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Globalização, Dependência e Exclusão Social - O Caso Brasileiro Euclides André Mance Curitiba, janeiro, 1999 Introdução Este texto tem por objetivo apresentar, concisamente, um esboço de como a globalização vem afetando a realidade brasileira. Na primeira parte caracterizamos brevemente o fenômeno atual da globalização, analisando aspectos econômicos, políticos e culturais que lhe são inerentes e apresentando um conjunto de suas consequências para os países do Terceiro Mundo. Na segunda seção consideramos a trajetória dos modelos de desenvolvimento adotados no Brasil nas últimas décadas, a transformação das mediações de hegemonia política no país, a exclusão social e a alienação cultural provocada por estes movimentos, enfatizando o modo como a nação vem se submetendo às medidas globalitárias e adotando o neoliberalismo. Na terceira parte, referimo-nos a elementos da teoria que suporta a conduta do governante Fernando Henrique Cardoso e a algumas práticas globalitárias adotadas em sua eleição e em seu governo. Na quarta parte, analisamos como vem se acentuando a negação das liberdades democráticas (públicas e privadas) sob o capitalismo atual. Na quinta seção apresentamos alguns elementos da construção de uma alternativa de esquerda - socialista, ecológica, democrática e popular - ao presente cenário brasileiro, apontando algumas iniciativas de transformação social. Por fim, na conclusão, apresentamos alguns equívocos da teoria econômica de Fernando Henrique que, em razão dos quais, pode ser tomada como um suporte ideológico na justificação do modelo de desenvolvimento neoliberal que o país vem adotando, acentuando a dependência e subserviência externa . 1. Um Breve Panorama Econômico, Político e Cultural da Globalização O capitalismo, em sua atual etapa de globalização, em seus aspectos econômicos, políticos, informativo-educacionais e éticos, restringe cada vez mais o exercício das liberdades públicas e privadas da maioria da população mundial em benefício da liberdade privada dos que dispõem de capital. Sob o aspecto econômico, a humanidade assiste uma nova revolução tecnológica, com um fabuloso aumento de produtividade que, todavia, demanda menos trabalho vivo para a produção de um mesmo volume de mercadoria, gerando ao capitalista um volume maior de excedente que não pode ser reinvestido lucrativamente, em seu todo, na produção de uma maior quantidade de bens, pois não há mercado - isto é, pessoas com dinheiro - que possa consumi-los. Se tal reinvestimento ocorresse, a oferta seria muito superior à procura e a superprodução provocaria uma queda catastrófica nos lucros. Como consequência de tal modelo, têm-se o desemprego e o aumento capitais voláteis girando o mundo em busca de valorização sob taxas de juros elevadas. Com a disputa por mercados se acirrando internacionalmente têm-se, em contrapartida, uma concentração de capital cada vez maior - com certos grupos incorporado os grupos rivais ou dominando seus mercados - e uma internacionalização do capital, forçando as economias dependentes a uma inserção subordinada no mercado internacional. Neste contexto, a organização de blocos econômicos e mercados comuns, criando uma peculiar regionalização do mundo, suprime mecanismos políticos de preservação das economias nacionais frente ao movimento dos capitais internacionais, gerando grandes mercados de diversas magnitudes e potencialidades face à competição internacional (ver tabela 1) Algumas das novas tecnologias, como a biotecnologia e tecnologia dos materiais, vem permitindo a substituição de matérias-primas, enfraquecendo a posição internacional de países cuja economia centra-se em sua exportação. Além disso, notam-se mudanças na cadeia produtiva, com a concentração de capitais em diferenciados setores em razão das alterações tecnológicas e de estratégias empresariais. Com a restruturação e racionalização empresariais, têm-se a flexibilização do processo produtivo, que envolve novas formas de organização empresarial, de informalização e de precarização das relações de trabalho. Outro aspecto peculiar e inovador é a gênese de uma economia baseada no conhecimento, a economia centrada na produção e comercialização de bens intangíveis (softwares e objetos sígnicos, por exemplo) que supõem o valor de troca do conhecimento (que, entretanto, se reproduz sem necessitar de novo trabalho vivo). Estes elementos geram um outro quadro econômico, demandando novas especializações tanto nos países de capitalismo avançado quanto nos de capitalismo dependente, criando também novas formas de exclusão e uma nova forma de divisão internacional do trabalho. O setor de produção e comercialização de bens intangíveis vem se tornando o principal segmento de concentração de capital. Esse quadro de mudanças provocou o drama do desemprego e do emprego precário por toda a parte, uma vez que tais movimentos de transformação produtiva ocorrem em função do lucro - e não da redução da jornada de trabalho com distribuição de renda, da manutenção do emprego ou da cidadania - provocando, por um lado, a concentração da renda e, por outro, o aumento da pobreza e da exclusão social. Em particular, a dependência que os países do Terceiro Mundo sofrem dos capitais externos sob esse modelo de globalização capitalista é cada vez maior, sendo sentida tanto no peso das dívidas externas e internas quanto nos sobressaltos das crises de fuga de capitais voláteis das bolsas de valores desses países. Destaque-se também que urbanização verificada nas últimas décadas, nas regiões para onde se deslocam os investimentos capitalistas, acirra um conjunto de contradições urbanas que são agravadas pelo desemprego dos que não são incorporados por estas novas unidades produtivas ali instaladas, bem como, pela falta de políticas públicas no atendimento das demandas sociais, uma vez que os estados, cobrando menos impostos sobre as atividades econômicas, concedendo incentivos fiscais para o estabelecimento de novas empresas em certas regiões e pagando juros sobre dívidas internas e externas, têm menos recursos para cobrir tais despesas. A contrapartida deste modelo de globalização é a acelerada degradação ambiental do planeta, com fenômenos de poluição do ar, solo, rios e mares provocados tanto pela busca incessante do lucro, operada pelo capital, quanto pela procura de paleativos para a sobrevivência, operada por populações marginalizadas. O consumo irresponsável de recursos não renováveis e a degradação dos ecossistemas aponta para dramáticas crises ecológicas com fenômenos de mudanças climáticas, desertificações, etc, que se fazem sentir com alterações climáticas em diversas regiões do planeta. Por fim, a revolução digital em curso, proporcionada pelo desenvolvimento da informática, tende a interferir em medições econômicas, políticas e culturais da maior parte do mundo, possibilitando: a) a produção de mercadorias intangíveis que trafegam pelas redes digitais e que são reproduzíveis virtualmente, b) o desenvolvimento de novos mecanismos hegemônicos e contra-hegemônicos de informação que interferem nos cenários políticos e c) a interferência cultural que redes, como a Internet, começam a desempenhar. Aqui novamente se reencontram mecanismos de exclusão e de dominação cultural, em particular, sob a forma de dominação de padrões e sistemas que se impõem internacionalmente mesmo sem serem os melhores. O correlato econômico dessa imposição é o fluxo do capital acumulado pelos detentores dos padrões e sistemas, que tendo patentes e direitos de cópia sobre os mesmos, recebem valores por sua adoção e constante atualização. A desigualdade internacional e entre classes no interior das nações também é gritante no uso dos aparelhos e instrumentos de comunicação digital e analógica , que caracterizam as sociedades conectadas em rede (ver tabela 2). Assim, sob a lógica da globalização, economicamente considerada, as mediações materiais que poderiam ser disponibilizadas para ampliar a margem de exercício das liberdades pública e privada do conjunto da população do planeta - provocando uma sensível redução da jornada de trabalho e proporcionando incremento ao bem estar de todos - ficam sob o controle de um conjunto de agentes privados que amplia cada vez mais sua liberdade restringindo cada vez mais as liberdades dos demais. Politicamente, o mundo assistiu nas últimas duas décadas um processo de modernização conservadora, uma vez que as transformações que vêm ocorrendo no conjunto dos países conservam as clássicas estruturas capitalistas de organização social, reproduzindo as desigualdades econômicas já consideras. Neste sentido, o neoliberalismo torna-se um corpo doutrinário justificador de reformas políticas e econômicas que aparentemente visam promover a liberdade da sociedade civil, mas que, de fato, ampliam a liberdade dos grandes agentes econômicos internacionais, ao mesmo tempo em que restringem as liberdades públicas em sua dimensão material, seja pelo desmonte das mediações estatais estabelecidas com esse fim, seja pela subtração de mediações materiais a uma grande parcela da sociedade que fica desempregada e marginalizada do processo produtivo e de consumo. Em ambos os casos a liberdade pública fica prejudicada em benefício da liberdade do grande capital. Com a queda do socialismo do leste europeu, uma nova geopolítica internacional suplanta o conflito leste-oeste pelo conflito norte-sul, ficando os países pobres e dependentes submetidos à política estabelecida pelas sete grandes potências do mundo, organizadas em blocos econômicos que se fecham sobre seus interesses, pressionando os demais países a adotarem políticas subservientes. A nova configuração geopolítica não apenas considera a importância de regiões estratégicas sob o aspecto de produção de matérias-primas (como no caso do petróleo do golfo pérsico) como sob o aspecto do cinturão de segurança que separa o norte rico das ondas de migrantes bárbaros do sul. Desse modo, o conflito leste-oeste vai sendo substituído pelo conflito entre norte e sul entre ricos e empobrecidos. Com o fim da guerra fria alteram-se também os parâmetros de intervenção geopolítica. Certos organismos internacionais - como instâncias da ONU - tendem a perder importância frente a decisões das potências vencedoras da guerra do golfo que passam a definir critérios próprios para intervenções internacionais. Emerge também o fenômeno da planetarização, caracterizando a interferência de nações sobre outras ou, mesmo, de setores da sociedade civil de diversos países pressionando outros países quanto a condução de suas políticas. A planetarização, contudo, tem servido mais aos interesses dos grandes capitais que aos interesses sociais, embora algumas pressões internacionais por direitos humanos, contra testes nucleares, entre outras ações, tenham significativa importância neste novo quadro. Destaque-se ainda que o globalitarismo, como esvaziamento substancial da democracia, se afirma em sociedades que sofrem alto impacto das mídias - em particular a TV - promovendo a manutenção de governos formalmente democráticos, eleitos e reeleitos com o concurso da formação da opinião pública através dos grandes meios comunicativos, que asseguram a hegemonia política do neoliberalismo, mesmo em meio à exclusão social que ele provoca. Em síntese, o neoliberalismo, politicamente, tem enfraquecido a capacidade de os governos promoverem políticas que assegurem a cidadania, ao passo que coloca como tarefa prioritária destes - em particular no caso dos países dependentes - assegurar a estabilidade de moedas nacionais, o que significa adotar, conforme este projeto, políticas de juro e câmbio que acabam por remunerar o capital financeiro com os recursos que poderiam, pelo contrário, ser investidos em saúde, educação, etc. O globalitarismo, por sua vez, virtualiza a prática política e fragiliza o controle substancialmente democrático do poder político que é intrumentalizado por uma razão formalizada. Sob o aspecto educativo e informativo, cabe considerar que, com o surgimento e desenvolvimento dos novos meios de informação e comunicação, o capitalismo adquiriu o estatuto de principal sistema semiótico modelizante. Em outras palavras, as novas mediações comunicativas permitem não apenas gerar signos mas agenciar interpretantes afetivos, intelectuais e energéticos que engajam as subjetividades em processos de produção, consumo e eleição, sob complexos fenômenos de alienação cultural nos quais as semioses hegemônicas, geradas pela conversão de capitais em signos, permitem uma recuperação ainda maior de lucro ou de prestígio político pelas ações humanas que desencadeiam gerando-se interpretantes de diversas ordens. Sob o aspecto da produção, a qualificação dos trabalhadores (para que operem com as novas tecnologias) e processo de reestruturação produtiva valem-se de inúmeras mediações pedagógicas, psicológicas e de outras ordens que estratificam os sujeitos sob novos papéis tais como colaborador, crítico, solidário, etc, situando em um novo patamar o processo de alienação no trabalho, colocando a serviço do capital territórios subjetivos anteriormente inexplorados, como a inteligência emocional. Sob o aspecto do consumo, a disputa por mercado implica em agenciar o consumidor, engajá-lo em determinados processos de consumo, o que exige uma intervenção comunicativa capaz de mover-lhe à aquisição de determinado produto e não outro, a recorrer a determinado serviço e não outro. Com tal finalidade geram-se publicidades, agenciando-lhe interpretantes afetivos, energéticos e intelectuais - o que coloca, também, em um novo patamar a alienação no consumo. Com efeito, os agenciamentos semióticos e os processos produção de subjetividade não apenas constróem representações de mundo que são compreensões inadequadas da realidade objetiva, não apenas geram imaginários e utopias alienantes, como especialmente, criam canais de vazão de fluxos de desejos, medos, angústias e outras intensidades que são direcionados no movimento de reprodução do capitalismo, recapturando até mesmo as linhas de fuga do sistema sob sua semiose hegemônica. A Semiose Capitalística torna-se, assim, capaz de modelizar qualquer outro regime de signos ou ação sob a lógica do acúmulo privado. As estratificações subjetivas, isto é, demarcações de papéis sociais operados sob diversos regimes de signos das famílias, escolas, igrejas, clubes e demais instituições sociais que cumprem especial papel mediador educacional são modelizadas sob a lógica de reproduzir os ciclos do capital. Mesmo imagens de protestos sociais ou de ações subversivas podem ser modelizadas com a finalidade de reproduzir o capital, isto é, de gerar lucro sendo esvaziadas de seu conteúdo político, como ocorrem com inúmeras peças publicitárias que recuperam esses signos para a venda de mercadorias - como a recuperação da imagem de Chê Guevara para vender detergentes no Brasil - ou com a produção de filmes e seriados televisivos que geram bons retornos financeiros explorando temas políticos subversivos com leituras históricas distorcidas para tornar o enredo mais atraente e palatável ao público. De outra parte, as semioses simbólicas sobre os signos indiciais apresentadas nos telejornais fazem crer que inúmeras lutas por justiça social e em defesa dos direitos adquiridos pelos trabalhadores são motivadas por posições políticas retrógradas que dificultam a modernização econômica que beneficiaria a todos. Os interpretantes hegemônicos gerados sob as reformas neoliberais engajam a sociedade na defesa deste projeto agenciando, ilusoriamente, a esperança de dias melhores para todos. Por sua parte, as políticas de financiamento internacional para a educação exigem reformas educativas que concebem a educação como mediação para o desenvolvimento econômico pela formação de capital humano ao invés de compreender a educação como mediação do exercício da cidadania - o que supõe não apenas a qualificação profissional, mas o desenvolvimento de habilidades críticas que permitam o exercício das autonomias singulares em meio aos conflitos e contradições sociais com vistas à construção da cidadania, em particular, no desmonte das semioses que agenciam as subjetividades e na singularização dos interpretantes afetivos, energéticos e intelectuais que permitem qualificar os exercícios de liberdade pessoal em sintonia com a expansão das liberdades públicas.. O mito de que o desemprego se resolve com a educação difunde-se massivamente, embora os que promovam tal difusão saibam que, mesmo havendo a qualificação do conjunto dos excluídos e marginalizados, não haverá lugar para todos no processo produtivo capitalista - o que já se nota pela quantidade de doutores, técnicos e outros profissionais qualificados que não conseguem nele inserir-se. Considere-se também que a privatização do ensino e a evasão escolar, premida pela necessidade de o jovem contribuir com o orçamento doméstico em meio à crise do desemprego, provocam exclusões dramáticas de amplos segmentos do acesso ao saber. Por fim, os fenômenos de mundialização vem se expandindo, com manifestações culturais locais sendo recuperadas sob a espira do capital. Em contraposição, até o presente momento, ações culturais subversivas através de redes internacionais de comunicação ainda não conseguem, em geral, transitar da interferência cultural para intervenções de caráter político e econômico. Em síntese, o desenvolvimento de novas tecnologias e procedimentos educativos, que massivamente interferem no inconsciente das pessoas, possibilita um novo fenômeno hegemônico de condução da organização social, seja nos processos econômicos de produção e consumo, seja nos processos políticos de eleições democráticas. Compreendida basicamente como fator de produção pelos organismos internacionais de financiamento, a educação formal é esvaziada de seu papel qualificador do exercício da cidadania. Mesmo as instâncias tradicionalmente centrais no processo educativo como a família, a escola, as igrejas e os partidos perdem cada vez mais terreno frente às novas mídias que, institucionalmente, estão sob controle de grupos privados capitalistas que tratam a informação e a cultura como mercadoria e não como mediações do exercício ético da liberdade. Considerada sob a perspectiva ética, a globalização propõe a iniciativa dos agentes privados em função de seu interesse particular como a referência da conduta que contribui para o bem coletivo, uma vez que a mão invisível do mercado faria com que ao buscar o seu bem privado o indivíduo contribuísse para a realização do bem comum. Desse modo, um individualismo exacerbado atravessa o conjunto das relações sociais e as subjetividades vão ficando cada vez mais insensíveis ao sofrimento alheio. Graças a um solidarismo virtual, os indivíduos podem mesmo discretamente chorar ao assistir um drama semioticamente bem montado sobre crianças em um filme no cinema, mas não se comovem com as crianças sujas que vivem pelas calçadas nas ruas dos centros urbanos, cujo apelo estético está muito longe da beleza cinematográfica. Sob o aspecto da ética, portanto, podemos considerar que um individualismo exacerbado vai se afirmando promovido pelo neoliberalismo. Tal individualismo nega que a promoção da liberdade pública seja um imperativo ético para a conduta privada, desobrigando os indivíduos de preocuparem-se com transformações sociais que visem garantir a cada pessoa as mediações materiais, políticas, educativas e informacionais que lhe permitam exercer eticamente sua liberdade e realizar-se dignamente como um ser humano. Alguns estudiosos têm analisado quais são as mais fortes conseqüências desse modelo de globalização para os países do Terceiro Mundo(3). Convém lembrar, todavia, que o processo de globalização inclui também em sua espira de desenvolvimento e enriquecimento algumas regiões dentro dos países do Terceiro Mundo e uma certa parcela da população em meio à totalidade social, razão pela qual o projeto neoliberal é defendido também por certas elites nos países do Terceiro Mundo. As conseqüências que apontamos a seguir consideram o conjunto das relações que afetam a maioria ou todas as pessoas, e não as possíveis vantagens de uma pequena parcela dos setores nacionais que se beneficiam do atual modelo de globalização. Estes itens, com algum cuidado, podem ser generalizados para os países ou regiões do Terceiro Mundo, considerando-se os demais aspectos já analisamos anteriormente, verificando-se a sua ocorrência em níveis variados caso a caso. 1) Incorporação de empresas de capital nacional por empresas transnacionais em razão de não suportarem a concorrência, provocando a rápida desativação de várias unidades produtivas em razão destes grupos transnacionais produzirem sob novos procedimentos organizativos e com tecnologias mais avançadas, o que permite a produção de um maior volume de mercadorias com um menor número de trabalhadores empregados; 2) Subalternização de empresas de capital nacional que são contratadas de modo terceirizado pelas grandes empresas transnacionais que se instalam nos países periféricos e que, tendo uma estratégia mundial de crescimento, podem desativar grandes unidades a qualquer momento, deslocando-as para outras regiões, deixando, assim, as empresas locais terceirizadas à sua própria sorte, provocando graves conseqüências econômico-sociais. 3) Com a depreciação do valor das matérias-primas em razão de inovações no setor de tecnologia dos materiais e de engenharia genética, que possibilitam a substituição de inúmeros tipos destas matérias ou a sua produção alternativa, ficam prejudicadas as economias dos países que têm na exportação de matérias-primas sua principal fonte de divisas; 4) Pressão de déficites na balança comercial dos países periféricos em razão de importação de tecnologias para a modernização do parque produtivo, bem como pela da degradação do valor dos produtos de exportação e, ainda, em razão dos instrumentos de âncora cambial adotados com a finalidade de manter estabilidade monetária e de não afastar capitais estrangeiros que atuam nos mercados de títulos públicos; 5) Dependência de tecnologias de ponta, especialmente da tecnologia da informação, ocorrendo significativas queimas de capital para importá-las; contudo, a sua rápida obsoletização exige repetidas importações sucessivas de bens tangíveis e intangíveis mais avançados, o que leva a uma fabulosa sangria de capitais, sem nunca atingir um grau de modernização de ponta nestes setores frente aos países de capitalismo avançado; 6) As economias ficam dependentes dos fluxos de capital internacional, sobre os quais não têm autonomia; os fluxos de capitais voláteis, fictícios ou especulativos geram um clima de aparente estabilidade econômica que nada tem de duradoura, podendo gerar fortes crises ao sinal seguro de alterações no câmbio ou na taxa de juros que lhes reduza a rentabilidade; 7) Enfraquecimento do controle das economias nacionais pelos governos federais, em razão da internacionalização das finanças, bem como, pela acentuada penetração de capitais internacionais; 8) Submetimento da economia nacional a variadas oscilações em razão da interdependência dos países nos blocos econômicos e mercados comuns que integram, ocorrendo pressões sobre determinados segmentos econômicos nacionais que ficam prejudicados por esses acordos; 9) Acirramento dos desequilíbrios econômicos regionais, em razão das vantagens econômicas comparativas existentes em certas regiões dos países ou blocos que possuem maiores economias de aglomeração, melhores condições de infra-estrutura e maior facilidade de integração regional dentro dos mega-mercados; 10) Surgimento de ilhas de prosperidade, isto é, de algumas regiões em que o desenvolvimento econômico se acentua por nelas se investirem somas significativas de capital em atividades produtivas modernizadas que alavancam o crescimento local; 11) Inchamento de cidades para onde os pobres se deslocam em movimentos migratórios em busca de emprego, assistência pública e melhores condições de vida, pressionando o surgimento de grandes metrópoles e megalópoles; 12) Ampliação do montante das dívidas externa e interna em razão de empréstimos feitos para equilibrar pagamentos e rolagem de títulos; 13) Transferência para o exterior de poder sobre importantes decisões econômicas que envolvem investimentos e produção em amplos segmentos econômicos, principalmente os setores mais modernos, que ficam desnacionalizados em razão dos processos de privatizações; 14) Perda da soberania das nações em razão de sua subordinação não apenas às regras da OMC, hegemonizada pelos países de capitalismo avançado, mas especialmente de sua subordinação às decisões das empresas industriais e financeiras multinacionais, bem como, aos interesses dos blocos econômicos dos quais o país faça parte; 15) Exclusão social de significativa parcela da população das diversas regiões dos países, parcela essa que não participa dos resultados do progresso econômico e social que ocorre nas ilhas de prosperidade. 16) Desemprego em massa, como resultado do processo de modernização dos setores produtivos que se realiza com a finalidade de ampliar os níveis de produtividade e competitividade das empresas nos mercados interno e externo, introduzindo novas tecnologias e sistemas de gerenciamento. 17) Ampliação da informalidade e de práticas econômicas consideradas contravenção ou imoralidade, como contrabando, pirataria, narcotráfico, prostituição, trabalho infantil, etc. 18) Retorno de doenças infecto-contagiosas que já haviam sido controladas, por falta de investimentos públicos em saúde e infra-estrutura - água, esgoto, vacinação, etc. 19) Pressões de devastação ambiental, sendo o meio ambiente degradado tanto pela competição capitalista que busca maximizar lucros diminuindo custos, instalando no Terceiro Mundo as "indústrias sujas" - aproveitando brechas de legislação e fiscalização - quanto para promover alguma melhora imediata à vida das pessoas excluídas dos processo produtivos e da assistência por políticas públicas; 20) Decomposição do tecido social ampliando-se as desigualdades sociais na distribuição de renda, no acesso às condições básicas de vida, no acesso e na qualidade de interpretação da informação, etc; 21) Agravamento dos indicadores da qualidade de vida; 22) Aumento da violência e criminalidade, em razão das tensões sociais provocadas pela exclusão econômica de significativas parcelas da população com necessidades elementares insatisfeitas e que, concomitantemente, são agenciadas pelas mídias a participarem de processos modelizados de consumo; 23) Ameaça de convulsões sociais com desdobramentos político-institucionais que podem afetar os regimes democráticos liberais: saques, revoltas contra a ausência de políticas públicas, contra a falta de empregos, etc, podendo haver a ascensão de movimentos nacionalistas de direita que capitalizem tais insatisfações; 24) Perda nacional de referenciais culturais identificadores, em razão de fenômenos transnacionais de produção de subjetividade em que operam, especialmente, as mídias eletrônicas veiculando mensagens em tempo real pelo mundo todo, e em razão da publicidade que produz imaginários em torno de uma certa configuração de sociedade de consumo; 25) Tendência dos regimes políticos tornarem-se mais globalitários, esvaziando-se a democracia de seu caráter de assegurar a liberdade pública, reduzindo-a aos ritos eleitorais com escolhas orientadas pelas mídias, à adoção legislativa de políticas que favorecem os grandes grupos econômicos transnacionais, à implementação executiva da modernização conservadora e ao exercício judiciário de assegurar a legalidade da imposição da nova ordem e, em casos extremos, como vem ocorrendo no Brasil, assegurar o repasse do patrimônio público aos grupos privados, manifestando-se favoravelmente à legalidade de processos de privatização e concorrências entre outros. 2. O Caso Brasileiro: Da Crise do Desenvolvimentismo à Adoção do Neoliberalismo - Aspectos históricos e indicadores sócio-analíticos Para compreendermos a situação atual de transformação do Brasil em meio ao cenário da globalização, convém retomar o percurso histórico do país, nas últimas três décadas, considerando alguns aspectos dos projetos econômicos adotados no período. O modelo de desenvolvimento implantado autoritariamente durante a última ditadura militar brasileira apoiava-se no fortalecimento do papel do Estado, no endividamento externo, na substituição das importações, na instalação de multinacionais atendendo demandas do mercado interno e na manutenção de superávits na balança comercial, em que a exportação de produtos agrícolas desempenhou um importante papel. A dívida externa que era de US$ 3 bilhões em 1964, no início da ditadura, passou a US$ 81,5 bilhões ao seu final, em 1985. Em meados da década de 70 este projeto entrou em crise, surgindo novos atores sociais exigindo, a partir de sua situação imediata, a satisfação de demandas concretas. Se no período pós-guerra a economia do país registrou um histórico crescimento do Produto Interno Bruto, em média, de 7% ao ano até a década de 80, tendo o PIB por habitante crescido 4 vezes no período, por outro lado, durante a década de 80 o Brasil permaneceu estagnado. Mesmo com tal estagnação ele continuou sendo o país de industrialização mais avançada no continente latino-americano, embora não tivesse um projeto de desenvolvimento coerente com o aproveitamento estratégico de seu potencial geo-econômico. A década de 80, sob o aspecto do desenvolvimento econômico, ficou conhecida como a década perdida. A estrutura produtiva envelheceu, o fluxo positivo da poupança se inverteu em função da dívida externa que atingia elevados patamares. Naqueles anos a economia brasileira perdeu competitividade e tentou manter posições no comércio exterior valendo-se de recursos como o arrocho salarial e a deterioração do câmbio (desvalorizando a moeda nacional), reduzindo o custo da produção, no primeiro caso, e tornando as mercadorias internacionalmente mais baratas com os dois expedientes, facilitando assim a colocação de produtos brasileiros no mercado externo. O Estado, aos poucos, vai se fragilizando e ficando sem condições de reverter com os expedientes adotados, o quadro de agravamento da situação econômica e social. Neste período verificam-se elevadas taxas inflacionárias e sucessivos planos que tentam contê-las. Tanto a inflação quanto os planos anti-inflacionários, que fracassam um após outro, promovem, em geral, uma concentração de renda ainda maior no Brasil, que se vê às voltas com a hiperinflação no final do anos 80. Na década de 75 a 85 verificou-se o fortalecimento da sociedade civil em contraposição ao Estado autoritário. Vão emergindo e radicalizando-se movimentos eclesiais que lutam por justiça social, movimentos populares, oposições sindicais combativas, que vão retomando as lutas sindicais e Organizações Não-governamentais, em particular, os centros de defesa dos direitos humanos e organizações voltadas à educação popular. Das questões imediatas e específicas como o custo de vida, a demanda por creches, o arrocho salarial, a situação da educação e outras, estes movimentos vão ganhando uma conotação mais política, surgindo grandes mobilizações nacionais, como as que se articularam em torno da luta pela anistia e da luta pelas eleições diretas para presidente. Com o desgaste da ditadura, surgem projetos alternativos de desenvolvimento: o neoliberalismo empunhado pelas elites dominantes e o socialismo democrático e ecológico, defendido pelos setores populares. O governo do presidente José Sarney (1985-1989), caracterizou-se como o início da transição do modelo de desenvolvimento autoritário estatal para o liberal, mas não foi essencialmente nem uma coisa, nem outra. Seu "liberalismo" que atingiu a esfera política e ensaiou os primeiros passos no campo econômico, efetivou-se praticamente como um regime de caráter populista, com forte intervenção estatal. Tanto sob o modelo autoritário que saía de cena, quanto sob o modelo neoliberal que começava a se implantar, cresceu e crescia no país a concentração de renda, a marginalização social e a favelização das cidades - mesmo considerando-se o desenvolvimento econômico da primeira etapa da ditadura, quanto o breve surto econômico provocado pelo Plano Cruzado no Governo Sarney. A inflação de preços subia em níveis alarmantes e seu combate serviu de justificativa para medidas promotoras dos interesses das elites em detrimento da qualidade de vida das camadas populares. Em 1989, com a eleição de Fernando Collor de Mello, tem-se o fim de um ciclo de confronto entre o projeto neoliberal e o socialismo democrático, sendo vitorioso o projeto neoliberal que propunha o livre mercado e menos Estado. Ainda naquele ano, em Washington, foram sistematizadas as principais propostas do programa neoliberal em um seminário com o título Latin American Adjustment: How Much Has Happened, do qual participaram funcionários do governo dos Estados Unidos e de organismos financeiros internacionais ali instalados: o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. As conclusões desse encontro acadêmico, que não possuía caráter deliberativo, passaram a ser denominadas informalmente por Consenso de Washington(4). Elas ratificaram a proposta neoliberal, que o governo norte-americano vinha defendendo, como condição necessária para que qualquer país pudesse receber cooperação financeira externa bilateral ou multilateral. A partir de então as políticas econômicas brasileiras buscaram ajustar-se a esse modelo, como forma de obter financiamentos internacionais. Em síntese o programa neoliberal apontava para os seguintes pontos. a) A necessidade das privatizações, deixando o mercado ao livre jogo dos agentes privados, gerando com a venda das empresas recursos que seriam necessários ao equilíbrio das contas governamentais na fase dos ajustes estruturais. b) Uma tributação mínima e regressiva, bem como o aumento da base de tributação e a redução de impostos sobre os agentes econômicos, isto é, os possuidores de grandes fortunas e os pobres pagariam as mesmas taxas de impostos, estendendo a cobrança de impostos a segmentos pobres que antes estavam isentos, ao passo que seria diminuída a cobrança de impostos das empresas. c) Abertura a importações e investimentos estrangeiros, uma vez que o protecionismo de mercado seria ineficiente tanto para captar recursos quanto para satisfazer os interesses do consumidor nacional. O protecionismo inibiria a inserção competitiva do país na economia mundial. O investimento estrangeiro direto complementaria a poupança nacional necessária ao desenvolvimento e traria novas tecnologias, aumentado a competitividade do país. d) Quanto ao regime cambial e política monetária, o Consenso de Washington apontava a necessidade de estimular exportações e inibir importações. Afirmava, contudo, que durante a fase de estabilização econômica era válida a vinculação da moeda nacional a uma "âncora externa", mesmo correndo o risco de uma sobrevalorização monetária. Esta política, que era indicada como exceção, tornou-se posteriormente a praxe de dolarização para a estabilização econômica. O projeto neoliberal, que saíra vitorioso das urnas brasileiras graças, em grande medida, ao emprego político de técnicas semióticas de produção de subjetividades - operadas em particular pela TV Globo, como veremos na próxima seção - implantou-se no Governo Collor, apresentando-se como um programa de desenvolvimento e modernização e provocando significativas mudanças na economia do país. Tal projeto subordinou o Brasil ao modelo de "modernização conservadora", estabelecido pelas pressões do capital globalizado internacional, e acelerou a abertura da economia do país. Seguindo a linha neoliberal hegemônica, este governo buscou uma posição mais fortalecida de inserção internacional, participando ativamente na constituição do Mercosul, que foi criado pelo Tratado de Assunção em 1991, mas que passou a existir de fato em 1995(5). O Governo Collor diminuiu a capacidade reguladora do Estado e fez inúmeras concessões ao FMI, Clube de Paris e credores internacionais. Realizando ondas recessivas, visando combater a inflação, colocou em risco a capacidade industrial e produtiva do país. Após dois anos deste governo, o Brasil passou a viver uma das crises mais agudas de sua história. O processo de impeachment sofrido por Fernando Collor (1992) em razão dos esquemas de corrupção, estabeleceu-se como um momento de crise política conjuntural em que os setores da elite remanejaram suas composições de força para a continuidade do mesmo projeto hegemônico. No Governo Itamar Franco, nada de significativo foi mudado nas políticas que vinham sendo implantadas durante a gestão anterior. O receituário monetarista permaneceu, com taxas de juros elevadas. O combate do déficit público realizou-se às custas da precarização dos serviços prestados pelo Estado - afetando também as áreas da saúde e educação - e com a introdução do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira. Algumas iniciativas voltadas aos aposentados, aos indigentes e à recomposição dos salários, foram mais de caráter administrativo e de gerenciamento, no primeiro caso, e para efeitos de marketing nos dois últimos, uma vez que ações efetivas requeridas pelas demandas reais não foram implementadas(6). Fernando Henrique Cardoso, que assumiu o Ministério da Fazenda do governo Itamar Franco, adotou as proposições do consenso de Washington, organizando um plano econômico que estabilizou a moeda - com base na adoção da âncora cambial, na elevação das taxas de juros, na introdução de um mecanismo de conversão de preços (a Unidade Real de Valor, URV), na contenção dos salários e no corte dos gastos do governo com políticas públicas. O capital político adquirido com o controle da inflação garantiu a Fernando Enrique sua eleição ao primeiro mandato na presidência nacional (1994-1998), período em que buscou realizar um conjunto de reformas estruturais, entre outras: a Reforma da Previdência, alterando os critérios para aposentadoria por tempo de serviço, diminuindo o gasto com benefícios; a Reforma Tributária e Fiscal, buscando ampliar a arrecadação pelo aumento da base tributária, isto é, do número de pessoas que pagam impostos, bem como, reduzindo o número e o valor de impostos sobre as empresas; a Reforma Econômica, buscando privatizar as empresas e serviços estatais; e a Reforma Política, tanto aprovando a possibilidade de reeleição do presidente, governadores e prefeitos, quanto reduzindo as atribuições do Estado, bem como, visando promover uma reforma eleitoral com a introdução do voto distrital misto, entre outros aspectos. A sobrevalorização do câmbio fez com que os produtos importados ficassem muito baratos, o que ajudou a pressionar a queda da inflação com o expediente das importações, mas também fez cair as exportações do país tornando a balança comercial deficitária. Um estudo comparativo, considerando vários indexadores no país, destacou que embora o dólar comercial estivesse cotado - em 14 de novembro de 1997 - a R$ 1,1080 para a venda, ele deveria ser reajustado entre R$ 1,24 e R$ 1,66(7). Conforme dados da fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior - FUNCEX, considerando a taxa de câmbio do real frente ao dólar, iene, moedas européias e latino-americanas, em setembro de 1997 o real estaria defasado 17,1% em relação do dólar, considerando-se a defasagem ocorrida desde o início do Plano Real. Contudo, considerando-se os patamares prévios de 1991/92, a defasagem alcançava 22,7%, uma vez que na véspera do real já havia uma defasagem do câmbio - o que possibilitou o jogo de marketing político eleitoral ao fazer um real valer mais que um dólar. A contenção dos salários, que sofreram perdas quando da conversão à nova moeda, visava também inibir o consumo e evitar a inflação. O poder de compra real dos salários ficou congelado por um ano a partir da conversão do Cruzeiro Real pelo Real em julho de 1994, enquanto a inflação, apenas em julho e agosto daquele ano, somou 12%. Em seu conjunto, o plano econômico provocou perdas ainda maiores. Quando os salários foram convertidos para URV(8) as perdas salariais variam de 26,91% a 47,50% dependendo da categoria profissional e da data base de negociação salarial; os trabalhadores de renda mais baixa, os 25% mais pobres, receberam em março de 1994 um dos salários reais mais baixos dos últimos dez anos, cerca de 54% do salário médio recebido em 1985. De março a junho houve uma inflação em URV de 9% que também não foi incorporada ao salário. O salário mínimo, por sua vez, perdeu 10,8% após a implementação da URV até a virada do Real.(9) A perda salarial fica clara quando comparamos o valor do salário estabilizado em URV com a elevação do preço da cesta básica que custava em dezembro de 1993 o valor de 80,79 URVs, passando a custar 97,33 URVs em abril e chegando a R$ 110,00s em julho. O próprio então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, reconheceu que havia ocorrido perdas salariais e sugeriu a concessão de abono.(10) A elevação das taxas de juros inibiu o consumo contribuindo com a estabilização dos preços e atraindo capital externo para equilibrar a balança de pagamentos, mas provocou um alto nível de inadimplência, a quebra de muitas pequenas empresas, o aumento do desemprego e uma elevação fabulosa da dívida interna do governo brasileiro. Nos períodos de sobressalto econômico internacionais, os juros foram elevados a patamares ainda mais superiores. Pequenos negociantes passaram, então, a liquidar seus estoques queimando capital de giro para saldar suas dívidas. As mídias, entretanto, mostravam as liquidações como um dos benefícios do plano econômico aos consumidores, pois teria provocado a concorrência entre os comerciantes, melhorando a vida de todos os brasileiros. Com efeito, o crédito ao consumidor e os saques de poupança foram os principais vetores para o incremento do consumo popular após a estabilização da moeda. Com a elevação dos juros, que ocorreu após a crise do México, elevou-se acentuadamente o nível de inadimplência que cresceu 135% em fevereiro de 1995 em relação a fevereiro de 94, em São Paulo.(11) No ano de 1997, a Associação Comercial de São Paulo, constatou que quase 20% dos consumidores não estavam pagando pontualmente os carnês de crediário e que os cheques sem fundos atingiam 20 milhões de unidades naquele ano, contra 12 milhões em 1996 e 11,6 milhões em 1995.(12) O percentual de cheques sem fundo no primeiro trimestre de 1997, acusou o maior nível já registrado no Brasil.(13) As causas da inadimplência de consumidores finais estavam ligadas, principalmente, ao desemprego, descontrole de gastos, diminuição de renda (ver Figura 1). Sofrendo as consequências do não recebimento por vendas já realizadas, os comerciantes também tornaram-se inadimplentes junto a fornecedores e, por fim, teve-se a elevação do desemprego (ver figura 2), a quebra de muitas empresas ou sua incorporação por empresas internacionais. Figura 2 - Taxa Média de Desemprego Aberto Total, Período - 1995/1998 - Mês De Janeiro Fonte: IBGE A elevação das taxas de juros ampliou a própria dívida interna do governo, uma parcela da qual se refere à remuneração do capital investido em títulos públicos por especuladores internacionais. Com a alta de juros promovida em março 95, para enfrentar possíveis desdobramentos da crise do México, as taxas dos títulos públicos ultrapassaram aos 50% anuais em valores reais acima da inflação, ao passo que durante a crise dos Tigres Asiáticos as taxas subiram nominalmente de 20,7% para 43,7% ao ano(15) ou 37,5%, em juros reais, não havendo taxas de juros comparáveis a essas em todo o mundo. Um editorial da Folha de São Paulo, em maio de 1995, sobre a taxa de juros praticada no país afirmava o seguinte: "supondo-se que até o final do ano o governo ofereça ao mercado, para continuar com a bomba-relógio no colo, as taxas médias atuais de cerca de 4% ao mês, o dispêndio com juros terá sido de mais de US$ 40 bilhões, ou seja, o suficiente para pagar por mais de dez anos todas as internações hospitalares do INAMPS..." - Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social(16). Como destacou o economista Paulo Nogueira Batista Jr, considerando-se as taxas de juros de curto prazo fixadas a partir de 31 de outubro de 1997, enquanto no Brasil têm-se 37,5% ao ano, "nos países do G-7 (EUA, Canadá , Japão, Alemanha, França, Itália e Reino Unido) a taxa real média é 2,9 % variando entre o mínimo de 0,5% no Japão e o máximo de 5,4% na Itália. Os juros reais brasileiros são, portanto, 13 vezes maiores do que os juros médios nos principais países desenvolvidos."(17) Por outra parte, se compararmos as taxas reais de juros praticadas no Brasil em relação ao conjunto dos "mercados emergentes", considerando-se os juros básicos de curto prazo, apresentados na tabela 3, perceberemos que somente cinco outros países mantém taxas de juros anuais na casa dos 10% ou acima. Se a queda da taxa de juros tende a ser - sob a lógica do governo - lenta e gradual, levando a previsões de que estaria em 15% em 2001, conforme Ives Gandra Martins(19), a sua contrapartida está em que a dívida mobiliária do país saltou gigantescamente de R$ 61,8 bi em junho de 1994 para R$ 304,9 bi em julho de 1998, experimentando um ligeiro declínio dois meses depois (ver figura 3). Figura 3 - Divida Mobiliária da União -Valores em bilhões de reais Fonte: M. da NÓBREGA(20) Esta dívida mobiliária do governo federal é, contudo, somente uma parte da dívida pública, tendo crescido também pela absorção de dívidas estaduais, por uma explicitação de dívidas assumidas anteriormente por outros governos e que eram contabilizadas de outro modo, bem como pela acumulação de reservas internacionais. Assim, a queda da dívida verificada entre julho e setembro de 1998 deveu-se à fuga de capitais do país em razão da crise internacional e do temor dos aplicadores que o governo realizasse uma desvalorização cambial. Embora alguns argumentem que a dívida tenha aumentado cinco vezes no Brasil desde de 1994, crescendo R$ 240 milhões por dia(21), outros economistas citando dados do Banco Central, preferem destacar que a dívida líquida total variou "de 31,2% para 38,4% do PIB entre julho de 1994 e agosto de 1998, devendo chegar perto dos 50% do PIB em três anos."(22) Fato é que em 1998 o governo gastou cerca de R$ 70 bilhões em pagamentos de juros da dívida interna, ao passo que todos os recursos destinados ao pagamento de benefícios da previdência social somam R$ 53,8 bilhões(23). A desconfiança do mercado quanto ao futuro da economia do país, entretanto, fez com que a procura pelos títulos públicos que são indexados à variação do câmbio. Em janeiro de 1997, estes títulos representavam 10,3% do total da dívida, passando a 29,5% em novembro de 1998(24). O Brasil permanece atado, ainda, a uma outra dívida, a dívida externa que passou a crescer acentuadamente a partir da ditadura militar, quando os acordos e o destino do dinheiro não foram discutidos com o legislativo ou com a sociedade. Uma parcela deste dinheiro financiou obras de infra-estrutura e integração nacional que contribuíram para o desenvolvimento econômico dos anos 70; outra parte foi empregada em despesas militares em geral, na compra de armamentos e desenvolvimento de tecnologia bélica; estima-se que outro montante foi desviado para contas privadas em paraísos fiscais e, por fim, que outras parcelas tenham engordado os cofres de empreiteiras com o superfaturamento de obras faraônicas por elas realizadas naquele período. Com o aumento das taxas internacionais de juros que incidiam sobre esta dívida no fim da década de 60 - que de 4,5% saltaram para 21,5%, tendo em vista combater a inflação nos países ricos - a dívida externa do Brasil elevou-se para valores estratosféricos. Somente de 1975 a 1990 o Brasil pagou US$ 100 bilhões de juros e serviços, mas a dívida que era de US$ 25 bilhões em 75, passou a US$ 115 bilhões em 1989 e a U$ 159 bilhões em 1995. De 1994, quando Fernando Henrique era Ministro da Fazenda, até 1998, quando encerrou seu primeiro mandato presidencial, o país pagou aproximadamente U$ 62 bilhões de dólares em juros e serviços da dívida externa - ver figura 4. Figura 4 - Pagamento de Juros da Dívida Externa - Valores em bilhões de US$ * Estimativa Fonte: Banco Central / Sobeet(25) Na última negociação com o FMI o governo assumiu novos compromissos sobre o tema. Conforme o governo, "a dívida externa brasileira não é muito elevada com relação ao PIB (29%) e seu prazo médio de vencimento é relativamente longo. O componente do setor público na dívida externa representa não mais do que um terço do total, e a dívida a curto prazo do setor público é inferior a US$ 6 bilhões. É intenção do governo - segundo ele mesmo - manter o aumento da dívida pública do setor externo dentro de limites prudentes, em torno de US$ 10 bilhões em 1999. É também intenção do governo promover uma prorrogação gradativa do vencimento médio do total da dívida externa, conforme as condições do mercado permitirem."(26) Considerando o conjunto dos gastos federais em 1995 (R$ 251,5 bilhões) percebe-se que significativa parcela refere-se ao serviço da dívida pública federal interna e externa (R$ 117,6 bilhões) ao passo que a parcela destinada ao gasto social federal foi inferior a esta (R$ 79,0 Bilhões) - ver figura 5. Figura 5 - Produto Interno Bruto, Gasto Federal e Gasto Social (R$ bilhões) - 1995 PIB - Produto Interno Bruto GF - Gasto Federal GFED - Gasto Federal (exclusive Serviço da Dívida Pública Federal) GDPF - Gasto com o Serviço da Dívida Pública Federal GSED - Gasto Social Federal ( exclusive Serviço da Dívida Pública Federal) Fonte: IBGE(27) Este quadro de sobrevalorização do câmbio, a elevação das taxas de juros, a abertura às importações e a facilitação de movimentos ao capital internacional, somada às inadimplências de consumidores finais e comerciantes e à falta de financiamento à produção interna vem provocando a subordinação do país aos capitais internacionais. Os investimentos estrangeiros diretos cresceram no país de US$ 2,1 bilhões em 1994 a US$ 23 bilhões em 1998 (ver figura 6). Figura 6 - Investimento Estrangeiro Direto - Valores em Bilhões de Dólares * Projeção Fonte: Banco Central e Sobbet(28) Aumentou também a participação do capital estrangeiro no patrimônio líquido das empresas de US$ 65,9 bilhões para US$ 129, 4 bilhões em igual período - como mostra a figura 7. Inúmeras empresas nos setores de indústria, comércio e serviços estão sendo incorporadas por empresas estrangeiras. Figura 7 - Participação do Capital Estrangeiro no Patrimônio Líquido das Empresas - Valores em Bilhões de Dólares * Projeção Fonte: Sobbet(29) Já os investimentos estrangeiros em bolsa e renda fixa também cresceram no período de US$ 25,2 bilhões em 1994 a US$ 38,4 bilhões em 1998, tendo atingido o pico de US$ 53,3 bilhões em 1997 (ver figura 8). Figura 8 - Investimento Estrangeiro em Bolsa e Renda Fixa - Valores em Bilhões de Dólares * Estimativa Fonte: Sobbet(30) O movimento de fusões e aquisições de empresas no Brasil tem feito surgir segmentos com alta concentração acima dos padrões de mercado das economias avançadas. Para ter-se uma noção do que isto significa, basta citar que os grupos Cragnotti & Partners e Gessy Lever dominavam, em 1994, 90% de toda a produção de detergentes líquidos no Brasil(31). Um estudo do IPEA constatou uma alta concentração oligopolizada em vários outros setores do mercado no país(32). Utilizou-se, neste estudo, o Índice Herfindhal Hirschman, que é calculado tomando por referência a participação das empresas na receita global do mercado. Conforme este indicador, considera-se desconcentrados os segmentos que atinjam um índice de até 1.000, moderadamente concentrados os que ficam entre 1.000 a 1.800 e, por fim, extremamente concentrados aqueles setores que têm um índice superior a 1.800. Sobre dados de 1994, o IPEA constatou que, no Brasil, "no segmento de copiadoras o índice chega a 9.224 (5,2 vezes o que os EUA consideram extremamente concentrado). Nos mercados de computadores, baterias e montadoras de automóveis, o índice ultrapassa 4.000. Nos segmentos de lâmpadas, máquinas de escrever, cobre, higiene e limpeza, aços planos, elevadores, condutores elétricos e aços laminados, o índice é superior a 3.000." Outros setores com índice de concentração superiores ao considerado razoável nos Estados Unidos, são: metalurgia, torneiras/chuveiros/aquecedores, tratores e colheitadeiras, freios e componentes, eletrodomésticos e centrais telefônicas. Assim, por exemplo, Fiat, Valmet e Maxion respondem por 87% das vendas de equipamentos agrícolas. De outra parte, "a fusão da Brasilit com a Eternit, que constituíram uma nova empresa chamada Eterbrás, fez com que elas concentrassem 68% do mercado interno de caixas d'água e telhas de amianto." Na área química, o estudo do IPEA "cita a fusão da Rhodia com a Cia. Alcooquímica Nacional, através da qual as duas passaram a deter 84,7% da produção de ácido acético." Conforme Lúcia Helena Salgado, economista daquele Instituto, "as fusões e aquisições [no Brasil] têm sido aprovadas sem maior análise econômica, sem apontar benefícios e riscos" - sendo, grande parte delas, aprovada por decurso de prazo(33). A Lei Antitruste, que foi aprovada em junho de 1994, por sua vez, previa punições quando as empresas, que passaram por processos de fusão, não cumprissem determinadas metas que haviam sido estabelecidas. Este processo de fusões têm reflexo, em certos setores, no aumento de importações. No caso das esponjas de aço, a 3M é, potencialmente, o maior concorrente do grupo Cragnotti & Partners no Brasil, que respondeu por 94% de todas vendas neste segmento em 1994. Com a redução das alíqüotas de importação, a 3M, teria melhores condições para importar o Esponjaço de sua matriz nos Estados Unidos, para concorrer com o Bombril que é da Cragnotti & Partners. Por outra parte, conforme o gerente de marketing da Phillips, Isac Roizenblatt, cerca de 20% das lâmpadas para faróis de automóveis que, em 1994, eram utilizadas no mercado brasileiro, já eram importadas, o que, segundo ele, estaria obrigando os fabricantes no país a investir buscando melhorar a produtividade(34). Contudo, como os grupos fabricantes do país são os mesmos do exterior, uma vez que esse é o segmento mais concentrado do mundo, o resultado dessa "livre-concorrência" com a entrada de produtos externos é a redução da produção interna, com a conseqüente geração de desemprego no país. Se é possível importar lâmpadas de qualquer marca, porque uma empresa multinacional investiria no Brasil para enfrentar a importação de lâmpadas de seu concorrente, se suas próprias lâmpadas - fabricadas em unidades produtivas mais sofisticadas em outras partes do mundo - também poderiam ser importadas por um valor final mais baixo do que o de sua produção no país, resultando-lhe assim um lucro ainda maior do que se as fabricasse no Brasil ? Assim, as importações continuam superando crescentemente as exportações, com um déficit persistente na balança comercial (ver figura 9). Figura 9 - Importações e Exportações Brasileiras - Percentual em relação ao PIB Fonte: IBGE(35) No período de 1994 a 1998 também cresceram as remessas de lucro para o exterior de US$ 2,9 bilhões para US$ 7,1 bilhões (ver figura 10). Figura 10 - Remessas de Lucro para o Exterior -Valores em Bilhões de Dólares * Previsão Fonte: Sobeet(36) Por fim, as reservas internacionais do país, após crescerem entre 1994 e 1996, vem experimentando uma progressiva regressão, chegando a US$ 41,6 bilhões em outubro de 1998 - ver figura 11. Figura 11 - Reservas Internacionais Brasileiras - Valores em Bilhões de Dólares * Valor de outubro Fonte: Banco Central(37) A submissão aos agentes financiadores externos é cada vez maior. No último acordo com o FMI, para assegurar um empréstimo de US$ 41,5 bilhões ao país, o governo brasileiro assumiu a meta de limitar o déficit nominal das contas públicas nacionais - incluindo os resultados fiscais da União, dos Estados e dos municípios (considerando-se o resultado primário, isto é, as receitas menos as despesas, bem como os desembolsos realizados com o pagamento de juros da dívida interna) - que atualmente giram na casa de 8% do PIB, a um patamar de 4,7% em 1999, a uma cifra um pouco superior a 3% no ano 2000 e de 2% em 2001(38). Para cumprir o acordo feito com o FMI o governo terá que cortar gastos. Como o corte de gastos não pode afetar o pagamento de juros da dívida mobiliária, novamente serão penalizadas as áreas sociais. Conforme o economista Aloizio Mercadante, "O socorro financeiro [negociado com o FMI] terá um custo elevado e contrapartidas que apontam para aprofundar o ajuste neoliberal, mantendo a abertura comercial, financeira, privatizações e agora a implantação da segunda geração de reformas sociais, com o ataque aos direitos trabalhistas e privatização da Previdência Social." "A linha de crédito... recomporá as reservas, permitindo a manutenção da âncora cambial. As privatizações de Petrobrás, parte importante do Banco do Brasil e Banespa e saneamento básico, acompanhadas da desregulamentação do mercado de trabalho e desorganização sindical, devem assegurar a margem de manobra para dar continuidade ao ajuste estrutural neoliberal do país." "O instrumento principal dessa estratégia são os juros elevadíssimos e o pacote fiscal. Cortes de R$ 12,2 bilhões no gasto público, tendo como alvo o funcionalismo público, investimentos em infra-estrutura e a área social. O corte de R$ 8,7 bilhões nos gastos correntes e de capital representam 20% de todas as despesas e incluem educação e saúde."(39) Neste quadro, a política de privatizações tem como finalidade ampliar a participação do capital externo no país, reduzir gastos e abater a dívida interna(40). De 1994 a 1998 foram privatizadas 39 empresas estatais. Contudo, as privatizações realizadas desde 1991 até dezembro de 1997, renderam ao governo R$ 37,6 bilhões, em dinheiro vivo ou títulos públicos - valor bastante inferior ao volume da dívida interna contraída no período. A privatização da empresa Vale do Rio Doce por R$ 3,1 bilhões, é um signo da política neoliberal implementada no Brasil. A Vale é a maior empresa exportadora do país e gerava, anualmente, um lucro superior a R$ 500 milhões. Com sua venda o governo visava abater 1,5% da dívida pública(41). Normalmente se justificam as políticas de privatização e de redução do Estado afirmando-se que elas são necessárias para que o governo possa gastar mais ou melhor com saúde, educação e programas sociais. Sob a lógica do ajuste estrutural da economia, entretanto, todo o dinheiro adquirido com as privatizações das empresas estatais, acabou desaguando no buraco negro da dívida interna, que mantém estável o valor do Real. Em 1994, por exemplo, o governo gastou R$ 7 bilhões com a saúde, ao passo que no mesmo período a conta dos juros para a União, estados e municípios foi de R$ 20,3 bilhões, três vezes mais que o gasto com saúde(42). Os cortes nos gastos governamentais atingem, em geral, as políticas públicas ao passo que os gastos no pagamento de juros aumenta a cada dia. Em 1988 e 1989, antes de o programa de privatizações iniciar, o governo federal gastava mais com saúde e educação. Em 1988, foram destinados US$ 18,9 bilhões para essas áreas, ao passo que em 1989 foram US$ 19,8 bilhões. Em 1995, contudo, o governo gastou US$ 17,8 bilhões com educação e saúde(43). De 1995 para 1996, o governo cortou mais 8,6% na área da educação e cultura e 10,3% na área da saúde e saneamento, conforme o relator do senado que avaliou tanto as contas do governo quanto as análises do Tribunal de Contas da União sobre as mesmas. O resultado dessa política é que ações básicas de saúde, como a vacinação e prevenção a epidemias, por exemplo, ficaram prejudicadas. Em 1996 caiu o número de bebês vacinados, uma vez que faltaram verbas, inclusive para campanhas de rádio e TV (44). Por sua vez, em 1998, segundo a previsão orçamentária, as pastas da área social perderam R$ 993 milhões em recursos, porque o governo teve de cortar gastos na ordem de R$ 6,3 bilhões do orçamento como um todo, em razão do pacote lançado para atenuar os efeitos no Brasil da crise das bolsas asiáticas (45). Assim embora o programa de privatizações continue avançando, destina-se cada vez menos recursos às políticas sociais e às áreas de saúde e educação. Conforme análise dos movimentos sociais, considerando-se o total dos gastos do governo federal em 1998, o dispêndio com servidores públicos representa 10%, os juros da dívida externa 8%, e os recursos destinados a hospitais, estradas, escolas, apenas 1%. Todavia, aproximadamente 60% dos gastos visam o pagamento da dívida interna(46). Segundo outros analistas, o corte previsto no final de 1998 na ordem de R$ 25 bilhões nos gastos do governo significa um corte equivalente ao montante de "todas as despesas do Estado, descontados os benefícios da Previdência, os salários dos servidores e o pagamento dos juros"(47). Os cortes atingiram também o funcionalismo público que não tem reajuste há vários anos, com vencimentos corroídos pela inflação. Com as privatizações, com a política de demissões voluntárias, com a não substituição de todos os funcionários que se aposentam e com a terceirização dos serviços públicos, o quadro de funcionários civis do executivo e das estatais federais que era de 1.216.058 em 1994, caiu para 886.818 em 1998.(48) Embora todos esses cortes nas áreas de saúde, saneamento, educação, cultura e outras, os gastos do governo em reais aumentaram na primeira gestão de Fernando Henrique, mesmo desconsiderando-se os dispêndios com pagamentos de juros. A elevação do montante gasto com seguro-desemprego e com a previdência social, entre outros, fizeram os gastos do governo subir em R$ 50 bilhões, aproximadamente, de 1995 a 1998(49). A figura 12 mostra, entretanto, com dados de 1995, que a participação dos gastos com previdência é muito superior ao dos demais setores do gasto social federal. Figura 12 - Gasto Social Federal* por setores (R$ bilhões)* - 1995 * Exclusive Serviço da Dívida Pública Federal ** R$ dezembro 1995 Fonte: IBGE(50) Quando analisados em reais, sem levar em conta a inflação do período, alguns afirmam que, em seu conjunto, as áreas de saúde, educação, reforma agrária, saneamento e habitação passaram a receber mais em recursos, entre 1995 e 1998.(51) Contudo, considerando-se cada área em particular e corrigindo-se os valores tendo em consideração a inflação desses quatro anos, percebe-se que a generalização dessa totalização para os elementos que a compõem acoberta diferenças induzindo a erros de apreciação. Fazendo-se um balanço geral sobre a concentração de riqueza e exclusão social nesses dez anos de ajustes do Brasil à nova ordem globalitária, percebe-se que o quadro da pobreza no país tornou-se mais dramático. Em 1990 a situação de distribuição de renda já era crítica, sendo, o Brasil, o país de maior concentração de renda na América Latina. Aproximadamente 44% dos pobres do continente latino-americano vivia em território brasileiro, embora o país tivesse apenas um terço da população da região. Aumentavam os seus pobres, diminuindo a participação deles na apropriação da renda nacional. Em 1980, os 20% mais pobres tinham 2,6% da riqueza do país; em 1989, detinham só 2,1%. O quadro geral da concentração de renda em 1990 era o seguinte: enquanto 50% dos mais pobres ficavam com 11,2% da renda nacional, os 10% mais ricos ficavam com 49,7%, sendo que o 1% mais rico ficava com 14,6% da renda nacional(52). Conforme dados do IPEA, em 1994 aproximadamente 22% da população do Brasil (cerca de 32 milhões de pessoas) não tinham suas necessidades alimentares atendidas, vivendo em situação de indigência. Aproximadamente 40% das famílias possuíam uma renda per capita de 0,5 salário mínimo e outros 15% de famílias uma renda per capita de 0,25 salário mínimo. Considerando-se os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para os anos de 1987 e 1996 - mesmo considerando-se a alteração metodológica nesta última - percebe-se claramente a elevação do número de famílias pobres no Brasil (ver figura 13). Conforme a amostragem, enquanto o número total de famílias cresceu 14%, o número de famílias mais pobres cresceu 28%. Figura 13 - Famílias por Faixa de Renda (em salários mínimos) Números Absolutos, Participação Relativa e Variação no Período Fonte: Pesquisas de Orçamentos Familiares IBGE(54) Considerando particularmente o aspecto da alimentação, percebe-se como é dramática a desigualdade na distribuição de renda no Brasil (ver tabela 4). Uma família com rendimento de até dois salários mínimos gastava no ano de 1996, em média, R$ 77,74 por mês com alimentação, ao passo que uma família com renda superior a 30 salários mínimos gastava em média, por mês, R$ 507, 96 com alimentação; não apenas a quantidade e variedade, mas especialmente a qualidade dos alimentos consumidos por estes dois segmentos também é distinta. Manter uma família alimentada com R$ 77,74 por mês exige selecionar alimentos de qualidade inferior ou em quantidade inferior. Conforme dados da POF de 1996, as famílias de até 2 salários mínimos gastavam em média, por mês, R$ 3,32 em arroz, R$ 2,41 em feijão, R$ 0,93 em macarrão, R$ 4,33 em leite, R$ 7,86 em pão, entre outros gastos (ver tabela 5). Tabela 4 - Valor da despesa média mensal familiar com alimentação por classes de rendimento em moeda corrente e a participação relativa da classe no consumo total Fonte: Pesquisas de Orçamento Familiar - 1996 Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA 97 Tabela 5 - Despesa Média Mensal Familiar em Alimentação por Classes Selecionadas de Recebimentos em moeda corrente, segundo Itens Selecionados de Alimentos Fonte: IBGE - Pesquisa de Orçamentos Familiares 1996 Outro vetor que provoca a exclusão social no país é a concentração fundiária, rural e urbana, que se acentuou a partir do modelo de desenvolvimento adotado sob a ditadura e que permanece compondo um cenário peculiar à globalização que se verifica no Brasil. Conforme estudos que subsidiaram em 1993 a preparação da Semana Social Brasileira, organizada pela CNBB, "em todo o país existem apenas 5 milhões de proprietários rurais. Os 20 maiores proprietários são donos de mais de 20 milhões de hectares e os 3 milhões e 300 mil pequenos proprietários têm, todos juntos, menos de 20 milhões de hectares. Fazendo a média de um milhão de hectares para cada grande proprietário e 6,6 hectares para cada pequeno"(55). Em 1980, 0.8% dos proprietários rurais com mil ou mais hectares controlavam 45,8% das terras agricultáveis do país, sendo que 75% dessa área estava ociosa, enquanto 4,8 milhões de famílias sem-terra lutavam por terra para plantar. De outra parte, considerando-se a questão urbana, segundo o geógrafo William Vesentini, espaços urbanos correspondentes a cerca de 40% a 60% das áreas construídas nas capitais eram ociosos, tratando-se de vazios urbanos , cujo principal objetivo era a especulação imobiliária(56). Embora no período de 1992 a 1997 os índices de saneamento e iluminação elétrica tenham melhorado (ver figura 14) - mesmo desconsiderando que a água que chega às residências, embora encanada, nem sempre está isenta de contaminação, dada a qualidade da rede de distribuição, bastante antiga em muitas cidades - verificou-se durante a década de 90 o reaparecimento de doenças que haviam sido controladas e o aumento de doenças contagiosas por falta políticas básicas de saúde e saneamento, tais como meningite, malária, tuberculose e hanseníase. Figura 14 - Moradores em domicílios particulares permanentes sem água encanada, esgotamento sanitário e iluminação elétrica (em percentuais). Fonte: IBGE(57) No mesmo período cresceu o número de crianças e adolescentes pelas ruas pedindo esmola, vendendo produtos ou se prostituindo. Em 1990 cerca de 25 milhões de pessoas com dez anos e acima eram analfabetos e 22 milhões de crianças entre 7 e 14 anos não freqüentavam a escola. De 1990 a 1995, contudo, melhoraram os índices de escolarização como pode ser visto na figura 15. Figura 15 - Taxa de Escolarização de Crianças e Adolescentes por faixa etária nos anos de 1990 e 1995 Fonte: IBGE(58) Frente ao cenário geral apresentado nesta seção cabe considerar duas questões de fundo: a) qual é a teoria subjacente à compreensão de desenvolvimento econômico adotada por Fernando Henrique Cardoso e b) como é possível que um governo que adota as medidas que resenhamos, que têm as consequências que analisamos, possa ser reeleito com significativo apoio popular. 3. Da Teoria da Dependência à Prática da Subserviência Globalitária Nos anos 60 e 70, Fernando Henrique ficou conhecido por sua contribuição ao desenvolvimento da Teoria da Dependência, sobre a qual também trabalharam Theotonio dos Santos, Andrew Gunder Frank, Enzo Falleto e vários outros teóricos(59). A Teoria da Dependência - que de fato era um conjunto de elaborações diversas sobre o tema com um certo arcabouço comum - teve uma repercussão positiva para a elaboração de outras teorias críticas na América Latina, como a Teologia da Libertação e a Filosofia da Libertação. A posição de Fernando Henrique, em particular, possuía contudo uma peculiaridade frente àquelas que afirmavam ser o desenvolvimento autônomo dos países dependentes somente possível com a ruptura da situação de dependência - vertentes que apontavam, em alguns casos, para ações de revolução política(60). Fernando Henrique, pelo contrário, advogava que mesmo sob uma situação de dependência de centros hegemônicos era possível promover-se o desenvolvimento da periferia, desde que o Estado mantivesse a capacidade de coordenar políticas estratégicas para tanto, promovendo um certo tipo de participação do capital estrangeiro na economia nacional, presença que alavancaria o crescimento econômico do país, embora continuasse a ser vigente o quadro de dependência, uma vez que o capital nacional seria incapaz de promover, por conta própria, um processo de desenvolvimento econômico sustentável na extensão necessária ao crescimento do país: "a caracterização da atual etapa da dependência mostra que existe a possibilidade de acelerar-se a industrialização nas economias periféricas, redefinindo-se as bases de dependência.(...) Com efeito, o processo atual de divisão internacional do trabalho, impulsionado pelo capitalismo monopólico e pela organização das empresas chamadas multinacionais, que passam a operar como ‘conglomerados’ nos quais se incorporam distintos ramos de produção, abre as possibilidades da industrialização de áreas periféricas do capitalismo."(61) Em 1967, em um trabalho conjunto com Enzo Faletto, Dependência e Desenvolvimento na América Latina, ambos os autores afirmam que em certas "...circunstâncias - de crise política do sistema quando não se pode impor uma política econômica de investimentos públicos e privados para manter o desenvolvimento - as alternativas que se apresentariam, excluindo-se a abertura do mercado interno para fora, isto é, para os capitais estrangeiros, seriam todas inconsistentes, como o são na realidade, salvo se se admite a hipótese de uma mudança política radical para o socialismo."(62) Como tal hipótese foi descartada nos anos 90 por amplos segmentos e como as circunstâncias brasileiras apresentam as características apontadas, restaria somente a abertura do mercado interno como mediação de desenvolvimento. Neste caso, todavia, "...enquanto as decisões de investimento dependem, ainda que parcialmente, do exterior, o consumo é interno."
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