, KÜMPEL, 2010. pp. 50-51). Assim sendo, embora a Antropologia pareça ser complexa, seu estudo é pertinente para o Direito justamente nas formas mais simples e cotidianas de normatividades e legalidades, que mostram formas de organização de condutas, bem como possibilitam a análise dos efeitos das normas estatais em grupos e comunidades, avaliando a recepção da legislação na sociedade. Figura 2 - Vista aérea da favela da Rocinha no Rio de Janeiro (RJ) Fonte: Donatas Dabravolskas, Shutterstock, 2020 #ParaCegoVer: Vemos uma foto aérea da cidade do Rio de Janeiro, destacando a favela da Rocinha, e a sua proximidade com bairros nobres. Nota-se o contraste entre as construções da favela e dos bairros vizinhos. 21 Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 3. PARADIGMAS DO PENSAMENTO SOCIAL Ao refletirmos sobre os paradigmas do pensamento social, vamos focar em dois paradigmas principais: a Modernidade e a Pós-modernidade. Embora a princípio possa parecer uma tarefa complexa, veremos que se trata de entender os modelos e padrões de pensamento social em determinadas épocas, ou seja, compreender basicamente como se estruturam os pensamentos sociais a partir desses paradigmas tão importantes historicamente e na atualidade. 3.1 Paradigmas do pensamento social: a Modernidade Historicamente, podemos afirmar que a Modernidade tem início com a Revolução Francesa, ocorrida no fim do século XVIII. Esse contexto foi marcado pela tomada do poder pela burguesia, e pelo surgimento de novas concepções filosóficas de mundo, como o Iluminismo, com a defesa da “(...) crença na razão como promotora de progresso e da felicidade, a rejeição ao governo absolutista e aos privilégios da nobreza e do clero, e também a crítica à interferência da igreja nas questões de Estado” (ESCOBAR, 2010. p. 72). Com a influência das ideias iluministas, cresceu também a defesa de um governo regido por leis, que protegeria os cidadãos contra abusos de poder por parte dos governantes e consagraria a igualdade formal entre os cidadãos. Além disso, o Racionalismo igualmente passou a ganhar importância, de modo a propugnar a razão como instrumento de solução dos problemas vividos. Paralelamente a esses fatos, inovações tecnológicas foram pouco a pouco implementadas na sociedade e o modo de produção capitalista substituiu as formas econômicas feudais (ESCOBAR, 2010. pp. 72-73). A Modernidade trouxe, portanto, uma orientação para o futuro, havendo um sentido de continuidade e descontinuidade, ordem e caos, estabilidade e instabilidade (BEZERRA, 2011. p. 180). A potencialidade de transformação da Modernidade veio não só das mudanças tecnológicas, 22 mas também de aspectos epistemológicos, isto é, em relação àquilo que passou a ser considerado válido como conhecimento e saber. Antes, o ser humano estava de certa forma preso às certezas das perspectivas míticas e religiosas que predominavam na maneira de se entender o mundo e o próprio ser humano. Além da importância do Iluminismo na Modernidade, o Universalismo também apareceu como a dimensão generalizadora do projeto civilizatório pensado nessa época, de modo que se levava em conta postulados com a pretensão universalista acerca da natureza humana para se compreender o ser humano de maneira homogênea. Assim, quaisquer conflitos poderiam ser resolvidos a partir dessas noções aplicáveis a todos em qualquer contexto (BEZERRA, 2011. pp. 182-183). É preciso ressaltar, ainda, que essa mudança na maneira de enxergar o mundo e o ser humano, com uma valorização do papel da razão em detrimento do pensamento mítico-religioso, não era homogênea. Diferentes perspectivas situadas na tradição moderna chocaram com abordagens diversas e até críticas a alguns aspectos da própria Modernidade, como é o caso de Karl Marx e Max Weber, que veremos melhor nessa disciplina. De todo modo, a Modernidade ficou caracterizada pelo surgimento de um sujeito autônomo, com pretensões mais claras de liberdade e que passou aenxergar na sua existência com um potencial de transformação da realidade posta, sobretudo através da racionalidade agora colocada em destaque. 3.2 Paradigmas do pensamento social: a Pós-Modernidade Diante dos sérios problemas vividos na Modernidade, como as duas grandes Guerras Mundiais, a ascensão de regimes Totalitários e as crises econômicas no mundo afora, os fundamentos do pensamento moderno começaram a ser questionados e dar lugar a outras ideias e lutas até então relativamente silenciadas nos pelos paradigmas dominantes. Assim, nas décadas de 1960 e 1970, apareceu o que se convencionou chamar de pensamento pós-moderno. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, surgiram outras categorias de sujeitos e de entendimento em relação à própria vivência humana. “Emergem novas categorias sociais: o colonizado, a raça, a marginalidade, o gênero e similares”, além de uma crescente contestação por parte das populações de países tidos como “periféricos” (BEZERRA, 2011. p. 191). Assim, a Pós-Modernidade fundou-se na crítica à crença moderna na razão como instrumento para emancipação universal do ser humano, como se a história fosse um processo unitário que, por meio de formas universais, pudesse levar a humanidade ao progresso. Porém, “(...) pensar a história como processo unitário só era possível porque tal pensamento se ancorava na existência de um centro a partir de onde se recolhiam e ordenavam os acontecimentos” (BEZERRA, 2011. p. 195). 23 Na Pós-Modernidade, há um entendimento de que existem diversas narrativas nas sociedades e na humanidade em geral, de modo que considerar a história como tal um processo unitário seria ignorar essas tantas e variadas formas de vivências. Nesse sentido, alguns teóricos (como Vattimo) entendem que as mídias de massa contribuíram para esse processo ao dar voz a essas novas narrativas, mesmo que essas mesmas mídias tenham contribuído também para a massificação e hegemonia de determinadas estruturas culturais (BEZERRA, 2011. p. 196). Para Jean-François Lyotard, a Pós-Modernidade é caracterizada pela incredulidade em relação aos “metarrelatos”, ou seja, a uma grande narrativa que explica o ser humano e o mundo, como a da Modernidade a respeito da razão como instrumento para o progresso histórico. Assim, a função narrativa “(...) se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos etc., cada um veiculando validades pragmáticas sui generis” (LYOTARD, 2009. p. xvi). Como consequência dessas alterações que decompuseram os “grandes relatos”, Lyotard acredita que houve a dissolução do vínculo social e a passagem de coletividades sociais a uma massa composta por átomos individuais. Nesse processo, a comunicação e os jogos de linguagem ganham cada vez mais centralidade (LYOTARD, 2009. p. 30), como foi dito a respeito das mídias de massa, por exemplo. Segundo Bauman, há um amontoamento das diferenças, que se tornam objeto de disputa, com estilos e padrões concorrentes. Trata-se de um suposto amor à diferença, em que todos devem se mostrar seduzidos pela “(...) infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações” (BAUMAN, 1998. p. 23). Dessa forma, é importante pensar a Pós-Modernidade como a época da relativização das grandes narrativas e de certos valores que eram tidos como pretensamente universais, como a crença no progresso natural da humanidade e na razão como instrumento para tal. E, nesse contexto, surgem novas identidades sociais, novos comportamentos que brigam por espaço, sendo que o. O caráter cibernético e informatizado da sociedade é um traço marcante das novas formas de comunicação e entendimento da realidade, tornando essa nova realidade fluida e mais mutável. FIQUE DE OLHO Há no Brasil, nos últimos anos, novas correntes sociológicas que vêm apresentando visões diferentes sobre a realidade brasileira, com noções de interseccionalidade e as problemáticas de raça, gênero, classe etc, além das perspectivas chamadas de “decoloniais”, que buscam construir um conhecimento a partir de paradigmas próprios da vivência brasileira e periférica. 24 Nesta unidade, você teve a oportunidade de: • aprender que a Sociologia busca estudar as estruturas, processos e comportamentos sociais, de modo a tentar entender o funcionamento da sociedade; • compreender o Positivismo, como uma das formas originárias da Sociologia, marcado pela crença de que a sociedade é regida por leis universais, tal como as ciências naturais; • entender a Sociologia do Direito como uma disciplina que foca na análise da normatividade na vida social, observando os fenômenos jurídicos em seus efeitos e causas nas estruturas e processos sociais; • analisar as diferenças entre a Sociologia do Direito e a Antropologia do Direito que foca na análise da normatividade na vida social, observando os fenômenos jurídicos em seus efeitos e causas nas estruturas e processos sociais; • compreender que a Antropologia jurídica tem por objeto o ser humano enquanto ser social, a partir da observação de comportamentos de grupos e sociedades; • analisar a Modernidade e a Pós-Modernidade como como paradigmas do pensamento social, em que a primeira diz respeito à primazia da razão como forma de compreender o mundo e como instrumento para o progresso da humanidade, e a segunda é fortemente marcada pela fluidez e relativização de identidades e comportamentos, bem como pela inexistência de metanarrativas para a sociedade. PARA RESUMIR ASSIS, et al. Manual de antropologia jurídica – São Paulo: Saraiva, 2011. BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. BEZERRA, T. C. E. “Modernidade e pós-modernidade: uma abordagem preliminar”. In: Textos e Debates (UFRR), v. 1, p. 176-202, 2011. CAVALIERI FILHO, S. Programa de Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 2007. COMTE, A. Curso de filosofia positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ESCOBAR, K. Modernidade e pós-modernidade: promessas, dilemas e dafios a condição humana. Cadernos UniFOA (Impresso), v. 12, p. 71-80, 2010. GIDDENS, A. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005. LYOTARD, J. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. ROCHA, J. M. de S. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras – 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. ROCHA, J. M. de S. Antropologia Jurídica: Geral e do Brasil. 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2018. ROSA, F. A. de M. Sociologia do direito: o fenômeno jurídico como fato social – 17ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. SOUZA, R. L.de. A ordem e a síntese: aspectos da sociologia de Auguste Comte. In: Revis- ta Cronos, Natal-RN, v. 9, n. 1, p. 137-155, jan./jun. 2008. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS UNIDADE 2 Perspectivas sociológicas Olá, Iniciaremos o estudo da unidade II de Sociologia e Antropologia Jurídica com as abordagens do campo da Antropologia sobre a cultura. Em seguida, trataremos das relações entre cultura e sociedade na Sociologia. Após uma breve apresentação das perspectivas de teóricos importantes a respeito da problemática do crime e do desvio social, estudaremos as perspectivas sociológicas de três dos autores mais importantes e influentes desta disciplina: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. As interseções da obra destes autores com o Direito também serão abordadas nesta unidade. Bons estudos! Introdução 29 1 INDIVÍDUO, CULTURA E SOCIEDADE Neste tópico, analisaremos com maior detalhe algumas nuances importantes para o estudo da Sociologia e Antropologia do Direito: a cultura por uma perspectiva antropológica; cultura e sociedade; crime e desvio social. São aspectos de grande relevância para o estudo do Direito, uma vez que dizem respeito a fenômenos sociais abarcados pelo âmbito jurídico em geral. Utilize o QR Code para assistir ao vídeo: 1.1Abordagem antropológica da cultura O entendimento da Ciência Social a respeito do que significa o termo “cultura” e que fenômenos ele compreende se modificou sensivelmente ao longo dos últimos séculos. Antes do surgimento e consolidação da Antropologia como disciplina – ocorrida a partir do século XIX -, a visão predominante entre filósofos e historiadores europeus apresentava uma concepção acerca do fenômeno cultural que John Thompson (2000) denominou como concepção clássica de cultura, por vezes também denominada como normativa. O termo era frequentemente associado a um processo de desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas, o qual seria facilitado pela assimilação de trabalhos artísticos e acadêmicos e estaria ligado ao caráter progressista da Modernidade e da racionalidade do período Iluminista. Este último elemento, ligado à perspectiva clássica, foi alvo de fortes críticas e é uma das principais razões para que esta perspectiva tenha sido superada na produção acadêmica: ela indicava uma superioridade de certos valores e ofícios em relação a outros e apresentava conotação fortemente eurocêntrica, dando centralidade excessiva ao legado Iluminista (LOPES, 2014). 30 O desenvolvimento do campo antropológico na segunda metade do século XIX, associado à proliferação dos trabalhos etnográficos na disciplina voltados a comunidades fora da Europa, impulsionou mudanças na concepção predominante sobre o conceito “cultura”, abrindo espaço, inicialmente, para a chamada concepção descritiva. O primeiro conceito propriamente antropológico de cultura, elaborado por Edward Taylor, considera o fenômeno como “(...) todo o complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (TAYLOR apud LARAIA, 1997, p. 25). Historiadores culturais e antropólogos da época, ainda que adotando inovações e particularidades a partir da ideia apresentada - como, por exemplo, o particularismo e o relativismo da abordagem de Franz Boas, e o funcionalismo de Bronislaw Malinowski –, partilhavam a perspectiva de que a cultura de um grupo se refere às ideias, valores, crenças e costumes, assim como os instrumentos materiais e objetos tangíveis que os indivíduos adquirem enquanto membros de determinada sociedade. Ao mesmo tempo, se verificavam divergências entre os pesquisadores da época acerca do referencial de aplicação deste conceito – se a partir de uma ótica evolucionista, ou objeto de uma análise funcional (LOPES. 2014). Dentre as ressalvas feitas por antropólogos à perspectiva descritiva, estariam a excessiva amplitude e vagueza do conceito de cultura, que poderia se tornar redundante, confundindo- se com o próprio termo “Antropologia”, quando não associado a uma maior especificação do método de análise. Para contrapor-se a este problema, desenvolveu-se a concepção simbólica de cultura, inicialmente esboçada por L. A. White. O autor considerou que o ser humano e a cultura são inseparáveis e interdependentes. A atribuição de símbolos e dos significados seria uma capacidade inerente à humanidade, e a cultura seria realizada por meio destes atos de simbolização (WHITE, 2009). Esta conceituação influenciou a construção da perspectiva semiótica de Clifford Geertz, que colocou o tema da cultura em posição de centralidade nos debates da disciplina. Na conhecida obra A interpretação das culturas, Geertz (1989) avalia que, ainda que em seu sentido mais amplo a cultura diga respeito à toda produção humana material e imaterial, esta é uma teia de significados tecida pelo homem, que orienta sua existência. Trata-se de um padrão de significados, representados na forma de símbolos, que interage em meio às relações comunicacionais dos indivíduos de forma recíproca. O autor define símbolo como qualquer ato, objeto, acontecimento ou relação que represente um significado. As diferenças entre estas duas concepções possuem implicações profundas na pesquisa antropológica. Enquanto a análise simbólica visa elucidar padrões de significado e interpretar os mesmos de forma incorporada às formas simbólicas, a pesquisa orientada pela abordagem 31 descritiva se volta à classificação e à análise científica, interdependência funcional e mudanças evolutivas (LOPES, 2014). Os opositores da concepção simbólica, como Thompson (2000), alegam a debilidade da mesma para considerar questões relativas ao poder e ao conflito, a negligência aos contextos sociais onde se produzem e transmitem os fenômenos culturais. Este antropólogo buscou formular a chamada concepção estrutural da cultura, a qual buscaria investigar os contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados nos quais formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas (THOMPSON, 2000). Em tal ótica, os fenômenos culturais são percebidos como formas simbólicas socialmente contextualizadas; enquanto que a análise cultural trata do estudo da constituição significativa e da contextualização social das mesmas (LOPES, 2014). A abordagem estrutural se difere da simbólica e apresenta uma vantagem analítica em relação à mesma, portanto, ao enfatizar, ao mesmo tempo, o caráter simbólico dos fenômenos culturais e o fato de que esses fenômenos estão sempre inseridos em contextos socialmente estruturados – que envolvem conflitos, relações de dominação (muitas vezes cristalizadas no direito) e desigualdades na distribuição de recursos (LOPES, 2014). A construção das abordagens simbólica, semiótica e estrutural da cultura foram responsáveis diretamente pela ascensão do status elevado atribuído ao tema da cultura a partir da década de 1960. Um marco neste sentido é a criação da área interdisciplinar dos Estudos Culturais, cujos principais colaboradores foram Raymond Williams e Stuart Hall. Com isto, a cultura passa a exercer um papel de destaque nas discussões acadêmicas e sociais envolvendo a estrutura e a organização da vida cotidiana das pessoas, a partir da compreensão de que toda a prática social, sendo prática discursiva, possui uma dimensão cultural (GODOY; SANTOS, 2014). Na Sociologia, o conceito de cultura diz respeito aos aspectos aprendidos e partilhados pelos membros da sociedade e que permitem a comunicação e cooperação entre indivíduos e grupos. Ele se refere ao contexto em que os eles vivem suas vidas e envolve tanto aspectos tangíveis (tecnologia, objetos, símbolos) como intangíveis (valores, ideias e crenças) (GIDDENS, 2008). Embora haja distinções conceituais entre os termos “cultura” e “sociedade”, há fortes conexões entre eles. Sociedades são, nas palavras de Anthony Giddens (2008), sistemas de interrelações que envolvem coletivamente um conjunto de indivíduos. Uma sociedade pode englobar milhões de pessoas ou apenas algumas dezenas delas, mas o elemento que faz tanto uma gigantesca nação, quanto uma pequena tribo indígena ser conceituada com o mesmo termo, é a organização destes dois conjuntos em relações sociais estruturadas a partir de uma cultura comum. Desse modo, culturas não podem existir sem sociedades e vice-versa. Consequentemente, variações culturais identificadas entre seres humanos se relacionam fortemente com as diferenças entre 32 tipos de sociedade diversos. Todas as culturas se orientam por um conjunto de ideias abstratas ou valores, os quais atribuem significados e orientam os indivíduos na interação com o mundo social, e que definem o que é importante, desejável ou útil (GIDDENS, 2008). Os valores de uma determinada cultura usualmente são refletidos ou incorporados nas regras de comportamento (normas) da sociedade, reforçando em mão dupla o comportamento das pessoas. Muitas vezes, hábitos culturais estão de tal forma enraizados e naturalizados que sequer são percebidos como tais, e podem persistir ainda que setores da sociedade em questão atuem ativamente para modificá-los. A socialização, embora seja processo fundamental de moldee influência do comportamento dos indivíduos, não anula a individualidade ou o livre arbítrio dos mesmos. Ela é vista como condição e origem da formação da identidade dos seres humanos, que organiza o sentido e a experiência de suas vidas – quem eles são, o que é importante para os mesmos e quais atributos eles reivindicam para si. Em sociedades modernas de grande porte, também é comum que existam valores e ideias contraditórias e em disputa, conflitos estes que não raro alcançam o terreno da política e do direito. Nesse aspecto, o elemento demográfico contribui de forma decisiva: há uma tendência de que sociedades de grande porte apresentem maior nível de diversidade cultural e, inversamente, FIQUE DE OLHO A pesquisa sociológica tem como pressuposto de que uma cultura precisa ser estudada considerando os seus próprios valores e significados. Este relativismo cultural é necessário para que se evite uma conduta oposta e que pode ser danosa para a disciplina: o etnocentrismo, ou seja, realizar juízos de valor acerca de culturas diferentes tendo como medida de comportamento a cultura de origem do pesquisador. Tal procedimento envolve desafios, especialmente em casos limítrofes que coloquem em questão comportamentos que atentem a princípios centrais e fundamentais para outras culturas. Como a cultura se refere a elementos que são aprendidos e não inatos, também interessa o processo pelo qual os membros da sociedade aprendem e apreendem os modos de vida da comunidade em que se inseriram. A socialização é o principal canal de transmissão cultural ao longo do tempo, e se trata de um processo vitalício e contínuo de configuração do comportamento humano através das interações sociais (GIDDENS, 2008) – aspecto temporal este que também é decisivo na modificação gradual de hábitos e valores adotados comunitariamente. 33 que sociedades de pequena dimensão apresentem maior uniformidade cultural. Neste caso, elas são chamadas de monoculturais (GIDDENS, 2008). É importante ressaltar, contudo, que isso não é uma regra geral: sociedades com dezenas de milhões de habitantes (como o Japão) podem apresentar menor diversificação que nações de menor porte, sobre as quais incidiram fortes influências externas, imigração e integração econômica, bem como aquelas com grande diversidade étnica interna (como diversos países ocidentais, a exemplo dos Estados Unidos). Estes processos se intensificaram nas últimas décadas, fazendo emergir o que o sociólogo Anthony Giddens denominou como culturas mistas, ou contribuindo para a proliferação de subculturas. Estas não se resumem a grupos linguísticos ou étnicos minoritários em uma comunidade, mas se referem a “qualquer segmento da população que se distinga do resto da sociedade em virtude dos seus padrões culturais” (GIDDENS, 2008, p. 25). Ao mesmo tempo, também se verificam setores sociais que optam por rejeitar e/ou questionar parte das normas e valores hegemônicos em uma determinada sociedade, valorizando condutas alternativas, o que se denominou contracultura. Diversos autores e correntes teóricas abordaram, sob óticas específicas, fenômenos relacionados à cultura nas sociedades contemporâneas. Sem a pretensão de esgotar todas as abordagens relevantes no campo da Sociologia a partir de meados do século XX, indicamos aqui algumas outras perspectivas influentes: Desenvolvida pelos intelectuais da chamada Escola de Frankfurt. No que se refere aos estudos sobre a cultura, formulou o conceito da cultura de massa, e uma crítica de longo alcance da indústria cultural – espaço que promove a padronização e comercialização de expressões artísticas, transformadas em mais uma mercadoria –, ambos fenômenos típicos das sociedades capitalistas contemporâneas A noção desenvolvida pelo sociólogo francês se refere aos ativos sociais e conhecimentos culturais específicos dos indivíduos aptos a conferir status social e poder aos mesmos numa sociedade estratificada. A noção desenvolvida pelo sociólogo francês se refere aos ativos sociais e conhecimentos culturais específicos dos indivíduos aptos a conferir status social e poder aos mesmos numa sociedade estratificada. Perspectiva de que os direitos culturais são exprimidos na defesa de atributos particulares, mas cuja defesa possui um sentido universal. Nestes estariam inseridos, segundo o autor, diversas das chamadas lutas “identitárias” modernas, de minorias étnicas, sociais, religiosas ou sexuais. 34 Figura 1 - Diversidae étnico-racial Fonte: Rido, Shutterstock, 2020 2 CRIME E DESVIO SOCIAL Como indicado anteriormente, a vida humana em comunidade envolve a adoção de uma série de valores e ideias, que acabam por nortear o desenvolvimento de normas e regras de conduta nestas sociedades. Em certa medida, trata-se de elemento essencial para a própria existência e sustentabilidade das sociedades. A depender do arranjo e da complexidade dessas regras, elas podem assumir formas escritas ou não escritas, positivadas num sistema legal ou seguidas pelo mero uso ou costume. De qualquer forma, elas delimitam quais condutas são consideradas corretas ou não na vida social. A adoção de determinadas regras implica, necessariamente, duas possibilidades aos indivíduos que a elas se sujeitam: respeitá-las ou não. No segundo caso, caracteriza-se o comportamento desviante; tema de importância central para o sistema jurídico e político estatal, e que historicamente atraiu o interesse do estudo sociológico por conta de suas definições, características e de suas diversas implicações. O desvio pode ser definido, portanto, como ações ou omissões (praticadas individualmente ou em grupo) que não estão de acordo com um certo conjunto de normas aceito por um número significativo de pessoas de uma sociedade. A não conformidade às normas sociais tende a ser acompanhada por uma sanção, que corresponde a qualquer reação de terceiros ao comportamento de um indivíduo ou grupo com o objetivo de assegurar o cumprimento de uma norma (GIDDENS, 2008). 35 Assim como é virtualmente impossível que um indivíduo apresente um comportamento desviante total, desrespeitando em sua integralidade as normas de sua comunidade, certamente também é extremamente comum que pessoas rompam, parcial e ocasionalmente, com as regras de seu entorno. De qualquer forma, este conceito tem grande amplitude e corresponde a um fenômeno que abarca uma quantidade maior de condutas do que, por exemplo, o que é regulado pelo direito, espaço no qual se insere as violações à lei e conceitos como o ato ilícito e o crime. Nesse sentido, existem duas disciplinas que se voltam, de forma mais estrita, ao estudo do desvio social. A Sociologia do desvio procura compreender a razão de certos comportamentos serem vistos como desviantes, variações das noções relativas ao desvio numa comunidade, dentre outros temas, sem se resumir aos desvios considerados ilícitos ou crimes pelo direito. Quando o objeto e o espaço da reflexão científica é o espaço dos comportamentos sancionados pela lei, e mais especificamente abarcados pelo Direito Penal e o sistema de justiça criminal, estamos no espaço da Criminologia. Esta, assim como o Direito Penal, possui em seu interior teorias e abordagens metodológicas relevantes com pouco contato com a Sociologia do desvio, como as de fundo psicológico ou psicanalítico; o estudo da microfísica das relações sociais, a genealogia do poder e a análise da metamorfose dos métodos punitivos de Michel Foucault em Vigiar e punir (FOUCAULT, 1987), dentre outras. Nessa unidade, nos centraremos nas perspectivas teóricas que influenciaram historicamente as três disciplinas. 2.1 Teorias e abordagens históricas sobre o desvio e o crime: a Escola Positivista A primeira perspectiva de destaque que tangencia a Sociologia do desvio, a Criminologia e o Direito Penal é a chamada Escola Positivista. Esta se contrapôs à teoria clássica do Direito Penal ancorada na obra de Cesare Beccaria e no Iluminismo, passandoa abordar como objeto de estudo o criminoso e o seu comportamento. Logo, o delito e o delinquente são considerados patologias sociais, devendo a pena ter um propósito utilitarista (BITTENCOURT, 2013). Seus principais nomes – os italianos Enrico Ferri, Raffaele Garófalo e, especialmente, Cesare Lombroso -, defenderam a possibilidade de se identificar a existência de uma determinação biológica, inata, sobre o fenômeno da delinquência. Ainda que a socialização pudesse influenciar na manifestação do comportamento criminoso, certos indivíduos teriam traços físicos e anatômicos que poderiam ser identificáveis e associados à criminalidade, associáveis a um estágio menos desenvolvido de evolução humana (BARATTA, 1999). O conteúdo racista e evolucionista, de impacto político e social danoso até os dias atuais foi rechaçado pelas perspectivas sociológicas posteriores. Ainda que a escola Positivista tenha contribuído para o fomento do olhar científico 36 para o fenômeno da criminalidade, este era concebido como um fenômeno ontológico, um dado da realidade anterior à realidade social e que não se constituía a partir das definições desta. 2.2 Teorias do consenso: o funcionalismo A partir da obra de Émile Durkheim desenvolveram-se as Teorias funcionalistas sobre o crime e o desvio, também chamadas de Teorias do Consenso. Para ele, as razões do desvio não envolvem fatores biológicos e naturais. Este fenômeno é visto como algo inerente à toda estrutura social, e passa a ser negativo apenas quando se segue a este uma desorganização social de tal modo que provoque uma situação anômica (conceito que será retomado na sequência da unidade). Dentro de limites funcionais, este tipo de comportamento é necessário para o equilíbrio e o desenvolvimento social e cultural, ao impulsionar novos desafios no seio da comunidade e ao contribuir para a manutenção de limites claros entre comportamentos saudáveis e danosos à mesma, provocando respostas que reforcem a solidariedade do grupo (BARATTA, 1999; GIDDENS, 2008). Esta visão foi parcialmente modificada por outros nomes célebres do campo das Teorias do consenso: as teorias dos grupos subculturais e as de Robert Merton (referência da chamada Escola de Chicago). Este agregou a influência da desigualdade econômica e de oportunidades no fenômeno criminal, alterando o conceito de anomia, aqui considerada como uma tensão sobre o comportamento dos indivíduos frente ao conflito entre a realidade social concreta, as normas aceitas e as práticas culturais valorizadas na sociedade. A partir disto, formulou-se um modelo teórico com cinco modelos de adequação dos indivíduos no meio social, variando da conformidade à rebelião. 2.3 Interacionismo e Teoria do etiquetamento Outra tradição sociológica despontou a partir de meados do século XX, denominada interacionista. Esta foi a primeira a romper de forma marcada com a concepção ontológica do crime, rejeitando a noção de que há condutas desviantes ou criminosas por natureza e passando a percebê-los como fenômenos socialmente construídos (GIDDENS, 2008). Dentro desta perspectiva, destacam-se duas teorias. Primeiro, a da associação diferencial, formulada por Edwin Sutherland, que sugeria que o desvio poderia ser aprendido por meio da interação com outros em determinados ambientes, utilizando como fenômeno específico de análise os chamados crimes de colarinho branco, cometido por indivíduos de classes sociais mais abastadas. O interacionismo contribuiu para o desenvolvimento de outra perspectiva dotada de maior criticidade com o seu objeto de análise: a Teoria do etiquetamento, ou “labeling approach”. A “desnaturalização” do crime e do criminoso levou a questionamentos de implicações mais profundas relativas ao sistema de justiça criminal. O foco desta abordagem passou a ser as instâncias legais e institucionais que definem o que é o delito; os mecanismos de reação social a ele e ao criminoso; e quem são os indivíduos “rotulados” como delinquentes, portanto, o estudo 37 da criminalidade foi substituído pelos estudos da criminalização (ANITUA, 2007). Referência de estudo que parte de tal perspectiva é o livro Outsiders, de Howard Becker, escrito entre os anos 1950 e 1960 (BECKER, 2008 [1963]). Ainda que possua caráter notadamente contestatório e com pontos de contato com as teorias do conflito, a abordagem do etiquetamento tinha um enfoque em processos microssociológicos, em detrimento de análises de caráter estrutural e sistêmico. Logo, não tinha como objeto de análise os processos sociais de fundo que condicionavam o fenômeno da violência e a organização da política criminal nas sociedades capitalistas contemporâneas. 2.4 Teorias do conflito e a Crimnologia crítica Com estes aspectos em mente, e partindo de premissas e marcos teóricos distintos dos funcionalistas e interacionistas, surgiram a partir dos anos 1970 perspectivas teóricas voltadas à criminologia denominadas Teorias do conflito. Esta teoria partia geralmente. do pensamento marxista, e tinha como referências a relação direito, marxismo e sociologia. Dessa forma, após a publicação do livro The New Criminology, de Taylor et al (TAYLOR et al., 2013 [1973]), fomentou-se um campo que sustentava que o desvio é uma opção deliberada e não raro de natureza política; inserida numa sociedade em estado de constante tensão e luta pelo poder; e estruturada de acordo com os interesses da classe dominante, sendo, assim, o sistema de justiça um dos meios de controle da classe dominada. Junto com outras perspectivas filosóficas, sociológicas e jurídicas também de alcance radical – associadas ao existencialismo, ao pós-estruturalismo e ao pensamento anarquista -, elas o grupo associado à chamada Criminologia crítica, cujas propostas oscilam entre a ampliação e estruturação de limites rígidos e especificados à pretensão punitiva estatal; tendo ainda contatos com o positivismo jurídico (garantismo penal); passando pela orientação jurídico-política de redução do direito penal; por uma política criminal afeita a meios não encarceradores de responsabilização de condutas desviantes (minimalismo penal); até os postulados pela abolição total da pena privativa de liberdade, da instituição prisão e, em sua instância mais radical, à abolição de toda intenção punitiva - o abolicionismo penal (ANITUA, 2007). 38 2.5 Teorias atuariais e do controle social Por fim, nas últimas décadas também se desenvolveram de modo mais destacado perspectivas radicalmente distintas à Criminologia crítica e às Teorias do conflito: as Teorias do controle social. Estas usualmente ignoram os processos sociais que fornecem o contexto das atividades criminosas, partindo da premissa de que os indivíduos agem racionalmente, atentos às oportunidades e ao custo-benefício da atividade criminosa. Ao formular propostas de prevenção e repressão à criminalidade, o foco não é a reabilitação dos indivíduos, direcionando-se a técnicas e dispositivos de dissuasão. A sua versão mais radicalizada é a chamada “política de tolerância zero”, sendo uma de suas variações mais conhecidas a chamada “Teoria das Janelas Quebradas”, implementada de forma controversa em Nova Iorque nos anos 1990. Outras perspectivas similares envolvem o chamado “atuarialismo” - voltado à gerência do sistema penal efetivamente existente e ao controle de “grupos de risco” -, o Direito Penal do inimigo, dentre outras. As diversas perspectivas apresentadas acima permanecem em discussão e embate, seja no âmbito acadêmico, no social ou no político – sendo que o direito, e, mais especificamente, o Direito Penal e a política criminal dos Estados contemporâneos possuem dispositivos orientados pelas premissas de diversas teorias, em intensidades distintas. FIQUE DE OLHO Você já refletiu sobre a realidade do sistema de justiça criminal e das prisões brasileiras? No gráfico sobre o aumento da população carcerária entre 2005 e 2016, observamos que a população carcerária brasileira quase dobrou